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A literatura do Egito Antigo e dos povos da Mesopotâmia proveniente do primeiro e segundo milênios
antes da era cristã proporcionam um rico manancial historiográfico não só para conhecermos a dinâmica
da realidade social e política dos povos que habitavam nestas regiões, como também para entender a
mentalidade cultural e religiosa desses mesmos povos e dos povos que lhes eram circunvizinhos e com
os quais conviviam e mantinham relações de variados tipos.
O conhecimento contextual de tal ambiente – no qual os israelitas antigos estavam inseridos e do qual
faziam parte –, portanto, enriquece nossa leitura dos textos escriturísticos veterotestamentários,
permitindo-nos fazer aproximações e identificar contrastes, estabelecer semelhanças e dessemelhanças,
destrinchar, por fim, a mentalidade compartilhada entre os israelitas antigos e tais povos, com os quais
conviveram historicamente.
A título de aproximação, tomemos como exemplo as narrativas de criação do homem a partir do barro e
as figuras de Yahweh e do deus oleiro Khnum, cultuado no Antigo Egito.
Amuleto núbio-egípcio de ouro: cabeça de carneiro (deus Khnum). Período Tardio, XXV Dinastia (Núbia). Data: ca. 712–664 a.C. The Metropolitan Museum of
A segunda das duas narrativas da criação presentes no começo do livro de Gênesis, que está
especificamente em Gn 2,4b-3,24, e que é a que usa o nome Yahweh para se referir à divindade, e por
isso mesmo chamada por alguns acadêmicos de narrativa “Javista” (a fim de diferenciá-la da chamada
narrativa “Elohista”, que é a que se utiliza do nome Elohim para se referir à divindade e que está
presente em Gn 1,1-2,4a), vai nos dizer, em 2,7 que Yahweh “moldou” o ser humano a partir do pó do
solo (adamah), motivo pelo qual ele foi chamado adam.
Na mitologia egípcia, Khnum, deus egípcio retratado com corpo humano e cabeça de carneiro, divindade
responsável pelo controle do ciclo anual de cheias e vazantes do Nilo, as quais trazem consigo um
húmus sobre as terras que margeiam este rio, possibilitando assim a fertilidade agrícola das mesmas,
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semelhantemente a Yahweh, molda – só que em sua roda de oleiro –, não exatamente os adam, mas
sim as crianças, a partir da argila das margens do Nilo, colocando-as em seguida no ventre de suas
respectivas mães. Nas representações iconográficas desta divindade, ela é geralmente vista com um
jarro na mão, da qual flui o próprio Nilo. Uma vez associado ao Nilo, logo o era também à própria vida,
portanto, ele era, simultaneamente, um deus criador e um deus da vida.
Khnum, from a tomb in the Valley of the Queens, Thebes, Egypt. Encyclopædia Britannica.
No âmbito das dessemelhanças, voltemos à Yahweh e a Bíblia Hebraica. Embora cada uma das duas
narrativas da criação presentes no início do livro do Gênesis tenha sido composta em contextos
diferentes, que um trabalho exegético judicioso nos convida a descobrir, por meio da sua costura em um
corpus literário unificado – enlaçando ambas as narrativas em uma única e mesma narrativa contínua, tal
como o redator responsável por tal procedimento se propôs a fazer e como a recepção teológica do texto
nos meios religiosos a tomaram por muitos e muitos anos, até o início das perspectivas histórico-críticas
de estudo –, somos conduzidos a uma leitura que faz com que importantes conceitos de uma sejam
reforçados pela outra. Passemos a exemplificá-lo tomando um único caso em particular: a apologia à
uma única divindade. Aqui reside, pois, a singularidade da visão israelita antiga em face da qual se
estabeleceriam importantes contrastes com as crenças dos demais povos do Antigo Oriente Próximo,
todos politeístas.
A narrativa da criação de Gênesis 1,1-2,4a tem por objetivo, entre outros, o de polemizar contra o
politeísmo, ela se propõe a apresentar a divindade, Elohim, como o único deus, criador de e soberano
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sobre todas as coisas. Ainda que a narrativa de Gênesis 2,4b-3,24 tenha propósitos outros, lidas em
conjunto ou em sequência, da maneira como o compilador intentou que o fossem, faz com que essa
“apologia” a um único deus criador seja reforçada em 2,7 pela associação de Elohim com Yahweh, o
criador de adam.
Ainda nesse quesito, passemos à narrativa do Êxodo e das pragas sobre os egípcios, narrativa que
também faz uso do teônimo Yahweh para se referir ao deus dos hebreus, e analisemo-la. Lá, como na
narrativa “Elohista” da criação, há uma “apologia” a um único e soberano deus, que é reforçada pela
descrição das pragas, cada uma das quais dizendo respeito a um aspecto da realidade ou do cotidiano
cuja possibilidade/continuidade os egípcios atribuíam à ação dos deuses (sol, fertilidade agrícola, a
pecuária, as águas do Nilo etc.). Logo, intenta-se demonstrar a soberania absoluta de Yahweh, que é
quem domina sobre todos os elementos da natureza e sobre todos os aspectos da realidade, e para tal
demonstração foi necessária a humilhação dos supostos deuses a quem os egípcios atribuíam o domínio
sobre essas esferas. Cada praga é uma decretação triunfalista da vitória de Yahweh sobre outros deuses
egípcios!
Voltando para o texto de Gênesis 2,7, lido agora em retrospecto, a partir do seu contexto canônico –
tendo sempre em mente ser essa uma leitura possível a nós hoje, certamente não o sendo para as
comunidades em que primeiro surgiram as tradições que dariam origem aos textos individuais –, é
possível vermos agora, não apenas no Êxodo, como também aqui, reforçada essa ideia da superioridade
de Yahweh sobre outras “divindades” – sejam elas egípcias, ou dos outros povos do Antigo Oriente
Próximo que também conheciam cosmologias de criação humana a partir do barro –, ao colocá-lo como
ele sim responsável pela criação dos adam a partir da adamah e sendo ainda ele mesmo o responsável
por insuflar-lhes fôlego de vida – no Egito, por exemplo, enquanto Khnum coloca as crianças por ele
criada no ventre das mães, é outra deusa quem tem o papel de colocar nelas o fôlego de vida.
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