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K rish n a m u rti

cultrix
J. KRISHNA MURTI

A IMPORTÂNCIA DA
TRANSFORMAÇÃO

Tradução
de
H ugo V eloso

EDITORA CULTRI X
SÂO PAU LO
INDICE

Nova I orque — l
A Violência no Viver 7

Nova I orque — II
A Libertação 20

Nova I orque — III


A Confusão Humana 34

Nova I orque — IV
Tempo, Morte, Amor 45

Nova I orque — V
A Renovação Mental 60

Nova I orque — VI
O Autoconhecimento 73
Oja i — I
Os Problemas do Viver 89

Oja i — II
Para Onde Vamos? 102

Oja i — III
Da Paixão Ardorosa e sem Motivo 114

Oja i — IV
A Natureza do Conflito e do Esforço 126

Oja i — V
Meditação 138

OJAI — VI
A Busca Real 151
NOVA IO RQ U E — I

A VIOLÊNCIA NO VIVER

ff
E sem preum tanto difícil entrar-se em comunicação. Tem-
-se de fazer uso de palavras, e cada palavra tem determinado
sentido. Mas, devemos ter sempre presente que a palavra
não é a coisa, não transmite o significado total da coisa. Se nos
atemos semanticamente às palavras, receio que não tenhamos
possibilidade de ir muito longe. Para podermos entrar, real
e profundamente, em comunicação, requer-se não só atenção,
mas também uma certa afeição. Mas, isso não significa que
devamos aceitar, indiscriminadamente, tudo o que se diz. Não
só devemos manter-nos intelectualmente vigilantes, mas tam­
bém devemos evitar a armadilha das palavras. Para se esta­
belecer a verdadeira comunicação entre pessoas, a respeito de
qualquer coisa, requer-se também uma certa afeição direta, uma
certa correspondência, plena capacidade de investigação e exa­
me. Só então há comunicação, comunhão. Espero se estabe­
leça aqui, entre nós, essa comunhão, pois nestas palestras vamos
tratar de muitos assuntos e problemas, investigá-los com certa
profundeza. Para se compreender o que vai dizer o orador,
torna-se necessária uma certa atenção no escutar.
Mui poucos dentre nós escutam realmente, porque, pes­
soalmente, temos tantas idéias, conclusões e crenças, que nos
vemos impedidos de escutar. Escutar o que outrem diz é uma
das coisas mais difíceis, porque temos sempre engatilhadas
nossas opiniões e conclusões pessoais. Tendemos a interpretar,
a concordar ou discordar, a tomar partidos ou dizer “não estou
dc acordo” , rejeitando prontamente o que se diz. Tudo isso,

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a meu ver, impede o verdadeiro ato de escutar. Só quando
êsse ato não é meramente intelectual, há possibilidade de co­
munhão entre pessoas. Qualquer indivíduo inteligente é capaz
de escutar uma certa argumentação, uma certa exposição de
idéias; mas, escutar com a mente e o coração, com nosso ser
total, isso requer muita atenção. Essa atenção não só implica
que devemos conhecer nossas crenças, conceitos e conclusões,
saber o que desejamos etc., mas também que temos de pôr
tudo isso de parte, temporariamente, para podermos escutar.
Vamos falar sôbre numerosos assuntos, porquanto a vida
está cheia de problemas, e todos nós estamos completamente
confusos. Poucos ainda creem ou têm fé em alguma coisa.
Há guerra, há insegurança, enorme ansiedade, mêdo, desespêro,
a diária agonia da existência, tédio e solidão infinitos. Além
de tudo isso, há ainda os problemas da morte e do amor. Es­
tamos no meio dessa tremenda confusão. Temos de compreen­
dê-la totalmente, e não o fragmento que se nos afigura muito
claro, o fragmento que desejamos alcançar; não a conclusão que
consideramos correta, ou uma opinião ou crença. Temos de
considerar todo o conteúdo da existência, tôda a história do
homem: seu sofrer, sua ansiedade, a total desesperação e sem
significação de sua vida. Se pudermos fazer isso, em vez de
tomarmos um dado fragmento que momentaneamente nos pa­
reça interessante ou nos proporcione prazer; se, por assim
dizer, pudermos ver o mapa inteiro e não parcial, fragmentà-
riamente, estaremos então, talvez, aptos a promover uma re­
volução radical na psique. A crise atual é a maior de nossa
vida, apesar das enormes mudanças que se estão verificando
no mundo da ciência, da matemática etc. Tècnicamente, obser-
va-se uma extraordinária mudança, ao passo que na psique do
ente humano tem havido muito pouca alteração. A crise não
é conseqüência do progresso técnico, porém, antes, de nossa
maneira de pensar, de viver, de sentir. Aí é que se faz neces­
sária a revolução. Essa revolução não pode realizar-se de
acordo com um dado padrão, porque, psicologicamente, ne­
nhuma revolução é possível pela mera imitação de uma dada
ideologia. Para mim, todas as ideologias são absurdas, sem
nenhuma significação. O que tem significação é o que ê, e
não o que deveria ser. A compreensão do que é exige liber­
dade para olhar, tanto exterior como interiormente.

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Na realidade não existe a divisão de exterior e interior.
Trata-se de um processo, de um movimento unitário, e quando
se compreende o exterior, está-se também compreendendo o
interior. Mas, infelizmente, separamos, dividimos a vida em
fragmentos: exterior, interior, bom, mau etc. Assim como
dividimos o mundo em nacionalidades, com as conseqüentes
aflições e guerras, assim também dividimos a nossa existência
em interior e exterior. Essa se me afigura a pior coisa que
se pode fazer: fracionar a existência em diferentes fragmentos.
Aí é que reside a contradição, contradição em que quase todos
nós nos vemos enredados e, portanto, em conflito.
Em vista de tantas complicações, tanta confusão e aflição,
e do enorme esforço humano despendido para construir uma
sociedade que se está tornando cada vez mais complexa, há
possibilidade de vivermos neste mundo totalmente livres de
confusão e contradição e, portanto, livres do mêdo? A mente
que teme não pode, evidentemente, ter paz. Só quando total
e completamente livre do mêdo, torna-se a mente apta a obser­
var, investigar.
Um dos nossos maiores problemas é a violência, não só
no exterior, mas também no interior. A violência não é ape­
nas física, pois tôda a estrutura da psique está baseada na
violência. Êsse esforço incessante, êsse constante ajustamento
a um padrão, a perene busca do prazer e, por conseguinte, o
desejo de evitar tudo o que causa dor, pondo-se de parte
a capacidade de olhar, observar o que é — tudo isso faz parte
da violência. A agressividade, a competição, a constante com­
paração entre o que ê e o que deveria ser — tudo isso, sem
dúvida, são formas de violência. Porque o homem, desde os
começos da história, escolheu a guerra como maneira de vida,
nossa existência diária é de guerra, tanto interior, em nós
mesmos, como exterior. Andamos sempre em conflito com
nós mesmos e os outros. É possível a mente ficar totalmente
livre dessa violência? Nós necessitamos de paz, tanto externa
como internamente, mas a paz não é possível sem liberdade,
se não nos livrarmos completamente dessa atitude agressiva
perante a vida.
Sabemos, todos nós, que existe a violência, que há tre­
mendo ódio no mundo, guerra, destruição, competição, cada
um empenhado em alcançar seu prazer pessoal. Tudo isso re­

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presenta uma maneira de vida geradora de contradição e vio­
lência. Disso sabemos intelectualmente, sôbre isso temos
refletido, estatisticamente podemos examiná-lo, intelectual­
mente somos capazes de tudo racionalizar, dizendo: “Ora, isto
é inevitável; é a história humana dos últimos dois milhões e
mais de anos, e por êste caminho continuaremos” . Há possi­
bilidade de efetuar uma revolução total na psique, na pessoa
— não considerada como indivíduo? O indivíduo é a entidade
“localizada” : o americano, o indiano, o russo. Muito pouco
pode êle fazer. Mas, nós não somos entidades localizadas.
Somos entes humanos. Não existirá nenhuma barreira, repre­
sentada pelo indiano, o americano, o russo, o comunista etc.,
se considerarmos o inteiro processo da existência como o pro­
cesso humano — o que vós e eu somos — e pudermos promo­
ver uma revolução aí, e não no indivíduo. Afinal de contas, se
nos colocamos além das nacionalidades, dos absurdos da religião
organizada e da cultura superficial, vemos que, como entes
humanos, sofremos, vivemos torturados pela ansiedade. Há
aflição, uma busca perene do bom, do nobre, e daquilo que
geralmente se chama Deus. Vivemos com mêdo. Se pudermos
efetuar uma alteração na psique humana, o indivíduo atuará
então de maneira totalmente diferente. Isso implica não sepa­
ração entre o consciente e o inconsciente. Sei que agora se
tornou moda estudar com muita aplicação o inconsciente. Ora,
tal coisa não existe realmente. Dela trataremos mais tarde.
Por ora estou apenas a esboçar a matéria de que vamos tratar
nas cinco palestras vindouras.

É possível ao ente humano livrar-se totalmente do passado,


de modo que se torne nôvo e olhe a vida de maneira inteira­
mente diferente? O que chamamos “o inconsciente” — não
importa se relativo a um passado de cinqüenta ou de dois mi­
lhões de anos — não tem existência real. Resíduo racial,
tradição, motivos, secretos anseios, prazeres — nada disso é o
inconsciente. Está sempre na consciência. Só há consciência,
embora não percebamos o seu conteúdo total. A consciência
é uma limitação. Nessa consciência, estamos a mover-nos de
um campo para outro campo, aos quais damos nomes dife­
rentes; entretanto, trata-se sempre da consciência. Todas as
nossas atividades, no âmbito do inconsciente, do consciente,
do passado, do futuro etc., estão contidas nesse campo. Se

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estamos bem cônscios de nosso processo de pensar, sentir, agir,
observamos por nós mesmos que estamos a enganar-nos, a mo­
ver-nos de um campo para outro, de um canto para outro. A
consciência é sempre limitada porque, nela, existe sempre o
observador. O observador, o censor, onde quer que esteja,
causa a limitação da consciência.
Tôda mudança ou revolução promovida pela vontade,
pelo desejo de prazer, pelo evitar ou fugir, pela pressão, pela
tensão, pela conveniência, fica dentro daquela consciência e,
por conseguinte, é sempre limitada, sempre causadora de con­
flito. Se observarmos êsse fato, não através de livros ou
através dos psicólogos e analistas, porém realmente, como um
fato que se verifica em nós mesmos, como entes humanos,
teremos inevitavelmente de perguntar-nos se é possível estar­
mos conscientes quando necessário — no exercício da profissão
e atividades semelhantes ■— e estarmos livres da consciência
onde ela represente uma limitação. Isso não significa cair
num estado de transe ou de amnésia, ou abandonar-nos a algum
absurdo místico; mas, se não nos livrarmos dessa consciência
que nos fecha, que nos prende ao tempo, não teremos paz. A
paz não depende dos políticos ou dos exércitos, que têm seus
“direitos adquiridos”. Não depende dos sacerdotes, nem de
crença alguma. Todas as religiões, à exceção de uma, talvez
duas — o budismo e o hinduísmo — sempre falaram de paz
e promoveram a guerra. Esta se tornou a nossa maneira de
vida. No meu sentir, se o homem não se libertar da limitação
dessa consciência que o prende ao tempo e em cujo centro
está o observador, continuará a sofrer, infinitamente.
É possível esvaziar-se o todo da consciência, a totalidade
da mente, com todos os seus artifícios e vaidades, seus embus­
tes, seus anseios e códigos de moral etc. — tudo isso com
base essencialmente no prazer? Pode uma pessoa libertar-se
totalmente, esvaziar a sua mente, de modo que possa olhar,
agir, viver de maneira de todo nova, diferente? Digo que isso
é possível, mas não por motivo de vaidade ou de alguma extra­
vagância supersticiosa, mística. Só é possível se se percebe
que o observador, o centro, é a coisa observada.
Requer-se muita compreensão para se chegar a êsse ponto.
Não é caso de concordardes ou discordardes, sentimentalmente.
Sabeis o que significa “compreensão” ? A compreensão, por

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certo, não é intelectual, não é dizer-se: “Compreendo vossas
palavras, a significação de vossas palavras”. Isso não é com­
preensão, nem o é uma concordância emocional, sentimental.
Há a compreensão de qualquer problema, qualquer questão,
quando a mente se acha totalmente quieta, sem que essa quie­
tude tenha sido provocada, conseguida à fôrça de disciplina. Há
então compreensão. Isso acontece, com efeito, quando temos
um problema qualquer. Depois de muito refletir a seu respeito,
de investigá-lo, examiná-lo de todos os lados, não encontramos
nenhuma solução. Pomo-lo de parte, e a mente se torna quieta
em relação a êle. E então, subitamente, vêm-nos a solução.
Isso acontece com muitas pessoas. Não é nada de extraordi­
nário. A compreensão só pode vir quando há percepção direta,
e não uma conclusão lógica.
Nossa questão, pois, é: Como pode um homem, um ente
humano — não um americano, um inglês, um chinês — como
pode um ente humano criar uma nova sociedade? Só poderá
criá-la se, em si mesmo, como ente humano, ocorrer uma revo­
lução total; quando não tiver medo, por ter compreendido a
natureza, a estrutura, o significado do mêdo; por ter entrado
diretamente em contato com êle, que não é uma coisa que
deve ser evitada, porém compreendida. Isso é possível? É
possível compreender a inteira estrutura do pensamento, que
está sempre a gravitar em tôrno de um centro; compreender todo
o mecanismo do pensar, que é resultado da memória e, por­
tanto, a causa da limitação da consciência? É possível não
pensar absolutamente, funcionar completamente livre da me­
mória, tal como atualmente funciona?
Isso nos leva a um ponto, que é o seguinte: Qual a função
da idéia — que é o protótipo, a fórmula, o ideal, o conceito?
Tem ela alguma função? A idéia é para nós muito importante;
agimos, funcionamos, com base nas idéias, nos conceitos, nas
fórmulas. Tôdas as nossas atividades derivam de idéias e,
por conseguinte, há contradição entre o ato e a idéia. Tenho
uma idéia, um ideal, uma crença, e atuo em conformidade com
ela, ou a ela ajusto a minha ação. A ação nunca pode ser
idéia. A idéia é irreal; a ação é real. A idéia de uma nação,
a idéia de um certo dogma, tal como a crença em Deus, enfim
tôda e qualquer idéia é puramente teórica. É possível agir
sem idéia?

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Vede, por favor, que êste assunto requer muita investi­
gação, porque, enquanto houver conflito, em qualquer forma,
haverá dor e aflição; e conflito haverá sempre enquanto houver
contradição. A natureza da contradição é a idéia e o fato —
o que é. Se não houver nenhuma idéia, nenhuma crença,
nenhum dogma, nenhum amanhã (que é sempre o ideal), pode­
rei então olhar o que realmente é. Para compreendermos o
que ê não necessitamos de idéias. O que temos de fazer é
só observar.
E chegamos assim ao segundo ponto: Que é observar?
Que é ver? Pergunto a mim mesmo se alguma vez vemos,
observamos; ou “vemos” com a palavra, com uma conclusão,
um nome, que se tornam obstáculos ao ver? Se disserdes:
“Ora, êsse homem nos vem da índia com suas idéias místicas
ou românticas” etc., não estareis vendo realmente. Só é possí­
vel ver quando o pensamento não está funcionando. Se estais
à espera de alguma coisa, de não-sei-o-quê, esta expectativa vos
está impedindo de escutar; a idéia, o conceito, o conhecimento
vos impede de observar. Se olhais uma flor, uma árvore, uma
nuvem, um pássaro, o que quer que seja, vossa reação ime­
diata é de dar-lhe nome; de gostar ou não gostar da coisa,
pô-la numa categoria e arquivá-la na memória. E cessastes
de olhar.
É possível olhar, ver, sem essa atividade mental? A ati­
vidade mental é sempre pensamento, na forma de idéia, de
memória; por conseguinte, não há percepção direta, Não sei
se já observastes vosso amigo, vossa esposa ou marido, olhan­
do-o simplesmente. Sempre olhais ou escutais a outrem com
todas as lembranças de infortúnios, insultos etc. Não estais,
em verdade, escutando, ouvindo. Êsse processo de não obser­
vação se chama “relações” ! (R iso s). Por favor não riais, pois
estamos tratando de um assunto muito sério. Não estou
fazendo uma conferência filosófica, para a ouvirdes e depois
voltardes para casa e continuardes pelo mesmo caminho. Para
o homem que é muito sério, há viver, há vida. Em face de
tanta confusão e sofrimento, não podemos rir-nos ou ir a um
cinema, para esquecermos nossas tribulações. Necessita-se de
seriedade, de ardor, de atenção, num grau extraordinário. A
seriedade não é uma reação; tôdas as reações são limitações.
Mas, quando observamos, escutamos, olhamos, então começa­

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mos a indagar se o homem tem alguma possibilidade de liber­
tar-se de seu condicionamento. Todos nós estamos condicio­
nados: pelos alimentos, os trajos, o clima, o meio cultural, a
sociedade em que vivemos. É possível o homem libertar-se
dêsse condicionamento, não num futuro distante, porém ins­
tantaneamente? Foi por isso que perguntei se temos possibi­
lidade de libertar de todo a mente, esvaziá-la, para que se
torne uma coisa nova. Se isso não se realizar, ficaremos pere­
nemente entregues ao sofrimento, ao mêdo.
É possível libertar a mente do passado, por inteiro, e,
se é, como poderemos esvaziá-la? Em certos setores o conhe­
cimento trazido do passado é essencial. Precisamos saber
aonde vamos. Não podemos esquecer, pôr à margem, todos
os conhecimentos técnicos que o homem adquiriu através de
séculos; mas eu estou falando a respeito da psique, que tem
acumulado tantos conceitos, idéias e experiências e se acha
aprisionada nessa consciência que tem por centro o observador.
Fiz aquela pergunta, e qual é a resposta? É uma per­
gunta correta, e não uma pergunta descabida. Quando se faz
a pergunta correta, obtém-se a resposta correta; mas necessi­
ta-se de inteireza para se fazer a pergunta correta. Fizemos a
pergunta correta: É possível ao homem, que vive há tantos
séculos, há milhões de anos, que tem seguido a senda da vio­
lência, aceitando a guerra como maneira de vida, tanto no
cotidiano como no campo de batalha — é possível ao homem
transformar-se de todo e começar a viver de maneira comple­
tamente diferente?
Feita a pergunta, quem responderá a ela? Pretendeis
procurar alguém que vos dê a resposta — um guru, um sa­
cerdote, um psicólogo — ou estais esperando que o orador
responda? Se se faz corretamente a pergunta, a resposta está
nela contida; mas, mui poucos de nós já fizeram tal pergunta.
Aceitamos a norma da vida, e a alteração dessa norma exige
abundante energia. Estamos vinculados a certos dogmas, certas
crenças, certas atividades, como norma da vida. Estamos
comprometidos, e temos mêdo de alterar a norma, pois não
sabemos o que dessa mudança resultará.
Compreendendo tudo o que a questão implica, podemos fazer
a sério aquela pergunta? A maneira como a fazemos é, decerto,
muito importante. Podemos fazê-la a nós mesmos, intelectual­

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mente, por mera curiosidade, num momento de folga de nossa
rotina diária, mas dêsse modo não teremos a resposta. A res­
posta depende da mente: do séria que é, do indolente que é,
do indiferente que é à estrutura e às aflições da existência.
Tendo feito a pergunta, cabe-nos agora descobrir-lhe a
resposta. Nas cinco palestras vindouras iremos conversar sôbre
como descobri-la por nós mesmos, sem dependermos de nin­
guém. Não há autoridade, nem guru, nem sacerdote que possa
responder a tal pergunta; e alcançar o ponto em que, psicolo­
gicamente, não dependeremos de ninguém, é o primeiro e
provavelmente o último passo que temos de dar. Então, liber­
tada de tôdas as suas agitações, estará a mente habilitada a
descobrir se há uma realidade não construída pelo pensamento;
se há Deus, essa entidade que o homem sempre andou a buscar,
a procurar, a perseguir. Temos de responder àquela pergunta
e, também, de responder à pergunta “O que é a morte?”.
Uma sociedade, um ente humano que não compreende o que
é a morte não saberá o que é a vida, nem saberá o que é o
amor. O mero aceitar ou rejeitar de uma coisa que não seja
produto do pensamento, é bastante infantil, falta de madureza;
mas, se desejamos investigá-la a sério, temos de lançar as
bases da virtude, a qual nada tem que ver com a moralidade
social. Temos de compreender a natureza do prazer; não,
negar ou aceitar o prazer, porém compreender sua natureza,
sua estrutura. E , ainda, precisamos estar livres do mêdo e, por
conseguinte, ter a mente completamente livre do descontenta­
mento e do desejo de mais experiência. Então, só então, a
meu ver, teremos possibilidade de descobrir se alguma coisa
existe além do mêdo humano que criou Deus.

I nterrogante : Poderíeis repetir aquela pergunta importantís­


sima tal como a formulastes?
K r ish n a m u r ti : Acho que não posso fazê-lo, posso? Isso
seria percorrer de nôvo todo o caminho andado. Noutra oca­
sião, talvez.
I nterrogante : Que é êsse estado da mente, do corpo e do
cérebro, constituído de energia e no qual o EG O é
inexistente?
K r ish n a m u r ti : É muito fácil fazer perguntas, mas quem
responderá a elas? Por favor, considerai sèriamente isto. Quem

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irá responder? O fazer a pergunta correta exige muita inteli­
gência. Não estou dizendo que não sois inteligente, porém,
sim, que se necessita de muita compreensão. Se fazeis uma
pergunta com o fim de confirmar vossas idéias ou de obter
uma informação, não estais perguntando realmente. Se a
fazeis a fim de dissipar vossa própria confusão, pode-se for­
mular uma pergunta quando se está confuso? Porque, se, em
vossa confusão, fazeis uma pergunta, só obtendes uma resposta
concorde com vossa confusão; por conseguinte, o que obtendes
não é uma resposta. Ou, perguntais porque sois incapaz de
olhar, de compreender, e, por. conseguinte, precisais da ajuda
de alguém. No momento em que, psicologicamente, buscais a
ajuda de alguém, estais perdido. Ergueis então tôda a estru­
tura do pensar hierárquico — gurus, sacerdotes, analistas etc.
Fazer uma pergunta correta é uma das coisas mais difí­
ceis; e, no mesmo momento em que se formula a pergunta
correta, apresenta-se a resposta; nem é necessário fazê-la.. .
(risos). Não façais isso; êste assunto é muito sério.
I nterrogante : Estais estabelecendo, como alvo da experiên­
cia humana, a contemplação do infinito e da perfeição?
K r ish n á m u r ti : Acho que não, meu senhor (risos).
I nterrogante : Que quereis dizer quando falais sôbre a quie­
tude da mente — não provocada?
K r ish n á m u r ti : Senhor, posso disciplinar a mente e torná-la
quieta, posso forçá-la, controlá-la, porque tenho uma idéia de
que a mente deve ficar quieta, pois espero, nessa quietude,
alcançar alguma coisa, ganhar ou realizar alguma coisa, expe­
rimentar alguma coisa. Essa é a quietude provocada, portanto,
uma coisa estéril. Mas, a quietude é algo inteiramente dife­
rente, de que não podemos tratar agora, porquanto exige
muito exame e compreensão. Êsse silêncio vem naturalmente,
quando há compreensão e não há esforço algum.
I nterrogante : Qual a relação do meu observador com os
outros observadores, as outras pessoas?
K r ish n á m u r ti : Que entendeis pela palavra “relação” ? Es­
tamos alguma vez em relação com alguém, ou só existe relação
entre duas imagens que criamos a respeito um do outro? Eu
tenho uma imagem de vós, e vós tendes uma imagem de mim.
Tenho uma imagem de vós, como minha esposa, meu marido

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etc., e vós tendes também uma imagem de mim. A relação
existe apenas entre essas duas imagens e nada mais. Só po­
demos estar em relação com outrem, quando não existe imagem
alguma. Quando posso olhar-vos, e vós podeis olhar-me sem a
imagem da memória, de insultos etc., há então relação; mas
a própria natureza do observador é a imagem, não achais?
Minha imagem observa vossa imagem — se é possível obser­
vá-la — e a isso se chama relação; mas, visto que se trata de
duas imagens, a relação é inexistente. Estar em relação signi­
fica estar em contato. Contato deve ser uma coisa direta, e
não entre imagens. Preciso de muita atenção, percebimento,
para poder olhar a outrem sem a imagem que tenho dessa
pessoa — imagem constituída das lembranças que tenho da
pessoa, dos insultos que me dirigiu, dos agrados que me fêz,
do prazer que me proporcionou etc. etc. Só quando não exis­
tem imagens entre duas pessoas, há um estado de relação.
I nterrogante : Podeis dizer alguma coisa sôbre o uso que
atualmente se faz de L .S .D ....
K r ish n a m u r t i : Ah! (risos).
I nterrogante : . . . como meio de criar aquele estado de
relação livre de imagens?
K r ish n a m u r ti : L.S.D. é a mais nova das drogas que produ­
zem certos efeitos. Na índia antiga havia uma droga seme­
lhante, chamada Soma. Mas, o nome não importa. Tudo se
tem tentado para estabelecer relações corretas entre os homens:
drogas, fugas, mistérios; dúzias e dúzias de ideais, dos quais
se espera a unidade humana: o ideal comunista, êste ideal,
aquele ideal. Agora temos aquela droga. Pode um agente
externo promover as relações corretas, que são as relações
livres de imagens? Como sabeis, em vez de preparados quí­
micos, temos também experimentado o narcótico da crença. Os
ocidentais têm a crença no Cristo, os budistas a crença no
Buda etc. Todos esperavam que suas crenças unissem os ho­
mens, mas isso não aconteceu. Pelo contrário, com suas cren­
ças separadas causaram piores males. A meu ver, nenhum
agente externo, tal uma droga, pode produzir o correto estado
de relação. Não podeis amar-vos uns aos outros a poder de
drogas. Se pudésseis, então tudo estaria resolvido. Por que
dar tanta importância a uma droga, ou a uma crença, um

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dogma, um Salvador que irá estabelecer as relações corretas?
Por que encarecer a droga ou a crença? Tanto uma como a
outra são nocivas às relações corretas. O que produz o correto
estado de relação é o estarmos totalmente cônscios de nossas
atividades, de nossos pensamentos, de nossos sentimentos, e
observarmos sem escolha o que se está passando em tôdas as
nossas relações. Daí nasce um estado de relação não baseado
em idéia.
I nterrogante : Falastes sôbre as relações do observador exis­
tente num ente humano com o observador existente noutro
ente humano, dizendo que ambos são imagens. Isso tam­
bém não se aplicaria a vossa própria pessoa — essa
separação do observador do resto da psique?
K rish n a m u r ti : Perfeitamente.
I nterrogante : Creio que dissestes que uma mente quieta é
um estado natural; que não é necessário criá-lo.
K rish n a m u r ti : A mente quieta uma coisa natural? Vem ela
tão facilmente assim? Tudo queremos conseguir pelos meios
mais fáceis. Eu disse que a mente quieta é um resultado natu­
ral quando existem as bases corretas.
I nterrogante : Falastes da limitação da consciência. Direis
que essa mente quieta não é limitada?
K rish n a m u r ti : Parece-me que a questão de se é possível a
mente * aquietar-se tem de ser examinada em tôdas as suas
facêtas, em todos os seus aspectos. É possível a mente quietar-
-se? Precisa ela de ficar a tagarelar perpètuamente? Para com­
preender isso, temos de examinar a questão do pensamento e
verificar se a mente, que inclui também o cérebro, pode tor­
nar-se quieta, apesar de suas reações. Tratarei deste assunto
ulteriormente.
I nterrogante : É muito difícil ser sincero, e eu tenho a sin­
gular impressão de que a única razão por que estamos
reunidos neste salão é a vossa presença aqui. Isso me
parece bastante lamentável. Antes de tornarmos a vir
— se viermos — acho que devemos ficar melhor escla­
recidos quanto ao papel que desempenhais, porque nós
viemos com um motivo-, não viemos livre e espontânea­
mente.

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K r ish n a m u r ti : Por que compareceis a estas reuniões, ou ou­
tras quaisquer? Por simples curiosidade, por terdes ouvido
da fama de uma certa pessoa, por isso é que vindes ter aqui?
Ou é porque tendes verdadeiro interêsse em investigar? Na­
turalmente, a vós é que compete responder, e a ninguém mais.
I nterrogante : E u gostaria de saber alguma coisa a respeito
das pessoas que entram no estado de “ samadhi”, na índia
ou na América. Não é essa a verdadeira expressão da
essência espiritual do homem e, por conseguinte, de grande
importância em seu ambiente?
K r ish n a m u r ti : Êsse senhor deseja saber o que é que os
hindus entendem pela palavra “samadhi” . Acho que tereis de
consultar algum livro para o saberdes, senhor. Sem menosprezo
do interrogante, pergunto: “Que é que tem mais importância?
É mais importante saber o que é “samadhi”, um êxtase ou o
que quer que seja, ou descobrir, cada um por si próprio, a
aflição em que vive, sua confusão, seu interminável conflito
interior, e averiguar se isso pode terminar? Se pode, desco­
brireis então, por vós mesmos, o significado que porventura
tenha aquela palavra, e ela já não terá importância nenhuma.
Estamos sempre a fugir do problema central. Êste nos parece
tilo colossal e tão confuso, que preferimos não olhá-lo. Mas,
infelizmente, temos de vê-lo; e, pelo olhá-lo com muita atenção,
sem nenhuma imagem, talvez a mente possa imunizar-se ao
contágio da vida, com suas aflições.

26 de setembro de 1966.

19
NOVA IORQU E — II

A LIBERTAÇÃO

(Z > omo en tes hum anos , não parecemos capazes de resolver


completamente os nossos problemas. Estamos sempre a andar
de um problema para outro, interminavelmente. Tem o homem
tentado todos os meios para fugir dêsses problemas, evitá-los
ou encontrar algum pretexto para não resolvê-los. Falta-nos
provàvelmente a capacidade, a energia, o impulso necessários
para os resolvermos e, tão hàbilmente preparamos as nossas
vias de fuga, que não percebemos sequer que estamos a fugir.
Afigura-se-me necessária uma mudança total, uma radical revo­
lução na mente, revolução que não seja uma “continuidade
modificada”, porém uma total mutação psicológica que liberte
a mente, de todo, de sua sujeição ao tempo; que a torne capaz
de ultrapassar a estrutura do pensamento, não para ingressar
numa certa região metafísica, porém, sim, numa dimensão
atemporal, onde ela não mais estará fechada em sua estrutura
e seus problemas. Percebemos essa absoluta necessidade de
mudança completa. Temos tentado muitos meios, inclusive
L.S.D., crenças, dogmas, seitas religiosas, disciplinas, meditação.
E, ao cabo de tudo isso, a mente tem permanecido exatamente
a mesma: vulgar, estreita, limitada, ansiosa, ainda que tenha
passado por períodos de iluminação, lucidez. É isso o qúe
anda fazendo a maioria de nós, em nosso esforço para alcan­
çarmos uma certa visão, uma claridade, algo que não seja
produto do pensamento — para voltar sempre ao mesmo esta­
do de confusão. A liberdade parece inexistente. Como há dias
perguntamos, é possível ao homem libertar-se totalmente —
psicologicamente? Não sabemos o que significa essa liberdade.

20
Só somos capazes de formar uma imagem, uma idéia, uma
conclusão, a respeito dela — o que ela deve ser, o que não
deve ser. Para a experimentarmos, a encontrarmos realmente,
requer-se muito exame, muita penetração do nosso processo
pensante.
Nesta tarde, desejo investigar se é possível ao homem,
ao ente humano, libertar-se inteiramente do mêdo, do esforço,
de tôda espécie de ansiedade. Essa libertação deve ser incons­
ciente, isto é, não deve ser deliberadamente provocada. Para
compreendermos esta questão temos de examinar o que signi­
fica mudança. Nossa mente está agrilhoada, condicionada pela
sociedade, por nossa experiência, nossa herança racial, enfim,
por tôdas as influências a que o homem está sujeito. Pode
um ente humano libertar-se de tudo isso e, por si mesmo,
descobrir um estado mental inteiramente incontaminado pelo
tempo? Afinal é isso o que todos nós estamos buscando.
Cansados das diárias experiências da vida, de seu tédio, de
sua trivialidade, desejamos alcançar, através da experiência, algo
muito superior. Chamamo-lo Deus, uma visão, ou damos-lhe
não importa que nome.
Como pode uma mente tão condicionada pela experiência
diária, pelo saber, pelas influências sociais e econômicas —
(nino pode essa mente promover uma revolução total, uma
mutação cm si mesma? Porque, se isso não fôr possível, esta­
remos condenados a permanecer na aflição, na ansiedade, na
“culpa”, no desespero. Portanto, aquela é uma pergunta válida
c para ela teremos de achar uma resposta correta, não uma
resposta verbal, uma conclusão, uma ideação; temos de achar
a verdadeira resposta e “nela viver” .
Cumpre-nos examinar a questão da mudança, descobrir
o que é “mudança” e quem é a entidade que irá mudar e tor­
nar-se cônscia dessa mudança. A palavra “mudança” implica
um movimento do que era para o que será\ uma seqüência de
tempo — o que era, o que é, o que será. Nesse intervalo
de tempo entre o que é e o que será está o esforço para
alcançar o que será. Assim sendo, o movimento de o que era
para o que será não é, de modo nenhum, um movimento,
porém uma mera continuidade do que era.
Seria interessante se, em vez de considerardes o que se
está dizendo como uma palestra que estais ouvindo e a con­

21
cordar ou discordar, dela vos servísseis como um meio de
observardes o processo do vosso pensar, o processo de vossas
próprias reações. Não se vai tentar aqui uma análise coletiva,
porém, antes, ides investigar o que se está dizendo. Investi­
gando-o, estareis então escutando realmente, sem tirardes con­
clusões concordantes ou discordantes. Trata-se realmente de
examinardes a vós mesmos, como ente humano total, e não
como americano, hindu e tôdas as demais inanidades dêsse
gênero. Estais, com efeito, a observar o movimento total de
vossa mente. Se é isso que estais fazendo, tem então enorme
significação o que se está dizendo. O orador é um simples
espelho onde estais a observar todo o conteúdo, todos os mo­
vimentos de vós mesmo. O orador nenhuma importância tem.
O importante é observar, é estar consciente, sem escolha, sim­
plesmente observar o que se está passando. Descobrireis assim,
por vós mesmo, infalivelmente, o significado e a estrutura da
mudança.
Nós temos de mudar. Há em nós muito do animal:
agressividade, violência, avidez, ambição, busca de êxitos,
esforço para dominar. Podem êsses remanescentes do animal
ser totalmente erradicados, de modo que a mente deixe de ser
violenta, agressiva? A menos que a mente se encontre em.
perfeita paz, em completa tr.anqüilidade, não há possibilidade
de descobrir-se nada nôvo. Sem êsse descobrimento, sem a
transformação da mente, ficaremos meramente vivendo no pro­
cesso temporal da imitação, continuaremos com o que era, a
viver no passado. O passado não só está presente, mas tam­
bém o presente é o passado.
Que se entende por mudança? Ela é uma necessidade
inadiável, porquanto nossa vida é bastante trivial, vazia, mo­
nótona e estúpida, sem significação. Ter de freqüentar diaria­
mente um escritório durante os próximos quarenta anos, gerar
alguns filhos, estar sempre à procura de entretenimento, na
igreja ou no campo de futebol — tudo isso, para um homem
amadurecido, é muito pouco significativo. Sabemos disso, mas
não sabemos o que devemos fazer; não sabemos como deter o
processo temporal. Investiguemos juntos êste ponto. Em pri­
meiro lugar deve ficar bem claro que não há aqui nenhuma
autoridade, que êste orador não é autoridade de espécie alguma.
Assim entendida, muda inteiramente a relação entre vós e o

22
orador. Estamos, vós e eu, investigando, examinando e, por
conseguinte, participando no que se está dizendo — como que
fazendo juntos uma viagem. Vossa responsabilidade, por
conseguinte, é muito maior que a do orador. Essa viagem, só
poderemos fazê-la se tivermos o m áxin» de interesse, pois ela
exige muita atenção, energia, lucidez.
Mudança, para a maioria de nós, significa um movimento
em direção ao conhecido. Ora, isso não é uma mudança real,
porém uma continuação do que era, num padrão modificado.
Todas as revoluções sociais se baseiam nessa espécie de mu­
dança. Os revolucionários têm a idéia do que deveria ser, do
que uma sociedade deveria ser, e tratam de pôr em execução
essa idéia: a isso chamam “revolução”. A sociedade está divi­
dida em classes e, portanto, querem êles criar uma estrutura
social totalmente diferente. Têm o padrão do que deveria ser.
Mas, isso não é mudança nenhuma, porém mera reação; e a
reação é sempre “imitativa” .
Quando falamos em mudança, não se trata de mudança
ou mutação de o que era para o que deveria ser. Espero este-
jais observando o processo de vosso próprio pensar e perce­
bendo não só a necessidade de mudança, mas também o vosso
t (indii loiinmeiito, is limitações, os temores, as ansiedades, a
total Milid.ii) v monotonia da vida. Estamos a perguntar-nos se
t ■ .1 11 ii u>a podr '.rt tntalmcntr demolida, para que possa
tornai ,r rsn.trntf um novo t-umio mental. Esse estado mental
não pode set premiu rindo; •,<• o r, ttaiia se meramente de um
conceito, de uma idéia, r uma idéia nunca ê real.
Temos êsse campo em que estamos vivendo — um fato
real. Como operar uma mutação nesse fato? Só conhecemos
o esforço como o meio de efetuar qualquer mudança — mu­
dança sempre motivada pelo prazer ou pela dor, pela recom­
pensa ou a punição ( * ). Para compreender-se a mudança, no
sentido que damos à palavra, no sentido de mutação, de trans­
formação total da mente, temos de investigar a questão do
prazer. Se não compreendermos a estrutura do prazer, a mu­
dança ficará sempre na dependência do prazer e da dor, da
recompensa ou da punição.

(1) Isto é, “motivada pelo desejo de prazer, de recompen­


sa, ou de fugir à dor ou à punição”. (N. do T .)

23
O que todos queremos é prazer, cada vez mais prazer
— ou o prazer físico, do sexo, das posses, do luxo etc. — o
qual é muito fácil de compreender e de rejeitar — ou o prazer
psicológico, no qual estão baseados todos os nossos valores
morais, éticos, espirituais. Tôdas as nossas relações se assentam
nessa base — as relações entre duas imagens, e não entre dois
entes humanos: as imagens que dois entes humanos criaram
um do outro.
O animal só deseja prazer. E , como disse, há muito do
animal em nós. A menos que compreendamos a natureza e
estrutura do prazer, a mudança ou mutação será uma mera
forma de continuidade do prazer, no qual está sempre contida
a dor.
Que é o prazer? Por que busca a mente com tanta per­
sistência essa coisa chamada prazer? Por prazer entendo o
sentir-nos superiores, psicologicamente, a violência e seu oposto,
a não violência. Cada oposto contém o oposto respectivo; a
não violência, por conseguinte, não é, de modo nenhum, não
violência. A violência proporciona grande prazer. Há enorme
prazer em adquirir, em dominar; e, psicologicamente, no sen­
timento de possuir uma certa capacidade, de ter alcançado um
objetivo importante, no sentimento de se ser inteiramente
diferente de outra pessoa. Nesse princípio do prazer estão
baseadas as nossas relações; nêle se alicerçam os nossos valores
éticos e morais. O prazer supremo não é só o sexo, porém a
idéia de têrmos descoberto Deus, de termos descoberto algo
totalmente nôvo. Estamos constantemente a esforçar-nos por
alcançar êsse prazer supremo. Alteramos os padrões de nossas
relações. Não gosto de minha mulher e procuro pretextos
vários para escolher outra mulher. É dessa maneira que esta­
mos vivendo — nessa batalha constante, nessa luta intermi­
nável. Nunca refletimos sôbre o que é o prazer, sôbre se, psi­
cologicamente, existe um estado real de prazer. Por meio do
pensamento concebemos ou formulamos o prazer e desejamos
alcançar êsse prazer. O prazer, pois, pode ser produto do
pensar.
Cumpre compreender tudo isso mui profundamente, per­
ceber com o máximo de clareza a estrutura inteira do prazer,
em vez de tratarmos de livrar-nos dêle, que é falta de madureza.
É isso o que fazem os monges, por todo êste mundo. Estamos

24
empregando a palavra “compreender” num sentido não inte­
lectual, não emocional: no sentido de vermos uma coisa com
tôda a clareza, tal como é e não como gostaríamos que fôsse;
sem a interpretarmos de uma certa maneira, conforme nosso
temperamento. Então, quando compreendemos uma coisa, isso
não significa que uma mente individual a compreendeu, porém,
sim, que há um total percebimento dêsse fato. Seria bastante
absurdo e insincero, de nossa parte, dizermos: “Não estou a
buscar o prazer” . Todos o estão buscando.
Para compreendermos o prazer, temos de examinar não
só a questão do pensar, mas também a estrutura da memória.
Esta manhã, ainda muito cedo, não havia na represa a mais
leve aragem e eram perfeitos os reflexos das árvores, da luz
e das torres — sem um movimento. Eíma coisa bela de ver,
que me proporcionou grande deleite. A mente guardou na
memória êsse prazer e deseja a sua repetição, pois a memória
é coisa já morta. O prazer consiste em pensar naquela luz
refletida na água, hoje de manhã, sendo êsse pensar a reação
da memória, na qual ficou guardada aquela experiência da
manhã. Da experiência desta manhã ou de ontem, o pensa­
mento trata de auferir mais prazer. Vós me elogiastes e isso
me deu prazer. Desejo a repetição dêsse prazer e, portanto,
penso nêle (riso s).
Não riais disso, por favor. Olhai-o. Examinai-o. É essa
a razão por que evitamos falar na morte. Queremos a repetição
de tôdas as experiências de nossa juventude. O prazer se torna
existente por causa de uma experiência deleitável. A experiên­
cia foi-se, mas a lembrança ficou. Então a memória reage e, por
meio do pensamento, deseja a repetição daquele prazer. Ela
está sempre a esforçar-se. Isto é simples. O pensamento ocupa-
-se sempre com as coisas que proporcionaram prazer — sexo,
êxitos etc. A questão naturalmente é muito mais complexa,
porém não nos sobra tempo para examinar-lhe tôdas as com­
plexidades. Mas, cada um pode, por si mesmo, observar o
fato, estar cônscio dêle, vê-lo.

Conseqüentemente, êste é o problema: É possível expe­


rimentar, sem que a experiência deixe sua marca na memória
e, por conseguinte, não tenhamos mais de pensar nela, por
estar definitivamente acabada?

25
O homem vive há muitos milênios, há milhares e milhares
de anos, e é o resíduo de todos os tempos, o resultado do
tempo infinito. A menos que o homem ponha fim' ao tempo,
ficará preso a esta roda — a roda do pensamento, da experiên­
cia e do prazer. Nada podemos fazer a êsse respeito. Se, com
efeito, dizemos: “Tenho de pôr fim ao prazer” — o que não
conseguiremos — dizemo-lo porque desejamos mais prazer.
Temos de examinar e compreender esta questão da ação. Êste
é um problema importante. Tôdas as religiões têm ensinado,
em vão, que o prazer, em qualquer forma, é sempre a mesma
coisa. Os mosteiros estão povoados dêsses monges que repu­
diam, que reprimem o prazer. O prazer está em relação com
o desejo e, por conseguinte, dizem êles: “Vivei sem desejo!”
— coisa absolutamente impossível.
Como é possível uma ação que atinja a estrutura do prazer
e que não seja inspirada pelo desejo de mais prazer? Ação é
fazer, ou ter feito, ou é ação futura. Tôdas as nossas ações,
se as observarmos atentamente, estão baseadas numa idéia —
idéia que foi formulada e de acordo com a qual, de acordo
com essa imagem, essa autoridade, essa experiência, eu atuo.
Para nós, a idéia, o protótipo, o ideal é muito mais importante
do que a própria ação. Estamos sempre a esforçar-nos por
ajustar a ação ao padrão. Se desejamos descobrir alguma coisa
nova na ação, temos de estar livres do padrão.
O meio cultural em que vivemos impôs-nos certos padrões
de comportamento, certos padrões de pensamento, certos pa­
drões de moralidade. Quanto mais antiga a cultura ou civili­
zação, tanto mais condicionada a mente se torna. Existe aquêle
padrão, que a mente está sempre a imitar, a seguir, sempre a
ajustar-se a êle. Êsse processo chama-se “ação”. Se se trata
de atividade puramente técnica, está ela (a mente) meramente
a copiar, a repetir, a acrescentar alguma coisa ao que era.
Por que atuamos com uma idéia? Por que é tão desmedida­
mente importante a ideação? Eu tenho d e fazer alguma coisa;
mas, por que necessito de uma idéia para fazê-la? Preciso ver
por que é que tenho uma fórmula, um exemplo, uma autori­
dade. Não é por que sou incapaz de enfrentar ou não desejo
enfrentar o fato, o que é?
Vejo-me aflito. Psicologicamente, acho-me num estado de
terrível perturbação. Tenho uma idéia sôbre o que devo fazer,

26
o que não devo fazer, como proceder para alterar êsse estado.
Essa idéia, essa fórmula, êsse conceito me impede de olhar o
fato — o que é. A ideação e a fórmula são fugas ao que é.
Há ação imediata em presença de um grande perigo. Não há
então nenhuma idéia. Não formulamos primeiramente uma
idéia, para agirmos de acordo com ela.

A .mente se tornou preguiçosa, indolente, por causa da


fórmula que lhe proporciona um meio de fuga à ação em pre­
sença do que é. Se percebemos por nós mesmos tôda essa
estrutura, sem que no-la tenham apontado, é-nos possível en­
frentar o fato — o fato de que somos violentos, por exemplo?
Embora se fale incessantemente sôbre a não violência, princi­
palmente no Oriente, não somos pessoas não violentas; somos
violentos. A não violência é uma ideia de que se pode fazer
uso politicamente. Tem ela então diferente significação, mas
é sempre uma idéia, e não um fato. Vendo-se incapaz de en­
frentar o fato da violência, o ente humano inventou o ideal
da não violência, o qual o impede de dar atenção ao fato.
Afinal de contas, o fato é que eu sou violento, colérico.
Que necessidade tenho de uma idéia? O importante não é a
idéia relativa ao estado de cólera, porém o próprio fato de estar
etu-elewfldo. P.ste é que tem importância, tal como o fato de
seiiiir fome, Quando sc sente fome, não há nenhuma idéia a
êsse respeito. Depois é que vem n idéia relativa ao que devemos
comer; então, conforme nos dita o desejo do prazer, comemos.
Só há ação em relação ao que é, quando nenhuma idéia existe
sôbre o que se deve fazer a respeito do fato com que nos de­
frontamos, o qual é o que é.
Há a questão do mêdo. Há variadas formas de mêdo,
das quais não trataremos agora. Há o fato real que é o mêdo;
e êsse fato eu nunca enfrentei. Sei o que é o mêdo; a seu
respeito tenho idéias: o que devo fazer, como proceder com
êle, como fugir dêle, mas nunca estou realmente em contato
com o mêdo. O processo da ideação é essencialmente o obser­
vador, o censor. Tenho mêdo. Posso atuar totalm ente em
relação a êle, de modo que a mente fique livre do mêdo, com-
pletam ente e não em relação a um certo aspecto da vida: em
todo o campo da existência? Inevitàvelmente, apresenta-se a
pergunta: Se não tenho mêdo, não estarei sujeito a acidentes,

27
fisicamente? Não estamos falando acêrca da existência física,,
com seu mecanismo de autoproteção, porém sôbre o mêdo que
o pensamento criou em relação à existência. Pode a mente
enfrentar êsse fato, sem a fórmula do que deve ou não deve
fazer? E quem é a entidade que enfrenta o fato?

Formulemos a questão de maneira diferente. Vós estais


aí, e o orador aqui, sentado neste estrado. Vós sois o obser­
vador, e o objeto observado é o orador. Tendes vossas preo­
cupações, tendências, ambições, vossa avidez e vossos temores.
É êste o observador que está a observar o objeto, assim como
se observa uma árvore, uma coisa objetiva. Vós, o observador,
estais a observar o mêdo. Dizeis “Eu tenho mêdo”. Êsse EU
é diferente do objeto observado. O mêdo é algo que está
fora de vós, e vós, o observador, desejais fazer alguma coisa a
seu respeito. É isso o que todos fazemos. Mas, o observador
é diferente do objeto observado? O observador tem mêdo e
diz: “Eu sou diferente da coisa que estou observando” . Ora,
o observador ê a coisa observada. Não há diferença entre
ambos. Êle tem mêdo, e o objeto observado tem mêdo.
Por exemplo, teme-se a morte; e a morte é uma coisa
totalmente diferente do observador. Mas nunca se indaga o
que é o observador. Que é o observador, o VÓS? Quem
tem mêdo? Aquêle que sente mêdo tem naturalmente idéias
neuróticas de tôda espécie. Quem é o observador, em relação
ao mêdo? O observador é o conhecido, com suas experiências,
seu conhecimento, seu condicionamento, seus prazeres, suas
memórias — tudo isso constitui o observador. O observador
teme a morte, porque o observador é mortal. Que é o obser­
vador? Mais uma vez: idéias, fórmulas, memórias — já
mortas. Por conseguinte, o observador é a coisa observada.
Esta é a meditação real, e não aquelas práticas falsas co­
nhecidas sob o nome de meditação. Aquêle fato (o observador
é a coisa observada) exige muita atenção; requer-se muita
energia para descobri-lo — descobri-lo, sem que no-lo mostrem.
Ao descobri-lo, vereis que deixa completamente de existir a
ação motivada pela vontade, pelo esforço, pelo desejo, pelo
mêdo ao sofrimento. Porque então o que há é ação, e não a
ação motivada por idéia. Ação é mudança, e ação total
é mutação.

28
Ao falarmos sobre mudança, temos de compreender o
que é o prazer, em vez de rejeitá-lo. Temos também de com­
preender a acumulação de lembranças, que constitui sempre o
conhecido. Pode-se tomar uma droga, fazer um certo exer­
cício, praticar qualquer coisa, a fim de fugir ao conhecido. A
fuga é meramente uma reação, uma maneira de evitar o co­
nhecido, e, por conseguinte, caímos sempre no padrão de outro
conhecido. É o que está ocorrendo. Isso (fugir) se faz com
admirável habilidade no Oriente, muito melhor do que aqui,
pois é o que lá se vem fazendo há séculos. Pensam que por
êsse meio podem furtar-se às misérias e vulgaridades da exis­
tência. Mas, sinto dizer que isso não é possível, porque a
mente está condicionada, e uma mente condicionada não pode
experimentar o real em circunstância nenhuma, não importa
qual seja o preparado químico que se lhe dê. Ela tem de
livrar-se de seu condicionamento — condicionamento pela so­
ciedade, pelas influências, os impulsos, a competição, a avidez,
o desejo de poder, posição e prestígio. A mente que é vulgar,
limitada, superficial, pode tomar uma certa droga — ela aqui
se chama L.S.D., na índia usa-se outra coisa, e noutras partes
do mundo ela existe, sob diferentes nomes — mas permanece
sempre vulgar e limitada. Nós estamos falando sobre a mu­
dança, a mutação total da própria mente.

Êste é um problema que exige muito percebimento, e não


um dado estado espiritual, absurdo, místico: percebimento das
palavras que usais, do que falais, do que fazeis, do que pen­
sais. Deveis estar cônscios de tudo isso, para começardes a
descobrir por vós mesmos todos os movimentos de vossa mente,
que é também a mente de todos os outros entes humanos do
mundo. Não precisais de ler nenhuma filosofia ou psicologia,
para descobrirdes o processo de vossa própria mente. Êle está
à vossa frente; tendes de aprender a olhá-lo; e para olhá-lo,
deveis estar cônscios não só das coisas externas, mas também
dos movimentos interiores. O movimento exterior é também
o movimento interior; não existe “exterior” e “interior”. É
um movimento de constante intercâmbio. Tendes de estar
cônscios dêsse movimento; mas não precisais ingressar num
mosteiro para aprenderdes a estar cônscios; o que tendes de
fazer é apenas manter-vos vigilantes, todos os dias, ao entrar­
des num ônibus, num carro elétrico, ao fazerdes qualquer coisa.

29
Isso exige enorme atenção, e atenção significa energia. Come­
çareis assim a descobrir como a energia se dissipa por causa
de nosso interminável tagarelar e, por conseguinte, pela vigi­
lância, começareis a estar cônscios sem escolha, sem gostar ou
não gostar, sem condenação. Começareis a observar, simples­
mente: a observar vossa maneira de andar, de falar, de tratar
os outros. Êsse mesmo ato de observar, sem nenhuma fór­
mula, produz uma tremenda energia. Não precisais tomar dro­
gas para terdes mais energia. Vereis então, por vós mesmos,
que se opera uma mutação, sem a terdes desejado.
I nterrogante : Quando empregais as palavras “o que é”, en­
tendeis algo de metafísico, abstrato, intelectual?
K rish n a m u r ti : Quando dizemos “o que é”, sabemos de que
se trata. Se tenho dor de dentes — isso é o qu e é\ se sinto
fome, se tenho um grande apetite — isso é o que ê\ se
sou ambicioso, se estou a competir com alguém, ao mesmo
tempo que falo em amor e fraternidade (o que é puro absurdo,
se sou ambicioso) — então o que é é a ambição. A idéia de
que deve haver paz no mundo é pura teoria, nem nenhuma
realidade. Não há paz no mundo porque, como ente humano,
sou agressivo, competidor, ambicioso; porque estamos a divi­
dir-nos em diferentes grupos, sociológica, moral e espiritual­
mente. Eu pertenço a esta religião e vós pertenceis àquela
religião. Como se vê, o que é é muito simples.
I nterrogante : Quando não se dá nome ao prazer, o que
resta é energia?
K rish n a m u r ti : Já observastes o vosso prazer? Já observas­
tes o seu conteúdo, como êle surge, e o que implica? Simpli­
ficando: Há a percepção visual de uma mulher, de um belo
carro, disto ou daquilo. A percepção desperta, estimula a sensa­
ção e dessa sensação provém o desejo.' Penso no desejo e êsse
pensar me dá prazer. Descobriremos o que resta, quando ti­
vermos compreendido o prazer.
I nterrogante : Se vejo uma mulher, sem pensam ento...
K rish n a m u r ti : Êsse senhor deseja saber o que acontece
(risos). Não riais! Muito importa compreender a pergunta
que estamos examinando. Pode-se observar alguma coisa sem
prazer, sem dor? Podeis observar alguma coisa? E quando

30
o fazeis, que acontece? Se não sois cego ou paralítico,
tendes reações. Podeis controlar, reprimir, negar, evitar essas
reações; mas há alguma reação. E tendes de ter essa reação,
porque se não a tendes estais morto. Essa reação se torna de­
sejo, e quanto mais uma pessoa pensa nesse desejo, tanto mais
dor ou prazer êle proporciona. Se o desejo é doloroso, pro­
curais evitar o pensar nele; mas, se é agradável, nêle pensais.
Não podeis dizer: “Está bem; não quero ter prazer” . Tendes
de compreender todo o mecanismo desse processo altamente
complexo e que é a um tempo fisiológico e psicológico. Para
observá-lo muito claramente, requer-se claro percebimento.
Senhor, alguma vez observastes uma flor?
I nterrogante : Não tenho possibilidade de discernir clara­
mente o que entendeis por idéia e ação. Se tenho fome
e não tenho a idéia de escolher entre o leite e o pão, como
posso fazer tal escolha?
K r ish n a m u r ti : Senhor, vós tendes de escolher entre dife­
rentes dentistas, diferentes médicos, não? Há escolha, quando
comprais um casaco ou um vestido. Mas, existe alguma outra
espécie de escolha? Há escolha quando vedes uma coisa com
tôda a clareza? Por exemplo, se vêdes o que é o nacionalismo,
atualmente predominante no mundo, se percebeis tudo o que
êle acarreta, tudo o que implica — limitação, disputas, bata­
lhas, orgulho, e lautas outras coisas medonhas — se vêdes o
veneno que êle é, então o nacionalismo cai por si. Nenhuma
ação se verifica, nenhuma escolha. Só existe a escolha quando
há confusão. Quando a mente não está confusa, não há esco­
lha. O que há é a percepção direta.
Estamos usando de palavras muito simples, de sentido
não técnico. Quando emprego a palavra “prazer”, ela tem o
seu significado lexicológico comum.
I nterrogante : É possível alcançar a percepção direta e chegar
à ação, na maneira como a descrevestes?
K r ish n a m u r t i : E u não descrevi a ação. Ela é o que faze­
mos; o que acontece em cada dia de nossa vida.
I nterrogante (ou tro): Não ouvi a pergunta.
K r ish n a m u r ti : Deixai-me, mais uma vez, repetir uma coisa.
É muito importante fazer a pergunta correta, não a mim, não

31
ao orador. E para fazê-la necessita-se de muito ceticismo —
não do absurdo ceticismo da mente não amadurecida. Para
se fazer a pergunta correta, não deve haver aceitação nem
autoridade; e fazer a pergunta correta é uma das coisas mais
difíceis, pois nunca fizemos uma pergunta correta. Temos
feito perguntas e mais perguntas; mas a pergunta correta
implica que não há outra pessoa para a ela responder. Fazer
a pergunta correta implica que a mente está libertada de tôda
autoridade e comparação e, portanto, habilitada a fazê-la. E
no próprio ato de fazê-la, está contida a resposta.
I nterrogante : Que é ação espontânea, livre de condiciona­
mento?
K rish n a m u rti : Em primeiro lugar, não há ação espontânea
enquanto há condicionamento. Tão logo nos libertamos do
condicionamento. . . mas, senhor, falais como se uma das coi­
sas mais fáceis do mundo fôsse o libertar-nos de nosso condi­
cionamento. Santo Deus! (R isos) Vereis o que isso significa,
se o examinardes bem. Considerai um indivíduo condicionado
por dez mil anos de hinduísmo; pode essa pessoa facilmente
“jogar fora” êsse condicionamento? A libertação do condicio­
namento não é uma questão de tempo. Não é um processo
gradual. Quando sabeis que estais condicionado e observais
êsse fato, êsse próprio percebimento põe fim ao fato. Vereis
que não há então ação nenhuma, porém estais simplesmente
em movimento. Não há questão de espontaneidade. Só o
homem que se acha na servidão está sempre a falar em espon­
taneidade.
I nterrogante : N o começo desta palestra, perguntastes se é
possível o homem ficar totalmente livre, sem retornar à
sua confusão, e creio que respondestes “ sim” . No final
da palestra falastes sôbre o viajar pelo caminho do des­
cobrimento, e isso implica que haverá momentos de expe­
riência do que é, e momentos de não experiência do que é.
K rish n a m u r ti : A maioria de nós não percebe que está con­
fusa. Quando estamos vinculados a uma dada fórmula —
comunista, católica, hinduísta, ou outra — ou ao mais mo­
derno sistema de pensamento, pensamos que estamos livres de
confusão. Não estamos; e nossa confusão só cessará quando
não houver nenhum movimento do observador. Há momentos
em que pensamos não estar confusos, porém muito lúcidos; no
momento seguinte estamos confusos. Pensamos ter resolvido
completamente um problema, e êsse mesmo problema torna a
surgir num outro dia. Vemo-nos em plena confusão; e, de
dentro dessa confusão, escutamos, buscamos um guia político,
religioso, psicológico etc. O que escolhemos nasce de nossa
confusão e, por conseguinte, é também confuso. Êste é um
problema realmente complexo e espero possamos considerá-lo
na próxima reunião.

28 de setembro de 1966.

33
NOVA IO RQ U E — III

A CONFUSÃO HUMANA

D issemos que hoje iríamos tratar da questão da confusão.


Antes de começarmos a considerá-la, devemos compreender o
que se entende por liberdade, se existe liberdade, e também
o que se entende por escolha. Estar livre de alguma coisa
— o que em verdade é uma reação — não é liberdade, abso­
lutamente. A mera revolta contra um certo padrão de pensa­
mento, ou uma certa estrutura social, não é liberdade. A liber­
dade implica um estado mental isento de imitação ou ajusta­
mento, e, por conseguinte, sem mêdo. Podemos estar revol­
tados e no entanto estar a ajustar-nos, como se vê no mundo
atualmente, e essa revolta é chamada “liberdade”. Mas essa
revolta — seja a revolução comunista, seja qualquer outra
revolução social, há de inevitavelmente criar um padrão. Po­
derá haver uma diferente ordem social, mas trata-se ainda de
um padrão de ajustamento. Ao falarmos de liberdade, enten­
demos decerto um estado em que não há ajustamento nenhum,
nem imitação. A imitação e o ajustamento são inevitáveis
onde existe o mêdo; e o mêdo invariavelmente cria a autori­
dade: a autoridade da experiência de outrem, a “autoridade”
de uma nova droga, ou a autoridade de nossa própria expe­
riência, nosso próprio padrão de pensar.
Devemos ver bem' claras as coisas, quando falamos de
liberdade. Os políticos falam de liberdade, mas não falam a
sério. As pessoas religiosas, em todo o mundo, falam de liber­
tação da escravidão, libertação do sofrimento, libertação de
todas as angústias humanas. Traçaram um certo roteiro, um

34
certo padrão de comportamento, de pensamento e ação para
a libertação. Mas, nega-se a liberdade quando há ajustamento
a um padrão religioso ou social. Há liberdade? Há liberdade
quando há escolha? Tôda escolha, a meu ver, é um ato
nascido da confusão. Quando me vejo desorientado, na incer­
teza, é então que escolho. Digo: “Escolho minha liberdade”,
“Sou livre para escolher” . Mas, a escolha não é resultado da
incerteza? Por causa de minha confusão, desorientação, incer­
teza, falta de clarividência — por causa disso atuo. Escolho
um guia; escolho determinada linha de ação; vinculo-me a
uma determinada atividade. Mas, essa atividade, êsse padrão
de ação, a busca de um determinado modo de pensamento
resulta de minha confusão. Se não estou confuso, se não há
confusão de espécie alguma, não há então escolha; vejo as
coisas como são. Não atuo por escolha.
A mente capaz de escolher é, com efeito, uma mente
muito confusa. Talvez não concordeis comigo, mas permiti-me
sugerir-vos ouvir tudo, até o fim, sem concordar nem discordar.
Como há dias dissemos, não estamos aqui fazendo propaganda
de uma dada filosofia, de uma certa norma de ação, nem tam­
pouco estamos expondo certos princípios. Tudo isso só indica
absoluta falta de liberdade. Quando nos vemos confusos, deso­
rientados — como está a maioria das pessoas por êste mundo
afora — por causa dessa confusão escolhemos um líder político,
um sistema religioso, ou seguimos os ditames da última moda.
Temos de examinar esta questão, verificar o que é cla­
reza e se a mente, que se acha confusa, incerta, é capaz de
ver com clareza — condicionada como está por várias influên­
cias sociais, padrões religiosos, tem incessante propaganda que
nos força a pensar desta ou daquela maneira, condicionada
pelos inúmeros líderes políticos e religiosos existentes neste
mundo, e por várias seitas. Tudo isso produz confusão na
mente. Quando me vejo insatisfeito com um dado padrão de
atividade, uma dada linha de pensamento, uma dada filosofia
ou dogma, passo para outra série; de maneira que estou sem­
pre inibido, sempre vinculado a alguma coisa. Penso que
haverá clareza, um estado livre de confusão, se eu estiver ligado
a uma determinada norma de ação.
Acho- que, se a gente está confusa ( e sabemos quais
são as razões dessa confusão: as filosofias, òs teólogos com
seus respectivos padrões de pensamento, a dizer-nos o que
devemos crer e o que não devemos crer), o ente humano, em
geral, se verá desorientado, sem saber o que fazer. A meu
ver, a coisa principal é que não estejamos ligados a nenhuma
organização — religiosa, política, sectária; ou à droga mais
recentemente inventada; não estar ligado a nada. Isso é difi­
cílimo, porque de todos os lados nos vemos pressionados a
ligar-nos a alguma coisa. Algo temos de fazer: fazer isto,
aquilo, tomar a droga mais moderna, recorrer a “tal” filosofia,
a “tal” instrutor. Porque o que êles afirmam nos parece tão
claro e positivo que, em virtude da nossa confusão, aceitamo-lo,
esperando que dessa aceitação resultará uma certa clareza de
pensamento, um sentimento de certeza. Pode a mente entrar
num estado completamente livre de vínculos?
Como antes dissemos, uma palestra desta natureza só é
interessante se somos capazes de ultrapassar a palavra, porque
a explicação e a palavra não são a coisa. Pode haver uma cen­
tena de explicações das razões de nossa confusão; mas a
mente que deseja, que exige estar libertada da confusão, não
se satisfaz com explicações, com palavras, com nenhuma auto­
ridade. Podemos nesta tarde descobrir, p or nós m esm os, se é
possível à mente que percebe a sua confusão, que reconhece
estar ligada a uma determinada norma de ação, social ou reli­
giosa, quebrar todos os vínculos, não porque alguém disse que
deve fazê-lo, porém por compreender que qualquer padrão de
pensamento ou ação engendra mais confusão? Se a mente
exige clareza, exige estar livre de tôda a sua confusão, por
compreender a necessidade de liberdade, essa própria com­
preensão liberta a mente de seus vínculos, e essa é uma das
coisas mais difíceis que há. Estamos comprometidos porque
pensamos que tal compromisso nos conduzirá a uma certa
clareza, uma certa facilidade de ação. E quando nenhum com­
promisso temos, sentimo-nos como que perdidos, desorienta­
dos, porque em torno de nós todos estão comprometidos.
Passamos dêste grupo para aquele grupo, deste instrutor para
aquêle instrutor; seguimos um certo líder ou guia. Todos
estão presos nesta rêde, e se não queremos estar comprome­
tidos, precisamos compreender o que todo compromisso implica.
Se percebemos um perigo, se o vemos com tôda a clareza,
não o tocamos, não nos acercamos dêle. Mas, ver com clareza
é muito difícil, porque a mente diz “Preciso fazer alguma coisa,

36
agir; não posso esperar; que devo fazer?” . Ora, por certo, a
mente que está confusa deve, antes de tudo, perceber que está
perturbada e, também, compreender que todo movimento pro­
cedente dessa perturbação só irá criar mais perturbação. Não
estar ligado a nada significa estar completamente só; e isso
exige perfeita compreensão do mêdo. Podemos ver o que está
acontecendo no mundo. Ninguém deseja estar só. Não digo
estar só com um rádio, com um livro, estar sentado a sós de­
baixo de uma árvore, ou num mosteiro, com um nome ou
rótulo diferente. O “estar só” implica percebimento de tudo
o que está implicado nas várias formas de compromisso que o
homem busca por causa de sua confusão. Quando um ente
humano amadurecido exige a libertação da confusão, há então
êsse percebimento dos fatos decorrentes da confusão. Daí vem
o “estar só” . Então, êsse homem está só, e é realmente um
homem sem mêdo.
Que devemos fazer? Percebemos muito claramente que
tôda ação nascida da confusão só conduz a mais confusão. Isso
é muito simples e muito claro. Qual é então a ação correta?
Nós vivemos pela ação. Não podemos fazer outra coisa senão
agir. Todo o processo do viver é ação. Temos de reconsiderar
esta questão da ação. Conhecemos muito claramente a ação
que resulta da confusão, ação graças a qual esperamos alcançar
a certeza, a clareza. Se percebemos isso, então, se não estamos
mais vinculados a nenhuma norma de pensamento, nenhuma
filosofia, a ideais de espécie alguma, então que é ação? Esta
é uma pergunta legítima, após termos dito tudo o que dissemos.
A única ação que conhecemos é a ação do ajustamento. Tive­
mos certas experiências, certos prazeres, adquirimos certos co­
nhecimentos, e tudo isso estabelece a norma de nossa ação.
Cremos em certas coisas e, de acordo com essa crença, agimos,
ajustamo-nos. Tivemos certos prazeres em nossa experiência
— sexual ou não sexual, ideológica etc. O prazer dita a norma
de nossa ação. A maioria de nossos atos é sempre resultado do
passado. A ação nunca está no presente: é sempre um resul­
tado do passado. É essa a ação que chamamos “positiva”,
porquanto está sempre a seguir, no presente, o que foi, e a criar
o futuro.
Notai, por favor, que o que estamos dizendo não é ne­
nhuma filosofia profunda. Estamos apenas observando fatos.

37
Podemos, com efeito, descer a grandes profundezas, mas, pri­
meiramente, temos de limpar o terreno.
A palavra “ação” implica um presente ativo. Ação é
sempre “ ação no presente”; não significa “agi” ou “agirei” .
Nossa ação é sempre de ajustamento a uma idéia, um símbolo,
uma ideologia, uma filosofia, uma experiência que tivemos, ou
a nossos conhecimentos, nossas experiências acumuladas, nos­
sas tradições etc. Existe alguma ação que não seja de ajus­
tamento?
Só quando temos liberdade, temos paixão. Não me refiro
à paixão carnal, a qual tem seu lugar próprio; refiro-me a um
estado de liberdade em que existe intensa energia e paixão.
De outro modo, não podemos agir; de outro modo, somos
meros relógios de repetição, meras máquinas — máquinas
ajustadas pela sociedade, pelo meio cultural em que fomos
criados, ou pela religião organizada. Se percebemos a urgência
da liberdade, nesse percebimento há paixão. A paixão está
sempre no presente; não é algo já passado ou que teremos
amanhã, pois esta é a paixão criada pelo pensamento. Tenho
prazer. Ora, há diferença entre a paixão do prazer e a paixão
que nasce quando estamos completamente libertados da con­
fusão, quando há claridade total. Essa claridade só se torna
possível, com sua intensidade, sua paixão, sua atemporalidade,
quando compreendemos o que é ação e se a ação pode ser livre
da imitação, do ajustamento aos ditames da sociedade, dos nos­
sos temores, da nossa intrínseca indolência. Gostamos de
repetir e tornar a repetir, principalmente aquilo que nos pro­
porciona grande prazer: o ato sexual etc. Isso se tornã tanto
mais importante, quanto mais superficial a sociedade se torna.
É o que está acontecendo no mundo. Quando o progresso é
tecnológico, exterior, quando a prosperidade é egocêntrica,
o prazer se torna então da mais alta importância, seja o prazer
do sexo, seja o prazer da experiência religiosa (riso s). Não
riais, por favor; tudo isso é muito sério. Estamos enfrentando
uma tremenda crise na vida. Alguns conhecem essa crise, que
não é econômica nem social, porém uma crise na própria
consciência. E , para abrirmos caminho através dela, para rea­
girmos a essa crise como a um desafio, necessitamos de muita
seriedade.
Temos de aprofundar esta questão da seriedade, porque
a vida é um movimento em ação. Não podemos ficar inertes,

38
mas é isso o que estamos tentando. Estamos colhidos no mo­
vimento do que fo i, e os moços dizem: “Nós somos a nova
geração”. Não são. Para compreender tudo isso temos de
investigar o que é a ação em liberdade. Existe tal coisa —
liberdade? Pode a mente libertar-se de seu condicionamento,
e podem também libertar-se as células cerebrais, que vêm sendo
fortemente condicionadas há tantos milhões de anos e que têm
seus próprios padrões de reação?
Que é ação? Conhecemos muito bem a ação que segue
uma idéia, a ação que segue uma fórmula (imposta de fora à
mente ou que ela própria criou para si e de acordo com a qual
atua) — uma fórmula de conhecimento, de experiência, de
tradição, e de mêdo à opinião pública. É essa a ação que co­
nhecemos, mas essa ação é sempre limitada. E leva sempre
a mais condicionamento.
Existe outra ação que não seja condicionante? Acho que,
inevitavelmente, uma pessoa terá de fazer a si mesma essa
pergunta. Vendo-se o que está acontecendo no mundo — mi­
séria, guerras, divisões políticas, divisões geográficas, as divisões
criadas pelas religiões, pelas crenças e dogmas — vendo-se tudo
isso, pode haver alguma ação não subordinada a êsse padrão?
Como já dissemos, concordar ou discordar não tem signi­
ficação nenhuma. Podemos voltar as costas ao desafio, à crise,
e tratar dc divertir-nos, de entreter-nos, de várias maneiras.
Cada um de nós está em presença de uma crise, pois somos
totalmente responsáveis por tôda a estrutura da sociedade
humana. Somos responsáveis por estas guerras; somos respon­
sáveis por estas divisões nacionais e geográficas; somos responsá­
veis pelas divisões da religião, com seus dogmas, seu temo­
res, suas superstições, porque nos vinculamos a elas. Não
podemos evitá-las. Elas estão à nossa frente. Como reagir?
Existe alguma ação não causadora de servidão? Penso
que há, e vou agora examiná-la. Mais uma vez, vêde, por
favor, que não estamos aceitando nenhuma autoridade. Êste
orador não é autoridade, porquanto não há seguidor, nem há
instrutor. O seguidor destrói o instrutor, e o instrutor destrói
o seguidor. O que estamos tentando é examinar e, nesse pro­
cesso de exame, descobrir por nós mesmos o que é verdadeiro.
Na realidade, não se trata de um processo. Processo implica
tempo, uma marcha gradual, passo a passo. Mas, aqui não há

39
“passo a passo” ; não há processo gradual de compreensão.
Quando vemos uma coisa muito claramente, agimos, e a clareza
do percebimento não é criada por um processo gradual, pelo
tempo.
Como dissemos, há a ação positiva, com a qual todos
estamos bem familiarizados. Estamos procurando averiguar se
há uma ação que não seja positiva, em absoluto, no sentido em
que entendemos a palavra “positivo” — que indica, afinal de
contas, conformismo. Expressando-o diferentemente: Estamos
confusos. A êsse respeito não há dúvida alguma. Em nossas
mútuas relações, em nossas atividades, em nossa procura do
Deus que devemos adorar — se de fato sabemos adorar —
estamos confusos. Essa compreensão — se observardes muito
atentamente, como espero estejais fazendo agora — ocasiona
a negação do “positivo”. Há então uma ação que não é po­
sitiva. A própria negação do “positivo” é ação negativa.
Deixai-me formular isso de maneira diferente. Existe ação
não baseada num processo mecânico? Não me refiro à ação
espontânea. Não existe ação espontânea, a não ser, talvez,
quando vemos uma coisa perigosa, ou uma criança a afogar-se.
Mas, uma coisa dessas não se nos apresenta diariamente. Cum­
pre-nos descobrir, encontrar aquela outra forma de ação, porque,
de contrário, permaneceremos simples máquinas — como o é a
maioria dos entes humanos, com sua rotina diária, freqüen-
tando um escritório durante quarenta anos, com a ação sempre
repetida do prazer etc.
Estamos investigando se existe alguma ação que não seja
de ajustamento. Para a descobrirmos, a ação positiva tem de
terminar. É possível a ação positiva terminar, sem ser por
imposição da vontade? Se houver imposição da vontade, uma
determinação de pôr têrmo à ação positiva, essa determinação
criará um nôvo padrão de ajustamento e, portanto, será uma
ação de ajustamento.
Quando digo “Não farei isto”, essa asserção da vontade
é produto de meu desejo de achar alguma coisa nova; mas o
velho padrão, a velha atividade é criada pelo desejo, pelo mêdo,
pelo prazer; negando o velho padrão pela ação da vontade,
criei o mesmo padrão numa esfera diferente.
Nos cinco mil anos que passaram desde o início da histó­
ria, o homem sempre escolheu O' caminho da guerra: cerca de

40
quinze mil guerras, quase três guerras por ano, e ainda não
rejeitamos as guerras! Temos guerras “favoritas” e guerras
“não favoritas” . Não rejeitamos a violência, e isso indica que
o homem não deseja a paz. A paz não é uma pausa entre duas
guerras, não é a paz do político. A paz é coisa inteiramente
diversa. Vem a paz quando estamos libertados do “positivo”.
Quando totalmente negamos a guerra ou totalmente negamos
a divisão dos absurdos religiosos, porque compreendemos per­
feitamente a natureza e a estrutura de tudo isso, e não porque
não gostamos disto ou daquilo — isso nada tem que ver com
“gostar” ou “não gostar” — nessa própria rejeição há nega­
ção, e dessa negação decorre uma ação que nunca se ajusta.
A mente confusa que busca a clareza só pode confundir-se
cada vez mais, porque uma mente confusa não pode achar a
clareza. Está confusa; que pode fazer? Tôda busca de sua
parte só a levará a maior confusão. Não parecemos perceber
isso. Quando a mente está confusa, devemos deter-nos —
deter tôda e qualquer atividade — e essa própria detenção é o
comêço do nôvo, que é a ação mais positiva — “positiva” num
sentido inteiramente diferente. Tudo isso implica que deve
haver um profundo autoconhecimento — conhecimento de tôda
a estrutura de nosso pensar-sentir, dos motivos, dos temores,
das ânsias, da “culpa”, do desespêro. Para conhecermos todo
o conteúdo dc nossa mente, temos de estar vigilantes — vigi­
lantes, no sentido de observar sem resistência ou condenação,
sem aprovação ou reprovação, sem prazer ou desprazer —
observar, simplesmente. Essa observação é a negação da estru­
tura psicológica da sociedade, que diz: “Deveis”, “Não deveis” .
Por conseguinte, o autoconhecimento é o comêço da sabedoria;
é, também, o comêço e o fim do sofrimento. O autoconheci­
mento não pode ser adquirido num livro, nem com procurar­
mos um psicólogo, para sermos examinados analiticamente.
Autoconhecimento é compreender verdadeiramente o que é —
o que há em nós: dores, ânsias; vê-lo sem nenhuma desfigura­
ção. Dêsse percebimento nasce a clareza.
I nterrogante : Como podemos começar a conhecer a nós
mesmos?
K r ish n a m u r ti : Não sei por que dificultamos tudo. Em pri­
meiro lugar, nós não nos conhecemos, absolutamente. Somos
todos personalidades de “segunda mão” . Vemo-nos à mercê

41
dos analistas, dos filósofos, dos instrutores. Para conhecermos
a nós mesmos, temos de compreender o que é aprender. Apren­
der é muito diferente de acumular conhecimentos. O aprender
está sempre no presente ativo. O conhecimento é sempre do
passado. A mente que aprende uma língua está acumulando
palavras, armazenando. Tôda técnica é assim. Com essa
acumulação a mente atua. Coisa muito diferente é o aprender.
O aprender nunca acumula. Tenho de acumular, se preciso de
aprender uma técnica; e, com essa técnica, com essa capacidade
que adquiri, eu opero e aumento a minha eficiência. Isso, de­
certo, não é aprender. Aprender é um movimento, um estado
fluido; e não há essa fluidez no momento em que há o estado
de conhecimento, o qual é essencial quando estamos funcio­
nando tecnologicamente. Mas, a vida não é acumulação tecno­
lógica; a vida é um movimento, e para aprendê-la e segui-la,
temos de aprender a todo momento. Para aprender, não há
acumulação.
Essa é a primeira coisa que cumpre observar. Para que
haja autoconhecimento, tem de haver uma ação de aprender,
a cada minuto; não tendo aprendido, olho-me e acrescento mais
alguma coisa a êsse conhecimento, depois de ter olhado a mim
mesmo. Nesse processo é mantida a separação entre o obser­
vador e a coisa observada.
Vêde, senhor, desejo conhecer-me. Em primeiro lugar,
disseram-me muitas coisas a respeito de mim mesmo: que sou
a alma, a chama eterna, e sabe Deus o que mais. Há dúzias
de filosofias e de idéias: “eu superior”, “eu inferior”, “reali­
dade permanente” etc. Desejo conhecer a mim mesmo; por­
tanto, é bem óbvio que tenho de rejeitar tudo isso. Tenho de
rejeitá-lo, observando a maneira terrível como a mente tem
sido influenciada. Somos escravos da propaganda — religiosa,
militar, comercial. É o que somos, e para compreendê-lo não
podemos condená-lo. Não devemos dizer “Isto é bom”, “Isto
é mau”, “Devo conservar isto”, “Não devo conservar isto”.
Temos de observar.
Para observar, não deve haver condenação, nem justifi­
cação, nem aceitação. Então, começo a aprender. Aprender
não é acumulação. Então, eu observo. Observo, para ver o
que sou; não o que eu gostaria de ser, porém o que sou real­
mente.' Não estou aflito, não digo: “Como é terrível isso que

42
sou!” . Sou assim. Não o condeno, nem o aceito. Observo.
Vejo as tendências de meu pensar, o padrão de meu pensar, de
meu sentir, vejo meus motivos, temores, ansiedades.
Quem é o observador? Isto não é filosofia profunda; é
uma coisa comum, de todos os dias. Quem é o observador?
Quem é o EU que diz “Eu olho”? O EU que olha são as
experiências, condenações, observações, conhecimentos etc. Ele
é o centro, o observador. Êle se separa da coisa observada.
Êle diz: “Estou observando o meu rnêdo, a minha “culpa”, o
meu desespero” . Mas, o observador é a coisa observada. Se
não fôsse, não reconheceria o seu desespero.
Sei o que é desespero, o que é solidão, e essa memória
permanece. Na próxima vez que êle aparece, digo que é uma
coisa diferente de mim. A divisão em observador e coisa
observada gera um conflito, e saio então por uma tangente,
procurando descobrir uma maneira de resolver êsse conflito.
Mas, o fato é que o observador é a coisa observada. Isso não
é um conceito intelectual, porém um fato. Quando o obser­
vador é a coisa observada, então aprender é agir. Não aprendo,
para depois agir. Mas essa ação só se verifica quando o obser­
vador é o objeto observado. Essa ação é a negação do que
foi, do processo mecânico.
I nterrogaNTE: Existe um estado de percebimento, em. que o
passado não se reafirme contlnuamente?
K rish n a m u k ti : Há percebimento do processo total do tempo,
do processo total e não do processo fragmentário, constituído
de ontem, hoje e amanhã? Temos de reconsiderar tôda a
questão do tempo, mas o momento não é oportuno para o
fazermos. Se há total percebimento do tempo, não há então
continuidade, como “estou cônscio” ou “estive cônscio” ou “es­
tarei cônscio”. Quando estais completamente atento, com vossa
mente, vosso coração, vossos nervos, vossos olhos, vossos ouvi­
dos — quando tudo está atento, não há nenhum tempo. Não
dizeis, então: “ Estive atento ontem, e hoje não estou atento” .
A atenção não é um movimento ( m om en tu m ) contínuo do
tempo. Ou estais atento, ou não estais atento. Em geral,
estamos desatentos, e nesse estado de desatenção criamos afli­
ções para nós mesmos. Se estais totalmente atento ao que está
ocorrendo no mundo — fome, guerras, doenças, tudo — deixa
então de existir a divisão do homem contra homem.

43
I nterrogante : Há momentos quase assim, mas no dia se­
guinte ou no momento seguinte, êles se foram. Como
posso conservar aquela “memória” que eu tive?
K r ish n a m u r ti : Uma “memória” é coisa morta. Por conse­
guinte, não é percebimento, não é atenção. A atenção está
sempre no presente. Nisso consiste a arte de viver, senhor. Quan­
do estiverdes desatento, não façais nada. Isso requer muita
inteligência e muita observação; porque a desatenção é que é
a causadora de nossos males e aflições. Quando estais atento,
inteiramente, com todo o vosso ser, nesse estado a ação é ins­
tantânea. Mas a mente se lembra dessa ação e deseja repeti-la,
e então estais perdido.
I nterrogante : Podeis falar sôbre a relação entre a ação, a
energia e a atenção?
K r ish n a m u r ti : É o que estou fazendo, senhor. A desatenção
é dissipação de energia. Mas, nós somos exercitados pela educa­
ção, pela estrutura social e psicológica do mundo, para estar desa­
tentos. Outros pensam por nós; dizem-nos o que devemos
fazer, o que devemos crer; dizem-nos como devemos experi­
mentar; mandam-nos fazer uso de drogas. E nós, quais carnei­
ros, os seguimos. Tudo isso é desatenção. Quando há auto-
conhecimento, quando estamos penetrando profundamente em
tôda a estrutura, na natureza de nós mesmos, então a atenção
se torna uma coisa natural. Há grande beleza na atenção.

30 de setembro de 1966.

44
NOVA IORQUE — IV
TEMPO, MORTE, AMOR

D e s e jo nesta reunião falar sôbre um assunto que se me


afigura sumamente importante. Penso que uma comunidade
ou sociedade que não compreendeu o problema do tempo, da
morte e do amor, será, òbviamente, muito superficial; e a
sociedade ou comunidade que é superficial há de, inevitavel­
mente, deteriorar-se. Pela palavra “superficial” entendo o con­
tentar-se meramente com os fenômenos externos, os êxitos
externos, a prosperidade, o passar o tempo agradàvelmente, e a
exigência de entretenimentos. Os entes humanos que fazem
parte de tal sociedade forçosamente hão de deteriorar-se, quer
freqüentando a igreja, quer os jogos de futebol. Uma e outra
coisa são iguais. As pessoas as freqüentam pela necessidade
de entretenimento, de estímulo. A menos que, como entes
humanos, resolvamos estas questões fundamentais, a mente
estará condenada a deteriorar-se. O problema é êste: É possí­
vel deter essa contínua onda de deterioração, não só da mente
e do coração, mas também a deterioração proveniente da falta
de zêlo, de ardor, de paixão? Ao falar-se na questão do tempo,
da morte e do amor, acho da maior importância, ter-se presente
que a palavra, a explicação não é o fato. Em geral nos satis­
fazemos muito facilmente com explicações; pensamos ter com­
preendido. A maioria de nós, que tanto temos lido e tantas
coisas temos experimentado, tem capacidade suficiente para
explicar qualquer coisa. Podemos dar uma explicação para
quase tudo, e a explicação parece satisfazer-nos, mas, quando
estamos tratando sèriamente de um dado assunto, a mera satis­
fação resultante de uma explicação verbal me parece totalmente

45
fútil, denota falta de madureza. Também, se me permitis reca­
pitular êste ponto, muito importa a maneira como escutamos,
pois a maioria de nós não costuma escutar realmente. Escuta­
mos com prazer ou desprazer, ou com’ uma fórmula de idéias,
uma filosofia que cultivamos ou aprendemos. Atrás dessas
cortinas escutamos, interpretando, traduzindo, rejeitando o que
nos desagrada, conservando o que nos agrada, e o ato de escutar
nunca se verifica.
Não sei se alguma vez já observastes — quando estais a
ouvir alguém que conheceis há muitos anos, com quem tendes
uma certa familiaridade — o pouco que escutais, já sabeis o
que a pessoa vai dizer. Já tendes opinião formada, já tendes
certas conclusões, certas imagens, que impedem, o verdadeiro
escutar. Escutar é um ato importantíssimo. Penso que, se
soubésseis escutar, não só o que diz o orador, mas também
tudo o que vos cerca na vida diária; se soubésseis escutar todos
os barulhos, o incessante tagarelar de vosso amigo, de vossa
esposa ou marido, as murmurações de vossa mente, o monó­
logo que ela entretém continuamente, sem condenar nem jus­
tificar, porém escutando realmente — êsse escutar traria uma
ação bem diferente da ação do pensamento calculista e disci­
plinado.
Espero possamos nesta tarde escutar dessa maneira, e isso
não significa que deveis concordar ou discordar. Pelo con­
trário, para escutar deve a gente ser altamente sensível, ardo­
rosa, judiciosa, consciente de seu próprio funcionamento, quer
dizer, achar-se num estado de atenção e, por conseguinte, de
paixão. Só assim pode a mente escutar realmente e transcender
as imagens e conclusões verbais, as experiências e teorias. Só
então há comunhão entre duas pessoas. Essa comunhão é,
com efeito — se posso empregar esta palavra tão “carregada’’
e tão desvirtuada — amor. Espero se estabeleça essa relação
entre o orador e vós e, assim, fiquemos aptos a examinar, num
pé de familiaridade, esta questão do tempo e da morte.
Não sei se já refletistes na questão da morte. A maioria
de nós teme essa coisa que se chama “morte”, o desconhecido.
Evitamos, afastamos de nós tal questão. Ou chegamos a certas
conclusões, racionalizamos a morte e nos contentamos com viver
o quinhão de tempo que nos foi proporcionado. Para com­
preendermos uma coisa que desconhecemos, é óbvio que o

46
mêdo tem de terminar. Temos de compreender o mêdo, não
a explicação do mêdo, não a inteira estrutura psicológica do
mêdo, porém a natureza do mêdo. Quando se está tratando
de assuntos profundos, de realidades profuqdas, acho que o
que nos deve interessar principalmente é abeirar-nos dêles com
uma mente nova, uma mente que não esteja a esperar nem a
desesperar, uma mente capaz de observar, de enfrentar os fatos
sem o menor estremecimento, o menor mêdo ou ansiedade. A
menos que o mêdo seja dissipado — não recalcado ou evitado
— não teremos possibilidade de compreender a natureza da
morte. A mente deve estar completa e inteiramente livre de
mêdo, porque a mente que tem mêdo, que está no desespêro
ou nutre a fantasia da esperança, com os olhos no futuro, essa
mente está envôlta em nuvens, é uma mente confusa, incapaz
de pensar com clareza, a não ser nos assuntos relativos à sua
cultura técnica. Aí, ela funciona mecanicamente. Mas, a
mente que tem mêdo vive na escuridão; a mente que está
confusa, no desespêro, na ansiedade, é incapaz de resolver
qualquer coisa fora do processo mecânico da existência. E
quer-me parecer que a maioria de nós vive mecanicamente.
Preferimos não ocupar-nos com assuntos mais profundos, pro­
blemas mais profundos, desafios mais profundos.

É possível estar-se livre em todo o campo da mente, tanto


no chamado inconsciente, como no consciente? Como já disse­
mos, não existe tal coisa — o inconsciente. Só existe êste
campo da consciência. Podemos estar cônscios de uma deter­
minada seção do campo, e não estar cônscios do restante. Se
não estamos cônscios do restante, não compreenderemos a tota­
lidade do campo. Infelizmente êsse campo foi dividido em
consciente e inconsciente, e estamos sempre a fazer êsse jôgo
entre o consciente e o inconsciente. Tornou-se moda estudar
o inconsciente. Mas se, ao contrário, nos tornarmos cônscios
do campo inteiro, não há necessidade alguma do inconsciente.
Só a mente que está cônscia de um certo canto do campo e
totalmente alheada do restante, só essa mente começa a sonhar
— e vêm então as interpretações dos sonhos etc. Se no correr
do dia estamos cônscios de cada pensamento, de cada senti­
mento, de cada motivo, de cada reação — cônscios, e não inter­
pretando, nem condenando, nem justificando: simplesmente
cônscios de todo o processo — veremos então que não há

47
nenhuma necessidade de sonhos. A mente se torna então
altamente sensível, ativa, não se embota.
Ao investigarmos, examinarmos a questão do medo — e
espero possamos fazê-lo, todos juntos, nesta tarde — teremos
de abarcar o campo inteiro, e não uma dada forma de mêdo,
não vosso mêdo particular, vosso mêdo “favorito” ou o mêdo
que estais evitando. O mêdo, sem dúvida, só existe em relação
com alguma coisa. Não existe sozinho. Tenho mêdo de vós,
tenho mêdo de uma idéia, mêdo de que minha crença seja des­
truída por uma idéia nova etc. O mêdo está em relação com
alguma coisa. Não existe per se. E para compreendermos o
mêdo em sua totalidade, devemos olhá-lo não fragmentària-
mente, não como um mêdo particular, um mêdo neurótico que
sinto. Devemos olhá-lo assim como olhamos um mapa-múndi.
Depois, podemos passar ao particular, considerar os detalhes,
olhar a estrada que estamos percorrendo, a aldeia a que nos
estamos dirigindo. Necessitamos de compreensão total, e isso
é um tanto difícil, porque estamos acostumados a pensar em
têrmos do “particular”, de fragmentos.
O contato com o mêdo, o mêdo total, exige atenção total.
Pela palavra “atenção” não entendo concentração. A con­
centração é a coisa mais fácil que há, mas, para prestardes
atenção, necessitais de tôda a vossa energia. Para dardes vossa
atenção completa, tudo déve achar-se no mais alto grau de
acuidade -— vosso corpo, vossa mente, vosso coração, vossos
nervos. Só então há atenção. Com essa atenção podeis olhar
o mêdo; nela não há a concentração fragmentária, dividida,
aplicada a um dado assunto; com ela vêdes o todo, a totalidade
do mêdo, sua estrutura, sua significação e importância, sua
interioridade. Se alcançardes êsse ponto, vereis então que o
mêdo termina total e completamente, porque não estais enre­
dado na palavra, no símbolo, no têrmo “mêdo”, que também
cria mêdo, assim como a palavra “morte” cria o seu mêdo
peculiar. Uma pessoa se torna atenta, quando os problemas
são urgentes, o desafio imediato. Sentis instantaneamente o
desafio, com êle entrais em contato completamente.
De ordinário, nunca estamos em contato com um proble­
ma, um desafio, uma questão difícil, porque, quando surge o
problema, já temos para êle uma solução. Já temos uma con­
clusão, uma mente sagaz e “verbal”, que enfrenta a palavra,

48
o desafio, com a resposta já pronta. Por conseguinte, não há
contato. “Estar em contato” significa tocar a coisa, e não
podeis entrar diretamente em contato com uma dada coisa, se
houver alguma idéia de permeio.
Para entrar em contato com o mêdo, a pessoa não só tem
de compreender a palavra que estimula o mêdo, mas também
compreender que a mente está enredada em palavras, porquanto
todo o nosso pensar é formulado em palavras, símbolos. Para
entrar diretamente em contato com o mêdo, a pessoa deve estar
livre da estrutura verbal criada pelo cérebro, pela mente. Se
queremos entrar em contato com êle, temos de tocá-lo. “Tocar”
não é palavra, não é uma conclusão, porém um fato real. Se a
pessoa é sagaz, talentosa, erudita, cheia de saber e intelectua­
lidade, não pode tocá-lo de modo nenhum; não há contato
direto com êle.
Se escutardes o que se está dizendo naquele sentido direto,
descobrireis o campo total da mente, e a mente terá compreen­
dido a natureza da palavra, como a palavra cria o sentimento,
e como a mente preconcebe aquilo de que tem mêdo. O verbal,
o simbólico, o processo de pensar verbalmente, tudo termina e
estais habilitados a entrar diretamente em contato com essa
coisa chamada “mêdo”.
Como há dias dissemos, nunca estamos em contato com
outro ente humano: nossa esposa ou marido, nossos filhos,
quem quer que seja — porque temos imagens do marido, da
esposa, do patrão etc. Essas imagens acham-se em relação
umas com as outras. Temos também imagens relativas ao
mêdo, à morte, ao amor, e a todas as coisas mais profundas
da vida.
Muito importa compreender a questão do tempo. Empre­
go a palavra “compreender” no sentido de entrar diretamente
em contato com uma coisa que a mente de modo nenhum pode
compreender por meio do pensamento. Não se pode compreen­
der o amor através de palavras, de idéias, de experiências pes­
soais. Esta questão do tempo é importante, porque para com­
preender a morte tendes de compreender o tempo; e compreen­
der a morte e o tempo é saber, compreender o que é o amor.
Sem a compreensão dessas três coisas fundamentais, a vida
pouco significa. Podeis freqüentar um escritório e ter muito

49
dinheiro, mas isso tem diminuta significação. Quando a vida
perde o seu significado profundo, estais então satisfeitos com a
atividade superficial, que leva a mais confusão e mais sofri­
mento. É isso o que realmente está sucedendo no mundo,
não só neste país, mas em tôda a Europa, na índia, e noutras
partes.
Estas questões têm de ser resolvidas por cada ente hu­
mano, porque cada ente humano é parte integrante da socie­
dade. Um ente humano não está separado da sociedade; é
condicionado pela sociedade que êle próprio criou. Para ser
criada uma nova sociedade ou comunidade, os problemas fun­
damentais da vida devem ser resolvidos.
Quando falamos a respeito do tempo, não entendemos
o tempo cronológico. Êste tempo existe, tem de existir. Se
desejais tomar um ônibus, um trem, ou encontrar-vos com
alguém amanhã, necessitais do tempo cronológico. Mas, psico­
logicamente, existe um amanhã — que é o tempo da mente?
Existe realmente “amanhã”, psicologicamente? Ou o amanhã
é criado pelo pensamento, porque êste, percebendo a impossi­
bilidade de uma mudança direta e imediata, inventa o processo
da gradualidade? Vejo por mim mesmo, como ente humano,
quanto importa promover uma revolução radical na minha ma­
neira de viver, de pensar, de sentir, e nas minhas ações, e
digo de mim para mim: “Preciso de tempo para isso. Ama­
nhã ou daqui a um mês serei diferente” . É êste o tempo a
que nos estamos referindo: a estrutura psicológica do tempo
— o amanhã ou o futuro; êste o tempo em que estamos vi­
vendo. O tempo é o passado, o presente e o futuro, não mar­
cados pelo relógio. Ontem eu era; êsse ontem opera através
do presente e cria o futuro. Isso é muito simples. Tive uma
experiência no ano passado, a qual deixou uma marca na minha
mente, e traduzo o presente em conformidade com aquela expe­
riência, aquêle conhecimento, aquela tradição, aquele condicio­
namento, e crio o amanhã. Estou prêso nesse círculo. É a
isso que chamamos “viver”, a isso que chamamos “tempo” .
Espero estejais observando vossa própria mente e não
meramente ouvindo as palavras do orador. Nesse processo do
tempo, a memória é muito importante: a lembrança dos dias
felizes da infância, as lembranças de uma experiência profunda,
a lembrança que conservei de um certo prazer, que desejo

50
repetir amanhã. A repetição do prazer “amanhã” é continuada
pelo pensamento. O pensamento, pois, é tempo; porque se,
psicologicamente, não penso no amanhã, não há amanhã. Vede
por favor que isso não é uma simplificação exagerada. Para se
compreender uma coisa muito complexa, uma coisa que requer
profundo exame e penetração, deve-se começar com simplici­
dade; e o primeiro passo é que tem importância, e não o último
passo.
O pensamento — que é VÓS — com tôdas as suas me­
mórias, condicionamentos, idéias, esperanças, desesperos; a
total solidão da existência •
— tudo isso constitui o tempo, O
cérebro é o resultado do tempo, cronologicamente falando, o
resultado de dois milhões de anos. Êle tem suas reações de
avidez, inveja, ambição, ciúme, ansiedade. E , para compreender
o estado atemporal, aquêle estado em que o tempo parou,
temos de investigar se a mente pode ficar totalmente livre de
tôda a experiência, que é do tempo.
• Espero não estar tornando o assunto complicado. As
explicações são complicadas, porém o fato real não é compli­
cado; e quem está cônscio, atento, pode ver êsse processo. A
vida é um processo contínuo de desafio e reação; e tôda
reação é condicionada pelo passado. Todo desafio é nôvo, pois
do contrário, não seria “desafio” — mas estamos sempre rea­
gindo do passado, exceto em raras ocasiões, sobre as quais não
precisamos estender-nos. São ocasiões tão raras, que não con­
tam. No cérebro se acumulam, na forma de experiência, todos
os desafios e reações; e, na base dessa acumulação, nós agimos,
pensamos, sentimos, funcionamos psicologicamente, interior­
mente, da pele para dentro, por assim dizer.
Cumpre averiguar se é possível viver-se tão completa­
mente que não haja ontem, nem hoje, nem amanhã. Para
compreender isso, e vivê-lo, temos de examinar a estrutura
da memória, do pensamento. Temos de perguntar a nós mes­
mos o que é pensar. Que é pensar, e por que devemos pensar?
Eu sei que se formou o hábito de pensar, raciocinar, julgar,
escolher. No nível mecânico, isso é absolutamente necessário,
pois, do contrário, não poderíamos funcionar. Mas, é possível
viver, dia por dia, libertado do tempo psicológico, entendido
como ontem, hoje e amanhã? Isso não significa viver no mo­
mento presente; esta é uma de nossas mais absurdas falácias:

n
O importante é viver agora. O agora é o resultado de ontem:
o que pensamos, o que sentimos, nossas lembranças, esperan­
ças, temores, tudo o que se acumulou. Se tudo isso não fôr
compreendido e dissolvido, não poderemos viver no agora.
Não existe agora, por si só, porque a vida é um movi­
mento total, infinito, que dividimos, psicologicamente, em ontem,
hoje e amanhã e, conseqüentemente, inventamos o processo
gradual para alcançarmos a libertação. Isso é fazer como o
homem que fuma ou bebe: gradualmente abandonará o vício;
para tanto precisará de tempo. Ou como o homem que é vio­
lento, mas tem o ideal da não violência. Enquanto está “alcan­
çando” a não violência, está a disseminar os germes da vio­
lência. É isso o que estamos realmente fazendo, e chamamo-lo
“evolução”. Mas, por favor, não me tomeis por “fundamen-
talista” (*).
A mente, o cérebro, a estrutura inteira, só compreenderá
o estado mental em que o tempo não existe, após ter com­
preendido a natureza da memória e do pensamento. Poderemos
então encarar de frente e compreender a natureza da morte. A
morte é agora uma coisa que está distante, “lá longe” . Volta­
mos-lhe as costas; fugimos dela; temos teorias a seu respeito;
racionalizamo-la; ou temos esperanças relativas à vida após a
morte. Na Ásia, na índia, crêem na reencarnação. É a espe­
rança dêles, lá. Isso não significa compreender a beleza da
morte. Empregando a palavra “beleza”, o orador não se está
fazendo sentimental a respeito da morte. O que está implicado
na idéia de uma vida futura é a existência de uma entidade
permanente, da alma, de uma certa coisa que tem continui­
dade. A essa entidade se tem dado diferentes nomes, no Oriente
e no Ocidente; entretanto, em essência, trata-se da mesma coisa:
algo que é permanente, que tem continuidade.
Há a morte física, do organismo que se gasta por causa
das tensões e pressões a que está sujeito, por causa de maus
tratos, de drogas, de abusos de tôda ordem. Gradualmente o
mecanismo se desgasta, morre. Êsse é um fato evidente, mas
a esperança entra em cena e diz: “Há uma continuidade. Nem

(1) Fundamentalist'. Termo empregado como antónimo de


“■modernist” (modernista). (Cf. Practical Standard Dictiona­
ry, Funk & Wagnals). (N. do T.)
tudo está acabado. Eu vivi, lutei, acumulei, aprendi, desen­
volvi meu caráter (não sei por que desenvolvemos um caráter,
coisa tão irrelevante), e aquela entidade permanente subsis­
tirá até tornar-se perfeita” (o que quer que isso signifique).
Existe, de fato, uma entidade permanente? Conheço os
crentes, mas os crentes não são os porta-vozes da verdade.
São meros “dogmatistas”, teólogos, ou gente cheia de espe­
ranças fantásticas. Se examinardes a vós mesmos para verifi­
cardes se existe alguma coisa permanente, vereis que não há
nada permanente, nem exterior nem interiormente. Embora
cada um de nós anele a segurança interiormente, estamos a
negá-la com as nossas nacionalidades, com a guerra. No Vietnã
está-se a negar totalmente a segurança física, embora cada uma
das partes em luta anseie pela segurança. Existe segurança per­
manente, afora a idéia a ela relativa? Se não há, e de fato não
há, que é então que tem continuidade? A memória, experiên­
cias mortas, as cinzas do passado? Se credes na reencarnação
e suas diferentes formas, tal a ressurreição, nesse caso é de
enorme importância a maneira como estais vivendo hoje, o que
hoje credes, como agis, o que fazeis. Tudo é de enorme impor­
tância, porque na próxima vida tereis de pagar por tudo. Tal
crença (reencarnação), afinal, é uma maneira de evitar o
fato real, que é a morte. Há a morte do organismo físico; e,
a fim de descobrir o que há além, pode a psique inteira, com
tôdas as suas tendências, prazeres, idiossincrasias, memórias,
experiências, morrer em cada dia, com pletam ente, sem discussão,
sem constrangimento — morrer, simplesmente?
Já experimentastes morrer para um prazer, para qualquer
coisa que anelais, que vos proporciona enorme satisfação,
deleite; morrer, sem reação, sem m otivo, sem discussão: morrer,
simplesmente, para tudo aquilo? Se fordes capazes de fazê-lo,
sabereis o que significa a morte: esvaziar a mente, totalmente,
de tôdas as coisas do passado. Isso pode e deve ser feito.
Essa é a única maneira de viver, pois o amor é isso, não? O
amor não é pensamento. O amor não é desejo, prazer. O pra­
zer, o desejo têm continuidade por causa do pensamento. E
quando o pensamento “pensa” num dado prazer, sexual ou de
outra natureza, êle qu er ser amado. Isso é um apetite. Um
apetite tem seu lugar próprio, mas infelizmente muito se fala
a respeito do amor: nas igrejas, nos livros, nos filmes.

53
Se amássemos, não haveria a guerra. Educaríamos nossos
filhos de maneira totalmente diferente, em vez de meramente
condicioná-los com um certo conhecimento técnico. Ninguém
mais se preocuparia com essa coisa chamada “ sexo”, não a
discutiria tão apaixonadamente como se se tratasse de uma
descoberta inteiramente nova. Conhecemos o amor apenas
como apetite sexual, com' sua carnalidade, suas exigências, frus­
trações, desesperos, ciúmes e todos os tormentos da mente hu­
mana, às voltas com essa coisa chamada “amor” . O amor não
tem absolutamente nada que ver com a fórmula concebida pelo
pensamento, e êle só pode nascer quando a memória, como
pensamento, com tôdas as suas exigências e prazeres, termina,
psicologicamente. O amor é então coisa inteiramente dife­
rente. Não podemos falar a seu respeito; não podemos escrever,
sem cessar, livros a respeito dêle. Amor divino, amor huma­
no — tal divisão não existe, mas, para alcançarmos o amor,
não só devemos estar livres do mêdo, mas também deve veri-
ficar-se a terminação do tempo e, por conseguinte, a compreen­
são da vida. Só é possível compreender a vida quando se
compreende a morte. Essa coisa que chamamos “viver” é
ansiedade, é desespêro, sentimento de culpa, infinito anelar,
total solidão, um campo de batalha. No mundo dos negócios,
em nossa diária existência no lar, nos campos de batalha do
mundo inteiro, estamos a entredestruir-nos; é isso que chama­
mos “viver” . Na realidade, é uma medonha confusão, uma
coisa mortal. Quando êsse suposto viver termina — e só pode
terminar quando para êle morremos totalm ente, não parcial­
mente ou para certos fragmentos dêle — então vivemos. A
morte e o viver coexistem; e para que a morte e a vida con­
tinuem a coexistir, tem-se de morrer para tudo todos os dias.
A mente se torna então fresca, nova, inocente. Essa inocência
não vem por efeito de nenhuma droga, nenhuma experiência.
Ela paira acima de tôda e qualquer experiência. O que a si
próprio ilumina não necessita de nenhuma experiência.
I nterrogante : Por que fomos postos aqui? Por que vivemos?
K rish n a m u r ti : Por favor, como dissemos outro dia, não fa­
çamos perguntas desinteressantes. O que interessa é com o
vivermos, e não por que fomos postos aqui. Naturalmente
sabeis muito bem como nos tornamos existentes — pois temos
pai e .mãe. Mas, aqui estamos, e a morrer lenta ou ràpida-

54
mente, a deteriorar-nos, em meio a nossa prosperidade, a nossas
atividades egocêntricas. É possível vivermos neste mundo, e
não num mosteiro, sem isolar-nos em conclusões, crenças, dog­
mas, ou numa certa nacionalidade, ou prestando “bons servi­
ços” ? É possível? Esta é que é a verdadeira questão.
I nterrogaístte: Como é que se morre cada dia?
K r ish n a m u r ti : Existe algum método? Se existe, então o
método produz seu resultado próprio. Se sigo determinado
método, se me dizem qual é a maneira de morrer todos os dias
e se me dão um método para seguir passo a passo, que acon­
tece? Morro realmente, ou estou apenas praticando um certo
“método de morrer” ? Muito importa compreender isso. Os
meios são o fim; não são duas coisas separadas. Se o meio
é mecânico, o fim é mecânico. Se o meio é uma maneira de
garantir-nos prazer, ganhos, lucros, então o fim também será
isso. O meio cria o seu fim próprio, e temos de rejeitar com­
pletamente êsse meio, ou o meio total, que é o tempo. Por
conseguinte, não há com o morrer.
Vêde, senhor. Tendes um certo hábito: hábito sexual ou
hábito de beber, de fumar, de falar; afetações, temperamentos.
Podeis morrer para isso, abandonar completa e instantaneamente
o fumo, a bebida, o prazer? Sei que há métodos de deixar
de fumar aos poucos. Isso não é pôr fim a uma coisa. Pôr
fim a um hábito é acabar com êle com pletam ente. Isso acon­
tece quando a morte chega. Com ela não se discute.
Pode-se viver tão completamente cada dia, que não haja
ontem nem amanhã? Isso requer muita meditação e perce-
bimento interior. Não é questão de concordar nem de discordar,
nem de perguntar “como” se faz. Ninguém pode dizer-nos
nada a êsse respeito. A coisa exige muita energia, discerni­
mento, compreensão, percebimento, e a mais alta sensibilidade,
que é inteligência. Certas drogas — L.S.D. etc. (mas eu
não as tomei) tornam a pessoa sensível num determinado canto
do vasto campo da vida. No resto do campo ela permanece
insensível, embotada; e, pelo fato de tornar-se altamente sen­
sível numa dada área, vendo côres, visões, e tendo experiências,
supõe a pessoa que isso representa tôda a substância da vida.
Mas, para compreender a totalidade da vida, ela tem de ser
totalmente sensível, física e psicologicamente. Pensa-se que se
pode ser altamente sensível, psicologicamente, porém, flsica-
mente, brutal, embotado e insensível. A vida não pode ser
dividida em fragmentos, cada fragmento em conflito com os
demais. Só conhecemos êsse conflito, êsse esforço incessante
até à morte. Na família, no trabalho, mesmo nos momentos
tranqüilos de nossa vida, nunca há um instante de silêncio, um
estado isento de esforço.
I nterroganre : Dissestes outro dia que o homem que morre
no Vietnã é VÓS. Podeis dizer mais alguma coisa a êste
respeito?
K r ish n a m u r ti : Não estamos falando sôbre o homem que
morre no Vietnã; estamos falando sôbre o homem que vive
aqui, agora. O homem que morre no Vietnã é o resultado de
nossa vida. Nós não queremos paz. A respeito dela falamos
interminavelmente, mas, para têrrpos paz, temos de viver pacl-
ficamente. Isso significa que não deve haver competição, ambi­
ção, divisão em nacionalidades, preconceitos de côr. Como não
vivemos pacificamente, há guerras, no Vietnã, na índia, na
Rússia e noutras partes. Em verdade, estamos educando nossos
filhos para morrerem, serem mortos — no escritório, na família
ou no campo de batalha; e a isso chamamos viver. Passamos
por entes altamente civilizados, sofisticados. O sofrimento é
nossa sina, e para terminarmos o sofrimento, temos de terminar
o tempo; temos de compreender a natureza da morte. Onde
há amor, não há sofrimento, para o próximo, para o homem
a vosso lado ou ã vossa frente. Onde está o amor, está termi­
nado o sofrimento, não há adoração do sofrimento.
I nterrogante : Senhor, se o homem não faz esforço algum,
então deve ser por acidente que compreende alguma coisa?
K r ish n a m u r ti : Por que fazemos esforço? Primeiramente,
compreendamos isso, em vez de querermos saber se não deve­
mos fazer esforço. Nós estam os fazendo esforço. Desde o
momento em que nascemos até morrermos, há esforço, luta.
Por quê? Se compreendermos corretamente esta luta, psicolo­
gicamente, interiormente, então a existência exterior terá um
significado inteiramente diferente. Temos de compreender o
esforço, essa luta constante. Há esforço quando há contradi­
ção. Há esforço quando há comparação: Sois melhor do que
eu, sois muito mais inteligente, ocupais um cargo melhor, sois
famoso e eu não sou nada e, portanto, tenho de alcançar-vos.

56
Isso é um fato, e não uma suposição. É assim que funciona­
mos em cada dia de nossa vida. Adoramos o êxito. As revistas
estão cheias de histórias de êxitos, e desde o momento em que
começamos a ir para a escola até à morte, estamos a comparar,
a lutar, em incessante conflito, porque há uma divisão, uma
contradição entre aquele que compara e aquilo com que êle
se compara. Pela comparação pensamos que compreendemos,
mas na realidade não compreendemos.
O viver sem comparação exige enorme inteligência e
sensibilidade, porque não há então exemplo, não há alguma
coisa que deveria ser, não há ideal, não há herói. Começamos
com o que realmente é ; e para compreender o que é não há
nenhuma necessidade de comparação. Quando comparamos,
destruímos o qu e é. É o que acontece quando comparamos
um menino com seu irmão mais velho, muito inteligente; se
o fazemos, destruímos o menino mais nôvo. É isso o que
estamos sempre fazendo. Estamos a lutar, a lutar por quê,
psicologicamente? Para pôr fim à violência? Para têrmos
mais experiência? Pôr fim à violência é entrar diretamente em
contato com ela, dentro em vós mesmo, e isso não se pode
fazer se há um ideal, como o da não violência ou da paz. Êsse
oposto cria conflito, mas, se sois capaz de olhar a violência,
completamente, com atenção total, não há então conflito, nem
luta. Ela termina. São os ideais absurdos, extravagantes, que
estão a destruir o contato direto com a realidade.
Podeis viver uma vida isenta de conflito, e isso não signi­
fica vegetar. Pelo contrário, a mente se torna altamente vigi­
lante, inteligente, enérgica, apaixonada . O conflito dissipa
essa inteligência.
I nterrogante : Há diferença entre amor e compreensão?
K rish n a m u r ti : Uma palavra pode abranger tôdas as coisas;
mas, uma palavra está sempre sujeita a corromper-se. Podeis
empregar a palavra “amor” ou a palavra “compreensão” .
Entretanto, em verdade, não importa qual a palavra de que
nos servimos, porque tôdas as palavras — por exemplo, “Deus”,
“morte”, “experiência”, “amor” — estão carregadas do signi­
ficado que diferentes pessoas lhes atribuíram. Quando se com­
preende o estado real, então as palavras perdem tôda a sua
importância.

57

i
I nterrogante : O mundo está tão densamente povoado, que
pergunto a mim como se pode viver sem política e sem
participação nos negócios da comunidade social?
K r ish n a m u r ti : S ó há um problema político: a unidade hu­
mana. Mas, não haverá possibilidade de estabelecer-se a união
da humanidade, enquanto houver nacionalidades e exércitos;
enquanto não houver um governo único, nem democrático, nem
republicano, nem laborista; enquanto não nos interessarem ver­
dadeiramente os entes humanos -— não importa se vivam na
Rússia, na índia, na China ou na Inglaterra. Temos agora a
possibilidade de fornecer alimento, teto e roupa a tôda a po­
pulação da Terra, mas não o estamos fazendo, e bem sabeis
por que razões: nacionalidades, preconceitos religiosos etc. etc.
I nterrogante : O conhecimento técnico e o conhecimento
psicológico não são interdependentes? Podem ser sepa­
rados um do outro?
K rish n a m u r ti : Esta é uma questão importantíssima. Como
pode um ente humano, em meio a êste caos tremendo, viver
com suprema inteligência, como um bom cidadão, não de uma
dada comunidade, porém do mundo? O mundo não é Amé­
rica, Rússia ou China. Como pode viver neste mundo, cercado
de tanto caos e tantas aflições? Eis o problema. Deve ingres­
sar no partido comunista, no partido democrático ou noutro
partido? Há necessidade de ação. Como poderemos agir
juntos? De que lado começar? Do lado técnico, ou de um
lado totalmente diferente — um lado que não é do tempo,
de nenhuma classe, de nenhuma experiência? Se pudermos
resolver êste problema, resolveremos todos os nossos problemas.
I nterrogante : Que nome tem êsse “lado” a que vos referis?
K rish n a m u r ti : Pensais, senhor, que é indispensável um no­
me? Chamai-o X , chamai-o Deus, chamai-o Amor — qualquer
nome serve. O nome não é a realidade. Será suficiente dar-lhe
um nome? Milhares de pessoas já o têm feito.
I nterrogante : Dai-nos uma fórmula {riso s).
K rish n a m u r ti : Já falamos de fórmulas e ideologias. Comu­
nidade baseada numa ideologia já não é uma comunidade. Nela,
todos brigam entre si pela conquista de posição e de prestígio.
Estamos falando de coisas muito diferentes. Dissemos que o
que se faz necessário é uma mente nova, e não uma nova téc­

58
nica, um nôvo método, uma nova filosofia, ou uma nova droga.
E essa mente nova não nascerá se não soubermos morrer para
tudo o que é velho, morrer com pletam ente, esvaziar a mente
de todo o passado. Então, não necessitareis de nome nenhum
para aquela coisa; vós a estareis vivendo', sabereis então o que
é a bem-aventurança. Neste mundo em que estamos vivendo,
tão cheio de caos, só a mente inocente é capaz de resolver
estes problemas, e não a mente complicada.

3 de outubro de 1966.

59
NOVA IORQUE — V

A RENOVAÇÃO MENTAL

fato notório , não só neste país, mas também na Europa


e na índia, que, embora a parte mecânica do cérebro se esteja
desenvolvendo rapidamente, está-se a processar uma deterio­
ração noutros setores da vida. As relações gerais entre os entes
humanos estão, com efeito, a deteriorar-se, moral e èticamente.
Como sêres humanos devemos, não só resolver êste enorme
problema, mas também ver, fora dêle, o que se pode fazer,
se é possível deter a deterioração, a desintegração de uma
mente dotada de tão notáveis aptidões. Já levamos anos e
anos a cultivar o lado mecânico-tecnológico da vida. Os pro­
blemas aí existentes podem ser facilmente resolvidos, mas temos
outros problemas que nunca tratamos de resolver. Pela vida
tôda ficamos a aumentar ou a fugir de nossos problemas, e
com êles morremos. É possível a mente libertar-se totalmente
de todos os problemas? São os problemas que ficam sem
solução os causadores da destruição, da deterioração da mente.
É possível resolver cada problema ao surgir, sem lhe pro­
porcionar a oportunidade de enraizar-se na mente? Referimo-
-nos aos problemas não mecânicos, aos problemas mais pro­
fundos da vida. Quantos mais desses problemas formos levan­
do conosco, tanto mais pesado se torna o nosso fardo e tanto
mais evidente é que a mente e a totalidade de nossa humana
existência se tornam mais e mais complexas e confusas. Está
havendo pressões maiores e uma confusão maior. Natural­
mente, o cérebro, assim como a totalidade da mente — que é
a consciência como um todo — se deterioram. Pode um ente

60
humano, que tem de viver neste mundo com tôdas as suas
influências, resolver êstes problemas?
Só existe problema quando é inadequada a reação ao desa­
fio; de outra maneira, não temos problemas. Quando somos
incapazes de corresponder totalmente ao desafio, qualquer que
êle seja, então, devido ao inadequado da reação, temos um pro­
blema. Á esses desafios, que são sempre novos, reagimos me­
canicamente ou com nossa acumulação de conhecimentos ou de
experiência, de modo que não há uma reação direta.
Isso está acontecendo no mundo inteiro. Exteriormente,
um progresso fantástico; exteriormente, mudanças extraordiná­
rias, entretanto, psicologicamente, interiormente, não se vê mu­
dança nenhuma, ou quase nenhuma. Há contradição entre o
que se está passando interiormente, e as vastas mudanças que
estão ocorrendo exteriormente. Interiormente, estamos manie­
tados pela tradição; nossas reações procedem de nosso fundo
animal, e são limitadas. Um dos nossos maiores problemas
é o de renovar, de rejuvenescer a psique, o todo da consciência.
É possível resolvê-lo?
O homem sempre tentou ultrapassar os seus problemas,
quer fugindo deles por meio de vários métodos, quer inven­
tando crenças que êle espera possam renovar a mente que está
sempre a deteriorar-se. Procura passar por várias experiências,
esperando encontrar uma que transcenda tôdas as outras e lhe
dê a total compreensão da vida. Experimenta tantos meios
diferentes — drogas, meditação, devoção, sexo, saber — e,
todavia, malgrado todos êsses métodos, não parece êle capaz
de dissolver o fator central, responsável pela deterioração. É
possível esvaziar de todo a mente, para que cotidianamente
se renove e já não crie problemas para si; para que seja capaz
de enfrentar cada desafio de maneira tão completa e total, que
dêle não fique. resíduo algum que se torne em outro problema?
É possível passar por tôdas as espécies de experiência que os
entes humanos têm e, no fim do dia, não restar um único
resíduo, para ser levado para o dia seguinte, salvo o conheci­
mento técnico? Não confundamos as duas coisas. Se isso não
fôr possível, então, naturalmente, a mente se deteriorará; outra
coisa não lhe acontecerá senão desintegrar-se. A questão é:
Pode a mente, que é o resultado do tempo, da experiência, de
tôdas as influências, da cultura, do condicionamento social, eco-

61
nômico e climático, libertar-se e ficar sem nenhum problema,
sempre nova, sempre capaz de enfrentar imediatamente todo
desafio que se lhe apresenta? Se disso não formos capazes,
morreremos; chegará a seu fim uma vida atormentada. Nós
não resolvemos as nossas aflições; jamais satisfazemos verda­
deiramente os nossos apetites; estamos sempre presos a essa
roda de preenchimento e frustração; nossa vida foi sempre
um campo de batalha.
Temos de encontrar solução para. esta questão, não por
meio de alguma filosofia, porque, naturalmente, nenhuma filo­
sofia pode resolvê-la, embora possa fornecer explicações. Re-
solvê-la é libertar-se de todos os problemas e tornar a mente
sumamente sensível, ativa. Nessa própria atividade, é ela
capaz de liquidar todos os problemas que surgem.
Sabemos o que se entende por um problema: a reação
inadequada a um desafio. Os desafios se apresentam intermi-
nàvelmente a tôdas as horas. Quanto mais vigilantes estamos,
quanto mais refletidos somos, tanto mais agudos se tornam os
problemas. Vendo-nos incapazes de resolvê-los, inventamos
teorias; e quanto mais intelectuais somos, tanto mais sagaz é a
mente, para inventar uma estrutura, uma crença, uma ideologia
que nos sirva de via de fuga. A vida é cheia de experiências,
que constantemente assaltam a mente. Como em geral a nossa
vida é tão vazia, tão cheia de solidão e tédio — uma existência
sem significação, lastimosa — desejamos mais e mais experiên­
cias, cada vez mais amplas e profundas. A peculiaridade da
experiência é que ela nunca é nova. Experiência é o que já foi
e não o que realmente é. Quando tivestes uma experiência,
vós a reconhecestes e dissestes: “Uma experiência!” . O reco­
nhecimento implica que já a conheceis, que já tivestes tal
experiência, e, por conseguinte, não há nada nôvo no experi­
mentar. É sempre o conhecido que é capaz de reconhecer uma
experiência; é o passado que diz: “Já tive esta experiência” —
e, por conseguinte, pode dizer que isso é uma experiência.
Tanto na Europa como neste país, L.S.D. está proporcio­
nando novas experiências, e os que tomam essa droga andam
sempre no encalço dessas novas experiências, a “fazer a via­
gem”, como dizem êles. Tais experiências resultam do condi­
cionamento dêles, de sua limitada consciência e, consequente­
mente, não constituem uma coisa totalmente nova. Se fosse

62
i
f
uma coisa totalmente nova, êles não a reconheceriam como
“experiência”. Pode a mente achar-se num tal estado de ativi­
dade, que esteja livre de todas as experiências?
Nós somos o resultado do tempo; e, no decorrer dêsse
tempo, temos cultivado tôdas as tendências humanas. A civi­
lização, a sociedade, as religiões têm condicionado a mente.
Estamos sempre a traduzir todo desafio em têrmos de nosso
condicionamento e, assim, se nos observamos, o que em geral
acontece é que cada pensamento, cada movimento da mente
é limitado, condicionado, e o pensamento jamais pode ultra­
passar a si próprio. Se não tivéssemos experiências, adormece­
ríamos. Se não houvesse desafios, embora com reações inade­
quadas e todos os conseqüentes problemas, adormeceríamos. É
isso o que está acontecendo à maioria de nós. Reagimos inade­
quadamente; temos problemas; os problemas se tornam de tal
vulto que somos incapazes de resolvê-los, e êles, por conse­
guinte, nos tornam embotados, insuficientes, confusos. A con­
fusão e a falta de adequadas reações crescem mais e cada vez
mais, e ficamos dependendo da experiência como o meio de
produzir a claridade, de promover uma transformação gran­
diosa, fundamental.
Pode qualquer espécie de experiência operar uma mudança
radical na psique, na consciência? Eis o problema! Nossa
consciência é o resultado do passado; nós som os o passado. E
a mente que está funcionando no campo do passado não pode­
rá em tempo algum resolver qualquer problema. Necessitamos
de uma mente totalmente nova; faz-se necessária uma revolução
na psique. Pode essa revolução realizar-se por meio da expe­
riência? É isso o que estamos esperando; é isso o que deseja­
mos. Estamos à procura de uma experiência que nos trans­
forme. Por isso é que freqüentamos a igreja, que tomamos
drogas ou nos sentamos para meditar — porque o que anela­
mos, o que intensamente desejamos é efetuar uma transfor­
mação dentro em nós mesmos. Vemos a necessidade dessa
transformação e passamos a depender de uma autoridade externa
ou de nossa própria experiência.
Pode alguma experiência, de algum modo, operar essa
revolução total na psique? Pode alguma autoridade externa,
algum agente externo — por exemplo, Deus, uma idéia, uma
crença — efetuar essa transformação? Pode a autoridade, como

63
idéia, como “graça de Deus”, operar alguma mudança? A auto­
ridade pode transformar a mente humana? Muito importa
compreender isso, porque a autoridade é para nós muito impor­
tante. Ainda que nos revoltemos contra a autoridade, estabele­
cemos nossa autoridade própria, e ficamos seguindo essa
autoridade, deixamos crescer os cabelos etc.
Existe a autoridade da lei, a qual naturalmente temos de
aceitar. E há a autoridade psicológica, a autoridade do homem
que sabe, do sacerdote, por exemplo. Hoje ninguém mais liga
importância ao sacerdote. Os indivíduos chamados “ intelec­
tuais”, de idéias claras, pouco se importam com o sacerdote,
a igreja e tôdas as suas invenções, mas têm sua autoridade
própria — a autoridade do intelecto, da razão ou do conheci­
mento — a qual seguem. O homem que tem mêdo, que está
na incerteza, que não tem clareza nas atividades de sua vida,
êsse deseja que alguma autoridade lhe diga o que deve fazer:
a autoridade do analista, do livro, ou da mais nova extrava­
gância.
Pode a mente ficar livre da autoridade e, portanto, livre
do mêdo e da vontade de seguir? Se puder, estará acabada
a imitação, que sempre se torna mecânica. Afinal de contas, a
virtude, a ética, não é uma imitação do que é bom. No mo­
mento em que se torna mecânica, não é mais virtude. A virtude
é uma coisa que deve existir de momento em momento, tal
como a humildade. A humildade não pode ser cultivada, e a
mente que não tem humildade é incapaz de aprender. A virtude,
pois, não conta com nenhuma autoridade. A moralidade social
não é moralidade nenhuma; ela é imoral, porque admite a com­
petição, a avidez, a ambição, e, por conseguinte, a sociedade
está fomentando a imoralidade. A virtude é algo que trans­
cende a memória. Sem a virtude, não há ordem, e a ordem
não obedece a nenhum padrão, nenhuma fórmula. A mente
que segue uma fórmula, disciplinando-se para alcançar a virtude,
cria para si própria os problemas da imoralidade.
Uma autoridade externa — salvo a lei — que a mente
objetiva como Deus, como moral etc., torna-se destrutiva, para
a mente que quer compreender o que é a verdadeira virtude.
Temos nossa autoridade própria — nossa experiência, nosso
conhecimento — a qual procuramos seguir. Há essa constante
repetição e imitação, que todos nós conhecemos. A autoridade

64
psicológica — não a autoridade da lei, do policial mantenedor
da ordem — a autoridade psicológica que cada um de nós
tem, se torna destruidora da virtude; porque a virtude é uma
coisa que está viva, a mover-se. Assim como não podeis culti­
var a humildade, assim como não podeis cultivar o amor, assim
também a virtude não pode ser cultivada. A virtude não é
mecânica; e sem a virtude não há base para o claro pensar.
Isso traz à balha o problema da disciplina. Para a maioria
de nós, disciplina é recalcamento, imitação, ajustamento, con­
formismo, e por conseguinte há perene conflito; mas há uma
disciplina que não é recalcamento, que não é controle, que não
é ajustamento. Vem essa disciplina quando há absoluta neces­
sidade de ver claramente. Estamos confusos, e com essa con­
fusão atuamos, aumentando assim cada vez mais a nossa
confusão. O perceber que estamos confusos e abster-nos de
agir, exige enorme disciplina.
O ver uma flor exige muita atenção. Se desejais realmente
olhar uma flor, uma árvore, vosso próximo, vossa mulher ou
marido, tendes de olhar; e não podeis olhar se o pensamento
interfere nesse ato. Compreendei isso; percebei êsse fato. A
própria observação do fato exige disciplina. Nessa disciplina
não há imposição por parte da mente, que me manda “ ser
ordeiro, disciplinado, a fim de olhar” . A psique necessita de
seguir uma autoridade, um guia, para fazer o que é correto.
Tal autoridade acaba com a virtude, e sem a virtude não temos
possibilidade de pensar claramente, de viver uma vida de extraor­
dinária sensibilidade e atividade.
Dependemos da experiência, como o meio de promover
essa revolução na psique. Pode alguma experiência promover
mudança na consciência? Em primeiro lugar, por que necessi­
tamos de experiência? Porque nossas vidas são vazias. Tive­
mos experiências sexuais; freqüentamos igrejas; lemos livros;
fizemos centenas de coisas sem importância; e desejamos agora
uma experiência suprema que venha dissipar tôda esta confusão.
Que entendemos por experiência, e por que a exigimos?
Esta é uma questão muito séria. Tende a bondade de
examiná-la junto comigo. Descobri, por vós mesmos, porque
desejais experiência, não só as experiências que o L.S.D. pro­
porciona, mas também outras formas de experiência. Tais
experiências devem ser, naturalmente, agradáveis, deleitáveis;

65
ninguém deseja experiências tristes. Por que? E quem é que
está experimentando? Quando estais experimentando, num
estado de experiência, existe um observador que diz: “Estou
experimentando” ? Tôdas as experiências estão sempre no
passado, nunca no momento presente, e tôda experiência que
tendes é reconhecível, pois, de contrário, não seria uma expe­
riência. Se a reconheceis, ela já é conhecida; de contrário,
não poderíeis reconhecê-la.
A mente que exige experiência como meio de promover
uma revolução radical na psique está apenas a pedir uma con­
tinuação do que fo i; por conseguinte, não há nada nôvo na
experiência. A maioria das pessoas necessita da experiência
para manter-se desperta; de outro modo, adormeceria. Se
não houvesse desafio, se não houvesse reação, se não houvesse
prazer e dor, ficaríamos vegetando, como vacas. A experiência
nos conserva despertos, pela dor, pelo sofrimento, por tôdas
as formas de descontentamento. De um lado, ela atua como
estimulante; de outro lado, impede a mente de ter clareza, de
ter uma revolução.
É possível mantermo-nos totalmente despertos, intensamen­
te ativos, inteligentes, sensíveis? Se a mente é sensível, extraor­
dinariamente sensível, não necessita de experiência. Só a mente
embotada, a mente insensível, exige experiência, porque espera
que por meio dela irá alcançar experiências de iluminação,
maiores e cada vez maiores.
A mente é o resultado de muitos séculos, de milhares e
milhares de anos. Sempre funcionou no campo do conhecido.
Dentro dêsse campo do conhecido, não existe nada nôvo.
Todos os deuses que a mente inventou são do passado, do co­
nhecido. Pode a mente, por meio do pensamento, da inteli­
gência, da razão, promover uma transformação?
Necessitamos de uma tremenda mutação psicológica, não
uma mudança neurótica; e a razão, o pensamento, não pode
realizá-la. Nem o saber, nem a razão, nem as sagazes ativida­
des do intelecto poderão operar essa radical revolução na psique.
Se nem a experiência nem a autoridade podem produzi-la, o
que é então que a produzirá? Esta é uma pergunta funda­
mental e não uma pergunta que pode ser respondida por outra
pessoa; mas, no examiná-la, e não no tentarmos responder a

66
ela, encontraremos a resposta. Para fazer tal pergunta, preci­
samos de ser muito sérios; porque, se fazemos a pergunta com
um m otivo, com o desejo de certos resultados, o motivo dita
a resposta. Por conseguinte, devemos fazer a pergunta sem
nenhum motivo, sem desejarmos nenhuma vantagem; e isso
é dificílimo, porque tôdas as nossas atividades e exigências
têm motivos pessoais, ou um motivo pessoal identificado com
um motivo superior, porém sempre motivo.
Se o pensamento, a razão, o conhecimento e a experiência
não podem realizar uma radical revolução na psique, que é
que poderá realizá-la? Tal é a única revolução que resolverá
todos os nossos problemas. Estou examinando a pergunta;
não estou respondendo a ela. Não há resposta, mas no inves­
tigar da própria pergunta encontraremos a resposta. Temos
de ser “intensos”, apaixonados, altamente sensíveis e, portanto,
altamente inteligentes, para podermos fazer uma investigação,
e não podemos ser apaixonados se temos um motivo; pois,
nesse caso, a paixão é apenas o resultado do desejo de alcançar
um resultado e, por conseguinte, se torna um prazer. Onde há
prazer, não há paixão. A própria intensidade com que fazemos
a nós mesmos aquela pergunta cria a energia necessária ao
exame.
Para examinar-se qualquer coisa, principalmente coisas não
objetivas, coisas interiores, necessita-se de liberdade, de liber­
dade com pleta para olhar; e essa liberdade não é possível
quando o pensamento, como reação de experiências ou conheci­
mentos anteriores, interfere no ato de olhar. Se tendes inte-
rêsse, acompanhai um pouco o orador, não como autoridade;
olhai simplesmente os fatos.
Se desejais olhar uma flor, qualquer pensamento a ela
relativo vos impede de olhá-la. As palavras “rosa”, “violeta”,
o nome da flor, da espécie da flor, vos impedem de olhar. Para
olhardes, não deve haver interferência da palavra, que é a
objetivação do pensamento. Deveis estar livre da palavra;
o olhar exige silêncio; de contrário, não se pode olhar. Se
olhais vossa esposa ou marido, tôdas as lembranças que guar­
dastes, aprazíveis ou dolorosas, interferem no olhar. Só quando
olhais sem a imagem, existe um estado de relação. Vossa ima­
gem verbal e a imagem verbal da outra pessoa, não estão em
relação nenhuma. São inexistentes.

67
Permitis-me sugerir uma coisa? Por favor, escutai! Não
tomeis notas! Não estamos numa sala de aulas. Estamos,
juntos, fazendo uma viagem de exploração de uma das coisas
mais difíceis e que, portanto, exige tôda a vossa atenção. Se
estais a tomar notas, isso significa que pretendeis refletir a
respeito do assunto mais tarde e, conseqüentemente, que não
o estais fazendo agora; não estais sentindo a urgência do pro­
blema, e a mente que não sente a urgência de atender aos
problemas fundamentais, está morta, é uma mente estúpida,
embotada, ainda que muito sagaz e erudita. Essa urgência cria
a energia e a paixão necessárias para olhar o problema.
Para observar, precisamos estar livres da palavra, sendo
a palavra símbolo, com tudo o que encerra — conhecimento
etc. Para olhar, observar, temos de estar em silêncio; de con­
trário, como é possível olhar alguma coisa? Êsse silêncio ou
pode ser produzido por um objeto tão imenso que torna a
mente silenciosa; ou êle resulta de que a mente compreende
que, para olhar qualquer coisa, tem de quietar-se. Ela é então
como a criança que ganhou um brinquedo nôvo, que a absorve
inteiramente. A criança torna-se quieta; tão interessante é o
brinquedo, que a absorve; mas, isso não é o estado de quietude.
Tire-se-lhe o objeto da absorção, e ei-la de nôvo irrequieta, a
fazer barulho e travessuras. Para olharmos qualquer coisa ne­
cessitamos de liberdade; e a liberdade requer silêncio. A mesma
compreensão disso produz sua disciplina própria. Não há inter­
pretação, por parte do observador, daquilo que está a observar
— sendo o “observador” tôdas as idéias, memórias, experiên­
cias, que o impedem de olhar.
O silêncio e a liberdade são inseparáveis. Só a mente que
está tôda em silêncio — não por meio de disciplina ou controle
ou por causa da exigência de experiências extraordinárias, pois
tudo isso são futilidades — só a mente que está tôda em
silêncio pode responder àquela pergunta. Só o silêncio to­
tal produzirá a revolução total na psique — não o esforço,
nem o controle, nem a experiência, nem a autoridade. Êsse
silêncio é extraordinariamente ativo; não é mero silêncio está­
tico. Para o alcançardes, tendes de fazer o necessário. Ou o
fazeis instantaneamente, ou tomais tempo para analisar-vos e,
nesse caso, já perdestes o silêncio. A análise — psicanálise ou
auto-análise — não dá a liberdade, tanto mais porque requer
tempo — de hoje para amanhã e daí para diante, gradualmente.

68
A mente — vossa mente e minha mente — é resultado
do tempo, resíduo de tôda a experiência humana, produto de
nossa infinda luta humana. Vossos problemas são os mesmos
problemas do indiano, na índia. Êle está a passar pela mesma
aflição infinita que vós. Êsse desejo de encontrar a Verdade,
de descobrir se é possível uma revolução radical na mente, só
será correspondido quando houver liberdade total e, por con­
seguinte, não houver mêdo. Só existe a autoridade quando
existe o mêdo. Com a compreensão do mêdo, da autoridade
e da rejeição de todos os desejos de experiência — e essa é
realmente a plenitude da madureza —■ torna-se a mente com-
pletamente silenciosa. Só nesse silêncio — que é sumamente
ativo — pode verificar-se uma revolução total na psique. Só
então está a mente apta a criar uma nova sociedade. Torna-se
necessária uma nova sociedade, uma nova comunidade, consti­
tuída de pessoas que, embora vivendo no mundo, a êle não
pertençam. A vós é que cabe o dever de criar essa comunidade.

I nterrogante : Dissestes no começo que devemos aceitar a


autoridade da lei. Compreendo isso em relação a coisas
como regulamentos do tráfego etc.; mas a lei quer obri-
gar-me a ser soldado, e não posso aceitar tal exigência.
K rishnàMurti : Este é um problema existente no mundo
inteiro. Os governos exigem que vos alisteis no exército e
tomeis parte na guerra. Que ireis fazer, principalmente se sois
jovem? Nós, os mais velhos, já demos o que podíamos dar.
Mas, e os moços? Esta é uma pergunta que se faz em todas
as partes do mundo.
Pois bem; aqui não há nenhuma autoridade. Não vou
aconselhar-vos sôbre o que deveis ou não deveis fazer, se de­
veis alistar-vos ou não, se deveis matar ou não. Vamos exami­
nar a questão.
Na índia, em tempos passados, existiu uma comunidade
cujos membros diziam: “Nós não mataremos”. Não matavam'
animais para comer. Consideravam muito importante não ma­
goar o próximo, falar com bondade, ter sempre um certo
respeito à virtude. Aquela comunidade existiu por muitos
séculos, principalmente no sul, representada pelos brâmanes.
Mas, tudo isso é do passado. Que deveis vós fazer: contribuir
ou não contribuir para a guerra? Quando comprais um sêlo

69
dos correios, estais contribuindo para a guerra; quando ganhais
dinheiro, estais contribuindo para a guerra; quando trabalhais
numa fábrica, estais produzindo obuses para a guerra; e com
vossa maneira de viver, vossa competição, ambição, vossa ego­
cêntrica prosperidade, estais produzindo a guerra. Quando o
governo vos ordena alistar-vos no exército, cabe-vos decidir se
deveis fazê-lo ou deixar de fazê-lo e sofrer as conseqüências.
Conheço um rapaz, na Europa, onde todos os rapazes têm de
servir no exército um ano, ano e meio ou dois anos. Êsse rapaz
disse: “Não desejo isso, e não o farei. Prefiro fugir” . — Êle
fugiu, e isso significa que jamais poderá retornar à sua pátria.
Deixou com a família os seus bens. Nunca mais tornará a
ver a família. O decidir alistar-se ou não alistar-se torna-se uma
questão insignificante quando há problemas muito mais impor­
tantes a considerar.
O problema mais importante é como deter as guerras,
definitivamente, não esta ou aquela guerra. Vós tendes a
vossa guerra “favorita”,, e eu tenho minha guerra “favorita” .
Sou, por acaso, cidadão inglês e odeio Hitler; por conseguinte,
luto contra êle, mas não luto contra os vietnamitas porque essa
não é minha guerra favorita, já que, politicamente ou a outros
respeitos, nada tenho a ganhar com ela. A questão mais im­
portante é esta: O homem escolheu o caminho da guerra, do
conflito. A não ser que isso seja alterado totalm ente, apresen­
ta-se inevitàvelmente o problema a que se refere o interrogante.
Para ocorrer essa alteração total, com pleta, tendes de viver
pacificamente, não deveis matar, nem por atos, nem por pala­
vras. Quer dizer, deve cessar a competição, a divisão de go­
vernos soberanos, o exército. “Mas”, direis, “não tenho poder
para tanto; não posso conter a guerra; não posso acabar com
o exército” . Todavia, o que me parece importante é que, ao
verdes a estrutura total da violência e da brutalidade humana,
cuja manifestação final é a guerra, se perceberdes isso total­
mente, então, nesse próprio ato de ver, fareis o que é correto.
“O que é correto” poderá acarretar conseqüências várias; mas,
não importa. Contudo, para poderdes ver a estrutura total da
violência e da brutalidade, necessitais de plena liberdade; e
êsse próprio ato de olhar disciplina a mente, pois traz sua
disciplina própria. Dessa liberdade nasce o silêncio e, com êle,
tereis a resposta à vossa pergunta.

70
I nterrogante : Que quereis dizer ao afirmardes que devemos
aceitar a autoridade da lei?
K rish n a m u r ti : Como, por exemplo, os regulamentos sôbre
o tráfego. . .
I nterrogante : Oh!
K rish n a m u r ti : . . . os im p ostos...
I nterrogante : Sim, tudo.
K rish n a m u r ti : Não coloqueis a mim ou a vós numa posição
de repúdio da lei. Dissemos, propositadamente, que o pro­
blema é muito mais importante do que êste. O homem vive
há cinco mil anos num estado de guerra, e poderá êle viver
pacificamente? O viver pacificamente, todos os dias, exige
extraordinária vigilância, percebimento de cada problema.
I nterrogante : A tentativa de revolucionar a psique pode ser
também denominada “expansão da consciência” ?
K r ish n a m u r ti : O expandir da consciência exige um centro
que esteja cônscio de sua expansão. No momento em que
existe um centro, como ponto de partida da expansão, isso já
não é expansão, porquanto o centro limita sempre sua própria
expansão. Se há um centro que me serve de ponto de partida,
embora eu chame isso “expansão”, êsse centro será sempre
fixo. Posso expandir-me dentro de um certo raio, mas, visto
que o centro é sempre fixo, não há expansão. Não se deve
fazer uso da palavra “expansão” .
I nterrogante : A revolução não requer também a existência
de um centro?
K r ish n a m u r t i : Não, senhor; foi isso que já tive o cuidado
de explicar. Vou tornar a dizê-lo muito resumidamente. Vós
sabeis o que é espaço. Quando olhais para o céu, existe um
espaço, o qual é criado pelo observador que está a olhar. Aqui
está êste objeto, um microfone, a criar espaço ao redor de si.
Porque êle existe, êsse espaço existe. Estamos neste salão.
Nêle há espaço por causa das quatro paredes, e fora dêle há
espaço. Só conhecemos o espaço que existe por causa do
centro, que está a criar espaço ao redor de si. Ora, o centro
pode expandir êsse espaço por meio da meditação, da concen­
tração etc. e tal; mas o espaço é sempre criado pelo objeto,
como o microfone que cria o espaço em tôrno de si. Enquanto

71
existir centro, observador, êle criará espaço em redor de si;
poderá chamar êsse espaço “dez mil milhas” ou “dez passos”,
mas trata-se sempre do espaço restrito ao observador. O expandir
da consciência, um dos truques mais fáceis, fica sempre dentro
do raio que o centro cria. Em tal espaço não há liberdade
nenhuma, porque tal liberdade é semelhante à liberdade que
tenho dentro dêste salão. Não sou livre. Só há liberdade e,
por conseguinte, um espaço imensurável, quando não existe
observador; e a revolução a que nos referimos é a revolução
da psique, da própria consciência, na qual atualmente existe
sempre o centro que fala em termos de “eu” e “não eu”.
I nterrogante : “No comêço era o verbo”. Que significação
tem isso para vós?
K rish n a m u r ti : Por que deve ter alguma significação para vós
aquilo que outrem diz? Se estais a investigar, a olhar, a obser­
var, nunca se apresentam questões dêste gênero. Ainda que
na Bíblia esteja dito “o verbo” (a palavra) etc., se compreen­
derdes o que é a autoridade, dela ficareis livre para olhar, e
transcendereis a palavra. Para descobrirdes a realidade última
que o homem, há milhares e milhares de anos, chama “Deus”,
deveis estar livre da crença; deveis estar livre da autoridade.
Então estareis apto a descobrir se existe Deus.

5 de outubro de 1966.

72
NOVA IORQUE — VI

O A UT OCONHECIMENT O

esta tarde vamos examinar uma matéria talvez um tanto


complicada. Quando se dão explicações, deve-se ter sempre
em mente que a explicação não é o fato. Facilmente nos dei­
xamos persuadir por explicações a crer ou a não crer, a aceitar
ou rejeitar; entretanto, não devemos aceitar nem desprezar as
explicações. Quando estamos examinando certos fatos psico­
lógicos, devemos lembrar-nos de que a palavra e as explicações
se tornam barreiras, sendo antes um obstáculo do que uma
ajuda à investigação pessoal. Vamos examinar juntos um
assunto que exige muita atenção, sensibilidade, cuidadosa obser­
vação. A meu ver, a erudição e o conhecimento profundo de
diferentes filosofias e ideais não resolvem de maneira nenhuma
nossas imensas complexidades e problemas psicológicos. Para
compreenderem-se êstes problemas, requer-se uma séria inten­
ção de examinar com tôda a atenção não tanto o que se está
dizendo como aquilo que está realmente sucedendo enquanto
escutamos. Como já dissemos, o escutar é uma das coisas
mais difíceis que há: escutar realmente, sem prazer nem des­
prazer, sem intromissão de nossas idiossincrasias, nossos co­
nhecimentos e insignificantes exigências, que, com efeito, impe­
dem o escutar. Quando uma pessoa vai a um concêrto — e não
sei por que o faz — escuta com prazer. Diz: “Já ouvi tocar
esta música; apraz-me ouvi-la de nôvo” ; há lembranças, certas
experiências aprazíveis que a pessoa teve; e essas lembranças
impedem o ato real de escutar uma nota, ou de escutar o
silêncio entre duas notas. O silêncio é muito mais importante

73
do que a nota; mas o silêncio é invadido pelos barulhos da
memória e, por conseguinte, a pessoa deixa completamente de
escutar.
Para se escutar realmente, necessita-se de atenção, mas
não da atenção forçada, cultivada, exercitada. A atenção e,
portanto, o escutar só se tornam possíveis quando há liberdade,
e não quando há algum motivo. O motivo projeta sempre suas
próprias exigências e, por conseguinte, não há atenção. A aten­
ção também não é interêsse. Se há interêsse, então a atenção
se torna concentração, e a concentração, se a observamos, é
fechada, limitada. Por meio dessa concentração limitada, pa­
recemos esconder todo pensamento e todo sentimento, a fim
de escutar, e isso impede o verdadeiro ato de escutar. Quando
se escuta realmente, verifica-se uma real transformação. Se nos
observamos, podemos ver que nunca escutamos realmente. Só
quando forçados, quando numa situação que nos obriga a
escutar, então, com resistência ou agradável expectativa,
escutamos.
Como vamos examinar juntos vários assuntos, devemos
examiná-los sem o interêsse que tem sempre, por detrás, um
motivo qualquer. Só um fato podemos examinar: aquilo que
está realmente ocorrendo. Para examiná-lo, é necessária obser­
vação, temos de olhar e, em conseqüência, escutar. Ao escutar­
mos, que é um ato de observação total, cessa tôda in­
terferência do pensamento. Essa própria observação é, então,
um “catalisador” f 1). Importa compreender isso, porque, em
geral, estamos tão condicionados que aceitamos tudo o que nos
dizem. Queremos uma certa coisa positiva, uma orientação,
um método, uma fórmula, um sistema. Mas, se percebemos
o inteiro significado de um sistema, de uma fórmula, cuja
observância só produz uma atividade mecânica, podemos então
abandonar o chamado método positivo. Por estarmos forte­
mente condicionados pela propaganda, e também por nossos
próprios temores e incerteza, tudo aceitamos facilmente. Pre­
cisamos que alguém nos diga o que devemos fazer, como pen­
sar e a respeito de que pensar. Nada disso vamos fazer nesta
tarde, porque êsse pensar mecânico não leva à madureza nem

(1) Catalyst (química) : substância que, sem se alterar,


acelera, uma reação (Dic. “Webster Collegiate”). (N. do T.)

74
à liberdade. Seguir alguém que nos dê uma orientação posi­
tiva — é isso o que, há séculos e séculos, nos recomendam as
igrejas, as seitas de tôda espécie, a religião, o guru etc. Êsse
é um fato muito elementar e muito óbvio. E , ao percebermos a
natureza destrutiva de tal estrutura, rejeitamo-la totalmente.
Como aqui não estamos pensando em conformidade com
fórmulas, nem seguindo nenhuma orientação, temos de ser
sensíveis e de rejeitar essa atitude mecânica em relação à vida
e à ação. Talvez possamos, nesta tarde, olhar sem nenhum
desejo positivo, observar ou escutar não apenas o que diz o
orador, mas também o que em nós mesmos se manifesta, nossos
movimentos de pensamento e de sentimento, nunca aceitando
nem rejeitando e sem deixar-nos desanimar ou entusiasmar por
aquilo que vemos. Se não conhecermos, se não observarmos,
em sua totalidade, nossos íntimos movimentos, cada movimento
de pensamento, de sentimento, nossas palavras e gestos, e o que
atrás das palavras e dos pensamentos se esconde — se não
observarmos tôda essa estrutura psicológica, não teremos ne­
nhuma base real para a ação. O que teremos será sempre,
unicamente, a aceitação do que foi, do que será, do inevitável.
Mas, ao compreendermos tôda essa estrutura, a significação de
nós mesmos, está então lançada, profundamente, essa base e
podemos, então, prosseguir, ou não prosseguir.
O autoconhecimento é sumamente importante: o conheci­
mento alcançado por nós mesmos e não por meio de outrem.
Tendes de reaprender a conhecer-vos. Aprender não é um mo­
vimento de conhecimentos acumulados. O aprender só pode
estar, sempre, no presente ativo; não é guardarmos o que
aprendemos através da experiência, de nossas atividades ante­
riores, da memória. Se estais meramente a acumular, não há
o verdadeiro aprender, não podeis ver por vós mesmos, e daí
prosseguir. Se assim não fizerdes, a ação será mera idéia.
Separa-se a ação da idéia, e daí o conflito, o ajustamento da
ação à idéia.
Se isto está mais ou menos claro, não verbalmente, como
idéia, porém como fato real, podemos então continuar nossa
viagem. Essa viagem, nós tem os de fazê-la; temos de penetrar
em algo muito profundo e urgente. Percebemos, os mais de
nós, a total futilidade e sem significação da existência que esta­
mos levando. Em todo o mundo, os intelectuais andam a inven­

75
tar filosofias: como viver, o que pensar, que espécie de mundo
devemos ter etc. É o divertimento dêles. Do mesmo modo
procedem os teólogos; e também, natural e inevitàvelmente,
os sacerdotes. Mas a nossa vida, o fato real, nossa existência
diária é uma coisa monótona, inteiramente inexpressiva. Temos,
decerto, nossas lembranças, nossos prazeres e diversões — mas
isso constitui uma parte insignificante de nossa existência.
Bem no fundo, se retirarmos essa camada superficial, encon­
tramos enorme descontentamento, com nossa vida, nossa insig­
nificante e artificial existência; e isso causa-nos desespêro. Em
razão dêsse desespêro, começamos a buscar; dizemos que algu­
ma coisa deve haver, alguma esperança segundo a qual possamos
viver. Damos assim, intelectual ou emocionalmente, significa­
ção à nossa vida — com o que ficamos impedidos de escutar,
de observar o inteiro conteúdo de nosso ser. Em nosso des­
contentamento e desespêro, apelamos para várias filosofias e
métodos de meditação. Começamos a buscar; experimentamos
uma coisa e outra; tomamos essa droga especial que se chama
L.S.D., ou outra, e seguimos experimentando, esperando que um
dia descobriremos a chave que nos abrirá tôdas as portas. É
o que estamos fazendo. Desejamos experiências verdadeira­
mente religiosas, alguma coisa de sobrenatural, de misterioso,
porque nossas vidas são tão vazias e monótonas, tão insigni­
ficantes e vulgares. Buscamos, por causa de nosso desconten­
tamento; e não sabemos para que lado nos voltarmos, porquanto
ninguém mais crê em nada do que se diz. As religiões se
dissiparam em fumo; êsse é um assunto que nem merece exame.
Buscamos, porque estamos descontentes, corroídos pela
trivialidade, pela sem significação desta nossa existência (afora
os conhecimentos técnicos de que necessitamos para ganhar a
vida e ter algum dinheiro, nossa existência nada tem de signi­
ficativo). Há em nós êsse vazio, essa solidão e desespêro; e a
fim de preenchê-lo, buscamos.
Provavelmente, aqui estais a escutar, em busca de algo
com que preencher êsse vácuo. Essa busca é uma coisa terrível,
porquanto não conduz a parte alguma. Em vosso desespêro,
solidão, aflição, já batestes a muitas portas: as filosofias
orientais, o Zen, e agora esta pessoa a quem estais escutando,
esta pessoa aqui sentada a vossa frente a falar-vos. Escutais o
que todos dizem, e bateis a tôdas as portas. Na realidade,

76
o que sucede é que quando buscais achais o que desejais. Por­
tanto, a primeira coisa que se deve fazer, assim me parece, é
perceber que não deve haver busca de espécie alguma. Esta
é uma pílula difícil de engolir, porque já fomos acostumados e
condicionados para buscar — psicologicamente, interiormente.
Direis: “ Se não posso buscar, se percebo que a busca nenhuma
significação tem, que posso fazer? Vejo-me inteiramente deso­
rientado!” A busca se torna um outro meio de fuga ao fato
real — o que sois.
É decisivo compreender isso. Porque todo movimento
de busca dá-nos a idéia de que estamos realmente a mover-nos,
a atuar; mas o que de fato sucede é que não estais em movi­
mento, absolutamente. O que está ocorrendo, quando buscais,
é um processo mental, do qual esperais resultados satisfatórios.
O buscar é um estado estático; não é um estado ativo. O estado
real é essa terrível solidão e vazio, êsse incessante desejo de
felicidade, de descobrir uma realidade permanente. O buscar
é próprio da mente que tem mêdo de si própria — do que é.
O homem que está vivo — no sentido profundo desta palavra
— o homem inteiramente sem mêdo, é a luz de si mesmo;
não tem nenhuma necessidade de buscar.
Em meio a essa solidão, êsse sentimento da absoluta sem
significação da existência, pode uma pessoa descobrir — não
por meio de filosofias, nem de psicanálise, nem de alguma reli­
gião organizada — pode uma pessoa descobrir, por si própria,
e sem' sombra de dúvida, se a vida tem alguma significação?
E qual é essa significação, se existe? Historicamente, o homem
sempre andou a buscar isso a que chama “Deus” . Hoje em
dia já passou da moda falar nessa entidade, que já não merece
sequer referência, porquanto a mais ninguém interessa. Ela foi
sempre monopólio das religiões organizadas, e estas se dissi­
param em fumo — ou incenso. Já não tem (aquela entidade)
significação alguma. Todavia, o homem continua a buscar, a
desejar descobrir algo sem o que a vida é absolutamente sem
significação, ainda que êle invente filosofias ou tome a mais
moderna droga estimulante, para tornar-se ligeira ou altamente
sensível num outro canto do campo e ter uma certa experiência.
Se uma pessoa depende de qualquer espécie de estímulo,
inclusive da parte dêste orador, êsse estímulo conduz inevita­
velmente ao embotamento da mente. É necessário investigar.

77
É necessário examinar e, por meio dêsse exame, descobrir uma
certa realidade. Se projetamos nosso próprio condicionamento,
nossos temores ou esperança, ver-nos-emos de volta ao mesmo
círculo de antes.
Em primeiro lugar, temos de perceber a total superficia­
lidade de nossas vidas — não o que outrem nos mostra, porém
o fato real, o que é; temos de perceber a sem significação de
freqüentar um escritório durante quarenta anos, e lutar, lutar,
até o fim, até à morte; ou de preencher os esporádicos momentos
em que se não está ocupado em ganhar dinheiro, a entreter-se
com uma dada filosofia ou idéia; ou, se a pessoa tem dinheiro,
de viajar para certos lugares, para aprender a meditar e a estar
vigilante. Tudo isso é sem significação, tão infantil! Mas, nós
tem os de investigar; temos de descobrir se há algo de verda­
deiramente significativo, não inventado pela mente. Isto é
muito fácil: Para descobrirmos se há algo de significativo, tem
de findar o buscar, para enfrentarmos então o que ê — o que
há realmente em nós.
Por causa de nosso desespero e angústia inventamos uma
rêde de vias de fuga, crenças, dogmas; ou simplesmente vamos
vivendo para o momento presente, e morrendo, a racionalizar
tôda a nossa existência. A mente deve estar livre da crença,
para poder examinar. O examinar exige liberdade; de con­
trário, não é possível examinar nada. Para podermos olhar,
escutar, temos de estar inteiramente livres de nosso condicio­
namento, de nossas buscas, a fim de podermos examinar nossas
exigências e temores. É difícil abster-nos de todo movimento
de busca ou de realização, porque desejamos alcançar nossos
alvos; desejamos uma rápida solução para tudo. Tomamos
uma droga e pensamos ter encontrado a solução de tôda exis­
tência pelo fato de termos certas experiências. Tais experiên­
cias são a sombra do real; por que continuarmos por êsse ca­
minho?
O percebimento de tôda essa estrutura, sem fugir por
meio de uma conclusão, de uma palavra, ou pelo movimento
de busca de uma solução, exige enorme atenção. Essa atenção
não se conquista pela prática — que se torna um ato mecâ­
nico. Com a atenção percebemos, por nós mesmos, a total
futilidade do que estamos fazendo; êsse percebimento tem de
verificar-se num certo nível. Percebemos que os meios mara­

78
vilhosos que o homem tem inventado para fugir de si próprio,
e que o impedem de olhar a si mesmo — ouvir concertos, con­
templar quadros etc. — não constituem tôda a substância da
vida. A consciência é sempre limitada, por mais que possamos
ou esperemos expandi-la, por meio de drogas, pela prática de
certas disciplinas. Existe sempre o observador; o observador
é o cen tro; e onde existe um centro, a expansão será sempre
limitada.
Como há dias dissemos, todo objeto cria espaço ao redor
de si. Tenho espaço em tôrno de mim, porque o objeto aqui
está. Êste salão, com suas quatro paredes, cria espaço; e há
espaço do lado externo das paredes. Só conhecemos o espaço
derivado de um centro. Quando de noite olhamos as estréias,
quando contemplamos um belo pôr do Sol, conhecemos o espaço
por causa do observador; êsse espaço é sempre limitado. Po­
demos expandi-lo por meio de vários artifícios da memória,
de drogas variadas, mas êle é sempre limitado e, por conse­
guinte, não há liberdade. Contudo, existe um espaço no qual
há liberdade completa, quando nenhum observador, nenhum
centro existe. Conforme já explicamos, o experimentador é a
coisa experimentada, ou a experiência. O observador, o pen­
sador, o experimentador está sempre a criar espaço em redor
de si, sendo êsse o único espaço que êle conhece. Dentro dêsse
espaço, tudo faz para fugir da prisão que êle próprio criou.
Mas o observador, o experimentador é a coisa experimentada,
a coisa observada e, por conseguinte, as experiências que êle
está a buscar, a desejar, a esperar, ficam sempre dentro dos
limites daquele espaço criado pelo observador. Podemos ver
isso muito simplesmente, por nós mesmos, quando nos obser­
vamos, quando observamos um edifício, uma flor à beira do
caminho, ou quando temos ou desejamos ter uma experiência;
há sempre o observador. Mas, o observador é o objeto obser­
vado; não são duas coisas separadas. Muito importa compreen­
der isso, porque, então, o observador não cria ou exige expe­
riência alguma; e não existe nenhum centro, d e on de observar,
experimentar, acumular lembranças, para ter um ponto de
partida.
Quando uma pessoa diz que tem mêdo, é o observador
que diz “Tenho mêdo” e deseja fazer alguma coisa a respeito
do mêdo. Não é dêste assunto (o mêdo) que estamos tra­

79
tando; mas, o mêdo é diferente do observador? O observador
é a coisa observada. O observador, o centro, com seu pensa­
mento, suas lembranças aprazíveis e dolorosas, criou êsse mêdo
e o colocou fora de si próprio. Há conflito entre o observa­
dor, o centro que diz “Devo ser diferente. Estou irritado e
devo livrar-me da irritação”, e a coisa observada. Há separação
entre o observador e o objeto observado e, portanto, conflito.
A mente que está em conflito, em qualquer nível que seja,
mesmo físico, produz um certo embotamento, um certo can­
saço. Perde a penetração. Já não é ativamente sensível. Está
a consumir-se pelo conflito, a única coisa que ela conhece,
exterior e interiormente.
Exteriormente, êsse conflito se manifesta na forma de
guerra, busca de êxitos, competição; e, interiormente, a mesma
coisa estamos fazendo, achamo-nos no mesmo estado: queremos
alcançar objetivos, tornar-nos isto ou aquilo. Nessa luta e
conflito incessantes a mente se deteriora. Mas, quando a mente
percebe, compreende a natureza do observador e da coisa
observada, termina o conflito; e a cessação do conflito é essen­
cial para que a mente se torne completamente tranqüila. Po­
demos então descobrir o significado da existência; não antes
disso, não quando somos ambiciosos, ávidos, invejosos, “aqui­
sitivos”, quando estamos a buscar mais e sempre mais expe­
riência. Tôdas essas infantilidades deixam de existir quando
o observador percebe que aquilo que êle observa é o observa­
dor; que “aquêle que busca” é a “coisa buscada”. Ao perce­
ber-se isso há uma ação de espécie totalmente diferente; já não
há aquela atividade incessante e sem significação. A mente
examinou e compreendeu o significado da busca, e está também
livre do mêdo. Por conseguinte, há completa quietação, tran-
qüilidade, silêncio da mente — tranqüiÇdade não alcançada
por nenhuma espécie de exercício, de mesmerismo ou auto-
-hipnose. Ela surge porque compreendemos tudo aquilo. A
meditação se torna então uma atividade extraordinária. A mente
agitada, a mente que tem problemas, a mente que está sempre
e incansàvelmente a buscar, a indagar, a criticar e a não criticar,
a aceitar etc., essa mente termina quando o observador, que
está criando êsse movimento, percebe que o experimentador
é a coisa experimentada, a experiência.
Êsse processo, em seu conjunto, é uma espécie de medi­
tação — sem auto-hipnose, sem nenhuma exigência ou desejo,

80
sem busca e sem se dizer: “Quero isto, não quero aquilo”. Só
então poderá o homem encontrar-se com aquilo que vem bus­
cando há séculos e séculos, e que nada tem que ver com crença
ou religião organizada — com nenhuma dessas infantilidades.
Naturalmente, para encontrá-lo é preciso existir o amor. O
amor não é desejo, nem é prazer. Temos de compreendê-lo,
em vez de puritanamente renunciarmos ao desejo ou ao prazer,
pois isso é mero recalcamento. Para se compreender esta mal­
fadada palavra “amor”, é necessário compreender a natureza
do morrer; porque a vida é morrer. Não se pode compreender
tôda a profundeza da vida, se não há o morrer para o passado,
que é memória, que é o observador. Sem essa compreensão, a
vida é sem significação. Pode uma pessoa ter mais carros, mais
banheiros, mais prosperidade e mais guerras; mas a vida nada
significa. Pode-se inventar uma significação, entretanto ela é,
com efeito, sem significação. Para alcançar-se essa significação,
essa imensa realidade — e ela existe, não porque êste orador
o diz; existe, independentemente de asserções ou não asserções
— para alcançar-se essa realidade, temos de libertar-nos do ani­
mal, do animal agressivo, violento, homicida e tudo o mais que
somos. Se não conseguirmos isso, não importa o que fazemos
— podemos procurar todos os analistas, entrar em todos os tem­
plos, recorrer a tôdas as modernas filosofias — nossa vida
continuará vazia e sem significação.
I nterrogante : O Mestre Buda, penso eu, o conseguiu sem
matar “o animal”.
K r ish n a m u r ti : Senhor, é preciso muito cuidado com essas
coisas. Nada se ganha em citar autoridades. Não se sabe real­
mente o que disse Buda ou o que disse Cristo etc. Deixai de
lado tôda e qualquer autoridade, para descobrirdes por vós
mesmo. Eu não disse “matar” o animal. Isso já se tem ten­
tado. Todos os monges dêste mundo têm tentado fazê-lo —
isso ou o contrário: soltar as rédeas ao desejo. Mas, é necessá­
rio compreender tôda a estrutura do animal que em nós subsiste,
não intelectual ou sentimentalmente, porém realmente, pondo-
-nos diretamente em contato com êle: com nossos mesquinhos
ciúmes, ansiedades, esperanças.
Para o olhardes e compreenderdes, necessitais de zêlo, de
lhe ter afeição. Não podeis zelar uma criança, se não lhe
tendes afeição. Êle (o animal) pode ser feio, pode ser estú­

81
pido, pode ser tudo; mas, tendes de olhá-lo e, para o fazerdes,
necessitais de zêlo. Isso significa que não tendes de destruir
nada em vós, nada tendes de recalcar ou de controlar, de nada
tendes de fugir. Êste é um dos vossos condicionamentos:
reprimir ou “ soltar as rédeas” . Tendes de compreender a
natureza do prazer, que é desejo; compreendê-lo, e não re­
primi-lo, sem sublimá-lo, nem dêle fugir. E para compreendê-lo,
tendes de olhá-lo com zêlo.
I nterrogante : Se eu, o observador, olho uma árvore como
“coisa observada”, a árvore e eu somos uma só e a mesma
coisa?
K r ish n a m u r ti : Ouvistes dizer que o observador é a coisa
observada. Vós o ouvistes, mas não o escutastes. Há enorme
diferença entre “ouvir” e “escutar”. Não aprendestes a
coisa; apenas a ouvistes dizer, e ela se tornou uma idéia. É
isso o que ocorre imediatamente: a idéia, o dizer: “A árvore
sou eu? Eu, o observador, olho a árvore, e a árvore sou eu” .
Mas, é claro que a árvore não é vós.
Já olhastes uma árvore, a beleza do pôr do Sol, sem obser­
vador nenhum? De ordinário, quando olhais uma coisa, que
sucede realmente? Vossas lembranças acodem aos borbotões.
“Ah! que maravilhoso poente contemplei outro dia na Cali­
fórnia; aquela luminosidade da montanha!” . Ou o pôr do Sol
vos absorve inteiramente e, temporariamente, ficais em silêncio.
Nesse silêncio vos lembrais daquele prazer e dizeis: “Eu gos­
taria de repeti-lo” — tal como o prazer sexual. É isso o que
acontece: a coisa se torna uma repetição, porque nela pensais,
desejais repetir aquêle prazer; e nessa armadilha ficais aprisio­
nado. Mas, para olharmos realmente uma árvore, ou as dobras
de uma montanha, o pensamento como memória tem de cessar.
Se temos conhecimentos de botânica, estes mesmos conheci­
mentos nos impedem de olhar a árvore. Quando olhais a
árvore sem o “observador”, a árvore não é vós, e vós não sois
a árvore; não há espaço entre o observador e a coisa observada.
Não dizeis então: “ Sou a árvore” , ou “Devo identificar-me
com a árvore”. Isso nada significa.
I nterrogante : Essa separação entre o observador e o objeto
observado existe também na mente de uma criancinha?
K rish n a m u r ti : Infelizmente não podemos volver à infância.

82
Mas, estamos a examinar o que ocorre com as pessoas adultas,
como vós — o que ocorre quando olhais. Há sempre espaço
entre vós e vossa esposa ou marido; entre vós e vosso pró­
ximo. Nesse espaço é que está contido todo o conflito, tôda a
separação -—• separação, não entre pretos e brancos, entre mo­
renos e amarelos, mas também entre as imagens formadas pela
memória, pelo mêdo, pela lisonja, pelo insulto. A separação
denota falta de amor. Um madeireiro olha para a árvore com
olhos diferentes dos do cientista. O sentimentalista a olha
diferentemente; e assim o artista. Mas, nunca olhais verdadei-
ramente, porque olhais através do espaço criado pelo observa­
dor; a relação é tôda outra quando não há observador, quando
o observador percebe que a coisa a que observa ê êle próprio.
Quando sabeis que amais, quando o sabeis como obser­
vador, como uma entidade que ama alguma coisa — uma árvore,
uma mulher, um homem, uma criança — isso é amor? Divi­
dimos o amor em divino e mundano, sexual e não sexual,
numa coisa sublime ou numa coisa absurda. Vivemos fragmen­
tados. Essa existência fragmentária é a maldição de nossa vida.
A vida é um movimento total e não um movimento fragmen­
tário, em conflito com outro fragmento. Para se compreender
o movimento total, o causador da fragmentação deve deixar de
existir.
I nterrog An t e : Quando se vê uma coisa na maneira como
dizeis, isso não é atenção?
K r ish n a m u r ti : O interrogante está perguntando o que é
“atenção total” . Por que o perguntais? Não estou dizendo que
não deveis perguntar; mas, por que perguntais? Não podeis
descobrir por vós mesmo o que é a atenção total?
Comecemos com uma coisa muito simples: Estar cônscio.
Que significa isso? Estou cônscio das dimensões deste salão,
de sua iluminação, da forma, da altura dêle; e estou também
cônscio das cores dos trajos das pessoas aqui sentadas, de seus
rostos, suas aparências, seus sorrisos, seus óculos etc. etc. Estou
cônscio. Começo a dizer: “ Gosto; não gosto; aquilo é bonito;
aquilo não é bonito”. Estou cônscio com escolha. Digo: “Êste
é um bonito salão ou não bonito; aquela é uma bela côr, ou
não bela”. Começa a escolha; e onde há escolha há confusão.
Esse é um fato que se verifica constantemente, não só exterior,

83
mas também interiormente. Posso olhar, estar cônscio, sem
escolha, sem escolha de espécie algum a? É claro que, fisica­
mente, quando faço uma compra, tenho de escolher entre êste
casaco e aquele casaco etc.; mas, interiormente, por que razão
fazer escolha? Posso olhar alguma coisa, estar cônscio de
alguma coisa, sem nenhuma escolha?
Quando vós fazeis esta pergunta, ninguém pode a ela res­
ponder. A vós é que compete responder! E , se responderdes,
vereis que existe um estado de percebimento sem escolha.
Quando houver percebimento com escolha, examinai-o mais pro­
fundamente; começareis então a descobrir o que é concentra­
ção. A concentração é uma forma de resistência, de exclusão,
com um m otivo, de prazer, de ganho, de mêdo. Se penetrar­
des mais fundo, vereis que há uma anteção na qual nenhum
esforço existe, porque não há nenhum m otivo a forçar-vos a
prestar atenção. Quando estais atento totalm ente — com vos­
sos nervos, vosso ccrpo, vossos ouvidos, vosso coração, vosso
cérebro, vossa mente — com pletam ente atento (e nesse estado
não há desejo de êxito, não há m otivo nenhum), vereis que
não existe nenhum observador. Estar atento dessa maneira é,
em si, disciplina — não a disciplina da compulsão, da imita­
ção, do mêdo, do ajustamento a um padrão.
I nterrogante : Já experimentei desses estados de percebi­
mento sem escolha, e tenho ansiado por retornar a êles,
mas duvido bastante de que sejam verdadeiramente signi­
ficativos.
K rish n a m u r ti : O percebimento sem escolha tem significação,
pois só nesse estado é possível examinar — examinar o que diz
o político, o que diz o sacerdote, o que diz a propaganda, o
que diz vossa esposa ou marido, ou o que dizem vossa memória,
vossa voz interior, vossos sonhos, tudo. Tudo tem enorme
significação, se estais cônscio sem escolha; porque vosso pensar
se torna então claro no mais alto grau. Já não sois persuadido
ou influenciado por vossos próprios motivos ou pelos da socie­
dade. Podeis, então, olhar sem deformar o que olhais. É o que
fazeis quando vos vêdes numa crise real. Quando recebeis um
choque, tôda a vossa atenção se põe de prontidão; estais vigi­
lante. Naturalmente, se o choque é forte demais vos paralisa.
Isso é coisa diferente. Diz ainda o interrogante que tem tido
essa experiência do percebimento sem escolha, e deseja repeti-la.

84
I nterrogante : Sei que o percebimento sem escolha é signifi­
cativo, mas duvido de que o inteiro processo da vida seja
significativo.
K rish n a m u r ti : Senhor, estive explicando, em toda esta tarde,
que a vida, em seu todo, tem significação, importância, quando
se encontra aquela coisa que o homem tem buscado. De con­
trário, nada significa. Não pode ser encontrada aquela coisa,
se a mente está confusa, se está em guerra consigo mesma. E o
interrogante deseja retornar àquèle estado de percebimento sem
escolha. Se estais cônscio dêsse desejo de voltar ou de recon­
quistar aquêle estado de percebimento sem escolha, não estais
num estado de atenção sem escolha. No momento em que
dizeis “Desejo repetir tal coisa” — o que desejais repetir é algo
que tivestes, que se tornou uma lembrança, que não é real. O
prazer daquela experiência persiste e desejais a repetição dêsse
prazer. A repetição de qualquer prazer se torna mecânica, e o
percebimento sem escolha não é mecânico, absolutamente. Pelo
contrário, é atenção, de momento em momento. Quando não
há atenção, há desatenção; e é na desatenção que vêm tôdas
as aflições.
I nterrogante : Que efeito pode ter a revolução da mente de
uma só pessoa em tôda a raça humana?
K rish n a m u r ti : Como já explicamos, o indivíduo é a entida­
de “localizada”, o americano, o russo, o indiano — a entidade
local, condicionada, atual. O ente humano é muito mais velho.
Perguntais se — se ocorrer uma mutação da mente humana —
essa mutação influirá na consciência total, não só do indivíduo,
mas do homem.
Esta pergunta implica várias coisas: Primeiro, como alte­
rar a sociedade? Vêdes que a sociedade precisa de ser alterada,
mas como? É possível alterá-la? Percebendo-se os “direitos
adquiridos” dos políticos, dos militares, dos sacerdotes, dos
homens de negócio, é possível essa alteração? Vós sois a socie­
dade — psicologicamente falando. A estrutura psicológica da
sociedade é o que, psicologicamente, criastes. Não é uma coisa
diferente de vós. Vós tendes conflito; vossa vida, vossa exis­
tência diária é um campo de batalha; e o campo de batalha do
Vietnã é o prolongamento de vossa vida de cada dia. Dizeis:
“Quero alterar tudo isso” . Pode-se fazer essa alteração, ou
deveis interessar-vos pelo ente humano total, êsse ente humano

85
que vive há dez mil ou há dois milhões ou há não sei quantos
anos? Se fôr possível a mutação nêle, tudo então dará certo.
A mera alteração de uma entidade local, do indivíduo, não terá
muita influência. Se vos limitardes a cultivar o vosso quintal,
pouca coisa será feita. Mas, se vos interessais pelo ente huma­
no total, então, essa mutação da psique influirá sem dúvida
na sociedade.
I nterrogante : Não é exato que, na sociedade moderna, ne­
cessitamos de conhecimentos acumulados, conhecimentos
técnicos, e que destes resulta a desatenção?
K r ish n a m u r ti : Não, senhor. Já expliquei com todo o cuida­
do que necessitamos de conhecimentos técnicos, que precisais
saber aonde ides esta noite, onde é a vossa casa, qual é o vosso
nome.
I nterrogante : Dissestes que necessitamos desses conheci­
mentos técnicos, mas dissestes também que necessitamos
da atenção total.
K rish n a m u r ti : V ós necessitais do conhecimento; e, também,
deveis estar livre do conhecido, para não viverdes meramente
no conhecido. Podeis tomar uma droga, esperando ultrapassar
o conhecido; mas, não podeis ultrapassá-lo, com êsses fáceis
truques.
I nterrogante : Por que é mais fácil observar o pôr do Sol
e a árvore, como observador identificado com o objeto?
K rish n a m u r ti : Isto é muito simples. É porque a árvore e o
poente não têm nenhuma influência em vossa vida (riso s). Sei
olhar a árvore, mas não sei olhar minha mulher ou marido, meu
próximo (riso s). Sei que isso é engraçado, mas experimentai
fazê-lo uma vez: olhar para vossa esposa ou marido, para vosso
próximo. Olhai-os! Não vos identifiqueis com o que vedes,
mas olhai-os, e vereis acontecer o maior dos milagres: Estareis
olhando a vida de maneira totalmente nova; olhando a árvore,
a pessoa, pela primeira vez; olhando tudo como se antes nunca
o tivésseis olhado!
I nterrogante : Compreendo que a auto-observação traz a cla­
reza. Quando o corpo morre, perde-se também a clareza?
K r ish n a m u r ti : A morte é uma coisa sobremodo complexa.
Não se pode responder em dois minutos a uma pergunta destas
e passar a outro assunto. É a mesma coisa que compreender a

86
vida. A vida é uma coisa imensa, com suas dores, seus deses­
peros e ansiedades, seus prazeres e alegrias. É uma coisa tre­
menda! E , para compreenderdes o viver, deveis interessar-vos
pelo viver, escutar todo o movimento do viver. Quando se
compreende isso, êsse imenso movimento da vida, vê-se então
que êsse movimento faz parte do morrer.
I nterrogante : A criança não é dotada de mais percebimento
Sem escolha do que o adulto, e tem menos preconceito?
K r ish n a m u r ti : Depende da criança {riso s), e depende do
adulto.
I nterrogante : Refiro-me à condição da infância. Não estou
falando de nenhuma criança em particular.
K r ish n a m u r t i : A criança é condicionada pelos pais, pela so­
ciedade, pelo meio cultural em que vive, pela escola que fre-
qüenta, e pelas outras crianças que a cercam. Ela é condicio­
nada, e êsse condicionamento aumenta à medida que se torna
mais velha. As paredes se vão tornando mais espêssas, à me­
dida que crescem as ambições, a avidez. Ela se torna cada vez
menos observadora, menos curiosa, menos vigilante. É o resul­
tado da moderna educação. Tecnologicamente, a criança é educa­
da; e, pràticamente, despreza-se o todo da vida.
I nterrogante : Quereis dizer que quando temos o conheci­
mento técnico, em tal momento não temos possibilidade
de estar cônscios?
K r ish n a m u r ti : Muito ao contrário, senhor! Sem dúvida, é
possível estar-se cônscio sem escolha quando se está sendo edu­
cado tecnologicamente. Quanto menos “mecanizada”, mesmo
tecnologicamente, tanto mais ativa é a pessoa, e tanto mais
produz. Se se der a um operário a mesma tarefa, dia após
dia, êle ficará entediado dela e produzirá menos. Mas, se lhe
derdes o mesmo trabalho e a possibilidade de aprender mais
alguma coisa a respeito dêle, produzirá mais. É o que se está
fazendo nas fábricas. É uma das táticas, um dos truques que
se estão pondo em prática. Separei o conhecimento técnico
do percebimento, por causa desta pergunta inevitável: Que
faremos, se se destruir êsse conhecimento? Para obviar a essa
pergunta, eu os separei, mas depois examinei a coisa e disse que
ela não podia ser dividida. A vida não pode ser dividida em
fragmentos.

87
I nterrogante : Senhor, há tantos milhões de entes humanos
a debater-se na confusão e a viver materialisticamente que
me parece haver pouca esperança de que apareçam pes­
soas esclarecidas em número suficiente para fazerem algo
de bom.
K r ish n a m u r ti : Por que tanta preocupação com a multidão?
Sois daqueles que desejam prestar “bons serviços”, sem real
interesse em si próprios e em suas relações com o mundo?
Nós criamos este mundo com os nossos pensamentos e os
nossos sentimentos. O ente humano total, que é cada um de
nós, tem de mudar, tem de passar pela transformação de que
estivemos falando. Não vos preocupeis com os outros. Já se
tem feito propaganda demais. Propaganda nunca é a verdade:
é mentira! Quando houver amor, saberemos, por nós mesmos,
quais são as verdadeiras relações entre os homens. Sem termos
amor, queremos promover uma mutação na sociedade; quere­
mos mudar o homem; queremos “prestar bons serviços” ; que­
remos desfraldar bandeiras. Quando amarmos, não haverá
problema algum. Faremos o que quisermos, e nenhum mal
advirá.

7 de outubro de 1966.

88
OJAI — I
OS PROBLEMAS DO VIVER

Ão sei o que representam para vós estas reuniões. Aqui


nos encontramos nesta tarde para tratar de coisas muito sérias,
e não para fazer um piquenique ( 1) ou passar algumas horas
divertidas. É de presumir que aqui nos congregamos para
examinar os numerosos problemas com que se defrontam os
entes humanos, no mundo inteiro. E , como temos de examina­
dos, não só em detalhe, se houver tempo, mas também muito
séria e decididamente, não devemos vir para estas palestras
com qualquer idéia de nos entretermos intelectualmente ou exci­
tar-nos emocionalmente, porém, antes, com o propósito de exa­
minar a sério, com todo o cuidado e compreensão, os numerosos
problemas humanos. Assim, por certo serão proveitosas estas
reuniões.
Antes de tudo o mais, deve ficar claramente entendido
entre nós que não se vai tratar de nenhuma filosofia especial.
Êste orador não pertence ao Oriente nem ao Ocidente. Não
vem oferecer nenhuma filosofia individual, nem “idéias for­
muladas”, para aceitação ou rejeição. O que me parece necessá­
rio é que, juntos, consideremos os problemas enormemente com-

(1) As palestras de Ojai realizam-se ao ar livre ■


— no OAK
GROVE — e os ouvintes, pela maior parte, a elas assistem sen­
tados na relva — e também, naturalmente, levam suas “provisões
de bôca”. Daí o aspecto de “piquenique” a que se refere K. —
O “Oak Grove” (literalmente: bosque de carvalhos, ou carva­
lhal) é, segundo descrição feita noutra publicação, um espaçoso
anfiteatro formado por carvalhos. (N. do T.)

89
plexos de nossas vidas e a urgência que estão a exigir. Quase
todos nós procuramos evitar êsses problemas, ou porque não
os compreendemos ou porque a fuga se nos tornou um hábito
tão arraigado que muito facilmente, sem reflexão ou intenção,
nos deixamos cair nessa rêde de fugas que o homem vem culti­
vando há tantos e tantos séculos.
É necessário examiná-los, êsses problemas, não apenas
emocional ou intelectualmente. Porque o intelecto não resolve
problema nenhum; só é capaz de inventar enormes quantida­
des de idéias e teorias. E a emoção tampouco pode resolver
os urgentes problemas que estamos enfrentando. O necessário,
assim me parece, é têrmos uma mente capaz de exame. Êsse
exame exige estejamos livres de nossas opiniões pessoais, que
nossa mente não seja dirigida por nossos temperamentos e
inclinações, nem compelida pelas circunstâncias. Trata-se, pois,
de uma tarefa dificílima, porquanto estamos acostumados a
examinar as coisas do ponto de vista de nossos gostos ou aver­
sões pessoais, de nossos compromissos ou em conformidade
com certas filosofias ou fórmulas. Por essa razão, estamos
sempre a traduzir os problemas segundo nossas limitações; mas,
para que cies sejam traduzidos e compreendidos profunda e
plenamente, penso que cada um de nós deve olhá-los, não como
indivíduo, porém como ente humano. Vejo uma enorme dife­
rença entre essas duas coisas. O indivíduo é a “entidade local”
— o americano do Este, do Oeste ou do Centro, o remoto
indiano com suas opiniões, suas limitações, suas superstições,
suas inumeráveis religiões, doutrinas e crenças. Os indivíduos
estão separados por suas nacionalidades, pelo espírito sectário,
não importa se católico ou protestante; separados por suas
divergências nacionais, seus partidos políticos republicanos, de­
mocráticos etc. etc. Nessa estrutura vive o indivíduo. Mas, eu
considero o ente humano mais importante que o indivíduo.
Onde quer que vivam, na Rússia, na China, na índia, na Amé­
rica, em qualquer parte do mundo, os entes humanos têm o
mesmo fator comum de sofrimento e de alegria, de aflição
e desespero, a mesma e infinita solidão que lhe impõe a mo­
derna existência e a total futilidade da vida que hoje se vive
em todo o mundo — vida de guerras e ódios implacáveis, de
divergências nacionais, de extremo desespêro. Nesse nível vive
o ente humano, embora o indivíduo também dêle participe;
mas, se considerarmos unicamente o indivíduo, nossa investi­

90
gação não será muito profunda. Isso é como uma pessoa cultivar
apenas o seu pequeno quintal. É necessário cultivá-lo, mas
êsse pedacinho de terra está em relação com o todo, com a
Terra, na qual o ente humano vive, com suas penas, seu deses­
pero e agonia, seu interminável sofrer, seu amor passageiro,
e a morte.
Assim, se considerarmos êstes problemas como entes hu­
manos, e não como americanos separados do resto do mundo,
separados do Oriente imenso e faminto, talvez então possamos
resolver inteligente e adequadamente os nossos problemas. Va­
mos, pois, viajar juntos. Nessa viagem, cada um de nós tem de
prestar tôda a atenção a cada passo que dá. Portanto, não
estareis aqui, nesta tarde, meramente a ouvir um orador, porém
estaremos todos participando num exame dos problemas da
vida. Assim, a responsabilidade é tanto vossa como do orador.
Não podeis ficar simplesmente a ouvir o que deveis fazer ou
não deveis fazer, o que deveis crer ou não crer, ou o que
deveis seguir etc. — pois isso denotaria uma certa falta de
madureza, uma certa infantilidade. Para participarmos no
exame de qualquer problema devemos, todos nós, tanto o
orador como vós, não só estar vigilantes, atentos, mas também
perceber a urgência do problema e aplicar-nos de mente e co­
ração, com tudo o que temos, à sua compreensão. Porque o
que iremos fazer, em todas estas palestras, é investigar, exa­
minar e, por conseguinte, fazer descobrimentos, cada um por
si. Pois aqui não há nenhum guia, nenhum filósofo, nenhum
instrutor; ninguém pode guiar-nos, pois isso já foi tentado em
vão. Têm existido instrutores e gurus\ têm existido sistemas,
salvadores, sacerdotes, pequenos chefes sectários, com suas idios­
sincrasias e filosofias; e, dentre todos êsses sacerdotes, guias,
instrutores e salvadores, nenhum resolveu os problemas huma­
nos relativo à guerra, a nossa diária aflição, nosso desespêro,
nossas íntimas agonias e solidão. Têm-nos proporcionado meios
de fuga, narcóticos que em nós fazem surgir vagas esperanças
ou visões de uma vida nova; entretanto, nenhuma mudança se
operou ainda. O mesmo acontece com aquêles que recorrem ao
L.S.D., esperando por êsse meio refugiar-se numa certa realidade,
ter uma grandiosa visão da vida; entretanto, nenhuma dessas
numerosas drogas pode alterar fundamental e radicalmente a
mente humana.

91
Vamos, pois, fazer uma viagem de exploração; e o explorar
exige liberdade. Êste é o primeiro requisito: liberdade para
investigar. Isso, evidentemente, significa estar livre de tôda e
qualquer ligação, intelectual ou de outra natureza, livre de
tôda e qualquer filosofia ou dogma, para que a mente possa
olhar. Porque a mente só está apta a olhar, a explorar, quando,
pelo menos por ora, não se acha enredada em seus próprios
problemas ou esperanças, vinculada a nenhuma filosofia, nenhum
dogma, nenhuma igreja. E esta me parece ser uma das coisas
mais difíceis. O olharmos nossos problemas atentamente, como
entes humanos, requer não só liberdade, mas também atenção.
Prestar-lhes atenção implica, por certo, dar-lhes nossa mente e
coração, nossos nervos, ouvidos, olhos, tudo. E para se dar
essa atenção total, não deve haver nenhum motivo ou persua­
são. Isso tem de ser feito com naturalidade, porquanto a
urgência do problema é tamanha, que êle precisa ser resolvido.
Se, porém, temos algum m otivo — e nossa atenção em geral
se baseia em algum motivo limitado — os problemas continua­
rão existentes.
Cabe-vos, pois, como ouvintes, uma enorme tarefa, visto
que a maioria de nós não deseja resolver os seus problemas —
os problemas do amor, da morte, do viver. É sôbre isso que
vamos discorrer. Eis o que vamos investigar: se é possível
aos entes humanos libertarem-se completamente de seu deses­
pero, quer dizer, libertarem-se totalmente do mêdo e viverem,
assim —- agora e não no futuro — uma vida não limitada pelo
tempo, como ontem, hoje e amanhã; e se é possível libertar a
mente dos incontáveis séculos de condicionamento pela pro­
paganda das igrejas, das religiões, da sociedade, pelas insinua­
ções dos “outros”, das revistas, dos jornais, dos políticos, dos
sacerdotes: ter uma mente livre. De contrário, o homem estará
condenado a uma eternidade de penas, aflições e sofrimento.
Estamo-nos interrogando se é possível aos entes humanos
viverem neste mundo — sem se refugiarem num mosteiro ou
numa dada filosofia, sem tomarem drogas — se lhes é possível
mudar radicalmente. Porque quanto mais inteligente a pessoa,
quanto mais cônscia dos problemas mundiais, tanto maior o
desespêro, a falta de significação desta vida, e assim, as drogas
se convertem num meio de fuga. Pela fuga pensamos estar
resolvendo os problemas. Pelo contrário! — Existe então

92
alguma possibilidade de promovermos uma radical mudança de
nossa maneira de pensar, de viver, de sentir?
Se consideramos o estado atual do mundo, torna-se bem
evidente que, quanto mais cônscios ficamos de todos esses
complexos problemas, tanto mais desejamos uma mudança —
mudança profundamente revolucionária e não simplesmente no
nível econômico ou social, pois as mudanças desta espécie nunca
resolvem verdadeiramente nenhum problema humano, como o
provou a revolução comunista: após a matança de milhões de
entes humanos, voltou-se ao mesmo padrão de ontem. Mas
nós nos estamos referindo a uma revolução que deve operar-se
num nível de todo diferente — na psique, na própria mente;
e precisamos saber se nos é possível operar essa mudança, essa
revolução, sem sermos guiados por nossas inclinações e tempe­
ramentos, ou impelidos pelas circunstâncias, pela sociedade.
Temos possibilidade de mudar numa certa medida, num
certo grau, por fôrça das circunstâncias, de influências, de uma
dada compulsão, uma dada invenção. Isso se verifica conti­
nuamente em nossa vida. Determinada compulsão do ambiente
impele-nos a mudar, a modificar-nos — a gôsto ou a contra­
gosto; mas tal modificação não altera os problemas fundamen­
tais da vida. Em primeiro lugar, um dêsses problemas funda­
mentais é a liberdade. Requer-se intensa investigação, enorme
inteligência e sensibilidade para descobrir o que significa ser
livre. Revolta não é liberdade. Revolta contra a atual estru­
tura da sociedade, inteiramente burguesa, mediana; revolta
contra a prosperidade; revolta que consiste em andar de cabe­
los compridos e roupas sujas etc. etc. — nada disso, por certo,
é liberdade. E , aparentemente, consideramos a liberdade como
“estar livre d e alguma coisa” — de nossos desesperos, nossos
estados psicológicos. Sempre consideramos como liberdade a
possibilidade de passar de um estado para outro; é isso que
chamamos “liberdade”. Se a examinarmos mais de perto, ve­
remos que tal liberdade é meramente uma reação; e tôda reação
provoca, invariàvelmente, outras reações. Nessa armadilha fica­
mos aprisionados e, por conseguinte, não há liberdade nenhuma.
A liberdade não resulta de outra coisa, ela existe per se, por si
própria. Percebe-se que a vida é totalmente sem significação.
Pode uma pessoa ter dinheiro, posses, viver numa casa con­
fortável, com três refeições ao dia etc., mas por tudo isso

93
passa um fio de total desesperança. . . a extrema futilidade de
frequentar assiduamente um escritório durante quarenta anos. . .
de passar a vida a cozinhar e a lavar pratos. . . Sei que tudo
isso se faz automaticamente, ou por obrigação ou porque acha­
mos que “faz parte da vida, e assim tem de ser até o fim,”.
E, no final, foi uma vida sem nenhuma significação, excetuados
alguns prazeres, sexuais ou de outra natureza — o prazer de
contemplar o céu azul, a luz a coar-se por entre as folhas, as
estrelas da noite, e o movimento das águas ao luar. Isso, com
efeito, proporciona grande deleite, mas passa rapidamente e só
fica a lembrança — cinzas. . . Queremos libertar-nos do tédio
infinito da vida e, por conseguinte, aquela liberdade se traduz
em revolta, em dizer-se que há moços e velhos, que os velhos
não compreendem a nova geração etc. etc.
A liberdade não vem como resultado de revolta. Vem
naturalmente, quando há a intenção, o sentimento de urgência,
a atenção necessária para examinarmos como entes humanos
a estrutura psicológica de que somos constituídos — o que
realmente somos. Pois nós somos o resultado de uma estru­
tura social. A sociedade é vós, e vós sois a sociedade. Cons­
truístes esta sociedade de acordo com vossas idiossincrasias,
vossa avidez etc. A estrutura psicológica de que somos cons­
tituídos é o resultado de milhares de anos de sociedade, de
comunidades, com suas crenças, dogmas, superstições; com suas
esperanças; com seus deuses etc. É ela (a estrutura social)
que o homem tem de compreender, e cada um precisa pene­
trar muito fundo, para libertar-se da confusão nela existente.
A pessoa pode fugir, recorrer à bebida, experimentar novas
religiões, tomar L.S.D. etc.; mas, se não está livre dessa estru­
tura psicológica, tôda fuga é vã. Só pode haver compreensão
quando há urgência. E quando existe essa urgência, há aten­
ção; daí é que vem a liberdade. Pode-se então olhar; pode-se
então ir muito mais longe, começar-se a investigar se alguma
realidade existe. Uma certa coisa existe além de tudo o que o
pensamento tem concebido. O homem, através do processo
histórico, sempre indagou acerca dessa coisa existente além
desta vida diária de monotonia e rotina. Mas, êsse indagar foi
sempre uma fuga da existência de cada dia, de seus desesperos,
aflições e conflitos. O que buscou foi sempre uma invenção,
uma projeção de seus próprios desejos, esperanças. Só a mente

94
livre e, portanto, a mente nova pode descobrir alguma coisa
além daquilo que o homem criou com seu mêdo, seu desespêro
e tédio, além daquilo que êle chama “Deus” .
Nestas palestras, cabe-nos a tarefa de investigar sem sermos
estimulados a fazê-lo. Quem precisa de estímulo está na de­
pendência de outrem, está vinculado e, conseqüentemente, já
deixou de investigar. Investigamos uma coisa ao sentirmos
sua urgência. Notai o que está ocorrendo no mundo. Está-se
travando uma guerra; homens estão a matar-se mútuamente.
E há pessoas que dizem: “Esta não é minha guerra, a guerra
que aprovo; prefiro outra” . Há os que justificam a matança.
Isso vem sucedendo há cinco mil anos. Em Babilônia, há
cinco mil anos, diz um arqueólogo, um homem escrevera num
tijolo que esperava que “esta” fôsse a última guerra. Isso,
há cinco mil anos! E até hoje continua o homem a escolher a
guerra como a norma da vida — não só a guerra no exterior,
mas também a guerra no interior de cada indivíduo. Nossa
vida é um campo de batalha de ressentimentos, ódios, conflitos,
lutas, infinda competição. Pode-se rejeitar a guerra exterior
— os homens inteligentes em geral a rejeitam; os que o fazem
não pertencem a nenhuma religião, nenhuma classe, nenhum
grupo, nenhuma nacionalidade, nenhum sistema de pensamento.
Podemos rejeitar a guerra externa, mas internamente nos vemos
empenhados numa batalha com nós mesmos e com outros. Tal
é o fato. E êsse fato somos incapazes de enfrentar, de exami­
nar a fundo e compreender, a fim de nos libertarmos dele
completamente. Temos mêdo de compreendê-lo, de examiná-lo,
porque daí poderá resultar uma revolução totalmente diferente
daquela que desejamos. Portanto, evitamo-lo, e continuamos
a fazer guerra; é a norma de nossa vida. Podemos falar em
amor, freqüentar a igreja e praticar outras infantilidades, mas
continuamos a viver de uma maneira produtiva de guerras.
Viver sem guerra significa viver pacificamente, sem competi­
ção, sem inveja, sem ressentimentos. É nosso hábito guardar
ressentimentos e levá-los conosco pelos anos afora.
Assim, se desejamos criar um mundo diferente (e temos
de criá-lo, pois é a única esperança que resta ao homem), pre­
cisamos de uma mente diferente, uma mente capaz de observar
tudo isso, de observar como o homem dividiu o mundo em
nacionalidades, raças, côres, religiões. Capaz de observar tôdas

95
essas invenções e rejeitá-las total e definitivam ente, porque só
então é possível viver-se em paz. Só então se tornará possível
um mundo sem guerras, sem inveja. Neste país há imensa
prosperidade, e no Oriente não se vê nada disso: só fome e
miséria; e, naturalmente, há também inveja. A prosperidade
egoística só pode causar mais guerras e mais sofrimentos. Só
há um único problema político: a unidade humana. Unidade,
não em conformidade com os métodos democráticos, comunis-.
tas ou outros, porém a real unidade humana. Mas, ela não é
possível quando o pensamento é guiado pelas inclinações e tem­
peramentos ou compelido pelas circunstâncias. Qual o fator
que operará a revolução radical da mente? Essa mutação radi­
cal, fundamental da mente, só será possível quando formos
capazes de examinar, não uma dada coisa, porém a nós mesmos
— mas não por intermédio de um psicólogo ou analista, pois
isso não dará resultado nenhum. Poderá, temporàriamente,
aliviar os problemas de certos tipos de neuróticos, mas até
isso passa a ser um nôvo problema. Para resolver qualquer
problema é necessário observar sem o tempo, ver a coisa ime­
diatamente e dêsse modo operar a mutação total em si mesmo.
Já falei o suficiente para esta tarde. Podeis, se o dese­
jardes, fazer perguntas.
P ergunta : Se tivésseis de escolher entre a “igreja interior”
( inward church) e a guerra, que partido tomaríeis?
K r ish n a m u r ti : O interrogante fala em “igreja interior”, e
pergunta-me se eu tivesse de escolher entre ela e a guerra, qual
das duas escolheria.
Em primeiro lugar, precisamos compreender a palavra
“ escolha”. Vêde, por favor, que não estou fugindo à pergunta.
Onde há escolha, há sempre confusão. É só a mente confusa
que escolhe. A mente lúcida, que vê as coisas com clareza,
não faz escolha (riso s). Não, senhores, não riais, como se isto
fôsse um simples dito engraçado. A maioria de nós se acha
em grande confusão, porque tantas coisas nos têm sido ditas
pelos “entendidos”, pelos especialistas, pelos sacerdotes, pelos
livros, pelas religiões, pela propaganda; tudo é contraditório e
nós somos o resultado de tôda essa contradição. E , assim, por
causa de tal contradição e de tal confusão, dizemos: “Tenho
de escolher entre isto e aquilo, entre esta “igreja interior”

%
(prestai atenção, senhor, até o fim ) e a guerra” . Decerto, an­
tes de escolher, tenho de descobrir qual é o elemento, o fator que
escolhe. Quem é a entidade que escolhe? Essa entidade é o
centro, que diz “Quero”, “Não quero”, “Farei isto, entrarei
na guerra” ou “Não entrarei na guerra” . Ora, pode uma mente
confusa escolher? E, quando escolhe, sua escolha não será
sempre confusa? Tende a bondade de escutar o que estou
dizendo. Só escutar; não vos estou pedindo que concordeis
comigo.
Uma das coisas mais difíceis é escutar. Porque, afinal de
contas, senhor, vós tendes vossa própria opinião e de acordo
com ela dizeis: “ Isso é verdade” . Mas, nós não estamos pro­
curando convencer-vos de coisa alguma; estamos apenas exa­
minando. Dissemos que quando uma mente está confusa —
como o está a mente da maioria das pessoas — a escolha feita
do meio dessa confusão só pode produzir mais caos e mais
confusão. Mas se, ao contrário, a pessoa é capaz de olhar,
olhar com muita clareza, com uma mente lúcida, não carregada
de opiniões pessoais (e é muito difícil isto: ser livre de opiniões
pessoais), com' uma mente capaz de prestar tôda a atenção,
então não há escolha alguma. Não escolheis então entre essa
“igreja interior” e a guerra exterior. Então só há ação; e essa
ação vem quando não há escolha nenhuma.
I nterrogante : Dizeis ser necessário as pessoas pensarem cla­
ramente. Como podem elas pensar com clareza quando
não gozam boa saúde e estão a tornar-se mais doentes em
cada dia que passa, em todo o mundo e principalmente
neste país?
K r ish n a m u r t i : Senhor, tenho de repetir a pergunta; podeis
encurtá-la?
I nterrogante : Pois não. A gente dêste país e de todo o
mundo está doente e cada vez mais doente. Como pode
pensar claramente, se está doente?
K r ish n a m u r ti : Não pode, naturalmente. É óbvio que a en­
fermidade física torna o problema confuso. Mas, para se estar
de boa saúde, fisicamente, é necessário estar também de muito
boa saúde psicologicamente. A mera saúde física não resolve
o problema. Não se pode separar a saúde física da saúde
psicológica.

97
I nterrogante : Falastes em “urgência” ao discorrerdes sôbre
a liberdade. Podeis explicar mais um pouco o que enten­
deis por “urgência” ?
K r ish n a m u r ti : Quando sentimos uma dor física aguda, há
urgência e, portanto, agimos. Não há necessidade de nenhu­
ma “motivação” intelectual etc. Agimos. E a urgência psico­
lógica — muito mais importante do que a urgência física —
dessa descuramos completamente; retardamos a “urgência” do
homem que sente mêdo, a urgência de resolver essa situação,
de descobrir se há possibilidade, psicologicamente, de libertar-
-se totalmente do mêdo. É dessa urgência que eu falo — a
urgência de investigar a pleno a questão do mêdo, descobrir
tudo o que ela implica. Não se trata só do mêdo — que não
examinaremos agora, por ser um problema sobremodo com­
plexo. Neste problema está também incluído o inteiro processo,
o inteiro mecanismo do pensar: o que produz o mêdo, se é o
pensamento ou o perigo puramente físico. Assim, o investigar
e resolver êsse problema exige urgência.

I nterrogante : Krishnaji, historicamente, sente-se na hora


atual essa urgência. Historicamente, estamos chegando ao
fim de uma era, a era Judaico-Cristã, e a entrar numa
nova era da humanidade. Ora, vêdes que essa mutação
de que falais irá verificar-se um tanto automaticamente,
se não a obstarmos?
K r ish n a m u r ti : Antes de tudo, não vejo como êsse “processo
histórico” esteja chegando ao fim, uma vez que as Igrejas têm
enormes direitos adquiridos; direitos adquiridos em bens terre­
nos e também sôbre cada um de nós. Se desprezarmos deter­
minada igreja, determinado conjunto de crenças, inventaremos
nossas crenças próprias, porque somos entes assustados. A mente
que não esteja livre do mêdo pode perceber a futilidade de
uma dada organização religiosa, mas essa mente, porque teme,
porque está em busca de conforto, de solução para o seu deses­
pero, inventará para ela um substituto. Isso, como nos revela
a História, sempre aconteceu. O que nos interessa, senhor,
não é saber se certas atividades religiosas cessarão, porém, sim,
se o homem, o ente humano, poderá libertar-se do mêdo, total­
mente, em todos os pontos de seu ser. Esta matéria, que pro-
vàvelmente examinaremos em nossa próxima reunião, requer

98
muita compreensão e investigação isenta de preconceitos pes­
soais, de mêdo, de esperança.
I nterrogante : Quando há a urgência criada pelo mêdo, ou
de outra espécie, requer-se ação e — como pode nesse
momento haver percebimento?
K rish n a m u r ti : Também estas duas palavras, “ação” e “per­
cebimento”, requerem profunda investigação. Que é ação? E
que significa “percebimento” ? Percebimento significa ver as
árvores, as cores, as pessoas etc. — externamente, objetiva­
mente; e significa também ver o que se está passando interior­
mente: não é estar cônscio só do exterior e não estar cônscio
do interior. Se percebo o que se passa no exterior e não per­
cebo o que se passa em meu interior, daí resulta contradição;
e essa contradição, evidentemente, causa confusão etc. Esta
questão exige não só muita exposição verbal, mas também real
experimentação, porque o estado de percebimento implica “não
escolha”. Quando estais cônscio de uma árvore, podeis vê-la
botanicamente, com o conhecimento, o pensamento; mas, êsse
percebimento não vos faz ver a árvore inteira. Não entrais em
contato com a árvore, porém com a imagem que criastes acêrca
da árvore. O mesmo acontece nas relações: podeis estar côns­
cio de uma certa pessoa, porém na realidade só estais cônscio
da imagem que a respeito dela criastes. O exame desta questão
do percebimento exige muito tempo. E exige também ação;
e esta, por sua vez, é uma palavra “tremenda”, uma palavra
fortemente “carregada” . Nossa ação se baseia em geral numa
idéia, numa fórmula. Tenho uma idéia relativa ao que devo
fazer ou não fazer, ou minha ação se baseia numa técnica que
aprendi etc. etc. Há, pois, a fórmula, a idéia, à qual corres­
ponde a minha ação. Há separação entre a idéia e a ação; e,
para se averiguar o que é “ação”, tem-se de perguntar: A idéia
é verdadeiramente necessária?
Um momento, senhor; ainda não terminei. Ainda não
acabei de responder a vossa pergunta. Tende, pois, a bondade
de escutar. A pergunta corretamente feita responderá a tôdas as
outras perguntas. E , também, permiti-me solicitar-vos que não
tireis fotografias. Isto aqui não é um circo. É de crer que
somos pessoas sérias.
É muito fácil, senhores, fazer uma pergunta. E nós temos
de fazer perguntas, infinitamente; porque o perguntar, indagar,

99
indica um certo ceticismo. É necessário ceticismo, não aceita­
ção — o que não significa negar ou rejeitar tudo. Fazer uma
pergunta correta é uma das coisas mais difíceis; e, no fazer a
pergunta correta, no próprio ato de fazê-la encontra-se a res­
posta. Mas, nunca fazemos perguntas fundamentais; nunca
fazemos uma pergunta e com ela ficam os, sem procurarmos uma
resposta fácil. Não há ninguém, nem na Terra nem no céu,
que possa responder a uma pergunta fundamental, senão vós
mesmos. E uma pergunta correta exige uma grande abundância
de inteligência e de sensibilidade. Mas, isso não significa que
o orador queira impedir-vos de fazer perguntas.
Estamos neste momento perguntando: Que é percebimento
e que é ação? A ação que conhecemos está sempre baseada
nesta fórmula: primeiro a idéia, o conceito, o que “deveria
ser’’, “o que foi”, e depois a ação em conformidade com essa
idéia. Assim é nossa vida. Somos violentos — um fato óbvio
— e temos o conceito de “não violência”, com o qual queremos
compreender a violência. Mas, tal conceito é absurdo, irreal.
A não violência é irreal para o homem que é violento. A com­
preensão da violência é urgente, imediata, e a ação de uma
mente que cultiva a não violência e continua violenta, está
continuamente a semear a violência.
O essencial é a compreensão da violência, e essa com­
preensão não vem através da não violência. A violência tem
de ser enfrentada; tendes de olhá-la. E quando conheceis,
quando percebeis tudo o que a violência implica, ela cessa,
então, imediatamente; e isso suscita a questão do tempo; que
precisamos examinar, porquanto nos servimos do tempo como
meio de resolver os nossos problemas. Mas, agora não é o
momento oportuno para o fazermos.
I nterrogante : Podeis desenvolver vosso pensamento a res­
peito do amor, a que tantas vêzes já vos referistes?
K rish n a m u r ti : Trataremos disso, talvez, nas palestras vin­
douras. Mas, era de supor que a maioria de vós perguntasse:
“Percebo a urgência da transformação da revolução radical, da
mutação da mente. Vejo-a. É uma necessidade. Como operá-
-la?”. Era de esperar que fôsse esta a questão mais urgente,
não? É possível a um ente humano que se acha tão fortemente
condicionado, como comunista, capitalista, católico, ou o que

100
quer que seja, quebrar completamente êsse condicionamento,
não numa data futura, porém imediatamente? É possível? Só
é possível se, em primeiro lugar, se compreende a natureza e
estrutura clêsse condicionamento, seu significado. E tem-se,
então, também, de investigar a questão do tempo e qual a
entidade que irá operar a transformação etc. São êstes os pro­
blemas que a questão encerra.
Convém pararmos agora. Prosseguiremos, se Deus quiser,
amanhã, às onze horas.

29 de outubro de 1966.

101
OJAX — II

PARA ONDE VAMOS?

.A i C alifórnia tem um dos mais aprazíveis climas do mundo,


se bem um pouquinho quente, principalmente no sul — e devia
estar fadada a produzir uma sociedade maravilhosa; uma socie­
dade totalmente diferente da que agora existe; uma sociedade
altamente disciplinada (faço com muita cautela o emprego dessa
palavra, cujo significado apreciaremos adiante); uma sociedade
não totalmente materialista como a atual; uma sociedade não
egocêntrica, não “ aquisitiva” ; uma sociedade em que haja uma
profunda vida interior, em vez desta perpétua busca de entre­
tenimentos, de sensações de tôda espécie. A mim, que andei
por tôdas as partes do mundo, exceto atrás da “cortina ver­
melha”, a mim me parece que o mundo está cada vez mais a
imitar a América. Êste mundo de cinema, divertimentos, fute­
bol etc., está sendo imitado em tôda parte. E uma pessoa ver­
dadeiramente séria, principalmente se vive neste clima, não
pode deixar de fazer a si própria esta pergunta: Que está a
América produzindo, afora carros, viagens à Lua, progresso
técnico, prosperidade, grandes concertos, museus etc. etc.; que
está dando realmente? Com exceção da literatura, que é uma
forma de entretenimento, com exceção de novos dogmas sectá­
rios, de experiências no domínio dos narcóticos, do L.S.D. etc.
etc., que está realmente produzindo êste país? Não devemos
sabê-lo, perguntá-lo, indagá-lo, não só de nós mesmos, mas
também daqueles que estão tentando criar um mundo diferente,
uma sociedade diferente, dos políticos principalmente? É bem
evidente que os políticos, e tampouco os sacerdotes, jamais

102
criarão um nôvo mundo. Devemos interrogar-nos — interro­
gar, não por simples curiosidade, porém do fundo de nosso
desespero e ansiedade, que significação tem tudo isso. Para
aonde estão indo os entes humanos? Temos feito esta pergunta
a vários americanos eminentes, porém êles não têm resposta
para ela; e tampouco se obtém resposta no Oriente. Todos
têm uma certa fórmula especulativa, uma certa esperança; mas,
não se pode construir uma sociedade na base de esperanças ou
fórmulas. Uma sociedade só pode ser edificada por um pe­
queno grupo de pessoas, pessoas dedicadas, não persuadidas
pela ambição, pela avidez, pelo “princípio do prazer” . E , já
que viestes ouvir estas palestras e explicações, eu gostaria de
saber qual é a vossa resposta — não uma resposta especulativa,
uma resposta baseada numa esperança, num certo mito fan­
tástico.

Considerando-se o mundo — não só o que se passa neste


país, na Ásia, mas também na Rússia, onde estão ocorrendo
grandes mudanças e onde se acentua cada vez mais a tendência
para a direita —- considerando-se tudo isso, não podemos dei­
xar de interrogar-nos se a nova semente já estará a germinar,
se já estará a nascer uma nova cultura, uma nova sociedade,
uma mente nova, não moldada pelo velho padrão, não perten­
cente a religião alguma, a nenhum grupo, classe, seita, isenta
das infantilidades que hoje praticamos. Não sei se alguém já
fêz esta pergunta; cada um provavelmente anda sobremodo
ocupado com seus próprios problemas ou está prêso na arma­
dilha, a dar voltas e mais voltas, sem ter tempo, nem lazer,
nem vontade de investigar. Êstes, é claro, não podem respon­
der àquela pergunta. Mas, aquêles que já a fizeram sèriamente
a si próprios, principalmente numa terra como esta, onde há
tanta folga, onde uma pessoa pode ficar sentada debaixo de
uma árvore a contemplar o céu azul, onde o clima é suave,
onde há abundância de comida, de roupa, grande prosperidade
-— que resposta poderão dar? Estará tudo perdido? Já estará
o país em declínio, sem nunca ter amadurecido? E aqui temos
outra palavra difícil: “madureza” . Quem é que vai responder
à pergunta? Algum filósofo, algum cientista? Alguém que
estudou a fundo a História e está cheio de conhecimentos, e
sabe o que a sociedade deve ser e deverá ser? Ou, temos de
apelar para algum clarividente, algum visionário, algum impos­

103
tor possuidor de meia dúzia de idéias? Quem vai dar a res­
posta? E bem me parece que os entes humanos, em todo o
mundo, já não têm fé em coisa alguma —■ nem nos deuses que
o homem inventou por mêdo, nem nos cientistas, nem nos po­
líticos, nem nos livros, nem nos teólogos, com seus pensamen­
tos condicionados. Como não se pode mais ter fé em ninguém,
como, fundamentalmente, também não temos fé em nós mes­
mos, porque andamos tão confusos e incertos, tão atormentados
por inumeráveis desejos; e como, enfim, de modo nenhum de­
vemos deixar-nos guiar por alguém — cada um de nós tem de
descobrir a resposta por si mesmo, como ente humano. Se res­
pondeis como indivíduo (prestai atenção, por favor!) se respon­
deis como indivíduo, nesse caso vossa resposta provém de um
ponto de vista pessoal, de uma inclinação, de um temperamento,
de alguma experiência individual e, portanto, condicionada,
estreita, insignificante, de alguma esperança egoísta; será uma
resposta algo infantil, sem madureza, uma resposta sem signi­
ficação, porquanto o problema é muito maior do que a mente
individual que está tentando resolvê-lo. O desafio é imenso;
temos de enfrentá-lo, e êle deve ser enfrentado com a com­
preensão de todo êste mundo humano — de guerras, fome,
nações subdesenvolvidas, superpovoamento, o luxo dos ricos e o
sofrimento dos pobres etc. etc.: compreensão do mundo, do
que nêle se está passando, de fato, presentemente. Se puder­
mos observá-lo totalm ente, e não parcial ou individualmente,
como americano, católico, hinduísta, budista, comunista etc.;
observar o fenômeno em sua totalidade, penso que encontra­
remos então a resposta — a qual pode não corresponder a
nosso gôsto, pode não ser a que desejamos. De contrário, se
não fôr encontrada uma resposta real, significativa, nossas vidas
se tornarão muito sem valor e sem significado.

Tudo isso temos de compreender. Pela palavra “compre­


ender” não entendo compreensão intelectual. É bastante fácil
perceber intelectualmente por que razão tôdas as civilizações e
culturas pereceram e, desse estudo, chegar a uma conclusão:
“A América deveria ser ‘assim’ ”. Isso não é compreensão,
porém, meramente, uma análise intelectual do que “ deveria
ser”. Tampouco nasce a compreensão de uma atitude emocio­
nal, sentimental, esperançosa. A compreensão nada tem abso­
lutamente que ver com o intelecto ou as emoções, tomados

104
separadamente. E , visto que as pessoas são em geral emotivas,
suas reações são sentimentais, de certo modo cruéis, irrefletidas.
Estamos empregando a palavra “compreensão” . A com­
preensão só pode verificar-se quando há uma crise enorme,
para a qual não encontramos solução, de modo que nossa mente
se torna inteiramente silenciosa; e, então, nesse silêncio, nasce
a compreensão. Isso já deve ter sucedido a muitos de nós. Às
vezes nos vemos em presença de um problema cuja solução
não temos possibilidade de encontrar: fazemos consultas, con­
versamos com pessoas, investigamos, utilizamos todos os méto­
dos de análise etc. etc. — e não encontramos solução alguma.
E, depois de termos, por assim dizer, jogado para o lado o
problema, nasce, subitamente, uma compreensão, uma claridade;
porque a mente, num dado momento, se tornou sobremodo
quieta em relação ao problema, e é só então que pode haver
compreensão.
Mas, para esta pergunta, que constitui um enorme desafio
que se apresenta a todo o mundo, nenhuma resposta tendes.
Podeis afetar que tendes uma resposta ou responder de acordo
com as idéias católicas ou protestantes; entretanto, o velho pro­
blema continua o mesmo. Para se compreender êste problema
imenso, para se promover a total quietação da mente — o
estado em que ela perde observar sem ser de um ponto de vista
individualista — necessita-se de muita disciplina. Não estamos
empregando a palavra “ disciplina” no sentido militar, nem
tampouco no sentido religioso, ortodoxo. De modo geral, essa
palavra implica submissão, cultivo de certos hábitos, recalca­
mento, coerção, ajustamento. Tudo isso está, geralmente,
implicado na palavra “disciplina” ; mas, nós a estamos empre­
gando num sentido todo diferente. O radical da palavra “disci­
plina” significa “ aprender” ! 1); e ninguém tem possibilidade
de aprender, se está meramente a ajustar-se, a recalcar, a con­
trolar. Portanto, mais uma vez, é necessário compreender o
significado da palavra “ aprender” . Porque, se não houver
a disciplina correta, nenhuma possibilidade tem a mente de
encontrar a resposta correta, a resposta que contém o signifi­
cado, a estrutura, o todo da vida.

(1) Lat. discere aprender, (radical disc) — Cf. “discípu­


lo”, “discente” : aquele que aprende. (N. do T.)
Para compreender, há necessidade de disciplina. Segui
com paciência o que estou dizendo; prestai-lhe atenção. A com­
preensão não é produto do intelecto, nem da emoção ou do
sentimento. Como dissemos, a compreensão vem quando a
mente está perfeitamente quieta, sem movimento algum em
qualquer direção. Quando observais uma árvore — se alguma
vez já o fizestes — quando olhais uma árvore, vossa mente
nunca observa essa árvore; o que observa é a imagem que ela
criou a respeito da árvore. Essa imagem está sempre em mo­
vimento, jamais quiescente. Está-se-lhe sempre a adicionar ou
a subtrair alguma coisa. Só quando está muito quieta, num
estado de real observação, completamente imóvel, a mente
observa a realidade que é a árvore.
Qualquer problema — principalmente êste que ora nos
defronta: a crise da consciência humana — só pode ser resol­
vido radicalmente com aquela compreensão resultante da disci­
plina. Mas, por “disciplina” não entendemos adestramento,
submissão, coerção, ajustamento, mediante intimidação, ameaça
de punição etc. A disciplina vem naturalmente quando há
aprender. O aprender, decerto, está sempre no presente ativo.
Estou sempre aprendendo, sempre no presente ativo. Êsse
presente ativo do aprender cessa quando se torna passado:
aprendi.
Continuai a prestar atenção, por favor; porque iremos
entrar numa matéria que poderá tornar-se um pouco difícil, se
não compreenderdes primeiro isto.
O que geralmente acontece é que, depois de termos apren­
dido, de têrmos acumulado conhecimentos, tecnologia, atuamos;
ou, nesse atuar depois de aprender, aprendemos mais coisas,
que acrescentamos ao já sabido. Exato? É isso o que estamos
sempre fazendo. Aprendo da experiência, guardo essa expe­
riência na memória, como conhecimento, e tôda nova experiên­
cia é traduzida de acordo com o que tenho acumulado e, assim,
estou sempre a aumentar meus conhecimentos e, por conseguinte,
nunca aprendendo. Aprender é presente ativo, é ação, um
movimento que está sempre no presente; por conseguinte, apren­
der é ação — não é atuar depois de aprender. A ação tem então
significado totalmente diferente. Está-se, então, sempre apren­
dendo, e a vida, por conseguinte, é sempre nova; nunca há um

106
momento posterior ao aprender, nem ação baseada nesse passado,
de modo que nunca há conflito com o presente ou com o futuro.
Isso exige enorme atenção e percebimento. À maioria de
nós é muito fácil acumular e armazenar dados, experiência
(que chamamos “conhecimento” ) e, depois, atuar de acordo
com êsse conhecimento adquirido. Isso é ação mecânica. Não
requer muita energia. Não requer muita atenção, percebimento,
intensidade. Mas, se se compreende o significado da palavra
“ aprender”, o que há, então, é um movimento real no presente,
sempre no presente; por conseguinte, nunca há um momento
de conhecimento acumulado e de ação nêle baseado.
Aprender é estar sobremodo cônscio, não daquilo que já
sabemos (prestai atenção agora) e que se torna o chamado
“inconsciente” . Entendeis? Está-vos parecendo uma espécie
de quebra-cabeças? Bien. Para mim, não existe “inconsciente” .
Esta é uma das coisas muito em moda hoje em dia: investigar,
examinar, analisar o inconsciente, examinar os sonhos; sabeis
de tudo o que se anda fazendo a êsse respeito. Só há consciên­
cia. Ela é comparável a um campo. Ou tomamos o campo
globalmente, para olhá-lo, observá-lo, ou tomamos apenas um
canto dêle e chamamos a isto “inconsciente”, àquilo “conscien­
te”, a isto “ação”, àquilo outra coisa que temos de examinar.
O aprender é uma coisa extraordinàriamente vital, que
produz abundante energia, porque nêle não há conflito. En­
tendeis? Nossa energia está agora sendo dissipada, perdida,
entre o que foi acumulado pela experiência, pela instrução etc.
etc., e a ação; e, por essa razão, existe uma contradição: no
ajustar a ação ao conhecimento. Onde há contradição, há des­
perdício de energia; e nossa vida é uma contradição, por conse­
guinte uma constante dissipação de energia.
Espero não estejais meramente a ouvir palavras, porém
observando vossa própria atividade mental. Porque seria uma
coisa inteiramente vã virdes assistir a estas palestras para ape­
nas ouvir palavras e, depois, vos irdes, aprovando o que ouvistes
ou dizendo “Ora, tudo isso é velharia”. Mas, se estais cônscios,
não só daquilo que o orador está dizendo, mas cônscios também
de vós mesmos, em relação com o que se está dizendo, então o
ato de escutar tem enorme importância; estais então desco­
brindo por vós mesmos o que realmente está sucedendo. É
também de enorme importância descobrir como se deve escutar.

107
Nós quase nunca escutamos. Ou estamos por demais ocupados
com nossos problemas pessoais, nossos pontos de vista indivi­
duais, nossas diversões, ou em defender-nos, proteger-nos (isto
é, proteger a imagem que formamos de nós mesmos); ou,
quando escutamos, estamos interpretando, concordando ou
discordando, chegando a uma conclusão ou comparando o que
ouvimos com o que já sabemos. E , assim, nunca estamos a
escutar verdadeiramente. Se estais cônscios de tudo isso a que
acabamos de referir-nos, êsse próprio percebimento é disciplina.
Já dissemos que a palavra “disciplina” significa “aprender” —
e não: ter aprendido. Mas, como temos dito, o aprender exige
muito percebimento — percebimento do mecanismo de nosso
próprio pensar e sentir; percebimento sem escolha, é claro.
No momento em que escolhemos ou dizemos “Gosto”, “Não
gosto”, estamos pondo em cena o fator escolha. Mas se, ao
contrário, estais simplesmente cônscios de vossos mecanismos de
pensar, sentir, ter prazer, desprazer, experiência, conhecimento
etc., simplesmente cônscios, sem escolha alguma, estais então
no “estado de aprender” ; nesse aprender não há dissipação de
energia. Pelo contrário, vossa mente está extraordinariamente
vigilante, ativa, e, por conseguinte, altamente sensível. E a
mente que está viva, sensível, que está aprendendo e tão repleta
de energia, não necessita de droga nem de estimulante de espé­
cie alguma; porque, então, o aprender é, em si, um desafio; e a
reação a êsse desafio é o ato de aprender.
Essa mente pode responder à pergunta, ao desafio: Tem
o viver verdadeira significação — não uma significação inven­
tada, como a dos existencialistas, dos católicos, dos viciados
das drogas etc. etc. — porém a significação real e profunda
por vós mesmo descoberta? Por influência dessa mente poderá
então nascer uma sociedade diferente.
Nossa sociedade, como atualmente constituída, não tem
significação alguma: três refeições por dia, uma casa, confortos
etc. Se desejais penetrar mais fundo nesta matéria, tendes de
compreender bem o “princípio do prazer”.
Desejais fazer perguntas, ou preferis que eu continue?
Auditório : Continuai continuai!
K r ish n a m u rti : É muito fácil me mandardes continuar (risos).
O que quereis fazer é só escutar. Mas, se estivésseis traba­
lhando realmente, cooperando, penetrando na matéria passo a

10S
passo, não me pediríeis então que continuasse. Estaríeis fazendo
perguntas, com o fim de descobrir. Estamos tão acostumados
a ser entretidos por outros: no campo de futebol, no cinema,
nas igrejas, nas revistas etc. — sempre querendo ser entretidos.
Mas, para trabalhar esforçadamente é preciso ser-se sério. E
por esta razão é que temos de examinar a questão do prazer,
o que não pode ser feito em dez minutos, porém noutra ocasião
talvez o façamos Sem se compreender o prazer, o aprender, a
disciplina, e tôda a respectiva estrutura e significado, nunca
encontraremos, como entes humanos, a verdadeira saída, a ver­
dadeira solução. Assim, talvez queirais agora fazer-me pergun­
tas a respeito do que estivemos dizendo nesta manhã, para,
através das perguntas, tornarmos a examinar os problemas.
I nterrogante : Se a questão é de o indivíduo aprender por
si mesmo, atuar por si mesmo, saber por si mesmo o que
deve fazer, no próprio instante em que surge a necessidade
— se fica ocupado com tudo isso, como pode “ sair para
a vida”, para formar uma sociedade?
K r ish n a m u r t i : Pergunta êsse cavalheiro: Se um indivíduo
fica ocupado com a observação própria do aprender e, por con­
seguinte, aprendendo, como pode êle sair para formar uma
nova sociedade?
I nterrogante : E u disse “ sair para a vida”.
K r ish n a m u r t i : Sair para a vida?
I nterrogante : Quer dizer, formar uma nova sociedade.
K r ish n a m u r t i : Senhor, viver é aprender, não? A vida é um
movimento — movimento infinito. Como um rio imenso e
profundo, de grande caudal, ela está a fluir incessantemente. E
aprender a respeito da vida é observá-la, sem escolha, é acom­
panhá-la, infinitamente. E êsse movimento consistente em
acompanhar a vida, ê a criação de uma nova sociedade. Não
tendes de aprender primeiro, para depois “sairdes”. Vêde, se­
nhores, nós não observamos realmente o que pensamos, o que
sentimos, os nossos motivos. Não vai nisso nenhuma crítica
pessoal, mas o fato é que não o fazemos. Se alguma vez
percebemos tudo isso e se se trata de um percebimento discri­
minativo, isso já não é percebimento. Percebimento é estar
cônscio de tudo: das pessoas aqui sentadas, das côres, das
árvores, da luz que brilha na folha, do barulho; é ver as mon-

10 9
tanhas, o movimento do vento nas folhas. Percebimento não
é concentração. Esta matéria, também, não podemos conside­
rar agora. Mas, separar a vida e o indivíduo, para estudar
exclusivamente o indivíduo, é criar um abismo de contradição
e aflições. O indivíduo, o ente humano — vós e eu — é a vida.
Infelizmente, esta vida foi dividida em nacionalidades, grupos,
seitas, crenças, isto e mais aquilo.
Aprender a respeito de todo o movimento da existência
é estar cônscio dêsse imenso campo. Não se trata de separar
a vida da ação, o aprender do criar, porém, sim, de olhar, todo
inteiro, o campo da vida. Compreendeis, senhores? Um mi­
nuto, senhor! Sei que estais cheio de “perguntas e respostas”.
I nterrogante : Trata-se da mesma pergunta; eu queria for­
mulá-la diferentemente.
K rish n a m u r ti : E eu estou respondendo à mesma pergunta.
Senhor, observar o mundo, em sua totalidade, não como Vietnã,
Rússia ou China; olhá-lo, não como indivíduo ou como cristão,
católico, hinduísta, budista etc.; perceber em seu todo êsse
enorme movimento humano, de agonia, desespero, amor, tra­
gédia, ciúme, enfim todos os tormentos e ânsias da humanidade;
perceber tudo isso globalmente, eis o verdadeiro problema. É
possível ver êsse todo não intelectualmente? Se o perceberdes
com um simples olhar, num relance, tereis a resposta. Não
estareis mais olhando o mundo como indivíduo; já não estareis
pensando no mundo como Oriente e Ocidente, comunista e
não comunista etc.
A questão é de sabermos se é possível olhar tôdas essas
divisões, contradições, sofrimentos e batalhas — olhar tudo
isso como um todo. Se fordes capaz de olhá-lo dessa maneira
total, tereis então uma resposta total, e não uma resposta par­
cial. E só essa resposta poderá resolver qualquer problema.
Mas essa percepção da totalidade exige atenção completa.
Quando uma pessoa está realmente atenta — e com isso
queremos dizer quando está dando sua mente, seu coração, seus
olhos, seu cérebro, tudo — nessa atenção não existe nenhum
observador e, por conseguinte, o observador é à coisa obser­
vada. Só há atenção. Trataremos também disso noutra ocasião.
I nterrogante : É possível operar uma mudança, criar uma
nova sociedade, pelo emprego da força? A fôrça não é
produto do mêdo?

110
K r ish n a m u r ti : O interrogante indaga: É possível criar uma
nova sociedade pelo emprêgo da fôrça, da compulsão, da amea­
ça de punição ■ — uma vez que tudo isso se baseia no mêdo?
Evidentemente, não se pode criar nada de n ô v o .. .
I nterrogante : E u queimei o meu EG O e, por isso, desejo
perguntar-vos: Considerais o mundo em situação tão de-
sesperadora que necessite dessa transformação da mente?
E a segunda pergunta seria e s ta .. .
K r ish n a m u r t i : Ob, senhor, basta uma pergunta! (riso s). O
interrogante indaga: Como é possível transformar totalmente
uma sociedade?
I nterrogante : Não é isso. Considerais o mundo em situação
tão desesperadora que necessite dessa transformação da
mente?
K r ish n a m u r t i : Quem fará essa transformação? Os sacerdo­
tes já a tentaram; tentaram-na os teólogos, por muitos e muitos
séculos — como se fôsse possível recebermos a transformação
de um agente exterior. Essa transform ação... já se tem ace­
nado com o céu e ameaçado com o inferno para consegui-la;
mas nenhum resultado se conseguiu, e ninguém mais crê que
outrem possa transformar uma pessoa. Tudo isso é pura infan­
tilidade; são coisas passadas e acabadas. Cada um tem de trans­
formar a si próprio.
I nterrogante : Dissestes, e cito vossas palavras: “Para mim
não existe inconsciente”. Ora, a pergunta que vos faço
é esta: Para mim existe um inconsciente, êsse fervilhar
que vem de dentro da maioria de nós. A pergunta é:
Como se pode alcançar êsse ponto de percebimento em
que só há consciência, sem o inconsciente?
K r ish n a m u r t i : Senhor, que é o inconsciente? Não respon­
dais de acordo com Freud ou Jung e demais analistas, porém
dizei o que é realmente nosso inconsciente? Já o examinastes
a fundo? E, também, a questão é esta: Como descobrireis o
que é o vosso inconsciente, sem precisardes de que alguém
vo-lo diga? Percebeis a diferença? Alguém me diz que
estou com fome, isso muito difere do verdadeiro estado de
sentir fome, não achais? Posso descobrir o que é o meu incons­
ciente, e qual o instrumento que o descobrirá — o censor, o
observador, o analista, o pensador? E o pensador é diferente

111
do pensamento? Quando consideramos isso que se chama
“inconsciente” — que é êle, e por que tem essa tremenda
importância? Êle é uma coisa tão trivial, tão insignificante,
tão sem valor como a mente consciente. Por que lhe atribuirmos
tamanha importância? A pergunta é: Como, em primeiro lu­
gar, analisar o inconsciente. . . um momento, senhor, estou
chegando a êste ponto. . . e, depois de observá-lo, transformá-
-lo, todo, em “consciente” . É isso, senhor?
I nterrogante : É.
K rish n a m u r ti : A í está. Precisamos considerar êste assunto
com muita atenção. Como podeis examinar o desconhecido?
Entendeis esta pergunta? Dizemos que o inconsciente jaz muito
profundamente sepultado. Como podemos examiná-lo? Por
meio dos sonhos? Por meio das comunicações e sugestões que
êle transmite ou projeta? E, por que sonhais? Por que deveis
sonhar? É preciso descobrir em primeiro lugar como encon­
trar-nos com o inconsciente e como observá-lo. É possível à
mente consciente observar o inconsciente? Tende a bondade
de seguir-me. Quando a mente consciente olha o inconsciente,
ela já está condicionada, já possui seus próprios desejos e fins,
seus próprios motivos, ansiedades, meios de proteção — e é
com isso que olha; e o que ela olha é a si própria. Por conse­
guinte, a questlo é esta: É possível observar uma coisa oculta,
que não pode ser percebida pela mente consciente? Entendeis
minha pergunta? Vede, senhor, existe uma coisa oculta que
chamamos “inconsciente” . Como posso conhecê-lo? Quer
dizer, como posso entrar realmente em contato com êle, sem
ser por meio de idéias, pelos ditos de outros — entrar em
real contato com êle? Para se entrar em contato com uma
coisa, realmente, imediatamente, necessita-se da total quietação
da mente consciente. Exato? Evidentemente! E , quando a mente
consciente está totalmente tranqüila, há então o “inconsciente” ?
I nterrogante : Como se consegue isso? C om o? A palavra
“Como” é a parte mais importante desta pergunta.
K rish n a m u r ti : Vêde, primeiramente, senhor, o que ocorreu
— se me estivestes seguindo. No momento em que a mente
consciente se encontra totalmente quieta, sem nenhum movi­
mento de prazer, experiência, conhecimento etc., não há então
nenhum inconsciente. Ora, o interrogante pergunta: Como con­
seguir isso? “Como?” é a pergunta mais insidiosa que há;

112
porque, quando se pergunta “como?”, quer-se um método, um
sistema. E, assim que começamos a seguir um sistema, um
método, uma prática, estamos dentro da armadilha dêsse sis­
tema, método, prática e, portanto, incapacitados de descobrir.
Estamos presos. Mas, se perceberdes a coisa realmente, perce­
berdes que só a mente que está totalmente quieta é capaz de
observar; se compreenderdes isso, perceberdes num relance a
verdade respectiva — tornar-se-á então inexistente o incons­
ciente. Mas, se disserdes: “Mostrai-me o caminho que devo
percorrer para consegui-lo” -—- isso é como uma pessoa ir para
o colégio para tornar-se inteligente ( risos).
I nterrogante : E u gostaria de saber, quando a mente está
quieta, em silêncio, o que acontece com o corpo?
K r ish n a m u r ti : O corpo está também quieto. Nós separamos
o corpo, a mente, o coração, o sentimento e o pensamento. En­
tendeis? Esta é realmente uma questão muito complexa. Pode-
-se quietar o corpo por meio de vários artifícios: por meio de
tranqüilizantes, pílulas, ou o próprio “ tranqüilizante interior”
da pessoa; por meio do pensamento, da repetição de palavras,
do sentar-se numa certa postura, respirando de uma certa ma­
neira. É perfeitamente possível quietar o corpo. Isso já se
tem feito e, entretanto, no final de tudo, a mente permanece
a mesma mente insignificante e sem valor. O que nos interessa
é o processo integral e não apenas uma parte dêle.
I nterrogante : Qual o lugar que compete à memória, na
educação?
K r ish n a m u r ti : Já falamos durante uma hora e um quarto.
Penso que basta, não? Poderemos considerar este assunto na
próxima reunião, se porventura desejardes então fazer esta
pergunta.

30 de outubro de 1966.

113
OJAI — III

DA PAIXÃO ARDOROSA E SEM MOTIVO

amos continuar com o que estávamos dizendo em nossas


reuniões de sábado e domingo? Falávamos sôbre a enorme
importância de promover na mente humana uma revolução
radical. A crise — e há sempre crises no mundo, principal-
mente agora — é, a meu ver, uma crise na consciência, uma
crise que já não admite as velhas normas, os velhos padrões,
as velhas tradições, nem determinada maneira de vida — ame­
ricana, européia ou asiática. E, considerando-se o atual estado
do mundo — de aflição, conflito, destruidora brutalidade,
agressão, espantosos progressos na tecnologia etc. — quer-me
parecer que, embora o homem tenha cultivado o mundo exterior
e sôbre êle adquirido um certo domínio, interiormente continua
tal como era: há nêle um considerável remanescente do animal;
continua a ser brutal, violento, agressivo, ambicioso, competi­
dor, e foi nessa base que edificou a sociedade. Quanto mais se
observa êsse fato — e qualquer um pode observá-lo, a menos
que seja totalmente cego, surdo e mudo — tanto mais clara­
mente se percebem as enormes contradições dos entes humanos
e os grandes problemas que estão a exigir-lhe atenção não só
no nível intelectual ou emocional, mas também noutro nível
diferente: o nível dos fatos reais. E para se compreender o
que é real, o que não é intelectual nem emocional, necessita-se
de intensa paixão.
Paixão, para a maioria de nós, significa apenas satisfação
mental ou física, a qual depressa declina e tem de ser sempre
renovada. Em geral, as paixões são despertadas por circuns-

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tâncias externas ou por nosso especial temperamento, nossas
idiossincrasias e apetites. Essa espécie de paixão definha muito
ràpidamente. Tôda paixão que tem um “motivo” chega ne­
cessariamente a seu fim. E , para compreender êsse extraordi­
nário e complexo problema da existência, necessitamos daquela
intensa paixão que não provém do intelecto e tampouco do
sentimento ou da emoção; que não pode ser despertada pelo
devotar-nos a uma determinada norma de ação ou pertencer a
um certo grupo político ou religioso. Isso poderá, com efeito,
proporcionar uma certa intensidade, um certo ardor, uma certa
impulsão, mas referimo-nos a uma paixão mais difícil de alcan­
çar; porque a paixão que se requer para qualquer ação deve
ser sem motivo. Em geral buscamos satisfação intelectual,
emocional, física, e o conforto, sob várias formas. Ideológica
ou psicologicamente, exigimos essa satisfação, a qual, enquanto
nos preenche, desperta-nos uma certa intensidade. Mas essa
intensidade ràpidamente declina e tem de ser sempre renovada,
estimulada, impulsionada, de modo que estamos sempre em bus­
ca de uma certa finalidade, uma certa continuidade da paixão.
Uma vida sem êsse intenso ardor, essa paixão, é inteiramente
insignificante. Busca a pessoa, ordinariamente, uma idéia, um
conceito a que dedicar-se de corpo e alma, e daí resulta uma
certa intensidade, uma certa paixão. Mas, no meio de tudo
isso, está o desejo de satisfação, de prazer. E parece-me que a
sociedade, da qual somos partes integrantes, como entes hu­
manos (pois a sociedade não difere do ente humano: psicolo­
gicamente ambos formam uma unidade), a inteira estrutura da
sociedade, com sua moral, seus deuses, sua cultura, suas di­
versões — está baseada no prazer. Pode haver alguma ocasião
rara em que a mente funciona sem “motivo”, sem desejo de
satisfação, mas nossa vida e nossa conduta se baseiam, pela
maior parte, no desejo e na busca da continuidade do prazer.
Espero que os presentes a estas palestras e às vindouras
façam algo mais do que ouvir palavras. Ouvir parlavras e mais
palavras não é escutar. É como ouvir um barulho passageiro
entre as folhas. Quando ouvimos, aceitamos ou rejeitamos o
que se diz; ou o traduzimos em conformidade com nosso co­
nhecimento, nosso “fundo” ; ou o comparamos com o que já
sabemos; ou a cada idéia opomos outra idéia. Todas estas
características do ato de ouvir negam o ato de escutar. O escutar
é coisa totalmente diferente. Quando escutamos, não há com­

115
paração; não há aceitação ou rejeição. A característica do
escutar é a atenção; quando estamos prestando atenção total,
com nossa mente, coração, nervos, olhos, ouvidos — nesse
estado de atenção consiste o ato de escutar. Êsse ato de escutar
afasta tudo o que não é verdadeiro — isto é, quando prestamos
tôda a atenção a uma coisa: quando estamos escutando total­
mente. Quando se está prestando atenção, não há margens de
desatenção. Ao escutardes com tôda essa intensidade, escutais
as árvores, o vento, a brisa entre a folhagem; escutais o mais
leve sussurro em tôrno de vós. Do mesmo modo, quando
escutais outra pessoa, êsse próprio ato de escutar produz uma
atenção total, na qual se pode ver o inteiro, significado e estru­
tura do que se está dizendo; escutais não só as palavras do
orador, mas também escutais vossa esposa, vosso marido, vossos
filhos, o político, o sacerdote, tôdas as coisas que vos cercam.
Não há então escolha alguma. Só há clareza. Não há confusão,
porém claro percebimento.
Espero escuteis dessa maneira o que se está dizendo aqui,
em vez de ouvir algumas dúzias de palavras ou de idéias; por­
que as idéias e as palavras não são o fato. Idéias e palavras
jamais operam uma revolução radical, uma mutação da mente.
Eu não me estou ocupndo com idéias, opiniões e juízos. O
que nos interessa é a radical revolução da mente. Essa revo­
lução tem de realizar-se sem esforço, porque todo esforço tem
atrás de si um motivo, e a revolução que se opera com um
“motivo” não é uma verdadeira revolução, uma mutação, po­
rém mera “ continuidade modificada” . A mutação, a transfor­
mação radical da mente só pode verificar-se quando não há
motivo algum e quando começamos a compreender a estrutura
psicológica da sociedade, da qual fazemos parte e que faz parte
de nós. Para compreendê-la, é necessário o ato de escutar não
apenas o que diz o orador, porém aquilo que realmente está
ocorrendo em nós mesmos.
A maneira de escutar é da responsabilidade (se se me
permite esta palavra) do ouvinte, porque estamos viajando
juntos. Estamos juntos explorando a estrutura psicológica do
homem; porque, pela compreensão dessa estrutura, de seu sig­
nificado, estaremos talvez aptos a promover uma mudança na
sociedade. E a sociedade, sabe Deus, necessita de uma total
mutação, uma revolução total.

116
Como antes dissemos, todos os nossos conceitos, ações e
impulsos se baseiam no prazer; e, enquanto não se compreender
a natureza e a estrutura do prazer, haverá sempre mêdo —
mêdo, não só em nossas mútuas relações, mas também mêdo
da vida, da totalidade da existência. Assim, sem a compreensão
do prazer, não podemos estar livres do mêdo. Não estamos
rejeitando o prazer; não estamos advogando um viver puritano,
nenhuma maneira de recalcar ou de substituir o prazer; e tam­
pouco estamos rejeitando isso que se chama “grande satisfação”
( great satisfaction). Estamos examinando; e todo exame re­
quer que estejamos livres de opiniões, pois de contrário, não
se pode examinar. Não podeis dizer: “Mas, como viver pri­
vado do prazer?” . Quando se está certo de que não se pode
ou se pode viver privado do prazer, já está criado um obstáculo
ao exame e, por conseguinte, ao descobrimento e à compreensão
de uma coisa, de um problema. Estamos examinando o prazer,
não o estamos condenando. E, se não compreendemos real,
radical e sèriamente êsse “princípio do prazer”, existente tanto
no homem como no animal, viveremos sempre encerrados entre
as fronteiras do mêdo. Isso é bem óbvio.
Antes de mais nada, o prazer é uma coisa extraordinária
que temos de compreender. E , para compreendê-lo, necessita-se
de muita atenção, agilidade mental, sutil percepção. Há prazer
na agressão. Há prazer na violência. Prazer existe na ambição,
no autopreenchimento, no domínio, na arrogância, no buscar
qualquer satisfação. Há várias formas de prazer que não temos
necessidade de examinar em detalhe; mas, pode-se ver que a
totalidade de nosso íntimo pensar e sentir baseia-se nesse “prin­
cípio do prazer” . Nêle se fundamentam as nossas relações, e
igualmente a nossa moral; e os deuses que a mente por mêdo
inventou, os salvadores, os mestres, os guias e líderes etc. etc.,
tudo está essencialmente baseado nesse prazer. A asserção da
vontade faz parte daquele prazer; e a renúncia, o sacrifício estão
também baseados no prazer. Portanto, é necessário compreen­
dê-lo; e, para compreendê-lo, não deve haver nem a retenção
nem a rejeição daquela característica, daquele princípio do
prazer. E isso é dificílimo, porque já estamos fortemente con­
dicionados para aceitar o “motivo” do prazer, com êle funcio­
nar. Conseqüentemente, estamos sempre a limitar a nossa
atenção. Olhamos a vida fragmentàriamente — como nego­
ciante, artista, psicólogo, cientista, político, sacerdote, mãe de

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família, professor etc. etc. Só damos atenção aos fragmentos
e procuramos relacionar um fragmento com o conjunto dos
demais fragmentos, sendo isso o que se chama “identificação” .
Enquanto existirem fragmentos separados, não será possível
ver a totalidade. Se digo: “Preciso experimentar um certo
prazer e conservá-lc a todo custo”, não compreenderei o padrão
total do prazer. Nós aqui queremos ver a totalidade do prazer,
tudo o que êle implica: dor, frustração, agonia, remorsos, dolo­
rosa solidão quando nos é negado o prazer. E , naturalmente,
procuramos fugir de tudo isso, de maneiras várias, o que, por
sua vez, significa dar continuidade ao prazer. A mente que se
acha presa nessa armadilha, condicionada por êsse “princípio
do prazer” , não pode decerto ver o que é verdadeiro; não pode
pensar com clareza e, por conseguinte, não tem paixão. A pai­
xão, ela a traduz em atividade sexual ou em realizações frag­
mentárias em que busca o seu preenchimento. Se não há com­
preensão do prazer, só há entusiasmo e sentimentalismo, de
onde decorrem a brutalidade, a insensibilidade etc.
Que é então o prazer? Pois, se não compreendemos o
prazer, não pode haver amor. O amor não é prazer; nem
tampouco desejo; o amor não é memória. E o prazer nega o
amor. Por conseguinte, parece-me importante compreender
êsse “princípio” . Sem dúvida, prazer é desejo — desejo nascido
muito naturalmente ao vermos uma coisa que nos dá estímulo,
sensação, a qual nos faz desejá-la. A continuidade dêsse de­
sejo é prazer, e êsse prazer é mantido pelo pensamento. Vejo
uma certa coisa, e dêsse contato vem uma sensação; a sensação
é o desejo mantido pelo pensamento. Podeis observar isso em
vós mesmos. Não estais ouvindo nada de extraordinário. Tra-
ta-se de um óbvio fato diário. Vedes um belo carro, uma
bonita casa, um rosto belo; dá-se a sensação, o contato: con­
tato, sensação e desejo. O pensamento entra então em ação;
porque o pensamento é a reação da memória; essa memória
está baseada noutras experiências de prazer e de dor. O pen­
samento dá continuidade ao desejo e à busca de satisfação.
Cada um pode observar isso muito simplesmente em si próprio.
Não se necessita de ler livros de psicologia a êsse respeito.
Não sei por que se lêem livros de psicologia, por que se pro­
curam os analistas etc. Só se tem de observar, pois tudo está
à nossa frente; e o estado de observação não nos pode ser
ensinado por ninguém-. Se sois ensinados a observar, deixais

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de observar: tendes então meramente a técnica da observação,
a qual vos impede de ver realm ente os fatos.
Essa idéia de procurar alguém para se ser ensinado, anali­
sado, psicologicamente informado a respeito de si próprio, pa-
rece-me completamente infantil. Sei que o que estamos dizendo
é contrário à moda atual, mas, quando observais a vós mesmos
— não a outrem, porém a vós mesmos (porque “vós mesmos”
sois a humanidade inteira, com tôdas as suas penas e aflições,
sua existência de solidão e desespêro e inteiramente sem signi­
ficação), nessa observação sentir muita ansiedade em resolver
tudo o mais rapidamente possível. Não temos a paciência nem
a intenção necessárias à clara observação; mas, quando obser­
vamos com essa clareza, a vida se nos vai revelando infinita­
mente. Então, já não estamos na dependência de ninguém —
psicólogo, teólogo ou sacerdote — nem de nenhum dogma.
Estamos então observando o movimento da vida, o qual é
“nós mesmos” . Entretanto, infelizmente, não somos capazes
de olhar com clareza, porque somos sempre movidos por
aquêle “princípio do prazer” .
Para compreender o prazer, temos de compreender a estru­
tura do pensar, porque é o pensamento que dá continuidade
ao prazer. Tive ontem a experiência do prazer — de dife­
rentes espécies de prazer — e o pensamento se mantém ocupado
com aquêle prazer e exige a sua continuidade. A lembrança
daquele prazer de ontem está reagindo e, por meio do pensa­
mento, a exigir a sua renovação; e o pensamento é tempo.
Espero não estar tomando a coisa muito difícil e abstrata.
Não a considero abstrata, embora possa parecer um tanto com­
plexa. Entretanto, em verdade, ela não é sequer complexa,
quando acompanhamos realmente não tanto o que diz o orador
como aquilo que está de fato a ocorrer dentro em nós mes­
mos. Afinal de contas, o que o orador está dizendo é um
espelho no qual olhais a vós mesmos. E se olhardes realmente,
vereis que o prazer é mantido pelo pensamento. Pensa-se no
passado prazer, na passada satisfação, nos deleites e alegrias
de ontem — cuja continuidade o pensamento exige no pre­
sente. O pensamento projeta o prazer de amanhã; e o pensa­
mento cria o passado, o presente e o futuro, isto é, o tempo.
Há o tempo marcado pelo relógio, o tempo cronológico. Não
é êste o tempo que nos interessa. Se tendes de ir a um encon-

119
tro marcado etc., necessitais do tempo cronológico — do ontem,
do hoje, do amanhã. Mas, estamos falando sobre o tempo
psicológico gerado pelo pensamento; êsse tempo é produto do
pensamento. Tive aquêle prazer; quero continuar a tê-lo no
presente e no futuro. Êsse fator tempo é criado, formado
pelo pensamento; e o pensamento é tempo; e o tempo é que
cria o mêdo. Assim, se não tratamos de investigar profunda­
mente o tempo, o prazer e o pensamento, ficaremos sempre
sujeitos ao tempo, e êste, por conseguinte, jamais se detém. Só
quando o tempo termina, surge algo totalmente nôvo; do con­
trário, o que há é só a continuidade do passado, modificado
pelo presente e condicionado pelo futuro.
Como se pode observar, o amor não é produto do tempo.
Nada tem em comum com a memória. E o prazer nega o
amor. Havendo amor, pode-se fazer o que se quiser; só o
prazer é destrutivo.
O ente humano tem de libertar-se do mêdo — mêdo do
futuro, mêdo de. . . há dúzias de variedades do mêdo humano,
tanto consciente como inconsciente •— mêdo do próximo, mêdo
da morte, mêdo da solidão, da insegurança,. da incerteza, o
mêdo causado pela confusão, o mêdo sentido pelo indivíduo ao
perceber que é estúpido e luta para tornar-se inteligente —
numa palavra: o mêdo. O mêdo está sempre em relação com
alguma coisa; não existe isoladamente. Para libertar-se do
mêdo — totalmente, não parcialmente (que é ficar-se livre
de um fragmento daquela totalidade que se chama mêdo),
para libertar-se psicologicamente do mêdo, total e completa- y,
m ente, é necessário compreender-se o pensamento, o tempo e o
prazer. Essa compreensão não é intelectual nem emocional.
Só pode vir quando há atenção completa, quando damos tôda
a atenção ao prazer e vemos como êle nasce, vemos o que é o
tempo, êsse tempo que o pensamento criou: eu fui, eu sou, eu
serei; tenho de mudar dêste estado para aquêle. Essa idéia de
processo gradual, de gradativa evolução psicológica do homem,
é muito agradável; gradualmente, todos nos tornaremos per­
feitamente bondosos; gradualmente, perderemos tôda a nossa
violência e agressividade. Um dia — mais tarde, muito mais
tarde — todos seremos fraternos. Êsse conceito de graduali-
dade, que, psicologicamente, em geral se chama “evolução”,
parece-me inteiramente falso. Não estamos externando uma

120
opinião. Trata-se de um fato, porque, quando aplicamos intei­
ramente a nossa atenção a alguma coisa, o tempo não existe,
em absoluto. Já não se diz: “Serei isso amanhã”. Naquele
estado de atenção, não há ontem, nem hoje, nem amanhã; por
conseguinte, o tempo terminou. Mas, essa terminação do
tempo não é possível quando existe aquele centro que é o
princípio do prazer. O prazer encerra a dor. Não são duas
coisas separadas. Prazer é dor — se já observastes isso.
Portanto, psicologicamente, não se pode evitar a dor, se
se está psicologicamente em busca do prazer. Desejamos uma
coisa, e não desejamos a outra. A exigência de continuação
de um dado prazer é o centro de onde pensamos, funcionamos
e atuamos — centro que se pode chamar EG O , EU, PERSONA­
LID A D E; não importa o nome que se lhe dê. Onde há um
centro, há sempre espaço em tôrno dêle, espaço no qual ocorre
a ação do mêdo e do prazer. Exato?
Espero estejais seguindo isto, mais ou menos. Se não,
não importa. Pois a maioria de nós, provàvelmente, nunca
aplicou por inteiro a sua atenção — não por dez minutos ou
meia hora, porém por um longo período de tempo. Funciona­
mos emocionalmente, desejando e não desejando; quando se
trata de problemas fundamentais, é um tanto difícil aplicar-lhes,
por inteiro, a vossa mente, quando tôda a vossa vida foi dissi­
pada — dissipada na ação fragmentária. Quando atuamos
totalmente, só o fazemos por ocasião de uma crise. Então des­
pertamos e aplicamos a atenção total. E isto aqui é uma crise.
Uma palestra desta natureza é uma crise, um desafio. Não po­
deis repeli-la. Por conseguinte, poderá ser um tanto difícil,
árduo talvez, seguir o que se está dizendo, porém não é difícil
seguir o movimento da própria mente. Isso é como estar-se
sentado na margem- de um rio, observando as águas passarem;
quando se observa dessa maneira, não há observador nem coisa
observada: só há movimento. Mas, para se observar êsse mo­
vimento, não deve haver mêdo, não deve haver tempo, não
deve haver nenhuma idéia ou exigência de prazer. Nesse estado
pode-se observar o movimento total da vida — que é agonia,
desespero, o doloroso dessa existência sem significação, de ro­
tina, tédio, grandes temores, como o da morte (da qual trata­
remos noutro dia). Tudo isso se pode observar; e, quando o
observais, o observador é aquilo que êle está observando;

121
pode-se então transcender tudo isso. A mutação só pode reali­
zar-se na mente quando o tempo, o prazer e o mêdo termina­
ram e há, por conseguinte, uma certa dimensão ou propriedade
que não pode ser alcançada pelo pensamento.
Podeis agora, se o desejardes, fazer perguntas sobre o que
estivemos dizendo, as quais procuraremos examinar. Peço-vos,
se possível, abreviar as vossas perguntas.
I nterrogante : Estou confuso sobre o que dissestes a respeito
do prazer, porquanto não percebo a distinção que fazeis
entre o prazer e o desejo de satisfação. Gostaria de saber
qual é a sensação que tendes ao olhar uma pintura;
porque isso eu definiria como prazer sem desejo; um
prazer de boa qualidade. O prazer é bom.
K r ish n a m u r ti : Diz o interrogante que o prazer é bom quando
se olha um quadro, quando se olha o entardecer, quando se
olha um belo rosto ou um sorriso amável. Prazer, diz o inter­
rogante, é satisfação. Não vejo diferença entre satisfação e
prazer.
I nterrogante : E u disse “a distinção que fazeis” .
K rish n a m u r ti : O quê?
I nterrogante : Desculpai-me. Eu não percebi a distinção
que fazeis entre os dois. Pensei que estivésseis procuran­
do equilibrá-los, e disse que o desejo de satisfação é uma
coisa muito diferente do prazer.
K rish n a m u r ti : Sim, tendes razão. O interrogante está di­
zendo que o prazer e a satisfação são duas coisas diferentes e
que não discorda do que disse o orador. Não é isso?
I nterrogante : Não.
K rish n a m u r ti : Oh, então desculpai-me! {risos).
I nterrogante : Prazer é amor.
K r ish n a m u r ti : O quê?
I nterrogante : Aquela espécie de prazer traz amor.
K rish n a m u r ti : Quando se está examinando uma coisa desta
natureza, não tireis conclusão alguma. Não digais “Prazer é
amor” ou “Prazer não é amor” . Estamos examinando. E se
tendes uma conclusão ou se chegastes a uma conclusão e nessa
base começais a examinar a questão, então a pergunta já está
respondida por vossa conclusão.

122
I nterrogante : Desculpai-me, senhor.
Krish n a m u r ti : Nada de pedir-me desculpas, por favor. O que
estamos tentando é fazer um exame; e para examinar devemos
estar livres de qualquer conclusão, qualquer conhecimento,
qualquer exigência. De outro modo; é impossível olhar, impos­
sível examinar. E esta é uma das coisas mais difíceis da vida,
porque todos nós temos opiniões às dúzias e estamos sempre
prontos a externá-las. Ora, só os tolos externam opiniões. O
sábio não opina.
Esta pergunta suscita um problema difícil. Quando se
olha o ocaso, êle faculta grande prazer, deleite. Tal deleite é,
naquele momento, intenso, e vossa mente e todo o vosso ser
se absorvem naquela beleza. Depois, essa experiência fica
guardada, na tarde seguinte desejais a repetição daquela mes­
ma experiência. Isso é o mesmo que tomar aquela droga cha­
mada L.S.D .; ela proporciona uma extraordinária experiência, e
essa experiência é um grande deleite. Mas, passado êsse deleite,
vos vêdes de volta a “vós mesmos” e vossa vulgar mentalidade.
Toma-se então outra dose, e mais outra, e assim por diante
até a pessoa tornar-se “ tantã” ! 1) (risos). Não, por favor,
não riais. Um minuto! Consideraremos esta matéria noutra
reunião.
Há, pois, o cultivo da memória, mantido pelo pensamento;
ou, por outra, o pensamento mantém a si próprio. Ontem
assisti a um belo pôr do Sol, côres maravilhosas; a extraor­
dinária tranqüilidade da tarde, na hora do poente; uma luz
inteiramente diferente. Tudo isso retive na memória. A mente
o absorveu e, no dia seguinte, num escritório, numa escola, ou
na cozinha, ou a sós comigo mesmo, penso naquele deleite.
Êsse pensamento surge naturalmente e olho pela janela na
esperança de fruí-lo de nôvo. Mas, aquele deleite jamais volta,
porque a mente contempla o nôvo pôr do Sol com a velha
mente, com as velhas lembranças. Mas, se puderdes morrer
para o ocaso de ontem, morrer totalmente, podeis então olhar
o nôvo poente. Já não há então aquela busca de satisfação,
de prazer.

(1) Krishnamurti usou também uma expressão de gíria


(cuckoo). (N. do T.)

123
I nterrogante : Vejo-me confuso quanto à diferença entre pra­
zer e alegria. Podeis falar-nos a respeito da alegria e
dizer-nos a semelhança ou dessemelhança que tem com
o prazer?
K rish n a m u r ti : Qual a diferença entre prazer e alegria? Não
a sabeis? O prazer tem continuidade; a alegria não. Se dize­
mos “Estou cheio de alegria” , acabou-se a alegria. Mas, ao
prazer pode dar-se continuidade. O prazer, por conseguinte,
é uma continuidade daquilo que foi, daquilo que ontem vos
proporcionou satisfação ou prazer, prazer a que, por meio do
pensamento, podeis dar continuidade, nutrição, hoje e amanhã.
Já a alegria, ao contrário, é algo que vem imediatamente, natu­
ralmente, e naíuralmente se vai. E quando a ela nos apegamos,
já se tornou memória, prazer; está acabada!
I nterrogante : A vida não é dolorosa, em qualquer caso?
K r ish n a m u r ti : Depende. Se vosso fígado funciona mal, a
vida é dolorosa. Se tendes mágoas psicológicas por terdes sido
ofendido, por estardes só, por falta de preenchimento, por não
serdes amado etc. etc., a vida se torna uma tortura. Freqüen-
tar um escritório diariamente, durante dez, quarenta anos, é
uma tortura m edonha (riso s). Mas, isso sois capaz de suportar,
porque vos dá dinheiro, confortos etc. etc. Não o chamais
“ tortura” .
I nterrogante : Mas, se se não freqüenta um escritório, tam­
bém . . .
K r ish n a m u r ti : Um momento, senhor. Ainda não liquidamos
aquela pergunta (riso s). Senhores, tende a bondade. . . não
estamos aqui a divertir-nos.
I nterrogante : Como a ju sta is...
K r ish n a m u r ti : Um minuto, minha senhora, um minuto!
Estou tentando responder. Se se compreende corretamente
uma pergunta, tôdas as perguntas estão respondidas. Mas, nós
não sabemos fazer perguntas corretas. Fazer a pergunta correta
exige muita inteligência e sensibilidade. Eis aqui uma per­
gunta fundamental: A vida é uma tortura? A vida é o que é;
e o homem vive nesta tortura há muitos e muitos séculos; da
antiguidade aos nossos dias, vive êle na agonia, no desespêro,
no sofrimento, sem encontrar uma saída dessa situação. Por
essa razão, inventa deuses, igrejas, rituais e tantas outras coisas

124
verdadeiramente absurdas; ou foge da vida de diferentes ma­
neiras. O que nestas palestras e debates estamos tentando é
ver se não podemos produzir radicalmente uma transformação
da mente, em vez de aceitarmos as coisas como estão ou de
nos revoltarmos contra elas. A revolta nunca constituiu solução
para nada. Deveis compreender o problema, penetrá-lo, exa-
miná-lo, dar-lhe vosso coração e vossa mente, a fim de desco­
brirdes uma diferente maneira de viver. Isso depende de vós
e de ninguém mais, porque nesta matéria não há instrutor nem
discípulo; não há guia, não há guru, não há mestre, não há
salvador. Sois a um tempo instrutor e discípulo; sois o mes­
tre; sois o guru-, sois o guia, sois tudo. E — compreender
é transformar o que é.

5 de novembro de 1966.

125
OJAI — IV
A NATUREZA DO CONFLITO
E DO ESFÔRÇO

D e s e jo nesta manhã considerar vários problemas, subme­


tê-los a um sério exame. Para se chegar a uma profunda com­
preensão dêsses problemas, necessita-se de abundante energia,
não só física, mas também energia psicológica. Em geral, o
indivíduo com saúde dispõe de suficiente energia física, do
ardor necessário ao investigar; mas, muito mais difícil, quer-me
parecer, é ter energia psicológica, a energia necessária para exa­
minar atentamente, até o fim, qualquer questão, sem se deixar
distrair em caminho. Para se ter essa abundância de energia é
necessário compreender a natureza do conflito e do esforço.
Estamos muito acostumados com êsse condicionamento repre­
sentado pelo esforço. Tôda a nossa vida, do nascimento à
morte, vemo-nos empenhados num esforço constante, numa luta
interminável; e onde há luta, evidentemente, tem de haver des­
figuração; onde há esforço, não há a lucidez necessária ao exame.
Todo esforço implica tensão, o desejo de alcançar um certo fim,
impossibilitando, por conseguinte, qualquer espécie de investi­
gação, impedindo a compreensão, a penetração profunda. Como
antes dissemos, o desejo de resultados baseia-se essencialmente
no conforto, no prazer, na satisfação. O que vamos considerar
nesta manhã não exige esforço de nenhuma espécie. Só existe
esforço quando há contradição, contradição interior, além da
contradição exterior, sempre possível de compreender e, quiçá,
transcender. Mas, há a contradição interior entre desejos opos­
tos; e são esses desejos os causadores do conflito — querer e
não querer; o que é e o que deveria ser; o que é a ajustar-se

126
ao padrão do que deveria ser. Por essa razão, há sempre con­
flito. Aparentemente tudo isso faz parte de nossa vida diária.
Da manhã à noite • — desde a hora de levantar-nos, para tra­
balhar e lutar o dia todo, até a hora de deitar-nos — do nasci­
mento à morte, empenhamo-nos nesse constante esforço; e,
fazer esforço para se ficar livre do esforço, significa fazer mais
esforço.
Nada se lucra em ficar . meramente ouvindo uma longa
série de palavras e de idéias. O que nos interessa é a compreen­
são do inteiro processo da vida, com todas as suas complexida­
des, suas agressões e aflições, suas tristezas, confusões, agonias.
Para se compreender êsse vasto campo da vida, que é um mo­
vimento constante, cumpre não só ouvir palavras, mas também
utrapassá-las; porque palavras, explicações, não representam o
fato. Entretanto, a maioria de nós se deixa ficar na rêde das
palavras. Elas nos são de enorme importância — tal a palavra
“socialista”, que para um americano ou comunista é uma coisa
formidanda. Tão importante se tornou a palavra que, em
primeiro lugar, vemos sempre a palavra e só depois vemos o
fato. O que tem realidade é o que é, e não a palavra; e, para
podermos ultrapassar a palavra, penso que temos também de
compreender o quanto a mente está escravizada às palavras.
O pensamento se expressa por meio de palavras. Pode-se pen­
sar sem a palavra? Compreender sem a palavra? Para se com­
preender uma coisa totalmente, perceber o inteiro processo da
vida, temos de estar livres da palavra — da palavra, do sím­
bolo, da idéia, da conclusão. Pode-se então olhar-, pode-se
então escutar, e êsse ato de escutar é um verdadeiro milagre.
Talvez o maior dos milagres. Escutar totalmente, sem opor
defesas nem barreiras, sem concordar nem discordar. Isso não
significa que a mente não esteja aberta: pelo contrário, ela se
acha então num estado de extraordinária vigilância.
Como estávamos dizendo, a palavra não é o fato. Isso é
dificílimo de perceber. O símbolo nunca é a realidade. As
coisas que vamos considerar nesta manhã, repito-o, não reque­
rem nenhum esforço. O que se requer é a total percepção do
inteiro processo da vida, e para se perceber êsse fenômeno
da vida, em seu todo, necessita-se de energia. Nega-se tal ener­
gia quando há impulso, esforço visante à consecução de algum
fim.

127
Só quando vazia, a taça pode ser enchida. Só totalmente
vazios, podem a mente e o coração compreender, viver. Mas,
êsse estado de absoluto vazio não é um fenômeno negativo.
Pelo contrário, constitui o mais alto grau de inteligência. É o
amor em sua forma mais elevada — o estar-se tão completa­
mente vazio que não haja a mais leve arranhadura de memória,
uma só palavra, uma só conclusão, para desfigurar o percebi-
rnento. O que nesta manhã vamos examinar exige uma mente
inteiramente isenta de mêdo. Portanto, é necessário, em pri­
meiro lugar, compreender o mêdo, porque o que vamos consi­
derar é o problema da morte. Para compreendê-lo, penetrá-lo
profundamente, necessita-se de uma mente sobremodo sutil,
sensível, vigilante, capaz de plena atenção. E , para se com­
preender êsse enorme problema com que o homem vem lutando
desde o comêço dos tempos, impende estarmos livres do mêdo.
Há numerosas modalidades de mêdo: mêdo do escuto,
mêdo da opinião pública, mêdo de acidentes físicos, mêdo à
insegurança, mêdo à solidão, e, por derradeiro, o mêdo da
morte. E o mêdo, como dissemos, está sempre em relação com
alguma coisa; não existe isoladamente. Tenho mêdo de vós,
ou vós tendes mêdo de mim; ou tenho mêdo de uma idéia; ou
liguei-me a um certo movimento, no qual encontro conforto e
segurança, e temo seja destruída essa segurança, me seja rouba­
do aquêle conforto; temo perder o conforto que me propor­
cionam minhas relações, meu emprêgo, meus ideais.
Há tantas formas de mêdo! E o mêdo é essencialmente
um resultado do tempo. Ninguém teme o presente; temos
mêdo do que irá acontecer ou do que aconteceu. Examinai
isso, por favor. Não tendes de concordar com o orador (pois
isso seria muito absurdo), mas procurar, por intermédio de
suas palavras, conhecer o vosso condicionamento, vossas ma­
neiras de pensar e de sentir.
O mêdo é produto do pensamento. O mêdo, em tôdas as
suas formas, é a ação do pensamento vindo do passado, atra­
vessando o presente, para o futuro. Tenho mêdo do que acon­
tecerá, e tenho mêdo de algo que pratiquei no passado e que
desejo ocultar. Assim, o pensamento, o mêdo, é o movimento
do passado; e, se desejamos livrar-nos do mêdo, muito importa
compreender êsse movimento do tempo, que é essencialmente
processo de pensamento. O presente vivo de agora, a realidade.

128
resulta de ontem e de milhares de ontens; por conseguinte, não
existe nenhum momento, ou agora, real. O momento, a reali­
dade, é o resultado de ontem; êsse ontem, o resultado de inú­
meros dias passados. O agora é o produto de ontem, em mo­
vimento para o futuro, para amanhã. O mêdo é êsse movi­
mento do tempo — que é produto do pensamento. Quando
me vejo diretamente em presença de algo perigoso, não há
mêdo. Eu atuo — talvez desassisadamente, ignorantemente,
mas há ação. Porém, se concedo tempo a coisa, se permito um
intervalo, o pensamento entra em ação e, então, sinto mêdo.
Notai que não estamos fazendo psicanálise coletiva. Não
estamos a analisar-nos reciprocamente, mas estou bem certo de
que cada um de nós, em formas várias, teme. Tomai uma delas,
trazei-a à luz (mas não a confesseis a mim, por favor!), trazei-a
à luz e olhai-a. E a maneira como a olhais é de imensa impor­
tância. Vamos examinar esta questão, passo por passo.
Como disse, a maneira de olhar é de grande relevância.
Primeiro, olhais o mêdo como algo que está fora de vós, algo
que não é “vós”, uma coisa situada no exterior? Sois o obser­
vador, e o mêdo uma coisa exterior a vós. Há esta dualidade,
esta contradição: Eu não estou com mêdo, mas o mêdo existe,
e tenho de vencê-lo. Preciso fazer alguma coisa em rela­
ção a isso que chamo “mêdo” . Assim, o observador é diferente
da coisa observada. Mas, existe diferença? Se examinardes,
podeis ver que não há diferença. O observador é a coisa obser­
vada. Tende a bondade de seguir isto, passo a passo. O
observador, que tem mêdo, diz que há mêdo. Êsse mêdo é
uma coisa exterior a êle. Mas, para que o observador possa
reconhecer que essa coisa exterior é mêdo, já deve tê-la conhe­
cido antes; por conseguinte, o observador é a coisa observada.
Não prosseguirei êste exame, porque por ora é suficiente o
que já dissemos.
Sendo assim, uma vez que o observador, o pensador, é o
pensamento, a coisa observada, todo e qualquer esforço com
que vise a libertar-se do mêdo cria outro observador. Está
êle, pois, aprisionado num círculo vicioso. Espero me estejais
acompanhando.
O observador é o centro de coisas acumuladas: lembran­
ças, experiências, conhecimentos, instrução; é o censor etc. Êste

129
centro está cônscio de algo existente fora de si, a que chama
“mêdo”, e faz um esforço constante para fugir, traduzir, trans­
cender ou recalcar êsse mêdo. Quanto maior a tensão entre
o observador e o fato — o mêdo — tanto maior o esfôrço, tanto
maior o desejo de fugir, de ocultar; e quando a pessoa não
pode fugir, torna-se neurótica, visto que a tensão se torna por
demais intensa. Viver nessa intensa escuridão do mêdo é um
estado de neurose. Mas, como já dissemos, quando o obser­
vador é a coisa observada — não uma idéia, porém o fato —
não há esfôrço algum, porque já não há contradição. Eu sou
o mêdo. E, que posso fazer? Segui, por favor, o que se vai
dizer. O observador sempre atuou como se a coisa observada
fôsse diferente dêle próprio; assim, êle podia agir. Mas, ao
perceber que o observador é a coisa observada, cessa então toda
ação de sua parte e, por conseguinte, tôdo esfôrço; conseqüen-
temente, já não há mêdo.
Isso exige muita investigação, muita observação interior,
passo por passo, sem se chegar a nenhuma conclusão. Por
conseguinte, deve a mente achar-se num estado de extraordi­
nária vigilância, sensibilidade, presteza. E , quando não existe
mêdo, porque o observador é a coisa que êle objetivou como
“mêdo” , já não há aquela ação positiva — o fazer alguma coisa
em relação ao mêdo. O observador é então a coisa observada.
Êsse é um estado de completa inação; e essa inação total é a
mais alta forma de ação.
Não há, pois, esfôrço nenhum. Só a mente embotada, a
mente que está “comprometida” , a mente que está a alcançar
ou não alcançar os seus fins, só essa mente se acha em perene
batalha e luta; só ela faz esfôrço. Êsse esfôrço, essa luta é
considerada a “maneira positiva” de viver. É a maneira mais
prejudicial de viver. Naquela total inação, existente quando o
observador compreende que êle próprio é a coisa observada,
há uma ação não produzida pelo esfôrço. Detenhamo-nos aqui,
por ora. Espero estejais compreendendo mais ou menos.
Passemos agora a examinar a questão da morte — o que
é a morte. Três coisas precisam ser compreendidas: o viver, o
amor e a morte. Elas são inseparáveis. Não se pode separar
a morte do amor e do viver. Para nós, o viver, nas atuais
condições, é tortura, aflição, sofrimento, uma coisa sem signi-

130
ficaçáo. Quanto mais inteligente, quanto mais sensível a pessoa,
quanto mais ativa, intelectual e emocionalmente, tanto melhor
percebe que a vida é inteiramente sem significação. E , conse­
quentemente, inventamos, “projetamos” para ela um significado,
de acordo com o qual procuramos viver. Isso, absolutamente,
não é viver. Portanto, importa compreender o que é viver.
Viver não é esta batalha entre entes humanos; não é a batalha
da competição, das raças, da ambição etc. — não há necessidade
de entrarmos em muitos pormenores. Ninguém ignora o que
é a vida: tortura, sofrimento, aflição e confusão infinitas;
isto é o que chamamos “viver” . E o amor, como vemos, é
acompanhado do ciúme, da desconfiança, da agressão, da vio­
lência; por conseguinte, não sabemos também o que é o amor.
E muito evidentemente não sabemos o que é a morte, porque
lhe temos horror. Não gostamos de falar nela. Falamos muito
a respeito do viver, do amor; mas a morte é assunto que pro­
curamos evitar, afastar de nós. Não gostamos de falar sôbre
ela; e, quando falamos, é para racionalizá-la. Ou, em razão de
nossos temores, inventamos crenças que nos proporcionam con­
solo: ressurreição, reencarnação, e inumeráveis outras formas,
de fuga àquele fato extraordinário e misterioso que se chama
“a morte”. No mundo inteiro, as religiões têm oferecido ao
homem a esperança — em verdade uma esperança essencial­
mente falsa. Nas antigas civilizações, as pessoas viviam para
morrer. Para elas, a morte era muito mais importante do que
o viver. Mas, à geração atual, à atual civilização, interessa o
viver e não aquela “outra coisa”. E êsse viver é uma tortura,
com uma ocasional centelha de afeição, de amor e beleza. Assim,
se não há compreensão do viver, e se não há compreensão do
amor, não há possibilidade de compreender o que é a morte.
Compreendê-la não intelectual ou emocionalmente — sem fugir
dêsse fato que tem de realmente acontecer e, portanto, precisa
ser compreendido, sentido — é a coisa mais importante que
temos de fazer. Vamos agora examinar êste ponto.
Notai, mais uma vez, que a palavra não é a coisa; a
explicação que vamos dar também não é a coisa. Se a “coisa”
não se verificar, não se “realizar”, a explicação nenhuma signi­
ficação terá. Se a considerardes como mera exposição de uma
idéia, nenhum valor terá. Já há tantas idéias, tantos livros
publicados tôdas as semanas, às dezenas de milhares! Não

131
acrescenteis mais uma idéia às que já tendes. Como dissemos,
só a mente que está vazia pode ver e pode agir totalmente.
Em primeiro lugar, temos o fato da morte física. O corpo,
sujeito a constante uso e tensão etc., cede, sucumbe, morre.
Morre também de acidente, de doenças resultantes da vida
moderna. Fisicamente, poderão descobrir-se medicamentos, re­
gimes dietéticos etc., que lhe dêem mais uns cinqüenta anos;
mas o fim é inevitável. Como todo organismo, êle tem de che­
gar a seu fim, e seria desejável mantê-lo o mais tempo possível
em bom estado de saúde. Mas, há um fato muito mais pro­
fundo, um ponto muito mais fundamental, nesta questão da
morte: o findar psicológico. O EU, a experiência acumulada
como ente humano, com todos os seus conhecimentos, todas
as coisas aprendidas e acumuladas, tôda espécie de lembranças
carinhosamente conservadas ou desprezadas, repelidas — tudo
isso constitui o EU, o EG O , a PESSOA, e êsse é o centro, o
centro psicológico que tememos perder.
Não sei se já investigastes êsse centro (não apenas o que
temos dito acerca da tradição, da herança racial, da educação
etc.). Êsse centro nada tem de divino, não é nenhuma dessas
coisas que o homem veio inventando pelos séculos afora —
Atman, “Eu Superior”, alma — e que são uma repetição, em
palavras diferentes, da idéia de que existe algo de supremo
dentro de cada um de nós. Um comunista chamaria essas
coisas “pura bobagem” . Os que nelas crêem, a elas se apegam
como se fossem verdades eternas. Mas, examinando-se aquêle
centro, vê-se que é uma mera idéia, pensamento, memória, mero
feixe de experiências e respectivas reações.
Examinemo-lo com todo o vagar. Não me chameis ateísta,
isto ou aquilo. Estamos examinando.
Aquêle centro é um resultado do tempo e, como todo
centro, cria espaço ao redor de si. Êste microfone existe no
espaço e cria um espaço em tôrno de si; isso é bastante sim­
ples. E há o centro representado pelo EU, a criar espaço em
redor de si. Êsse espaço pode dilatar-se consideravelmente,
expandir-se, contudo, onde há um centro, há sempre limites.
Dentro dêsses limites não pode haver nenhuma espécie de
liberdade. Ainda que essa consciência dotada de um centro
possa expandir-se, por meio de vários artifícios mentais, dro­
gas etc., nesse espaço criado pelo centro não há liberdade. A

132
morte, para a maioria de nós, representa a perda dêsse centro,
não é verdade? • —• perda das coisas conhecidas: minha família,
meus amigos, tudo o que tenho acumulado. O centro é o
conhecido, e a morte uma coisa que desconheço de todo. O que
me aterroriza é a perda do conhecido; não é o desconhecido.
E perder o conhecido significa ficar inteiramente só; ver-se
completamente só, num vácuo. É disso que temos mêdo. E
por causa dêsse mêdo buscamos a fuga por várias maneiras,
temos um verdadeiro sistema de fugas; e quanto mais român­
tico e espiritual o indivíduo — não sei bem o que significa
“espiritual” •
— tanto mais fantásticas as suas idéias.
Ora, é possível pôr fim àquele centro, todos os dias —
quer dizer, sem primeiro acumulá-lo, para depois abandoná-lo:
morrer para êsse centro, em cada dia, em cada minuto? Êsse
centro é constituído de experiências e conhecimentos. A vida
é um processo de experiência de constante “desafio e reação” ;
e, quanto mais inadequada a reação, tanto maior o conflito. A
não ser que a pessoa seja altamente esclarecida, inteligente e
sensível, o que a mantém desperta é a experiência, o desafio.
Mas, nós temos de receber cada experiência e dela não conser­
var posteriormente o mais leve vestígio. Está claro? Tendes
uma experiência, agradável ou desagradável, perigosa ou apra­
zível; deveis receber essa experiência, compreendê-la e, imedia­
tamente, morrer para ela, para que não fique nenhuma lem­
brança a constituir um centro conservador daquela experiência.
Isso nós fazemos algumas vêzes naturalmente. Mas, estar tão
intensamente vigilante, sem escolha, de modo que cada expe­
riência seja totalmente assimilada, compreendida e dissolvida,
isto requer uma grande abundância de energia, vale dizer, aten­
ção. Morrer todos os dias para todos os prazeres, todos os
pensamentos, tôda espécie de acumulação —• isso renova a
mente e o coração e a vida deixa de ser uma tortura.
Morrer todos os dias para tudo o que conhecemos — é
amar. De outro modo, é impossível amar. O amor não é uma
coisa cultivável. É como a humildade: tão logo se começa a
cultivá-la, ela passa a ser um manto da vaidade. Só no morrer
para tudo, para tôdas as experiências, se encontra o viver.
Porque o viver é um movimento sempre nôvo, nôvo em cada
minuto do dia, “inocente”; e morrer para o passado significa
viver totalm ente, numa dimensão inteiramente nova.

133
Talvez, se tendes interêsse, possamos agora, por meio de
perguntas, penetrar mais fundo nesta matéria ou reformular o
que estivemos dizendo nesta manhã.
I nterrogante : Qual a entidade que tem o poder de observar
a mente?
K r ish n a m u r ti : Senhor, se antes de tudo percebemos que o
observador é a coisa observada — uma das coisas mais extraor­
dinárias, uma vez percebida — então, nesse estado de atenção,
não há observador nem coisa observada. Eu me explico.
Olhai para aquele carvalho; olhai-o realmente. Vós sois
o observador, e o carvalho a coisa observada. Há um espaço
entre vós e o objeto • — a árvore. Nesse intervalo ou espaço
está o tempo — o tempo de que se precisa para ver o objeto.
O objeto é sempre estático; e o que é estático — quando
observado — é tempo.
Pois bem; o observador está a observar a árvore. Naquele
intervalo, naquele espaço, . criam-se idéias de tôda espécie:
“Aquela árvore é um carvalho”, “Gosto”, “Não gosto”, “Quem
me dera tê-la em meu jardim” , “Preferia que ela fôsse ‘isto’
ou ‘aquilo’ ” — dúzias de coisas diferentes, que me impedem
de ver realmente o fato — a árvore — vê-lo em sua totalidade;
porque minha atenção é desviada pelas palavras, pelo nome,
pelos conhecimentos botânicos que tenho a respeito da árvore.
Essa distração me impede de olhar realmente a árvore. Quando
já não estamos a dar nome, quando o pensamento já não fun­
ciona na forma de conhecimento relativo à árvore, há então
algum espaço entre vós e a árvore? Então — se penetrardes
e observardes profundamente tudo isso — vereis que o obser­
vador é a coisa observada — o que não significa que o obser­
vador se identifica com a árvore. É bem de ver que a identi­
ficação do observador com a árvore é uma coisa perfeitamente
absurda. O observador não se torna árvore.
I nterrogante : Não observais o vácuo?
K rish n a m u r ti : Meu caro senhor, examinai isso; examinai-o;
não pergunteis nada. Examinai o fato. Olhai aquela flor.
Alguma vez já olhastes uma flor? Ou apenas a olhais, lhe dais
um nome, e passais adiante? Ou dizeis “Que bela! Vou chei­
rá-la”? Tudo isso são ações que vos distraem e vos impedem
de olhar a flor. Assim também os entes humanos que se co­
nhecem e nunca se olham, têm as respectivas imagens um do

134
outro, e essas imagens é que estão em relação entre si. O obser­
var claramente uma coisa — e mui poucos o fazem — não
exige esforço algum: estar-se tranqüilamente sentado, numa
tarde, quando se dispõe de tempo e de folga, e olhar uma flor,
olhar a si próprio, olhar o movimento dos próprios pensa­
mentos e sentimentos e reações; estar simplesmente a observar,
sem escolha — isso é o começo do autoconhecimento. E sem
êsse autoconhecimento, ver-se-á o homem num estado de per­
pétua confusão e aflição. Quando o observador é a coisa
observada — isso só se torna possível quando há atenção total,
e não atenção fragmentária. Essa atenção pode durar um
segundo ou um minuto; mas, o desejo de mantê-la torna-a
desatenção.
Perguntar o que é o observador, qual o estado da mente
quando não há observador, quando o observador é o objeto
observado, formular em palavras o que é aquele estado, é negá-
-lo. Uma pessoa não pode comunicar algo que outra não co­
nhece, não descobriu. E a fazer-se tal comunicação ( que é
impossível), logo se quereria alcançar aquela coisa, dir-se-ia:
“Ensinai-me o método de alcançá-la” — e estar-se-ia no ca­
minho errado. . .
I nterrogante : Senhor, o que me impede de ver a árvore é
o EU, e percebo que tenho de dispor-me a renunciar ao
EU, abandoná-lo, soltá-lo, antes de poder ver a árvore.
Não é isso que dizeis?
K r ish n a m u r ti : Qual a entidade que vai renunciar?
I nterrogante : O EU.
K r ish n a m u r ti : Senhor, o EU não pode renunciar a si pró­
prio. O que pode fazer é só ficar quieto; mas, não poderá ficar
quieto, sem a compreensão da inteira estrutura e significado de
si próprio. Ou se compreende essa estrutura e significado
total e imediatamente, ou não se compreende em absoluto.
Êsse é o único caminho; não há outro caminho. Se disserdes
“Eu me exercitarei e gradualmente farei que o EU morra” —
se assim fizerdes, caireis numa armadilha diferente, que é o
mesmo EU.
I nterrogante : Se observo uma árvore na maneira como des­
crevestes, isto é, de modo que o observador seja a coisa
observada, a árvore continua existente.
K rish n a m u r ti : É claro, senhor.
I nterrogante : Se observo o mêdo da mesma maneira, êle
não continuará também existente?
K rish n a m u r ti : Não. Vede, em primeiro lugar, que eu não
desejo livrar-me do mêdo, porém compreendê-lo. Para com­
preender uma coisa devo ter interesse nela; tenho de amá-la;
tenho de cuidá-la, e se digo “Preciso libertar-me dela”, essa
é a maneira mais insensata de agir. Porque eu tenho de com­
preender a natureza do mêdo; e, para compreendê-la, tenho de
olhar o mêdo; mas não posso olhá-lo se digo que preciso, que
desejo libertar-me dêle, ou recalcá-lo, ou sublimá-lo. Tenho
de olhá-lo realmente, pôr-me em contato com êle, não através
de uma palavra, porém diretamente em contato com o fato, com
o que realmente ê.
I nterrogante : Dissestes que, estando a mente e o coração
vazios, pode-se compreender realmente. Mas, como esva­
ziar o coração?
K rish n a m u r ti : Como pode a mente — essa mente tão re­
pleta de coisas e tão tagarela — como pode a mente esvaziar-se?
Receio que não haja nenhuma maneira de fazê-lo. Qualquer
método é a coisa menos prática que há. Sei que se crê que,
seguindo-se um método, êle nos ajudará a clarificar a mente.
Pelo contrário. Todo método produz seus resultados próprios,
mas não liberta a mente das tradições e conhecimentos nela
acumulados. Eis por que eu disse, no comêço, que o importante
é escutar. O escutar requer atenção, um certo elemento de
afeição que possibilite a comunhão. Vereis então que, sem
esforço algum, aquilo se realiza (o esvaziar da mente).
I nterrogante : Na solidão se encontra, às vêzes, a claridade;
mas, no convívio com pessoas, encontra-se o caos. Podeis
dizer alguma coisa a êste respeito?
K r ish n a m u r ti : Quando estamos sós, encontramos, às vêzes,
clareza. Só no contato com pessoas nos tornamos confusos —
diz o interrogante. Infelizmente, nem sempre podemos viver
sós; e o viver só exige o mais alto grau de inteligência. Viver
isolado é relativamente fácil; nesse estado, podemos desenvol­
ver nossas idiossincrasias, características, tendências, cristalizar-
-nos, solidificar-nos etc. Mas, o viver só requer imensa sensi­
bilidade e inteligência. Sensibilidade... ser sensível é ser
inteligente; nesse estado há clareza. “E não é possível”, indaga
o interrogante, “viver neste mundo com pessoas, no escritório
etc., nesse “estado de só”, nessa claridade?” — Certamente
que ê possível. M as. . . desejais que se vos d ê tudo; tomar
uma pílula e tudo ficar resolvido. Tão acostumados estamos
a que nos digam o que devemos fazer, que endeusamos a auto­
ridade e perdemos, de todo, a capacidade e a intenção de des­
cobrir as coisas por nós mesmos. Em nossas palestras, aqui,
não há instrutor, não há método, não há prática: só há percep­
ção do que é. Quando há essa percepção, o problema está
resolvido.
I nterrogante : Que significação têm, para o viver, a fé e a
esperança?
K rish n a m u r ti : Espero não me considereis rude, se respondo
que não têm significação nenhuma. Já tivemos a esperança;
já tivemos a fé — fé na igreja, fé na política, fé nos guias e
líderes, fé nos gurus — porque desejávamos alcançar um estado
de bem-aventurança, de felicidade etc. E a esperança sempre
nutriu essa fé. E , se observamos a História, a nossa vida,
vemos que aquela esperança e aquela fé nada significam, pois
o importante é aquilo que somos, o que realmente somos, e
não o que pensam os ser ou pensamos que deveríam os ser:
aquilo que realmente é. Se soubermos olhar o que ê, isso
operará uma extraordinária transformação.
I nterrogante : Se ocasionalmente temos a possibilidade de
ter clareza, mesmo vivendo em família, como fazer nossos
filhos viverem em harmonia? Deve haver alguma ma­
neira de ajudar os jovens a viver em paz; o mesmo em
relação às nações.
K r ish n a m u r ti : Pergunta o interrogante: “ Como educar nos­
sos filhos?”. O educador tem de ser educado antes. A edu­
cação atribui desmedida importância à tecnologia, à aquisição
de saber, desprezando o campo total da vida. Dêle cultiva uma
parte insignificante, desprezando todo o campo do amor, do
pensamento, da morte, da ansiedade. É isso que se chama “edu­
cação” . Mas, é possível educar de maneira diferente, levando-se
cm conta todo o campo da vida? Só é possível quando o
educador sente também interêsse nisso. Um tal educador
é uma entidade rara, na família ou na escola.

6 de novembro de 1966.

137
OJAI — V

MEDITAÇÃO

U m dos maiores problemas de nossa vida é êste, que, sa­


bendo-se que nossa mente está sujeita a deteriorar-se, a declinar
com a idade, ou mesmo na juventude; que, com nossos conhe­
cimentos especializados, ignoramos todo o resto do imenso e
complexo campo da vida — um dos maiores problemas, dizia
eu, é descobrir se há possibilidade de sustar essa deterioração,
para que a mente seja sempre nova, juvenil, lúcida, decidida.
É possível deter esse declínio?
Desejo nesta tarde, se me permitis, examinar êste ponto.
Porque, para mim, a meditação é o ato de libertar a mente
do conhecido; e, para investigar esta questão realmente impor­
tantíssima, devemos, assim me parece, conhecer ou perceber
todo o mecanismo da formação da imagem que cada um tem
de si ou de outro; não só perceber o mecanismo criador dessas
imagens, mas perceber também a maneira como estamos sem­
pre acrescentando tais imagens. Pois essas imagens gradual­
mente se cristalizam, se solidificam, ao passo que o todo da
vida é um movimento constante, um constante fluir. Essa
cristalização, êsse processo de solidificação da imagem, é o fator
central da deterioração.
À medida que nos tornamos mais velhos, percebemos que
estamos levando uma enorme carga de experiências, de ressen­
timentos, tensões, conflito, desespêro, e que nossa vida é toda
um “processo” de competição. Êsses fatores e outros acarre­
tam a insensibilidade das células cerebrais. Isso cada um pode

138
perceber, à medida que se vai tornando mais velho. E perce­
bemos também, quando ainda bem moços, que a mente, edu­
cada para uma dada especialidade, na qual se concentra inteira­
mente, evitando tôda a amplidão da vida, torna as células
cerebrais estreitas, diminutas. Ignorar o movimento total da
vida — é nisso que consiste a moderna educação, a moderna
maneira de viver. Não só os jovens, mas também os de maior
idade, podem perceber isto: que a penetração, a clareza, a
precisão, a capacidade de pensar impessoal mente, de olhar a vida
não unicamente de um certo centro — declinam. Não importa
se êsse centro é nobre ou ignóbil; é um centro que cada um
estabeleceu para si próprio e do qual decorre, gradualmente, a
cristalização de tôdas as células cerebrais. Declina todo o pro­
cesso mental, e a pessoa já está então madura para o túmulo.
Apresenta-se, assim, a questão: Há alguma possibilidade
de deter êsse processo de declínio do cérebro e da mente, do
todo, da entidade total? E , ainda, é possível manter a psique
e o corpo sumamente ativos, alertados, enérgicos etc.? Esta
me parece uma questão muito importante, um desafio ao des­
cobrimento.
Pois bem; o exame não só verbal, mas também não verbal,
desta matéria, é meditação. Esta é uma palavra de que se tem
usado e abusado. Há inúmeros métodos de meditação, princi­
palmente importados da Ásia: a meditação segundo o Zen,
segundo o Hinduísmo, e outras dúzias de variedades de medi­
tação. Se compreendermos qualquer uma delas, compreende­
remos a totalidade dos sistemas e modos de meditação. Mas
o ponto central que vamos considerar, em conjunto, é se a
mente pode rejuvenescer, tornar-se vigorosa, nova, destemerosa.
Se dizemos que não pode, estamos então, em verdade, barrando
o caminho a nós mesmos. Todo exame cessa quando o decla­
ramos impossível — e também quando dizemos que ê possível.
Tanto a asserção de que não é possível, como o dizer-se “Isso
é bem possível” — tanto uma como a outra me parecem
descabidas, verdadeiras barreiras a todo e qualquer exame.
Entretanto, permanece de pé o fato de que, à medida que
envelhecemos, nossa mente declina. Declina porque o pro­
cesso de pensar, a estrutura do cérebro, todo o “processo” que
constitui a mente, é, em sua totalidade, um fator de conflito,
de luta e constante tensão, e de autocontradição.

139
Deixai-me agora assinalar a conveniência de verificarmos
como estamos ouvindo o que se está dizendo, pois não estamos
aqui interessados em idéias. Podemos seguir pela vida munidos
de inumeráveis idéias e sempre a acrescentá-las, escrevendo a
seu respeito, lendo a respeito delas. Têm-se escrito montes de
volumes acêrca do pensamento, de seu processo etc. etc., e
os psicólogos estão constantemente a fornecer-nos teorias, da­
dos estatísticos etc. Viemos aqui para ouvir uma série de
palavras, frases ou idéias? Ou estamos escutando, observando
o verdadeiro estado de nossa mente? Considero isso muito
importante, tanto mais porque se trata de algo que transcende
tôda argumentação, tôdas as opiniões, inclinações ou pontos
de vista pessoais. O fato é a deterioração; e considerar essa
deterioração, procurando interpretá-la, transcendê-la, segundo
nossas inclinações pessoais, nosso temperamento etc., é uma
maneira muito superficial de agir. Mas, se observamos êsse
fato assim como observamos uma árvore, o pôr do Sol, a luz
refletida n’água, os contornos das montanhas distantes, se obser­
vamos simplesmente o processo que realmente se está verifi­
cando em cada um de nós, podemos então continuar juntos a
viagem. Se isso não vos fôr possível, encontrareis buracos no
caminho e não poderemos prosseguir juntos.
Tudo isso exige uma atenção constante, não de dois ou
três minutos, porém em todo o decorrer desta hora. Se puder­
mos manter-nos vigilantes e atentos não só ao que se está
dizendo, mas também relacionando-o com nossas atividades
interiores, êsse escutar tem então um efeito extraordinário.
Mas, se ficardes meramente a ouvir idéias ou palavras, vos
limitareis então a guardar tal ou tal idéia, a aceitar tal ou tal
opinião. Não nos interessam opiniões. Elas só podem servir
para dissertações dialéticas. E nós estamos tratando de coisa
inteiramente diferente. Estamos interessados no processo total
do viver; êsse processo, como se pode observar, está sempre a
criar imagens a respeito de nós mesmos e de outros — ima­
gens que se formam através da experiência, através de con­
flito. A essa imagem ora se adiciona, ora se subtrai algo, mas
o fator central daquela energia criadora das imagens é cons­
tante. Temos alguma possibilidade de superá-lo? Estamos
cônscios da existência, dentro em cada um de nós, de uma
imagem de nós mesmos, consciente ou inconsciente? Quer

140
dizer, uma pessoa pode ter de si a imagem de uma entidade
superior ou de um ente sem capacidade, ou de uma entidade
agressiva, orgulhosa — enfim, tôdas as nuanças e sutilezas de
que pode constituir-se tal imagem. Sem dúvida nenhuma, cada
um possui essa imagem de si próprio. Temo-la mesmo em
plena juventude (pois a idade nada tem que ver com isso) e,
com o passar dos anos, ela se vai consolidando e cristalizando
cada vez mais. . . até não haver mais remédio.
Estamos cônscios dessa imagem? Se estamos, quem é a
entidade que se torna cônscia da imagem? Compreendeis?
A imagem é diferente de seu criador? Porque, a menos que
êsse fato seja bem compreendido, não ficará claro o que a
seguir vamos dizer.
Entendeis? Posso ver que tenho uma imagem de mim
mesmo: sou isto e sou aquilo; um grande homem ou um
homem insignificante; meu nome é conhecido ou desconhecido,
enfim tôda a estrutura verbal e não verbal que se ergue em
tôrno de mim, consciente ou inconscientemente. Percebo que
essa imagem existe, se presto atenção, se me ponho vigilante.
E o observador que a percebe sente-se diferente dela. Não é
isso o que está ocorrendo? Espero estar-me explicando clara­
mente. E o observador começa então a dizer, de si para si,
que a imagem é o fator responsável pela deterioração e que,
portanto, terá de destruí-la, a fim de alcançar um resultado supe­
rior — rejuvenescer a mente etc. — Compreendendo que essa
imagem é o fator central da deterioração, faz um grande esforço
para libertar-se dela. Estais-me acompanhando? Êle (o obser­
vador) luta, explica, justifica, acrescenta; esforça-se para trans­
formá-la numa imagem melhor; transfere-a para uma dimensão
diferente, uma diferente parte do campo a que chama “vida”.
O observador, pois, ou se empenha em destruir a imagem, ou
em acrescentá-la, ou ultrapassá-la. É o que estamos fazendo
a tôdas as horas. E nunca nos detemos para investigar se o
observador não é o criador da imagem e, por conseguinte, êle
próprio a imagem. Assim, uma vez compreendido — não ver­
bal porém realmente — êsse fato, isto é, que o observador é o
criador da imagem e, com sua ação, não só destrói a imagem
que então tem de si próprio, mas também cria outra imagem
e continua a criar imagens, indefinidamente, lutando, esforçan­
do-se, controlando, alterando, ajustando; uma vez claramente

141
compreendido que o observador é a coisa observada, cessam
todos os esforços para alterar ou transcender a imagem.
Esta questão exige muita penetração e atenção; não se
trata apenas de aceitardes uma explicação, porquando a expli­
cação, a palavra, não é o fato. E essa compreensão, compreen­
são do fator central, elimina todo o esforço. Muito importa
perceber isso. O esforço, a luta, em diferentes sentidos, física
ou psicologicamente, na forma de competição, ambição, agres­
são, violência, orgulho, ressentimentos acumulados etc., é um
dos fatores da deterioração. Assim, ao perceber-se que o obser­
vador é o criador de imagens, todo o nosso processo de pensar
passa por uma enorme mudança. E, portanto, a imagem é o
conhecido, não? Podeis não estar cônscios dela; podeis não
estar cônscios de seu conteúdo, de sua forma, de suas peculiares
nuanças, sutilezas — mas essa imagem, quer dela estejamos
cônscios, quer não, se encontra no campo do conhecido.
Talvez possamos posteriormente examinar e resolver esta
questão. Por enquanto, continuaremos com o que estávamos
dizendo. Enquanto a mente, em seu todo — ou seja, a mente,
o cérebro e o corpo — estiver funcionando no campo da ima­
gem, que é o conhecido — do qual podemos estar cônscios ou
não — nesse campo estará sempre o fator da deterioração.
Não deveis aceitar isso como uma idéia a cujo respeito ireis
refletir calmamente em casa (o que, de qualquer maneira, não
ides fazer). Aqui estamos trabalhando juntos, examinando
juntos a matéria. Portanto, tratai de compreendê-la agora, e
não depois de voltardes para casa. “Tomei notas”, dizeis, “e
compreendi o que se disse; agora vou refletir” . Por favor,
não tomeis notas, porque isso é de todo inútil.
O problema é se a mente — que é resultado do tempo,
psicológico e cronológico, resultado de milhares de experiên­
cias, de inúmeras tensões e pressões, do conhecimento técnico,
da esperança, do desespêro, de tudo por que passa o ente
humano, das inúmeras formas de mêdo — o problema é se a
mente funciona sempre dentro dêsse campo, dêsse campo do
conhecido. Emprego a palavra “conhecido” compreendendo,
inclusivamente, o que pode existir dentro daquele campo e que
ainda não observastes; isso também é o conhecido. É êsse o
campo em que a mente funciona: sempre o campo do conhe­
cido. O conhecido é a imagem criada pelo intelecto ou por

142
pensamentos sentimentais, emocionais, românticos — pensamen­
tos de tôda espécie. Enquanto suas atividades, seus pensa­
mentos, seus movimentos estiverem confinados no campo do
conhecido (onde se processa a criação das imagens), é inevi­
tável a deterioração, não importa o que se faça. Temos, assim,
a questão: É possível esvaziar a mente do conhecido? Enten­
deis? Está claro isto? — Não importa!
Essa pergunta — se é possível livrar-nos do conhecido —
já deve ter sido feita, vagamente ou com um propósito definido,
porque todos sofremos, temos ansiedades e vagos pressenti­
mentos dessa possibilidade. Estamos agora a fazê-la como uma
pergunta que tem de ser respondida, como um desafio a que
se tem de reagir — não um desafio exterior, porém um desafio
interior, psicológico. Vamos averiguar se há possibilidade de
esvaziar a mente do conhecido. Já expliquei o que entendo por
“conhecido”.
Agora, quanto ao processo de esvaziar a mente: Êsse
esvaziar da mente é meditação. Temos, pois, de examinar, de
explicar um pouco esta questão da meditação. Todos os asiá­
ticos são condicionados por essa palavra; as pessoas tidas por
religiosas, por sérias, estão condicionadas por essa palavra,
porque esperam, por meio da meditação, descobrir algo que
não ê, uma coisa fora da mera existência diária. E , para des­
cobrir isso, têm vários sistemas, altamente sutis, como por
exemplo o Zen, ou grosseiros: disciplina, coerção, flagelação;
ou ficar-se observando com uma atenção tremenda o dedão do
pé, os seus movimentos etc. etc. Também dêsse chamado sis­
tema de meditação faz parte a concentração, o fixar da mente
numa idéia ou num pensamento, num símbolo etc. Isso todo
escolar faz, ao ler um livro que o obrigam a ler. Não há muita
diferença entre o estudante, na escola, e aquêle pensador pro­
fundo que faz tremendos esforços para concentrar-se numa idéia
ou numa imagem e por êsse meio espera descobrir alguma
realidade.
Há, também, várias maneiras de o indivíduo estimular,
forçar, impulsionar a si próprio a alcançar um ponto de onde
-possa ter uma visão da vida completamente diferente; e isso
significa expandir a consciência mais e mais, por meio da von­
tade, do esforço, da concentração. Pelo expandir dessa cons­
ciência, espera-se chegar a um estado ou a uma dimensão dife-

143
rente, ou alcançar um ponto inacessível à mente consciente. Ou
tomam-se drogas de tôda espécie, inclusive a mais nova, L.S.D.
etc. etc. Esta constitui um poderoso estimulante de todo o
organismo físico. E tem assim a pessoa experiências extraordi­
nárias, a poder de estimulantes, de concentração, disciplinas,
rigorosos jejuns. Se ela jejua por alguns dias, vê coisas peculia­
res — verdadeiramente peculiares. E quando toma drogas,
estas tornam o corpo, momentaneamente, altamente sensível;
vêem-se côres fantásticas, dantes nunca vistas. Tudo se vê
com enorme clareza; não há espaço entre a pessoa e a coisa
que ela vê. E isso se faz, de maneiras diferentes, em todo o
mundo: repetição de palavras, como na Igreja Católica, rezas
que acalmam um pouco a mente, a tornam quieta; como se vê,
meros truques. Se a pessoa fica a repetir e a repetir oertas
palavras, é claro que a mente se embota e adormece; e pensa-se
que isso é uma mente muito tranqüila! (R isos) Por favor!
Há vários sistemas de quietar a mente — tanto na Ásia,
que inclui a índia, como na Europa. A pessoa submete-se a
extraordinárias torturas, para quietar a mente. Entretanto,
a mente pode ser quietada de maneira muito simples, tomando-
-se um tranqüilizante, uma pílula que torna a pessoa aparen­
temente muito desperta, porém calma. Mas, isso não é medi­
tação. Pode ser varrido para o lado, ainda que tenhamos feito
votos a êsse respeito; e espero que, enquanto aqui estais a
ouvir-me, jogueis tudo isso fora, porque vamos tratar de uma
coisa muito mais profunda do que essas invenções de indivíduos
muito inteligentes que tiveram certas experiências peculiares
etc. etc. Já tendo examinado essas coisas, não detalhada porém
suficientemente, podemos, com efeito, pô-las tôdas à margem.
Porque, quanto mais se pratica uma disciplina, tanto mais
embotada e mecânica a mente se torna; e essa mecanização, essa
rotina, tornam a mente um tanto quieta, mas nessa quietude
não há forte energia e compreensão.
Tendo afastado essas coisas infantis e totalmente absurdas
— ainda que produzam extraordinários resultados — podemos
passar a investigar se há alguma possibilidade de libertar a
mente do conhecido — não só do conhecido de milhares de
anos, mas também do de ontem, vale dizer, libertar a mente
da memória. Mas, isso não significa esquecer-nos do caminho
de nossa casa ou da tecnologia. Isso evidentemente temos de

144
conservar. São coisas essenciais ao viver. Mas, estamo-nos
referindo a algo existente num nível muito mais profundo;
nesse nível, a imagem, que é o conhecido, está sempre a atuar,
a funcionar. Queremos saber se é possível libertar a mente
dessa imagem e de seu criador, o observador. E êsse “ esvaziar”
do conhecido é meditação. Vamos examinar isso um pouco
mais. Não sei se tendes a energia ou capacidade de atenção
necessárias a esta penetração.
Pode-se ver muito claramente que só há compreensão, ação,
quando a mente está totalmente quieta. Isto é, digo que
compreendo ou que vejo uma coisa com muita clareza quando
a mente está de todo silenciosa. Dizeis-me algo que me agrada
ou desagrada. Se me agrada, presto alguma atenção; se não,
nenhuma atenção lhe dou. Ou eu ouço o que estais dizendo
e traduzo-o de acordo com minha idiossincrasia, minha incli­
nação, justificando etc. etc. Não o escuto, absolutamente. Ou
me oponho ao que dizeis, porque tenho uma certa imagem de
mim mesmo, e essa imagem reage. Espero me estejais acom­
panhando.
Dessarte, eu não ouço nem escuto. Oponho objeções;
discordo; torno-me agressivo. Mas tudo isso, evidentemente,
me impede de compreender. Eu desejo compreender-vos. En­
tretanto, só posso compreender-vos se nenhuma imagem tenho
de vós. E , se me sois completamente desconhecido, um estra­
nho, nenhum interesse tenho no que dizeis; não desejo, sequer,
compreender-vos, porquanto estais completamente fora da órbita
de minha imagem: não estou em relação convosco. Mas, se
sois um amigo, um parente, meu marido, minha mulher etc.,
tenho a respectiva imagem; e a imagem que de mim tendes
e a que tenho de vós — essas imagens estão em relação entre
si. Todas as nossas relações se baseiam nisso. Vê-se muito
claramente que é só quando a imagem não interfere — imagem
na forma de conhecimento, pensamento, emoção etc. — que
posso olhar, que posso ouvir, que posso compreender. Isso
ocorre com todos nós. Quando, após discutir, argumentar,
demonstrar etc., a vossa mente se torna de súbito quieta e
percebeis o fato, dizeis: “Agora sim, compreendi!” — Essa
compreensão é ação, e não idéia.
Há, pois, compreensão, e uma ação de significado dife­
rente daquela que conheceis, ou seja a ação da imagem, do

145
conhecido. Estamos falando de uma compreensão que é ação
e que só se verifica quando a mente está de todo quieta. Só
há compreensão e ação quando a mente está totalmente quieta;
e essa mente quieta, tranquila, não resulta de nenhuma espécie
de disciplina ou esfôrço. Òbviamente, se há esforço, trata-se do
esforço que a imagem faz para transcender a si própria e criai
outra imagem. Sabeis de quantos artifícios ela se serve. Vê-se
que só há compreensão e ação quando a mente está quieta; e
essa quietação não é provocada, nem “projetada”, nem criada
mediante cuidadosa e solerte reflexão. E a meditação — que
se pode praticar sentado num ônibus, andando na rua, lavando
pratos ou noutra ocupação qualquer — a meditação nada tem
que ver com a maneira de respirar, nem com as posturas do
corpo. Isso já pusemos à margem há muito tempo — tôdas
essas infantilidades.
Quando o observador é a imagem e, por conseguinte,
nenhum esfôrço se faz para alterar ou aceitar a imagem, e só
existe o fato — o qu e é — , então a observação dêsse fato
opera a radical transformação do próprio fato. Isso só pode
verificar-se quando o observador é a coisa observada. Não há
nada de misterioso nisso. O mistério da vida está acima de
tudo isso — da imagem, do esfôrço, da atividade centralizada,
egocêntrica, subjetiva. Existe um imenso campo e, nêle, uma
certa coisa que jamais pode ser encontrada através do conhe­
cido. E o “ esvaziar” da mente só pode verificar-se não ver­
balmente, quando não há observador nem coisa observada.
Tudo isso exige intensa atenção e percebimento, que não é
concentração.
Concentração é esfôrço: focar a mente numa determinada
página, idéia, imagem, símbolo etc. Concentração é processo
de exclusão. Dizeis ao aluno: “Não olhes pela janela; presta
atenção ao livro!” — Êle deseja olhar para fora, mas força-se
a olhar para a página; e, assim, há conflito. Êsse constante
esfôrço para concentrar-se é um processo de exclusão, o qual
nada tem em comum com o percebimento. Há percebimento
quando a pessoa observa (e isso qualquer um pode fazer)
não só as coisas exteriores, a árvore, o que dizem os outros,
o que ela própria pensa etc., mas também quando observa
interiormente, sem escolha. Quando observa simplesmente, sem
escolha alguma. Porque a pessoa só escolhe quando há con­
fusão, e não quando há clareza.

146
Só há percebimento quando não há escolha; ou ao estar­
mos cônscios de tôdas as escolhas e desejos contraditórios e da
tensão respectiva: no observarmos todos os movimentos da
contradição. Quando se sabe que o observador é a coisa
observada, não há nesse processo escolha alguma, porém, tão-só,
observação do que é, e isso difere inteiramente da concentra­
ção. Êsse percebimento produz uma atenção de tal qualidade
que não há observador nem coisa observada. Quando realmente
prestais atenção (se já fizestes tal coisa — nós todos a fazemos,
às vezes), quando sois todo atenção, como neste momento (se
efetivamente estais escu tan do), não há então ouvinte nem
orador. Nesse estado de atenção há silêncio. Produz essa aten­
ção um extraordinário estado de renovação, de juvenilidade
(não digo “juventude” (Q , palavra de que aqui na América se
faz uso excessivo), estado em que a mente se torna vigorosa,
completamente nova. Êsse “esvaziar” da mente de tôdas as
experiências que teve é meditação. Embora tenhamos tido
inumeráveis experiências — e nós somos o resultado de milhões
de experiências — só nos podemos livrar de tôdas elas quando
nos tornamos cônscios de cada experiência nova e percebemos,
sem escolha, todo o seu conteúdo. Assim, a experiência passa
sem deixar nenhuma cicatriz, nenhum vestígio para ser lem­
brado, reconhecido, conservado.
A meditação é um processo que exige muita energia; não
é uma simples ocupação para gente velha, que nada tem que
fazer. Requer intensa e continuada atenção. Achareis então,
por vós mesmos. . . não, não achareis nada: não se está pro­
curando nenhuma experiência, não há nada para achar. Quando
a mente está totalmente quieta, não por efeito de qualquer
espécie de sugestão, de hipnotismo ou de qualquer método —
nessa total quietação há um estado, uma dimensão diferente,
que o pensamento jamais tem possibilidade de imaginar ou de
experimentar. Ela se encontra então acima de tôda busca. Já
não há buscar. A mente tôda iluminada não busca. Só aquela
que está na obscuridade, confusa, busca permanentemente e
espera achar alguma coisa. E o que acha é sempre o resultado
de sua confusão.
Valerá a pena debatermos sôbre estas coisas?

(1) Youth: juventude. (N. do T.)


*
147
Au d itó rio : Sim, sim.
K rish n a m u r ti : Ótimo! Começai, então.
I nterrogante : A deterioração não tem dois fatores: não só
o fator formador de imagens, mas também a maneira
errônea de viver, alimentação imprópria etc.?
K r ish n a m u r ti : Tem, decerto. Tudo isso requer o mais alto
grau de sensibilidade, tanto do corpo como da mente — que
não existem separados um do outro. H á uma qualidade de
separação que só pode ser compreendida ao examinarmos pro­
fundamente a questão do “observador e coisa observada”.
Evidentemente, muito importa a maneira como a pessoa vive,
o que pensa, suas atividades diárias, suas iras etc.
I nterrogante : Krishnaji, a imagem, como dizeis, é o conhe­
cido. Não conviria examinarmos agora a “não imagem”,
ou seja, o “desconhecido” ou “inconsciente” ?
K r ish n a m u r ti : Outro dia dissemos que, na realidade, não
existe êsse estado chamado “inconsciente” . Sinto muito! (ri­
sos) Isto é, nós temos sonhos e nunca indagamos por que os
temos. Sonha-se quando se comeu demais etc. — como é
natural. Mas, quanto estardalhaço se faz em torno daqueles
sonhos que requerem interpretação! Por que sonhais? É possí­
vel não sonharmos, para despertarmos com uma mente fresca,
clara, “inocente” ? Sonhamos porque durante o dia não obser­
vamos com atenção o que falamos, o que pensamos, o que
sentimos, o que dissemos uns aos outros. Não observamos a
beleza do céu, das árvores. Por conseguinte, todo êsse campo
que não foi examinado, observado, olhado, “projeta”, natu­
ralmente, naquele estado em que a mente está semi-adormecida,
uma imagem, uma idéia, uma cena; e isso constitui o sonho,
que tem de ser interpretado etc. etc.
Estando a pessoa vigilante, observando as coisas sem
escolha, olhando sem interpretar, descobrirá por si própria que
não tem sonhos, absolutamente, pois tudo foi compreendido
no correr do dia.
Um momento! Ainda não terminei, minha senhora. Vêde,
por favor, que se compreendemos uma pergunta, tôdas as per­
guntas são compreendidas. A pergunta que nos foi feita, e que
estamos considerando, é se a mente consciente pode examinar
o inconsciente, penetrar o que está oculto. Isso, evidentemente,

148
cia pode fazer: perceber os motivos, as reações que ocorrem
nas relações etc. Mas, êsse processo consiste apenas em exa­
minar uma parte do campo, um canto denominado “inconscien­
te”. Tal exame pode ser feito, com tôda a calma, sem análise
de espécie alguma, mediante a simples observação do campo
inteiro. E o cam po inteiro é o consciente, que é limitado
porque nêle existe sempre o centro, o observador, o censor, o
pensador. Mas, só se pode observar o campo inteiro, consti­
tuído do chamado inconsciente e do consciente, quando não
há observador nenhum, quando nenhum esforço se faz para
alterar o que é, quando se está totalmente atento à totalidade
do campo. Descobrireis, então, por vós mesmo, que tal coisa,
o inconsciente, não existe e, portanto, não há nada para exa­
minar. Êle está à frente de nossos olhos. Mas, não sabemos
nem queremos olhá-lo. E, quando o olhamos, logo queremos
modificá-lo a nosso gôsto, conforme nossas idiossincrasias, in­
clinações — tornando-o, assim, uma coisa por demais pessoal.
E é justamente isso o que interessa à maioria de nós: “ser
pessoal” (to b e person al).
I nterrogante : Qual o estado da mente tranqüila que faz des­
cobrimentos? Devem êsses descobrimentos ser considera­
dos de maneira diferente do resto do campo?
K r ish n a m u r t i : Claro que não, meu senhor. A mente tran­
qüila, a mente silenciosa, jamais experimenta. Só o observador
tem experiências, e por essa razão não é uma mente tranqüila.
I nterrogante : Ver o falso como falso, perceber que êle não
é verdadeiro, é muito difícil?
K r ish n a m u r t i : Sim, senhor. Enquanto tivermos conceitos,
jamais veremos o verdadeiro.
I nterrogan te : Minha maior dificuldade é não poder “estar
cônscio” por um longo período de tempo. Em alguns
minutos, mesmo alguns segundos, ferro no sono. Isso
vem acontecendo há anos.
K r ish n a m u r t i : Estar atento no momento do percebimento,
no momento de “estar cônscio”, é suficiente. Mas, se se diz:
“Preciso prolongar êsse estado, mantê-lo em movimento” —
aí é que começa a dificuldade. Porque então o queremos como
um prazer. Atrás dessa pergunta se esconde o desejo de ter
uma coisa permanente: percebimento permanente, um perma-

149
nente estado de atenção. O importante é “estar cônscio” e,
nesse momento, estar completamente atento. Êsse momento
pode durar apenas um segundo; durante êste segundo estais
totalm ente atento, e podeis estar desatento no segundo seguinte.
Mas, deveis também saber que estais desatento. Não digais: “A
desatenção deve ser mudada em atenção” — pois dêsse modo
se provoca o conflito, e nesse conflito está acabado o percebi-
mento e a atenção.
I nterrogante : Senhor, se não existe “mente inconsciente” ,
como explicar fenômenos tais como a sugestão pós-hip-
nótica?
K r ish n a m u r ti : A o dizer-vos que não há “inconsciente” , eu
também dissera: “Não aceiteis o que se está dizendo; exami­
nai-o, sem aceitar nem rejeitar”. A questão que aventais, se­
nhor, sôbre o que acontece após o estado de hipnose, mediante
sugestão hipnótica, é perfeitamente explicável, pois está tôda
dentro do campo do conhecido, do consciente.
O que importa compreender, quando se fazem perguntas
e se obtêm respostas e explicações, o que importa compreender
é que a explicação não tem o mínimo valor. O que tem valor é
como se faz a pergunta e o que se está esperando dessa per­
gunta. Se estais atento àquilo que estais perguntando, vereis
que a pergunta é respondida sem dificuldade nenhuma. Por
conseguinte, não há para vós nenhum instrutor. Vós mesmos
sois tudo: instrutor, discípulo, tudo. Isso vos dá uma extraor­
dinária liberdade para investigar

12 de novembro de 1966.

150
OJAI — VI

A BUSCA REAL

E sta é a últim a palestra . Que linda manhã! As monta­


nhas banhadas de sol, o capim nôvo a despontar, a beleza da
paisagem! Todo êste esplendor de côres e de luz desperta-nos
uma grande alegria, um sentimento de liberdade e, muito natu­
ralmente, somos levados a perguntar: Que é a Beleza? É ela
produto de algum estímulo, da apreciação de um objeto, do
movimento da luz entre as folhas? Depende de nossa disposi­
ção do momento, de nossa educação, de nosso estado de
espírito?
É a beleza despertada por um objeto, ou é algo inteira­
mente diferente? Existe um estado de espírito que desperta
para a beleza sem a interferência de nenhum objeto; que não
consiste na apreciação de uma coisa feita pelo homem ou pela
natureza — existe beleza sem objeto? Existe um sentimento
da beleza não meramente físico, porém muito mais profundo,
psicológico, íntimo? Excetuando-se estas montanhas, esta luz,
esta claridade que se encontra principalmente na Califórnia —
existe uma beleza superior a tudo isso? Essa beleza só pode
ser sentida quando a mente está tôda em repouso, quieta, livre
de perturbações; não é provocada ou criada pelas circunstâncias,
pelo ambiente social e a educação. E — é pessoal essa beleza?
A beleza não é uma coisa que vem quando há liberdade, liber­
dade total? Sem a liberdade, evidentemente, não pode haver
paz. A paz não é uma coisa que se pode comprar, ou um estado
entre dois conflitos, exteriores ou interiores; ela vem quando
a mente já não se vê atormentada nem coagida por êste ou
aquêle impulso; já não se acha empenhada em sua atividade
egocêntrica. Há então aquela liberdade — uma liberdade que
não é facilmente alcançável. Se não existe essa liberdade, o
que há é uma busca perene, um indagar, um acumular de infor­
mações, conhecimentos e experiências, um interminável amon­
toar de lembranças. Essa busca a que nos entregamos • —
busca da verdade, busca do amor, busca de companhia, busca
da felicidade — só existe quando a mente, por causa de sua
imensa insatisfação, aspira à satisfação.
Como temos dito durante estas palestras, tende a bondade
de não ouvir só palavras (não me leveis isso a m al), tende a
bondade de não ouvir meramente palavras, ou frases, ou sutis
raciocínios, porém escutar com o fim de descobrirdes, por vós
mesmos, um estado em que a mente não mais seja impelida
a buscar, a correr no encalço de alguma coisa. A menos que
se descubra isso, um estado em que não haja mais busca, porém
intensa atividade, intensa vigilância, intensa penetração e cla­
reza; a menos que seja descoberto êsse estado, continuaremos
não só mergulhados em profundo descontentamento, mas tam­
bém nesse perene estado de busca que nos sujeita ao tempo.
Em geral, em todo o mundo, vive-se muito perturbado e des­
contente. No Oriente, êsse estado assume uma forma: em
primeiro lugar, comida, roupa e morada — pois lá existe imensa
pobreza e excesso de população. No Ocidente, toma a forma de
se viver, do ventre materno ao túmulo, bem alimentado, em se­
gurança, com muito conforto, lazeres, prosperidade; e de se viver
insatisfeito, a desejar mais prosperidade, mais coisas, mais livros,
mais divertimento. Mas, há um descontentamento mais pro­
fundo, que se não satisfaz com aquisições externas: busca-se
então, ardorosamente, a aquisição interior; a mente exige a
satisfação completa, quer sair de seu infinito descontentamento.
Buscamos algo de duradouro, de satisfatório, a que damos dife­
rentes nomes: Deus, verdade, bem-aventurança, felicidade. As
coisas que inventamos, os símbolos que temos, os quadros,
as pinturas, a música, os museus, as incontáveis formas de
expressão que consideramos satisfatórias — sexual, psicológica,
intelectual — eis o que anda a buscar a maioria de nós.
O homem está sempre a buscar, e essa busca, motivada pelo
seu profundo descontentamento interior, pela sua insatisfação,
frustração, desespêro, produz o seu peculiar resultado. Busca­
mos e achamos alguma coisa — num grupo, numa comunida­

152
de, no trabalho pelo bem-estar social, na política, ou em inume­
ráveis seitas religiosas: religião católica, protestante, e não sei
quantas outras existem nesta pequena povoação. A Terra está
fragmentada, não só geograficamente, nacionalmente, mas tam­
bém em nome de Deus, em nome da paz, em nome do amor,
pelas várias religiões e seitas, que, com seus “direitos adqui­
ridos”, exploram os entes humanos. São poucos os que encon­
tram satisfação nas criações humanas: no ler livros, no fre-
qüentar concertos, um após outro, no falar interminàvelmente
a respeito dessas coisas, no comparar, para ver quem é o me­
lhor músico, o melhor pintor etc. etc.
Além de tôdas essas atividades intelectuais, literárias,
artísticas, ou do mourejar num escritório durante mais de
trinta ou quarenta anos, todos desejam descobrir algo que seja
perfeitamente satisfatório, deleitável. E isso as religiões de
todo o mundo têm oferecido. Têm oferecido deuses, crenças,
rituais, coisas em que se encontra muito prazer e satisfação. E,
encontrando essa satisfação, aí nos deixamos ficar e não dese­
jamos ser perturbados, não desejamos ver abaladas as nossas
crenças. Construímos uma morada que esperamos seja perma­
nente, duradoura, e tememos tôda tempestade, todo movi­
mento da vida que possa trazer perturbações, destruição, revo­
lução. A isso chamamos buscar a Realidade, Deus, a Felici­
dade etc.
Em primeiro lugar, devemos compreender êsse desconten­
tamento. Há o natural descontentamento que uma pessoa sente
por não possuir um carro melhor, uma casa melhor etc. Não
consideraremos êste ponto. Vamos investigar esta questão do
ponto de vista psicológico, muito mais importante, muito mais
real e profundo. Por que nos achamos psicologicamente descon­
tentes? Pois, se não compreendermos êsse descontentamento
e lhe pusermos fim ou lhe infundirmos tanta vitalidade que
nada possa satisfazê-lo e êle se converta numa chama a arder
sem “motivo” nem finalidade, numa chama viva — se não o
compreendermos, nossa busca nenhuma significação terá. E a
maioria de nós, presumo, veio ter aqui, ou freqüenta a igreja,
ou pratica alguma coisa, porque nossa vida é tôda de monotonia
e solidão, inteiramente sem significação e por isso, desejamos
descobrir uma certa coisa que nos faculte profunda satisfação
e contentamento.

153
É realmente importante, a meu ver, descobrirmos por que
buscamos, o que estamos buscando, e de que profundeza de
nosso ser provém essa busca. Antes de tudo o mais, o buscar
é uma coisa fundamentalmente falsa. É muito simples o res­
pectivo processo psicológico: busco, porque me vejo insatis­
feito; estou confuso e, por causa de minha confusão, de minha
aflição, minha interminável agonia, estou sempre a buscar, a
buscar. O que estou buscando é, com efeito, uma coisa prede­
terminada, preestabelecida, uma coisa já achada, porquanto já
“projetei” aquilo que desejo e, por conseguinte, isso não é bus­
car, porém, na realidade, um movimento de fuga ao que é;
e êsse movimento visante a uma coisa já conhecida é o que
se chama “buscar”.
Prestai mais um pouco de atenção, por favor. Êsse movi­
mento que parte de o qu e é para o que deveria ser, êsse mo­
vimento de busca é essencialmente estático; portanto, não é
um movimento. Todavia, por êle nos vemos arrastados. Adoto
uma coisa, nela não encontro satisfação e ponho-a de parte;
passo de uma armadilha para outra, de um instrutor para outro,
de um livro, de um sistema, de uma filosofia, de um psicólogo,
de um analista, de um bispo para outro; a mudar e a mudar
sempre. Êsse movimento é o que chamamos “buscar” . Se
considerardes com tôda atenção êsse movimento, vereis que
não destes um passo à frente. Continuais no mesmo lugar de
antes, e nêle ficareis sempre, a enganar-vos, a hipnotizar-vos
com ,a idéia de que êsse movimento chamado “busca” dá-vos
uma certa vitalidade, para investigar, para mover-vos de o que
é para aquilo que desejais descobrir — já fixado. Não se trata,
pois, de nenhum movimento, porém de uma coisa estática.
Movimento é o qu e é; êste não precisais de buscar. Está claro?
Au ditó rio : Está.
K rish n a m u r ti : Muito bem. Tende a bondade de observar-
-vos. Minhas palavras são apenas um espelho de que podeis
servir-vos para ver o que realmente é, ver o que de fato se
está passando em vós mesmos. De contrário, o que ouvirdes
terá muito pouco valor, será uma mera idéia. Querereis então
interpretar essa idéia, perguntar como pô-la em ação. Já se a
pessoa descobre por si própria que o fato é o que é, e que
o movimento com que dêle nos afastamos e que chamamos
“buscar” é estático, sem vitalidade; se a pessoa se torna cônscia

154
de o qu e é, não há então busca nenhuma, porém um movimento
inteiramente diferente: o movimento de o que é. E tendes,
então, a energia necessária para olhar o que é.
Como disse, vendo-nos descontentes, insatisfeitos, desdi­
tosos, aflitos, profundamènte feridos, ansiosos, impelidos por
uma angústia profunda, pessoal — tudo isso é um fato: o
que é — vendo-nos descontentes com êsse fato, percorremos
todos êsses processos de experiência, de busca, de instrução,
de rejeição. Por que estamos descontentes, e com o quê?
Respondei para vós mesmos a esta pergunta. O orador vai
examiná-la, porém a vós é que cabe responder.
Estamos descontentes por causa da comparação; estamos
descontentes porque desejamos alterar o qu e é ; e estamos des­
contentes porque não sabemos o que fa2 er com o qu e é. E em
virtude dêsse descontentamento, criamos a idéia do que deveria
ser, o ideal, a Utopia, os deuses, o céu etc. etc. Nossa ação
está, pois, baseada numa idéia; e o aproximar-nos ou ajustar­
mos a essa idéia é ação, não é exato? Estou descontente com
o que ê e desejo ser uma coisa diferente do que ê. Essa coisa
diferente é uma idéia, racional ou irracional, pensamento orga­
nizado em idéia ou ideal. Tenho êsse ideal, e chamo “ ação”
o viver de acordo com êle. Dá-se o conflito entre o qu e é e o
que deveria ser-, nesse conflito fico envolvido. E , quanto maior a
tensão entre o qu e é e o que deveria ser, maior a neurose;
e, também, se tenho a necessária capacidade, tanto mais forte o
impulso a expressar verbalmente êsse conflito: no teatro, na
música, na arte, na literatura, de inúmeras maneiras. E , ainda,
o nosso descontentamento com o que é faz-nos inventar deuses,
que se tornam nossa religião. É dessa maneira que fugimos
ao que é. Mas — pode-se transformar radicalmente o que é?
Eis a busca real — e não aqueloutra, que não é busca nenhuma.
É possível operar uma radical transformação em o qu e e? Para
investigar esta questão de promover uma total revolução em
o que é, necessitamos de uma extraordinária capacidade de
percebimento. Já sabeis o que significa percebimento: estar
cônscio do céu azul, por entre as árvores, daqueles morros
distantes, do barulho daquele motor, das côres ali em frente;
estar simplesmente cônscio de tudo; cônscio sem escolha, de
tal maneira que se saiba perfeitamente que nada se pode alterar.
Não podeis alterar aquela montanha, a não ser com um trator;
não podeis alterar a beleza daquele céu. Entretanto, quando
estamos cônscios de o que é, desejamos alterá-lo, mantemo-nos
em incessante atividade em tôrno dêle. A í é que começa o
sofrimento. Ora, no findar do sofrimento está o começo da
sabedoria; e o fim do sofrimento é a compreensão de o que é.
Mas, a compreensão de o qu e é só vem quando o observamos,
dêle estamos cônscios e a mente é incapaz de desejar alterá-lo
(o que não significa estar satisfeita com o que é ) .
Dessa maneira libertastes a mente, ou ela própria se liber­
tou de seu perene buscar. Está acabada a busca. Um pêso
tremendo caiu das vossas costas. E , então, nessa liberdade,
estais aptos a olhar. Para olhar, necessitais de abundante energia,
a qual só vem com aquele percebimento em que não há nenhu­
ma espécie de conflito, porém, tão-só, observação. Só pode haver
conflito enquanto há “observador e coisa observada”, ou seja
o que é. O que ê é o observador.
Por favor, não vos limiteis a aprender frases; vêde o fato
real. Vereis, então, que, enquanto existe o observador, o centro,
o censor, o experimentador, a entidade que está sempre a
criar a separação entre o observador e a coisa observada —
não há liberdade.
Todo objeto, como, por exemplo, êste microfone, cria
espaço em tôrno de si e nesse espaço existe, não é verdade?
Não só os objetos exteriormente situados, mas também um
objeto interior — o EG O , o experimentador, o EU, o pensa­
dor — constitui um centro que cria um espaço na consciência.
Êsse espaço criado na consciência é sempre limitado, porque
lá está sempre o centro. Êsse espaço poderá expandir-se em
volta do centro, mas, por mais que se dilate, terá sempre um
limite, uma fronteira. Por conseguinte, psicologicamente, êsse
espaço é sempre limitado e, portanto, nêle, não existe liberdade.
O centro, o observador, é evidentemente memória, a memória
do que fo i — ontem ou há dez mil anos; é tradição, um estado
condicionado criado pelo tempo — cronológico e psicológico;
é todo o acervo de conhecimento, de experiência; é sempre o
passado e, por conseguinte, não é uma coisa viva, porém
a memória do que fo i — uma coisa morta. E quando cria o
seu espaço, êste há de ser sempre insignificante, desprezível.
E o centro, por mais que consiga expandir-se, por meio de
vários artifícios do pensamento, por meio da compulsão, das
drogas, estará sempre aprisionado no espaço por êle próprio
criado. Não há, pois, liberdade, e, por conseguinte, não há
paz. Pode-se ver, mediante atenta observação, que só há liber­
dade quando há espaço. Mas, psicologicamente, não há possi­
bilidade de tornar-se existente êsse espaço, enquanto houver
um observador. E, assim como necessitamos de espaço, necessi­
tamos da beleza — não da beleza criada pelo homem, pela
natureza, por meio de estímulo, ou pelo pensamento — e
necessitamos do amor. Carecendo dêsse espaço e dessa liber­
dade, está o homem perenemente a buscar, a indagar, a desejar,
a esperar, de modo que sua vida é tôda de sofrimento e de
aflição. Eis o fato, que podeis observar psicologicamente, ven­
do-vos num espelho um espelho psicológico. Se observardes
muito atentamente, vereis que é isso o que se está passando.
Sendo assim, perguntamos a nós mesmos: É possível aca­
bar com êsse centro? Não por meio do tempo, entendeis? Não
pelo livrar-nos dêle gradualmente, tirando-lhe pedacinho por
pedacinho até não restar mais nada; isso requer tempo. Quando
há tempo, não há espaço, pois o tempo se interpõe entre o
observador e a coisa que êle observa, criando um intervalo.
Êsse intervalo é sempre estático.
Mas (se não houver tempo) haverá possibilidade de pôr
fim ao que ê, pôr fim ao observador e, por conseguinte, de
olhar sem o intervalo de tempo? Compreendeis esta pergunta?
O tempo é o espaço existente entre o observador e aquela
árvore f 1). O observador é estático e a árvore é estática —
psicologicamente; e, para transpor a distância entre o obser­
vador e a árvore, necessita-se de tempo. Essa distância, criada
que foi pelo observador e o objeto observado, é sempre está­
tica, estacionária. Quando pensamos em servir-nos do tempo
para efetuar uma transformação no observador, estamo-nos dei­
xando aprisionar nesse estado estático. Descobrindo isso, per­
guntamos a nós mesmos se é possível alterar im ediatam ente o
que é. Não estamos empregando verbal ou intelectualmente
a palavra “compreender”, porém com o significado de perceber
realmente o que está ocorrendo, a cada passo que damos.
Pergunta-se, então: É possível pôr fim ao observador que
cria um espaço ao redor de si e da coisa observada, e (cria)

(1) Krishnamurti está falando ao ar livre. (N. do T.)

157
o movimento para aquele objeto? É possível alterar o obser­
vador, sublimá-lo? O que quer que êle seja, é uma coisa estática
e, portanto, inteiramente inútil. Como então promover uma
revolução em o que é? O centro é a violência, por exemplo
(não se trata realmente de um exemplo, porém de um fato).
O movimento para a “não violência” é um “movimento está­
tico”, quer dizer, não é movimento nenbum. Já expliquei isso
antes. A questão, pois, é esta: Pode-se pôr fim à violência,
não por meio do tempo, porém imediatamente? Porque, se
existir um observador, êste estará sempre a limitar o espaço e,
por conseguinte, não pode haver liberdade. Conseqüentemente,
enquanto existir o observador, tôda e qualquer tentativa de
transcendê-lo, ultrapassá-lo, é sempre um desperdício de ener­
gia. Por isso, perguntamos: É possível pôr fim ao observador
— não, ao que é? Quando não há mais observador, não há
mais o qu e é, pois é o observador que cria o que é. Por con­
seguinte, que possibilidade há de se pôr fim à violência, à
agressão, a todo o ódio, todo o ressentimento em nós guarda­
dos — que possibilidade há de pormos fim ao observador, de
modo que dele fiquemos total e completamente livres?
Provàvelmente, nunca fizemos esta pergunta. Conforma­
mo-nos com êle (o observador), com êle nos habituamos e
vamos seguindo nosso caminho. Mas, quando fazemos esta
pergunta, ou a fazemos superficialmente ou com a intenção de
descobrir e, portanto, com tôda a seriedade. E quando a per­
gunta é feita com seriedade, com verdadeiro interêsse, ficamos
então cônscios de todo o “processo” do observador; e isso
significa que estamos atentos, totalmente atentos; nessa atenção
nenhuma fronteira existe, criada pelo centro. Quando há aten­
ção completa, não há observador.
Ao olhardes para aquelas montanhas, atrás do orador,
vêdes como são azuis, vêdes contornos, linhas retas, o vale etc.
No olhardes uma coisa com tôda a atenção, existe algum obser­
vador? O observador só se torna existente quando, no ato de
olhardes, há desatenção, distração. Assim, só a atenção total
causa a cessação do observador. E quando se extingue o obser­
vador, extingue-se a coisa que êle criou — o que é; porque,
como dissemos, o observador é a coisa observada.
Pois bem; acabamos de eliminar todo o conflito da busca.
Eliminamos o conflito entre o qu e é e o que deveria ser. Puse­

158
mos à margem o observador e, por conseguinte, há atenção;
ainda que ela só dure um segundo, tanto basta. Não ansieis
por mais. Nessa avidez de mais, está criado o centro e, por
conseguinte, estais preso. Naquela atenção não há nenhuma
espécie de busca e, por conseguinte, nenhum conflito, de modo
que a mente se torna sobremaneira alertada, ativa, silenciosa.
Não é o silêncio criado pelo ajustamento, a repressão, o con­
trole. Êste não é silêncio, absolutamente. Não é um estado
resultante da absorção numa dada coisa, como a da criança
que se absorve num brinquedo. Só então pode a mente achar-se
no estado de “não experiência” . Importa compreender isso.
Todos nós dependemos da experiência; e experiência signi­
fica “passar por um certo estado” . Todos dependemos da expe­
riência para nos mantermos despertos, dependemos de um desa­
fio, uma pergunta, um impulso externo, uma influência. Como
é natural, momentaneamente, por alguns minutos, êsse desafio,
essa fôrça externa nos mantêm despertos; mas, depois, torna­
mos a dormir. Dependemos constantemente da experiência
para nos mantermos despertos. Ao percebermos êsse fato, re­
jeitamos todo estímulo exterior, tôda experiência, exterior ou
interior. Podemos então perguntar: Pode a mente manter-se
intensamente vigilante, desperta, independente da experiência?
Se ela é mantida desperta pela experiência, não fica desperta,
evidentemente. Se uma experiência me faz amar, não há então
amor. Por detrás há um “motivo” . A mente religiosa é aquela
que não busca, não exige experiências, não se entretém com
visões. Sua atividade é de todo diferente, numa dimensão dife­
rente, inacessível ao pensamento. O pensamento tem o lugar
que lhe compete, lugar muito insignificante. Mas, naquela di­
mensão diferente não há lugar para o pensamento (o que,
entretanto, não significa ficar vivendo de sentimentos e emo­
ções rasteiros, desprezíveis).
Pode-se, pois, funcionar normal e sãmente neste mundo,
com a mente não atravancada de pensamentos; e só essa mente,
a mente religiosa, conhecerá aquilo que transcende tudo o que o
homem possa imaginar e esperar.
I n terrogante : Falais freqüentemente da beleza natural. Po­
deis dizer alguma coisa sôbre a beleza nas relações hu­
manas?

159
K rish n a m u r ti : Que são relações? As relações existentes são
entre duas imagens (preciso apressar-me, para não entrar em
detalhes fastidiosos) — entre a imagem que tenho de vós e a
que tendes de mim. As imagens estão em relação. Vós me ofen­
destes, me feristes, me dominastes; me destes prazer, isto e
aquilo. Essa a imagem que tenho de vós, e vós tendes de mim
também uma imagem. Essas duas imagens estão constantemente
a encontrar-se; é isso o que chamamos “relações” . Nessas rela­
ções, é óbvio, não há beleza. Livrar-se da imagem é livrar-se
do observador.
I nterrogante : Se nos tornamos cônscios de o qu e é, e o
transcendemos, parece-me que poderíamos também “refle­
tir” certas emoções humanas, mesmo estando cônscios de
o que ê — e que seria inevitável refleti-las.
K rish n a m u r ti : Não sei bem o que entendeis por “emoções
humanas” . Emoções humanas são agressão, a qual faz parte
da emoção animal. Quereis dizer que não devemos evitar a
violência?
I nterrogante : Sim; uma vez que faz parte do animal, ou
da criança, faz parte também do ente humano.
K r ish n a m u r ti : Por conseguinte, não deveria ser evitada?
I nterrogante : Sim.
K r ish n a m u r ti : Senhor, discursa-se, fala-se, assiste-se a reu­
niões, lêem-se livros interminàvelmente. Mas, tudo isso tem
muito pouco valor se constituí meramente um estímulo. Porque,
nesse caso, sois dependente, como outros são dependentes de
L.S.D., música, quadros, alguma ação. Enquanto a pessoa é de­
pendente, está em conflito, em desespero. E nós temos de che­
gar — não por meio de leituras — a descobrir o inteiro pro­
cesso do autoconhecimento. Porque o autoconhecimento é o
fim de tôdas as nossas tribulações.

13 de novembro de 1966.
K RISH N A M U RTI

A I mportância da T ransformação registra sob forma escrita


o principal da série de palestras proferidas por Krishnamurti
em Nova Iorque e Ojai. Sob o signo unificador da importante
questão que dá nome ao livro, a da transformação, retoma
Krishnamurti aqui alguns dos seus temas mais caros: a vio­
lência no viver; a libertação; a confusão humana; tempo, mor­
te, amor; a renovação mental; o autoconhecimento; os pro­
blemas do viver; para onde vamos; da paixão ardorosa e sem
motivo; a natureza do conflito e do esforço; meditação; a
busca real.

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