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CURSO BÁSICO III

CAPITALISMO: DAS ORIGENS AO


NEOLIBERALISMO

TEXTOS:

I - A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO CAPITALISMO, p.02

II - CAPITALISMO MONOPOLISTA E IMPERIALISMO, p.26

III – BALANÇO NEOLIBERAL, p.48

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A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO CAPITALISMO
(TEXTO I)

I - AS ORIGENS AGRÁRIAS DO CAPITALISMO

O processo que deu origem ao capitalismo está ligado às transformações


econômicas e sociais que foram responsáveis, num determinando momento e lugar na
história, pela formação de duas espécies bem distintas de possuidores de mercadorias, que
passaram a se confrontar e relacionar: de um lado, o proprietário de dinheiro, de meios de
produção e de meios de subsistência, empenhado em aumentar a soma de valores que
possui, comprando a força de trabalho alheia; de outro, os trabalhadores livres, vendedores
de sua própria força de trabalho. A chave, portanto, para o surgimento do sistema
capitalista é o aparecimento de uma classe de trabalhadores livres. Livres em dois sentidos:
em primeiro lugar, pelo fato de não mais serem parte integrante dos meios de produção,
deixando de estar submetidos à exploração na condição de escravos ou servos; em segundo
lugar, livres porque não são donos dos meios de subsistência e de produção (como a terra e
os instrumentos de trabalho). O sistema capitalista pressupõe a dissociação entre os
trabalhadores e a propriedade dos meios pelos quais realizam o trabalho.
O processo que cria o sistema capitalista consiste, fundamentalmente, no processo
que retira do trabalhador a propriedade de seus meios de trabalho, transformando em
capital os meios sociais de subsistência e os de produção e convertendo os produtores
diretos em trabalhadores assalariados. A chamada acumulação primitiva é o processo
histórico que originou o capitalismo, ao dissociar o trabalhador dos meios de produção. É
considerada primitiva porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção
capitalista. A estrutura econômica da sociedade capitalista nasceu dos escombros da
sociedade feudal. A decomposição desta liberou elementos para a formação daquela. O
produtor direto, o trabalhador, só pôde dispor de sua pessoa depois que deixou de estar

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vinculado à gleba e de ser escravo ou servo de outra pessoa. Para vender livremente sua
força de trabalho, levando sua mercadoria a qualquer mercado, tinha ainda de livrar-se do
domínio das corporações, dos rígidos regulamentos a que estavam subordinados, no
interior destas, os aprendizes e oficiais e das prescrições com que entravavam o trabalho.
Um dos aspectos centrais do movimento histórico que transformou os produtores em
assalariados é a libertação frente à servidão e à coerção corporativa. Mas os que se
emanciparam só se tornaram vendedores de si mesmos depois que lhes roubaram todos os
seus meios de produção e os privaram de todas as garantias e direitos baseados na tradição
que as velhas instituições feudais asseguravam à sua existência. A história da expropriação
sofrida pelos trabalhadores foi inscrita a sangue e fogo nos anais da humanidade.
O processo que produziu o assalariado e o capitalista tem suas raízes na nova
forma de promover a sujeição do trabalhador: o trabalho assalariado, a forma de
exploração capitalista que substituiu a servidão, o tipo dominante de exploração feudal.
Marcam época, na história da acumulação primitiva, todas as transformações que servem
de alavanca à classe capitalista em formação, sobretudo aqueles deslocamentos de grandes
massas humanas, súbita e violentamente privadas de seus meios de subsistência e lançadas
no mercado de trabalho como levas de proletários destituídos de direitos. A expropriação
do produtor rural, do camponês, que ficou assim privado de suas terras e meios de trabalho
constitui a base de todo o processo. A história dessa expropriação assume diversas
configurações nos diferentes países e épocas, mas é na Inglaterra do século XVI que
encontramos a forma clássica do processo originário de expropriação da força de trabalho
humana no sentido capitalista.
A origem histórica do capitalismo, pois, está associada ao processo de
transformação da estrutura agrária ocorrido na Inglaterra no período compreendido entre os
séculos XV e XVIII, através da disseminação da política de cercamentos ("enclosures") das
terras, transformando em propriedades fechadas, de caráter particular, exclusivo e
excludente os campos abertos e as terras comuns, tradicionalmente utilizadas pelos
camponeses, colonos, posseiros e gente sem posses por causa da existência, desde a Idade

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Média, dos direitos consuetudinários de uso comum da terra. A crise geral do feudalismo
levou à formação, na Inglaterra, de um campesinato livre e obrigou a que parte
significativa da classe proprietária (“gentry”) passasse a utilizar a terra com vistas à
produção. O desenvolvimento do comércio, em especial aquele associado à manufatura de
lã, cujo preço valorizou-se significativamente no período, forçou os grandes proprietários e
arrendatários a investir nos melhoramentos (“improvement”) para competir. Os
imperativos do mercado estimulam o aumento da produtividade, e o processo cria uma
agricultura altamente produtiva. Há uma concentração incomum da terra nas mãos de
latifundiários. As forças competitivas foram fator fundamental na expropriação dos
produtores diretos: os cercamentos representaram a extinção, com ou sem a demarcação
física das terras, dos costumes em comum e dos direitos consuetudinários, visando a
criação de ovelhas e o cultivo de terras aráveis com maior produtividade. Surgia uma nova
concepção de propriedade privada: absoluta e exclusiva, porque promovia a exclusão de
indivíduos e comunidades da apropriação dos meios necessários à subsistência.
Os open fields (campos abertos) eram terras em mãos de vários proprietários: uns
possuindo o solo como proprietários livres, outros ocupando-o por uma espécie de
arrendamento perpétuo, na qualidade de arrendatários. Suas propriedades estavam
dispersas e misturadas, ou seja, subdivididas em um grande número de parcelas que se
intercalavam e emaranhavam. O único modo possível de exploração era a exploração de
acordo com regras comuns, que preservavam velhos métodos de cultivo, tolhiam a
iniciativa individual, pois o cultivo era decidido numa assembléia da paróquia ou
comunidade. Por seu turno, as common lands (terras comuns) eram uma propriedade
coletiva. Eram as terras baldias, incultas e, de uma certa forma, carentes de valor, de
pequena fertilidade, mas um recurso constante para as populações mais pobres, que,
hereditariamente, estabeleceram os direitos de pastagem, de colher lenha e cortar madeira
para construção e de pescar. Erguiam-se cabanas humildes nas quais se instalavam
elementos oriundos das camadas inferiores, não proprietários ou posseiros, sem nenhum
direito estabelecido, apenas por um consentimento por parte dos senhores feudais: eram

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pequenos colonos e posseiros, espécie de mão de obra errante, marginal, que os
proprietários mobilizavam nas épocas de colheita, constituindo-se num exército de reserva
de mão de obra.
Os cercamentos, portanto, representaram a reunião dos lotes de terra dispersos
numa área contínua que permitiria ao seu proprietário isolá-la das demais propriedades ou
posses, transformando a terra em mercadoria e criando condições para a especialização da
produção, a intensificação da divisão social do trabalho agrícola e a penetração mais
intensa do capital no campo. Preponderaram os cercamentos de grandes domínios, que
tiveram impacto enorme sobre a população camponesa. De fato, a indústria da lã exigia
constantes alargamentos dos campos criatórios, e esta atividade, como se sabe, restringe a
quantidade de mão de obra empregada. Certo pregador, no século XVI, já dizia: "Lá onde
viviam, há pouco tempo, inúmeros camponeses, agora não há mais do que um pastor e seu
cachorro".
O processo violento de expropriação do campesinato inglês recebeu terrível
impulso no século XVI, com a Reforma protestante e o imenso saque dos bens da Igreja
Católica que a acompanhou. À época da Reforma, a Igreja Católica era proprietária feudal
de grande parte do solo inglês. Os bens eclesiásticos foram amplamente doados a vorazes
nobres favoritos da Corte ou vendidos a baixo preço a especuladores, proprietários ou
burgueses, que expulsaram em massa os antigos moradores hereditários. O direito
legalmente explícito dos lavradores empobrecidos a uma parte dos dízimos da Igreja
também foi tacitamente confiscado. A disseminação da miséria compeliu a monarquia
inglesa a reconhecer oficialmente o pauperismo, introduzindo, através da Lei dos Pobres, o
imposto de assistência aos desvalidos. Ao mesmo tempo surgia toda uma legislação
sanguinária contra a vadiagem. Os que foram expulsos de suas terras com a dissolução das
vassalagens feudais e com a expropriação violenta e intermitente - proletários sem terras e
sem direitos - não podiam ser absorvidos pela manufatura nascente na mesma rapidez com
que se tornavam mão de obra livre e disponível. Bruscamente arrancados das suas
condições habituais de existência, não podiam enquadrar-se, da noite para o dia, em outra

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forma de trabalho, no contexto de um mercado em profunda transformação. Muitos se
transformaram, por força das circunstâncias, em mendigos, ladrões, vagabundos. E foram
punidos por isso. A legislação os tratava como pessoas que tivessem escolhido
voluntariamente o caminho do crime e da indigência, como se de sua vontade dependesse
prosseguirem trabalhando nas velhas condições que já não mais existiam.
O pequeno agricultor, conhecido na Inglaterra como yeoman, para o qual a terra
era o seu sustento, assistiu impotente a essa reforma fundiária. O yeoman por excelência
era o camponês livre (freeholder), que possuía o campo no qual vivia e que explorava
pessoalmente. Mas a denominação se estendia também ao arrendatário hereditário
(copyholder), cuja família cultivava o mesmo solo há várias gerações. Estes acabaram por
desaparecer como classe no século XVIII, pois perderam totalmente os direitos sobre suas
pequenas propriedades. Com eles também desapareceram os colonos e posseiros, além dos
pequenos fabricantes de tecidos independentes, todos sendo praticamente objetos do
mesmo destino: grandes massas de “vagabundos” e indigentes ou mão de obra assalariada
nos campos e nas cidades, trabalhando nas propriedades cercadas em função da produção
de lã e nas fábricas de tecidos.
O mercado passou a ser determinante e regulador principal da reprodução social,
penetrando inclusive na produção da necessidade mais básica da vida: o alimento. Capital e
trabalho passaram a ser profundamente dependentes do mercado para obter as condições
mais elementares de sua reprodução: os trabalhadores precisam dele para vender a força de
trabalho e adquirir os meios de sua subsistência; os capitalistas, para comprar a força de
trabalho e os meios de produção, bem como para realizar seus lucros. Nas sociedades
anteriores ao capitalismo, os produtores diretos permaneciam de posse dos meios de
produção, particularmente a terra, e o trabalho excedente era expropriado através da
coerção direta (meios extra-econômicos), exercida por grandes proprietários ou pelos
Estados, que empregavam sua força superior – o poder militar, jurídico e político. Somente
no capitalismo o modo de apropriação passa a se basear na desapropriação dos produtores
diretos legalmente livres, cujo trabalho excedente é expropriado por meios puramente

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econômicos: desprovidos de propriedade, os produtores diretos são obrigados a vender a
força de trabalho para sobreviver, e os capitalistas podem apropriar-se do trabalho
excedente dos trabalhadores sem necessariamente exercer uma coação direta.
A expropriação e a expulsão de uma parte da população rural liberou trabalhadores,
seus meios de subsistência e seus meios de trabalho em benefício do capital, criando as
condições para o desenvolvimento do mercado interno e da indústria capitalista. Antes, a
família camponesa produzia e elaborava os meios de subsistência e as matérias primas, em
grande parte, consumidos por ela mesma. Esses meios de produção e matérias primas
foram transformados em mercadorias, que passam a abastecer o mercado de bens primários
e de manufaturados. Fios, tecidos de linho, panos grosseiros de lã - materiais antes à
disposição da família camponesa e produzidos para seu próprio consumo - viravam artigos
de manufatura cujo mercado consumidor encontrava-se exatamente nos distritos rurais. À
expropriação dos camponeses que trabalhavam antes por conta própria e ao divórcio entre
eles e seus meios de produção corresponderam a ruína da indústria doméstica rural e o
processo de dissociação entre manufatura e agricultura.

II - AS TRANSFORMAÇÕES NA INDÚSTRIA

Preparou-se, desta forma, o caminho para as intensas transformações das forças


produtivas na Inglaterra, responsáveis pela eclosão da chamada Revolução Industrial, na
segunda metade do século XVIII, transformações estas bastante nítidas na substituição das
manufaturas pelas indústrias têxteis, do trabalho artesanal pelo da máquina, e pela ascensão
do modo capitalista de produção. A Revolução Industrial foi um fenômeno
predominantemente inglês, graças a uma série de fatores, responsáveis pela maior
acumulação primitiva de capital na fase de transição feudalismo/capitalismo, tais como: a
expropriação dos trabalhadores rurais de seus meios de subsistência, liberando grande
quantidade de mão-de-obra para a industrialização; a expansão dos mercados
consumidores, tanto no nível interno como externo (exploração colonial); a revolução
técnica que possibilitou a mecanização da produção de tecidos, a utilização do algodão no

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lugar da lã, a invenção da máquina a vapor e o desenvolvimento dos meios de transportes,
com o aparecimento das ferrovias. Além disso, na Inglaterra, a existência de um grande
número de minas de carvão e de rios navegáveis favoreceu sobremaneira tanto o
fornecimento de combustível para as fábricas quanto o escoamento das matérias primas e
das mercadorias produzidas.
Por Revolução Industrial convencionou-se, portanto, designar o processo de
transformações econômicas e sociais, caracterizadas pela aceleração do processo produtivo
e pela consolidação da produção capitalista. A introdução do sistema de fábricas, em
substituição ao artesanato e à manufatura, e a crescente mecanização das forças produtivas
iniciaram-se na Inglaterra em fins do século XVIII, espalhando-se, posteriormente, ao
longo dos séculos XIX e XX, para vários outros países. A principal transformação teria
sido a substituição da ferramenta, até então empunhada pela mão humana, por mecanismos
cada vez mais complexos, acionados pelo homem, agora transformado em verdadeiro
autômato. Assim, a ferramenta, acoplada a um implemento mecânico (motor), dá origem a
uma máquina-ferramenta, responsável pelo trabalho industrial e por um aumento da
produção, cujos limites não são mais definidos pela resistência física do operário, mas da
própria máquina. Impõe-se também uma revolução na produção de energia, surgindo, em
decorrência, a máquina a vapor, capaz de gerar toda a energia necessária consumindo
apenas água e carvão e com uma potência que poderia ser inteiramente controlada, uma
diferença substancial em relação às máquinas acionadas por energia hidráulica, sujeitas ao
fluxo da natureza, que impossibilitava o seu controle, e dependentes de instalação próxima
aos cursos d'água.

Principais avanços da maquinofatura

Em 1733, John Kay inventa a lançadeira volante, sistema mecânico que possibilitou
tecer peças mais largas e acelerou as operações da tecelagem, provocando a redução da
mão de obra, pois bastava um teleção para realizar o trabalho antes feito por dois ou mais
trabalhadores. Em 1767, James Hargreaves inventa a spinning jenny, que permitia a um só

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artesão fiar 80 fios de uma única vez. A jenny era pequena o suficiente para poder ser
instalada numa casa, e não havia necessidade de grande força física para operá-la. Em
1769, Richard Arkwright inventa a water frame, que utilizava a água como força motriz,
obrigando a que fosse instalada numa fábrica ou num moinho, próximos a cursos d’água. O
fio fabricado pela water frame, devido ao uso de cilindros para esticá-lo, era forte o
suficiente para produzir tecidos totalmente de algodão, ao mesmo tempo mais resistentes e
mais baratos. Esta máquina assegurou o triunfo do sistema fabril na indústria algodoeira,
deixando para trás os demais ramos têxteis que continuaram fiéis ao sistema doméstico.
Em 1779, Samuel Crompton inventa a mule, uma combinação da water frame com
a spinning jenny, produzindo fios finos e resistentes. Adaptava-se a toda sorte de tecidos,
principalmente as musselinas, até então importadas do Oriente. Depois de aperfeiçoada, foi
posta para funcionar por meio da força hidráulica, mais tarde, através da máquina a vapor.
Assim, acarretou a decadência do sistema doméstico e a ascensão do sistema de fábrica.
Com essa máquina, desenvolvida de acordo com as necessidades do mercado, a fiação
tornou-se definitivamente uma operação industrial, concentrada e cada vez mais
automatizada, deixando de ser dependente da habilidade manual do artesão. Em 1785,
Edmond Cartwright inventa o tear mecânico, com o objetivo de transferir, para o processo
da tecelagem, o progresso técnico já obtido com a fiação, pois grandes quantidades de fios
de algodão sobravam no mercado, sem haver mãos para tecê-los. Foram necessários muitos
aperfeiçoamentos até que a máquina de tecer estivesse em condições de funcionar de forma
eficaz e automática. Os industriais tiveram ainda de enfrentar a violenta resistência dos
tecelões, que se insurgiram contra as demissões e o controle do processo de trabalho, já
que a produção ficou dependente da máquina e de quem tinha o poder de dispor sobre ela.

O motor a vapor

As primeiras máquinas a vapor foram construídas na Inglaterra durante o século


XVIII . James Watt é reconhecido como seu mais importante inventor. As máquinas a
vapor bombeavam a água acumulada para fora das minas de carvão. Eram tão importantes

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quanto as máquinas que produziam tecidos, pois possibilitaram o uso do carvão mineral em
larga escala, tendo em vista que a utilização desenfreada do carvão vegetal estava levando
à escassez de florestas na Inglaterra. A extração da água das minas aumentou enormemente
sua produtividade: em 1800, os ingleses produziam 10 milhões de toneladas de carvão, ao
passo que a França, o competidor mais próximo, produzia menos que 1 milhão. A partir de
então, passou a existir uma fonte de energia mecânica, totalmente independente das forças
da natureza ou dos caprichos do clima, independente mesmo dos imperativos geográficos.
Ainda assim, a aplicação em larga escala do invento só se fez no século XIX, pois exigia
material de ferro que os industriais não fabricavam de forma satisfatória. O seu emprego
continuou dependente do aperfeiçoamento da indústria metalúrgica, que só veio a se
desenvolver efetivamente com o advento das estradas de ferro. Foram elas que
impulsionaram a produção do ferro.
Graças a essas máquinas, a produção de mercadorias aumentou muito. E os
lucros dos burgueses donos de fábricas cresceram na mesma proporção. As fábricas se
espalharam rapidamente pela Inglaterra e provocaram mudanças profundas no modo de
vida e na mentalidade de milhões de pessoas, numa velocidade espantosa. O mundo novo
do capitalismo , da cidade, da tecnologia e da mudança incessante triunfou.

As consequências sociais

A Revolução Industrial alterou profundamente as condições de vida do trabalhador


braçal, provocando inicialmente um intenso deslocamento da população rural para as
cidades, com enormes concentrações urbanas. A produção em larga escala e dividida em
etapas distanciaria cada vez mais o trabalhador do produto final, já que cada grupo de
trabalhadores passa a dominar apenas uma etapa da produção. Na esfera social, o principal
desdobramento da revolução foi o surgimento do proletariado urbano (a classe operária),
como classe social definida. Vivendo em condições deploráveis, tendo o cortiço como
moradia e submetido a salários irrisórios com longas jornadas de trabalho, o operariado
nascente era violentamente explorado, devido também à inexistência de leis que

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regulassem as relações de produção e que protegessem o trabalhador da sede de lucro dos
industriais.
O desenvolvimento das ferrovias absorveu grande parte da mão de obra masculina
adulta, provocando em escala crescente a utilização de mulheres e crianças como
trabalhadores nas fábricas têxteis e nas minas de ferro e carvão. A indústria algodoeira
têxtil, ao introduzir a escravidão infantil e de mulheres na Inglaterra, impulsionava ao
mesmo tempo a transformação definitiva da escravidão negra nos Estados Unidos em um
sistema de exploração mercantil. De fato, a escravidão dissimulada dos assalariados na
Europa convivia com e, em grande parte, ainda dependia da escravidão aberta, sem
máscaras e sem freios, adotada na América. Além disso, o agravamento dos problemas
socioeconômicos, como o desemprego e a fome, foram acompanhados de outros
problemas, como a prostituição e o alcoolismo.
As características gerais do novo processo de produção introduzido pela Revolução
Industrial podem ser apontadas da seguinte maneira:
- produção realizada em grandes unidades fabris, onde predomina a mais intensa divisão do
trabalho;
- separação entre capital e trabalho, pois o proprietário dos meios de produção (máquinas,
equipamentos, instalações, matérias-primas etc) não é o produtor direto. Este, agora completamente
expropriado dos meios próprios de subsistência, necessariamente tem que vender sua força de
trabalho em troca de um salário;
- produção realizada para um mercado desconhecido, cuja demanda cresce na proporção em que
ocorra um barateamento do custo unitário da própria mercadoria produzida (a produção passa a
comandar o mercado);
- aumento sem precedentes na produção de mercadorias;
- concentração da produção industrial em centros urbanos, uma vez que as novas fontes de energia,
necessárias ao funcionamento do maquinismo, libertaram o sistema de fábricas dos fatores naturais,
como o vento (energia eólica), queda de água (energia hidráulica), etc. Com o emprego da energia
fornecida pela máquina a vapor e, posteriormente, a energia elétrica ou a utilização dos derivados
do petróleo, as fábricas puderam concentrar-se;
- o surgimento de um novo tipo de trabalhador (o operário), que trabalha em conjunto no interior

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das fábricas, realizando uma produção onde predomina a mais intensa divisão do trabalho. O
sistema de fábricas, portanto, socializou a produção, muito embora tenha sido responsável pela
concentração da riqueza nas mãos dos capitalistas.

III - O PENSAMENTO LIBERAL

Para fazer com que o capitalismo se tornasse a nova ordem societária dominante,
era preciso ainda que a hegemonia burguesa se consolidasse através de uma nova ideologia
dominante. A visão de mundo burguesa e capitalista forjou-se como dominante ao longo de
séculos na Europa, desde a crise geral do feudalismo, que propiciou o aparecimento de
movimentos culturais e religiosos como o Renascimento e a Reforma, marcados por pontos
de vista filosóficos representativos dos interesses burgueses, até as revoluções burguesas
dos séculos XVII e XVIII, quando então as ideias liberais deram forma mais acabada às
aspirações da burguesia e contribuíram de maneira decisiva para a tomada do poder
político pelos proprietários e industriais capitalistas. O liberalismo, portanto, é o conjunto
de ideias que serviram para dar sustentação teórica e ideológica à ação da burguesia no
momento de sua ascensão social numa sociedade marcada ainda pelos ditames de uma
ordem jurídico-política feudal, dando forma a seus interesses na luta contra os privilégios
da nobreza e contra os princípios e práticas mercantilistas. Liberdade era a palavra-chave
em oposição aos monopólios de comércio, de produção e ao controle da sociedade
perpetrado pelo Antigo Regime e pela Igreja Católica, responsáveis pela restrição do
exercício de cidadania. Os séculos XVII e XVIII foram séculos de intensa transformação,
com a burguesia conquistando vitórias efetivas na luta pelo poder na Europa e na América,
destronando os representantes da velha ordem aristocrática, o que se deu de modo
categórico e exemplar com a Revolução Francesa. Foram séculos revolucionários e
definidores da nova ideologia dominante, representativa dos interesses da classe burguesa
emergente, através das contribuições teóricas de diferentes pensadores, entre filósofos,
economistas, juristas e políticos.
THOMAS HOBBES (1588-1679), pensador inglês do século XVII, autor de

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Leviatã (1651), foi um dos primeiros intelectuais que, inseridos no contexto de ascensão
política da burguesia e de conflitos religiosos irreconciliáveis, propôs que a única maneira
de salvar a autoridade real e garantir a paz social seria o seu desligamento por completo da
religião. Hobbes vira preparar-se e depois eclodir a guerra civil que culminou na execução
do rei Carlos I em 1649, na Inglaterra. Hobbes insurgiu-se contra as bases ideológicas do
ideário tradicional, fundamentados no pensamento clássico de Aristóteles e no
providencialismo cristão, segundo os quais a base da ação política ou, mais genericamente,
da ação humana, era até então a idéia de um bem natural ou sobrenatural. Refletindo no
contexto da Guerra Civil na Inglaterra, Hobbes concluiu que o conflito de opiniões sobre o
bem havia produzido a guerra de todos contra todos, havia produzido o mal absoluto, pois
cada indivíduo vivia tomado pelo medo da morte. Para ele, a ideia grega de uma natureza
boa, constituída por um conjunto de bens hierarquizados que a cidade faria os homens
compartilhar, estava completamente destruída. Este estado de barbárie (a “guerra de todos
contra todos”) seria a condição natural da humanidade e cada um, no estado de natureza,
era juiz exclusivo da conduta necessária à preservação de sua vida. Isto equivalia a dizer
que cada indivíduo possuía um direito sobre todas as coisas e até sobre o corpo dos outros
(segundo Pascal, “cada eu é inimigo e gostaria de ser o tirano de todos os demais”).
Somente renunciando a este direito é que cada um poderia, no tocante a si mesmo, estancar
a fonte da guerra. Assim, cada qual deveria obrigar-se, por contrato, com cada semelhante
a renunciar a esse direito ilimitado, transferindo-o para aquele ou aqueles a quem se
confiaria a soberania, a quem caberia promulgar as leis necessárias à paz civil e garantir,
mesmo que através do uso da força, a sua observância, cuja única garantia estava na
ameaça do castigo (Hobbes: “os contratos que a espada não garantia não passavam de
palavras ao vento”).
Desta forma, Hobbes deduziu a necessidade do absolutismo, para que os homens
saíssem do estado natural de guerra e vivessem em paz, sendo que o fundamento de sua
soberania absoluta era o direito do indivíduo. Na linguagem moral e política elaborada por
Hobbes e que é a linguagem inaugurada pelo liberalismo, o direito assumiu o lugar do

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bem. O poder, assim, deixava de ser legitimado na teoria do direito divino para sê-lo na
natureza humana, no direito do indivíduo, que abre mão de seu direito sobre todas as coisas
(estado de guerra) para repassá-lo ao soberano, fundando, assim, outra categoria inerente
ao pensamento liberal: a representação, a qual seria legítima se resultante de um contrato,
um pacto social, uma convenção fundada no consentimento expresso dos que passam a
obedecer o soberano sob novas regras jurídicas e políticas. Inauguram-se ao mesmo tempo,
na perspectiva de Hobbes, a sociedade civil, lugar da “igualdade” dos direitos, e o Estado,
o instrumento criado por essa sociedade para assegurar a ordem e a paz, ou seja, o
instrumento coercitivo necessário à imposição da ordem burguesa, que desejava anular os
conflitos de classe, destituindo a velha aristocracia do poder, ao mesmo tempo em que
promovia violenta repressão sobre as revoltas camponesas, garantindo assim a prevalência
dos interesses burgueses.
Outro importante pensador liberal e contratualista do século XVII, também inglês,
foi JOHN LOCKE (1632-1704). Podemos identificar em John Locke um dos principais
fundadores do ideário liberal clássico, por isso mesmo considerado o ideólogo maior da
Revolução Inglesa do século XVII. Com Locke o Estado de Direito burguês surge com a
missão central de proteger a propriedade privada, “direito natural dos homens”, a ser
preservado de todas as formas. Isto porque a base social do indivíduo encontrar-se-ia no
trabalho e na propriedade. Como Hobbes e também em oposição à doutrina aristotélica,
Locke enxergava a existência do indivíduo como anterior ao surgimento da sociedade e do
Estado. No estado de natureza, os homens viveriam em estado de perfeita liberdade e
igualdade, e a propriedade já configurava como um direito natural do indivíduo, pois a
terra teria sido dada por Deus em comum a todos os homens, os quais a transformavam em
propriedade ao trabalharem sobre ela. Logo, o trabalho era o fundamento originário da
propriedade. Segundo Locke, todo homem é proprietário de sua pessoa, salvo no caso do
contrato (portanto, pode existir a escravidão) e toda a propriedade seria fruto de um
trabalho prévio. Toda propriedade em uso é legítima (atributo demonstrável logicamente,
mas não historicamente), ou seja, toda a propriedade é legítima por ser fruto do trabalho e

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não por causa de um privilégio de nascimento, próprio da nobreza e do clero no
feudalismo. Locke desenvolve, assim, uma crítica ao ócio, atributo da nobreza feudal, cuja
fonte de prestígio e domínio era a ostentação do luxo e da riqueza. Ao mesmo tempo,
aprofunda a idéia inaugurada pelo protestantismo de Calvino, difusor de uma nova ética do
trabalho, a enxergar a atividade produtiva humana como orientadora de uma nova moral e
de um novo código de conduta entre os homens, responsáveis pela contenção do jogo e dos
prazeres mundanos, assim como pela propensão ao acúmulo de riqueza, expressão da
predestinação divina. Na perspectiva de Locke, portanto, a acumulação de riqueza e o lucro
eram também considerados frutos do trabalho humano, materializando a troca do
desperdício (a produção do excedente, extrapolando o necessário à sobrevivência) pelo
dinheiro. O homem seria naturalmente racional, buscando sempre maximizar os frutos do
trabalho, o que expressa uma visão tipicamente burguesa. A moeda promoveria a
naturalização deste processo econômico, justificando e legitimando até a existência da
propriedade improdutiva, a qual, se não fosse trabalhada, poderia ser comercializada,
transformada em mercadoria e em dinheiro.
Segundo Locke, o homem teria direito natural, então, à propriedade, que, sendo
fruto do trabalho, faria deste direito algo inalienável e sagrado, além de ser a condição
fundamental para a participação política na sociedade imaginada pelos liberais. A
necessidade de superar inconvenientes como a violação da propriedade teria levado os
homens a se unir e estabelecer entre si o contrato social, que realizaria a passagem do
estado de natureza para a sociedade política ou civil, cujos objetivos principais seriam a
preservação da propriedade e a proteção da comunidade. O projeto liberal fez do direito de
propriedade, e tendeu a fazer da economia em geral, a base da vida social e política: as
regras organizadoras da vida social teriam de nascer rigorosamente do direito do indivíduo
solitário e só poderiam encontrar seu fundamento na relação desse indivíduo com a
natureza. Simultaneamente, porém, a relação de trabalho entre indivíduo e natureza fez
surgir um mundo distinto do dos direitos do indivíduo: o mundo do valor, da produtividade
do trabalho, da utilidade. O direito de propriedade, assim, deixava de ser olhado como o

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direito natural fundamental do homem e passava a ser visto como o meio de preservar os
valores resultantes da produtividade do trabalho, o meio da produção e da troca dos
valores. O direito original de cada um estava, de fato, baseado numa atividade solitária e
silenciosa: o trabalho para o consumo, e o mundo da economia aparecia cada vez menos
como o florescimento da ação do indivíduo solitário que afirmava seu direito, para
destacar-se cada vez mais como o sistema da produção e da troca de valores, “o sistema da
economia política”. A noção determinante deste sistema já não seria o direito absoluto do
indivíduo, mas uma noção essencialmente relativa: o interesse ou a utilidade.

Para Locke, portanto, a terra existe para se tornar produtiva e lucrativa: a


propriedade privada, criada pelo trabalho do homem, suplanta a posse comum. “É o
trabalho, de fato, que instaura a diferença de valor em tudo quanto existe” (Segundo
Tratado sobre o Governo, II, 40). O valor, na verdade, é dado não pelo trabalho do homem
em si, mas pela produtividade da propriedade e sua aplicação ao lucro comercial. O uso do
termo produtor (empreendedor) é próprio dos defensores do capitalismo (nas sociedades
pré-capitalistas, as classes dominantes jamais se veriam como produtoras), pois indica que
a propriedade passou a ser usada ativamente e não para consumo extensivo, mas para
investimento (produtividade) com vistas à obtenção de lucros crescentes. Por isso mesmo,
Locke foi um dos pensadores pioneiros na defesa explícita da aplicação das práticas
voltadas à obtenção de maior produtividade e lucro (os chamados melhoramentos) na
estrutura agrária da Inglaterra de seu tempo, apresentando um cabedal de argumentos
filosóficos e científicos que justificassem a adoção dos cercamentos, fazendo inclusive
referências às glebas dos camponeses e às terras comunais como desertos improdutivos.
Nesta lógica, somente a produção voltada à comercialização de bens, com base na busca do
lucro, seria capaz de garantir o aumento da riqueza da comunidade e do “quinhão comum”
– argumento este usado na aprovação das leis dos cercamentos (século XVIII).
Locke desenvolveu ainda a justificativa da exploração colonial, apontando as
colônias americanas como um laboratório dos melhoramentos (uso intensivo da terra com

16
vistas ao lucro comercial), em contraposição ao “desperdício” dos índios. Ao mesmo
tempo, desferiu ferina crítica aos velhos aristocracias, que agiam como especuladores da
terra, ao deixá-la ociosa por encará-la apenas como símbolo de seu status e poder político,
e aos comerciantes, ao quais acusou de serem meros intermediários. Os dois grupos eram
vistos como parasitas da riqueza alheia, assim como o campesinato e as massas de
despossuídos que utilizavam a terra para a obtenção de meios necessários à sua
subsistência, trabalho este também considerado ocioso por Locke, pois incapaz de gerar
bens a serem disponibilizados, através do mercado, a toda a sociedade. O empreendimento
ideal seria aquele conduzido pelo grande proprietário, que introduziu benfeitorias em sua
propriedade e passou a produzir para o mercado.
Logo, o projeto liberal estabeleceu as novas condições da ordem dos proprietários.
Os não proprietários seriam marginalizados na nova ordem social, pois nada teriam a
defender, já que, se não possuíam propriedade é porque não teriam sido capazes de
trabalhar com métodos eficazes e produtivos, deixando de acumular riqueza. Locke tratava
de frisar que o mundo foi dado aos homens “racionais e industriosos” e não àqueles que
faziam objeção ao direito de propriedade, desdenhosamente descartados como “briguentos
e trapaceiros”. A cidadania, no Estado liberal burguês, é monopolizada pelos proprietários,
daí a instituição do voto censitário nas constituições elaboradas em função das chamadas
revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII (Revolução Gloriosa na Inglaterra,
Revolução Americana – Independência dos EUA e Revolução Francesa).
Locke, Thomas Hobbes e o suíço de língua francesa JEAN-JACQUES
ROUSSEAU (1712-1778) são considerados fundadores do jusnaturalismo ou teoria dos
direitos naturais. No “modelo jusnaturalista”, Estado e sociedade se confundem,
representando o passo definitivo na conquista da civilidade e da cidadania. O homem passa
a não existir mais fora do Estado, ao qual delega poderes no sentido da organização
política da sociedade, através do pacto ou contrato social. Em contraposição a este estágio,
que é o momento mesmo da civilização, o que existia antes era o estado de natureza, a
barbárie, no qual o homem, animal despolitizado, vivia em bando, sem vinculação orgânica

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alguma entre seus pares. No estado não político reinava o império das paixões, a
irracionalidade. Predomina, entre os principais teóricos jusnaturalistas, à frente Hobbes, a
idéia de que o estado de natureza é um estado de guerra. Daí que o estado civil aparece
como a salvação do homem. Para Rousseau, ao contrário de Hobbes, o homem é
naturalmente bom, mas vive no isolamento, estagnado, sem progredir. O contrato social
também surge como imprescindível para transformar o homem e torná-lo cidadão, agente
ativo em sociedade. É através do pacto ou contrato social que se transfere para outrem a
responsabilidade nas decisões da vida de todos, entrega-se a um outro poder, que passa a
ser soberano, posicionando-se acima dos indivíduos, os destinos dos homens. É o
consenso, a garantir a perpetuação do Estado, a dar legitimidade à ação das elites
governantes. A grande questão que se estabelece, permanentemente conflituosa é: como
conciliar liberdade individual, a grande bandeira dos teóricos burgueses, e obediência? A
lei vem dar forma, na visão dos jusnaturalistas, a um equilíbrio precário, tênue, entre
liberdade e poder, entre indivíduo e Estado. A lei é vista como a própria razão do Estado.
Mas a lei tanto pode estar a serviço do Estado Leviatã de Hobbes, absolutista, não liberal,
ou de um Estado representativo e constitucional, protetor das liberdades individuais, como
quer Locke. O problema é que, se no primeiro exemplo o autoritarismo está no cerne da
ação política por parte dos dominantes, no segundo caso as soluções autoritárias nunca
estão descartadas, pois o Estado existe para conformar uma nova realidade, a da
civilização, agindo constantemente contra os focos de “barbarismo” que ainda perdurem.
Além disto, o estatuto da cidadania, naquele momento histórico, ficará restrito a quem é
proprietário, excluindo de qualquer possibilidade de participação nas decisões, como o
voto, a maior parte da população.
Para o entendimento da perspectiva liberal, o pensamento do filósofo alemão
EMMANUEL KANT (1724-1804) é também elucidativo. O Estado, para ele, tem como
objetivo maior a liberdade, que consiste na faculdade de se fazer tudo o que quer sem
prejudicar os outros, e não a felicidade dos indivíduos. A liberdade, segundo leis
universais, ou seja, aplicadas a todo tipo de sociedade, independentemente de tempo ou

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lugar, seria o princípio básico de funcionamento do Estado. O sistema republicano seria a
melhor forma de governo, pois o poder seria exercido de maneira legal, em contraposição
ao despotismo, baseado essencialmente no arbítrio. Neste quadro, o poder Legislativo é o
mais importante, representando a vontade coletiva do povo. É preciso ressaltar que, no
modelo jusnaturalista, dentro do qual também podemos incluir Kant, a vontade coletiva é o
somatório de todas as vontades individuais, o todo é a soma dos indivíduos, pois trata-se de
uma visão de mundo fundamentalmente individualista. O Estado, portanto, deve fazer
coincidir seus fins com os múltiplos objetivos dos indivíduos, tornando-se um Estado-
protetor, a vigiar seus súditos para impedir a eclosão dos conflitos. A igualdade, dentro
deste ponto de vista, é formal, é a igualdade perante o Estado, perante a Lei. Não há
possibilidade de se estabelecer a igualdade entre indivíduos naturalmente desiguais. Sendo
assim, também a democratização plena seria impossível, já que o direito de cidadania não
podia ser estendido a todos. Apesar de, para Kant, tal direito não ficar restrito apenas a
quem detinha a propriedade, mas a quem já havia conquistado uma independência, pensada
em termos econômicos, isto é, a quem dependia somente de seus próprios impulsos, não
mais de comando alheio, aí ainda se verifica a exclusão da maioria da população, como os
empregados, servidores, mulheres, etc.

O Liberalismo Econômico

ADAM SMITH (1723-1790), nascido na Escócia, cujas principais obras foram


Teoria dos Sentimentos Morais (1759) e Riqueza das Nações (1776), é considerado o pai
da Economia Política, ou seja, da Economia como matéria científica. Sofreu influência dos
filósofos protestantes, com destaque para John Locke, do empirismo inglês e do
jusnaturalismo. Na perspectiva desenvolvida por Adam Smith, os fenômenos econômicos
são manifestações de uma ordem natural governada por leis objetivas através de um
sistema coordenado de relações causais. Elevou, assim, a Economia à condição de Ciência,
identificando-a com as ciências da natureza e rompendo com a metafísica. Essa ordem
natural requereria, para sua operação eficiente, a maior liberdade individual possível. Em

19
lugar do componente altruísta e ético das relações econômicas, Smith propunha a
justificativa moral da defesa do interesse individual, cuja busca proporcionaria benefícios
sociais. O interesse individual era visto por Smith como a motivação fundamental da
divisão social do trabalho e da acumulação de capital, causas últimas do crescimento do
bem-estar social coletivo. A aparente anarquia da busca individual do interesse egoísta
levaria a um universo ordenado, a uma ordem provocada não pela ação política deliberada,
mas, inconscientemente, pela ação de muitas pessoas. Mesmo que não houvesse
benevolência recíproca entre os homens, o vínculo social não se romperia, pois continuaria
a se manter por razões econômicas. No livro A Riqueza das Nações, Smith afirma:

Não é da benevolência do açougueiro, do merceeiro ou do padeiro que


esperamos nosso jantar, mas sim do cuidado que dispensam aos seus interesses.
Não nos dirigimos à humanidade, mas ao egoísmo deles; e jamais lhe falamos
das nossas necessidades, mas sempre das suas vantagens.

A ideologia econômica traduz, antes de tudo, o fato de que as relações entre os


homens são compreendidas como relações entre valores mercantis. Daí que a doutrina da
liberdade natural de Smith era dirigida contra as interferências da legislação e das práticas
exclusivistas dos estados absolutistas e do mercantilismo. Os pensadores liberais, a
começar pelos fisiocratas, passaram a entender que “cada nação é apenas uma província
do grande reino da natureza” (Mercier de la Rivière). Numerosos autores se inscreveriam
nessa perspectiva de substituição do político pelo econômico para fundar uma nova ordem
nacional e internacional. A ideologia econômica permite compreender num mesmo
movimento a paz civil (no interior da nação) e a paz entre as nações, problema contra o
qual se batia a filosofia política clássica. Adam Smith completa esse movimento ao
dissolver o conceito político de nação no conceito econômico de mercado.
É verdade, no entanto, que essa paz entre as nações, fundada sobre o comércio, não
exclui uma “guerra da indústria”, uma guerra de novo tipo: a concorrência. Ora, a
concorrência “concilia todos os interesses”, seria, para os liberais, um instrumento de
igualização tanto entre as classes sociais quanto entre as nações, organizando a justiça e a
paz com mais perfeição ao ser exercida sem entraves. Os mecanismos de mercado,

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substituindo os procedimentos dos compromissos recíprocos do contrato político e social,
permitiriam, com efeito, pensar a sociedade de forma natural, pois o mercado constituiria
uma lei reguladora da ordem social, sem a necessidade de um legislador. A lei do valor
regularia as relações de trocas entre as mercadorias, e as relações entre as pessoas também
seriam entendidas como relações entre mercadorias, sem nenhuma intervenção exterior.
Não é mais na política, mas sim na economia que se procuram os fundamentos da
sociedade, com base na idéia de Mandeville: “o cimento da sociedade civil reside no fato
de que cada um é obrigado a beber e a comer”. Ao conceber o homem no estado de
natureza como sendo já um homo oeconomicus, abole-se, num mesmo golpe, a distância
entre estado de natureza e sociedade civil.
Nos meados do século XVIII, o entusiasmo pela agricultura entre os fisiocratas
franceses tinha uma significação filosófica profunda: a terra simbolizava o enraizamento
da vida social no subsolo das necessidades, enquanto a filosofia política não oferecia mais
pontos de referência estáveis e seguros. O retorno à agricultura, à economia agrícola,
apenas desviava e utilizava em seu benefício certos sentimentos bucólicos também muito
em voga. Os fisiocratas, propondo racionalizar absolutamente a política, praticamente
tentavam aboli-la, pois queriam progressivamente deixar de lado o emprego dos conceitos
de política e de economia política, pensando na fusão da política com a economia e,
verdadeiramente, na superação da primeira pela segunda, razão pela qual Dupont de
Nemours cunhou o termo fisiocracia, que significa literalmente “governo da natureza das
coisas”. Os fisiocratas procuravam pensar o governo como uma máquina simples. Por isso
execravam a democracia, que assemelhavam ao tumulto das multidões. “Todo bom
governo consiste em haver o mínimo possível de assuntos públicos; e a democracia torna
tudo assunto público” (Mirabeau). Ou: “Em matéria de governo, toda complicação é
ameaçadora. Quanto mais molas tiver uma máquina, mais ela estará sujeita a fricções”
(Condorcet). Assim, a função principal do Estado seria vigiar para que a política não
despertasse, o que representava uma confissão do fato de que ela estava pronta a se
desencadear a qualquer instante. O pensamento fisiocrático formava-se, assim, num

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gigantesco movimento de repressão da realidade. Ou seja, os fisiocratas sonhavam, da
mesma forma que todos os liberais, com a extinção dos conflitos sociais. Vê-se a que ponto
a utopia liberal, violentando a realidade, era suscetível de levar a um projeto de
totalitarismo.
De forma diversa da dos fisiocratas, Adam Smith pensava a representação da
sociedade mais em termos de uma autoregulação baseada em leis econômicas, do que em
termos de uma ordem social garantida por um Estado repressor. A transparência do
mercado opunha-se à transparência do contrato social. Adam Smith nos revela, então, a
existência de uma sociedade de mercado, anterior à economia de mercado. O economista
inglês foi o primeiro a compreender economicamente a sociedade civil, ao entendê-la
como mercado, apesar de jamais ter empregado o termo sociedade civil em suas obras. Em
compensação, falava sem cessar da nação, na intenção de passar de um termo jurídico-
político para um termo propriamente econômico, tendo em vista que, para ele, a riqueza
constituía a nação, compreendida como espaço do livre comércio circunscrito pela
extensão da divisão do trabalho e movido pelo sistema socioeconômico das necessidades.
A nação e a sociedade civil seriam, portanto, duas realidades idênticas para Smith. Com
efeito, o vínculo econômico ligaria os homens como produtores de mercadorias para o
mercado, considerado como o verdadeiro cimento da sociedade. A distinção chave não
mais se colocava entre a sociedade civil e o estado de natureza, mas entre a sociedade e o
governo, entre a nação e o Estado.
O conceito de mercado foi ampliado: em vez de ser simplesmente um lugar
particular e localizado de trocas, era toda a sociedade a constituir o mercado, muito mais
um mecanismo de organização social do que um mecanismo de regulação econômica. O
mercado tornava-se um conceito político e sociológico e apenas como tal tinha uma
dimensão econômica, já que as relações entre os homens passavam a ser concebidas como
relações entre mercadorias, definida a nação como sistema das necessidades. Smith
pensava a economia como fundamento da sociedade e o mercado como operador da vida
social e, desta feita, era duplamente revolucionário, ao substituir a noção de contrato pela

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de mercado e ao compreender a sociedade economicamente e não mais politicamente. A
influência de Locke é visível na ideia de que a igualdade de direito, igualdade natural, era
enxergada como igualdade dos direitos de propriedade: o homem só é livre como
proprietário. Daí o combate de Smith ao monopólio, identificado com a continuação do
despotismo e dos privilégios, a fonte de todos os males da sociedade, representando, para a
sociedade econômica, o mesmo que o despotismo para a sociedade política.
Escrevendo numa fase bem inicial da Revolução Industrial, Adam Smith percebeu
a importância crucial da produção industrial, na qual a divisão do trabalho tornava possível
um crescimento sem precedentes da produção e da produtividade. A teoria econômica
apresentada em A Riqueza das Nações é essencialmente uma teoria do crescimento
econômico, pela qual a riqueza ou o bem estar das nações é identificado com seu produto
anual per capita, determinado pela produtividade do trabalho “útil” ou “produtivo” (aquele
que produz um excedente de valor sobre seu custo de reprodução) e pela relação entre o
número de trabalhadores empregados produtivamente e a população total. A dinâmica de
seu modelo de crescimento pode ser melhor entendida em termos de um processo de
“causalidade circular cumulativa”: o crescimento da produtividade do trabalho, que tem
origem em mudanças na divisão e especialização do processo de trabalho, ao proporcionar
o aumento do excedente sobre os salários, permite o crescimento do estoque de capital,
variável determinante do volume de emprego produtivo; a pressão da demanda por mão de
obra sobre o mercado de trabalho, causada pelo processo de acumulação de capital,
provoca um crescimento concomitante dos salários, assim como da população, em
consequência da melhora das condições de vida dos trabalhadores; o aumento paralelo do
emprego, salários e população amplia o tamanho dos mercados, que, para um dado estoque
de capital, é o determinante básico da extensão da divisão do trabalho, iniciando-se assim a
espiral de crescimento.
No quadro da sociedade de mercado, a divisão do trabalho traduzia, para Smith, a
interdependência crescente entre os homens, tornando-se, assim, um verdadeiro
transformador sociológico: por meio dela a troca produzia a socialização (“sem a ajuda e o

23
concurso de milhares de pessoas, o menor particular, num país civilizado, não poderia ser
vestido e provido”). Para além de uma economia de tempo e trabalho, o processo de
divisão do trabalho representaria a própria construção da sociedade até a sua finalidade
última: a autonomia realizada pela dependência generalizada. O mercado tornava-se,
assim, o avesso e o simétrico silencioso do contrato social. Na sociologia proposta por
Smith, a sociedade devia ser pensada como algo móvel, em que as classes sociais,
separadas no momento da produção, unem-se e são profundamente interdependentes no
momento do consumo, visto por ele como o único objetivo, o único termo de toda a
produção. Ao passo que os produtores representariam interesses particulares, os
consumidores encarnariam o interesse geral: em virtude de a riqueza ser o motor da
sociedade e o consumo, o objetivo da riqueza, a sociedade econômica (o mercado) seria o
lugar da realização do interesse geral. O consumidor é o cidadão da sociedade de mercado:
os direitos superiores dos consumidores são para Smith o que a vontade geral é para
Rousseau.
Por fim, como Adam Smith pensava o papel do Estado na sociedade de mercado?
O Estado liberal não é inativo, devendo, ao contrário, ser extremamente ativo para
construir o mercado. O soberano teria três deveres centrais a cumprir:
1) Defender a sociedade de todo ato de violência ou de invasão por parte de outras sociedades
independentes.
2) Proteger, tanto quanto possível, cada membro da sociedade contra a injustiça e a opressão de
qualquer outro membro da sociedade, por meio de uma administração exata da justiça.
3) Erigir e manter certas obras públicas e certas instituições de que o interesse privado não se
ocuparia jamais, na medida em que não permitem um lucro suficiente.
Smith reconhecia, cruelmente, que “o governo civil, tendo por objeto a segurança
das propriedades, é, na realidade, instituído para defender os ricos contra os pobres”,
situação que dizia deplorar, mas não encontrava meios para superá-la, teoricamente. Em
compensação, o principal da atividade governamental estaria no terceiro ponto: construção
de obras (grandes estradas, pontes, portos, etc.) que facilitassem o comércio, além da
educação dos jovens e da massa do povo, para lutar “contra o veneno do entusiasmo e da

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superstição”. O governo, assim, estabeleceria uma sociedade culturalmente homogênea e
um espaço econômico estruturado, duas condições necessárias para instaurar uma
sociedade de mercado, ou seja, uma sociedade capitalista. O Estado liberal, portanto, na
contramão do Estado parasitário da velha aristocracia feudal, deveria, antes de tudo,
construir e preservar o mercado, processo em que a sociedade civil a ser erigida se
confunde com a sociedade de mercado.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA:

BEAUD, Michel - História do Capitalismo: de 1500 aos nossos dias, 3ª edição, São Paulo, Ed. Brasiliense,
1991.

HUNT & SHERMAN – História do Pensamento Econômico, 15ª edição, Petrópolis, Vozes, 1997.

HOBSBAWM, Eric – A Era do Capital (1848-1875), 5ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1996.

________ – Da Revolução Industrial Inglesa ao Imperialismo, 4ª edição, Rio de Janeiro, Forense-


Universitária, 1986.

IGLÉSIAS, Francisco – A Revolução Industrial, 5ª edição, São Paulo, Brasiliense, Coleção Tudo é História,
1984.

LOCKE, John – Segundo Tratado sobre o Governo, São Paulo, Martin Claret, 2002.

MANENT, Pierre – História Intelectual do Liberalismo – 10 lições, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990.

MANTOUX, Paul - A Revolução Industrial no Século XVIII, São Paulo, Unesp/Hucitec,

MARX, Karl – Formações Econômicas Pré-Capitalistas, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975.

________ – “A chamada acumulação primitiva” em O Capital – Livro I, Volume 2: O Processo de Produção


do Capital, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998.

ROSANVALLON, Pierre – O Liberalismo Econômico: história da idéia de mercado, Bauru, EDUSC, 2002.

SMITH, Adam – A Riqueza das Nações, São Paulo, Martins Fontes, 2003.

WOOD, Ellen M. – A Origem do Capitalismo, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1999.

________ – Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico, São Paulo, Boitempo
Editorial, 2003.

25
CAPITALISMO MONOPOLISTA E IMPERIALISMO
(TEXTO II)

No fim do século XIX, o capitalismo vivenciou profundas transformações,


entrando no que Lênin designou de “fase superior”, o imperialismo. Os economistas
burgueses procuram, frequentemente, reduzir a noção de imperialismo à criação dos
impérios coloniais, porém, isso é apenas um dos seus traços. A fase superior do
capitalismo caracteriza-se por uma série de peculiaridades que, só tomadas em conjunto,
podem dar a compreensão da essência do imperialismo. A base econômica da sociedade
burguesa, na época do imperialismo, continua sendo: a propriedade capitalista sobre os
meios de produção e a exploração, pela classe dos capitalistas, da classe dos trabalhadores
assalariados. Entretanto, as formas desta propriedade e o modo de exploração do
trabalho, pelo capital, modificaram-se consideravelmente, influenciados pelo estupendo
desenvolvimento das forças produtivas, pelo progresso da ciência e da técnica. O
imperialismo representa uma fase qualitativamente nova da formação socioeconômica
capitalista.
Mas quais são as mudanças na ordem econômica e política do capitalismo que
permitem falar da sua entrada na fase imperialista? Lênin desenvolveu uma análise
profunda acerca do imperialismo, demonstrando em sua obra, O Imperialismo, fase
superior do capitalismo, que as mudanças operadas no sistema, ao longo da segunda
metade do século XIX, estão relacionadas à passagem do capitalismo concorrencial para o
capitalismo monopolista.

O CAPITALISMO MONOPOLISTA

O período compreendido entre meados da década de 1840 e 1873 (ano que


assinalou o início da primeira grande crise de superprodução na Europa) ficou conhecido
como a era de ouro do capitalismo de livre concorrência. Foram anos que se

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caracterizaram pela rápida expansão econômica em toda a Europa e pela consolidação da
ordem burguesa nas principais nações européias. Os modernos bens de capital, ou seja, as
máquinas, equipamentos, material de transporte e instalações de uma indústria, também
conhecidos como bens de produção, indispensáveis para levar adiante o processo de
industrialização, eram, em sua grande maioria, importados da Inglaterra, cujas
exportações cresceram, entre as décadas de 1840 e 1860, como nunca visto antes em sua
história. Na pauta das exportações, a participação dos bens de capital ingleses subiu de
11% para 22%, assim como produtos como carvão, ferro e aço experimentaram
crescimento considerável. Entre 1830 e 1850, a Inglaterra viveu a fase do boom
ferroviário, quando foram construídos cerca de dez mil quilômetros de estradas de ferro,
provocando aumento vertiginoso na produção e no consumo de ferro, aço e carvão.
Essa extraordinária expansão foi reflexo de dois processos paralelos: a
industrialização nos países mais adiantados economicamente e a abertura comercial das
áreas subdesenvolvidas, que transformaram o mundo nesses decênios vitorianos, fazendo
com que a futura Alemanha (unificada em 1871) e os Estados Unidos logo se tornassem
economias industriais comparáveis à Inglaterra, abrindo áreas como as pradarias norte-
americanas, os pampas sul-americanos e as estepes da Rússia para a agricultura,
quebrando com esquadras de guerra a objeção da China e do Japão ao comércio exterior.
Criavam-se, assim, as condições para a formação de economias dependentes do capital
monopolista, dedicadas centralmente à exportação de produtos minerais e agrícolas.
As consequências dessas mudanças não foram sentidas na Grã-Bretanha senão
após a crise da década de 1870, pois, até então, seus principais efeitos eram benéficos ao
maior (e, em muitas partes do mundo, único) exportador de produtos industriais e de
capital. A Inglaterra experimentou a revolução industrial na indústria pesada (por muitos
chamada de II Revolução Industrial), que, pela primeira vez, supriu a economia com ferro
em abundância e, mais importante ainda, com aço (até então produzido em quantidades
insignificantes, através de métodos antiquados). A ascensão do setor de bens de capital
proporcionou estímulo ao emprego de mão de obra qualificada no enorme incremento da

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indústria mecânica, construção de máquinas, navios, etc (em 1914, os metalúrgicos
constituíam a maior categoria isolada de trabalhadores na Inglaterra).
As novas condições da economia inglesa permitiram, então, o notável aumento
da exportação de capital britânico, representando uma parte do fluxo de lucros e
poupanças em busca de investimentos e, graças à transformação do mercado de capital na
era das estradas de ferro (as bolsas de valores de Manchester, Liverpool e Glasgow foram
todas elas produtos da “mania ferroviária” da década de 1840), o capital dispôs-se a
procurar inversões não somente nos tradicionais bens imóveis e nos títulos de governo,
mas também em ações industriais. Com as estradas de ferro, a Grã-Bretanha entrou num
período de plena industrialização. Sua economia já não se equilibrava mais precariamente
no estreito patamar dos setores pioneiros, principalmente os têxteis. Alicerçava-se
firmemente na produção de bens de capital, o que facilitava o advento da tecnologia e da
organização modernas para uma grande variedade de atividades. O seu predomínio
industrial, em meados do século XIX, evidenciava-se através das seguintes condições: o
país produzia 2/3 do carvão mundial, cerca de metade do ferro, 5/7 do suprimento do aço,
mais ou menos a metade do tecido de algodão produzido para o mercado e 40% dos
produtos metalúrgicos. Somente ao final do século, tanto os Estados Unidos como a
Alemanha ultrapassariam a Grã-Bretanha na produção da mercadoria crucial para a
industrialização: o aço. A partir de então, os ingleses passariam a integrar um grupo de
grandes potências industriais, mas deixariam de ter a liderança da industrialização.

Concentração e centralização de capital

Justamente quando o capitalismo de livre concorrência parecia atravessar a sua


fase de maior esplendor, as forças que levariam à concentração de capital, como previra
Marx, começaram a produzir os seus efeitos. Os aperfeiçoamentos tecnológicos foram de
tal monta que somente as fábricas de grande porte puderam tirar proveito dos novos e
mais eficientes métodos de produção. A concorrência tornou-se tão agressiva e destrutiva

28
que, em pouco tempo, as empresas menores foram eliminadas. Os concorrentes mais
poderosos, em vias de se destruírem uns aos outros, frequentemente optavam por se
associar, formando cartéis, trustes ou fundindo-se para assegurar a sua sobrevivência. A
sociedade anônima por ações ou corporação converteu-se num recurso eficaz que
possibilitava a uma única organização financeira assumir controle sobre vultosas
quantidades de capital. Desenvolveu-se, na Europa e nos Estados Unidos, um vasto e bem
organizado mercado de capitais, que centralizava, para as grandes corporações, as
pequenas poupanças em capital de milhares de indivíduos e de pequenos empresários.
Com a acumulação do capital e o desenvolvimento das forças produtivas,
estimulada pela concorrência intercapitalista, ampliou-se a massa de riqueza nas mãos do
capitalista e deu-se o processo de concentração de capital. Este processo, que, para Marx,
nada mais é do que a própria reprodução ampliada do capital, origina-se na constante
apropriação do trabalho não pago (mais valia) no processo de produção. O volumoso
investimento tecnológico realizado pelas empresas que possuíam melhores condições de
vencer a concorrência possibilitou à grande burguesia dois processos simultâneos no
desenvolvimento da acumulação de capitais. Primeiro, reduziu o preço de custo da
mercadoria e ampliou a produção, dando assim condições de que os produtos fossem
vendidos a preços mais baratos e em maior quantidade. Segundo, o aumento da
substituição do trabalho vivo por trabalho morto possibilitou um aumento significativo na
taxa da mais valia.
A cada novo ciclo de produção aumentava o capital acumulado nas mãos dos
proprietários dos meios de produção, levando a uma concentração cada vez maior do
capital. A concentração do capital é, pois, realizada com a permanente incorporação de
parte da mais valia extraída dos trabalhadores. Em função da aguerrida concorrência entre
os capitalistas, que obriga à adoção de melhorias tecnológicas e aumento da produtividade
do trabalho, os capitalistas que não se adaptam aos novos patamares de desenvolvimento
das forças produtivas, são derrotados ou absorvidos pelos capitais maiores, resultando
numa centralização de capitais e na constituição de grandes empresas monopolistas.

29
A concentração da produção é operada em empresas cada vez maiores,
provocada, portanto, pelo fato de a livre concorrência, da época do capitalismo industrial,
ter levado à eliminação das pequenas empresas pelas grandes. Além da concentração,
acontece também a centralização do capital, que promove a união voluntária ou forçada
de muitos capitais. É voluntária, quando se criam sociedades por ações. É forçada, quando
as empresas menores são absorvidas pelas grandes durante a luta da concorrência. A
concentração da produção e do capital e a centralização do capital conduzem aos
monopólios e oligopólios, gigantescas organizações capitalistas que passam a dominar, de
modo quase absoluto, um ou vários setores da economia. Os monopólios eram a
consequência lógica da concentração da produção e do capital. A concorrência entre os
grandes capitalistas tornara-se, particularmente, aguda e destruidora. Cada um procurava
conquistar os mercados e aniquilar os seus rivais. Se isto não fosse possível, tentavam
fazer acordos sobre o volume de produção, preços, etc. Era mais fácil chegar a um acordo
entre algumas dezenas de empresas gigantescas do que entre centenas e milhares de
pequenas empresas.
Em fins do século XIX, no mundo dominado pelas gigantescas corporações
que produziam em massa artigos destinados aos mercados nacionais ou mundiais, a
concorrência de preços teve consequências tão devastadoras que as próprias corporações
acabaram renunciando a ela. Configurou-se uma tendência inexorável à formação de um
poder monopolista exercido por algumas poucas corporações. Várias grandes empresas se
associaram voluntariamente, formando cartéis ou pools, por exemplo, preservando, ao
mesmo tempo, uma relativa autonomia de ação. Outras formas de associação utilizavam
uma empresa financeira – um truste ou uma companhia (holding) para controlar as ações
com direito a voto das corporações participantes. Havia ainda a alternativa da fusão ou
amálgama de várias empresas, formando uma única corporação unificada.
A Inglaterra, onde a filosofia liberal clássica do laissez-faire lançou raízes mais
sólidas, foi talvez o país menos atingido pela tendência à formação de corporações
monopolistas. Mesmo assim, os processos tecnológicos no campo siderúrgico forçaram a

30
constituição de grandes empresas produtoras de aço e de determinados produtos
siderúrgicos pesados, tais como chapas de navios ou de caldeiras. As ferrovias inglesas
também se associaram muito cedo, constituindo quatro grandes companhias. No setor
bancário, cinco grandes bancos comerciais, produtos de sucessivas incorporações,
dominavam a indústria às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Em 1896, as cinco
indústrias que disputavam o controle da fabricação de tecidos de algodão fundiram-se
numa única empresa monopolista (J. & P. Coast), que passou a dominar o mercado
mundial do produto, dentre outros exemplos de ramos industriais que passaram a ser
dominados ou fortemente influenciados por um pequeno número de grandes empresas.
Nos Estados Unidos, a Guerra Civil deu um grande impulso ao processo de
industrialização, ampliando os mercados para os produtos industriais e favorecendo a
aprovação de leis benéficas às corporações emergentes, as quais em breve dominariam a
indústria norte-americana. O processo de concentração de capital nos EUA resultou da
onda de combinações e fusões, em escala sem precedentes, ocorrida no último quarto do
século XIX, em consequência da concorrência excepcionalmente violenta que devastou e
arruinou grande número de pequenas empresas industriais. No setor ferroviário, nos
campos petrolíferos, nas minas de carvão, entre os produtores de aço e cobre, travaram-se
constantes guerras de tarifas e preços, por meio das quais os produtores procuravam
conquistar para si os mercados. Essa guerra implacável provocou a destruição ou a
absorção dos concorrentes mais fracos pelos mais poderosos, restando na arena somente
os gigantes, como a Standard Oil Company, a megaempresa petrolífera de John D.
Rockefeller, que em 1879 controlava entre 90% e 95% da produção nacional de petróleo
refinado. O alcance das fusões foi tão grande que, em 1904, elas controlavam mais de
dois quintos do capital industrial dos Estados Unidos e englobavam cerca de quatro
quintos das indústrias norte-americanas de importância. Na indústria metalúrgica
imperavam cinco monopólios, sendo os maiores o “Truste de Aço” e a Bethlehem Steel
Corporation; na indústria química, o consórcio Du Pont; na indústria de material elétrico,
a General Electric Company; na indústria de automóveis, a General Motors e a Ford

31
Motor.
Na Alemanha, os monopólios e diversas formas de associação industrial
difundiram-se mais rapidamente que nos outros países europeus, e os cartéis foram o
principal tipo de associação, chegando a monopolizar, no início do século XX, todos os
setores importantes da economia. A indústria química foi dominada pelos sucessores do
consórcio I. G. Farbenindustrie; na indústria de construções mecânicas, houve o domínio
dos consórcios Mannesmann e Klöckner; na produção de aço, dos trustes Flick, Thyssen e
outros. Na indústria de guerra, pontificou o consórcio metalúrgico Vickers; na indústria
química, o truste químico Imperial Chemical Industries e, no monopólio do petróleo, a
Royal Dutch-Shell. Os grandes monopólios detinham, igualmente, o predomínio nas
finanças e no comércio: nos Estados Unidos, alguns poderosos grupos financeiros
passaram a exercer imensa influência na economia do país, em grande parte decidindo sua
política, como os Morgan, Rockefeller, Du Pont, Mellon e outros.

As principais características do capitalismo monopolista

Uma característica central da economia mundial na fase monopolista do capital


foi o alargamento de sua base geográfica, tendo as relações capitalistas se expandido para
novas áreas do globo, na Europa, América do Norte e Japão, deixando para trás o tempo
do domínio absoluto da Inglaterra como uma potência capitalista e inaugurando a época
do imperialismo, marcada basicamente pela rivalidade entre os Estados. Neste período,
firmaram-se no cenário internacional do capitalismo, como novas grandes potências a
ameaçar e a efetivamente provocar danos ao poderio imperialista inglês, os Estados
Unidos, após a Guerra de Secessão, a Alemanha, findas as lutas pela unificação, e o
Japão, após a chamada Revolução Meiji, processos históricos estes responsáveis pela
conquista da hegemonia dos grandes grupos econômicos capitalistas em seus respectivos
Estados, levando tais países a adotarem internamente uma política econômica homogênea
em todo o território nacional, que garantia a expansão das relações capitalistas já na fase

32
monopolista da produção.
A grande transformação ocorreu na forma de organização da empresa
capitalista, em consequência do processo de concentração de capital, provocando o
retraimento do mercado de livre concorrência e dando origem a diferentes tipos de
concentração e integração de empresas, tais como os consórcios, cartéis, trustes e
holdings. Este processo de concentração fora resultado do funcionamento mesmo do
sistema capitalista, pois a concorrência desenfreada entre as empresas, associada às crises
sucessivas e à pressão por melhores salários e condições de trabalho exercida pelo
crescente movimento operário, levava à absorção ou eliminação das indústrias pelas suas
concorrentes mais fortes ou hábeis, acarretando no processo de monopolização e
oligopolização do capital. A concentração e a centralização do capital eram sinônimos de
uma acumulação capitalista operada com um número cada vez menor de detentores de
capital, resultando, ao mesmo tempo, na diminuição do número de empresas e no
aumento do tamanho médio das suas plantas.
Tal processo de concentração e de centralização de capitais ocorreu tanto nas
empresas industriais quanto nos bancos, provocando a substituição da grande quantidade
de pequenas casas bancárias por um pequeno número de grandes bancos, forçando, ainda,
que o capital industrial buscasse a associação com o capital bancário, pela necessidade de
créditos e visando a formação das sociedades anônimas por ações. Forjou-se, assim, o
capital financeiro, que passava a influir diretamente na vida das empresas, comprando e
vendendo ações, promovendo fusões e associações entre os grupos empresariais e
influenciando, junto aos Estados, nas diretrizes das políticas econômicas adotadas. A
fusão do capital bancário – antes tipicamente um capital usurário, voltado a conceder
empréstimos para financiamentos – com o capital produtivo, propicia grande
desenvolvimento do sistema de crédito, o que vem também a favorecer de forma
extraordinária a exportação do capital-dinheiro em larga escala.
O fato de os monopólios terem substituído a livre concorrência não significa
que a concorrência tenha sido eliminada. Nos países capitalistas, foi conservada uma

33
multidão de empresas médias, pequenas e uma massa de pequenos produtores de
mercadorias, como os camponeses e artesãos que não estavam em condições de se opor às
sociedades monopolistas e se viram obrigados a pagar um tributo singular aos
monopólios. A maioria dos agricultores passou a vender os seus produtos, no atacado, às
grandes companhias comerciais que, por sua vez, os vendem depois no varejo. Os
monopólios procuram impor, aos agricultores, os preços que eles estabelecem. Estas
companhias reduzem os preços no atacado e os elevam no varejo. A diferença entre esses
preços lhes proporciona lucros fabulosos, ao passo que, todos os anos, arruínam-se
milhares de agricultores.
Na época do capitalismo monopolista e do imperialismo, a massa fundamental
das mercadorias não se vende a preços formados, livremente, no mercado. Os monopólios
têm a possibilidade de estabelecer preços mais altos que lhes assegurem um super lucro, à
custa do empobrecimento do proletariado e de outras camadas trabalhadoras. Tendo
acumulado volumosos capitais, os monopólios procuram colocá-los em circulação. Não
satisfeitos com os rentáveis investimentos de capital na economia nacional, procuram,
incansavelmente, novos campos de atividade, exportando capitais, cada vez em
proporções maiores, investindo em empresas industriais e comerciais estrangeiras.
Até a Segunda Guerra Mundial, os capitais eram exportados,
preferencialmente, para as colônias e países pouco desenvolvidos, onde os investimentos
prometiam grandes lucros. Nestas regiões, em que o estágio da luta de classes encontrava-
se menos avançado do que nos grandes centros capitalistas, não existindo um forte e
organizado movimento de trabalhadores, o empresário podia gastar muito menos com os
salários dos operários, menos do que se pagava na Europa e nos Estados Unidos.
Posteriormente, além da exportação de capitais para os países subdesenvolvidos, essa
exportação aumentou de um país capitalista para outros.
Outra característica fundamental deste processo histórico foi a maior
participação dos Estados, hegemonizados por grupos empresariais, grandes proprietários
de terras e banqueiros, na vida econômica das nações capitalistas desenvolvidas,

34
abandonando-se, gradativamente, a tradicional política de laissez-faire predominante na
fase concorrencial do capitalismo, logo após a Revolução Industrial inglesa. Em sua nova
fase de desenvolvimento, o capitalismo exigia que os Estados adotassem medidas para
facilitar sua expansão, através de políticas protecionistas e de investimento na indústria
pesada e bélica, com vistas a favorecer a exportação de produtos e capitais, além de
garantir a presença dos grandes conglomerados em várias áreas do globo, em meio à
acirrada disputa imperialista que se estabeleceu entre as potências industriais.
István Mészáros declara, a este respeito, ser esta uma das mais importantes
contradições do sistema capitalista no momento em que se afirmava a tendência
globalizante do capital transnacional, ao mesmo tempo em que mantinha-se a atuação dos
Estados nacionais no comando da ordem estabelecida, o que se traduzia no colorário
“pense globalmente, aja localmente”:

... o Estado nacional continuou sendo o árbitro último da tomada de decisão


socioeconômica e política abrangente, bem como o garantidor real dos riscos
assumidos por todos os empreendimentos econômicos transnacionais.1

Mais uma característica, a ser enfatizada por sua importância para as mudanças
operadas na velocidade e no ordenamento da produção, foi a revolução tecnológica, que
ficou conhecida como Segunda Revolução Industrial, responsável por permitir, com a
utilização de novas técnicas e novas fontes de energia, o desenvolvimento da indústria
pesada e de bens de consumo duráveis. Tais mudanças vieram acompanhadas de uma
tentativa sistemática de se racionalizar a produção e, consequentemente, aumentar a
produtividade, para o que as empresas passavam a adotar métodos científicos na
organização do trabalho dentro da fábrica, como o taylorismo e o fordismo. Estes
métodos visavam, acima de tudo, o maior controle dos patrões sobre a mão de obra
operária, tendo se constituído em novas formas de dominação burguesa sobre o
operariado dentro da fábrica, ao interferir diretamente no tempo de trabalho e na forma de

1
MÉSZÁROS, István – O Século XXI: socialismo ou barbárie?, São Paulo, Boitempo Editorial, 2003, p. 33.

35
organização da produção. Buscava-se, assim, quebrar a resistência dos trabalhadores à
exploração do capital, minando a solidariedade entre eles, através da imposição de um
ritmo frenético de trabalho e da competitividade como norma entre os próprios operários.
As mudanças introduzidas por Taylor e Ford, simbolizadas, respectivamente, no
cronômetro e na esteira rolante, não foram meras inovações tecnológicas, mas verdadeiras
revoluções de ordem administrativa e gerencial, pois colocou “a ciência da administração
a serviço não do aumento da produção e da produtividade ..., mas sim do poder dos
capitalistas (o despotismo de fábrica)”2.
Todo este conjunto de novas situações, em que se destacam a forte
concentração de capitais, a crescente capacidade produtiva das empresas, devido às
inovações tecnológicas, o acirramento da luta de classes, com o fortalecimento do
movimento operário na segunda metade de século XIX, provocaram a necessidade
imperiosa de conquista de territórios que representassem novos mercados consumidores
dos produtos industrializados, ao mesmo tempo em que se caracterizavam como
fornecedores de matérias primas e mão de obra barata ou semiescrava. Para tanto, era
necessário um agressivo processo de colonização das regiões do planeta nas quais o
imperialismo pudesse extrair insumos baratos e onde a força de trabalho fosse
extremamente desvalorizada, em função das condições sociais e históricas locais.
Praticamente todas as regiões do planeta onde as relações capitalistas não
haviam penetrado profundamente passaram para o domínio das grandes potências - da
Polinésia à América, da África à Austrália. A África, o continente que mais sofreu a ação
predatória das nações capitalistas, em 1876 tinha 10,8% de suas terras colonizadas; em
1914, nada menos que 90% de seu território estava em mãos estrangeiras! Se verificarmos
as possessões individuais das duas principais nações colonizadoras, teremos o seguinte
quadro: a Inglaterra (com um território de 300 mil km² e uma população de 46,5 milhões
de habitantes), em 1914 possuía colônias que correspondiam a 33,8 milhões de km², nas
quais residiam 440 milhões de pessoas; a França (território de 500 mil km² e população
2
SECCO, Lincoln – “Gramsci: hegemonia e pós-fordismo” em COGGIOLA, Osvaldo (org.) – História e
Revolução, São Paulo, Xamã Editora, 1998, p. 55.

36
de 39,6 milhões de habitantes) controlava 11,1 milhões km² de colônias com um total de
95,1 milhões de indivíduos. O domínio dos monopólios passou a envolver todas as
regiões do planeta3.

As crises econômicas capitalistas

O processo das disputas imperialistas veio acompanhado de outro, igualmente


drástico, para as populações: o das sucessivas crises de superprodução, que passavam, a
contar da década de 1870, a fazer parte da realidade econômica dos países capitalistas
desenvolvidos.
O ano de 1873 inaugurou uma crise econômica batizada, pelos analistas, de
“Grande Depressão”, a qual se estenderia até 1895, abrindo, desta forma, a segunda idade
do capitalismo: a idade do imperialismo. Nas várias crises que, somadas, perfizeram a
“Grande Depressão”, com os craques das bolsas de Viena (1873) e Lyon (1882), o pânico
das estradas de ferro nos Estados Unidos (1884), a bancarrota da companhia encarregada
da construção do canal do Panamá, na França (1889), a crise do Banco Baring e a
depressão do setor têxtil na Inglaterra (1890), nova crise das estradas de ferro e falência
de bancos nos Estados Unidos (1893), etc., observava-se, no decorrer daqueles vinte anos,
uma tendência à baixa dos preços a acompanhar a redução das produções e o crescimento
do desemprego, acompanhado, por sua vez, por uma tendência à baixa dos salários reais
nos setores atingidos pela crise, acirrando a luta de classes em alguns destes países.
Percebia-se a crise como muito mais prolongada, ao contrário do que se podia sentir nas
crises anteriores à fase do capitalismo monopolista, as quais teriam se caracterizado por
serem explosivas e menos duradouras, causadas, principalmente, por más colheitas e
ausência de produtos no mercado, provocando fome, miséria e revoltas sociais de vulto, a
canalizar o descontentamento imediato das massas.
De fato, somente com a passagem para o capitalismo monopolista, a Europa
continental passaria a sentir a plena expansão das relações capitalistas no campo,
3
COSTA, Edmilson - A Globalização e o Capitalismo Contemporâneo, São Paulo, Expressão Popular, 2008,
pp. 85-87.

37
transformando a antiga estrutura da economia pré-capitalista, baseada no atendimento às
necessidades de consumo dos produtores em uma economia voltada, essencialmente, à
produção de mercadorias. A dependência do produtor em relação ao mercado, a anarquia
na produção e a separação do produtor do consumo (o produto deixa de ser propriedade
do produtor e, consequentemente, sua produção não tem mais como objetivo central o seu
consumo) são características da produção capitalista, ou seja, da produção cujo objetivo é
a realização e multiplicação do lucro. A possibilidade de crise no capitalismo nasce da
produção desordenada e do fato pelo qual a extensão do consumo, pressuposição
necessária da acumulação capitalista, entra em contradição com outra condição, a da
realização do lucro, já que a ampliação do consumo de massas exigiria aumento de
salários, o que provocaria redução da taxa de mais valia. Tal contradição insanável faz
com que o capital busque compensá-la através da expansão do campo externo da
produção, isto é, da ampliação constante do mercado.
A natureza das crises capitalistas foi exposta originalmente por Marx no Livro
III de O Capital, segundo o qual quanto mais se desenvolve o capitalismo, mais decresce
a taxa média de lucro do capital. Isto porque o processo de acumulação capitalista leva,
necessariamente, ao aumento da composição orgânica do capital, ou seja, a relação
existente entre o capital constante (o valor da quantidade de trabalho social utilizado na
produção dos meios de produção, matérias primas e ferramentas de trabalho, isto é, o
“trabalho morto” representado, basicamente, pelas máquinas e pelos insumos necessários
à produção) e o capital variável (valor invertido na reprodução da força de trabalho, o
“trabalho vivo” dos operários). O processo de acumulação resulta na tendência à
substituição do “trabalho vivo”, a única fonte de valor, por “trabalho morto”, que não
incorpora às mercadorias nova quantidade de valor, mas apenas transmite às mesmas a
quantidade de valor já incorporada nos meios de produção. Como a taxa de lucro depende
da taxa de mais valia, cujo valor se reduz com a redução do “trabalho vivo”, as taxas de
lucro, a longo prazo, tendem a decrescer.
O quadro descrito acima é decorrente da concorrência intercapitalista, a qual

38
obriga os capitalistas a buscar superar seus rivais através do investimento em meios de
produção tecnologicamente mais avançados, para reduzir os custos da produção, além de
tentar economizar ao máximo na parcela relativa ao capital variável, em função do
acirramento dos conflitos provocados pela luta de classes e pelo fortalecimento do
movimento operário. A queda da taxa de lucro, portanto, é resultado, em última instância,
da tendência à substituição do “trabalho vivo” por “trabalho morto”, fazendo reduzir a
fonte de mais valia, o que acaba por originar uma superacumulação de capital e de
mercadorias, ao mesmo tempo em que promove uma restrição na capacidade de consumo
da sociedade, por causa do desemprego que desencadeia. Temos, assim, a explicação
resumida das condições gerais que provocam as crises capitalistas, na ótica da teoria
marxista.
Com o desenvolvimento do capitalismo, cresce a interdependência
internacional dos processos econômicos nacionais, situação que se reflete no caráter das
crises, fazendo da crise capitalista um fenômeno mundial. Ao mesmo tempo, porém,
enquanto as firmas menores sofrem a falência e a bancarrota em massa, o processo de
concentração do capital faz aumentar a capacidade de resistência da grande empresa.
Enquanto a produção artesanal e voltada para consumo próprio é praticamente aniquilada
com o progresso do capitalismo, a grande empresa, cuja produção passa a atingir amplos
mercados e se diversifica, pode prosseguir durante a crise, mesmo tendo sido forçada a
reduzir parte da produção.
A resistência às crises é também aumentada pela forma de organização da
sociedade anônima, que, decorrente da crescente influência dos bancos junto às
indústrias, é responsável pela maior facilidade na captação de capitais e no acúmulo de
reservas na fase ascendente da economia, além de proporcionar um controle maior na
gerência do capital. Do quadro exposto não convém inferir que as empresas resultantes de
processos de concentração, fusão ou cartelização sejam capazes de debelar os efeitos da
crise, mas, sim, que possam encará-los de maneira menos traumática, pois o peso maior
da crise será sentido pelas indústrias não cartelizadas. Além disso, no que tange à luta de

39
classes, a concentração de capital faz crescer o poder do empresariado no enfrentamento à
organização crescente dos trabalhadores. A grande indústria também é capaz de oferecer
maior resistência às greves operárias do que antes permitia a estrutura das pequenas e
médias empresas, isoladas entre si e competindo umas com as outras. Segundo o
economista austríaco Hilferding, cujos estudos muito contribuíram para que Lênin
desenvolvesse sua análise acerca do imperialismo, “a formação de cartéis e trustes une, de
forma mais forte e indissolúvel, os interesses dos capitalistas participantes e torna-os uma
unidade contra a classe operária”4.
O pensador marxista italiano Antonio Gramsci também refletiu sobre os
aspectos abordados acima, percebendo que, na fase imperialista, “o poder industrial de
cada fábrica separa-se da fábrica e centraliza-se num truste, num monopólio, num banco,
ou na burocracia de Estado”5, sendo ultrapassada a fase liberal na qual o proprietário era,
ao mesmo tempo, empreendedor, gerenciando uma propriedade individual ou familiar. A
concorrência clássica da época da “mão invisível do mercado” foi substituída pela
concorrência entre oligopólios, empresas múltiplas comandadas por gerências que
trocaram a gestão empirista e intuitiva do capitalismo liberal pelo planejamento
estratégico. Ao contrário do que parte da esquerda imaginou, a planificação gerencial das
empresas não significou um passo na direção do socialismo, pois a competição não
deixou de existir, apenas tendo se transferido para novos patamares, assim como o
planejamento oligopolista não alterou a estrutura da sociedade, mas contribuiu para o
processo de renovação e ampliação da hegemonia burguesa.

Lênin e a lei de desenvolvimento desigual do capitalismo

Em suas análises sobre o tema, Lênin concluiu acerca da lei do


desenvolvimento desigual do capitalismo na época do imperialismo. A ausência de
4
HILFERDING, Rudolf – O Capital Financeiro in Os Pensadores: Hilferding, São Paulo, Abril Cultural,
1985, p. 334.
5
GRAMSCI, Antonio – Democracia Operária, Coimbra, Centelha, 1976, p. 101 apud SECCO, Lincoln –
“Gramsci: hegemonia e pós-fordismo” em COGGIOLA, Osvaldo (org.) – História e Revolução, São Paulo,
Xamã Editora, 1998, p. 57.

40
planejamento e a anarquia da produção, próprias da economia capitalista, determinaram o
seu desenvolvimento desigual, logo nas primeiras fases do capitalismo. Isso se fazia
sentir, inicialmente, dentro dos diversos países, sem se refletir, demasiado, na correlação
de forças na cena mundial. A Inglaterra, que tinha sido um dos primeiros países a
empreender a industrialização, deixando muito para trás os seus competidores na
usurpação das colônias, manteve durante muitos anos a primazia na produção industrial,
influindo na política mundial de modo determinante.
Na época do imperialismo, o desenvolvimento desigual e por saltos do
capitalismo implica grandes transformações no plano internacional. A aceleração do
progresso técnico-científico e outros fatores permitiram, aos países capitalistas que
empreenderam tardiamente a via da industrialização, adquirir forças rapidamente e
adiantar-se. Compreende-se, perfeitamente, que a acumulação de poderio econômico seja
seguida da aspiração da burguesia nacional de conseguir uma nova partilha, em seu favor,
dos mercados e das esferas de influência. Assim procederam os monopólios alemães,
quando, apoiando-se no crescente poderio econômico e militar da Alemanha,
apresentaram a sua pretensão de dominar o mundo. A causa primordial das duas guerras
mundiais, que tantas calamidades causaram aos povos, foi o conflito entre os grupos
imperialistas. A Segunda Guerra Mundial adquiriu o caráter de guerra de libertação,
porque a União Soviética, os povos da coligação anti-hitlerista e os combatentes da
resistência lutaram contra o fascismo, a mais tenebrosa criação da reação imperialista.
No período de após-guerra, os Estados Unidos firmaram-se, solidamente, na
posição de principal potência imperialista. Isto não significa que a lei do desenvolvimento
desigual do capitalismo tenha perdido a sua vigência. Houve modificações na correlação
de forças dos países capitalistas avançados. Após a reconstrução financiada pelos EUA
depois das bombas de Hiroshima e Nagasaki, o Japão também passou a ocupar lugar de
destaque no mundo capitalista pela sua produção industrial. A Alemanha ultrapassou a
Inglaterra no aspecto econômico. Os monopólios japoneses e alemães sustentam uma
intensa luta para alargar a sua influência e desalojam, de maneira sensível, os seus rivais

41
americanos. Disso se conclui que as contradições imperialistas são inevitáveis entre os
países capitalistas.
Mudanças substanciais no regime político da sociedade burguesa também
podem ser verificadas em função das profundas alterações econômicas trazidas pelo
imperialismo. Segundo Lênin, há uma tendência no imperialismo para a reação política,
expressa no aumento gigantesco do militarismo, dos seus organismos repressivos, como a
polícia, as forças de “defesa da ordem”, o sistema prisional, os órgãos de vigilância
política; na violação da legalidade e no emprego dos métodos repressivos, mais brutais,
contra o movimento revolucionário. A chamada “viragem para a reação” não implica a
renúncia aos processos e métodos da democracia burguesa, mas revela uma tendência
presente nos regimes políticos burgueses de posicionarem-se mais à direita,
principalmente nos períodos de intensos conflitos sociais e de grave crise econômica.
A burguesia imperialista recorre ao terror nas situações de crise, quando a sua
dominação é questionada, mas, de um modo geral, prefere governar apoiada no
parlamento, no direito eleitoral e em outras instituições democráticas que mascaram a sua
ditadura. Tendo concentrado, em suas mãos, o predomínio econômico e o poder político e
procurando prolongar, a todo custo, a existência do regime capitalista, a burguesia
monopolista, em diversos momentos da história, não deixou de recorrer aos métodos
terroristas de governo em seus países. O fascismo foi o exemplo mais acabado de ditadura
terrorista desencadeada pelos círculos mais reacionários e agressivos do imperialismo.
Com grande frequência, os defensores do sistema imperialista se viram forçados a
recorrer ao último recurso, isto é, à reação e ao terror, em períodos da história em que a
correlação de forças sociais apresentou-se extremamente desfavorável aos trabalhadores e
aos partidos revolucionários.

O capitalismo monopolista de Estado

Nos primeiros decênios do século XX, foram registrados os sintomas da fusão


dos monopólios capitalistas com o Estado burguês, nos quais Lênin se fundamentou para

42
chegar à conclusão de que o capitalismo monopolista se transformava, paulatinamente,
em capitalismo monopolista de Estado. A união orgânica entre Estados e monopólios
institucionalizou-se após a Grande Depressão de 1929-1933 e, especialmente, após a
Segunda Guerra Mundial, quando o Estado passou a intervir de maneira abrangente na
economia, não apenas a redirecionando, para priorizar determinados setores, como
também organizando amplas áreas da produção, de forma a regular a demanda e amenizar
as crises. Nessa fase, os monopólios aceitaram essa intervenção (“entregando os anéis
para não perder os dedos”), não só em virtude das pressões do movimento operário, mas
fundamentalmente devido ao perigo soviético, pois na vitória sobre o nazifascismo a
União Soviética foi a nação que granjeou maior prestígio, e o socialismo passou a estar
presente em cerca de um terço da humanidade.
A crise de 1929-1933 demonstrou, com toda a evidência, que o sistema de
“iniciativa privada”, assim como a “regulação espontânea da economia” que lhe serve de
base, não mais correspondia às novas condições de produção. Para se adaptar a estas
condições, sem afetar os fundamentos das relações do capitalismo, tornou-se necessário
tomar certas medidas “anticrise”. O Estado burguês começou a encarregar-se da
“programação da economia” para, se não eliminar, reduzir os efeitos produzidos pelas
crises sobre a economia capitalista. O Estado do pós-guerra passou a dispor de grandes
recursos orçamentários, oriundos das receitas tributárias progressivas. Parte dos recursos
eram aplicados em projetos sociais, para tentar abafar os conflitos provocados pelas
condições adversas causadas pela guerra, mas também eram redistribuídos em favor dos
monopólios, quer mediante gastos com incentivos e subsídios para o financiamento de
avanços técnicos e científicos nas empresas, quer no investimento militar1, cujas
encomendas eram feitas junto aos monopólios, quer pelas encomendas de produtos
industrializados em geral, o que proporcionou grande acumulação aos capitalistas no
período.
A “programação da economia” burguesa não anula as leis econômicas do
capitalismo e, portanto, jamais deve ser identificada com a “planificação socialista da

43
economia”. O Estado procura influir na produção utilizando métodos indiretos, tais como
o crédito, definição de preços, encomendas, etc. O desenvolvimento das forças produtivas
ficou profundamente condicionado ao progresso acelerado dos ramos da ciência e da
técnica, exigindo investimentos colossais, nem sempre prometendo uma restituição
imediata, e, frequentemente, acarretando o risco e até o perigo da ruína. Por isso, o Estado
passou a se encarregar do financiamento das investigações científicas, cujos frutos eram
aproveitados pelas grandes corporações. Muitos ramos modernos da indústria, tais como a
aeronáutica, a cósmica, a eletrônica e a indústria atômica progrediram, nos países
capitalistas, com grande apoio financeiro do Estado, embora continuassem, inteira ou
parcialmente, sob o controle dos monopólios.
O capitalismo monopolista de Estado implicou no crescimento da propriedade
do Estado, que se operou por três vias: mediante a criação de novas empresas,
principalmente da indústria de guerra, à custa dos orçamentos públicos; mediante a
aquisição, pelo Estado, de parte das ações das companhias capitalistas; pela
nacionalização burguesa de algumas empresas ou de ramos inteiros de produção. A
ampliação da propriedade do Estado monopolista afetou os diversos ramos da economia,
como a organização das finanças, do transporte, da comunicação, assim como novos
ramos da produção gerados pela revolução técnico-científica, os quais requerem grandes
investimentos sob direção centralizada, dada a sua importância estratégica, como é o caso
da indústria atômica. Tratava-se, também, de colocar nas mãos do Estado uma parte dos
velhos ramos da economia que não mais se apresentavam como suficientemente
rentáveis. Os monopólios abandonaram-nos de boa vontade, pois receberam uma
indenização vantajosa do Estado.
A agudização das contradições entre os países imperialistas e a crescente
interdependência da economia mundial obrigaram os Estados capitalistas a regular, cada
vez mais frequentemente, as relações entre as divisas, o comércio, a exportação de capital
e a prestar assistência aos grandes conglomerados na arena internacional. O
desenvolvimento do capitalismo monopolista de Estado também foi consequência do

44
desmoronamento do sistema colonial do imperialismo após a Segunda Guerra Mundial, o
que forçou os monopólios a buscarem novas formas neocolonialistas de exploração dos
países em vias de desenvolvimento. Naquelas condições históricas, a expansão política e
econômica do capitalismo monopolista nacional não se daria sem o apoio do Estado.
O surgimento de um poderoso bloco socialista no pós-guerra igualmente
acelerou o desenvolvimento do capitalismo monopolista de Estado nos países capitalistas.
Para poder lutar contra o socialismo e reduzir a influência do seu exemplo, o capital
monopolista recorreu à mobilização de todos os recursos econômicos, militares e vários
outros. Apesar de persistirem as contradições entre os países imperialistas, o capital
monopolista procurou unir as suas forças, ou, pelo menos, coordenar as ações em escala
internacional. Em boa parte, foi esta a razão do aparecimento da OTAN (Organização do
Tratado do Atlântico Norte), bloco militar imperialista, e de agrupamentos econômicos,
como o Mercado Comum.
A militarização da economia, no período da Guerra Fria, desempenhou um
grande papel no desenvolvimento do capitalismo monopolista de Estado. Reunindo
recursos colossais, com a arrecadação de impostos a que os trabalhadores são obrigados a
pagar, o Estado burguês investia apenas parte insignificante desses recursos na instrução
pública, na saúde e em outras necessidades de caráter social. O essencial desses recursos
era destinado às despesas de guerra, para engordar os cofres das grandes corporações
industriais de produção de armamentos.
O investimento do Estado na produção militar sempre ajuda o capitalismo a
manter a demanda agregada, reduzindo grandes crises de superprodução e possibilitando
ao sistema um crescimento relativamente estável. Por outro lado, proporcionou aos
Estados Unidos (como continua proporcionando nos dias de hoje), principal economia do
mundo, a construir as armas mais sofisticadas, com as quais estruturou seu potencial
bélico hegemônico. Durante a Guerra Fria, foi assim que os EUA mantiveram seu poderio
sobre os demais países ocidentais e ainda estimularam a corrida armamentista, forçando
que a União Soviética desviasse permanentemente recursos da área social para a produção

45
militar. Desta maneira, o complexo industrial-militar, a forma mais expressiva da união
do Estado com os monopólios, transformou-se no instrumento fundamental da dinâmica
capitalista e, por isso mesmo, adquiriu uma série de vantagens em relação aos outros
monopólios.
Nos dias de hoje, em que o capitalismo se utiliza de novas formas econômicas,
sociais, políticas e ideológicas para expandir seus domínios no mundo, mantendo vivas as
práticas e tendências imperialistas inerentes ao seu desenvolvimento, o capitalismo
monopolista de Estado continua a ser a expressão da união da força dos monopólios com
o poder do Estado, visando manter e fortalecer as posições da burguesia monopolista,
para prolongar a existência do regime capitalista. A vigência do capitalismo monopolista
de Estado não significou, portanto, a passagem a uma nova etapa diferente do
imperialismo, mas continuou a ser o mesmo capitalismo na sua fase imperialista de
desenvolvimento.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Brasiliense, 1991.

COSTA, Edmilson - A Globalização e o Capitalismo Contemporâneo, São Paulo,


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__________________ – A Era dos Impérios, 3ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.

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46
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de capital, 16ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1998.

MÉSZÁROS, István – O Século XXI: socialismo ou barbárie?, São Paulo, Boitempo


Editorial, 2003.

BALANÇO DO NEOLIBERALISMO
*Perry Anderson

47
(Texto III)

Comecemos com as origens do que se pode definir do neoliberalismo como


fenômeno distinto do simples liberalismo clássico, do século passado. O neoliberalismo
nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na região da Europa e da América do Norte onde
imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado
intervencionista e de bem-estar. Seu texto de origem é O Caminho da Servidão, de
Friedrich Hayek, escrito já em 1944. Trata-se de um ataque apaixonado contra qualquer
limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciadas como uma
ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política. O alvo imediato
de Hayek, naquele momento, era o Partido Trabalhista inglês, às vésperas da eleição geral
de 1945 na Inglaterra, que este partido efetivamente venceria. A mensagem de Hayek é
drástica: "Apesar de suas boas intenções, a social-democracia moderada inglesa conduz ao
mesmo desastre que o nazismo alemão – uma servidão moderna".
Três anos depois, em 1947, enquanto as bases do Estado de bem-estar na Europa
do pós-guerra efetivamente se construíam, não somente na Inglaterra, mas também em
outros países, neste momento Hayek convocou aqueles que compartilhavam sua orientação
ideológica para uma reunião na pequena estação de Mont Pèlerin, na Suíça. Entre os
célebres participantes estavam não somente adversários firmes do Estado de bem-estar
europeu, mas também inimigos férreos do New Deal norte-americano. Na seleta
assistência encontravam-se Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von
Mises, Walter Eupken, Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador de Madariaga, entre
outros. Aí se fundou a Sociedade de Mont Pèlerin, uma espécie de franco-maçonaria
neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos.
Seu propósito era combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases
de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras para o futuro. As condições para
este trabalho não eram de todo favoráveis, uma vez que o capitalismo avançado estava
entrando numa longa fase de auge sem precedentes – sua idade de ouro –, apresentando o
crescimento mais rápido da história, durante as décadas de 50 e 60. Por esta razão, não

48
pareciam muito verossímeis os avisos neoliberais dos perigos que representavam qualquer
regulação do mercado por parte do Estado. A polêmica contra a regulação social, no
entanto, tem uma repercussão um pouco maior. Hayek e seus companheiros argumentavam
que o novo igualitarismo (muito relativo, bem entendido) deste período, promovido pelo
Estado de bem-estar, destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da
qual dependia a prosperidade de todos. Desafiando o consenso oficial da época, eles
argumentavam que a desigualdade era um valor positivo – na realidade imprescindível em
si –, pois disso precisavam as sociedades ocidentais. Esta mensagem permaneceu na teoria
por mais ou menos 20 anos.
A chegada da grande crise do modelo econômico do pós-guerra, em 1973,
quando todo o mundo capitalista avançado caiu numa longa e profunda recessão,
combinando, pela primeira vez, baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação,
mudou tudo. A partir daí as idéias neoliberais passaram a ganhar terreno. As raízes da
crise, afirmavam Hayek e seus companheiros, estavam localizadas no poder excessivo e
nefasto dos sindicatos e, de maneira mais geral, do movimento operário, que havia
corroído as bases de acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os
salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os
gastos sociais.
Esses dois processos destruíram os níveis necessários de lucros das empresas e
desencadearam processos inflacionários que não podiam deixar de terminar numa crise
generalizada das economias de mercado. O remédio, então, era claro: manter um Estado
forte, sim, em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro,
mas parco em todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas. A estabilidade
monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para isso seria necessária uma
disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos com bem-estar, e a restauração da
taxa "natural" de desemprego, ou seja, a criação de um exército de reserva de trabalho para
quebrar os sindicatos. Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os
agentes econômicos. Em outras palavras, isso significava reduções de impostos sobre os

49
rendimentos mais altos e sobre as rendas. Desta forma, uma nova e saudável desigualdade
iria voltar a dinamizar as economias avançadas, então às voltas com uma estagflação,
resultado direto dos legados combinados de Keynes e de Beveridge, ou seja, a intervenção
anticíclica e a redistribuição social, as quais haviam tão desastrosamente deformado o
curso normal da acumulação e do livre mercado. O crescimento retornaria quando a
estabilidade monetária e os incentivos essenciais houvessem sido restituídos.
A hegemonia deste programa não se realizou do dia para a noite. Levou mais ou
menos uma década, os anos 70, quando a maioria dos governos da OCDE – Organização
Européia para o Comércio e Desenvolvimento – tratava de aplicar remédios keynesianos às
crises econômicas. Mas, ao final da década, em 1979, surgiu a oportunidade. Na Inglaterra,
foi eleito o governo Thatcher, o primeiro regime de um país de capitalismo avançado
publicamente empenhado em pôr em prática o programa neoliberal. Um ano depois, em
1980, Reagan chegou à presidência dos Estados Unidos. Em 1982, Khol derrotou o regime
social liberal de Helmut Schimidt, na Alemanha. Em 1983, a Dinamarca, Estado modelo
do bem-estar escandinavo, caiu sob o controle de uma coalizão clara de direita, o governo
de Schluter. Em seguida, quase todos os países do norte da Europa ocidental, com exceção
da Suécia e da Áustria, também viraram à direita. A partir daí, a onda de direitização
desses anos tinha um fundo político para além da crise econômica do período. Em 1978, a
segunda guerra fria eclodiu com a intervenção soviética no Afeganistão e a decisão norte-
americana de incrementar uma nova geração de foguetes nucleares na Europa ocidental. O
ideário do neoliberalismo havia sempre incluído, como componente central, o
anticomunismo mais intransigente de todas as correntes capitalistas do pós-guerra. O novo
combate contra o império do mal – a servidão humana mais completa aos olhos de Hayek –
inevitavelmente fortaleceu o poder de atração do neoliberalismo político, consolidando o
predomínio da nova direita na Europa e na América do Norte. Os anos 80 viram o triunfo
mais ou menos incontrastado da ideologia neoliberal nesta região do capitalismo avançado.
O que fizeram, na prática, os governos neoliberais deste período? O modelo
inglês foi, ao mesmo tempo, o pioneiro e o mais puro. Os governos Thatcher contraíram a

50
emissão monetária, elevaram as taxas de juros, baixaram drasticamente os impostos sobre
os rendimentos altos, aboliram controles sobre os fluxos financeiros, criaram níveis de
desemprego massivos, aplastaram greves, impuseram uma nova legislação anti-sindical e
cortaram gastos sociais. E, finalmente – esta foi uma medida surpreendentemente tardia –,
se lançaram num amplo programa de privatização, começando por habitação pública e
passando em seguida a indústrias básicas como o aço, a eletricidade, o petróleo, o gás e a
água. Esse pacote de medidas é o mais sistemático e ambicioso de todas as experiências
neoliberais em países de capitalismo avançado.
A variante norte-americana era bem distinta. Nos Estados Unidos, onde quase
não existia um Estado de bem-estar do tipo europeu, a prioridade neoliberal era mais a
competição militar com a União Soviética, concebida como uma estratégia para quebrar a
economia soviética e, por esta via, derrubar o regime comunista na Rússia. Deve-se
ressaltar que, na política interna, Reagan também reduziu os impostos em favor dos ricos,
elevou as taxas de juros e aplastou a única greve séria de sua gestão. Mas, decididamente,
não respeitou a disciplina orçamentária; ao contrário, lançou-se numa corrida armamentista
sem precedentes, envolvendo gastos militares enormes, que criaram um déficit público
muito maior do que qualquer outro presidente da história norte-americana. Mas esse
recurso a um keynesianismo militar disfarçado, decisivo para uma recuperação das
economias capitalistas da Europa ocidental e da América do Norte, não foi imitado.
Somente os Estados Unidos, por causa de seu peso na economia mundial, podiam dar-se ao
luxo do déficit massivo na balança de pagamentos que resultou de tal política.
No continente europeu, os governos de direita deste período – amiúde com fundo
católico – praticaram em geral um neoliberalismo mais cauteloso e matizado que as
potências anglo-saxônicas, mantendo a ênfase na disciplina orçamentária e nas reformas
fiscais, mais do que em cortes brutais de gastos sociais ou enfrentamentos deliberados com
os sindicatos. Contudo, a distância entre estas políticas e as da social-democracia
governante anterior já era grande. E, enquanto a maioria dos países no norte da Europa
elegia governos de direita empenhados em várias versões do neoliberalismo, no sul do

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continente – território de De Gaulle, Franco, Salazar, Fanfani, Papadopoulos, etc. –,
previamente uma região muito mais conservadora politicamente, chegavam ao poder, pela
primeira vez, governos de esquerda, chamados de euro-socialistas: Miterrand, na França;
González, na Espanha; Soares, em Portugal; Craxi, na Itália; Papandreou, na Grécia. Todos
se apresentavam como uma alternativa progressista, baseada em movimentos operários ou
populares, contrastando com a linha reacionária dos governos de Reagan, Thatcher, Khol e
outros do norte da Europa. Não há dúvida, com efeito, de que pelo menos Miterrand e
Papandreou, na França e na Grécia, genuinamente se esforçaram para realizar uma política
de deflação e redistribuição, de pleno emprego e de proteção social. Foi uma tentativa de
criar um equivalente no sul da Europa do que havia sido a social-democracia do pós-guerra
no norte do continente em seus anos de ouro. Mas o projeto fracassou, e já em 1982 e 1983
o governo socialista na França se viu forçado pelos mercados financeiros internacionais a
mudar seu curso dramaticamente e reorientar-se para fazer uma política muito próxima à
ortodoxia neoliberal, com prioridade para a estabilidade monetária, a contenção do
orçamento, concessões fiscais aos detentores de capital e abandono do pleno emprego. No
final da década, o nível de desemprego na França socialista era mais alto do que na
Inglaterra conservadora, como Thatcher se gabava amiúde de assinalar. Na Espanha, o
governo de González jamais tratou de realizar uma política keynesiana ou redistributiva.
Ao contrário, desde o início o regime do partido no poder se mostrou firmemente
monetarista em sua política econômica: grande amigo do capital financeiro, favorável ao
princípio de privatização e sereno quando o desemprego na Espanha rapidamente alcançou
o recorde europeu de 20% da população ativa.
Enquanto isso, no outro lado do mundo, na Austrália e na Nova Zelândia, o
mesmo padrão assumiu proporções verdadeiramente dramáticas. Sucessivos governos
trabalhistas ultrapassaram os conservadores locais de direita com programas de
neoliberalismo radical – na Nova Zelândia, provavelmente o exemplo mais extremo de
todo o mundo capitalista avançado, desmontando o Estado de bem-estar muito mais
completa e ferozmente do que Thatcher na Inglaterra.

52
O que demonstravam estas experiências era a hegemonia alcançada pelo
neoliberalismo como ideologia. No início, somente governos explicitamente de direita
radical se atreveram a pôr em prática políticas neoliberais; depois, qualquer governo,
inclusive os que se autoproclamavam e se acreditavam de esquerda, podia rivalizar com
eles em zelo neoliberal. O neoliberalismo havia começado tomando a social-democracia
como sua inimiga central, em países de capitalismo avançado, provocando uma hostilidade
recíproca por parte da social-democracia. Depois, os governos social-democratas se
mostraram os mais resolutos em aplicar políticas neoliberais. Nem todas as social-
democracias, bem entendido. Ao final dos anos 80, a Suécia e a Áustria ainda resistiam à
onda neoliberal da Europa. E, fora do continente europeu, o Japão também continuava
isento de qualquer pressão ou tentação neoliberal. Mas, nos demais países da OCDE, as
idéias da Sociedade de Mont Pèlerin haviam triunfado plenamente. Poder-se-ia perguntar
qual a avaliação efetiva da hegemonia neoliberal no mundo capitalista avançado, pelo
menos durante os anos 80. Cumpriu suas promessas ou não? Vejamos o panorama de
conjunto. A prioridade mais imediata do neoliberalismo era deter a grande inflação dos
anos 70. Nesse aspecto, seu êxito foi inegável. No conjunto dos países da OCDE, R taxa de
inflação caiu de 8,8% para 5,2%, entre os anos 70 e 80, e a tendência de queda continua
nos anos 90. A deflação, por sua vez, deveria ser a condição para a recuperação dos lucros.
Também nesse sentido o neoliberalismo obteve êxitos reais. Se, nos anos 70, a taxa de
lucro das indústrias nos países da OCDE caiu em cerca de 4,2%, nos anos 80 aumentou
4,7%. Essa recuperação foi ainda mais impressionante na Europa Ocidental como um todo,
de 5,4 pontos negativos para 5,3 pontos positivos. A razão principal dessa transformação
foi, sem dúvida, a derrota do movimento sindical, expressado na queda drástica do número
de greves durante os anos 80 e numa notável contenção dos salários. Essa nova postura
sindical, muito mais moderada, por sua vez, em grande parte era produto de um terceiro
êxito do neoliberalismo, ou seja, o crescimento das taxas de desemprego, concebido como
um mecanismo natural e necessário de qualquer economia de mercado eficiente. A taxa
média de desemprego nos países da OCDE, que havia ficado em torno de 4% nos anos 70,

53
pelo menos duplicou na década de 80. Também este foi um resultado satisfatório.
Finalmente, o grau de desigualdade – outro objetivo sumamente importante para o
neoliberalismo – aumentou significativamente no conjunto dos países da OCDE: a
tributação dos salários mais altos caiu 20% em média nos anos 80, e os valores das bolsas
aumentaram quatro vezes mais rapidamente do que os salários.
Então, em todos estes itens, deflação, lucros, empregos e salários, podemos dizer
que o programa neoliberal se mostrou realista e obteve êxito. Mas, no final das contas,
todas estas medidas haviam sido concebidas como meios para alcançar um fim histórico,
ou seja, a reanimação do capitalismo avançado mundial, restaurando taxas altas de
crescimento estáveis, como existiam antes da crise dos anos 70. Nesse aspecto, no entanto,
o quadro se mostrou absolutamente decepcionante. Entre os anos 70 e 80 não houve
nenhuma mudança – nenhuma – na taxa de crescimento, muito baixa nos países da OCDE.
Dos ritmos apresentados durante o longo auge, nos anos 50 e 60, restam somente uma
lembrança distante.
Qual seria a razão deste resultado paradoxal? Sem nenhuma dúvida, o fato de
que – apesar de todas as novas condições institucionais criadas em favor do capital – a taxa
de acumulação, ou seja, da efetiva inversão em um parque de equipamentos produtivos,
não apenas não cresceu durante os anos 80, como caiu em relação a seus níveis – já médios
– dos anos 70. No conjunto dos países de capitalismo avançado, as cifras são de um
incremento anual de 5,5% nos anos 60, de 3,6% nos anos 70, e nada mais do que 2,9% nos
anos 80. Uma curva absolutamente descendente.
Cabe perguntar por que a recuperação dos lucros não levou a uma recuperação
dos investimentos. Essencialmente, pode-se dizer, porque a desregulamentação financeira,
que foi um elemento tão importante do programa neoliberal, criou condições muito mais
propícias para a inversão especulativa do que produtiva. Durante os anos 80 aconteceu uma
verdadeira explosão dos mercados de câmbio internacionais, cujas transações, puramente
monetárias, acabaram por diminuir o comércio mundial de mercadorias reais. O peso de
operações puramente parasitárias teve um incremento vertiginoso nestes anos. Por outro

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lado – e este foi, digamos, o fracasso do neoliberalismo –, o peso do Estado de bem-estar
não diminuiu muito, apesar de todas as medidas tomadas para conter os gastos sociais.
Embora o crescimento da proporção do produto bruto nacional consumida pelo Estado
tenha sido notavelmente desacelerado, a proporção absoluta não caiu, mas aumentou, de
mais ou menos 46% para 48% do PNB médio dos países da OCDE durante os anos 80.
Duas razões básicas explicam este paradoxo: o aumento dos gastos sociais com o
desemprego, que custaram bilhões ao Estado, e o aumento demográfico dos aposentados na
população, que levou o Estado a gastar outros bilhões em pensões.
Por fim, ironicamente, quando o capitalismo avançado entrou de novo numa
profunda recessão, em 1991, a dívida pública de quase todos os países ocidentais começou
a reassumir dimensões alarmantes, inclusive na Inglaterra e nos Estados Unidos, enquanto
que o endividamento privado das famílias e das empresas chegava a níveis sem
precedentes desde a II Guerra Mundial. Atualmente, com a recessão dos primeiros anos da
década de 90, todos os índices econômicos tornaram-se muito sombrios nos países da
OCDE, onde, presentemente, há cerca de 38 milhões de desempregados, aproximadamente
duas vezes a população total da Escandinávia. Nestas condições de crise muito aguda, pela
lógica, era de se esperar uma forte reação contra o neoliberalismo nos anos 90. Isso
aconteceu? Ao contrário, por estranho que pareça, o neoliberalismo ganhou um segundo
alento, pelo menos em sua terra natal, a Europa. Não somente o thatcherismo sobreviveu à
própria Thatcher, com a vitória de Major nas eleições de 1992 na Inglaterra. Na Suécia, a
social-democracia, que havia resistido ao avanço neoliberal nos anos 80, foi derrotada por
uma frente unida de direita em 1991. O socialismo francês saiu bastante desgastado das
eleições de 1993. Na Itália, Berlusconi – uma espécie de Reagan italiano – chegou ao
poder à frente de uma coalizão na qual um dos integrantes era um partido oficialmente
facista até recentemente. Na Alemanha, o governo de Kohl provavelmente continuará no
poder. Na Espanha, a direita está às portas do poder.
Mas, para além desses êxitos eleitorais, o projeto neoliberal continua a
demonstrar uma vitalidade impressionante. Seu dinamismo não está ainda esgotado, como

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se pode ver na nova onda de privatizações em países até recentemente bastante resistentes
a elas, como Alemanha, Áustria e Itália. A hegemonia neoliberal se expressa igualmente no
comportamento de partidos e governos que formalmente se definem como seus opositores.
A primeira prioridade do presidente Clinton, nos Estados Unidos, foi reduzir o déficit
orçamentário, e a segunda foi adotar uma legislação draconiana e regressiva contra a
delinqüência, lema principal também da nova liderança trabalhista na Inglaterra. O temário
político segue sendo ditado pelos parâmetros do neoliberalismo, mesmo quando seu
momento de atuação econômica parece amplamente estéril ou desastroso. Como explicar
esse segundo alento no mundo capitalista avançado? Uma de suas razões fundamentais foi
claramente a vitória do neoliberalismo em outra área do mundo, ou seja, a queda do
comunismo na Europa oriental e na União Soviética, de 89 a 91, exatamente no momento
em que os limites do neoliberalismo no próprio Ocidente tornavam-se cada vez mais
óbvios. Pois a vitória do Ocidente na guerra fria, com o colapso de seu adversário
comunista, não foi o triunfo de qualquer capitalismo, mas o do tipo específico liderado e
simbolizado por Reagan e Thatcher nos anos 80. Os novos arquitetos das economias pós-
comunistas no Leste, gente como Balcerovicz na Polônia, Gaidar na Rússia, Klaus, na
República Tcheca, eram e são seguidores convictos de Hayek e Friedman, com um
menosprezo total pelo keynesianismo e pelo Estado de bem-estar, pela economia mista e,
em geral, por todo o modelo dominante do capitalismo ocidental do período pós-guerra.
Estas lideranças políticas preconizam e realizam privatizações muito mais amplas e rápidas
do que haviam sido feitas no Ocidente. Para sanear suas economias, aceitam quedas de
produção infinitamente mais drásticas do que haviam sido aceitas no Ocidente. E
promovem graus de desigualdade – sobretudo de empobrecimento da maior parte da
população – muito mais brutais do que tínhamos visto nos países do Ocidente.
Não há neoliberais mais intransigentes no mundo do que os "reformadores" do
Leste. Dois anos atrás, Vaclav Klaus, primeiro-ministro da República Tcheca, atacou
publicamente o presidente do Federal Reserve Bank dos Estados Unidos no governo
Reagan, Allan Greenspan, acusando-o de demonstrar debilidade e frouxidão lamentáveis

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em sua política monetária. Em artigo para a revista The Economist, Klaus foi incisivo: "O
sistema social da Europa ocidental está demasiadamente amarrado por regras e pelo
controle social excessivo. O Estado de bem-estar, com todas as suas transferências de
pagamentos generosos desligados de critérios, de esforços ou de méritos, destrói a
moralidade básica do trabalho e o sentido de responsabilidade individual. Há excessiva
proteção e burocracia. Deve-se dizer que a revolução thatcheriana, ou seja, antikeynesiana
ou liberal, parou – numa avaliação positiva – no meio do caminho na Europa ocidental e é
preciso completá-la". Bem entendido, esse tipo de extremismo neoliberal, por influente que
seja nos países pós-comunistas, também desencadeou uma reação popular, como se pôde
ver nas últimas eleições na Polônia, na Hungria e na Lituânia, onde partidos ex-comunistas
ganharam e agora governam de novo seus países. Mas, na prática, suas políticas no
governo não se distinguem muito daquela de seus adversários declaradamente neoliberais.
A deflação, a desmontagem de serviços públicos, as privatizações de empresas, o
crescimento de capital corrupto e a polarização social seguem, um pouco menos
rapidamente, porém com o mesmo rumo. A analogia com o euro-socialismo do sul da
Europa é evidente. Em ambos os casos há uma variante mansa – pelo menos no discurso,
senão sempre nas ações – de um paradigma neoliberal comum na direita e na esquerda
oficial. O dinamismo continuado do neoliberalismo como força ideológica em escala
mundial está sustentado em grande parte, hoje, por este "efeito de demonstração" do
mundo pós-soviético. Os neoliberais podem gabar-se de estar à frente de uma
transformação sócio-econômica gigantesca, que vai perdurar por décadas.
O impacto do triunfo neoliberal no leste europeu tardou a ser sentido em outras
partes do globo, particularmente, pode-se dizer, aqui na América Latina, que hoje em dia
se converte na terceira grande cena de experimentações neoliberais. De fato, ainda que em
seu conjunto tenha chegado a hora das privatizações massivas, depois dos países da OCDE
e da antiga União Soviética, genealogicamente este continente foi testemunha da primeira
experiência neoliberal sistemática do mundo. Refiro-me, bem entendido, ao Chile sob a
ditadura de Pinochet. Aquele regime tem a honra de ter sido o verdadeiro pioneiro do ciclo

57
neoliberal da história contemporânea. O Chile de Pinochet começou seus programas de
maneira dura: desregulação, desemprego massivo, repressão sindical, redistribuição de
renda em favor dos ricos, privatização de bens públicos. Tudo isso foi começado no Chile,
quase um decênio antes de Thatcher, na Inglaterra. No Chile, naturalmente, a inspiração
teórica da experiência pinochetista era mais norte-americana do que austríaca. Friedman, e
não Hayek, como era de se esperar nas Américas. Mas é de se notar que a experiência
chilena dos anos 70 interessou muitíssimo a certos conselheiros britânicos importantes para
Thatcher, e que sempre existiram excelentes relações entre os dois regimes nos anos 80. O
neoliberalismo chileno, bem entendido, pressupunha a abolição da democracia e a
instalação de uma das mais cruéis ditaduras militares do pós-guerra. Mas a democracia em
si mesma – como explicava incansavelmente Hayek – jamais havia sido um valor central
do neoliberalismo. A liberdade e a democracia, explicava Hayek, podiam facilmente
tornar-se incompatíveis, se a maioria democrática decidisse interferir com os direitos
incondicionais de cada agente econômico de dispor de sua renda e de sua propriedade
como quisesse. Nesse sentido, Friedman e Hayek podiam olhar com admiração a
experiência chilena, sem nenhuma inconsistência intelectual ou compromisso de seus
princípios. Mas esta admiração foi realmente merecida, dado que – à diferença das
economias de capitalismo avançado sob os regimes neoliberais dos anos 80 – a economia
chilena cresceu a um ritmo bastante rápido sob o regime de Pinochet, como segue fazendo
com a continuidade da política econômica dos governos pós-Pinochet dos últimos anos.
Se o Chile, nesse sentido, foi a experiência-piloto para o novo neoliberalismo
dos países avançados do Ocidente, a América Latina também proveu a experiência-piloto
para o neoliberalismo do Oriente pós-soviético. Aqui me refiro, bem entendido, à Bolívia,
onde, em 1985, Jeffrey Sachs já aperfeiçoou seu tratamento de choque, mais tarde aplicado
na Polônia e na Rússia, mas preparado originariamente para o governo do general Banzer,
depois aplicado imperturbavelmente por Victor Paz Estenssoro, quando
surpreendentemente este último foi eleito presidente, em vez de Banzer. Na Bolívia, no
fundo da experiência não havia necessidade de quebrar um movimento operário poderoso,

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como no Chile, mas parar a hiperinflação. E o regime que adotou o plano de Sachs não era
nenhuma ditadura, mas o herdeiro do partido populista que havia feito a revolução social
de 1952. Em outras palavras, a América Latina também iniciou a variante neoliberal
"progressista", mais tarde difundida no sul da Europa, nos anos de euro-socialismo. Mas o
Chile e a Bolívia eram experiências isoladas até o final dos anos 80.
A virada continental em direção ao neoliberalismo não começou antes da
presidência de Salinas, no México, em 88, seguida da chegada ao poder de Menem, na
Argentina, em 89, da segunda presidência de Carlos Andrés Perez, no mesmo ano, na
Venezuela, e da eleição de Fujimori, no Peru, em 90. Nenhum desses governantes
confessou ao povo, antes de ser eleito, o que efetivamente fez depois de eleito. Menem,
Carlos Andrés e Fujimori, aliás, prometeram exatamente o oposto das políticas
radicalmente antipopulistas que implementaram nos anos 90. E Salinas, notoriamente, não
foi sequer eleito, mas roubou as eleições com fraudes.
Das quatro experiências viáveis desta década, podemos dizer que três registraram
êxitos impressionantes a curto prazo – México, Argentina e Peru – e uma fracassou:
Venezuela. A diferença é significativa. A condição política da deflação, da
desregulamentação, do desemprego, da privatização das economias mexicana, argentina e
peruana foi uma concentração de poder executivo formidável: algo que sempre existiu no
México, um regime de partido único, com efeito, mas Menem e Fujimori tiveram de inovar
na Argentina e no Peru com uma legislação de emergência, autogolpes e reforma da
Constituição. Esta dose de autoritarismo político não foi factível na Venezuela, com sua
democracia partidária mais contínua e sólida do que em qualquer outro país da América do
Sul, o único a escapar de ditaduras militares e de regimes oligárquicos desde os anos 50.
Daí o colapso da segunda presidência de Carlos Andrés.
Mas seria arriscado concluir que somente regimes autoritários podem impor com
êxito políticas neoliberais na América Latina. A Bolívia, onde todos os governos eleitos
depois de 1985, tanto de Paz Zamora, quanto de Sanchez Losada, continuaram com a
mesma linha, está aí para comprovar o oposto. A lição que fica da longa experiência

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boliviana é esta: há um equivalente funcional ao trauma da ditadura militar como
mecanismo para induzir democrática e não coercitivamente um povo a aceitar políticas
neoliberais das mais drásticas. Este equivalente é a hiperinflação. Suas conseqüências são
muito parecidas. Recordo-me de uma conversa que tive no Rio de Janeiro, em 1987,
quando era consultor de uma equipe do Banco Mundial e fazia uma análise comparativa de
cerca de 24 países do Sul, no que tocava a políticas econômicas. Um amigo neoliberal da
equipe, sumamente inteligente, economista destacado, grande admirador da experiência
chilena sob o regime de Pinochet, confiou-me que o problema crítico no Brasil durante a
presidência de Sarney não era uma taxa de inflação demasiado alta – como a maioria dos
funcionários do Banco Mundial tolamente acreditava –, mas uma taxa de inflação
demasiado baixa. "Esperemos que os diques se rompam", ele disse, "precisamos de uma
hiperinflação aqui, para condicionar o povo a aceitar a medicina deflacionária drástica que
falta neste país". Depois, como sabemos, a hiperinflação chegou ao Brasil, e as
conseqüências prometem ou ameaçam – como se queira – confirmar a sagacidade deste
neoliberal indiano.
A pergunta que está aberta é se o neoliberalismo encontrará mais ou menos
resistência à implementação duradoura dos seus projetos aqui na América Latina do que na
Europa ocidental ou na antiga União Soviética. Seria o populismo – ou obreirismo – latino-
americano um obstáculo mais fácil ou mais difícil para a realização dos planos neoliberais
do que a social-democracia reformista ou o comunismo? Não vou entrar nesta questão,
uma vez que outros aqui podem julgar melhor do que eu. Sem dúvida, a resposta vai
depender também do destino do neoliberalismo fora da América Latina, onde continua
avançando em terras até agora intocadas por sua influência. Atualmente, na Ásia, por
exemplo, a economia da Índia começa, pela primeira vez, a ser adaptada ao paradigma
liberal, e até mesmo o Japão não está totalmente imune às pressões norte-americanas para
abolir regras. A região do capitalismo mundial que apresenta mais êxitos nos últimos 20
anos é também a menos neoliberal, ou seja, as economias do extremo oriente – Japão,
Coréia, Formosa, Cingapura, Malásia. Por quanto tempo estes países permanecerão fora da

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esfera de influência do neoliberalismo? Tudo que podemos dizer é que este é um
movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais
havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente,
militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua
ambição estrutural e sua extensão internacional. Eis aí algo muito mais parecido ao
movimento comunista de ontem do que ao liberalismo eclético e distendido do século
passado.
Nesse sentido, qualquer balanço atual do neoliberalismo só pode ser provisório.
Este é um movimento ainda inacabado. Por enquanto, porém, é possível dar um veredicto
acerca de sua atuação durante quase 15 anos nos países mais ricos do mundo, a única área
onde seus frutos parecem, podemos dizer assim, maduros. Economicamente, o
neoliberalismo fracassou, não conseguindo nenhuma revitalização básica do capitalismo
avançado. Socialmente, ao contrário, o neoliberalismo conseguiu muitos dos seus
objetivos, criando sociedades marcadamente mais desiguais, embora não tão desestatizadas
como queria. Política e ideologicamente, todavia, o neoliberalismo alcançou êxito num
grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonham, disseminando a simples
idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou
negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria
convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o
neoliberal hoje. Este fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de
pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes. A tarefa de seus
opositores é a de oferecer outras receitas e preparar outros regimes. Apenas não há como
prever quando ou onde vão surgir. Historicamente, o momento de virada de uma onda é
uma surpresa.
___________________

ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, Emir & GENTILI, Pablo
(orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1995, pp. 09-23.

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