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1967 Essas duas suspeitas, que se vêem aparecer já nos gregos, não
desapareceram e ainda são contemporâneas, já que voltamos a
acreditar, precisamente, desde o século XIX, que os gestos m udos,
as doenças, qualquer tumulto à nossa volta tam bém pode falar; e
Nietzsche, Freud, Marx mais do que nunca estamos à escuta de toda essa linguagem possí
vel, tentando surpreender por baixo das palavras um discurso que
seria mais essencial.
Creio que cada cultura, quero dizer, cada forma cultural n a civi
lização ocidental, teve seu sistem a de interpretação, suas técnicas,
“Nietzsche, Freud, Marx", Cahiers d e Royaumont, t. VI, Paris, Ed. de Minuit, 1967,
Nietzsche, ps. 183-200. (Colôquio de Royaumont, julho de 1964.) seus métodos, suas m aneiras próprias de supor que a linguagem
quer dizer outra coisa do que ela diz, e de supor que há linguagem
para além da própria linguagem. Parece, portanto, que haveria
uma em preitada a ser inaugurada p ara estabelecer o sistem a ou o
Quando esse projeto de “m esa redonda” me foi proposto, p are quadro, como se dizia no século XVII, de todos esses sistem as de
ceu-me muito interessante, mas, evidentemente, bem espinhoso. interpretação.
Sugiro um viés: alguns tem as relativos às técnicas de interpreta Para com preender que sistem a de interpretação o século XIX
ção em Marx, Nietzsche e Freud. fundou e, conseqüentemente, de que sistem a de interpretação nós,
Na realidade, por trás desses temas, há um sonho, que seria o de ainda hoje, fazemos parte, parece-me que seria necessário retom ar
poder fazer, um dia, um a espécie de Corpus geral, de Enciclopédia um a referência remota, um tipo de técnica, tal como pôde existir,
de todas as técnicas de interpretação que pudem os conhecer dos por exemplo, no século XVI. Nesta época, o que dava lugar à inter
gramáticos gregos aos nossos dias. Acredito que, até o presente, pretação, simultaneamente seu sítio geral e a unidade m ínim a que
poucos capítulos desse grande corpus de todas as técnicas de inter a interpretação tinha a tratar, era a sem elhança. Lá onde as coisas
pretação foram redigidos. se assemelhavam, lá onde isso se parecia, alguma coisa queria ser
Parece-me que seria possível dizer o seguinte, como introdução dita e podia ser decifrada; sabe-se bem o im portante papel que de
geral à idéia de um a história das técnicas de interpretação: a lin sem penharam , na cosmologia, na botânica, na zoologia, na filoso
guagem, em todo caso, a linguagem nas culturas indo-européias, fia do século XVI, a semelhança e todas as noções que giram em
sempre fez nascer dois tipos de suspeitas: torno dela como satélites. Na verdade, aos nossos olhos de hom ens
- inicialmente, a suspeita de que a linguagem não diz exatamente do século XX, toda essa rede de similitudes é sofrivelmente confusa
o que ela diz. O sentido que se apreende, e que é im ediatam ente e em baralhada. De fato, no século XVI, esse corpus da sem elhança
manifesto, é talvez, na realidade, apenas um sentido menor, que era perfeitamente organizado. Havia pelo menos cinco noções total
protege, restringe e, apesar de tudo, transm ite um outro sentido, mente definidas:
sendo este, por sua vez, o sentido mais forte e o sentido “por baixo”. - a noção de conveniência, a convenentia, que é ajustam ento
E isso que os gregos chamavam de allegoria e hyponoia. (por exemplo, da alm a ao corpo, ou da série animal à vegetal);
- por outro lado, a linguagem faz nascer esta outra suspeita: que, - a noção de sym p a th eia , a simpatia, que é a identidade dos aci
de qualquer maneira, ela ultrapassa sua form a propriam ente ver dentes nas distintas substâncias;
bal, que há certamente no m undo outras coisas que falam e não são - a noção de em ulatio, que é o mais curioso paralelism o dos
linguagem. Afinal, é possível que a natureza, o m ar, o sussu rro das atributos nas substâncias ou em seres distintos, de tal m an eira
árvores, os animais, os rostos, as m áscaras, as facas cruzadas, que os atributos são como o reflexo uns dos outros em u m a su b s
tudo isso fale; talvez haja linguagem se articulando de um a m anei tância e na outra. (Assim, Porta explica que o rosto hum ano é,
ra que não seria verbal. Isso seria, se vocês querem , muito grossei com as setes partes que ele distingue, a emulação do céu com seus
ramente, o sem ainon dos gregos. sete planetas.);
42 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Nietzsche, Freud. Marx 43
- a noção de signatura, a assinatura, que é, dentre as proprieda com técnicas interpretativas. E o efeito de choque, a espécie de feri
des visíveis de um indivíduo, a imagem de um a propriedade invisí da provocada no pensam ento ocidental por essas obras vem prova
vel e escondida; velmente do fato de elas reconstituírem aos nossos olhos alguma
- e de resto, certamente, a noção de analogia, que é a identidade coisa que, inclusive, o próprio Marx chamava de "hieróglifos". Isso
das relações entre duas ou mais substâncias distintas. nos colocou em um a postura desconfortável, já que essas técnicas
Nesta época, a teoria do signo e as técnicas de interpretação se de interpretação nos implicam, visto que nós mesmos, intérpretes,
baseavam em um a definição perfeitamente clara de todos os tipos somos levados a nos interpretar por essas técnicas. É com essas
possíveis de semelhança, e elas fundavam dois tipos de conheci técnicas de interpretação que, em compensação, devemos in terro
mento completamente distintos: a cognitio, que era a passagem, de gar esses intérpretes que foram Freud, Nietzsche e Marx, em bora
qualquer forma lateral, de um a semelhança à outra; e a divinatio, sejamos remetidos perpetuam ente a um perpétuo jogo de espe
que era o conhecimento em profundidade, indo de um a sem elhan lhos.
ça superficial a outra mais profunda. Todas essas sem elhanças Freud fala, em algum lugar, que há três grandes feridas narcí-
manifestam o consensus do m undo que as funda; elas se opõem ao sicas na cultura ocidental; a ferida imposta por Copérnico; aquela
sim ulacrum , a m á semelhança, que repousa na dissensão entre feita por Darwin, quando ele descobriu que o Homem descendia do
Deus e o Diabo. macaco; e a ferida feita por Freud, já que ele próprio, por su a vez,
descobriu que a consciência repousava na inconsciência5. Eu me
*
pergunto se não seria possível dizer que Freud, Nietzsche e Marx,
nos envolvendo em um a tarefa de interpretação que sem pre se re
Se essas técnicas de interpretação do século XVI foram deixadas
flete sobre si mesma, constituíram à nossa volta, e p ara nós, esses
em suspenso pela evolução do pensam ento ocidental nos séculos
espelhos, de onde nos são enviadas as imagens, cujas feridas ines
XVII e XVIII, se a crítica baconiana, a crítica cartesiana da seme
gotáveis formam nosso narcisism o atual. Em todo caso - e é sobre
lhança desem penharam certamente um grande papel p ara colo- isso que eu gostaria de dar algumas sugestões - não me parece que,
cá-las entre parênteses, o século XIX e, muito singularmente, Marx, de qualquer forma, Marx, Nietzsche e Freud tenham m ultiplicado
Nietzsche e Freud nos põem diante de um a nova possibilidade de os signos no m undo ocidental. Eles não deram um sentido novo a
interpretações; eles fundaram novamente a possibilidade de um a coisas que não tinham sentido. Na realidade, eles m udaram a n atu
hermenêutica. reza do signo e modificaram a m aneira pela qual o signo em geral
O primeiro livro do Capital1, textos como O nascim ento d a tra
podia ser interpretado.
gédia2 e Genealogia da moral3, a Traumdeutung* nos confrontam
A prim eira questão que eu gostaria de colocar é a seguinte: Marx,
Freud e Nietzsche modificaram profundamente o espaço de distri
1. Marx (K.), D as Kapital. Kritik d er politischen Oekonomie, livro I: D er P r o d u k buição no qual os signos podem ser signos?
tionsprozess d es Kapitals, Hamburgo, O. Meissner, 1867 (Le capital. Critique de Na época que tomei como ponto de referência, no século XVI, os
l'économie politique, livro I: Le d é velo p p em en t d e la production capitaliste, trad. -signos se distribuíam de um a m aneira homogênea em um espaço
J. Roy, revista por M. Rubel, in Oeuvres, t. I: Économie, Paris, Gallimard, col. que era ele próprio homogêneo, e em todas as direções. Os signos
"Bibliothèque de la Pléiade”, 1965, ps. 630-690).
da terra rem etiam ao céu, m as também ao m undo subterrâneo,
2. Nietzsche (F.), Die Geburt der Tragödie. Oder: Griechenthum und P essim ism u s,
Leipzig, E. W. Fritzsch, 1872 (La naissan ce d e la tragédie. Ou hellénité et
p ess im ism e , trad. P. Lacoue-Labarthe, in Oeuvres philosophiques com plètes,
Paris. Gallimard, t. I, 1977, ps. 23-156). 5. Alusão à tríplice humilhação infligida ao narcisismo do Homem por Nicolau
3. Nietzsche (F.), Zur Genealogie der Moral, Leipzig, C. G. Naumann, 1887 (La Copérnico ("humilhação cosmológica”), Charles Darwin ("humilhação biológica”) e
généalogie d e la morale, trad. I. Hildenbrand e J. Gratien, in Oeuvres philoso Sigmund Freud ("humilhação psicológica") da qual fala Freud em Eine Schwie-
phiques com plètes, Paris, Gallimard, t. VII, 1971, ps. 213-347). rtgkeit d er P sychoanalyse, 1917 (Une difficulté de la psych an alyse, trad. M.
4. Freud (S.), Die Traumdeutung, Viena, Franz Deuticke, 1900 (L ’interprétation Bonaparte e E. Marty, in E ssais de p sy c h a n a ly se appliquée, Paris, Gallimard, col.
d e s rêves, trad. D. Berger, Paris, PUF, 1967). "Les essais”, n- 61, 1933, ps. 141-147).
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eles remetiam do homem ao animal, do animal à planta, e vice- brum a p ara m ostrar de fato que não há m onstros nem enigmas
versa. A partir do século XIX - ou seja, desde Freud, Marx e Nie- profundos, porque tudo o que existe de profundidade na concep
tzsche - os signos foram escalonados em um espaço muito mais di ção que a burguesia tem da moeda, do capital, do valor etc. não
ferenciado, segundo um a dimensão que se poderia cham ar de a da passa, na verdade, de platitude.
profundidade, desde que não a entendam os como interioridade, E, certamente, seria necessário cham ar o espaço de interpreta
mas, ao contrário, como exterioridade. ção que Freud constituiu, não somente na famosa topologia da
Penso, em particular, nesse longo debate que Nietzsche não ces Consciência e do Inconsciente, m as tam bém nas regras que ele for
sou de m anter sobre a profundidade. Há em Nietzsche um a crítica mulou relativas à atenção do psicanalista e à decifração pelo analis
da profundidade ideal, da profundidade de consciência, que ele de ta do que se diz durante o desenrolar da “cadeia” falada. Seria ne
nuncia como um a invenção dos filósofos; essa profundidade seria cessário relem brar a espacialidade, no final das contas m uito m a
busca pura e interior da verdade. Nietzsche m ostra como ela im pli terial, à qual Freud atribuiu tanta importância, e que instala o do
ca a resignação, a hipocrisia, a máscara; em bora o intérprete deva, ente sob o olhar inclinado do psicanalista.
ao percorrer os signos para denunciá-los, descer até o fim da linha *
vertical e m ostrar que essa profundidade da interioridade é, na ver
dade, outra coisa do que ela diz. É preciso, conseqüentemente, que
O segundo tema que gostaria de lhes propor, e que inclusive está
o intérprete desça, que seja, como ele próprio diz, “o bom escava
um pouco ligado a esse, seria indicar, a partir desses três hom ens
dor dos subterrâneos”6.
de que falamos há pouco, que a interpretação finalmente tornou-se
Mas, na realidade, apenas se pode percorrer essa linha descen
uma tarefa infinita.
dente quando se interpreta para restituir a exterioridade cintilante Na verdade, ela já o era no século XVI, mas os signos rem etiam
que estava recoberta e soterrada. Porque, se o próprio intérprete uns aos outros simplesmente porque a semelhança só pode ser li
deve ir até o fundo como um escavador, o movimento de interpreta mitada. A partir do século XIX, os signos se encadeiam em um a
ção é, ao contrário, o de um desaprum o, de um desequilíbrio cada rede inesgotável, ela também infinita, não porque repousem em
vez m aior, que deixa sempre, acima dele, a profundidade revelar-se uma semelhança sem limite, mas porque há um a hiância e abertu
de um a m aneira cada vez mais visível; a profundidade é então resti ra irredutíveis.
tuída como segredo absolutamente superficial, de tal m aneira que O inacabado da interpretação, o fato de que ela seja sem pre reta
o vôo da águia, a ascensão da montanha, toda essa verticalidade lhada, e perm aneça em suspenso no limite dela m esm a, é encon
tão im portante em Zaratustra é, no sentido estrito, a reviravolta da trado, acredito, de um a m aneira bastante análoga em Marx, Nie
profundidade, a descoberta de que a profundidade não passava de tzsche e Freud, sob a form a da recusa do começo. Recusa d a “ro-
um jogo e de um a dobra da superfície. À m edida que, sob o olhar, o binsonade", dizia Marx; distinção, tão im portante em Nietzsche,
m undo se torna m ais profundo, nos apercebem os de que tudo o entre o começo e a origem; e caráter sempre interminável do pro
que exerceu a profundidade do homem não passava de um a b rin cesso regressivo e analítico em Freud. É sobretudo em Nietzsche e
cadeira de criança. em Freud, inclusive, e em menor grau em Marx, que se vê delinear
Essa espacialidade, esse jogo de Nietzsche com a profundidade, essa experiência, que acredito ser tão im portante p ara a herm enêu
eu me pergunto se eles não podem ser com parados ao jogo, apa tica moderna, de que, quanto mais longe vamos na interpretação,
rentemente diferente, que Marx fez com a platitude. O conceito de ao mesmo tempo mais nos aproximamos de um a região absoluta
platitude é muito importante em Marx; no começo do Capital, ele mente perigosa, na qual a interpretação vai encontrar não só seu
explica como, diferentemente de Perseu, ele deve mergulhar na ponto de retrocesso, m as onde ela própria vai desaparecer como
interpretação, ocasionando talvez o desaparecim ento do próprio
intérprete. A existência sempre aproximativa do ponto absoluto da
6. (N.A.) Nietzsche (F.), Morgenrothe, Leipzig, C. G. Naumann, 1880. Aurore. interpretação seria, simultaneamente, a aproximação de um ponto
P ensées sur les préju gés moraux, § 446: “Hiérarchie". (Trad. Julien Hervier,
Oeuvres philosophiques complètes, Paris, Gallimard, t. IV, 1980. p. 2 3 8 (N.E.).) de ruptura.
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Em Freud, sabe-se claramente como é feita progressivamente a Imigo de toda a sua vida, não sem angústia. E ssa experiência da
descoberta desse caráter estruturalm ente aberto da interpretação, loucura seria a sanção de um movimento de interpretação, que se
estruturalm ente vazio. Ela foi feita inicialmente de um a m aneira .iproxima infinitamente do seu centro, e que desmorona, calcinada.
muito alusiva, muito velada a si m esm a na Traum deutung, quan
do Freud analisa seus próprios sonhos, e invoca razões de pudor
ou de não-divulgação de um segredo pessoal p ara se interrom per. Esse aspecto essencial de inconclusão da interpretação, creio
Na análise de Dora, vemos aparecer essa idéia de que a interpre <|uc está ligado a dois outros princípios, tam bém fundam entais, e
tação deve deter-se, não pode ir até o fim por causa de alguma coisa (|uc constituiriam com os dois primeiros, de que acabo de falar, os
que será chamada, alguns anos mais tarde, de transferência. E de postulados da herm enêutica moderna. Inicialmente este: se a inter
pois se afirma, ao longo de todo o estudo da transferência, o inter pretação nunca pode se concluir, é muito simplesmente porque
minável da análise, no caráter infinito e infinitamente problemático nada há a interpretar. Nada há de absolutamente prim eiro a inter
da relação do analisando com o analista, relação que é evidente pretar, pois no fundo tudo já é interpretação; cada signo é nele
mente constituinte p ara a psicanálise, e que abre o espaço no qual mesmo não a coisa que se oferece à interpretação, m as interpreta-
ela não cessa de se desdobrar, sem nunca poder term inar. çao de outros signos.
Em Nietzsche, também, é evidente que a interpretação é sem pre Nunca há, se vocês querem, um interpretandum que não seja já
inacabada. O que é, para ele, a filosofia, senão um a espécie de filo Interpretans, em bora seja estabelecida, na interpretação, um a re
logia sem pre em suspenso, um a filologia sem término, desenvolvi lação tanto de violência como de elucidação. De fato, a in terpreta
da sem pre mais adiante, um a filologia que nunca seria absoluta ção não esclarece um a m atéria a interpretar, que se ofereceria a ela
mente fixada? Por quê? Porque, como ele o diz em A lém do bem e passivamente; ela pode apenas apoderar-se, e violentamente, de
do mal, “m orrer pelo conhecimento absoluto bem poderia fazer uma interpretação já ali, que ela deve subverter, revirar, qu ebrar a
parte do fundamento do ser”7. E, no entanto, ele m ostrou em Ecce marteladas.
hom o8 o quanto ele estava próximo desse conhecimento absoluto Vemos isso já em Marx, que não interpreta a história das rela
que faz parte do fundamento do Ser. Da m esm a forma, durante o ções de produção, mas um a relação já se oferecendo como inter
outono de 1888, em Turim. pretação, já que ela se apresenta como natureza. Da m esm a forma,
Se, na correspondência de Freud, deciframos suas perpétuas 1'reud não interpreta signos, m as interpretações. O que F reud des
cobre, de fato, sob os sintom as? Ele não descobre, como se diz, os
preocupações desde o momento em que ele descobriu a psicanáli
"traum atism os”; ele revela os fa n ta sm a s* , com sua carga de an-
se, podemos nos perguntar se a experiência de Freud não é, no fun
mistia, ou seja, um núcleo que já é ele próprio, em seu próprio ser,
do, bem semelhante à de Nietzsche. O que está em questão no pon
uma interpretação. A anorexia, por exemplo, não remete ao desm a
to de rup tu ra da interpretação, nessa convergência da interpreta
me', como o significante rem eteria ao significado, m as a anorexia
ção na direção de um ponto que a to rna impossível, poderia ser como signo, sintoma a interpretar, remete aos fantasm as do seio
certamente alguma coisa como a experiência da loucura. mau materno, que já é em si mesmo um a interpretação, que já é em
Experiência contra a qual Nietzsche se debateu e pela qual ele sl mesmo um corpo falante. Eis por que Freud só tem a interpretar
era fascinado; experiência contra a qual o próprio F reud lutou ao na linguagem de seus pacientes o que eles lhe oferecem como sinto
mas; sua interpretação é a interpretação de um a interpretação, nos
7. (N A.) Nietzsche (F.), J en se its von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie d er lermos em que essa interpretação é dada. Sabe-se claramente que
Zukunft, Leipzig, C. G. Naumann, 1886. (Par-delà le bien e t le mal. Prélude d ’une 1'tcud inventou o superego no dia em que um paciente lhe disse:
philosophie de l'avenir, trad. C. Helm, in Oeuvres philosophiques com plètes, Sinto um cachorro em cima de mim.”
Paris. Gallimard, t. VII, 1971, § 39, p. 56 (N.E.).)
8. Nietzsche (F ), Ecce homo. Wie m an wird, w a s m a n ist, Leipzig, C. G. Naumann,
•|N R.) Preferimos a tradução d e fa n ta s m e por fantasma em português, com o se fez
1889 (Ecce homo. C om m en t on devien t ce que l’on est, trad. J.-C. Hémery, in
m i espanhol, de acordo com o significante da língua francesa.
Oeuvres philosophiques com plètes. Paris, Gallimard, t. VIII, 1974, ps. 237-341).
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Da m esm a forma, Nietzsche se apodera de interpretações que já fd /'". É assim que funcionam os sintom as p ara Freud. E, em Nie
se apoderaram um as das outras. Não há para Nietzsche um signifi tzsche, as palavras, a justiça, as classificações binárias do Bem e
cado original. As próprias palavras não passam de interpretações; do Mal, conseqüentemente os signos, são m áscaras. O signo, ad
ao longo de sua história, elas interpretam antes de serem signos, e quirindo essa nova função de recobrimento da interpretação, per-
só significam finalmente porque são apenas interpretações essen i< seu ser simples de significante que possuía ainda n a época do
ciais. E o que testem unha a famosa etimologia de agathos9. É tam >nascimento, sua densidade própria vem como que se abrir, e po-
bém o que diz Nietzsche, quando ele fala que as palavras sempre ilnn então se precipitar na abertura todos os conceitos negativos
foram inventadas pelas classes superiores; elas não indicam um i|\ic até agora tinham permanecido alheios à teoria do signo. E sta
significado, impõem um a interpretação. Conseqüentemente, não é mhecia apenas o momento transparente e quase negativo do véu.
porque há signos prim eiros e enigmáticos que estam os agora dedi ,ora poderá organizar-se no interior do signo todo um jogo de
cados à tarefa de interpretar, mas, sim, porque h á interpretações, nu eitos negativos, de contradições, de oposições, enfim, o con-
porque não cessa de haver, debaixo de tudo o que se fala, a grande lunto desse jogo de forças reativas que Deleuze tão bem analisou
tram a das interpretações violentas. É por essa razão que há signos, n u seu livro sobre Nietzsche.
signos que nos prescrevem a interpretação de sua interpretação, Repor a dialética sobre seus pés”, se essa expressão deve ter um
que nos prescrevem revirá-los como signos. Neste sentido, pode-se •»nítido, não seria justamente ter recolocado na densidade do signo,
dizer que a allegoria e a hyponoia são, no fundo e antes dela, lin nesse espaço aberto, sem fim, vazio, nesse espaço sem conteúdo real
guagem, não aquilo que deslizou a posteriori sob as palavras p ara nem reconciliação, todo esse jogo da negatividade que a dialética ti
nha finalmente neutralizado dando-lhe um sentido positivo?
deslocá-las e fazê-las vibrar, m as aquilo que fez nascer as palavras,
que as faz cintilar em um clarão que nunca se fixa. Eis por que tam *
bém o intérprete, p ara Nietzsche, é o “verídico”; ele é o “verdadei
ro , não porque se apodera de um a verdade adorm ecida p ara p ro Knfim, última característica da hermenêutica: a interpretação se
feri-la, m as porque ele pronuncia a interpretação que toda verdade <tmlronta com a obrigação de interpretar a si m esm a infinitamen-
tem por função velar. Talvez essa prim azia da interpretação em re lr. de sempre se retomar. Donde duas conseqüências im portantes.
lação aos signos seja o que há de mais decisivo na herm enêutica A prim eira é que a interpretação será sempre, desde então, inter
moderna. pretação através do “quem ?”; não se interpreta o que há no signifi-
A idéia de que a interpretação precede o signo implica que o sig r.ulo, mas, no fundo, quem colocou a interpretação. O princípio da
no não seja um ser simples e generoso, como era o caso ainda no Interpretação nada mais é do que o intérprete. E talvez seja esse o
século XVI, em que a pletora dos signos, o fato de as coisas se asse sentido que Nietzsche deu à palavra “psicologia”. A segunda conse
m elharem provavam simplesmente a benevolência de Deus, e ape quência é que a interpretação tem sem pre que interpretar a si mes-
nas afastavam por um véu transparente o signo do significado. Ao iii.i, e não pode deixar de retornar a si mesma. Em oposição ao
contrário, desde o século XIX, a partir de Freud, Marx e Nietzsche, tempo dos signos, que é um tempo do fracasso, e em oposição ao
parece-me que o signo vai se tornar malévolo; quero dizer que há tempo da dialética, que, apesar de tudo, é linear, há um tem po da
no signo um a m aneira ambígua e um pouco equivocada de m alque interpretação, que é circular. Esse tempo é, certamente, obrigado a
rer e de “malevolência”. E isso na m edida em que o signo já é um a p.issar novamente por onde ele já passou, o que faz com que final
interpretação que não se dá como tal. Os signos são interpretações mente o único perigo que a interpretação realmente corra, m as é
que tentam se justificar, e não o inverso. um perigo supremo, sejam paradoxalmente os signos que a fazem
Assim funciona a moeda, tal como a vemos definida na Critique
10 Marx (K.), Zur Kritik derpolitischen Oekonomie, Berlim, Franz Dancker, 1859
de 1'économie politique, e sobretudo no prim eiro livro do Capi- |< ï ltl<iaede l’économie politique. trad. M. RubeleL. Évrard, Ià seção: Le capital en
i/rnciul. Capítulo II: “La monnaie”, in Oeuvres, t. I: Économie, Paris, Gallimard,
9. (N.A.) Cf. La généalogie d e la morale, op. cit., Ia dissertação, §§ 4 e 5. «ni bibliothèque de la Pléiade”, 1965, ps. 317-452).
50 Michel Foucault - Ditos e Escritos 1967 - Nietzsche. Freud. Marx 51
deslizar. A m orte da interpretação é acreditar que h á signos, signos Uma coisa é certa: a im portância do signo, pelo menos um a certa
que existem primeiramente, originalmente, realmente, como m ar mudança na im portância e no crédito que se dava ao signo, p ro d u
cas coerentes, pertinentes e sistemáticas. ziu-se no final do século XVIII ou no início do XIX, por razões que
A vida da interpretação, pelo contrário, é acreditar que só há in são muito num erosas. Por exemplo, a descoberta da filologia, no
terpretações. Parece-me que é preciso com preender um a coisa que sentido clássico do termo, a organização da rede das línguas in-
muitos de nossos contemporâneos esquecem, que a herm enêutica clo-européias, o fato de os métodos de classificação terem perdido
e a semiologia são dois inimigos implacáveis. Uma herm enêutica, sua utilidade, tudo isso provavelmente reorganizou inteiram ente
que se restringe de fato a um a semiologia, acredita na existência nosso m undo cultural dos signos. Coisas como a filosofia da n a tu
absoluta dos signos: ela abandona a violência, o inacabado, a infi- reza, entendida em um sentido muito amplo, não somente em He
nitude das interpretações, p ara fazer reinar o terro r do índice e gel, m as em todos os contemporâneos alemães de Hegel, são, sem
suspeitar da linguagem. Reconhecemos aqui o m arxism o, após dúvida, a prova dessa alteração no regime dos signos produzida na
Marx. Ao contrário, um a herm enêutica que se envolve consigo m es cultura naquele momento.
m a entra no domínio das linguagens que não cessam de im plicar a Tenho a im pressão de que seria, digamos, mais fecundo, atual
si mesmas, essa região interm ediária entre a loucura e a p u ra lin mente, em relação ao tipo de problema que nos colocamos, ver na
guagem. É ali que reconhecemos Nietzsche. idéia da mistificação da consciência um tem a nascido talvez m ais
da modificação do regime fundam ental dos signos do que encon
trar aí, ao contrário, a origem da preocupação em interpretar.
Discussão Sr. Taubes: A análise de M. Foucault não é incompleta? Ele não
levou em conta as técnicas de exegese religiosa, que tiveram u m p a
Sr. Boehm: Você m ostrou claram ente que, em Nietzsche, a in pel decisivo. E ele não seguiu a articulação histórica verdadeira.
terpretação nunca cessa e que ela constituía a p ró p ria tram a da Apesar do que M. Foucault acaba de dizer, parece-me que a inter
realidade. Inclusive, p ara Nietzsche, interpretar o m undo e m u pretação no século XIX começa com Hegel.
dá-lo não são duas coisas diferentes. Mas isso vale p a ra Marx? Em Sr. Foucault: Não me referi à interpretação religiosa que, de
um texto célebre, ele opõe m udança do m undo e interpretação do fato, teve extrema importância, porque, na muito resum ida história
m undo... que tracei, localizei-me do lado dos signos, e não do lado do senti
Sr. Foucau.lt: Eu esperava que essa frase de Marx me fosse con do. Quanto ao corte do século XIX, podem os atribuí-lo a Hegel.
traposta. De qualquer forma, se você se reportar à econom ia políti Mas, na história dos signos, tomados em sua mais am pla extensão,
ca, observará que Marx a trata sem pre como um a m aneira de inter a descoberta das línguas indo-européias, o desaparecim ento da
pretar. O texto sobre a interpretação diz respeito à filosofia e ao fim gramática geral, a substituição do conceito de organismo pelo con
da filosofia. Mas será que a economia política, tal com o Marx a con ceito de caráter não são menos “im portantes” do que a filosofia he-
cebe, seria capaz de constituir um a interpretação que não fosse Hrliana. É preciso não confundir história da filosofia e arqueologia
condenável, na m edida em que ela pudesse levar em conta a m u do pensamento.
dança do m undo e, de alguma forma, a interiorizasse? Sr. Vattimo: Se eu o compreendi bem, Marx deveria ser classifi
Sr. B o eh m : O utra questão: o essencial, p ara Marx, Nietzsche e cado entre os pensadores que, como Nietzsche, descobrem o inter
Freud não está na idéia de um a automistificação d a consciência? minável da interpretação. Estou inteiramente de acordo com você
Não se trata aí dessa nova idéia, que não surge antes do século XIX nu que se refere a Nietzsche. Mas, em relação a Marx, não há neces
e que encontraria sua fonte em Hegel? sariamente um ponto de chegada? O que quer dizer a infra-
Sr. Foucault: Foi negligência m inha não dizer q u e essa não era «strutura senão alguma coisa que deve ser considerada como
precisamente a questão que eu queria colocar. Eu q u is tratar da in t>;»se?
terpretação como tal. Por que somos levados a interp retar? Será Sr. Foucault: Em relação a Marx, quase não desenvolvi m inha
por influência de Hegel? idéia; temo mesmo não poder dem onstrá-la ainda. Mas tom em o
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Dezoito brumário11, por exemplo: Marx jam ais apresenta sua in Sr. Foucault: Oh, eu não diria que ele sucumbiu! É claro que
terpretação como interpretação final. Ele sabe claramente, e o diz, rxiste, nas técnicas de interpretação de Nietzsche, alguma coisa
que se poderia interpretar em um nível mais profundo, ou em um <|ue é radicalmente diferente, e que faz com que não se possa, se vo
nível mais geral, e que não há explicação que seja rasteira. cês querem, inscrevê-lo nos corpos constituídos que representam ,
Sr. Wahl: Creio existir um a guerra entre Nietzsche e Marx, e en atualmente, por um lado, os com unistas e, por outro, os p sicana
tre Nietzsche e Freud, apesar de haverem analogias. Se Marx tem listas. Os nietzschianos não têm, do ponto de vista do que eles in
razão, Nietzsche deve ser interpretado como um fenômeno da b u r terpretam...
guesia de sua época. Se Freud tem razão, seria preciso analisar o Sr. Wahl: Há nietzschianos? Duvidava-se disso essa manhã!
inconsciente de Nietzsche. Vejo então um a espécie de guerra entre Sr. Baroni: Gostaria de lhe perguntar se você concorda que entre
Nietzsche e os outros dois. Nietzsche, Freud e Marx o paralelo poderia ser o seguinte: Nie
Não é verdade que temos interpretações em dem asia? Estam os tzsche, em su a interpretação, busca analisar os bons sentim entos e
obsedados pela interpretação”. Sem dúvida, é preciso interpretar inostrar o que eles escondem na realidade (tal como na G enealogia
sempre. Mas há sempre o que interpretar? E me pergunto ainda: da moral}. Freud, na psicanálise, vai desvelar o que é o conteúdo
quem interpreta? E, por fim: estamos sendo enganados, m as por latente: e, aqui também, a interpretação será bastante catastrófica
quem? Há um mistificador, m as quem é ele? Há sem pre um a plu para os bons sentimentos. Enfim, Marx atacará a boa consciência
ralidade de interpretações: Marx, Freud, Nietzsche, e tam bém Go- da burguesia, e m ostrará o que existe no fundo. Em bora as três in
bineau... Há o marxismo, a psicanálise, há ainda, digamos, as in terpretações pareçam estar dom inadas pela idéia de que há signos
terpretações raciais... a traduzir, dos quais é preciso descobrir a significação, m esm o se
Sr. Foucault: Creio que o problem a da pluralidade das interpre essa tradução não é simples e deva ser feita em etapas, talvez infini
tações, da guerra das interpretações se tornou estruturalm ente tamente.
possível pela própria definição da interpretação como aquilo que Mas existe, me parece, um outro tipo de interpretação em p s i
não tem fim, sem que haja um ponto absoluto a partir do qual ela cologia, que é totalm ente oposta, e que nos rem ete ao século XVI
se julga e se decide. De m aneira que isso, o próprio fato de que este do qual você falou. É a de Jung, que denunciava, precisam ente,
jam os dedicados a ser interpretados no momento mesm o em que no tipo de interpretação freudiana, o veneno depreciativo. J u n g
interpretam os, todo intérprete deve sabê-lo. E ssa pletora de inter opõe o sím bolo ao signo, o signo sendo o que deve ser tra d u zid o
pretações é, certamente, um traço que caracteriza profundam ente rm seu conteúdo latente, enquanto o sím bolo fala por si m esm o.
a cultura ocidental atualmente. Sc eu disse h á pouco que me parecia que Nietzsche estava do
Sr. Wahl: Há, de qualquer forma, p essoas que não são in tér lado de F reud e de Marx, creio de fato que, em relação a esse p o n
pretes. to, Nietzsche pode tam bém ser aproxim ado de Jung. T anto p a ra
Sr. Foucault: Neste momento, elas repetem, repetem a pró pria Nietzsche, como p a ra Jung, h á u m a oposição entre o “eu” e o “si”,
linguagem. rn tre a p equena e a grande razão. Nietzsche é um in térp rete ex-
Sr. Wahl: Por quê? Por que dizer isso? Pode-se, naturalimente, in li i inamente agudo, e mesm o cruel, m as há nele um a certa m anei
terpretar Claudel de múltiplas maneiras, à maneira marxista, ao mo ra de se colocar à escuta da “grande razão ”, o que o aprox im a de
do freudiano, mas, apesar de tudo, o importante é a obra de Claudel. .Juivg.
Quanto à obra de Nietzsche, é mais difícil dizer. Em relação às inter Sr. Foucault: Sem dúvida, você tem razão.
pretações marxistas e freudianas, ele arrisca sucumbir... Srta. Ramnoux: Gostaria de retornar a um ponto: por que você
nao falou do papel da exegese religiosa? Parece-me que talvez não
k c possa neglicenciar a questão das traduções, porque, no fundo,
11 Marx (K.), Der A chtzehnte Brumaire d e s Louis Bonaparte, in Die Revolution. todo tradutor da Bíblia considera que ele diz o sentido de Deus, e
Eine Zeitschrift in zw a n g lo se n Hejten, Ed. J. Weydemeyer, Erstes Heft, Nova que, conseqüentemente, deve colocar ali um a consciência infinita.
Iorque, 1852 (Le dix-huit brum aire d e Louis B onaparte, Paris, Éditions Sociales, Kinalmente, as traduções evoluem com o tempo, e alguma coisa se
1962).
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revela através dessa evolução das traduções. É um a questão muito Sr. D em on bynes: Sobre Nietzsche, você disse que a experiência
com plicada... da loucura era o ponto mais próximo do conhecimento absoluto.
Antes de ouvi-lo, eu também refletia sobre as possíveis relações Eu lhe pergunto em que medida, do seu ponto de vista, Nietzsche
entre Nietzsche e Freud. Se tom arm os o índice das obras comple leve a experiência da loucura? Se você tiver tempo, naturalm ente,
tas de Freud, e como suplemento o livro de Jones, encontrarem os seria muito interessante colocar a m esm a questão a respeito de ou
no final das contas muito pouca coisa. De repente, eu me disse: o tros grandes homens, sejam eles poetas ou escritores, tom o Höl
problem a é inverso. Por que Freud se cala sobre Nietzsche? derlin, Nerval ou Maupassant, ou mesmo músicos, como S chu
Ora, em relação a isso, há dois pontos. O prim eiro é que, em mann, Henri Duparc ou Maurice Ravel. Mas fiquemos no plano de
1908, creio, os alunos de Freud, ou seja, Rank e Adler, tom aram Nietzsche. S erá que compreendi bem? Pois você falou claram ente
como tem a de um de seus pequenos congressos as sem elhanças ou dessa experiência da loucura. Foi isso, na verdade, o que você quis
as analogias entre as teses de Nietzsche (particularmente na Genea dizer?
logia da moral) e as teses de Freud. Freud perm itiu que o fizessem, Sr. Foucault: Sim.
m as guardou extrema reserva, e creio que o que ele disse neste m o Sr. D emonbynes: Você não quis dizer “consciência" ou “p re s
mento foi mais ou m enos o seguinte: Nietzsche traz m uitas idéias ciência”, ou pressentim ento da loucura? Você acredita verdadeira
ao mesm o tempo. mente que possa existir... que grandes hom ens como Nietzsche
O outro ponto é que, desde 1910, Freud inicia seu contato com possam ter tido “a experiência da loucura”?
Lou Salomé; sem dúvida, ele fez um esboço ou um a análise didáti Sr. Foucault: Eu lhe respondo: sim, sim.
ca de Lou Salom é12. Conseqüentemente, devia haver, através de Sr. Demonbynes: Não compreendo o que isso quer dizer, p o r
Lou Salomé, um a espécie de relação médica entre Freud e Nie que eu não sou um grande homem.
tzsche. Ora, ele não podia falar sobre isso. Mas o certo é somente Sr. Foucault: Eu não disse isso.
Sr. Kelkel: Minha questão será muito breve: ela se relaciona, no
que tudo o que Lou Salomé publicou depois faz parte, no fundo, de
fundo, com o que você chamou de “técnicas de interpretação”, nas
su a análise interminável. Seria preciso lê-lo nessa perspectiva. A
quais você parece ver, eu não diria um substituto, m as em todo
seguir, encontram os o livro de Freud, Moise et le m ono th éism e13,
caso um sucessor, um a sucessão possível à filosofia. Você concor
em que há um a espécie de diálogo de Freud com o Nietzsche de Ge
da que essas técnicas de interpretação do m undo são antes de tudo
nealogia da moral - veja, eu apenas lhe subm eto os problemas;
técnicas de “terapêutica”, técnicas de “cura”, no sentido m ais am
você poderia acrescentar alguma coisa?
plo do termo: da sociedade em Marx, do indivíduo em F reud e da
Sr. Foucault: Não, não sei rigorosamente nada mais. Fiquei real
humanidade em Nietzsche?
mente surpreso com o espantoso silêncio, com exceção de u m a ou Sr. Foucault: Penso de fato que o sentido da interpretação, no
duas frases, de Freud em relação a Nietzsche, m esm o em sua cor século XIX, certamente se aproximou do que você concebe por te ra
respondência. É realmente muito enigmático. A explicação' pela pêutica. No século XVI, a interpretação talvez encontrasse seu sen
análise de Lou Salomé, o fato de ele não poder falar disso... tido do lado da revelação, da salvação. Eu lhe citarei sim plesm ente
Srta. Ramnoux: Ele não queria dizer mais nada sobre isso... uma frase de um historiador chamado Garcia: “Em nossos dias -
diz ele, em 1860 - a saúde substituiu a salvação”.
12. Referência à correspondência entre Lou Andreas-Salomé e Freud, que se esten
de por um quarto de século. Lou Andreas-Salomé, Correspondance a v e c Sigm und
Freud (1912-1936). Seguida do Journal d ’une a n é e (1912 -1 9 1 3 ), trad. L. Jumel,
Paris, Gallimard, rol. 'Connaissance de 1'inconscient”, 1970.
13. Freud (S.), Der Marin Moses und d ie Monotheistische Religion. Drei A bh an d
lungen. Amsterdam. Allert de Lange, 1939 (L'homme Moïse et la religion m ono
théiste. Trots essais, trad. C. Heim, Paris, Gallimard, col. “Connaissance de
l’inconscient". 1986).