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O trauma do amor

por Contardo Calligaris *

publicado em 7/5/2008.

Todo amor busca compensar um desastre amoroso passado; somos feridos


antes da batalha

NESTES DIAS, reencontrei Gérard Pommier, um colega e amigo que não via há
quase 15 anos. Ele está de passagem pelo Brasil, palestrando.

Num fim de tarde, sentados na minha cozinha, colocamos a conversa em dia:


filhos, trabalho e, claro, divórcios, separações e novos amores.

No capítulo "divórcios e separações", prevaleceu o tema (tragicômico) das


indenizações financeiras. Como era de se esperar numa conversa entre
homens, constatamos a curiosa contradição entre a reivindicação feminina de
autonomia e, por outro lado, o fato de que muitas mulheres, ao se
separarem, exigem uma reparação monetária.
Por estarmos ambos sóbrios, não discutimos o fundamento das pensões
alimentícias para as crianças nem o da retribuição pelos anos em que uma
mulher pode ter renunciado à sua vida profissional para se dedicar ao lar.
Apenas estranhávamos o tipo de demanda raivosa que dá a impressão de
pedir indenização pelo amor perdido.

Nos homens como nas mulheres, os amores que acabam deixam a sensação
de um dano quase físico, material ("retiraram uma parte de mim") - um dano,
portanto, que poderia ser compensado. Deve ser por isso que tanto os
homens quanto as mulheres, às vezes, "curam" as dores de uma separação
com aquisições extravagantes. "Ela me deixou? Compro uma moto."

Mas as mulheres, freqüentemente, preferem que a reparação do dano seja o


ônus do ex-parceiro. Mesmo quando a iniciativa da separação foi da própria
mulher (ou compartilhada por ela) e não houve "infidelidade" do lado do
homem, as mulheres tendem a viver a separação como uma traição, como
uma crueldade que lhes foi feita, uma sacanagem.

Há como explicar essa diferença, mas isso, hoje, não vem ao caso. O fato é
que a conversa com Pommier foi interrompida porque eu fui assistir ao filme
de Wong Kar-wai, "Um Beijo Roubado", que acaba de estrear. Pommier, que
já tinha visto o filme na França, prometeu que ele tinha a maior relação com
nossa conversa daquela noite.
De fato, o filme de Kar-wai é uma esplêndida elegia sobre o trauma amoroso.
Os quatro personagens principais são todos inválidos da guerra das paixões.
Ficam num canto lambendo suas feridas ou saem pelo mundo afora para
esquecê-las ou cicatrizá-las, mas, de qualquer forma, para eles, um novo
amor é a tentativa de compensar um desastre passado, que os deixou sem
chaves para as portas da vida.

Para um psicanalista, é um prato cheio: confirma-se, indiretamente, a idéia de


que nos apaixonamos pelos outros porque não nos foi permitido ficar com a
mãe e ou com o pai. Todo amor corrigiria uma grande decepção amorosa,
forçada e originária, todo amor seria um paliativo contra as dores da renúncia
a nossas paixões edipianas. Ou seja, atrás de nossa vida amorosa, sempre há
um dano inicial. "Será que alguém paga um dia?", diriam as mulheres
evocadas na conversa com Pommier.

Tudo bem, mas o complexo de Édipo, que se tornou sabedoria psicológica


comum, não deixa de ser um mistério. Por que seríamos saudosos de uma
única relação que nos foi proibida para que todas as outras fossem
permitidas? Por que seríamos para sempre queixosos de uma única perda
que nos libertou e nos soltou pelo mundo?
Mais misterioso: é raro que a lembrança de nossos primeiros afetos amorosos
(com a mãe, especialmente) seja a de um idílio; em geral, ela vem junto com
a queixa de termos sido, de uma maneira ou de outra, preteridos ou mesmo
traídos. Talvez essa lembrança queixosa seja influenciada pelo que vem
depois: a gente veria nossa primeira infância pelo prisma das dores da
autonomia, do crescimento e da separação.

Mas talvez haja algo mais, algo que nos torna feridos antes da batalha,
queixosos de ter sofrido um dano antes de qualquer amor, inclusive antes
daquela primeira relação, miticamente feliz, com a mãe. Talvez a sensação de
que fomos traídos, e não nos foi dado o que queríamos e esperávamos
anteceda o amor e suas frustrações. Talvez todos os amores, inclusive o
edipiano, sejam apenas compensações frustrantes por um dano que, aliás,
inevitavelmente, eles renovam. Mas de que dano estou falando?

De qual sensação originária de que o mundo sempre nos priva porque nunca
responde à altura de nossos pedidos?

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