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08/04/2024, 15:53 Yahweh e Khnum: a criação do homem a partir do barro

Yahweh e Khnum: a criação do homem a partir do barro


março 08, 2024

A literatura do Egito Antigo e dos povos da Mesopotâmia proveniente do primeiro e segundo milênios
antes da era cristã proporcionam um rico manancial historiográfico não só para conhecermos a dinâmica
da realidade social e política dos povos que habitavam nestas regiões, como também para entender a
mentalidade cultural e religiosa desses mesmos povos e dos povos que lhes eram circunvizinhos e com
os quais conviviam e mantinham relações de variados tipos.

O conhecimento contextual de tal ambiente – no qual os israelitas antigos estavam inseridos e do qual
faziam parte –, portanto, enriquece nossa leitura dos textos escriturísticos veterotestamentários,
permitindo-nos fazer aproximações e identificar contrastes, estabelecer semelhanças e dessemelhanças,
destrinchar, por fim, a mentalidade compartilhada entre os israelitas antigos e tais povos, com os quais
conviveram historicamente.

A título de aproximação, tomemos como exemplo as narrativas de criação do homem a partir do barro e
as figuras de Yahweh e do deus oleiro Khnum, cultuado no Antigo Egito.

Amuleto núbio-egípcio de ouro: cabeça de carneiro (deus Khnum). Período Tardio, XXV Dinastia (Núbia). Data: ca. 712–664 a.C. The Metropolitan Museum of

Art, New York.

A segunda das duas narrativas da criação presentes no começo do livro de Gênesis, que está
especificamente em Gn 2,4b-3,24, e que é a que usa o nome Yahweh para se referir à divindade, e por
isso mesmo chamada por alguns acadêmicos de narrativa “Javista” (a fim de diferenciá-la da chamada
narrativa “Elohista”, que é a que se utiliza do nome Elohim para se referir à divindade e que está
presente em Gn 1,1-2,4a), vai nos dizer, em 2,7 que Yahweh “moldou” o ser humano a partir do pó do
solo (adamah), motivo pelo qual ele foi chamado adam.

Na mitologia egípcia, Khnum, deus egípcio retratado com corpo humano e cabeça de carneiro, divindade
responsável pelo controle do ciclo anual de cheias e vazantes do Nilo, as quais trazem consigo um
húmus sobre as terras que margeiam este rio, possibilitando assim a fertilidade agrícola das mesmas,

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semelhantemente a Yahweh, molda – só que em sua roda de oleiro –, não exatamente os adam, mas
sim as crianças, a partir da argila das margens do Nilo, colocando-as em seguida no ventre de suas
respectivas mães. Nas representações iconográficas desta divindade, ela é geralmente vista com um
jarro na mão, da qual flui o próprio Nilo. Uma vez associado ao Nilo, logo o era também à própria vida,
portanto, ele era, simultaneamente, um deus criador e um deus da vida.

Khnum, from a tomb in the Valley of the Queens, Thebes, Egypt. Encyclopædia Britannica.

As associações são interessantes, mas certas idiossincrasias seriam definidoras de caminhos


absolutamente diferentes. Ainda que os sistemas religiosos guardem suas semelhanças não somente no
âmbito das narrativas, como também no âmbito do éthos e do rito, as diferentes perspectivas teológicas
adotadas por egípcios e israelitas antigos, estes monoteístas (ou, na pior das hipóteses, monolátricos em
sua origem), aqueles politeístas, são fundamentos suficientes para o desenvolvimento da singularidade
da crença israelita.

No âmbito das dessemelhanças, voltemos à Yahweh e a Bíblia Hebraica. Embora cada uma das duas
narrativas da criação presentes no início do livro do Gênesis tenha sido composta em contextos
diferentes, que um trabalho exegético judicioso nos convida a descobrir, por meio da sua costura em um
corpus literário unificado – enlaçando ambas as narrativas em uma única e mesma narrativa contínua, tal
como o redator responsável por tal procedimento se propôs a fazer e como a recepção teológica do texto
nos meios religiosos a tomaram por muitos e muitos anos, até o início das perspectivas histórico-críticas
de estudo –, somos conduzidos a uma leitura que faz com que importantes conceitos de uma sejam
reforçados pela outra. Passemos a exemplificá-lo tomando um único caso em particular: a apologia à
uma única divindade. Aqui reside, pois, a singularidade da visão israelita antiga em face da qual se
estabeleceriam importantes contrastes com as crenças dos demais povos do Antigo Oriente Próximo,
todos politeístas.

A narrativa da criação de Gênesis 1,1-2,4a tem por objetivo, entre outros, o de polemizar contra o
politeísmo, ela se propõe a apresentar a divindade, Elohim, como o único deus, criador de e soberano

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sobre todas as coisas. Ainda que a narrativa de Gênesis 2,4b-3,24 tenha propósitos outros, lidas em
conjunto ou em sequência, da maneira como o compilador intentou que o fossem, faz com que essa
“apologia” a um único deus criador seja reforçada em 2,7 pela associação de Elohim com Yahweh, o
criador de adam.

Ainda nesse quesito, passemos à narrativa do Êxodo e das pragas sobre os egípcios, narrativa que
também faz uso do teônimo Yahweh para se referir ao deus dos hebreus, e analisemo-la. Lá, como na
narrativa “Elohista” da criação, há uma “apologia” a um único e soberano deus, que é reforçada pela
descrição das pragas, cada uma das quais dizendo respeito a um aspecto da realidade ou do cotidiano
cuja possibilidade/continuidade os egípcios atribuíam à ação dos deuses (sol, fertilidade agrícola, a
pecuária, as águas do Nilo etc.). Logo, intenta-se demonstrar a soberania absoluta de Yahweh, que é
quem domina sobre todos os elementos da natureza e sobre todos os aspectos da realidade, e para tal
demonstração foi necessária a humilhação dos supostos deuses a quem os egípcios atribuíam o domínio
sobre essas esferas. Cada praga é uma decretação triunfalista da vitória de Yahweh sobre outros deuses
egípcios!

Voltando para o texto de Gênesis 2,7, lido agora em retrospecto, a partir do seu contexto canônico –
tendo sempre em mente ser essa uma leitura possível a nós hoje, certamente não o sendo para as
comunidades em que primeiro surgiram as tradições que dariam origem aos textos individuais –, é
possível vermos agora, não apenas no Êxodo, como também aqui, reforçada essa ideia da superioridade
de Yahweh sobre outras “divindades” – sejam elas egípcias, ou dos outros povos do Antigo Oriente
Próximo que também conheciam cosmologias de criação humana a partir do barro –, ao colocá-lo como
ele sim responsável pela criação dos adam a partir da adamah e sendo ainda ele mesmo o responsável
por insuflar-lhes fôlego de vida – no Egito, por exemplo, enquanto Khnum coloca as crianças por ele
criada no ventre das mães, é outra deusa quem tem o papel de colocar nelas o fôlego de vida.

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