Você está na página 1de 15

V SEMINÁRIO INTERNACIONAL – TEORIA POLÍTICA DO

SOCIALISMO “MARX: CRISE DO CAPITALISMO E TRANSIÇÃO”


FFC - Unesp de Marília
(12/08/2013 à 16/08/2013)

A Acumulação Primitiva e o Capitalismo Contemporâneo

Autor: Carlos Henrique Lopes Rodrigues

GT – VIII: A obra teórica de Marx


O Capital: a atualidade do pensamento marxiano

0
A Acumulação Primitiva e o Capitalismo Contemporâneo

Carlos Henrique Lopes Rodrigues*

Resumo
O objetivo deste artigo é retomar os três momentos elencados por Karl Marx no processo de
acumulação primitiva, a saber: i) O Sistema Colonial; ii) O Sistema da Dívida Pública; e iii) O
Sistema Protecionista; que foram responsáveis pela aceleração do processo de separação entre
produção e meios de produção, no momento de gênese do modo de produção capitalista, em que
surge a mercadoria força de trabalho e os detentores dos meios privados de produção, em uma
relação de assalariamento. Pretende-se ainda demonstrar a atualidade desses “momentos” no
capitalismo contemporâneo.
Palavras-chave: acumulação primitiva, sistema colonial, dívida pública.

Abstract
The purpose of this article is to resume three moments listed by Karl Marx in the primitive
accumulation process, namely: i) the Colonial System; ii) the system of public debt; and iii) the
Protective System; that were responsible for the acceleration of the process of separation
between production and means of production, at the time of the genesis of the capitalist mode of
production, in which arises the commodity labor force and the holders of private means of
production, in a wage basis relationship. It is also intended to demonstrate the timeliness of these
"moments" in contemporary capitalism.
Key-words: primitive accumulation, colonial system, public debt

*
Doutorando em História Econômica na UNICAMP, Mestre em História Econômica pela UNICAMP, graduado em Ciências
Econômicas pela UNESP e Professor do Curso de Ciências Econômicas da UFVJM (Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri).

1
Introdução
A Assim Chamada Acumulação Primitiva marca a gênese do modo de produção
capitalista. É a partir desse momento que essa nova forma de organização da sociedade se revela
na distinção de duas classes, a saber: a classe burguesa e a classe proletária. Nas palavras de Karl
Marx (1984, p.262), “(...) a assim chamada acumulação primitiva é, portanto, nada mais do que o
processo histórico de separação entre produção e meio de produção. Ele aparece como
‘primitivo’ porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe
corresponde”.
É nessa esteira, que a classe capitalista concentra a propriedade privada dos meios de
produção e os trabalhadores ficam despossuídos de qualquer meio privado de produção. Se no
modo de produção feudal o servo tinha direito a trabalhar na terra do senhor feudal para produzir
o mínimo do que necessitava para sua sobrevivência ou trocar algum excedente pelo excedente
de outro produtor, isso agora não é mais possível. Nesse novo modo de produção, o trabalhador
perde completamente qualquer possibilidade de ofertar, no mercado, uma mercadoria que tenha
seu trabalho incorporado, pois, caso o faça, não irá ofertar a si próprio enquanto mercadoria força
de trabalho. De acordo de Marx (1983, p.139-140):

Para que, no entanto, o possuidor de dinheiro encontre à disposição no mercado a força de


trabalho como mercadoria, diversas condições precisam ser preenchidas (...). A força de trabalho
como mercadoria só pode aparecer no mercado à medida que e porque ela é oferecida à venda ou
é vendida como mercadoria por seu próprio possuidor, pela pessoa da qual ela é a força de
trabalho. Para que seu possuidor venda-a como mercadoria, ele deve poder dispor dela, ser,
portanto, livre proprietário de sua capacidade de trabalho, de sua pessoa. (...) O proprietário da
força de trabalho só a vende por determinado tempo, pois, se a vende em bloco, de uma vez por
todas, então ele vende a si mesmo, transforma-se de homem livre em escravo, de possuidor de
mercadoria em uma mercadoria (...).
A segunda condição essencial para que o possuidor de dinheiro encontre no mercado a força de
trabalho como mercadoria é que seu possuidor, ao invés de poder vender mercadorias em que seu
trabalho tenha se objetivado, precisa, muito mais, oferecer à venda como mercadoria sua própria
força de trabalho, que só existe em sua corporalidade viva.
Para que alguém venda mercadorias distintas de sua força de trabalho ele tem de possuir
naturalmente meios de produção, por exemplo, matérias-primas, instrumentos de trabalho etc. Ele
não pode fazer botas sem couro (...).
Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro precisa encontrar, portanto, o
trabalhador livre no mercado de mercadorias, livre no duplo sentido de que ele dispõe, como
pessoa livre, de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de que ele, por outro lado, não tem
outras mercadorias para vender, solto e solteiro, livre de todas as coisas necessárias à realização
de sua força de trabalho.

2
Temos, dessa forma, um movimento em que a terra passa a ser utilizada de maneira
capitalista, tendo em vista a reprodução ampliada do capital, o que se dá através de uma relação
de assalariamento com quem nela vai produzir. Não é mais o servo que em troca da utilização da
terra do senhor feudal proverá às demandas desse senhor. Vale lembrar que, tal relação fora
marcada por algumas obrigações como: trabalhar por alguns dias da semana no solo do senhor
feudal; dar-lhe uma parte de seu excedente; proteger a terra do senhor feudal em uma situação de
beligerância etc. No atual modo de produção, surge uma nova classe social, o proletariado. É este
quem ofertará aos proprietários privados dos meios de produção sua mercadoria força de
trabalho, numa relação de assalariamento. Para Marx (1984, p.262):

(...) esses recém-libertados só se tornam vendedores de si mesmos depois que todos os seus meios
de produção e todas as garantias de sua existência, oferecidas pelas velhas instituições feudais,
lhes foram roubadas. E a história dessa expropriação está inscrita nos anais da humanidade com
traços de sangue e fogo.

Essa transição foi extremamente traumática para o trabalhador, pois este teve que passar a
vender sua força de trabalho, como mercadoria, numa situação que lhe era totalmente diferente
do que estava acostumado. Diante desta conjuntura, ou trabalhava nas fábricas que estavam se
consolidando ou nas terras alheias numa relação de assalariamento. Portanto, cabia ao
trabalhador ofertar sua mercadoria ou morrer de fome, não lhe fora dada nenhuma outra opção.
Desse modo, o contingente de trabalhadores recém-libertados era absorvido pelos capitalistas,
em uma jornada de trabalho extremamente extensa e extenuante, a qual chegava a 18 horas
diárias, nesse processo produtivo mulheres e crianças eram incorporadas. Nas palavras de Hunt
(1981, p.86):

A extensa divisão do trabalho na fábrica tornou grande parte do trabalho tão rotineiro que
mulheres e crianças sem treinamento algum podiam trabalhar tão bem quanto os homens. Como
as mulheres e crianças podiam ser empregadas com salários muito mais baixos do que os dos
homens e como, em muitos casos, famílias inteiras tinham que trabalhar para ganhar o suficiente
para comer, as mulheres e as crianças eram muito requisitadas. Muitos donos de fábricas
preferiam as mulheres e as crianças, porque elas podiam ser reduzidas a um estado de obediência
passiva mais facilmente do que os homens.

Raros não eram os casos de crianças mutiladas nas rodas de tear das fábricas de tecidos
na Inglaterra. Para forçar as pessoas a trabalhar nas fábricas e nos campos uma série de leis foi

3
criada, a fim de garantir a força de trabalho necessária. A despeito disso, Marx (1984, p.275-277)
chamou a atenção para o modo com que as populações foram arrebatadas, mediante uma
“legislação sanguinária”:

(...) os que foram bruscamente arrancados de seu modo costumeiro de vida não conseguiam
enquadrar-se de maneira igualmente súbita na disciplina da nova condição. Eles se converteram
em massas de esmoleiros, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição e na maioria dos
casos por forças das circunstâncias.
Daí ter surgido em toda Europa Ocidental, no fim do século XV e durante todo o século XVI,
uma legislação sanguinária contra a vagabundagem.
(...) Assim, o povo do campo, tendo sua base fundiária expropriada à força e dela sendo expulso e
transformado em vagabundos, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa disciplina
necessária ao sistema de trabalho assalariado, por meio do açoite, do ferro em brasa e da tortura.

Em vista desta afirmação consideramos que essa foi a maneira que o capitalismo
encontrou para colocar os trabalhadores no regime de trabalho assalariado, para se adaptarem ao
modo de produção que se inaugurava e por ele serem explorados.
O Estado terá papel central nesse processo, não só no período da acumulação primitiva,
mas até os dias atuais, no que David Harvey (2003, p.121), passará a chamar de “acumulação por
espoliação” 1, nas palavras do autor:

Um exame mais detido da descrição que Marx faz da acumulação primitiva revela uma ampla
gama de processos. Estão aí a mercadificação e a privatização da terra e a expulsão violenta de
populações camponesas; a conversão de várias formas de direitos de propriedade privada; a
supressão dos direitos de propriedade (comum, coletiva, do Estado etc.) em direitos exclusivos de
propriedade privada; a supressão dos direitos dos camponeses às terras comuns [partilhadas]; a
mercadificação da força de trabalho e a supressão de formas alternativas (autóctones) de
produção e de consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais de apropriação de ativos
(inclusive de recursos naturais); a monetização da troca e a taxação, particularmente da terra; o
comércio de escravos; e a usura, a dívida nacional e em última análise o sistema de crédito como
meios radicais de acumulação primitiva. O Estado, com seu monopólio da violência e suas
definições da legalidade, tem papel crucial no apoio e na promoção desses processos, havendo
(...) consideráveis provas de que a transição para o desenvolvimento capitalista dependeu e
continua a depender de maneira vital do agir do Estado (...).
Todas as características da acumulação primitiva que Marx mencionou permanecem fortemente
presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias.

1
“(...) Como a acumulação por espoliação ajuda a resolver o problema da sobreacumulação? A sobreacumulação,
lembremos, é uma condição em que excedentes de capital (por vezes acompanhado de excedente de trabalho) estão
ociosos sem ter em vista escoadouros lucrativos. O termo-chave aqui é, no entanto, excedente de capital. O que a
acumulação por espoliação faz é liberar um conjunto de ativos (incluindo força de trabalho) a custo muito baixo (e,
em alguns casos, zero). O capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos em dar-lhes imediatamente um uso
lucrativo” (HARVEY, 2003, p.124).

4
Karl Marx distinguirá três momentos da acumulação primitiva, os quais compreendem: 1)
Sistema Colonial; 2) Sistema da Dívida Pública; e 3) Sistema Protecionista. Passamos agora a
analisar cada um desses momentos que foram imprescindíveis para a constituição e consolidação
do modo de produção capitalista.

i) O Sistema Colonial
No processo de acumulação primitiva de capital, o sistema colonial teve um papel
imperativo, já que possibilitou, além de acúmulo de riquezas nas metrópoles, a produção de
alimentos e matérias-primas com um custo baixo, devido à abundância de terras férteis e o alto
nível de exploração sobre o trabalho: inicialmente escravo e posteriormente trabalho livre; em
que os trabalhadores tinham seus salários muito baixos - caracterizando a superexploração 2 sobre
a mercadoria força de trabalho.
Vale ressaltar que o salário do trabalhador está relacionado à cesta de mercadorias
necessária para sua sobrevivência e reprodução, se esta diminuiu, diminui também seu salário e,
consequentemente, aumenta-se a extração de mais-valia.
Com a garantia de produção de alimentos nas colônias a um preço baixo, surge a
possibilidade de as metrópoles especializarem-se, cada vez mais, na produção manufatureira,
pois a produção de alimentos já estava garantida, no além-mar. Nas palavras do historiador Caio
Prado Jr (1997, p.31), eis o sentido da colonização:

No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o
aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o
mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em
proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical.

Esse caráter inicial da colonização brasileira terá reflexos no seu desenvolvimento. O


caráter exploratório dessa região, caracterizada como colônia de exploração diferencia-se

2
Para Marini (SADER, 2000, p.125-126) nos países da América Latina identificam-se três mecanismos que
caracterizam uma situação de superexploração do trabalhador: “a intensificação do trabalho, a prolongação da
jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário ao operário para repor sua força de trabalho”.
Nessa situação, “a característica essencial está dada pelo fato de que se nega ao trabalhador as condições necessárias
para repor o desgaste de sua força de trabalho: nos dois primeiros casos, porque ele é obrigado a um dispêndio da
força de trabalho superior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando-se assim seu esgotamento
prematuro; no último porque se retira dele inclusive a possibilidade de consumir o estritamente indispensável para
conservar sua força de trabalho em estado normal”.

5
significativamente da colonização ocorrida nas zonas temperadas da América, denominadas
colônias de povoamento.
No período colonial, era condição sine qua non para o desenvolvimento do capitalismo, o
desenvolvimento e controle do comércio, a fim de que a metrópole tivesse mais riquezas
acumuladas e, com isso, mais condições de disputar e conquistar novas colônias de outras
metrópoles. De acordo com Marx (1984, p.288), “ hoje em dia, a supremacia industrial traz consigo a
supremacia comercial. No período manufatureiro propriamente dito, é, ao contrário, a supremacia
comercial que dá o predomínio industrial. Daí o papel preponderante que o sistema colonial desempenha
então”.
Conceituava-se, nesta época, riqueza enquanto quantidade de metais precisos que cada
Nação possuía, nesse sentido, quanto maior o saldo da balança comercial, maior seria a riqueza
de um país. Corolariamente, era importante manter uma política protecionista em relação aos
concorrentes estrangeiros. Para robustecer a balança comercial da nação dominadora,
estabeleceu-se, de maneira unilateral, o Pacto Colonial ou Exclusivo Metropolitano, em que a
metrópole seria a única compradora dos produtos ofertados pela colônia, caracterizando-se uma
situação de monopsônio, de outro lado, a metrópole seria a única vendedora na qual a colônia
poderia adquirir suas mercadorias manufaturadas, estabelecendo-se um monopólio.
Nessa relação de Exclusivo Metropolitano, a metrópole conseguia um saldo significativo
em sua balança comercial, por meio da inequivalência das trocas, ou seja, comprar barato da
colônia produtos primários, que a metrópole não produzisse, e vender caro produtos que a
colônia necessitava. Para Fernando Novais (1989, p.59): “as colônias... deviam constituir em
fator essencial do desenvolvimento econômico da metrópole (...) o exclusivo metropolitano do
comércio colonial consiste, em suma, na reserva dos mercados das colônias para a metrópole,
isto é, para a burguesia comercial metropolitana”.
Dentro da lógica da inequivalência das trocas e do monopólio do mercado colonial
entende-se o tráfico negreiro. A proibição da escravização dos índios, apesar de ter ocorrido
numa proporção menor no Brasil, devia-se principalmente por dois motivos, a saber: primeiro,
devido à Reforma Protestante promovida por Martinho Lutero, em que a Igreja Católica perde
muitos cristãos e catequizar os indígenas significava aumentar seu rebanho; e, segundo, em
decorrência da escravização dos negros africanos, que significava enormes empreendimentos,

6
bastante rentáveis, inclusive com sociedades anônimas3, com uma taxa de lucro extraordinária,
que era remetida à metrópole.
Destarte, a escravização do índio constituía-se inviável, já que seu preço de venda não
seria muito elevado, por ser escravizado na própria colônia e, com isso, a lucratividade seria
baixa. Além do que, o lucro possivelmente ficaria na colônia, em desacordo com o estabelecido
no Pacto Colonial. Como afirma Fernando Novais (1989, p.105), “paradoxalmente, é a partir do
tráfico negreiro que se pode entender a escravidão africana colonial, e não o contrário”.
O tráfico negreiro era uma atividade extremamente rentável à metrópole que, dentro da
lógica da inequivalência das trocas, acelera a acumulação primitiva de capital e
consequentemente o desenvolvimento do modo de produção capitalista. Para Karl Marx (1984,
p.287): “o tesouro apresado fora da Europa diretamente por pilhagem, escravização e
assalariamento refluía à metrópole e transformava-se em capital”.

ii) O Sistema da Dívida Pública


A dívida pública permite a acumulação de capital para a burguesia através do
endividamento do Estado, além disso, uma classe de intermediários dessa dívida, os banqueiros,
consegue auferir grandes lucros, através dos juros pagos pelo governo. Nas palavras de Marx
(1984, p.288):

A dívida pública torna-se uma das mais energéticas alavancas da acumulação primitiva. Tal como
o toque de uma varinha mágica, ela dota o dinheiro improdutivo de força criadora e o transforma,
desse modo, em capital, sem que tenha necessidade para tanto de se expor ao esforço e perigo
inseparáveis da aplicação industrial e mesmo usurária. Os credores do Estado, na realidade, não
dão nada, pois a soma emprestada é convertida em títulos da dívida, facilmente transferíveis, que
continuam a funcionar em suas mãos como se fossem a mesma quantidade de dinheiro sonante
(...). A dívida do Estado fez prosperar as sociedades por ações, o comércio com títulos
negociáveis de toda espécie, a agiotagem, em uma palavra: o jogo da bolsa e a moderna
bancocracia.

No processo de Acumulação Primitiva, o capitalista recebe esse dinheiro e irá utilizá-lo


no processo produtivo, no sentido de lhe permitir uma maior exploração sobre a mercadoria
força de trabalho, pois lhe facilitará a aquisição de meios de produção e com isso acelerar a
“separação entre produção e meios de produção” (MARX, 1984, p.262).

3
Inicialmente as Sociedades Anônimas se formam no comércio e não na produção, em 1601 surge em Portugal a
Companhia do Comércio S/A.

7
Os bancos conseguirão aumentar seus lucros através da dívida pública, quanto mais o
Estado se endivida, maiores serão as taxas de juros pagas para quem adquire os títulos da dívida
pública. Para compensar a elevação de sua dívida, o Estado também tem que aumentar suas
receitas e esse aumento dar-se-á através, principalmente, da elevação da carga tributária, ou seja,
dos impostos.
Nesse processo, ocorre o que Karl Marx (1984, p.289) denomina de “regime fiscal
moderno, cujo eixo é constituído pelos impostos sobre os meios de subsistência mais necessários
(portanto, encarecendo-os)”. Por outras palavras, a maior arrecadação por parte do Estado,
devido ao aumento de sua dívida, dar-se-á através dos impostos indiretos que oneram de maneira
significativa a classe trabalhadora, redundando numa carga tributária regressiva.
Depreende-se assim, que se a dívida pública num primeiro momento ocorreu para
acelerar o desenvolvimento do modo de produção capitalista, hoje em dia, ela aumenta sua
vulnerabilidade.
A crise atual, que se manifestou de maneira mais intensa a partir de 2007, foi gestada
após a crise estrutural do capital da década de 1970 4 que, de acordo com Mandel (1990, p.9),
“entre 1974 e 1975, a economia capitalista internacional conheceu sua primeira recessão
generalizada desde a II Guerra Mundial, sendo a única, até então, a golpear simultaneamente
todas as grandes potências Imperialistas”.
Para compensar o que Marx (1988, p.154) chama de “Lei da Queda Tendencial da Taxa
de Lucro” no setor produtivo, houve, a partir da década de 1970, reformas estruturais conhecidas
como neoliberais, cujo objetivo era amenizar as perdas no setor produtivo e promover o
recrudescimento do capital fictício para compensá-las, iniciando um processo de
desregulamentação desse capital, rompendo com os acordos de 1944, conhecido como Bretton
Woods, que lhe impuseram um maior controle, devido à crise de 1929.
Todo esse processo irá desembocar naquilo que David Harvey (2003, p.122-123) chama
de acumulação por espoliação presente nos dias atuais e acentuado durante a crise de 1970, nas
palavras do autor:

4
“A acumulação por espoliação se tornou cada vez mais acentuada a partir de 1973, em parte como compensação
pelos problemas crônicos de sobreacumulação que surgiram no âmbito da reprodução expandida. O principal
veículo dessa mudança foi a financialização e a orquestração em larga medida sob a direção dos Estados Unidos, de
um sistema financeiro internacional capaz de desencadear de vez em quando surtos de brandos a violentos de
desvalorização e de acumulação por espoliação em certos setores ou mesmo territórios inteiros” (HARVEY, 2004,
p.129).

8
(...) A forte onda de financialização, domínio pelo capital financeiro, que se estabeleceu a partir
de 1973 foi em tudo espetacular por seu estilo especulativo e predatório.
Valorizações fraudulentas de ações, falsos esquemas de enriquecimento imediato, a destruição de
ativos mediante fusões e aquisições e a promoção de níveis de encargos de dívida que reduzem
populações inteiras, mesmo nos países capitalistas avançados, a prisioneiros da dívida, para não
dizer nada da fraude corporativa e do desvio de fundos (a dilapidação de recursos de fundos de
pensão e sua dizimação por colapsos de ações e corporações) decorrente de manipulações do
crédito e das ações – tudo isso são características centrais da face do capitalismo contemporâneo
(...). Mas temos que examinar sobretudo os ataques especulativos feitos por fundos derivativos e
outras grandes instituições do capital financeiro como a vanguarda da acumulação por espoliação
em épocas recentes.

Para elucidar o aumento desse capital, constata-se que “o valor dos ativos financeiros
mundiais (considerados aí ações e debêntures, títulos de dívida públicos e privados e aplicações
bancárias) cresceu cerca de 14 vezes entre 1980 e 2006, enquanto que o PIB mundial limitou-se
a crescer pouco menos que 5 vezes no mesmo período.” (PAULANI, 2011, p.66), ou seja, houve
descompasso entre a riqueza gerada pela produção e os valores do setor financeiro que “apenas”
podem se valorizar por meio da produção5.
O resultado que se tem é o aumento da dívida pública, encurtamento entre os períodos
das crises estruturais do capital, pois, estima-se que o dinheiro que circula na esfera financeira
seja 10 vezes superior ao PIB mundial, desta forma, torna-se necessário um ajustamento entre
esses valores, isto é, queima do capital superacumulado pelos capitalistas. Nesse sentido,
Chesnais (1992, p.21) adverte que “a autonomia do setor financeiro não pode ser senão relativa.
O capital que se valoriza na esfera financeira alimenta-se da riqueza gerada pelo investimento e
pela mobilização de uma força de trabalho com múltiplos níveis de qualificação”.

iii) O Sistema Protecionista

5
“O endividamento de governos, empresas não financeiras e famílias aumentou em US$ 30 trilhões globalmente
desde 2007, quando começou a crise econômica. O incremento representa cerca de 40% do PIB mundial. A
estimativa é do Banco Internacional de Compensações (BIS), banco central dos bancos centrais, que utiliza a cifra
para alertar para os riscos do descompasso entre o otimismo atual nos mercados financeiros e a persistente
debilidade da economia real”. Disponível em: https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/
2013/3/18/endividamento-global-aumenta-em-us-30-trilhoes-desde-2007.

9
Os países que desenvolveram suas indústrias o fizeram através de um intenso
protecionismo6, tanto os países de via clássica de desenvolvimento quanto os de capitalismo
tardio. Nas palavras de Marx (1984, p.279-280):

O sistema protecionista foi um meio artificial de fabricar fabricantes, de expropriar trabalhadores


independentes, de capitalizar os meios nacionais de produção e de subsistência, de encurtar
violentamente a transição do antigo modo de produção para o moderno. Os Estados europeus
disputam furiosamente entre si a patente desse invento, e, uma vez colocados a serviço dos
extratores de mais-valia, não se limitavam para esse fim a gravar seu próprio povo, indiretamente
por meio de prêmios e exportação etc. Nos países secundários dependentes, toda a indústria foi
violentamente extirpada, como, por exemplo, a manufatura de lã irlandesa, pela Inglaterra.

O desenvolvimento das indústrias era condição sine qua non para a consolidação do
modo de produção capitalista e o sistema protecionista foi utilizado de maneira intensa pelos
países.
Era notório entre os países de via capitalista que o país que desenvolvesse seu parque
industrial consolidar-se-ia enquanto dominante entre seus pares, com os quais mantinha relações
comercias. A tendência seria, então, desfrutar de saldos significativos em sua balança comercial
e, consequentemente, fortalecer-se cada vez mais.
Embora os países industrializados utilizem-se do protecionismo, suas pretensões
econômicas alinham-se com as teorias econômicas que defendem políticas liberais para o
desenvolvimento econômico de uma Nação, apesar de não a praticarem. Podemos exemplificar
esta questão com a Teoria das Vantagens Comparativas de David Ricardo 7, a qual defende que
cada país deva especializar-se naquilo que produz com um custo menor, respeitando suas
vantagens, sejam elas naturais ou artificiais. Caso incida a primeira vantagem, a tendência é que
o país mantenha-se agrário-exportador, já a segunda implica um país industrial; nesse processo,
nas trocas internacionais, o autor conclui que cada país beneficiar-se-á com o comércio
internacional.

6
O autor alemão Georg Friedrich List em seu livro Sistema Nacional de Economia Política. São Paulo: Abril
Cultural, 1983, demonstra como esses países utilizaram-se do protecionismo para desenvolver-se, do ponto de vista
capitalista. Para mais informações confira o artigo: RODRIGUES, C. H. L. Revisitando o Protecionismo de
Friedrich List. In: II Conferência Internacional de História Econômica, V Encontro de Pós-Graduação em História
Econômica. Brasília - UNB, 23 e 24 de setembro de 2010. Disponível em:
http://164.41.2.93/sandbox/ocs/index.php/vencontrohistoriaeconomica/Vencontro/paper/view/241.
7
Confira: RICARDO, D. Princípios de Economia Política e Tributação. São Paulo: Abril Cultural, 1982, Cap. VII,
Sobre o Comércio Exterior.

10
Como resultado dessa disseminação das concepções liberais de comércio exterior na
América Latina, surge, em 1948, a CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe), cujo objetivo principal era analisar os motivos da significativa pobreza desses países e
propor soluções. Um das primeiras constatações da Cepal é a de que esses países mantêm-se
essencialmente agrário-exportadores, o que compromete sua balança comercial em relação aos
países industrializados e mantêm baixo o nível de renda interno, da maior parte da população.
Para melhorar a situação desses países, faz-se necessário um investimento significativo
para o desenvolvimento industrial, mediante um planejamento econômico com medidas
protecionistas, como fizeram os países industrializados, para com isso evitar a Deterioração dos
Termos de Intercâmbio no Mercado Internacional8.
Contudo, os países da América Latina, dentro da lógica da reprodução ampliada do
capital, têm como um dos objetivos fornecer matérias-primas e alimentos para os países
desenvolvidos: matérias-primas para abastecer suas indústrias a um preço baixo e alimentos para
baixar o salário dos trabalhadores.
Enquanto nos países industrializados caracterizar-se-á a exploração sobre a mercadoria
força de trabalho, nos países da América Latina ocorrerá uma superexploração dos mesmos, em
função de sua especificidade, no caso do Brasil, antes da abolição, o Estado promoveu uma
entrada maciça de imigrantes, como mecanismo de abarrotar o mercado de trabalho, com
objetivo de diminuir o salário.
Dessa forma, consideramos que a possibilidade de haver uma industrialização autônoma
dos países da América Latina, que traga em seu bojo uma contribuição para solucionar os
problemas sociais e econômicos de tais países, torna-se impossível, visto que estão imersos na
lógica do modo de produção capitalista. A participação desses países no contexto internacional já
está estabelecida a priori e mesmo quando há uma industrialização, esta acirra seu caráter de
dependência e subordinação como ocorreu a partir da segunda metade do anos 50 do século
passado.

Considerações Finais

8
Para mais informações ver PREBISCH, R. (1949). O desenvolvimento econômico da América Latina e seus
principais problemas. In: BIELSCHOWSKY, R. (org.) Cinquenta anos de pensamento da Cepal. Rio de Janeiro:
Record, 2000, v.1. Sobre o debate clássico no Brasil, confira: RODRIGUES, C. H. L. A Questão do Protecionismo
no Debate entre Roberto Simonsen e Eugênio Gudin. Campinas: UNICAMP (Dissertação de Mestrado), 2005.
Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000375903.

11
Apesar de Karl Marx ter demonstrado os três momentos da acumulação primitiva que
aceleraram o processo de separação entre a produção e os meios de produção, na gênese do
modo de produção capitalista, depreende-se que esses expedientes não se encontram superados,
ou seja, que esse modo de produção apesar de se superar em cada crise não prescinde da
utilização de valorização do capital através de formas pretéritas. Nas palavras de Marx (1984,
p.290), “Sistema colonial, dívidas do Estado, peso dos impostos, proteção, guerras comerciais
etc., esses rebentos do período manufatureiro propriamente dito se agigantam durante a infância
da grande indústria”.
O sistema colonial que mantinha, numa relação formal, a dependência das colônias em
relação às metrópoles para o aumento da riqueza destas, após a independência das colônias,
continuou numa relação informal de dependência e subordinação, em outras palavras, não é
porque alcançou a independência que se tornou autônoma, pelo contrário, chegou até a acirrar,
em muitos casos, o processo de exploração. Assim sendo, mantém-se a necessidade de
exploração dos países centrais sobre os periféricos para a reprodução ampliada de seu capital.
A dívida pública que permite acumulação de capital extraordinária, por meio do
endividamento do Estado, continua tendo um papel central, principalmente após a crise da
década de 1970, esta foi uma saída para compensar a queda da taxa de lucro dos capitalistas no
setor produtivo.
Essa dívida carrega em si uma dialética, pois ao mesmo tempo que promove uma
expansão do capital fictício e muitos ganhos, gera também um processo de valorização desse
capital deslocada de sua base real de sustentação, que é a produção, e, consequentemente, acirra
as crises do capitalismo.
Para compensar o maior endividamento do Estado as receitas também têm de aumentar e
esse aumento é manifestado através da elevação da carga tributária, à qual incide,
essencialmente, sobre a classe trabalhadora, sem respaldo na melhoria da qualidade dos serviços
públicos, pelo contrário, mas prioritariamente para remunerar o próprio capital fictício9.
O sistema protecionista nunca deixou de ser utilizado pelos países centrais, para
desenvolverem suas indústrias, principalmente em momentos de crise, onde cada país

9
De acordo com Maria Lúcia Fatorelli, “a peça orçamentária de 2013 reserva 900 bilhões de reais (correspondente a
42% do Orçamento Geral da União) para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública, enquanto estão
previstos, por exemplo, 71,7 bilhões para educação, 87,7 bilhões para a saúde, ou 5 bilhões para a reforma agrária”.
Disponível em: http://www.brasildefato.com.br/node/10613.

12
desenvolvido tenta proteger seu parque industrial, dissonante do que ocorre nos países
periféricos.
Apesar de o neoliberalismo defender, entre outras coisas, um livre-comércio entre os
países, o liberalismo apenas é utilizado pelos países dependentes devido a sua situação de
subordinação, enquanto os demais países utilizam-se intensamente do protecionismo.
Dentro da lógica do modo de produção capitalista a tendência é cada vez mais acirrar o
processo de exploração sobre a classe trabalhadora10 para aumentar os ganhos da classe
capitalista, mesmo que para isso os recursos naturais, não renováveis, sejam utilizados
intensamente; que a classe trabalhadora ganhe um salário que impossibilite, inclusive, sua
reprodução, pois o exército industrial de reserva permite essa reposição sem maiores
dificuldades; e a utilização de formas pretéritas de exploração como é o caso do aumento
significativo da utilização de mão de obra escrava e infantil. Ou seja, não há limites para o
processo de valorização do capital. Com a instauração do modo de produção capitalista, temos o
empobrecimento relativo cada vez maior da classe trabalhadora. De acordo com José Paulo Netto
(2010, p.5):

Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a
capacidade social de produzir riquezas. Tanto mais a sociedade se revelava capaz de
progressivamente produzir mais bens e serviços, tanto mais aumentava o contingente dos seus
membros que, além de não terem acesso efetivo a tais bens e serviços, viam-se despossuídos até
das condições materiais de vida de que dispunham anteriormente.

10
“A pesquisadora Maria Aparecida de Moraes Silva, professora livre docente da Unesp (Universidade Estadual
Paulista), diz que a busca por maior produtividade obriga os cortadores de cana a colher até 15 toneladas por dia.
Esse esforço físico encurta o ciclo de trabalho na atividade. ‘Nas atuais condições, passaram a ter uma vida útil de
trabalho inferior à do período da escravidão, diz”. (Folha de São Paulo, 29/04/2007). Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2904200702.htm.

13
Referências Bibliográficas

CHESNAIS, François. A globalização e o curso do capitalismo de fim-de-século. In: Economia e


Sociedade. Campinas: UNICAMP (IE), n.1, ago.1995.
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 15. Ed. São Paulo: Editora Nacional, 1977.
HARVEY, D. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2004.
HUNT, E. K. História do pensamento econômico. 7. Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1981.
MANDEL, Ernest. A Crise do Capital: os fatos e sua interpretação marxista. São Paulo: Ensaio;
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990.
MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. 3. Ed. São Paulo: Nova Cultural, livro 3,
tomo I, 1988.
MARX, Karl, O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, livro 1, tomo II,
1984.
MARX, Karl, O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, livro 1, tomo I,
1983.
NETTO, José Paulo. Uma face contemporânea da barbárie. In: III Encontro Internacional
“Civilização ou Barbárie”. Serpa, 30-31 de outubro/1º de novembro de 2010.
NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1888). São
Paulo: Hucitec, 1989.
PAULANI, Leda. A Autonomização das Formas Verdadeiramente Sociais na Teoria de Marx:
Comentários sobre o Dinheiro no Capitalismo Contemporâneo. In: Revista EconomiA. Brasília
(DF), v.12, n.1, p.49–70, jan/abr 2011.
PRADO Jr, Caio. A Formação do Brasil Contemporâneo. 23. Ed. São Paulo: Brasiliense, 1997.
SADER, Emir. Dialética da Dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini.
Petrópolis, RJ: Vozes; Buenos Aires: CLACSO, 2000.

14

Você também pode gostar