Você está na página 1de 7

Bhuta shuddhi dos elementos

Bhuta shuddhi, a purificação dos elementos, é um dos procedimentos do Yoga tântrico.


Bhuta significa 'elemento', embora também possa ser traduzido como ser, existência,
produzir ou formar. Shuddhi é purificação ou limpeza. O bhuta shuddhi possui uma
dupla finalidade: não somente purifica o corpo físico denso, mas também acelera o
despertar da kundalini. Os cinco elementos que constituem o corpo denso são éter, ar,
fogo, água e terra. Não devem interpretar-se em sentido literal: designam os estados
etéreo, gasoso, ígneo, aquoso e sólido da matéria, estando ligados do mesmo modo
aos cinco primeiros chakras, como veremos mais adiante. Não está demais relembrar
aqui que o homem é uma unidade psicofísica, e que, agindo sobre a fisiologia,
estaremos agindo também no psiquismo.
O bhuta shuddhi é um conjunto de técnicas que potencializam o efeito produzido
pelos outros exercícios. O propósito do bhuta shuddhi é duplo: por um lado, limpam-se
as nadis, as artérias do corpo energético pelas quais circula a bioenergia. Por outro,
bombeia-se prana por elas. Para tanto, dois pré-requisitos são necessários: intensificar
os cuidados com o corpo (alimentação, hábitos saudáveis) e limpá-lo das toxinas
segregadas pelo organismo em resposta às emoções negativas.
O bhuta shuddhi fortalece e purifica as nadis, outorgando ao praticante o nadi shuddhi,
a limpeza do corpo sutil, aumentando a saúde geral, ativando o fogo interno e
facilitando o controle da respiração. Inclui técnicas de kriya, asana, yoganidra,
pranayama, mantra, samyama, tapas e mauna. Dessas técnicas, as mais simples são as
mais fortes: por isso o Yoga é tão poderoso. O sadhana diário é importantíssimo para
desenvolver disciplina e força de vontade. Os kriyas, as técnicas de limpeza interna,
estão indissoluvelmente ligados ao bhuta shuddhi, sendo a sua prática condição sine
qua non para atingir o estado de purificação.
A prática de asana também pode incluir-se no bhuta shuddhi: por um lado, facilita o
despertar da kundalini, tendo um efeito bem forte sobre o corpo energético,
massageando e estimulando chakras e nadis. Por outro, atua sobre as glândulas
endócrinas, o sistema circulatório e os órgãos internos, ao mesmo tempo em que
fortalecem a musculatura e flexibilizam a coluna. Não esqueça que, para o Yoga, não
existe separação entre os corpos físico, sutil, emocional e mental.
A reprogramação mental e emocional do yoganidra pode ser considerada um processo
de limpeza psíquica: nele transcendemos o estado mundano da consciência, ascendendo
ao turiyavashtha, o quarto estado, situado além da vigília, o sono e o sonho. A posição
utilizada é o shavasana, deitado no chão, da qual cada variação possui efeitos
diferentes. Na posição decúbito dorsal, o indivíduo aceita e enfrenta seus desafios,
deitar decúbito frontal sugere proteção, enquanto que a posição fetal, de lado,
implica retorno à situação primordial do nascimento.
Em relação ao pranayama, existem quatro respiratórios que podem usar-se com
finalidades específicas de purificação. Eles são: kapalabhati, bhastrika, antar
kumbhaka pranayama e nadi shodhana.
Samyama, a técnica tríplice de concentração (dharana), meditação (dhyana) e mega-
consciência (samadhi) é o objetivo do Yoga, pois é durante o samyama que acontece o
despertar da energia ígnea, kundalini. Para fazê-lo com sucesso e obter resultados a
curto prazo, é importante que o organismo já esteja no processo de purificação do bhuta
shuddhi.
Tapas(1) é ascese, disciplina, auto-superação ou esforço sobre si próprio. Consiste em
transcender pela força de vontade as limitações humanas naturais, fazendo jejum,
mauna (jejum verbal) ou enfrentando certas provações que o próprio praticante se
impõe, mas que não são necessariamente fisiológicas. É uma das práticas mais
arcaicas do Yoga, documentada no ig Veda (x:136), o texto mais antigo do
hinduísmo, onde, mais de 6000 anos atrás, um hino nos dá a primeira descrição de
ascetas yogis. Esses ascetas, chamados keshin, ou 'de cabelos longos' estão associados a
Rudra-Shiva:
"O keshin possui a chama,
o keshin possui a seiva vital,
o keshin possui os mundos,
e todo o céu que pode ver-se.
O keshin é a luz. (...)
Elevados pelo tapas,
cavalgamos o vento.
Apenas nossos corpos são visíveis
para vocês, ó mortais!
Viaja pelos ares o asceta,
refletindo acerca de tudo..."
O 'vôo' aqui descrito é um dos poderes (siddhi) que despertam através da prática de
tapas, que é uma das armas mais importantes no processo de descondicionamento e
aniquilação do samskara.
Existem na Índia ascetas (sadhus) que se submetem a práticas extremas de tapas, como
o urdhvabahu (que consiste em manter o braço direito elevado durante doze anos); o
pañchagni ('cinco fogos': consiste em meditar durante oito anos entre quatro fogueiras,
sendo o quinto fogo o Sol, mantendo no lugar uma sensação térmica superior aos 60o
C); ekapada (ficar parado sobre uma perna só durante doze anos); e outras, não menos
impressionantes. Claro que não é a nossa intenção fazer esse tipo de procedimento. Fica
registrado aqui a título de breve esboço de um dos aspectos do rico folclore do Yoga,
mas existem outras formas de fazer tapas, muito mais sutis porém não menos eficientes.
Porém, assim como há poderes a descobrir-se no tapas, também há o perigo do exagero:
'a liberação não se consegue apenas untando-se o corpo com cinzas, alimentando-se
com casca de árvores e água, expondo-se ao frio e ao calor e fazendo coisas do estilo.
Os burros e outros animais vivem completamente nus: acaso são yogis por isso? Não;
por tanto, obtenha o verdadeiro conhecimento e evite o falatório desnecessário'. (2)
'Uma linguagem que não fira, verídica, amigável e benéfica, o estudo regular das
escrituras, tal é o tapas da palavra. A serenidade e clareza de espírito, a doçura, o
silêncio, o autodomínio, a total purificação do caráter, tal é o tapas consciente.' (3)
As práticas de tapas mais freqüentes e recomendáveis incluem jejum, mauna e
treinamento do autocontrole em situações nas quais você considere que pode ou deve
superar-se.
Mauna é o jejum verbal ou abstinência da palavra, que consiste em cultivar o silêncio
em suas mais variadas formas. Não é apenas abster-se de falar, mas também de
comunicar-se por gestos, fechando-se às influências do mundo exterior, experiência
aliás bem interessante para se fazer durante 24 ou 48 horas.
Cada técnica trabalha sobre uma área definida do corpo, não apenas purificando-o por
fora, mas também ? e principalmente ? por dentro, promovendo a limpeza total do
organismo, indispensável para o progresso na prática. Esse estado de purificação
permitirá que os fluxos prânicos circulem livremente: 'Quando o sistema das nadis é
purificado, o yogi torna-se capaz de conservar o prana. Entretanto, o pranayama deve
realizar-se com sattvika buddhi (consciência clara), a fim de expulsar os sedimentos da
sushumna nadi.' (4)
Aspectos práticos do bhuta shuddhi
Fazer bhuta shuddhi não é obsessionar-nos com a perfeição fisiológica ou pessoal, mas
esforçar-nos para que a perfeição flua através dos nossos atos, mantendo sempre uma
atitude positiva e aberta, evitando fechar-nos em fórmulas rígidas. O importante é
possuir mais disposição interior para viver e trabalhar, ser mais conscientes e superar-
nos, mas sem que isso se transforme numa compulsão. A cada dia oportunidades nos são
oferecidas para aprender a superar-nos: não as deixemos passar.
Ao mesmo tempo, lembremos de não confundir atitude positiva com virtudes positivas.
Você pode manter uma disposição positiva, sem necessariamente ser inofensivo,
bonzinho ou indulgente demais. Em determinadas circunstâncias, uma atitude firme
acaba sendo mais sadia ou rendendo mais frutos que o excesso de bondade.
Propomo-lhe aqui três pequenas práticas de bhuta shuddhi que podem ser feitas em todo
ou em parte, ao acordar, ao deitar e ao longo do seu dia. Você não empregará ao todo
mais de 20 minutos para fazê-las, mas sentirá imediatamente seus efeitos sobre o seu
dia-a-dia: mais disposição, mais energia, mais saúde, melhora no sono, no astral e no
humor.

Rotina ao acordar
Esta pequena rotina pode ser feita ao acordar. Não nos levará mais de 10 minutos,
podendo incluir algumas das seguintes sugestões:

 Espreguiçar-se e alongar-se bastante antes de sair da cama. Repare que os gatos,


mestres na arte do alongamento, jamais saem andando imediatamente depois de
acordar. Sem pressa, dão uma bela esticada de braços, pernas e espinha.

 Fazer uma pequena meditação matinal, mesmo que seja de alguns poucos
minutos. Em caso de falta de tempo, é melhor meditar pouco do que deixar
passar esse momento em branco.

 Tomar uma ducha fria ou banho alternado. O banho alternado consiste em tomar
uma ducha na qual intercala-se um minuto de água fria, um minuto de água bem
quente, um de fria, um de quente, alternando assim seis ou sete vezes,
começando e terminando com água fria.

 Executar alguns ciclos de kapalabhati, a respiração do sopro lento.

 Defecar sentado de cócoras sobre o vaso sanitário.

 Fazer uddiyana bandha antes e depois de defecar.

 Em caso de constipação intestinal, beber 2 ou 3 copos de água e fazer algumas


torções para ativar o trânsito intestinal.

 Semanalmente, fazer neti ou dhauti kriya, lavagem das narinas ou do aparelho


digestivo, de acordo com as necessidades do próprio corpo.

Rotina para facilitar a jornada de trabalho


 Manter o bom astral, o bom humor e uma atitude positiva nas relações com
todas as pessoas do nosso convívio: o trabalho precisa ser prazeroso e realizador.
Nesse sentido, cultivar o sorriso também ajuda.

 Ser prestativo, evitando postergar qualquer tarefa.

 Cultivar a atenção de forma a transformar tudo o que fizermos em exercício de


concentração, realizando as tarefas muito conscientemente e da melhor maneira
possível.

 Manter constantemente a consciência no fluxo do ar, utilizando a respiração


completa com ritmo ou outros respiratórios discretos.

 Evitar a dispersão e gastos inúteis de energia planejando bem as tarefas antes de


executá-las, evitando saturar-nos com uma atividade só.

 Quando for preciso aguardar em qualquer situação, fazer mentalização.

 Almoçar da forma mais sadia e frugal possível, evitando comer demasiado para
não ficar com sono à tarde.

 Permanecer atentos aos sinais que o corpo nos envia, utilizando seus recursos da
forma mais sábia.

 Quando tivermos que sair, fazer pranayama ao andar.

 Prestar atenção à coluna vertebral, mantendo-a sempre ereta, tanto ao


permanecer em pé quanto sentado.

 Não deixar passar a hora de ir ao toalete.

Rotina para antes de dormir


Esta rotina de 10 minutos pode incluir as seguintes técnicas:

 A quantidade ideal de sono não deve ultrapassar as sete horas.

 Dormir em cama inclinada, elevando levemente (de 10 a 20 cm) os pés


posteriores da cama de forma que a cabeça fique abaixo do nível das pernas,
para favorecer a circulação sangüínea na parte superior do tronco. A cama
inclinada está contra-indicada para pessoas com hipertensão ou problemas
cardíacos.

 Tomar um banho bem quente, para relaxar e descarregar-se do dia.

 Fazer nadi shodhana, respiração alternada em paschimottanasana, flexão


sentado, e depois dolasana (o movimento de balanço sobre as costas,
massageando, relaxando e vitalizando a coluna), e concluir com uma invertida
sobre os ombros ou a cabeça.
 Não esquecer da meditação final, mesmo que seja curta.

 Fazer yoganidra com mentalização, encerrando-o antes de adormecer.

 Dormir em uddhara shavasana, de bruços, para descansar melhor.

 Deitar antes da meia-noite. Evitar dormir com mãos e/ou pés frios.

Bhuta shuddhi: prática para sublimar todas as emoções


Somos o que pensamos:
'Tudo o que somos é o resultado do que pensamos, é baseado em nossos pensamentos, é
feito de nossos pensamentos. Se um homem fala ou age com um mau pensamento, o
sofrimento o persegue, como a roda da carroça persegue o casco do cavalo que a puxa,
se um homem fala ou age com um pensamento puro, a felicidade o persegue como sua
sombra que nunca o abandona.' Dhammapada

 Pranayama: respirações completa, acelerada e alternada.

 Respiração completa com ritmo em sukha paschimottanasana, flexão fácil


sentado. Para iniciantes, no ritmo 1:2:1:*. Para praticantes experientes, 1:4:2:1.

 Em ardha paschimottanasana, flexão sentado com as mãos nos tornozelos,


fazer 300 contrações abdominais a fim de agir na localização das emoções na
região epigástrica e no manipura chakra.

 Cultivar os yamas: não violência, veracidade, não roubo, não desvirtuamento da


sexualidade e não possessividade.

Bhuta Shuddhi, a purificação dos elementos

Georg Feuerstein

Naquele conhecidíssimo conto de fadas, antes que o príncipe pudesse beijar a princesa
adormecida, ele teve de combater dragões e abrir caminho até o castelo. Do mesmo
modo, antes que o sagrado matrimônio de Shiva e Shakti possa acontecer no corpo-
mente do ser humano, o yogin tem de remover obstáculos de todo tipo. Por isso, o
caminho de realização (sadhana) é muitas vezes concebido como um caminho de
purificação (shodhana). Com efeito, o próprio processo de ascensão da kundalini é
compreendido como uma purificação progressiva dos elementos (bhuta) que compõem
o corpo ? a terra, a água, o fogo, o ar e o éter. Essa purificação é chamada de bhuta
shuddhi.

À medida que a kundalini é conduzida para cima ao longo do canal axial (sushumna
nadi), ela aos poucos 'dissolve' o elemento dominante de cada região somática, ou
chakra. Assim, quando chega por fim ao sexto chakra, ao ajna, a kundalini já dissolveu
os cinco elementos: terra, água, fogo, ar e éter. O que isso significa na prática é que a
retirada da força vital do corpo gera um estado de frio e insensibilidade no tronco e nos
membros. Quando a kundalini sobe mais e chega ao topo da cabeça, ao sahasrara
chakra, provoca a dissolução temporária da mente (manas) no estado de êxtase 'sem
forma', ou nirvikalpa samadhi, marcado pela cessação completa da consciência
individuada que os yogins têm do ambiente à sua volta e inclusive do próprio corpo. A
consciência de sua identidade repousa então na Identidade Absoluta do Si Mesmo
transcendente, que é indescritivelmente feliz.

Num nível inferior, bhuta shuddhi é um ritual que se cumpre como prática preliminar à
adoração da divindade ou das divindades escolhidas, no contexto do estilo de vida
tântrico. É a dissolução simbólica dos elementos do corpo. Esse procedimento, descrito
no Mahanirvana Tantra (5.93 et seq.), envolve a visualização em ordem inversa do
processo de criação dos elementos. Assim, o yogin imagina o elemento mais baixo, a
terra, ligada ao chakra da base da coluna, dissolvendo-se no elemento água do segundo
chakra; imagina a água dissolvendo-se no elemento fogo no chakra do umbigo, o fogo
dissolvendo-se no elemento ar no lótus do coração, o ar dissolvendo-se no éter na
garganta e o éter dissolvendo-se no espaço infinito da Consciência no chakra coronário.
Nesse ponto, o corpo e a mente do praticante estariam perfeitamente purificados.

A esse ritual deve seguir-se uma série de outras práticas pelas quais o corpo é aos
poucos convertido num templo ou num monte sagrado prontos para receber o grande
Ser sob a forma da divindade escolhida (ishta devatta) pela pessoa. Assim, através da
prática de 'infusão de vida' (jiva nyasa), os yogins assimilam a força vital da divindade
por eles escolhida (ishta). Isso se faz pela transmissão de poder a certas partes do corpo
através do toque; essas partes são preenchidas com a vida do Deus ou da Deusa
prediletos. Outra forma de 'infusão', 'instalação' ou 'colocação' (nyasa) é a matrika
nyasa, através da qual os cinqüenta sons sagrados do alfabeto sânscrito são colocados
no corpo do yogin. As 'matrizes' ou 'mãezinhas' (matrika), como se chamam os sons
alfabéticos do sânscrito, são concebidas como filhas do som primordial (shabda) do
Absoluto. Imagina-se que as partes do corpo da divindade escolhidas são feitas das
diversas letras do alfabeto, que por sua vez são visualizadas nas regiões correspondentes
do corpo do yogin.

Entre os ritos do mesmo tipo temos a 'instalação dos videntes' (rishi nyasa), a 'instalação
dos seis membros' (shad anga nyasa), que se faz colocando-se as mãos sobre seis
diferentes partes do corpo e transmitindo-lhes poder, e a 'instalação das mãos' (kara
nyasa), que é o mesmo tipo de exercício feito somente nos dedos e palmas das mãos.
Nos períodos que medeiam entre as práticas dos diversos ritos encaixam-se práticas
complexas de visualização (chamadas dhyana), geralmente da divindade e do seu
paraíso celestial. Tudo isso se resume em energias sutis captadas pelo adepto que se
identifica com a divindade da sua eleição. Cada divindade em si representa uma
qualidade energética particular. Essa prática tântrica é associada a muitas recitações de
mantras, normas de respiração e concentração intensa. Já falei dos mantras no Capítulo
2 de A Tradição do Yoga, e são eles também o principal instrumento do praticante do
Tantra.

Você também pode gostar