Você está na página 1de 14

MADEIRA

AÇUCARES, MELES E AGUARDENTE


NO QUOTIDIANO MADEIRENSE

ALBERTOVIEIRA
CEHA (MADEIRA-FUNCHAL)
avieira@avieira.iiet

A rota do aqúcar, na transmigração do Mediterrâneo para o Atliiitico,


tem na Madeira a principal escala. Foi na ilha que a planta se adaptou ao
novo ecossistema e deu mostras da elevada qualidade e rendibilidade. Foi aqiii
que se definiram os primeiros contornos desta realidade, que teve plena
afirmação nas Antilhas e Brasil. A cana-de-açúcar iniciou a diáspora atlântica
na Madeira e a definitiva conquista da mesa europeia. A maior dispoiiibili-
dade de agiícar a preços mais competitivos veio permitir a sua rápida afirmação
na dieta alimentar. Todavia, esta afirmação foi lenta, pois, tal como afirina
Fernand ~ r a u d e l '"não podemos dizer...qtke a mesa esíeja pmatcr em fodo o
mundo".
~2.r ' " ' Na Cristandade Ocidental o açúcar demorou em tornar-se o inaiijar de
todos. Por muito tempo foi uma raridade, sendo usado, quase sempre coino uin
medicamento. De Galeno a Hipócrates o açúcar tornou-se num eleineilto inqiies-
tionável na f m a c o p e i a ocidental, perdendo, e certo, no século dezasseis com o
aparecimento das especiarias orientais. A aplicação farmacológica do açiicar
está documentada nas receitas e despesas dos hospitais das misericordias e
esmolas da coroa em açucar aos liospitais -Todos os Santos ein Lisboa (1506),
Misericordias do Funchal (1 5 12) e Ponta Delgada (1 5 15) - e conventos - Gua-
dalupe (1485), Évora (1497), Beja (lSOO), Aveiro (1502), Coimbra (I510), Vila

' Civilização Material, Economia e Capitabalistno.Séculos XV-WJII-As Estruturas do Quoti-


lano, Lisboq 1992, p. 193.
do Conde (1519). A tradição da dádiva do açúcar e doces, peculiar no inuiido
árabe, conquistou a coroa portuguesa, que cumulou os próximos com parte
significativa do açiicar arrecadado na ilha2.
A tradição manteve-se de modo que Proudhon é levado a afirmar que
"o açúcar é toda a fmmbcia do pobre". Na verdade o açúcar era um suple-
mento capaz de suprir a insuficiência calórica. E se tivermos em conta que
o principal problema de sociedade do antigo regime é a desnutrição das
populagões, resultante da pobreza calbrica de dieta alimentar, teremos a
exglica@io para tais efeitos benéficos do consumo. A alimentação era pouco
variada e, quase só, assente no consumo de pão. A ingestão diária de
calorias era inferior a 2000, quando hoje os padrões médios oscilam entre
3000 a 4000. A isto ligam-se as crises de subsistência que agravam a
realidade.
A ideia do qúcar apenas como medicamento desapareceu rapidamente no
Ocidente. Assim em 15 72 Ortel ius(Theatrum Orbis ~errarurn)~testemunha que
o produto que havia sido considerado como remédio era então alimento. Por
outro lado Gregos e romanos j B o haviam considerado com um condimento ali-
mentar, definindo-o como sal du Índia,de acordo com a expressão de Dioscori-
das. A Madeira, a partir de finais do século XV, com elevada produção e
disponibilidade do produto para o mercado europeu, contribuiu para esta
mudanqa.
Certamente que a rnudanva mais significativa ocorreu na ilha. A curiosi-
dade, a disponibilidade do produto e subprodutos, contribuiram para que
se ensaiassem novas formas de uso, tornando a mesa cada vez mais doce.
Dai a rica tradiçSlo da doçaria conventual que depois se espalhou a todo o
reinod.
O ilhéu não se limitou apenas a produzir o aqúcar e a exportá-lo para os
principais mercados europeus, pois sentiu curiosidade ein provar esta raridade e
rapidamente se afirmou como um potencial consumidor. A prova disso está no

PEREIRA, Fernando Jasmins. O açúcar Madeirerise de 1500 a 1537. Produção e preços.


Lisboa: Instituto Superior de Ciencias sociais e Politica Ultramarina [1970?]. Sep. de &tudos
politícos e Sociais, Vol. Vli, no' 1, 2 e 3, 1969. B M G A , Paulo Wrumond, "O açucar da ilha da
Madeira e o mosteiro de Guadalupe", in Isle~hu,9, 1991,4349. SALGADO, Anxstacia. M. e Abilio
Jod, O AçGcur da Madeira e a l g u m iaetiluiç&s de arsisb?ncia na Península e Norte de Africa,
&ante a Iametaak do século XV, Lisbo* 1986.
' Cf. M Toussaint-Samat, Histmy of Food, Cambridge., 1993, pp.547-605
Sobre a doçaria conventual veja-se: Alguns doces do Real Mosteiro de Santa Clara de
Vila do Conde: 1 Centenário do Asilo de Nossa Senhora da Encarnação [S.[: s.n.], I967 (Vira
do Conde: Gráf. Santa Clara), Jom Pedro Fem, Arqmología dos Hcibitos Alimenfares, Lisboa.
1996:
facto de que o lavrador despendia parte do açúcar da safra, i~orneadainenteos
subprodutos, como meles, rescumas...

Pagamento em serviços
transformaçiio em conservas: Pfenin, casca, alfeola
consumo caseiro: doçaria, com bolos, arroz doce,
coscovões. bolinhos talhada, sonhos,malassadas
condimento culinaria v, , ,

"
.,, > >

'I.^"- .

-,c,
, A Madeira, como área produtora estava ~iaturalmenteerivolvida com o
consumo do aqúcar e derivadõs. Aqui era usado não apenas para o fabrico de
conservas e aflenin, mas também de uso corrente. Senão, como explicar a dife-
rença evidente entre os valores da produção e exportação. Para o periodo de
1490 a 1550 temos informação, ainda que prechria, da exportação de 105.896,5
arrobas, quando a produqão foi de 3.47 1.385 arrobas5.A inforinação, em sepa-
rado de alguns anos permite uma maior clarificação. Assim, tio periodo de 158 1
a 1586 sucede duas situações de nota. Enl alguns anos temos iima diferença
positiva e noutras negativa, fruto da cobertura da diferença pelo açíicar que se
importava anualmente do ~ r a sP.
i
il,l!:

A.1,- .
I ; .

Ainda que os dados da exportação estejam longe da realidade espelharn uma diferença.
- , g ~ fJoel
. Serrão, Temas Históricos Madeirenses, Funchal, 1 992, 95.
A mesma situação acontece quando analisamos os valores de acordo com a
qual idade do açúcar.

. I - 0

Na primeira metade do sé&o XVI a iiha continuava a manter a exportação


de açúcar e as indústrias derivadas, socorrendo-se para isso das irnpor&ões do
Brasil. Note-se que em 1620 temos a exportação de 23.560 arrobas de açúcar do
Brasil e de apenas 1992 arrabaç de açúcar lávtvrado na ilha.
Os chamados desperdícios da laboração do açúcar, como as escumas, res-
cumas, melaço, tinham os habituais consumidores dentro de portas. O acto de
chupar o suco da cana, que muitos de nós terão gravado na memória, é antigo.
Já Giulio ~ a n d i cerca
~, de 1530, refere ser usual entre os madeirenses que
comiam "emjejum canas maduras e pescas e dizem que rejwenescem para dar
sensualidade ao corpo, para reffescar o $gado, para saciar a sede, e para
branquear os dentes". A isto acresce uma receita das mulheres grávidas, con-
sistente em "sopas de pão [ornado deitado na Última cozedura do suco das
canas, cobrindo depois com gemas de ovo", considerado como meio para
"recuperar mfurçm perdidas", para além de confortar o estôinago e iritestiiios e
dar boa disposição ao ventre.
Sem dúvida que o maior consumo do ~qúcar,não foi nos fármacos mas siin
nos manjares nobres, na forma de doce - alfenim, alféola - conservas e casca de
fruta. Em ambos os casos a Madeira ficou célebre. A doçaria conventual fez as
delícias dos manjares reais, dos ingleses, franceses e flamengos. Ficou célebre a
embaixada de Simão Gonçalves da Cámara ao papa Leão X ein 1 5 0 8 ~ Vasco
. da
Gama levou-o para oferscer ao Samorirn de Mogarnbique. E pela inesma via da
rota da Índia deverá ter chegado ao Japão onde ainda hoje persiste, sob a
designação de "aveifo".Hans sloane9, em 1687, insiste no elogio aos doces e
compotas que comeu no convento de Santa Clara, rematando que nunca vira

' António Aragão, A Madeira Vistapor Estrangeiros. 1455-1 700, Funchal, 198 1, p.86.
Stegagno-Picchio, Luciana, O Sacro Coltgio de Alfenim, in Actas do !I Col6qrrio
-
lnterwcional de História dn Madeira, Lisboa, 1 990; pp. 1 8 1 190.
' Antbnio Aragão, A Madeira Vistapor Estrangeiros. 1455-1700, Funchal, 198 1, 162.
"coisas tão bom". Emaiiuel Ribeiro, em "O doce nunca ama~.gou"(1928),
esclarece-nos sobre a riqueza da doçaria conventual.
O principio fundamental que regeu o movimento de circulação do açúcar
foi a necessidade de suprir as carências de alguns mercados europeus, em
substituição do oriental, cada vez mais de difícil acesso. Foi a coiljuntura
que impôs a nova cultura no espaço atlintico e ditou as regras do mercado.
O consumo interno de açúcar é uma exigência tardia, gerada por novos habitos
alimentares ou das contingências do mercado do produto. No último caso
assume importância o dispêndio de açúcar na industria de conservas e casca
'i.
i como resultado da solicitaçZ~odos veleiros que demandavam o Funchal. Acresce
ainda que a vulgarização do aplioar no quotidiano madeirense derivou da oon-
juntura que o mercado viveu em finais do século XV.O aparecimento de novos
mercados produtores, como a Madeira, fez baixar o preço, o que provocou uina
generalização do seu consumo.
A import5ncia do açúcar na economia madeirense repercutiu-se a vários
níveis no mercado, chegando até a assumir a situação de medida de troca e de
.pagamento dos mais diversos serviços, Para isso contribuiu, não só, a afirmação
no quotidiano, mas também,a falta crónica de moeda na ilha''.

CONSun/rO DO AÇUCAR

O fabrico do açúcar começava em Março mas só em Agosto havia disponí-


I : : para distribuir As conserveiras que fabricavam a casca e conserva. A partir
*qui eram necessários mais trinta dias de árdua tarefa até que o produto esti-
q w disponivel para a exportação. Da existência ou não de açúcar, da quali-
M e,dependia a disponibilidade para o fabrico dos derivados, que activavam o
m & c i o com as praps do Norte da Europa, donde nos proviamos de cereais e
panufa~turas".
I O açúcar e derivados dele que se produziam na Madeira tinham um con-
variado. Assim a maior e melhor qualidade era canalizada para a exporta-
#Q aos principais mercados estrangeiros. Do açúcar laborado há que distinguir
m e l e que pertence aos proprietários de canaviais e engenho e o que é da coroa,
&r arrecadação do almoxarifado do.! quartos ou da Alfãndega, resultante dos
diteitos que oneravam a produpão (quarEolquinto/oitavo) e saida na Alfândega
33,
$L
!.
'3.'. Albertn Vieira, O Comércio Jnter-Irnalar fios s&culosXV e XVI, Funchal, 1987, pp.54-59
10

Lqb " A correspondencia de Diogo Fernandes Branco (ANTT, Convedo de Santa Clara, livro
19) C muito clucidativa sobre s arnbieniia fabril e comercial que serve de fundo a estn
*idade. anfronte-se as cartas de 14 de Julho de 1649, 20 de Junho de 1550 publicadas em
'&hto Vieira, O Ptiblico e o Privado na História da Madeira Vol I. CorrespondSncia Particular
& M e ~ a d o Diogo
r Ferraaid~sBranco (I 649~1652),Funchal, CEHA, 1996.
(dizima). Enquanto a cobrança era feita directamente nas alfândegas do Fuilchal
e Santa Cruz, o primeiro poderia ser recolhido pela estrutura institucional criada
para o efeito - o almoxarifado dos quartos (1 485-1 522) - ou o cargo da anterior.
Ainda poderia suceder a arrecadação por contratadores, maioritariameate estran-
geiros, que oscilava entre as 18.507 e 3 1.876 arrobas entre 1497 e 150612.
O açúcar arrecadado pela coroa, tal como nos elucida F. J. ~ e r e i r a 'era
~,
gasto em despesas ordinárias, na carregaqão directa e vendas aos mercadores
elou sociedades comerciais. Na primeira despesa estavam incluídos, a redizima
dos capitães, os gastos pessoais do monarca, da Casa Real, as esmolas, para
além das despesas com os soldos dos funcionários, do transporte e embalagem
do açircar. A despesa variou entre as 1.070 e 2.1 14 arrobas, sendo a média aiiual
no periodo de 1501 a 1537 de 1622 arrobas. N o caso das esmolas é de realçar as
que se faziam as Misericórdias - Funchal (1 5 121, Ponta Delgada em S. Miguel
(15 15), Todos os Santos em Lisboa (1 506 -, Conventos - Santa Maria de Gua-
dalupe (14851, Jesus de Aveiro (1502) e Conceição de Évora. A par disso tam-
bém se regista a utilização temporária dos lucros arrecadados pela Coroa no
custeamento dos socorros As praças africanas ou no provimento das armadasI4.
A contrapartida estará na política de ofertas estabelecida por D. Manuel I,
que em muito contribuiu para o enriquecimento do patrimonio artistico da
~adeira'~.
As dádivas da coroa as instituições hospitalares e conventos mantiveram-se
mesmo em momentos de dificuldade do século XVII. Sabemos que a
Misericórdia do Funchal recebia em 1 64716 como esmola 12 arrobas de açúcar,
enquanto a de Santa Cruz recebeu em 168217 apenas 2 arrobas de açúcar. O
Mosteiro de Jesus em Aveiro, que recebia 10 arrobas de açúcar por ano, recla-
mava em 164818 pelas esmolas desde 1643, como isso não aconteceu nomeou
em 1652" um procurador para proceder h cobranqa. Sabemos ainda que
ern1686~'o Mosteiro de Belém em Castela tinha direito a 50 arrobas de açúcar
de esmolas, sendo procurador o Provedor da Fazenda.

I a Confronte-se F. Jasmins Pereira, O Açúcar Madeirense. de 1300 u 1537. Produçíio r?


Preços, Lisboa, 1969, 55-69.
I Ibidem, 69-93.
14
No periodo que decorre de 1508 a 15 14 foram gastas 1.000 arrobas com as despesas de
socorro a Safim. Confronte-se nome citado. O Comércio Inter-lnsr~larnos Sficulos XI,' e XL'I.
p. 23; Vitorino Magalhks Godinho, Ensaios,vol. 11, Lisboa, 1978, pp. 29-7 1,28 1-322.
l5 Ofereceu uma cruz processional para a Igreja da Sé (1528), uma pia haptismal a Ribeira
Brava, uma escultura em madeira e colunas em mkrnore para a matriz de Machico.
lbANTT, PJRFF, no. 980, fls. 136v"-1379,13 de Fevereiro de 1647; ibidem. no. 965".
fls. 340-340v",20 de Janeiro de 1662.
" ANTT, PJRFF, no.966, fls. 23 1-232v0, 3 de Margo de 1682.
ANTT, PJRFF, no.980, fls. 283-283v0, 1 de Fevereiro de 1648.
I9
ANTT, PJRFF, no. 980, fls. 469-472, 16 de Novembro de 1 652
ANTT, PJRFF, no.966, fls. 450-45 I P,7 de Janeiro.
No século imediato o grosso das exporta@es de açúcar na ilha tem origem
no Brasil: em 1620, do açúcar exportado, temos 23.560 arrobas do Brasil e
1.992 da Madeira, enquanto em 1650 surgem só 83 caixas do Brasil e 1 I I arro-
bas da Madeira. Para o período de 1650 a 1691 conseguimos identificar
53 navios provenientes da Baía, Rio de Janeiro, Pemambuco, Paraíba, Pará e
Maranhão, que conduziram ao Funchal mais de dez mil caixas de açúcar.
O açúcar do Brasil assumiu um lugar importante na economia madeirense, não
apenas por apoiar as indíistrias de conserva e casca, mas, fundamentalmente
pelo activo movimento de reexportação.

CONSERVAS E DOÇARLA

Parte significativa do aqúcar produzidb na ilha e, mais tarde importado do


Brasil, era usado no fabrico de conservas e de doçaria. São vários os testamen-
tos denunciadores da mestria dos madeirenses no fabrico destes produtos. Em
meados do século quinze ~adamosto~' refere a feitura de "muitoscdoces brancos
perfeith~ims",enquanto em 1567 Pompeo ~ r d i t i *dii~ Conta da "conserva de
açúcar" que se fazia no Fwchal "de óptima qualidade e muita abund&ciar'. E
esta tradieo perpetuou-se na ilha para além do fulgor da produçito aqucareira
Emal, pois segundo Hans ~ l o a n eem ~ ~1687 o madeirense produzia "açaicar
idispensável aos gastos caseiros e ao fabrico de doces, indo ainda comp~íí-10
~ ~ a indústria da conserva de
refere
UQ Brasil". Dois anos depois John ~ v i n g t o n
citrinos que se exportava para Frmqa. Foram as compotas que mais despertaram
& atetqgo, pois nunca havia visto "coisas bfio Boas". A cidra existia em abun-
&meia na Ponta de Sol, Ribeira Brava, Machico e Câmara de Lobos (Ribeira

I- A indústria de derivados de qúcar era muito instável, dependendo das


ferta de açúcar brasileiro e da procura do produto acabado
10s mercadores europeus. A correspondência de Diogo Fernandes Branco e
. Bolton ksternunham de forma evidente a realidade. Diz o Ultimo em 7 de
sto de I 697: "Pensou-sef u e r uma grande quantidade de conserva de citri-
mas muitos fabricmtes desistiram por nao saberem se os Barcos os viriam

As indústrias da casquinha, conservas de fruta e confeitas mantiveram-


durante muito tempo como uma actividade da economia familiar, não acom-

ta por Estrangeiros, Funchal, 198 1, p. 37.


panhando a queda da produção de açúcar madeirense, pois à falta dele alimen-
tou-se do importado do Brasil. No decurso do século XVII a casquinha
concorreu com o vinho nas exportações e em 1698, situava-se ein segundó lugar
a seguir ao vinho2! Entretanto a elevada valorização do vinho conduziu para
segundo plano e a quase extinqgo. Em 1779 o Governador refere que a manu-
factura da casquinha, a principal de todas, estava quase extinta2'. A crise, que
começara na década de setenta, motivou a atenção das autoridades que reco-
mendavam os Governadores o estado da situação no sentido de reavivar as
exportações. Neste contexto surgiu em 1782 uma proposta de Francisco Xavier
Verissimo e José Rodrigues Pereira, comerciantes do Funclial, pedindo o exclu-
sivo do fabrico da ~ a s ~ u i n k a * ~ .
Tal como se deduz de um documento de 1 4 6 9 o~ fabrico
~ de conservas era
indústria importante para a sobrevivência de muitas famílias, uma vez que
ocupava "molheres de boas pesoas e mzqyfos pobres que lavraram os açuquares
bayxus em famtm maneyrai de conservas e aífeni e confeitos de que am gran-
des proveytos que dam remedio a suas vidas e dam grande nome a terra nas
partes onde vam...". A actividade estava vedada ao estrangeiros e mestres de
açúcar, uma vez que apenas aos "vizinhos e aatwaes da ilha" era permitido
fazer conservas, alfenirn e confeito^^^. A fama alcanqada pela arte da confeitaria
está testemunhada na embaixada enviada por Simão Gonçalves da Câmara ao
Papa. Segundo Gaspar ~ n i t u o s o compunha-se
~' de "muitos mimos e brincos da
ilha de conservas, e o sapo palácio todo feito de arsuem, e os cardjais todos
feitos de avenina, domudos a pmtes, o que lhtir dava muita graça, e feitos de
esbatura de hum homem".
No fabrico das conservas e doces variados merecem atenção as freiras do
Convento de Santa Clara, da Encarnação e ~ e r c ê s ~ Aliás
'. em 1 6 ~ 7 "Hans
~
SIoane referia-se de forma elogiosa aos doces e compotas que comeu no Coil-
vento de Santa Clara, e ao referir que "nunca vi coisa füo boas". Segundo
Emanuel Ribeiro os conventos femininos foram os "sacrarios da doçaria ". 34

26 J Cabra1 do Nascimento. Documentos para a História dm Capitanicis da iWcideirn,


Lisboa, 1930.
27 AHU, Madeira e Porto Sa~i#o.
no.5 1 8.
Ibidem, n0.615-616
20
AHM, vol. XV (19721, n I 18, pp. 47-49.
, XVI, 1973, pp.198-199.24 1.
~ b i d e mvol.
31
Ob. cit., pp. 248-249. Confronte-se Luciana Stagagno Picchio, "O Sacro Colégio de
Alfenim. Considerações sobre a civilização do Açhcar na ilha da Madeira e noutras ilhas", in
Actas do TI Colóquio Internacional de História dn Madeira, Funchal, 1990, pp. 181- 1 90.
32
Emanuel Ribeiro, O Doce Nunca Amargou .... 1928, pp. 17, 34,59.
33 António Aragão, Ibidem, p. 1 58.
34 0 Doce nunca amargou... doçaria Portuguesa. História Decornç fio. Receit uório.
Coimbra, 1928, p. 34, 59.
Em terra onde os canaviais adquiriram desusada importância na economia
igrícola era natural a dominhcia da doçaria na culinária regional. Na memória
ie todos persistem as receitas conventuais, pois que as demais se perderam. Nos
conventos de Santa Clara, Mercês e da Encarnação a doçaria é uma arte que
ocupa de forma dedicada as freiras35.Os doces faziam-se em momentos festivos
para consumo interno ou para retribuir os benfeitores. Das suas mãos sairam os
bolos de mel, talhadas, batatada, coscorões, arroz-doce e queijadas. Cada doce
tinha a sua época: a batatada pelo Natal, os coscorões no Entrudo, as talhadas na
Páscoa e no dia de Nossa Senhora da Encarnqão.
De entre todos o bolo de mel persiste e afirma-se como o rei da doçaria
madeirense. Em muitas das receitas junta-se quase sempre uma porção de vinho
Madeira. Um das receitas mais conhecidas é a das freiras do Convento da
~ n c a r n a ~ ãEo ~tarnbkm
~. com vinho Madeira que o mesmo deve ser servido.
Aliás, o Vinho Madeira é urna das melhores iguarias para acompanhar a doçaria
regional ou doutras paragens.
Um breve relance pelos livros de receita e despesa do Convento da Encar-
naFa3', das ~ e r c ê s ~ 'Misericórdia
, do ~ u n c h a l ~e ~Recolhimento
, do Bom
~esus~',constata-se as assíduas despesas com a compra de qúcar da ilha ou do
Brasil para o consumo interno. A Misericórdia do Funchal para além das esmo-
las que recebia em açúcar ou marmelada consumia açucar que comprava. Do
primeiro tanto se poderia dar aos doentes ou vender para fora. Em 1636 gasta-
ram-se 6. I80 réis na compra de 3 arrobas de açúcar para os doces da procissão
das ~ n d o e n ~ a sAdemais
~'. são conhecidas outras despesas na compra de abóho-
'
ra, ginjas, peras, marmelos para o fabrico de doce. Em 4 de Junho de 1700 a
: Misericórdia do Funchal gastou 101.500 réis na compra de 34 arrobas para o
i fabrica de doces a serem consurnidos~aolongo do ano42.Para o período de 1694
a 2700 a mesma instituição gastou 634.400 réis na compra de 227 arrobas de
qlicar a 14 canadas de mel.

35 Cabral do Nascimento, As F~eirase os Doces do Convento da Incarnaqh, in Arquivo


Historico $a Madeira, vol. V, FunchaI, 1937; Eduarda Maria de Sousa Gomes, O Convento da
I Ewarnação do Funchal* Funchal, 1995, pp.138-142; Cowas & Lousas das Cozinhas Madei-

retms, Funchai, 1988.


36 Alvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da Encarnaçiío, in Das Artes e da
Natdria dn Madeira, 1948-1949, p.5 1.
" ARM, Convento da Encarnação, ní 14 a 16. Cf. Eduarda Sousa, O Catívenid da
r k a r m ~ ã da
o Furickal. Subsídios para a sua Hisfdria 1660-I 777, Funchal, CEHA, 1995.
''
Qtilia Rodrigues Fontoura, OSC, As Clarisras na Madeira. Uma preseqa de 500 Anos,
$t Eimchal, C E W 2000,pp.345-347.
k " ARM, Miseriecirdia do FunchlaI, no 342 a 345,492-509.
1
O' ARM,Recolhimento Bom Jesus, no.1 8,20
411bid~m,n0498,fl.131vl.
42lbidem. no 347.
Maior e mais assíduo foram o consumo de açucar no Convento da Ei-icar-
nação no período de 1671 a 1 6 9 3 ~Ai, ~ . de acordo com o registo inei~saldos
gastos com as compras de produtos para a dispensa do convento pode-se ficar
com uma ideia da sazonalidade do consumo da doçaria. No caso deste convento
destacam-se a Quinta-Feira de Endoenças e o Natal. Nesta última festividade
distribuis-se a cada freira, para a Consoacia, 8 libras de açúcar. Além disso parte
significativa do açúcar de várias qualidades, era usado para o "tempero do
corne~"e fazer conserva. No total despenderam-se 190 arrobas de açúcar por
estes vinte e dois anos para um total aproximado de seis dezenas de recolhidas.
Ficou célebre o chamado bolo de mel das freiras da Encarnação que se manteve
até a actualidade com a mais importante herança da época a y ~ a r e i r a . ~ ~
A presença do açúcar na culinária é uma constante, quer com as sobreine-
sas, quer como "condimento de comer", No século XIX a doçaria teve
divulgação através das pastelarias. Um das mais famosas foi a Pastelaria Felis-
berta criada em 1837 na Rua da Carreira. Ficou também célebre a doçaria da
panificação Blandy na ma do Hospital Velho. Uns anos mais tarde, Isabella de
F r a n ç ~continuava
~ deslumbrada com as sobremesas doces da cozinha: "Con-
tudo a especialidude da Madeira está na secção dos doces. E imensa a sua
variedade;fazem-nos de formas imaginosas e dão-lhes nomes extrao~dinários.
Chama-se ovos moles m a género opulenro de leite-crenae. Ovus reais, quando
eles ficam,com a aleaia, em fios,e servem para decorar outros doces. Vi um
leão bri fânicofeito de pão-de-16, tclo grande como um gato, coroado de prata e
a s corpo; a juba e a exírenaidade da cauda eram de ovos
com muitas e ~ ~ e lpelo
reais. No outro lado da mesa eslava a águia americana confeiçoadcr com os
mesmos ingredientes. A m bolinhas precioso dão o nome de beijos de @ d e .
Certa massa em forma de sincedos denamina-se Ecigirnas. Mus de todos os
nomes o mais estranho é o toucinho-do-céu aplicado em geral a umas fatias,
que também podem tomar o aspecto de perna de porco ou até cordeiro. " Nos
anos vinte a cidade estava servida de onze confeitarias. Hoje, o único testemu-
nho que resta dessa importante indústria do doce madeirense é o bolo de inel.
O alfenim manteve-o a tradição dos ex-votos das festas do Espírito Santo na ilha
Terceira, único local onde ainda persiste a tradição.
Na actualidade é a doçaria que mantem activa a cultura e os três engenhos
em funcionamento. No periodo do Carnaval e do Natal, popularizado como a
festa, o consumo de mel dispara, havendo anos em que a produgão não dá para

43 ARM, Comento da ficornação, no 14 a 16; confronte-se João Cabral do Nascimento,


"As freiras e os doces do Convento da Incarnação", ín Arquivo Histdrico da Madeira, Vol. V
( 1 937), pp. 68-75.
44
Alvaro Manso de Sousa, O Bolo de Mel das Freiras da Encarnação. In Das Arles e da
História da Madeira, Funchal, 1948-1949, p.5 1.
45
Jornal de urna visita a Madeira e a Portug~I(I853-/854j,
Funchal, 1970. p. 174
satisfazer as necessidades do consumo caseiro e das pequenas unidades
industriais.

Um dos factores de promoção da indústria ao nível das conservas foi a


importilncia assumida pelo Funchal como porto de escala de abastecimento para
a navegação atlântica. Muitas embarcações que aí aportavain tinham como
intuito se fornecerem de coilservas de citrinos, ilecessárias a dieta de bordo.
O consumidor preferencial das conservas e doçaria madeireilse era a Casa
Real portuguesa. Foi D. Manuel quem divulgou as qualidades na Europa. Assim
ficaram como o principal presente, dentro e fora do reino, sendo o exemplo
seguido por Vasco da Gama, que também ofertou o xeque de Moçainbique com
conservas da ilha4'. Os confeiteiros, que fabricavam as conservas, eram pagos
pela Fazenda Real. Sabemos que ein 1513 Diogo de Medii~arecebeu 8$000 réis

1
i
pelo fabrico de 40 arrobas e conserva para o rei. Já em 1521 Inês Mendes
recebeu 92$000 reis por 60 arrobas com o inerrno destino". NO período de 1 501
a 156 1 a Casa Real consumiu 1 1 29 arrobas e 58 barris de açúcar em conservas e
frutas secas48.
Os livros do quarto e quinto do açúcar informam-nos sobre o dispéndio que
déle se fazia no fabrico de conservas, frutas seca e marmelada49.Nisso gasta-
ram-se cerca de quatrocentas arrobas de açúcar de vários tipos, sendo a maioria
para consumo dos proprietários do referido agúcar.
A partir de meados do século XVII torna-se difícil reconstituir o movi-
mento comercial de derivados do açúcar. A documentação é escassa e a infor-
mação mais elucidativa encontra-se na correspondência comercial de três
mercadores: Diogo Fernandes Branco ( 1 649- 1652), W i Iliain Bolton (1 694-
- 1715) e Duarte Sodré Pereira (1 7 10- 17 12).
Diogo Fernandes Branco parece ter sido o principal interveniente do
comércio com os portos nórdicos, quase só baseado na exportação de casca e
conservas. Para o curto periodo que dura a correspondência é evidente a impor-
tância assumida no comércio5'. Assim em 1649, não obstante o açticar da produ-
ção local ser de inau qualidade, a falta de cidra e tardar a vinda dos ilavios do
Trasil, a procura manteve-se activa, gerando dificuldades aos forilecedores,

Confronte-se Sousa Viterbo, Arles e Jndhfrias Portuguesas - A Indtistria Sacarim. 110


Coimbra, 1910, pp. 10-1 1.
47
Fernando Jasmins Pereira, Documentos sobre a Madeiro no siculo XVi existentes no
-.,_i Cronológico, Vol. I , Lisboa, 1990, pp. 120, I68
48
InformaçBes recolhidas nos documentos publicados por Fernando Jasmins Pereira,
Documeatos sobre a hfadeira no século XVI existentes no Corpo Cronolbgico, Vol. I, Lisboa,
t 990.
49 F. J. Pereira, Livros de Contas da Madeira, Vol. 11, Funchal, 1984, pp.79, 82. 10 1: vol. I1
:unchal, 1990).
50
ANTT, Convenào de Sunta Clam, livro no. 1 9
como Diogo Fernandes Branco, que tiveram que socorrer-se de todos os meios
para poder satisfazer a encomenda. A conjuntura conduzia inevitavelmente ao
aumento do preqo do produto. A situação continuou de modo que em Novembro
de 1651 carregaram na ilha 9 navios franceses. No ano imediato inverteu-se a
situação. A casca abundou e em Outubro ainda tardavam em chegar os navios
para a levar ao destino, o que era motivo para preocupação.

A correspondência de William ~ o l t o n ~refere-nos,


l também, que a con-
serva de citnnos estava em grande prosperidade na década de noventa do skculo
XVII, sendo usada para o abastecimento das embarcaçries que demandavam a
ilha, ou exportadas para Lisboa, Holanda e França. , .

51
Antbnio Aragão, ob. cit., pp. 3 18-367.
Duarte Sodré ~ereira'~ surge, nos anos imediatos, como o continuador do
comércio. A actividade mercailtil, neste Iapso de tempo, esteve dedicada, tam-
bém ao comércio do açúcar do Brasil e a exportação de casca para o norte da
Europa, nomeadamente, Amesterdão. A partir da correspondèiicia comercial
sabe-se que exportou a seguinte quantidade de casca:

'
titico bolo de mel, o certo é que
.
perdura
.
no imaginário
- das gentes
- um receituhrio
m i a d o que continua a fazer as delícias da casa e convidados em momentos
festivos, como o Natal, as visitas do Espírito Santo e a s romarias dos oragos da
i freguesia. O bolo de mel .. é apenas uma das expressões mais perfeitas do requinte

52 Maria Jlilia de Oliveira e Silva, Fidalgos-mercadores no skculo XVIII. Dnarte Sodré


$%eira, Lisboa 199 1 .
Cf. Lucillia Boullosa Valle, O Paladar Madeireme, Funchal, SD.,Zita Cardoso,
da Cozida Madeira e Porto Santo, Funchal, 1994. Margarida R. Camacho, Cozinha
me, Funchal, 1992, Pe. Manuel Juvenal Pita Ferreirq O Natal no Madeira Estudo
o, Funchal, 1956. André Simon e Elimbeth Craig, Madeira, Wine, Cakes and Sauce,
, 1933. Emanuel Ribeiro, O Doce Nunca Amargox.., Lisboa, 1928; SIMON, Andrt L..
Elizabeeh, Madeira WíPie, CaiEes and Sanw, Londres, 1933, Ana Maria Ribeiro,
co dm Bolos de Mel na Calheta, Revista Xarabanda, 5(1994), 23-26.

Você também pode gostar