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Arthur Henrique Motta Dapieve

Suicídio por contágio – A maneira pela


qual a imprensa trata a morte voluntária

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Comunicação Social do Departamento de
Comunicação da PUC-Rio.

Orientadora: Profa. Angeluccia Bernardes Habert

Rio de Janeiro
Março de 2006
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Arthur Henrique Motta Dapieve

Suicídio por contágio – A maneira pela


qual a imprensa trata a morte voluntária

Dissertação apresentada como requisito parcial para


obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Comunicação Social do Departamento de
Comunicação Social do Centro de Ciências Sociais da
PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.

Profa. Dra. Angeluccia Bernardes Habert


Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio

Prof. Dr. Miguel Serpa Pereira


Departamento de Comunicação Social – PUC-Rio

Prof. Dr. Renato José Pinto Ortiz


Unicamp

Prof. João Pontes Nogueira


Vice-Decano de Pós-Graduação do CCS

Rio de Janeiro, 6 de março de 2006


Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial
do trabalho sem autorização da universidade, do autor e da
orientadora.

Arthur Henrique Motta Dapieve

Graduou-se em Comunicação Social, habilitação Jornalismo, na PUC-


Rio, em 1985. É professor do Departamento de Comunicação Social
da mesma universidade, na disciplina Técnicas de Redação em
Jornalismo Gráfico. Como jornalista, trabalhou nas funções de
repórter e subeditor nos cadernos Idéias e B, do Jornal do Brasil
(1986-1991). Na de subeditor, na revista Veja Rio (1991-1992). Como
subeditor e editor, nas editorias RioShow, Segundo Caderno, Opinião,
O País e O Globo 2000, no jornal O Globo (1992-2000). Desde 1993
mantém uma coluna semanal no Segundo Caderno. Desde 2000
mantém outra coluna semanal, no site NoMínimo. Tem seis livros
publicados: BRock - O rock brasileiro dos anos 80 (Editora 34, 1995),
Miúdos metafísicos (crônicas de jornal, Topbooks, 1999), Guia de
rock em CD (com Luiz Henrique Romaholli, Jorge Zahar Editor,
2000), Renato Russo - O trovador solitário (Relume Dumará, 2000),
Manual do mané - Guia de auto-ajuda para o homem que vacila
(humor, com Gustavo Poli e Sérgio Rodrigues, Planeta, 2003) e De
cada amor tu herdarás só o cinismo (romance, Objetiva, 2004). Desde
2003 é apresentador do canal de TV por assinatura GNT.

Ficha Catalográfica

Dapieve, Arthur Henrique Motta

Suicídio por contágio : a maneira pela qual a imprensa


trata a morte voluntária / Arthur Henrique Motta Dapieve ; orien-
tadora: Angeluccia Bernardes Habert . – Rio de Janeiro : PUC,
Departamento de Comunicação Social, 2006.

172 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Cató-


lica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social

Inclui referências bibliográficas.

1. Comunicação social – Teses. 2. Jornalismo. 3. Sui-


cídio. 4. Discurso. 5. Egoismo. 6. Altruismo. 7. Anomia. I. Habert,
Angeluccia Bernardes. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. Departamento de Comunicação Social. III. Título.

CDD: 302.23
Agradecimentos

A Angeluccia Bernardes Habert, pelo incentivo e pelas luzes.

A José Carlos Rodrigues, pelas sugestões e pelos livros.

A José Thomaz Brum, pelo texto esclarecedor.

A Mànya Dias Millen e a Cristina Zarur, pela ajuda na pesquisa.

À Vice-Reitoria para Assuntos Acadêmicos e ao Departamento de Comunicação


Social da PUC-Rio, pela bolsa.
Resumo

Dapieve, Arthur Henrique Motta; Habert, Angeluccia Bernardes


(Orientadora). Suicídio por contágio – A maneira pela qual a imprensa
trata a morte voluntária. Rio de Janeiro, 2006. 172p. Dissertação de
Mestrado - Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.

Suicídio por contágio: a maneira pela qual a imprensa fala da morte


voluntária. Partindo da experiência profissional do jornalista, o trabalho relaciona
as formulações teóricas de Durkheim com o tipo de tratamento dado pela
imprensa contemporânea às pessoas que tiram a própria vida. Fez-se uma leitura
das reportagens sobre suicídio publicadas pelo jornal O Globo à luz dos conceitos
de egoísmo, altruísmo e anomia. Buscou-se, ainda, estabelecer como a linguagem
utilizada se relaciona com comportamentos sociais anteriores e externos à criação
dos próprios textos.

Palavras-chave
Jornalismo; suicídio; discurso; egoísmo; altruísmo; anomia.
Abstract

Dapieve, Arthur Henrique Motta; Habert, Angeluccia Bernardes


(Advisor). Suicide by contagion: the way in which the press talks about
voluntary. Rio de Janeiro, 2006. 172p. Dissertação de Mestrado -
Departamento de Comunicação Social, Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro.

Suicide by contagion: the way in which the press talks about voluntary
death. Coming from the professional experience as journalist, the work relates
Durkheim’s theory with the kind of treatment given by the contemporary press to
the people who kill themselves. The features about the subject published in O
Globo newspaper in 2004 has been re-read, bearing in mind the concepts of
egoism, altruism and anomy. It has been tried to establish as well how the
language used relates itself with the social behaviours that are previous and
external to the creation of the own texts.

Keywords
Journalism; suicide; discourse; egoism; altruism; anomy.
Sumário

Apresentação 9

Dois episódios 9

1 . Introdução 12
1.1. O não-lugar do suicídio 15
1.2. Observação participante 17
1.3. O que diz o jornal? 18

2 . Suicídio e sociedade 21
2.1. O suicídio do tipo egoísta 23
2.2. O suicídio do tipo altruísta 26
2.3. O suicídio do tipo anômico 30
2.4. Anomia e pós-modernidade 33
2.5. A reabilitação da comunidade 36
2.6. Dois casos clássicos: Pavese e Levi 41
2.7. O único problema filosófico sério 45

3 . Suicídio e imprensa 50
3.1. A Golden Gate 53
3.2. Gutenberg quebra o monopólio dos monges copistas 56
3.3. As visões gregas e romanas sobre o suicídio 60
3.4. Repetição, doença, contágio, ideologia 65
3.5. Hamlet, o inventor do sujeito e da psicanálise 69
3.6. ‘Bills of mortality’: a listagem de mortos na imprensa 75
3.7. Os casos de Fanny Braddock e do casal Smith 83
3.8. O papel didático das cartas dos suicidas 88
3.9. As cartas brasileiras e as dos resistentes franceses 92

4 . Como a imprensa brasileira trata o suicídio 99


4.1. O que diz ‘O Globo’ sobre ética 105
4.2. A cobertura do ‘Globo’ em 2004 115
4.2.1. Uma jovem palestina em Jerusalém 122
4.2.2. O dia mais violento no Iraque 123
4.2.3. O pacto suicida dos jovens japoneses 126
4.2.4. Um executivo italiano da Parmalat 128
4.2.5. O fim da carreira do ‘Dr. Morte’ 130
4.2.6. A dançarina brasileira na Espanha 132
4.2.7. O assassino da jornalista goiana em Atlanta 134
4.2.8. O desempregado na Praça dos Três Poderes 136
4.2.9. O adolescente na roleta russa em Meriti 141
4.2.10. O assassino dos próprios filhos 142
4.2.11. O famoso estilista no Arpoador 148
4.3. Convicções pessoais e ‘sínteses totalizantes’ 153

5 . Conclusão 157

Referências bibliográficas 166


E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

– Chico Buarque
(Construção, 1971)
Apresentação

Dois episódios

Hunter S. Thompson foi o inventor do chamado “jornalismo gonzo”, uma


radicalização do “novo jornalismo” de um Gay Talese ou de um Tom Wolfe. Em
Thompson, diferentemente do que ocorria em seus colegas de profissão, a
literatura não era apenas mais um recurso para se contar uma história real: era o
próprio repórter que se transformava em principal personagem1 de seus textos,
fossem suas aventuras vividas, imaginadas ou, no caso de Thompson e sua
proclamada voracidade química, alucinadas.
Na introdução a uma coletânea de textos, A grande caçada aos tubarões –
Histórias estranhas de um tempo estranho (1977, editado no Brasil, país onde
viveu no começo dos anos 60, apenas no final de 2004), Thompson escreveu:

Sinto-me como se pudesse muito bem estar aqui talhando as


palavras da minha própria lápide... e, quando eu acabar, a única
saída apropriada será de cima desse maldito terraço direto para
dentro da fonte, 28 andares abaixo e pelo menos 180 metros de
queda livre sobre a Quinta Avenida. Ninguém entenderia tal
atitude. Nem mesmo eu... (...) Eu sinceramente adoraria dar este
salto. Se não o der, sempre vou considerar isso um erro e uma
oportunidade perdida. (THOMPSON, 2004, p. 9).

Cumprindo parcialmente a própria profecia, Thompson suicidou-se com


um tiro na boca, aos 67 anos, no domingo 20 de fevereiro de 2005, em sua
fazenda, a Owl Farm, em Woody Creek, no estado americano do Colorado. Sua
morte foi pranteada em todo o mundo, em especial pelos redatores de blogs, seus
filhos espirituais na busca da fusão de diário íntimo com material
jornalisticamente relevante. Mesmo órgãos de imprensa consagrados, porém,

1
Em Literatura i periodisme (1993), o professor catalão Lluís-Albert Chillón assim descreve a
tática gonzo: “Em vez de obter a informação desde uma prudente distância profissional, Thompson
se inseria nas situações que tratava, até o ponto de se fazer co-participante. O fato de vivê-las dire-
tamente lhe permitia compreendê-las como não poderia fazer um repórter convencional” (p. 129).
10

deram-lhe espaço proporcional à importância e influência. A revista Rolling


Stone, da qual foi ativo colaborador, por exemplo, dedicou-lhe a capa e a maior
parte da edição de 24 de março. Entre os articulistas convidados estava, por
exemplo, o ator Jack Nicholson.
No Brasil, por questões de fuso horário, a notícia chegou somente no dia
seguinte, 21 de fevereiro. A editora Mànya Millen, do “Prosa & Verso”, caderno
de literatura do jornal O Globo, avisou à redatora responsável pelos obituários
daquele dia, Liane Gonçalves, sobre a morte de Thompson nos EUA. “Foi
suicídio, é?”, disse esta, em sua primeira reação, “Preciso ver como publicamos,
então...” Afinal a informação foi publicada na edição de 22 de fevereiro.
No primeiro clichê, em três colunas e uma pequena foto de uma coluna no
meio da página 19, quase toda tomada por anúncios fúnebres. O destaque do
obituário era a morte da atriz americana Sandra Dee, aos 62 anos, por falência
renal, num texto em três colunas, com uma foto de duas. No segundo clichê da
mesma página, com a notícia de que o escritor cubano Cabrera Infante morrera em
Londres, aos 75 anos, de “causa não divulgada”, Sandra foi diminuída para duas
colunas (foto em uma) no meio da página e Thompson, para apenas uma (sem
foto).
Sobre o jornalista, no primeiro clichê, o último parágrafo do texto do
Globo dizia: “Seu corpo foi encontrado por seu filho, Juan, domingo à noite, em
sua casa no Colorado. Thompson tinha 67 anos e, segundo comunicado divulgado
por Juan, se matou com um tiro na cabeça”. No segundo clichê, o texto mudou
para: “O corpo de Thompson foi encontrado no domingo, em sua casa no
Colorado. Ele tinha 67 anos e se matou com um tiro na cabeça.”
Na edição de 22 de setembro de 2005, a Rolling Stone publicou
reportagem de Douglas Brinkley sobre a realização, um ano depois do suicídio, da
bizarra cerimônia de despedida de Thompson, planejada trinta anos antes de ele
apertar o gatilho e na qual suas cinzas foram lançadas por um canhão do alto de
uma torre de 45 metros. Fazia parte do material publicado pela revista o bilhete de
despedida escrito por Thompson quatro dias antes de se matar:

Nada Mais de Jogos. Nada Mais de Bombas. Nada Mais de


Caminhar. Nada Mais de Diversão. Nada Mais de Nadar. 67.
Isso é 17 anos depois dos 50. 17 mais do que eu precisava ou
queria. Tedioso. Eu sou sempre malicioso. Nada de Diversão –
11

para ninguém. 67. Você está se tornando Ambicioso. Aja


conforme sua velhice. Relaxe – Isso não vai doer. (apud
BRINKLEY, 22/9/ 2005, p. 68).2

Outro breve episódio contemporâneo. O canal de TV por assinatura


brasileiro BandNews costuma preencher sua programação, aproximadamente a
cada uma hora, com uma pequena matéria de arquivo, ou seja, sem vínculo com
qualquer acontecimento do dia. Ela pode tratar da vida de uma pessoa, de um
acontecimento distante, de um país, de um esporte. Numa delas, exibida em 2003,
o tema foi a carreira da banda de rock australiana INXS.
Seu primeiro vocalista, Michael Hutchence, co-autor do sucesso Suicide
blonde, dos versos “tenha alguma surpresa nas suas mãos/ salve-se da tristeza/
como a chuva pela terra”, matou-se por enforcamento, aos 37 anos, em 22 de
novembro de 1997, num quarto de hotel de Sydney, sua cidade natal. Estava
deprimido pela separação da jornalista inglesa Paula Yates, que se casara com
outro roqueiro, o irlandês Bob Geldolf, dos Boomtown Rats, organizador dos
concertos beneficentes Live Aid e ator do filme Pink Floyd – The wall, de Alan
Parker.
Por conta da fama individual dos envolvidos e do rumoroso triângulo
amoroso em público, o episódio foi fartamente noticiado na ocasião. Pois seis
anos depois, a BandNews, chegado o ponto da carreira do INXS em que
Hutchence se mata, abrevia o episódio para o eufemismo “desaparecimento súbito
de seu líder” e passa adiante. Desconhece-se qualquer caso de suicídio que não
implique desaparecimento súbito do morto.

2
No More Games. No More Bombs. No More Walking. No More Fun. No More Swimming. 67.
That is 17 years past 50. 17 more than I needed or wanted. Boring. I am always bitchy. No Fun –
for anybody. 67. You are getting Greedy. Act your old age. Relax – This won’t hurt.
1
Introdução

Esconder o suicídio ao pé de páginas, mascará-lo por eufemismos, como


ocorreu nos casos narrados no prólogo, ou até mesmo ignorá-lo completamente,
como ocorre com a imensa maioria dos casos, são procedimentos comuns na
imprensa internacional, não apenas a brasileira. Há razões bem práticas e
compreensíveis para isso: amenizar o inevitável sentimento de culpa dos
familiares e amigos próximos do morto, respeitar a privacidade de sua dor,
implicações securitárias etc. Em torno da notícia de uma morte voluntária, porém,
tende a se formar um círculo de silêncio que expressa algo mais difuso, mas não
menos importante nas sociedades ocidentais: as crenças conjugadas de que o
suicídio pode ser, de certa forma, contagioso, e de que os modernos meios de
comunicação de massa podem ser, pela própria natureza de sua função social, os
vetores deste contágio.
Verbalizado ou não, portanto, existe nas redações o temor de que a
publicação de uma notícia sobre um suicídio específico, ou até uma simples
menção genérica à possibilidade de um ser humano chegar à conclusão de que sua
vida não vale mais a pena ser vivida, possa transmitir ou estimular a mesma idéia
num suicida em potencial – tratado de forma análoga ao “portador sadio” de uma
doença latente. Tenta-se evitar, pelo rigor na edição e pelo tratamento retórico do
fato, que se repita o que aconteceu com a publicação da novela Werther, de
Johann Wolfgang von Goethe. A partir de 1774, a Europa romântica foi sacudida
por uma onda de suicídios de jovens que se identificaram com o amor não-
correspondido do protagonista pela adorável embora refratária Charlotte a ponto
de adotarem a mesma saída para seus próprios dramas: matar-se com um tiro de
pistola. Exemplares do livro de Goethe eram achados ao lado dos moribundos ou
dos cadáveres.
Em sua carta de despedida, escrita numa linguagem transbordante de
emoção que nunca ou quase nunca é encontrada nos bilhetes de suicidas reais,
13

normalmente frios e práticos, Werther se dirige a Deus e ao objeto de seu amor


não-correspondido, Charlotte: “Em torno de mim reina a tranqüilidade, e minha
alma está tão calma! Agradeço-vos, ó Deus, por me concederes em meus últimos
momentos, este calor e esta força!” (GOETHE, 1971, p. 159) E, um pouco
adiante, sinaliza a proximidade da morte com uma metáfora, não com a
concretude da arma de fogo: “Veja, Charlotte, que não tremo ao pegar a fria e
terrível taça por onde quero beber a embriaguez da morte! É você quem ma
apresenta e eu não hesito um só momento. É assim que se consumam todos os
votos, todas as esperanças da minha vida!” (ibidem, p. 159)
Não existe, previsivelmente, uma estatística do “efeito Werther”3 sobre a
população masculina jovem européia do século XVIII. Se existisse, ela talvez nem
sequer fosse relevante do ponto de vista numérico, embora o crítico e romancista
inglês A. Alvarez tenha escrito em O deus selvagem – Um estudo do suicídio
[1971]: “O percurso de Werther foi como o percurso de um carro de Jagrená
indiano; media-se o seu êxito pelo número de suicidas que deixava atrás de si”
(ALVAREZ, 1999, p. 209). Não sem sarcasmo, Alvarez observa que, no apogeu
do romantismo, a vida era vivida como se fosse, ela também, uma obra de ficção,
“e o suicídio se tornou um ato literário, um gesto histérico de solidariedade para
com qualquer herói ficcional que fosse a coqueluche do momento” (ibidem, p.
209).
Seja como for, o efeito causado na opinião pública pelos casos de suicídio
de leitores solidários a Werther que vieram à tona na ocasião, quão poucos
possam ter sido, foi duradouro e exemplar. Quando, duzentos e três anos depois,
Roland Barthes elegeu articular seu Fragmentos de um discurso amoroso em
torno sobretudo da “leitura regular” do Werther estava, sem sombra de dúvida,
não apenas ratificando a importância de Goethe na formação do sujeito
apaixonado ocidental como reconhecendo a saída suicidária como recurso retórico
amoroso.

Às vezes, vivamente atingido por alguma circunstância fútil e


envolvido pela repercussão que ela provoca, me vejo de repente
numa armadilha, imobilizado numa situação (num sítio)
impossível: só há duas saídas (ou... ou então...) e as duas estão

3
Posteriormente, a expressão “efeito Werther” passou a ser usada sempre que um suicídio – sobre-
tudo o de artistas – serve de inspiração para que outras pessoas se matem.
14

igualmente trancadas: dos dois lados só tenho que me calar.


Então a idéia de suicídio me salva, pois pode ser falada (e não
me privo disso): renasço e pinto essa idéia com as cores da
vida, seja para dirigi-la agressivamente contra o objeto amado
(chantagem bem conhecida), seja para me unir a ele
fantasiosamente na morte (‘descerei ao túmulo para me abraçar
com você’).” (BARTHES, 1981, p. 185).

Barthes, ele mesmo saudado pelos românticos mais-que-tardios como um


suicida, por ter-se supostamente deixado atropelar por uma caminhonete, a 25 de
fevereiro de 19804, próximo ao College de France, onde ministrava um curso
sobre Marcel Proust e a fotografia, fornece, por contraste, uma sugestão de
abordagem mais geral do fenômeno do suicídio – é esta que, num primeiro
momento, me interessa, por não pretender esgotar seus inúmeros aspectos e sim
relacioná-los ao modo como as notícias são ou não divulgadas pela imprensa – ao
escrever numa espécie de epígrafe aos seus próprios Fragmentos:

A necessidade deste livro funda-se na consideração seguinte: o


discurso amoroso é hoje de uma extrema solidão. Tal discurso
talvez seja falado por milhares de sujeitos (quem pode saber?),
mas não é sustentado por ninguém; é completamente relegado
pelas linguagens existentes, ou ignorado, ou depreciado ou
zombado por elas, cortado não apenas do poder; mas também
de seus mecanismos (ciência, saberes, artes). (BARTHES,
1981, XV).

Diferentemente do discurso amoroso, então, o discurso suicidário e meta-


suicidário é incorporado tanto por uma multidão de sujeitos – o próprio Barthes o
diz naquele seu “verbete” dedicado ao suicídio5 – quanto por uma multiplicidade
de discursos – como atesta a profusão de títulos dedicados ao assunto nas ciências
humanas e sociais (Psicologia, Antropologia, Sociologia, Filosofia, História). Só
mesmo o abrangente conceito de interdisciplinaridade, que tenta não
circunscrever o estudo do homem a apenas uma de suas dimensões ou a apenas

4
Tal suspeita é enfraquecida pela inépcia da suposta execução (Barthes morreu apenas a 26 de
março, depois de um mês de agonia no Hospital Pitié-Salpêtrière) e pelo estado de ânimo daquele
que é considerado seu último texto, por ter sido encontrado em processo de revisão datilográfica,
na sua máquina de escrever, na data do atropelamento: “Malogramos sempre ao falar do que ama-
mos” (nele, Barthes trata da transcendência da arte e da esperança a partir de Stendhal).
5
Cf. p. 16.
15

uma de suas disciplinas, é capaz de abarcar o fenômeno; num conceito


exemplificado pelas obras do próprio Barthes e de seus compatriotas Foucault,
Derrida, Morin, Lyotard, Deleuze.

1.1
O não-lugar do suicídio

Sendo o suicídio tema passível de abordagem filosófica, sociológica,


antropológica, psicológica, médica, jurídica, histórica, política, religiosa, ética
etc., ele se constitui num ponto nevrálgico não somente das fronteiras
disciplinares como também do próprio homem. Há estudos nesta direção. Em Les
suicides, por exemplo, Jean Baechler busca dar conta de todos os aspectos e
variáveis, imbuído da idéia de que somente o diálogo entre as variadas disciplinas
pode aclarar o assunto. Assim, Baechler investiga as teorias sociológicas,
psicanalíticas, psiquiátricas; as leituras filosófico-morais, de casos, estatísticas; os
contextos familiares, etários, sexuais; as mentalidades; os tipos de morte
voluntária. Longe de pretender abarcar toda a literatura sobre o assunto, que
reputa “monstruosa”, o autor, não sem ironia, reclama um não-lugar logo na sua
apresentação:

Eu não sou médico, nem psiquiatra, nem psicanalista; eu não


sou moralista, nem filósofo, nem teólogo; eu não sou etnólogo,
nem psicólogo e tampouco sociólogo. Assim, eu preencho as
condições necessárias, senão suficientes, para estudar os
suicídios. (BAECHLER, 1975, p. 9).6

Queixando-se da ausência de menções à morte voluntária em clássicos dos


estudos sobre a morte, como, por exemplo, La mort et l’Occident de 1300 à nos
jours, de Michel Vovelle, ou L’homme devant la mort, de Philippe Ariès, George
Minois, já na introdução de Histoire du suicide – La société occidentale face à la

6
Je ne suis pas médecin, ni psychiatre, ni psychanalyste; je ne suis pais moraliste, no philosophe,
ni théologien; je ne suis pas ethnologue, ni psychologue et si peu sociologue. Je remplis donc les
conditions nécessaires, sinon suffisantes, pour étudier les suicides.
16

mort volontaire, lembra que parte dela se deve a falhas documentais. “As fontes
que concernem às mortes voluntárias são diferentes daquelas que relatam as
mortes naturais. Os famosos registros paroquianos de falecimentos não são aqui
de nenhuma ajuda, porque os suicidas não tinham direito à inumação religiosa”
(MINOIS, 1995, p. 9). Minois assinala, portanto, que os historiadores devem se
dirigir a fontes heteróclitas (memórias, crônicas, jornais, literaturas) e a arquivos
judiciais, pois a morte voluntária quase sempre foi considerada crime. Logo,
também o Direito, canônico ou laico, produziu discursos condenatórios do
suicídio.
Dentro deste espírito – e também como jornalista – irei trabalhar a
primeira das três partes desta dissertação. Lançarei mão de textos produzidos no
âmbito da Sociologia, da História, da Filosofia, da Psicologia, da Antropologia e
até da Literatura, na tentativa de estabelecer elos entre o fato concreto do suicídio
e a idéia generalizada de que ele é, num sentido bem específico, não biológico,
contagioso dentro das sociedades.
No processo, um pouco como Barthes empregou o Werther, utilizarei O
suicídio – Estudo de sociologia [1897] de Émile Durkheim, como “leitura
regular”, em relação às quais se posicionam por alinhamento, divergência ou
oposição as outras. Seu livro é uma referência constante quando se estuda o
suicídio, naturalmente não por ser o primeiro. Sua própria bibliografia o
comprova: está coalhada de livros de médicos e psicólogos sobre a morte
voluntária. Durkheim, porém, propõe uma mudança drástica na abordagem do
fenômeno: não mais vê-lo como a expressão individual de uma doença ou de uma
loucura, e sim como a expressão individual de um fenômeno coletivo. Pensando
desta forma, em seu trabalho, Durkheim isolou para análise uma tipologia do
suicídio ainda válida. Além disso, ele aceitava a idéia de contágio dentro das
sociedades e admitia que, mais do que o mero boca-a-boca, a imprensa poderia
desempenhar um papel potencializador na transmissão se não do suicídio, da sua
sugestão.
17

1.2
Observação participante

Na segunda parte desta dissertação, buscar-se-á mais especificamente o


papel da imprensa no fenômeno do suicídio assim como, na primeira, buscou-se
mapear a idéia de “contágio”, no qual a imprensa poderia desempenhar uma parte
importante, dentro da bibliografia sobre o suicídio. A partir daqui, além do recurso
às fontes heterodoxas, começarei paulatinamente a aplicar o conceito de
“observação participante”, utilizado na pesquisa qualitativa dos fenômenos de
comunicação de massa. Nascido do trabalho da Escola de Chicago, este método
sócio-antropológico prescreve a virtual imersão do pesquisador no objeto
pesquisado – no caso, empresas de comunicação e redações – de modo a captar-
lhe as sutilezas de conduta, seja por entrevistas com personagens-chave ou
consulta a seus documentos (reportagens), seja por observação direta ou
experiência de vida.
Sou jornalista profissional há vinte anos, a maior parte deste período
passado entre as redações do Jornal do Brasil (1986-1991) e do Globo (1992-
2000), ambos importantes diários cariocas. Tendo neles exercido funções em
variadas áreas, de repórter de Artes e Espetáculos a editor de Política, em algumas
ocasiões, coerente com as culturas organizacionais em que me inseria, deparei-me
com as mesmas dúvidas externadas pela colega mencionada no prólogo desta
dissertação (“Preciso ver como publicamos, então...”). Não haverá, todavia, apelo
a reminiscências isoladas. O que importa é a percepção de que, muito mais do que
ser determinante do modo como os seus leitores encaram o suicídio, a imprensa
sim é determinada pela visão que seus consumidores – vale dizer a sociedade
como um todo, no caso de jornais de grande circulação ou redes de rádio e TV –
têm da morte voluntária. Nessa perspectiva, a imprensa se colocaria, então, não
como vetor do contágio, mas como instância social solidária ao tabu que a
suplanta.
No seu artigo incluído no livro A handbook of qualitative methodologies
for mass communication research, “Qualitative methods in the study of the
news”, a pesquisadora americana Gaye Tuchman, especialista no estudo de
notícias do Departamento de Sociologia da Universidade de Connecticut, aponta
18

três mudanças importantes que a linha da “observação participante” introduziu em


relação a trabalhos anteriores neste campo:

Primeiro, a unidade de sua análise não era o repórter ou o editor


individual. (...) Em vez disso, eles examinaram as empresas de
notícias como instituições complexas. Segundo, embora
enquadrados em linguagem acadêmica “neutra”, seus estudos
eram implicitamente políticos. Os autores buscaram entender
como as notícias vieram a sustentar a interpretação oficial de
eventos controvertidos. Terceiro, às vezes implícita mas
freqüentemente explicitamente, estes estudos levantaram um
tema epistemológico chave: como empresas de notícias vêm a
“saber” o que “sabem”. (TUCHMAN, 1991, p. 84).7

Para mim, de particular importância é a segunda das mudanças


mencionadas por Tuchman: meu interesse é tentar entender como o noticiário
apóia as interpretações oficiais de um fato controverso – o suicídio. Ou seja, o
modo como ele reflete e reforça o senso comum sobre o assunto: a condenação
quase unânime quando se trata de um suicídio motivado por problemas ou
decisões particulares (dissabores amorosos, como Werther); a absolvição quase
unânime ou, ao menos, a relativização quando se trata de um suicídio motivado
por causas externas ao sujeito que se mata (como o homem-bomba).

1.3
O que diz o jornal?

Daí a terceira parte desta dissertação, que se debruçará sobre como


efetivamente o suicídio é falado. Aqui, o campo escolhido para a pesquisa é um
órgão representativo da imprensa brasileira, tomado num determinado período: o
supracitado jornal O Globo, um dos quatro maiores diários do país, sediado no
Rio de Janeiro e cuja tiragem média diária é de 300 mil exemplares, no ano de
2004.

7
First, their unit of of analysis was not the individual reporter or editor (...), rather, they examined
news organizations as complex institutions. Second, although framed in “neutral” academic lan-
guage, the studies were implicity political. Their authors sought to understand how news came to
support official interpretations of controversial events. Third, sometimes implicity but often ex-
plicity, these studies raised a key epistemological issue: how do news organizations come to
“know” what they “know”.
19

Além da possibilidade, por conta de experiência profissional, de usá-lo de


campo para minha “observação participante”, sua escolha apresenta outra
vantagem, nada desprezível em termos de abrangência. Nele, a linha editorial é
coerente com a de todos os veículos de comunicação das Organizações Globo
(outros jornais, emissoras de televisão, rádios, revistas, sites de internet) e é
estabelecida em reuniões semanais entre seus principais executivos. Portanto, é
razoável supor que as mais ou menos as mesmas deliberações fundamentais –
quanto ao suicídio ou a qualquer outro tema polêmico – sejam apresentadas diante
de um público de dezenas de milhões de brasileiros, refletindo e alimentando suas
convicções, num processo contínuo que impossibilita definir onde acaba uma
etapa e começa outra.
Sendo verdade que a notícia é um pedaço do social que volta ao social,
como disse Bernard Voyenne, redator do jornal Combat junto ao filósofo Albert
Camus durante a Segunda Guerra Mundial, os vínculos entre uma sociedade e a
sua imprensa são indissolúveis. No caso do alcance e do poder dos produtos de
comunicação das Organizações Globo, não seria temerário afirmar que eles
pensam o que o país pensa – e vice-versa. Entender-lhes é entender um pouco a
cabeça do brasileiro.
Por extensão, pode-se dizer também que eles não pensam o que o país não
pensa – e vice-versa – quando se trata, por exemplo, de um tema tabu como o
suicídio. Porque, como destaca Teun A. Van Dijk8, professor de Estudos do
Discurso na Universidade de Amsterdã, a notícia é uma importante formadora de
opinião não só pelo que ela diz, mas também pelo como diz e pelo que não diz.

Uma das mais poderosas noções na análise crítica das notícias é


a de implicação. (...) Muito da informação de um texto não é
expressada explicitamente, mas deixada implícita. Palavras,
orações e outras expressões textuais podem implicar conceitos
ou proposições que podem ser inferidas com base em
conhecimento prévio. Este aspecto do discurso e da
comunicação tem importantes dimensões ideológicas. A análise
do “não-dito” é às vezes mais reveladora do que o estudo do

8
“Media contents – The interdisciplinary study of news as discourse”. In: JENSEN, JANKOWS-
KI. A handbook of qualitative methodology for mass communication research. Londres e Nova
York: Routledge, 1991.
20

que de fato foi expressado no texto. (VAN DIJK, 1991, p.


113/114).9

Em busca do que o noticiário diz, insinua ou cala sobre as mortes


voluntárias, examinarei todo o material pertinente publicado pelo jornal Globo em
2004 – suicídios de personalidades, homicídios seguidos de suicídio, atentados
perpetrados por terroristas suicidas etc. – atrás dos itens mais significativos sob a
lupa da análise de discurso. Em si mesmo, como acentua Van Dijk, este método
contém os elementos da interdisciplinaridade, conforme agrega o conhecimento
de Antropologia, Etnografia, Microssociologia, Psicologia Social e Cognitiva,
Poética, Retórica, Estilo, Lingüística, Semiótica e “outras disciplinas nas ciências
humanas e sociais interessadas no estudo sistemático de estruturas, funções e
processamento de texto e fala” (ibidem, p. 108). Em suma, procura-se aqui revelar
uma ideologia em torno do suicídio nas linhas e nas entrelinhas do noticiário.

9
One of the most powerful semantic notions in a critical news analysis is that of implication. (...)
Much of the information of a text is not explicity expressed, but left implicit. Words, clauses, and
other textual expressions may imply concepts or propositions which may be inferred on the basis
of background knowledge. This feature of discourse and communication has important ideological
dimensions. The analysis of the “unsaid” is sometimes more revealing than the study of what is
actually expressed in the text.
2
Suicídio e sociedade

Émile Durkheim (1858-1917) é louvado como tendo sido, não o primeiro,


mas o mais importante pioneiro na abordagem metodológica do fenômeno em O
suicídio – Estudo de sociologia. Antes dele, mesmo em trabalhos pretensamente
científicos, muitos assinados por médicos e psiquiatras importantes, lendas e fatos
sobre a morte voluntária se fundiam de tal maneira, pressionados por séculos de
condenação religiosa e judicial, que quase inevitavelmente reforçavam o senso
comum que remontava à Idade Média: o suicida ou estava sob a influência do
Demônio ou estava louco, sem meio termo. Na obra e na existência do primeiro, o
judeu e agnóstico Durkheim não acreditava. Quanto à loucura, apoiado na análise
de dados estatísticos procedentes da contabilidade social, ele haveria de provar
que o suicídio era um fenômeno da razão.
Durkheim mostrou que “os países em que há menos loucos são aqueles em
que há mais suicídios; o caso da Saxônia chama particularmente a atenção”
(DURKHEIM, 2000, p. 56) Naquela região integrante do Império Alemão,
proclamado em 1871, os dados de quatro anos depois davam conta de que havia
84 loucos por 100 mil habitantes e 272 suicídios por um milhão de habitantes. Por
contraste, podemos extrair de um dos quadros estatísticos montados por outros
estudiosos do assunto e utilizados por Durkheim segundo seus próprios propósitos
a informação de que na Escócia, parte integrante da Grã-Bretanha, em 1871, havia
202 loucos por 100 mil habitantes e apenas 35 suicídios por um milhão de
habitantes. Através dessas comparações e das conclusões delas inferidas, o
sociólogo separou alienação e morte voluntária: “A taxa social de suicídios não
mantém, portanto, nenhuma relação definida com a tendência à loucura, nem, por
indução, com a tendência às diferentes formas de neurastenia” (ibidem, p. 59).
Sendo um fenômeno da razão, mesmo se tomado coletivamente, como era
a sua preocupação de sociólogo, o suicídio não afasta a noção de livre arbítrio
para Durkheim. Embora de maneira algo reticente e inconclusiva, ele volta e meia
22

o afirma: “(...) Mostraremos que essa maneira de ver, longe de excluir toda a
liberdade, aparece como o único meio de conciliá-la com o determinismo revelado
pelos dados da estatística.” (ibidem, p. 6, nota de rodapé).
Auxiliado por, entre outros, seu sobrinho Marcel Mauss (ele próprio
sociólogo e antropólogo importante) e por Maurice Halbwachs (que, em 1930,
escreveria Les causes du suicide, respeitosamente discordando de algumas
conclusões do mestre), Durkheim cruzou as estatísticas disponíveis sobre suicídio
na França e em outros países europeus de modo a refutar ou explicar – em bases
científicas, despidas de crendices – por que certas doenças mentais ou religiões,
certas raças ou tipos humanos, certas classes sociais ou sexos, certos climas ou
horários do dia tenderiam a aparecer como mais propensos ao suicídio. Encontrou
um aparente enigma: embora, obviamente, pessoas diferentes se matem por
motivos diferentes, a cota de suicidas de cada sociedade permanece estável por
períodos contíguos de tempo – é isso, especificamente, o que Durkheim chama de
taxa social. Como observa José Carlos Rodrigues, num texto inédito, “Os corpos
na antropologia”:

Durkheim procurou demonstrar que, em vez de resultar das


profundezas misteriosas do psiquismo, um fenômeno tão
individual e tão psicológico, como a extinção voluntária da
própria vida, exibia em cada sociedade européia uma admirável
constância estatística dentro de um intervalo determinado de
tempo. (...) De acordo com os dados que Durkheim apresentou,
em cada sociedade européia o suicídio se relacionava também
de modo coerente, consistente e razoavelmente persistente com
as variáveis sócio-econômicas de idade, gênero, profissão,
renda, estado civil, situação familiar, religião, instrução,
moradia rural ou urbana... Até mesmo os ritmos do calendário
social, com as estações do ano, os dias da semana, os meses, as
horas diurnas ou noturnas e as datas festivas mostravam-se
atuantes nas práticas de auto-extinção. (RODRIGUES, p. 6).

Ao explicar por que isso ocorre, na tentativa de desmistificar um tabu,


livrando-o de pseudo-explicações sobrenaturais ou raciais, Durkheim não apenas
deu ao tema da morte voluntária uma obra canônica, como, de certa forma, fundou
a própria sociologia moderna. Embora já tivesse publicado dois trabalhos
importantes antes de O suicídio, A divisão do trabalho social [1893] e As regras
23

do método sociológico [1895], foi seu livro de 1897 que uniu forma e conteúdo de
maneira magistral, transformando-se numa aula magna.
No prefácio à edição brasileira de 2000, Carlos Henrique Cardim,
professor do Instituto de Ciência Política e Relações Internacionais da UnB,
lembra que Seymour Martin Lipset, autor de Political man, usava o livro de
Durkheim na primeira aula de seus cursos de Sociologia na Universidade da
Califórnia por considerá-lo um modelo – particularmente atraente para os alunos –
de estudo de ciências sociais. “Além de demonstrar cabalmente a possibilidade e a
necessidade da sociologia que até então estava muito contaminada pela metafísica,
pela psicologia e pelo messianismo redentorista”, acrescenta Cardim (ibidem, p.
XIX).
Durkheim notou que a única constante na Europa era que o suicídio se
relacionava diretamente com o grau de envolvimento do suicida com a sua
sociedade – e que isso às vezes apenas coincidia com o senso comum. Por
exemplo, os homens se matavam quatro vez mais que as mulheres, certo, mas não
porque fossem mais predispostos a isso e sim porque, no século XIX, eles tinham
uma vida social mais ativa que elas. Protestantes se matavam mais que católicos,
certo, mas não porque fossem mais mórbidos e sim porque sua religião se
caracteriza por valorizar mais o indivíduo e o livre-pensar, menos o grupo e a
ortodoxia. “Tudo o que é variação horroriza o pensamento católico”, escreve o
sociólogo (p. 185).
Em sentido inverso, ou seja, desmentindo a impressão popular e
aparentemente lógica de que a hora das trevas ou as longas noites de inverno
influenciavam o espírito das pessoas que, deprimidas e solitárias, se matavam,
Durkheim mostrou que elas o faziam mais freqüentemente de dia, em particular
nas horas ditas comerciais, e nos meses quentes do Hemisfério Norte, justamente
porque eram estes os momentos de maior intensidade da vida social.

2.1
O suicídio do tipo egoísta

Destas observações, e de observações análogas, Durkheim extraiu sua


célebre tipologia dos suicídios, incluída no livro II, o mais importante de O
suicídio, intitulado “Causas sociais e tipos sociais”. Nelas, as mortes voluntárias
24

são classificadas não morfologicamente e sim etiologicamente, ou seja, não a


partir das aparências e sim das causas. Para ele, todas as mortes voluntárias se
enquadravam em uma de três categorias: eram suicídios egoístas, altruístas ou
anômicos – havendo tipos híbridos entre elas. Eram, como os próprios nomes
indicam, categorias que relacionavam o fenômeno não mais a predisposições
individuais ou psicológicas, nem muito menos à ação do Demônio – a menos,
claro, que se demonizasse a vida em sociedade, porque era nela em que todas as
razões dos mortos, por mais pessoais que fossem, se reencontravam.
Durkheim chama de suicídio egoísta o praticado por quem já não vê razão
de ser na vida, porque, no seu entender, “o homem não pode viver a não ser que se
ligue a um objeto que o ultrapasse e que lhe sobreviva” (p. 260). Ele estabelece
três proposições complementares para tal tipo, coerentes com sua perspectiva
sociológica: o suicídio varia em razão inversa ao grau de integração da sociedade
religiosa; o suicídio varia em razão inversa ao grau de integração da sociedade
doméstica; e o suicídio varia em razão inversa ao grau de integração da sociedade
política. Os indivíduos são, por assim dizer, protegidos da morte voluntária por
estarem bem integrados na vida social, por serem membros de uma comunidade
religiosa unida, por serem casados, por serem cidadãos ativos. Inversamente, são
mais propensos ao suicídio os ateus, os solteiros, os marginalizados. Os artistas,
ao menos na visão romântica, se enquadram nesta última categoria.
Porque não é, afinal, de outro tipo de alienação do contato social que
tratam muitos dos bilhetes de despedida deixados, por exemplo, por atores,
escritores ou músicos, como o americano Kurt Cobain, cantor, compositor e
guitarrista do imensamente popular grupo de rock Nirvana, que deu um tiro na
cabeça, em sua casa de Seattle, aos 27 anos, a 5 de abril de 1994. Seu corpo foi
encontrado por um eletricista contratado para instalar um sistema de alarme
apenas três dias depois. O estrago no rosto foi tamanho que a polícia teve de
confirmar a identidade de Cobain pelas impressões digitais. Em 10 de abril, sua
viúva, a também roqueira Courtney Love, do grupo Hole, gravou uma mensagem
para os fãs. Nela, não sem sarcasmo, não sem raiva, ela lia o bilhete de despedida
de Cobain, bilhete que chamou de “carta ao editor”.
25

Não tenho sentido a excitação de escutar e também de criar


música, bem como de ler e escrever, faz anos... Eu tentei de
tudo que está ao meu alcance para apreciar isso, e eu aprecio.
Deus, acredite, eu aprecio... Eu devo ser um daqueles
narcisistas que só apreciam as coisas quando estão sós. Sou
sensível demais. Tenho de estar ligeiramente entorpecido para
reconquistar o entusiasmo que eu tinha quando criança... (...)
Desde a idade de sete anos tornei-me odioso diante de todos os
humanos em geral... Eu sou errático, instável demais, baby!
Não tenho mais a paixão, então lembre-se, é melhor queimar do
que se apagar. (apud ETKIND, 1997, p. 38-39).10

Suas palavras de despedida evocam o que Trotsky escreveu sobre outro


jovem poeta suicida, Serguei Essenin (1895-1925), nas páginas do Pravda. No seu
elogio fúnebre, o líder soviético afirmou que, a despeito de ter cantado os
camponeses e de ter se declarado bolchevique, Essenin não era de fato um
revolucionário: “O poeta está morto porque ele não era da mesma natureza da
Revolução” (En mémoire de Serge Essénine, 2005). Para Trostky, enquanto um
era “um ser interior, meigo, lírico”, a outra era “pública, épica, cheia de
catástrofes”.
Cobain há tempos enfrentava problemas com drogas pesadas, como a
heroína. Courtney também, de tal forma que, em 1992, a filha do casal – batizada
Francis em homenagem à atriz Frances Farmer, de Seattle, que morreu louca –
nasceu viciada, uma drug baby na linguagem escandalosa dos tablóides
sensacionalistas. Sete anos corresponde à idade em que o músico acreditava ter se
tornado, aos olhos da própria mãe, uma criança-problema11. Seus pais se
separariam no ano seguinte. Por fim, a última frase do bilhete de despedida usa
versos do roqueiro canadense Neil Young em homenagem a Johnny Rotten, dos
fugazes Sex Pistols ingleses. O conjunto da obra deixada para a posteridade, o
background das drogas, a infância infeliz e as referências cruzadas, bem como a

10
I haven’t felt the excitement of listening to as well as creating music, along with reading and
writing for too many years now... I’ve tried everything that’s in my power to appreciate it, and I
do. God, believe me, I do... I must be one of those narcissists who only appreciate things when
they’re alone. I’m too sensitive. I need to be slightly numb in order to regain the enthusiasm I had
as a child... (...) Since the age of seven, I’ve become hateful toward all human in general... I’m too
much of na erratic, moody baby! I don’t have passion anymore, and so remember, it’s better to
burn out than to fade away.
11
Segundo ele contou ao biógrafo de sua banda, o jornalista Michael Azerrad, em “Come as you
are – The story of Nirvana”, sobre o Natal de 1974: “A única coisa que eu realmente queria naque-
le ano era um revólver Starsky e Hutch de US$ 5. Em vez disso, ganhei massinha de carvão”.
26

linguagem quase impessoal característica de parte considerável dos bilhetes de


suicidas, ilustra à perfeição um suicídio do tipo egoísta tal como entendia
Durkheim porque:

A sociedade não pode desintegrar-se sem que, na mesma


medida, o indivíduo se desligue da vida social, sem que seus
fins próprios se tornem preponderantes sobre os fins comuns,
sem que sua personalidade, em suma, tenda a se colocar acima
da personalidade coletiva. Quanto mais os grupos a que
pertence se enfraquecem, menos o indivíduo depende deles e,
por conseguinte, mais depende apenas de si mesmo para não
reconhecer outras regras de conduta que não as que se baseiam
em seus interesses privados. Se, portanto, conviermos chamar
de egoísmo esse estado em que o eu individual se afirma
excessivamente diante do eu social e às expensas deste último,
poderemos dar o nome de egoísta ao tipo particular de suicídio
que resulta de uma individuação desmedida. (DURKHEIM,
2000, p. 358-9).

Como vimos, para o autor, os suicídios relacionados a uma determinada


sociedade ou a um determinado período refletem as características estruturais e as
mudanças neles verificados. Entretanto, ele logo anota que ao mesmo tempo em
que se mata facilmente quando é desligado da sociedade, por moto próprio ou não,
o homem também se mata facilmente quando é por demais integrado a ela.

2.2
O suicídio do tipo altruísta

Praticado pelo indivíduo perfeitamente integrado à própria sociedade, o


suicídio de tipo altruísta é aquele no qual “a razão parece estar fora da própria
vida”. Nele, o motivo da morte voluntária por vezes é considerado louvável o
bastante para ela não ser qualificada como suicídio. Exemplo extremo, mas que,
por isso, mesmo, tomou bastante tempo dos teólogos dos primeiros três séculos da
Igreja: ao caminhar para a morte certa, consciente de ser ela sua missão na Terra,
seria Cristo um suicida? Segundo as idéias de Durkheim, que não o menciona,
mas menciona soldados de todo o mundo, tão destemidos e esquecidos de si
mesmos diante da mortal metralha, criados que perdem chefes no Extremo
Oriente e mulheres que ficam viúvas na Índia, a resposta seria sim. Minois (1995,
27

p. 35) aponta para o discreto elogio bíblico à morte voluntária inclusive nas
palavras de Cristo:

O cristianismo nasce e se desenvolve numa atmosfera ambígua,


afirmando que esta vida terrestre, no “mundo”, é odiosa e que
se deve aspirar à morte para reencontrar Deus e a vida eterna.
Esta tendência vem claramente dos primórdios da Igreja. Em
São João, a ambigüidade é tal nos ensinamentos do Cristo que
em certos momentos os judeus crêem que Jesus vai se suicidar:
“Jesus lhes repete ainda: ‘Eu me vou: vocês me procurarão e,
entretanto, vocês morrerão em seus pecados. Lá onde vou,
vocês não podem ir.’ Os judeus se perguntaram então: ‘Terá ele
a intenção de se matar? Ele de fato acaba de dizer: Lá onde vou,
vocês não podem ir.’”12

Seja como for, o martírio voluntário dos seus santos foi louvado pela
Igreja até o momento em que interesses terrenos o desqualificaram como nobre o
bastante para elidir seu caráter suicidário: o Império Romano converteu-se ao
cristianismo sob Constantino, no começo do século IV. A partir desta época, a
condenação tanto religiosa quanto civil ao suicida vai se tornando mais severa, até
atingir as sádicas penas impostas aos corpos dos suicidas durante a Idade Média:
para a Igreja, matar-se por desespero era desprezar o poder da penitência, isto é, o
seu poder; para o Estado, matar-se era privar o império de novos súditos e
soldados numa época em que a baixa natalidade romana favorecia os bárbaros.
Em Tabu da morte, Rodrigues explicita:

O interesse do poder pela vida dos homens é também


apropriação da morte deles. Poder algum admite a liberdade de
suicídio. Vê nela uma afronta perigosa e intolerável: a vida e a
morte do escravo pertencem ao senhor. (1983, p. 107).

12
Le christianisme naît et se développe dans une atmosphère ambiguë, affirmant que cette vie ter-
restre, dans le “monde” est haïssable et qu’il faut aspirer à la mort por rejoindre Dieu et la vie éter-
nelle. Cette tendance l’emporte nettement dans les débuts de l’Église. D’aprés saint Jean,
l’ambiguïté est telle dans l’eiseignement du Christ qu’à certains moments les Juifs croient que Jé-
sus va se suicider: “Jésus leur redit encore: ‘Je m’em vais: vous me chercherez et néanmois vous
mourrez dans votre péché. Là où je vais, vous ne pouvez aller.’ Les Juifs se dirent alors: ‘Aurait-il
l’intention de se tuer? Il vient em effet de dire: Là où je vais, vous ne pouvez aller.’”
28

O caráter libertário do suicídio em termos eloqüentes, válidos tanto para a


sociedade romana quanto para a nossa, não impede que, noutras circunstâncias,
ele também seja apropriado pelo poder, que incita à sua prática.

Se o poder incute nos parentes de um suicida um certo


sentimento de vergonha, e se, de acordo com as culturas,
decreta a impureza ritual deles, aqueles que se deram morte em
nome dos valores cultuados pela coletividade, os suicidas
altruístas, são dignos, não obstante, de respeito comunitário e
credores de solenes homenagens e recompensas. O poder, às
vezes, institucionaliza o suicídio, retirando de circulação social
os indivíduos que cessaram de rentabilizar em seu favor e em
favor de sua reprodução. É o caso dos esquimós, que já
evocamos, que acreditam que um homem, oferecendo sua vida,
poderia salvar a de seu filho ou de seu neto. (RODRIGUES,
1983, p. 109).

Como se vê, o suicídio altruísta nem é exclusividade cristã e nem é


puramente religioso: a religião é o pretexto para ações drásticas neste mundo. Isso
é visível no judaísmo (os 960 mártires da cidadela rochosa de Massada, que se
mataram para não cair nas mãos dos romanos, em 73 d.C., são considerados heróis
mesmo pelo historiador Flavius Josefus, pessoalmente hostil à morte voluntária) e
no islamismo (em pleno século XXI, àqueles que morrem pela jihad, a “guerra
santa”, ainda são prometidas benesses no além-túmulo, além de assegurarem a
sobrevivência de suas famílias no aquém-túmulo13). Ambas são religiões que, tal
como o cristianismo, em outras circunstâncias condenam enfaticamente o suicídio,
reservando para o enterro do morto um canto retirado dos seus cemitérios,
próximo a um muro, por exemplo – um não-lugar. Roosevelt M.S. Cassorla,
médico e psiquiatria chileno radicado no Brasil, expõe a contradição em O que é
suicídio:

Ora, se as religiões oferecem tanto após a morte, e se algumas


vêem até a passagem na terra como um ritual de sacrifícios, por
que, então, não acelerar a chegada aos céus, suicidando-se?
Creio que por trás desse problema repousa o horror que as
religiões em geral têm ao suicídio individual. Ainda que elas
próprias possam estimulá-lo em situações especiais como

13
Recentemente, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, instituiu uma mesada
para as famílias dos terroristas suicidas, tratados como shahids (mártires), a maior honraria da fé
islâmica, reservada àqueles que morrem por Deus.
29

aconteceu nas cruzadas católicas e acontece nas guerras santas e


nos suicídios de islâmicos, com as bênçãos dos sacerdotes.
(CASSORLA, 2005, p. 51-52).

Num livro sobre juros, O valor do amanhã, Eduardo Giannetti busca


mostrar como a idéia de poupar agora para usufruir depois não se esgota nos
limites do mercado financeiro: os juros aparecem onde e quando quer que alguém
troque o benefício futuro pelo prazer imediato. Neste particular, as cinco
principais religiões mundiais, são variações sobre o mesmo tema duplo. Para
cristianismo, judaísmo, islamismo, budismo e hinduísmo, a morte biológica não é
o nosso fim definitivo/o nosso pós-morte será determinado por nossas ações em
vida.

A natureza essencialmente econômica do contrato “renúncia


agora, paraíso depois” não passou despercebida dos primeiros
teólogos cristãos. (...) Se a peregrinação terrena é um vale de
lágrimas e a bem-aventurança infinita é o prêmio dos que se
entregam de corpo e alma ao chamado da fé, então por que
adiar o momento da eterna e merecida recompensa? A
proliferação do martírio e a prática do suicídio coletivo se
tornaram uma ameaça de tal ordem ao rebanho que as
autoridades religiosas se viram compelidas a intervir. Somente
a partir daí, no século IV d.C., é que se declarou o suicídio um
“pecado mortal”, capaz de condenar à danação eterna quem o
pratica. (Por um caminho semelhante, ao que parece, o
islamismo foi levado a proscrever o suicídio, não obstante os
episódios isolados de “martírio” que, aos olhos atônitos da
humanidade incrédula, não são mais que terrorismo travestido
do halo de uma “guerra santa”.) (GIANNETTI, 2005, p.
118/120).

E, de seu final de século XIX, Durkheim não poderia mesmo vislumbrar


um exemplo extremado do tipo de suicídio que associava aos soldados, homens
altamente integrados socialmente: o camicase que se matava pelo Japão e pelo
imperador Hiroíto durante a Segunda Guerra Mundial. Considerado um deus vivo,
o monarca era a entidade que formalmente requisitava o sacrifício da vida dos
seus súditos – milhares de jovens arremessaram seus aviões, especialmente
preparados ou não, contra os navios dos EUA; mini-submarinos também foram
usados – para manter-se puro e intocado pelos infiéis americanos. No processo,
suas vidas também realimentavam a fornalha da oligarquia militar que dominava o
30

Japão na época. Suicídios cívicos, no entanto, não são apanágio oriental. Um dos
heróis nacionais holandeses é um oficial de Marinha do século XIX que, vendo
seu navio tomado pelos rebeldes belgas que buscavam a independência, não
hesitou em atirar no paiol e matar a todos: ele próprio, seus companheiros, os
invasores. A eles, nipônicos ou batavos, se aplica o que o sociólogo escreve:

Para que a sociedade possa assim coagir alguns de seus


membros a se matar, é preciso que a personalidade individual,
então, tenha muito pouca importância. Pois, assim que ela
começa a se constituir, o direito de viver é o primeiro que
reconhece; pelo menos, ele só é suspenso em circunstâncias
muito excepcionais, como a guerra. Mas essa fraca
individuação, por sua vez, só pode ter uma causa. Para que o
indivíduo tenha tão pouco espaço na vida coletiva, é preciso
que ele seja quase totalmente absorvido no grupo e, por
conseguinte, que este seja muito fortemente integrado. Para que
as partes tenham tão pouca existência própria, é preciso que o
todo forme uma massa compacta e contínua. (DURKHEIM,
2000, p. 274).

Nota-se, já aqui, o contraste entre a figura do soldado de “fraca


individuação”, que morre pela pátria, inocente de seu suicídio altruísta, e o artista
apartado dos outros homens pela necessariamente exuberante “personalidade
individual”, que sucumbe diante da própria sensibilidade, culpado de seu suicídio
egoísta. A morte é uma só, mas a sociedade a trata distintamente, conforme a
causa.

2.3
O suicídio do tipo anômico

O terceiro tipo de suicídio isolado por Durkheim, o anômico, conquanto


guarde semelhanças com o egoísta (pelo desacerto do indivíduo que o pratica com
a sociedade) e com o altruísta (porque, ainda assim, é a sociedade que o impele a
se matar) configura algo distinto. Porque, nas palavras do sociólogo, “depende,
não da maneira pela qual os indivíduos estão ligados à sociedade, mas da maneira
pela qual ela os regulamenta” (p. 328). Na verdade, a anomia é a ausência de lei
ou de regra, uma desregulamentação da rotina que rege a vida do cidadão – mais
comumente para pior, mas às vezes também para melhor (por exemplo, pela falta
31

de dinheiro ou pela incapacidade de saber como usar seu excesso), em ambos os


casos, contudo, instabiliza seu lugar na sociedade. Nas palavras de Durkheim:

Se, portanto, as crises industriais e financeiras aumentam os


suicídios, não é por empobrecerem, uma vez que crises de
prosperidade têm o mesmo resultado; é por serem crises, ou
seja, perturbações da ordem coletiva. Toda ruptura de
equilíbrio, mesmo que resulte em maior abastança e aumento da
vitalidade geral, impele à morte voluntária. Todas as vezes que
se produzem graves rearranjos no corpo social, sejam eles
devidos a um súbito movimento de crescimento ou a um
cataclismo inesperado, o homem se mata mais facilmente.
(ibidem, p. 311)

Lembremo-nos: Durkheim escreve nos estertores do século XIX, uma fase,


ao menos do nosso ponto de vista, bem pouco avançada do capitalismo, uma fase
ainda associada à sua forma colonialista. Ele antevê os fenômenos econômicos (e,
por isso, condicionantes de fenômenos culturais) que, um século depois, começou-
se a experimentar em larga escala sob os nomes de neoliberalismo ou
globalização, ao escrever, na análise das visões de “economistas ortodoxos e
socialistas extremados”, igualmente, do papel regulador do Estado. Para
Durkheim, “declara-se que as nações devem ter como único ou principal objetivo
prosperar industrialmente; é isso que implica o dogma do materialismo
econômico, que serve igualmente de base a esses sistemas, aparentemente
opostos” (p. 324).
Em Mundialização e cultura, Renato Ortiz, ao meditar sobre o legado do
historiador e economista Karl Polanyi, autor de A grande transformação [1944],
concorda que é justamente no século XIX, do qual o livro de Durkheim
testemunha o final, que surge a idéia de um “mercado auto-regulável”, hoje vaca
sagrada de nove entre dez economistas. “Até então as partes de um mesmo país
encontravam-se desarticuladas, e não se vinculavam de maneira orgânica com o
‘sistema mundial’”, escreve Ortiz. “A ‘grande transformação’ é que elas passam
agora a participar de uma entidade específica; o que era diverso e díspar pode
integrar uma realidade auto-regulada” (p. 42). Como, porém, a auto-
regulamentação deste mercado global nascente tem muito pouco a ver com a dos
mercados locais tradicionais, ainda que o indivíduo ganhe montanhas de dinheiro
está sujeito à sensação de desamparo, de perda de referenciais e de identidade – à
anomia.
32

Durkheim proclama ser a anomia um fator regular e específico de suicídios


nas sociedades modernas, “uma das fontes em que se alimenta o contingente
atual” (p. 328). É lícito supor que desde então, com a vitória ao menos
circunstancial da economia de mercado, o tipo anômico de suicídio tenha
encorpado e passado a prevalecer nas estatísticas, tornando-se, por conseguinte,
também o principal fornecedor de casos para o presente estudo. Porque, como
nota Ortiz, “a constituição da nação como totalidade integrada (seja enquanto
mercado como queria Polanyi, seja como consciência coletiva) implica a
reformulação do próprio conceito de espaço” (p. 44). Portanto, não é outro senão
um cenário anômico o descrito como o do surgimento da nação, entidade
percebida como atemporal mas cujo sentido a História segue alterando:

O espaço é sempre representado como um circuito fechado


sobre si mesmo, um país sendo composto de vasos não
comunicantes. A nação rompe com o isolamento local. Os
homens que viviam marcados pela realidade de seus paeses, de
suas províncias, são integrados a uma entidade que os
transcende. O camponês, o operário, o citadino deixam de se
definir pela sua territorialidade imediata para se transformarem
em francês, inglês ou alemão. Nesse sentido, a formação da
nação pode ser lida como um processo de desenraizamento. A
cultura nacional pressupõe um grau de desterritorialização,
liberando os indivíduos do peso das tradições geograficamente
enraizadas. (ORTIZ, 1994, p. 44-45).

Durkheim era um pessimista. Olhava em volta e tudo o que via era a erosão,
pelos sucessivos impactos da revolução, da industrialização e da secularização,
daquilo que o homem europeu ocidental do século XIX entendia como “o seu
papel”. Tornado ignorante dele, sua saída então já era a excessiva invidualização:
nela, o sociólogo enxergava as causas tanto das correntes suicidárias quanto de
outras manifestações de desorganização e alienação. Ou, como Robert A. Nisbet
escreve em The sociological tradition [1966]: “O que de fato é característico do
nosso desenvolvimento, Durkheim sugeriu, é que ele sucessivamente destruiu
todos os contextos sociais estabelecidos” (p. 300). Em troca, nada teria sido criado
para substitui-los. Pode-se argumentar, com Ortiz, que houve, sim, uma rápida
substituição, das referências locais pelas nacionais – e logo destas pelas
transnacionais (como é o caso, por exemplo, da União Européia). Entretanto, isso
não muda o fundamental: a anomia paradoxalmente tornou-se a regra.
33

2.4
Anomia e pós-modernidade

Se a cultura nacional marcava um rompimento com aquela que Marx dizia14


oprimir como um pesadelo o cérebro dos vivos, uma nova cultura mundializada
marca também o surgimento de novos tipos de pesadelo, no qual o
desenraizamento e a desterritorialização, bem como a crescente competitividade
ritualizada como um culto à vaca sagrada do “mercado auto-regulável”,
desempenham papel muito importante. No âmbito da cultura, mais
especificamente, o período marca o surgimento da modernidade, logo superada
por uma pós-modernidade. No capítulo intitulado “Modernismo e pós-
modernismo” de Era do Vazio, Gilles Lipovetsky busca, precisamente, estabelecer
um marco visível neste terreno pantanoso: quando ou onde, afinal, terminou um e
começou o outro?
O modernismo, Lipovetsky qualifica como “uma cultura radicalmente
individualista e extremista, no fundo suicidária, que afirma a inovação como único
valor” (p. 78), uma cultura na qual, “pela primeira vez na história, o ser
individual, igual a qualquer outro, é percebido e se percebe como fim último, se
concebe isoladamente e conquista o direito à livre disposição de si próprio, que
constitui o fermento do modernismo” (p. 87). E do suicídio, não posso me furtar a
acrescentar. O pós-modernismo, por sua vez, é visto por Lipovetsky como
“prolongamento e generalização de uma das suas tendências constitutivas (do
modernismo), o processo de personalização, e correlativamente pela redução
progressiva de sua outra tendência, o processo disciplinar” (p. 106). O que apenas
torna a opção da morte voluntária ainda mais presente: sem conseguir estabelecer
vínculos com uma sociedade em constante mudança, isolado, o indivíduo
contempla tanto uma vida quanto uma morte em aberto, ambos esvaziados de
sentido.

Do mesmo modo que a arte moderna prolonga a revolução


democrática, prolonga também, a despeito de seu caráter
subversivo, uma cultura individualista já presente aqui e além
em numerosos comportamentos da segunda metade do século

14
Cf. p. 44 .
34

XIX e começos do século XX: citemos, sem ordem, a busca do


bem-estar e dos gozos materiais já assinalada por Tocqueville, a
multiplicação dos “casamentos de inclinação” decididos por
amor, o gosto nascente pelo desporto, a esbelteza e as danças
novas, a emergência de uma moda vestimentar acelerada, mas
também o aumento do suicídio e a diminuição das violências
interindividuais. O modernismo artístico não introduz uma
ruptura absoluta na cultura; completa, na febre revolucionária, a
lógica do mundo individualista. (LIPOVETSKY, 1983, p. 83).

Neste mundo onde, para recitar Marx via Marshall Berman, tudo o que é
sólido desmancha no ar, o homem enfrenta contínuas experiências de ruptura de
equilíbrio – pessoais, familiares, financeiras, sociais, geográficas. Sua sensação de
desarraigamento se dá não apenas entre país e país, mas dentro do espaço mesmo
daquilo que outrora ele entendia como “sua cidade”. Perdido em megalópoles
cada vez maiores, o indivíduo olha em volta e tudo o que enxerga é anomia; literal
e metaforicamente, ele perdeu os pontos de referência. Está mais exposto que
nunca à tentação da morte voluntária do terceiro tipo, tal como isolado por
Durkheim. Não deixa de ser ironia perversa da História que contribua para a
percepção de anomia geral a espetacular visibilidade do suicídio do segundo tipo,
o altruísta, praticado em nome de uma causa além da vida, o Islã, no 11 de
setembro de 2001.
O gigantismo das cidades e das malhas físicas de comunicação gera outra
idéia interessante na tentativa de conceituação de uma pós-modernidade, a de não-
lugares. Para Marc Augé, eles são (mais uma) fonte geradora de perdição porque,
como escreve em Não-lugares – Introdução a uma antropologia da
supermodernidade, “são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada
das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os
próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os
campos de trânsito prolongado onde são estacionados os refugiados do planeta”
(2004, p. 36). Nesses lugares, ou melhor, nesses não-lugares, o homem não mais
se reconhece. Jogado no mundo sem regras ou norte, a tentação de partir para
outro não-lugar aumenta.
Volta e meia, ainda que discretamente, alguma notícia menciona alguém
que decidiu pular de um viaduto ou abraçar um trilho eletrificado. Em 2004, uma
pequena nota publicada no jornal “Folha de S. Paulo” anunciava o propósito da
empresa mantenedora do metrô da capital paulista de instalar portas de material
35

transparente nas plataformas das estações a fim de prevenir suicídios. Como


ocorre na mais moderna linha do metrô de Paris, a 14, que liga a Madeleine à
Bibliotèque François Miterrand, as portas nas plataformas só se abrem quando os
trens estão parados com suas próprias portas abertas nas estações. Naturalmente,
tal tipo de cuidado não seria necessário se a idéia de se matar sob a terra não
passasse pela cabeça de nenhum habitante das megalópoles.
A análise que Fredric Jameson faz da arquitetura de um hotel em Los
Angeles, o Westin Bonaventure, projetado pelo arquiteto John Portman, , no
capítulo primeiro, “A lógica cultural do capitalismo tardio”, de Pós-modernismo,
fornece mais um tijolinho teórico para a construção de um panorama anômico e,
logo, suicidário. O prédio se propõe, qual outras obras pós-modernas, um “espaço
total”: quatro torres rigorosamente simétricas, entradas da rua discretas,
elevadores panorâmicos voltados para dentro, integração interna com um
shopping center – e sugere ao crítico cultural americano “uma experiência brutal
de desorientação, algo como a vingança desse espaço contra os que ainda tentam
andar nele” (p. 70).

(...) Essa última mutação do espaço – o hiperespaço pós-


modernista – finalmente conseguiu ultrapassar a capacidade do
corpo humano de se localizar, de organizar perceptivamente o
espaço circundante e mapear cognitivamente sua posição em
um mundo exterior mapeável. Pode-se sugerir agora que esse
ponto de disjunção alarmante entre o corpo e o ambiente
construído – que está para o choque inicial do modernismo
assim como a velocidade da nave espacial está para a do
automóvel – seja visto como um símbolo e um análogo daquele
dilema ainda mais agudo que é o da incapacidade de nossas
mentes, pelo menos no presente, de mapear a enorme rede
global e multinacional de comunicação descentrada em que nos
encontramos presos como sujeitos individuais. (JAMESON,
2002, p. 70-71).

Talvez não seja, uma vez mais, o caso de vivermos a simples destruição
dos contextos (sociais, arquitetônicos, espaciais, mentais etc.) estabelecidos e sim
da sua acelerada substituição por novos padrões criados a gosto do capitalismo
mundializado. Ortiz exemplifica com o espelhamento, na miscelânea internacional
de seus empregados, da irrelevância nacional das corporações e do
desenraizamento de seus produtos. Isto criaria em seu ventre a noção de “sistema
de valores universais”, capaz de dar conta de unidades de produção tanto nos
36

EUA quanto na Indonésia. “Ela soldaria seus membros como consciência coletiva
de tipo durkheimiana, moral condizente com a eficácia global e, claro salvadora
dos homens”, escreve Ortiz (p. 154). Estaríamos, hoje, sendo ressocializados
segundo esta nova concepção.

2.5
A reabilitação da comunidade

Tendo-se isso em mente, torna-se menos estranho que nunca se tenha falado
tanto em comunidade, espécie de unidade-padrão da vida social na Idade Média.
A reabilitação desta idéia, no entanto, nada tem de pós-moderna. Ela remonta ao
início do século XIX quando começou a haver, por parte dos estudiosos da vida
em sociedade (talvez não seja acurado chamá-los, naquele momento, de
sociólogos), uma reação à exaltação dos iluministas ao contrato social. Na visão
destes, a nova sociedade racional deveria ser, por definição, o oposto da sociedade
tradicional. Assim, ela seria baseada no homem não como artesão, fiel ou
camponês e sim como homem “natural”. Segundo Nisbet, ela “deveria ser
concebida como um tecido de relacionamentos específicos e voluntários em que
os homens livre e racionalmente entram uns com os outros” (p. 49). Para os
críticos dos iluministas, porém, o contrato não fazia sentido como mera comunhão
de interesses porque também eles se relacionavam a algo externo, que lhes dava
valor – a comunidade.
Tomando o partido da segunda no embate societas versus communitas,
Auguste Comte, por exemplo, via a restauração da comunidade como um
problema de urgência moral. Não tão conservador, embora compartilhando com o
pai do Positivismo alguns pontos de vista, Durkheim lembrava a origem comunal
da própria concepção humana de universo e ressaltava que tudo aquilo que se
eleva acima do nível do fisiológico é social, ou seja, humano.

Em Durkheim, nós achamos a idéia de comunidade usada não


somente substantivamente, como em Le Play, não somente
tipologicamente, como em Tönnies, mas também
metodologicamente. Isto é, nas mãos de Durkheim a
comunidade se torna uma moldura de análise dentro da qual
questões como moralidade, lei, contrato, religião e mesmo a
37

natureza da mente humana ganham novas dimensões de


entendimento. (NISBET, 2004, p. 82).15

O primado da comunidade tem conseqüências interessantes em todo o


trabalho de Durkheim, inclusive na relação estabelecida entre os tipos de suicídio
e a vida social, em particular o anômico. Antes mesmo de escrever O suicídio, ele
já mencionara o tema da morte voluntária em Da divisão do trabalho social
[1893] por sua relação com períodos de desintegração social. Isto se dá porque,
segundo Nisbet, a anomia durkheimiana é, em síntese, uma quebra na comunidade
moral exatamente como o egoísmo é uma quebra na comunidade social.
Logo, o seu apreço pelo sentido tradicional de comunidade permite-lhe ter
uma compreensão mais profunda do fenômeno religioso, encarado pelos
iluministas e por seus sucessores utilitaristas como mera crendice. Durkheim
percebia que havia algo de eterno na religião, ou melhor, que o religioso-sagrado
era uma ferramenta importante para o entendimento de manifestações sociais
claramente não-religiosas. Em As formas elementares da vida religiosa [1921],
escreveu que “o sentimento unânime de crentes de todos os tempos não pode ser
ilusório”.
O respeito agnóstico devotado por Durkheim à questão fez, inclusive, que
ele entendesse a própria pressão social, justamente aquela que recrimina ou incita
ao suicídio, como sagrada. Neste ponto, ele se aproximava de Alexis de
Tocqueville, que, no segundo volume de Da democracia na América [1840],
escreveu:

Nos Estados Unidos, a maioria encarrega-se de fornecer aos


indivíduos um completo elenco de opiniões já prontas,
dispensando-os da obrigação de as formularem por conta
própria. Grande é o número que existe de teorias em matéria de
filosofia, moral e política, que cada um adota sem exame e só
pela fé do público. E se olharmos bem, de perto, veremos que a
própria religião ali reina menos como doutrina revelada do que
como opinião comum. Sei que as leis políticas dos americanos
são feitas para que a maioria governe soberanamente a
sociedade, o que aumenta bastante o domínio que ela
naturalmente exerce sobre a inteligência. Pois, nada mais

15
In Durkheim we find the idea of community used not merely substantively, as in Le Play, not
merely typologically, as in Tönnies, but also methodologically. That is, in Durkheim’s hands
community becomes a framework of analysis within such matters as morality, law, contract, relig-
ion, and even the nature of the human mind are given new dimensions of understanding.
38

familiar ao homem do que reconhecer uma sabedoria superior


naquele que o oprime. (TOCQUEVILLE, 1998, p. 183-184).

A confluência de religião e opinião comum, de sagrado e de profano,


compartilhada pelos membros da reação ao utilitarismo do Iluminismo, de Comte
e Tocqueville em diante, encontra outro pensador importante em Georg Simmel.
Ele comunga da idéia de Durkheim de que o comportamento religioso não está
presente apenas em assuntos religiosos, mas também, por exemplo, no amor de
um filho por seus pais, no de um patriota por seu país (o que, podemos concluir,
abarca a devoção dos camicases por Hiroíto, por exemplo) ou no de um
cosmopolita pelo Humanidade inteira – “naturezas religiosas sem uma religião”.
Simmel acredita que sem esse sentimento a sociedade tal como a conhecemos
nem mesmo conseguiria existir, pois a fé num indivíduo ou na coletividade é um
dos mais poderosos fatores de coesão social. Simmel sintetiza este sentimento na
palavra “piedade”, cujo sentido parece abarcar, qual o rahamin hebraico, justiça e
bondade.

Esta moldura mental emocional em particular pode talvez,


falando de maneira geral, ser definida como piedade. Piedade é
uma emoção da alma que se torna religião quando quer que se
projete em formas específicas. Aqui, deve ser notado que pietas
significa a atitude pia diante tanto do homem quanto de Deus.
Piedade, que é religiosidade em um estado quase fluido, não vai
necessariamente coalecer numa forma estável de
comportamento em face dos deuses; i.e, numa religião. (apud
NISBET, ibidem, p. 262-263).16

Recapitulando: de acordo com Durkheim, todo suicida mantém uma


relação com sua sociedade – “simplesmente comunidade escrita por extenso”, nas
suas palavras – mesmo quando seu gesto à primeira vista parece afastar-se dela ou
até mesmo renegá-la. Segundo o sociólogo, o suicida de tipo egoísta não está
integrado suficientemente à sociedade. O altruísta, ao contrário, está integrado
demais a ela (seja religiosa, doméstica ou politicamente). E o anômico já não a
reconhece como sua. É razoável, portanto, supor que sendo os meios de

16
This particular emotional frame of mind can perhaps, generally speaking, de defined as piety.
Piety is a an emotion of the soul which turns into religion whenever it projects itself into specific
forms. Here it should be noted that pietas means the pious attitude towards both man and God.
Piety, which is religiosity in a quase-fluid state, will not necessarily have to coalesce into a stable
form o behavior vis-à-vis the gods; i.e., into religion.
39

comunicação importantes fatores de integração social, a sua análise no presente


nos revele algo semelhante ao que observou Durkheim ao fim do século XIX.
Afinal, em que pesem terem se passado 109 anos desde a publicação de O
suicídio, uma das características apontadas para a taxa social de mortes
voluntárias é justamente a sua regularidade com viés de alta, para usarmos o
jargão econômico. Além da ênfase dada por Durkheim ao papel que a urbanização
desempenha sobre o número de suicídios, seja diretamente, pela correspondência
entre grandes cidades abastadas e grandes taxas, seja indiretamente, pelo aumento,
nelas, da interação social que induz à decisão de se matar, há um ponto do seu
trabalho que me parece particularmente relevante para o estabelecimento de uma
relação entre a imprensa e o suicídio: é o seu próprio uso da palavra contágio.
Durkheim chega a afirmar que “o suicídio é eminentemente contagioso” (p.
90) ou “não há dúvida que a idéia de suicídio se transmite por contágio” (p. 140),
além de batizar um capítulo de O suicídio como “A imitação”. Como sempre,
antes de dar nome às coisas, ele gosta de precisá-las o máximo possível, “fixar o
uso das palavras”, como diz, pois sabe que não raro terá de separá-las de seu
significado corriqueiro ou isolar uma de suas acepções – e não pretende ser mal-
interpretado pelos leitores. Portanto, quando se refere a “contágio” ou “imitação”,
Durkheim não está, é óbvio, sugerindo a existência de um vírus do suicídio ou que
as pessoas se matem apenas para imitar as outras, mas que a psicologia individual
é suscetível a influências exatamente por estar inserida num contexto social. O
contágio é metafórico. Em outras palavras: os indivíduos preenchem tendências.
Entre os exemplos franceses por ele arrolados deste tipo de manifestação
está o caso de 15 inválidos que, em 1772, se enforcaram em pouco tempo num
mesmo gancho colocado num corredor escuro de hospital (retirado o gancho, a
mortandade cessou) e o dos sentinelas que sucessivamente estouraram os miolos
com suas armas numa mesma guarita do acampamento militar de Boulogne
(queimada a guarita, a mortandade cessou). Se o contágio ou a imitação se dá
entre indivíduos sem parentesco, embora circunstancialmente próximos, haverá de
se dar também entre indivíduos ligados pela hereditariedade. Aqui, mais uma vez,
cabe frisar que Durkheim não está a sugerir que exista um gene do suicídio. Ao
contrário, o nexo sangüíneo é visto como acidental, secundário, até porque o
modus operandi também tende a se repetir dentro das famílias, o que ridiculariza
40

qualquer tentação de se achar que o suposto gene suicida sugere até um método. O
principal fator, portanto, continua sendo a imitação, na acepção durkheimiana.

Muitas vezes, nas famílias em que se observam fatos reiterados


de suicídio, estes se reproduzem de maneira quase idêntica.
Além de ocorrerem na mesma idade, são executados da mesma
maneira. Aqui o enforcamento é privilegiado, ali a asfixia ou a
queda de lugar alto. Em um caso citado com freqüência, a
semelhança vai ainda mais longe: uma mesma arma serviu a
uma família inteira, e com muitos anos de intervalo. Pretendeu-
se ver nessas semelhanças uma prova em favor da
hereditariedade. (ibidem, p. 91).

Durkheim então insiste na desqualificação (cf. p. 24) do suicídio vesânico,


isto é, do suicídio como decorrência “natural” da loucura, da alienação mental:

No entanto, se há boas razões para não considerar o suicídio


uma entidade psicológica distinta, é muito mais difícil admitir
que haja uma tendência ao suicídio por enforcamento ou por
pistola! Esses fatos não demonstrariam antes o quanto é grande
a influência contagiosa exercida sobre o espírito dos
sobreviventes pelos suicídios que já ensangüentaram a história
de sua família? Pois é preciso que essas lembranças os obsedem
e os persigam para determiná-los a reproduzir, com fidelidade
tão exata, o ato de seus antecessores. (ibidem, p. 91).

Impossível não lembrar das palavras de Marx no começo de O 18


Brumário de Luís Bonaparte [1852], quando explica que os homens, conquanto
façam sua própria história, fazem-na não a seu bel prazer e sim sob as
circunstâncias que lhes foram legadas pelo passado. “A tradição de todas as
gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”, escreve. Para
Marx, justamente quando estão – ou parecem estar – empenhados numa crise
revolucionária, na revolução de si mesmos e das coisas, “os homens conjuram
ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes emprestado os
nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar-se nesta linguagem
emprestada” (p. 327).
A fidelidade familiar às vezes não está nem no modus operandi, mas em
algum outro detalhe do suicídio, numa “linguagem emprestada”. A atriz Margaux
Hemingway, por exemplo, matou-se com uma superdose do barbitúrico Klonopin
aos 41 anos, em 2 de julho de 1996. Trinta e cinco anos antes, exatamente, a 2 de
41

julho de 1961, seu avô, o escritor Ernest Hemingway matou-se, a dias do seu 62º
aniversário, disparando sua espingarda de dois canos contra a cabeça.
Sobre Hemingway, Hunter S. Thompson escreveu, para a revista National
Observer de 25 de maio de 1964, um texto que terminava com a seguinte frase:
“Então, finalmente, e pelo que ele deve ter achado ser a melhor das razões, ele
terminou tudo com uma espingarda de caça” (2004, p. 151). Outras três pessoas
da família do escritor cometeram suicídio: a irmã, o irmão e o pai de Ernest.

2.6
Dois casos clássicos: Pavese e Levi

Recorro, neste ponto, a dois casos clássicos de contágio – sempre tendo em


mente a acepção durkheimiana do termo – posteriores a O suicídio. Ambos dizem
respeito a dois dos maiores escritores italianos do século passado ou, mais
especificamente, dois dos maiores escritores piemonteses do século passado:
Cesare Pavese e Primo Levi. À primeira vista, suas mortes voluntárias, ambas
consumadas em Turim, respectivamente, em 1950 e 1987, se nos afiguram como
expressões isoladas da vida atormentada de homens que ou desde sempre
contemplaram o suicídio (“Não falta a ninguém uma boa razão para o suicídio”, é
uma das frases de juventude de Pavese) ou perderam a fé mesmo sobrevivendo a
uma situação-limite (Levi passou um ano prisioneiro no campo de extermínio de
Auschwitz, durante a Segunda Guerra Mundial). Suas mortes, no entanto, têm
antecedentes históricos e pessoais que parecem confirmar as conjecturas de
Durkheim.
Pavese nasceu em Santo Estefano Belbo, a 9 de setembro de 1908. A
impossibilidade de escrever livremente sob o governo de Mussolini (no poder
desde 1922) transformou-o no mais importantes tradutor e divulgador da literatura
americana moderna na Itália das décadas de 30 e de 40, sendo o responsável pela
apresentação a seus compatriotas das obras de, entre outros, Herman Melville,
Ernest Hemingway, William Faulkner, John Steinbeck e Sherwood Anderson.
Passou um ano (1935-1936) desterrado em Brancaleone, na Calábria, por conta de
suas atividades antifascistas. Quando saiu, descobriu que a mulher amada casara-
se com outro. Nos três anos finais da Segunda Guerra (1942-1945), viveu entre os
partigiani em luta contra os fascistas italianos e os nazistas alemães nas
42

montanhas do Piemonte. Mais tarde, rompeu com o Partido Comunista Italiano e


deprimiu-se com seguidas desilusões amorosas.
A 26 de agosto de 1950, portanto a poucos dias de seus 48 anos e logo
após haver recebido o prêmio Strega, a maior honraria literária da Itália de seu
tempo, ele ingeriu uma dose fatal de 16 cápsulas de barbitúrico no quarto do Hotel
Roma, em Turim. Uma semana antes, na última anotação de seus diários,
publicados postumamente sob o título O ofício de viver, despediu-se: “Sem
palavras. Um ato. Não vou escrever mais.”
Num artigo sobre Pavese escrito para a Revue des études italiennes, em
1966, e posteriormente incluída na sua coletânea Por que ler os clássicos, seu
compatriota Italo Calvino relacionou o romance A lua e as fogueiras, publicado
em 1950, com a morte do seu autor. No livro, o narrador sem nome (“eu”) retorna
dos EUA, aonde foi ganhar a vida, a fim de conhecer e reconhecer sua terra natal
– apenas para sentir-se, uma vez mais, excluído. Calvino aponta a exclusão como
o tema lírico dominante de Pavese e que, sendo o romance sua obra mais
autobiográfica, o mais cheio de “signos emblemáticos”:

O pesado fundo fatalista de Pavese é ideológico só como ponto


de chegada. A zona cheia de colinas do Baixo Piemonte onde
ele nasceu (“a Langa”) é famosa não só pelos vinhos e trufas,
mas também pelas crises de desespero que golpeiam
endemicamente as famílias camponesas. Pode-se dizer que não
há semana em que os jornais de Turim não noticiem que um
agricultor se enforcou ou se jogou no poço, ou então (como no
episódio que está no centro desse romance) pôs fogo na casa,
dentro da qual estavam ele mesmo, os animais e a família.
(CALVINO, 2004, p. 274).

Se Pavese não se matou pelo fogo, mas nasceu numa região do Piemonte
com alta taxa social de suicídios, seu conterrâneo Primo Levi seguiu fielmente a
cartilha familiar. Levi nasceu em Turim mesmo, a 31 de julho de 1919. Apesar de
judeu, conseguiu formar-se em Química em 1941, já na quadra final do governo
fascista e anti-semita de Mussolini. Tal qual Pavese, decidiu juntar-se aos
partigiani nas montanhas para combater os alemães que ocuparam o seu país
quando do colapso do regime do Duce. Foi preso e despachado para Auschwitz,
onde sobreviveu por um ano (1944-1945) graças à sua utilidade como químico.
A experiência despertou-lhe a necessidade de se expressar literariamente
em memórias, romances e poemas. Sua temporada no inferno rendeu, por
43

exemplo, É isto um homem? [1947] e o périplo de volta a casa que se seguiu à


libertação do campo de extermínio pelo Exército Vermelho deu em A trégua
[1963] – ambos os livros publicados pela editora Einaudi, na qual trabalhou
Pavese. Toda a família de Levi sobreviveu à guerra e, por ocasião do suicídio, sua
mãe, Ester, ainda estava viva, aos 92 anos, embora padecendo de câncer. Ela
estava com uma enfermeira noutra parte do mesmo apartamento quando o escritor
se matou.
Em 11 de abril de 1987, um sábado de Páscoa, aproximadamente às
10h05m, Levi pulou pelo vão da escada do prédio onde residia, no número 75 do
Corso Re Umberto, em Turim: três andares, 15 metros de queda, morte
instantânea ao lado do elevador. Feitos os exames, tomados os depoimentos, só
quase dois meses depois foi declarado oficialmente que Levi se matou. Apesar
disso, e contrariamente ao que aconteceu com Barthes, espalhou-se que o escritor
italiano não cometera suicídio e sim que tão-somente caíra da escada. Serviam de
argumento a essa corrente a passagem de Levi por Auschwitz17 e a inexistência de
uma carta de despedida ou algo assim, diferentemente de, por exemplo, Pavese,
que rabiscou suas desculpas na primeira página de um exemplar de seu Diálogos
com Leucò.
À parte, porém, a depressão relatada em Levi por conta da doença da mãe;
de sua própria doença (ele recentemente operara um câncer na próstata); e as
frases de sua mulher, Lucia, ao chegar ao prédio da família (“Eu temia, todo
mundo temia... Primo estava cansado da vida. Nós fizemos o que podíamos para
nunca deixá-lo só, nunca. Apenas um momento foi o bastante”, citou o jornal
milanês Corriere della Sera, que intitulou melodramaticamente sua reportagem
como “Esmagado pelo fantasma do campo”), há um ponto definitivo a favor da
conclusão do laudo da polícia. Em 25 de julho de 1888, seu avô paterno, Michele
Levi, se matou pulando de uma janela no terceiro andar de um prédio em Turim.
Tinha 40 anos, contra os 67 de seu neto quando este repetiu seu gesto. Quaisquer
que tenham sido os motivos de Primo, fantasmas do passado ou mazelas do
presente, os de Michele eram bem claros: ele acabara de fugir da cidade de Bene

17
Embora possa soar incongruente sobreviver a Auschwitz ou a outro campo de concentração para
se matar mais tarde, não são incomuns suicídios nestas circunstâncias. Sobreviventes do Holocaus-
to, o psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990) e o poeta romeno Paul Celan (1920-1970)
também se mataram.
44

Vagienna, onde morava, depois que o seu banco faliu e enfureceu a população
local.
No epílogo de sua minuciosa biografia de Primo Levi, publicada em 2002,
o jornalista inglês Ian Thomson buscou repercutir o que a Itália de 1987 disse
após o suicídio de um de seus maiores escritores. Ele menciona todas as hipóteses
razoáveis para a decisão (a doença da mãe, o próprio sofrimento físico, a crescente
perda de memória e “a explicação romântica”, Auschwitz) e também algumas das
hipóteses desarrazoadas (mania de perseguição, neo-fascistas ameaçando-lhe com
armas etc.). Thomson registra como “a mais bizarra” a do escritor siciliano
Gesualdo Bufalino. Dias antes do suicídio de Levi, a rede estatal RAI exibira tarde
da noite O inquilino [1976], de Roman Polanski, no qual um judeu franco-polonês
(o próprio diretor interpreta Trelkovsky) pula para a morte de um terceiro andar
em Paris. Para Bufalino, autor de O disseminador da peste, Levi fora
“emocionalmente contagiado” pelo filme (citado por Thomson).18
O jornalista recolhe depoimentos que falam de uma depressão ao mesmo
tempo mais arraigada e mais difusa, como os do livreiro Angelo Pezzana (“Primo
não se matou por causa da sua mãe ou de Auschwitz: foi algo profundamente
dentro dele”); de Luciana Nissim, amiga de Levi que, como ele, sobreviveu a
Auschwitz (“Primo estava fora de si com a desgraça, nenhuma quantidade de
amor de outras pessoas poderiam tê-lo salvo”); e de Anna Maria, irmã caçula de
Levi (“Não foi nada, absolutamente nada”). A partir deles, Thomson escreve:

Há sempre dois suicídios: o real e o que as pessoas acham que


conhecem. Através dos anos, foram feitas estridentes
proclamações públicas de que Primo Levi na verdade não se
matou. Subjacentes a essas tentativas de eximi-lo da “auto-
assassinato” está a crença de que um grande e corajoso homem
não poderia fazer tal coisa. Mas tais homens a fazem, bastante
freqüentemente. (THOMSON, 2003, p. 542).19

18
O protagonista do thriller psicológico de Polanski, por seu turno, aluga o apartamento onde a
antiga inquilina cometeu suicídio e passa a acreditar que o senhorio e os vizinhos – numa conspi-
ração aparentada à de um filme anterior do cineasta, O bebê de Rosemary (1968) – querem trans-
formá-lo na ocupante anterior. Quando pula, então, aliás, quando pula duas vezes, pois na primeira
quebra apenas a perna, Trelkovsky está vestido de mulher, num toque de humor negro.
19
There are always two suicides – the real one, and the one people think they know about. Over
the years strident public claims have been made that Levi did not in fact kill himself. Underlying
these attempts to exonerate him from ‘self-murder’ is the belief that a great and courageous man
could not have done such a thing. But such men do, often enough.
45

Por fidelidade ao ideário racionalista da imprensa, Thomson não acredita


na existência de suicídios de caso pensado. O de Levi teria sido, senão a
conseqüência da loucura rasgada, o efeito de uma perturbação psicológica grave.

Em 1967, Levi escreveu sobre o poeta piemontês Cesare


Pavese: “Ninguém ainda foi capaz de penetrar na razão e nas
raízes do seu suicídio.” E o mesmo deve ser dito de Levi. Seu
suicídio foi provocado por sua depressão clínica, que era
composta por uma complexa teia de fatores. (ibidem, p. 543).20

Durkheim imaginava ter descartado a doença mental como explicação


automática para as mortes voluntárias. Como veremos adiante, esta associação
persiste ainda hoje porque tem raízes profundas. Na “complexa teia de fatores”
mencionada por Thomson, contudo, não haveria espaço para uma combinação dos
suicídios tal como tipificados pelo sociólogo francês? Porque, ao mesmo tempo
em que se matou devido à sua extremada sensibilidade de escritor (egoísta), Levi
também tirou a própria vida por experimentar o horror das iminentes perdas de
referência (anômico), consubstanciadas pela doença fatal da mãe ou pela sua
própria. Tão integrado à vida familiar, ele talvez não tolerasse a idéia da
separação.

2.7
O único problema filosófico sério

Se O suicídio, de Durkheim, é o livro canônico sobre o tema no âmbito da


sociologia, O mito de Sísifo [1942] é o seu similar na área da filosofia. O ponto de
partida de Albert Camus é a noção de Absurdo, que permeia todas as suas obras,
ensaísticas e ficcionais, como o romance O estrangeiro, publicado no mesmo ano
de O mito de Sísifo e da peça Calígula (“os três absurdos”, segundo Camus).
O Absurdo camusiano se manifesta no homem que toma consciência da
morte e percebe-se livre num universo indiferente. É o caso tanto do despótico
imperador romano quando de Meursault, o pied noir que mata um árabe sem saber
por quê. É o caso, ainda, do personagem da mitologia greco-romana que, por sua

20
In 1967 Levi had written of the Piedmontese poet Cesare Pavese: “Nobody has yet been able to
penetrate the reason and the roots of his suicide.” And the same must be said of Levi. His suicide
was provoked by his clinical depression, which was compounded by a complex web of factors.
46

indiscrição, é condenado pelos deuses a rolar uma enorme pedra montanha acima
para todo o sempre: cada vez que chega ao topo, ela rola encosta abaixo e ele
recomeça o seu trabalho. Tarefa que Sísifo executa conformadamente.
Porque, para Camus, o Absurdo só se completa se o homem não fugir dele,
se matando. Ter consciência da própria mortalidade, do Outro, da ausência de
normas sociais dadas a priori, de significados redentores e da inexistência de
Deus joga o homem num mundo inteiramente anômico, sem regras ou sentido.
Sua liberdade, porém, se não se reafirma nem pela dissipação hedonista nem pela
recusa a vivê-lo e sim pela aceitação responsável do Absurdo. Talvez não haja
melhor síntese deste paradoxo do que o título de um de seus romances, A morte
feliz, espécie de rascunho para O estrangeiro publicado postumamente, em 1970.
Para fisgar o leitor sem desmerecer a complexidade do tema, Camus abre O mito
de Sísifo com aquele que é o mais famoso conjunto de frases sobre o suicídio:

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o


suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida, é responder
a uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo
tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias,
vem depois. São apenas jogos; primeiro é necessário responder.
E, se é verdade, tal como Nietzsche o quer, que um filósofo,
para ser estimável, deve dar o exemplo, avalia-se a importância
desta resposta, visto que ela vai preceder o gesto definitivo. São
evidências sensíveis ao coração, mas é preciso aprofundá-las
para as tornar clara ao espírito. (CAMUS, s/d, p. 13).

Com estas palavras, Camus de certa forma concorda com Durkheim, que
dedicou ao suicídio o melhor de seus esforços para estabelecer a sociologia como
uma área autônoma do conhecimento21: não existe, para ambos, assunto mais
urgente. Quase meio século depois da publicação de O suicídio, então, Camus
empreende a sua própria investigação sobre a morte voluntária, sempre tendo
como referência seus vínculos ao Absurdo. Aborda o suicídio filosófico; vê em
Don Juan o exemplo do homem absurdo; evoca Kirilov, de Os possessos, de

21
Nem todos concordam com isso. Para Nisbet, por exemplo, “o primeiro trabalho genuinamente
de sociologia do século” (XIX) é As classes trabalhadoras européias, de Frédéric Le Play, publi-
cado em 1869: “O suicídio, de Durkheim, é comumente encarado como o primeiro trabalho ‘cien-
tífico’ na sociologia, mas em nada diminui o seu feito observar que foi nos estudos de Le Play
sobre tipos de família e comunidade na Europa que se encontrou bem mais cedo (...) um trabalho
que combina observação empírica e inferência crucial – e fazê-lo reconhecidamente dentro dos
critérios da ciência.” (op. cit; p. 61)
47

Dostoiévski, engenheiro que se mata proclamando: “Matar-me-ei para afirmar a


minha insubordinação, a minha nova e terrível liberdade.”
Por fim, o filósofo francês retorna ao personagem mitológico que batiza
seu ensaio para, depois de admitir as razões do suicídio, numa reviravolta abrupta,
sentir a necessidade de uma conclusão encorajadora: “A própria luta para atingir
os píncaros basta para encher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo
feliz” (p. 152). Aqui pode-se, mais uma vez, pensar em Durkheim, prescrevendo
um objetivo externo ao homem para tornar a sua vida suportável. Barthes, numa
polêmica22 travada com Camus em 1955 por ocasião de uma reedição de A peste
[1947], não perdoou-lhe a artificialidade da solução deus ex machina: “Assim
como em O mito de Sísifo, do mesmo Camus, o ponto extremo da lucidez coincide
com o ponto inicial da salvação da alma (terrestre)” (BARTHES, 2005, p. 50).”
Antes de imaginar Sísifo feliz, porém, num capítulo intitulado “A
liberdade absurda”, Camus poeticamente antagoniza a integração ao mundo –
mais até do que à sociedade – e a experiência absurda da solidão – combustível
para idéias e atos suicidas. Ele diz, em outras palavras, que a fusão no coletivo
vacina contra a morte voluntária e, aí, novamente, concorda com Durkheim.

Se eu fosse árvore entre árvores, gato entre os animais, esta


vida teria um sentido, ou melhor, este problema não o teria,
porque eu faria parte deste mundo. Seria este mundo ao qual
agora me oponho com toda a minha consciência e toda minha
exigência de familiaridade. Esta razão é tão irrisória que me
opõe a toda a criação. Não posso negá-la com um risco da
minha pena. (ibidem, p. 67).

A aceitação do Absurdo fez de Camus um desconfiado até mesmo do


termo “existencialista”, sob o qual sempre foi colocado, junto sobretudo com seu
ex-amigo Jean-Paul Sartre. A filosofia existencialista reteve este nome porque
defendia, diferentemente da tradição metafísica ocidental, que a existência
precede a essência, ou seja, que o homem não nasce bom ou mau, mas apenas
seus atos dão um sentido à sua existência. Embora tanto Sartre quanto Camus

22
O pano de fundo da polêmica entre um Camus já consagrado e um Barthes ainda em busca de
afirmação não é muito lisonjeiro para com o segundo: o autor de A peste acabara de sair do Partido
Comunista Francês e o que viria a escrever Fragmentos de um discurso amoroso fazia, ainda ine-
briado pelas certezas do centralismo democrático, o papel de patrulheiro ideológico. A brasileira
Leila Perrone-Moisés, aluna e amiga de Barthes, diz, na apresentação de Inéditos vol. 4 – Política
(2005, XII), que, em sua maturidade, ele se envergonhava do episódio.
48

enfatizassem a responsabilidade decorrente dessa liberdade, o primeiro, até por


seu credo comunista, enxergava um sentido na vida enquanto o segundo, até cedo
ter-se desiludido com os regimes autoritários de esquerda, não fazia fé em
nenhuma transcendência. Daí o seu absurdismo ser uma radicalização do
existencialismo.
Décadas depois, do outro lado do Atlântico, suas idéias podem ser
entreouvidas em algumas declarações de Woody Allen, cujas comédias agridoces
não ocultam um pesado pessimismo. No livro de entrevistas Woody Allen on
Woody Allen [1993], ele declarou a Stig Björkman que os temas existenciais são
“os únicos válidos de se lidar”. Soa como “só há um problema filosófico
verdadeiramente sério”. Mais adiante, ainda falando do filme Crimes e pecados23,
Allen afirma: “Eu penso que na melhor das hipóteses o universo é indiferente. Na
melhor! Hannah Arendt falou da banalidade do mal. O universo é banal também.
E por ser banal, é mau. Não é diabolicamente mau. É mau em sua banalidade” (p.
225).
Se Camus defendia a aceitação do Absurdo, dois quase desconhecidos
compatriotas seus pretenderam, num livro polêmico, ajudar o leitor da fugir desse
enfrentamento. Em Suicídio – Modo de usar [1982], Claude Guillon e Yves Le
Bonniec não se restringiram a discutir – e defender – o direito à morte voluntária:
foram além, fornecendo uma lista de remédios comuns, disponíveis nas farmácias
(inclusive as brasileiras, segundo as orientações do editor local24), e em quais
dosagens eles garantiriam uma morte em paz. Reclamando um caráter
revolucionário para o ato, os autores chegavam a recomendar esta ou aquela
solução. O sonífero não-barbitúrico Mandrax, por exemplo, não era aconselhado
mesmo se tomadas 20 cápsulas de 250 miligramas. Já o barbitúrico Nembutal era
considerado confiável por ter um efeito rápido se consumidos 100 comprimidos
de 100 miligramas. Defensores da racionalidade do suicídio e da individualidade
do suicida, eles rechaçavam a idéia de que ele poderia advir da imitação social.

23
Segundo Allen, no mesmo livro (p. 209), o personagem do filme chamado Louis Levy, um filó-
sofo que se suicida, não foi inspirado em Primo Levi.
24
Quando o livro foi publicado no Brasil, dois anos depois, reportagem na primeira página do
“Segundo Caderno”, do jornal O Globo, assinada por Sheila Kaplan, citava, sem maiores detalhes,
a estatística brasileira de suicídios como a oitava mais alta do mundo, segundo a Organização
Mundial da Saúde: 17 casos em 100 mil pessoas.
49

O suicídio se espalha como a peste, as doenças da alma matam


de modo tão certeiro como as outras. A idéia de contágio é
simples, tranqüilizante, permite visualizar um fenômeno que
seria inexplicável de outra maneira. Além disso, é “científica”.
Na verdade, a medicina, até hoje, sabe muito pouca coisa dos
mecanismos que ela, por comodismo, reúne num mesmo
conceito de contágio. As doenças mais temidas, para não dizer
as mais temíveis, como a sífilis, não se transmitem
automaticamente. A noção de “portador sadio” relativiza
também a parte da fatalidade ligada ao conceito. O “portador
sadio” veicula o vírus, transmite-o eventualmente, sem sofrer
nenhuma perturbação. Cada um de nós é portador de uma
doença ou de centenas delas. Na realidade, a noção de “portador
sadio” contradiz largamente a representação corrente da doença.
Ela vem primeiramente preencher o vazio de um raciocínio
científico incapaz de descrever e muito mais ainda de explicar a
doença. (GUILLON e BONNIEC, 1984, p. 22).

Guillon e Le Bonniec escreviam antes da explosão da Aids. Depois dela,


para explicar o comportamento anômalo do vírus HIV, a medicina mais uma vez
recorreu à idéia do “portador sadio”: a doença só seria despertada ou se ele não
recebesse tratamento preventivo ou se ele mantivesse “comportamentos de risco”,
como sexo desprotegido, vida sexual promíscua ou seringas compartilhadas. Com
a navalha entre os dentes, o soropositivo Cazuza cantou “o meu prazer/ agora é
risco de vida/ meu sex and drugs não tem nenhum rock’n’roll/ vou pagar a conta
do analista/ Pra nunca mais ter que saber quem sou eu” em Ideologia [1988].
Protestava ironicamente porque a ciência se comportava quase como se o
problema com o HIV não fosse a sua existência e a sua letalidade, mas a moral do
portador. Este teria uma cota de risco; se a ultrapassasse, estaria morto.
3
Suicídio e imprensa

Em defesa do tipo muito particular de contágio ou imitação de que nos fala


Durkheim, pode ser dito que não se trata nem de algo inescapável nem de algo
livre de ambigüidade. Isto por mais que seu apreço às palavras o faça sacar
definições de dentro de definições. Em O suicídio, no mesmo parágrafo em que o
sociólogo francês admite que “talvez não haja nenhum fenômeno mais facilmente
contagioso”, ele tenta distinguir entre epidemias morais e contágios morais nos
seguintes termos: “A epidemia é um fato social, produto de causas sociais; o
contágio sempre consiste de ricochetes, mais ou menos repetidos, de fatos
individuais” (p. 142). Ora, se ele é o primeiro a afirmar que tudo o que está acima
do fisiológico é social, não seriam sociais mesmo os fatos individuais? Sua
distinção, portanto, é mesmo etiológica, uma questão estatística.
As epidemias seriam observadas quando existisse, no meio social, uma
“disposição coletiva” para a morte voluntária. Durkheim cita, então, o caso dos
incas e maias que, diante do avanço dos espanhóis, teriam cometido tantos
suicídios que apenas a minoria deles morreu pela espada do invasor europeu.
Poderíamos acrescentar que o mesmo valeria, por exemplo, para os 960 judeus
que preferiram se matar em Massada do que cair nas mãos dos romanos em 73
d.C. ou para os 912 seguidores do reverendo Jim Jones que se suicidaram na
Guiana em 1978. Embora o sentimento de religiosidade – ou melhor, a piedade,
no sentido empregado por Simmel – paire sobre os casos mencionados, todos eles
se relacionam também a questões terrenas, invasões e/ou desmantelamentos.
Logo, se enquadrariam tanto no suicídio de tipo altruísta quanto no de tipo
anômico. O próprio Durkheim admitia a ocorrência de tipos híbridos, compostos
dois a dois.
Já os “ricochetes, mais ou menos repetidos, de fatos individuais” seriam
observados em casos como os de Cesare Pavese e de Primo Levi. Embora
encharcados de motivações pessoais, a rigor insondáveis, ambos se mataram tendo
51

como modelo ou uma predisposição coletiva ou um acontecimento familiar, o que,


mais uma vez, vincula o suicídio a um fenômeno social, tornando-se casos
exemplares. Disso, Durkheim não tem dúvidas, posto que escreve,
involuntariamente ressaltando o caráter genérico de sua distinção entre epidemia e
contágio morais:

Do fato de que o suicídio possa transmitir-se de indivíduo a


indivíduo não se segue a priori que essa contagiosidade
produza efeitos sociais, ou seja, que ela afete a taxa social de
suicídio, único fenômeno que estudamos. Por mais
incontestável que ela seja, é bem possível que tenha apenas
conseqüências individuais e esporádicas. As equações
precedentes, portanto, não resolvem o problema, mas mostram
melhor seu alcance. Se, com efeito, a imitação é, como se disse,
uma fonte original e particularmente fecunda de fenômenos
sociais, é principalmente quanto ao suicídio que ela deve dar
provas de seu poder, pois não há outro fato social sobre o qual
ela tenha maior domínio. Assim, o suicídio irá nos oferecer um
meio de verificar por meio de uma experiência decisiva a
realidade da virtude maravilhosa que se atribui à imitação.
(DURKHEIM, 2000, p. 143).

É a partir deste ponto que Durkheim aborda o possível – mas não


provável, ao menos de seu ponto de vista – papel da imprensa. Afinal, sendo ela
tanto um meio de comunicação social como também um meio de comunicação
entre os indivíduos que a compõem, seria lícito vislumbrar-lhe alguma
importância na transmissão da idéia da morte voluntária. Como trabalha em cima
de tabelas de dados da contabilidade social, ele pensa na distribuição espacial
quando escreve “não pode haver imitação se não há um modelo a ser imitado; não
há contágio sem um foco do qual emane e no qual, por conseguinte, ele tenha seu
máximo de intensidade” (p. 144). No entanto, se a idéia de contágio pode ser
tomada de empréstimo da medicina, as suas palavras também podem ser tomadas
como metáfora, incluindo-se, entre os “centros de irradiação”, os jornais.
Mesmo Durkheim pensa que o contágio no interior da sociedade –
sobretudo aquela sua parcela mais comprimida em grandes aglomerações
populacionais, justamente aquelas em que seus cruzamentos de dados indicam a
maior incidência de suicídios – poderia se dar ou pelo boca-a-boca ou pelos
jornais. Antes de mencionar esta questão, porém, ele busca, mais uma vez, isentar
a imitação per se da acusação de ser a causa isolada de certo número de suicídios.
52

Ele trabalha com a noção de tendência. Porque, destaca, um indivíduo não se


decide pela morte voluntária a menos que já seja predisposto a ela. “O mesmo se
pode dizer dos fatos de contágio tão freqüentemente observados no exército ou
nas prisões”, escreve à página 159. Para Durkheim, tais fatos são facilmente
explicáveis se reconhecermos que “a propensão ao suicídio pode ser criada pelo
meio social”. É, então, em cima de indivíduos já propensos a se matar que a
imprensa agiria. Embora registre a sua freqüente responsabilização, por serem os
jornais, de fato, “um poderoso instrumento de difusão” e admita que o problema
mereça “alguma atenção”, Durkheim se julga incapaz de constatar na prática tal
correlação.

Alguns autores, atribuindo à imitação um poder que ela não


tem, solicitaram que fosse proibida a reprodução dos suicídios e
dos crimes em jornais. É possível que essa proibição consiga
reduzir em algumas unidades o montante anual desses
diferentes atos. Mas é muito duvidoso que ela possa modificar
sua taxa social. A intensidade da propensão coletiva
permaneceria a mesma, pois o estado moral dos grupos nem por
isso se modificaria. (ibidem, p. 159).

Pouco adiante, ele levanta uma hipótese que reputo de extrema


importância para o presente trabalho: o problema não estaria em se falar do
suicídio, mas na modo pelo qual se escolhe falar dele – seria isto, a retórica, a
linguagem emprestada, que criaria ou não um ambiente propício ao contágio
interpessoal.

Na realidade, o que pode contribuir para o desenvolvimento do


suicídio ou do assassínio não é o fato de se falar nele, mas a
maneira pela qual se fala. Onde essas práticas são abominadas,
os sentimentos que despertam traduzem-se através dos relatos
que se fazem delas e, por conseguinte, neutralizam mais do que
excitam as predisposições individuais. (ibidem, p. 160).

Esta sua afirmação se afina com a de Van Dijk sobre a veiculação, nos
textos jornalísticos, de conceitos ou proposições inferidos do senso comum25: ou
seja, não só os temas abordados ou descartados mas também a linguagem utilizada
pela imprensa reflete, pelo fortalecimento das normas, a compreensão que a

25
Cf. p. 22-23.
53

sociedade na qual ela se insere ou a fatia de público ao qual ela se dirige tem do
assunto. Há momentos excepcionais, porém, em que a imprensa pode elevar, ou
ao menos acelerar, a taxa social de suicídios numa determinada comunidade,
contribuindo para o clima geral de anomia. Mesmo neles, porém, ela não criaria
suicidas: excitaria indivíduos por suas próprias razões já propensos a se matar.

3.1
A Golden Gate

A reportagem que Tad Friend publicou na revista New Yorker de 13 de


outubro de 2003, sobre as pessoas que pulam da Golden Gate, entre São Francisco
e o Condado de Marin, na Califórnia, é reveladora. A ponte se tornou um dos
principais pontos turísticos dos EUA e um verdadeiro ímã para suicidas, atraídos
pelo simbolismo que marca um final de mundo/começo de outro. Apesar disso,
relata Friend, há uma estranha recusa das autoridades locais de instalarem telas de
proteção no ponto em que as pessoas se jogam. Outros lugares que funcionavam
como trampolins para a morte – do Empire State Building, em Nova York, à
Basílica de São Pedro, no Vaticano – instalaram barreiras. A Golden Gate, não.
Com a desculpa oficial de que uma tela descaracterizaria a sua arquitetura.
Em ...Or not to be – A collection of suicide notes [1997], Mark Etkind
preenche boa parte de um capítulo, dedicado aos suicídios cometidos em público,
com bilhetes deixados por gente que pulou da Golden Gate. Um deles destaca de
forma dramática a omissão das autoridades locais diante do problema. Deixado
por um homem de 70 anos que ali se matou, ela pergunta: “Por que eles facilitam
tanto para o suicídio? Arame farpado teria salvado um bocado de vidas” (p. 60).
A atração mórbida da Golden Gate parece exercer sua força mesmo bem
distante da Baía de São Francisco. Em 1977, durante uma manifestação a favor da
instalação de barreiras anti-suicídio, falando a seus fiéis, um pastor descreveu a
ponte como “um símbolo humano de ingenuidade, gênio tecnológico e fracasso
social”. Apenas por estar ali, ele disse, já se sentia tentado ao suicídio. Seu nome
era Jim Jones. No ano seguinte, ele liderou o suicídio de outras 912 pessoas na
colônia de sua seita, a Templo do Povo, que fundou Jonestown, segundo ele “um
paraíso cristão-marxista”, na Guiana.
54

Antes, Jones havia andado por Minas Gerais atrás de um refúgio contra a
hecatombe nuclear que o obsedava. Ele se dizia a reencarnação de Jesus Cristo e
de vez em quando testava a obediência dos seguidores com ensaios de suicídios
coletivos. Em novembro de 1978, na pista de pouso da colônia, seus capangas
assassinaram a tiros um deputado americano que havia ido a Jonestown verificar
denúncias de abusos sexuais e escravidão. Antevendo a reação do governo
americano e o desbaratamento da seita Templo do Povo, Jones decidiu antecipá-lo
de forma radical pela auto-imolação coletiva. Seus acólitos tomaram um coquetel
de refresco e cianureto. Ele próprio matou-se com um tiro no rosto.
Friend, em sua reportagem, fala de Marissa Imrie26, uma estudiosa
adolescente de 14 anos que, no dia 17 de dezembro de 2001, saiu de Santa Rosa
(quase 100 quilômetros ao norte) de táxi (numa corrida de US$ 150) para, da
ponte, pular nas águas geladas e cheias de correntes da Baía de São Francisco, 67
metros e quatro segundos abaixo. Quando, depois do salto de Marissa, Renée
Milligan examinou o computador de sua filha, descobriu que ela andara visitando
um site com dicas para aqueles que desejavam se matar, baseado no best-seller
Suicide and attempted suicide: methods and consequences [1999], de Geo
Stone27.
O site desaconselhava tomar veneno (fatal em apenas 15% dos casos) e
cortar os pulsos (meros 5% de eficácia) e recomendava pular de pontes (“saltar de
mais de 80 metros sobre a água é quase sempre fatal”). Nele, Rennée encontrou a
seguinte frase: “A ponte Golden Gate é para os suicidas o que as Cataratas do
Niagara são para as pessoas em lua-de-mel.” Em nome de Marissa, ela entrou com
uma ação contra a repartição pública que cuida da Golden Gate e os
administradores da ponte, pedindo a construção de uma barreira. É pouco
provável que tenha sucesso: anteriormente, três ações similares foram rejeitadas.
Neste contexto, segundo Friend, conforme a contagem de puladores se
aproximava do número 500, em 1973, os jornais locais San Francisco Chronicle e
San Francisco Examiner iniciaram uma contagem regressiva. Quatorze aspirantes
ao título foram impedidos de saltar para a morte no Oceano Pacífico pela polícia.

26
Em seu bilhete de despedida, ela escreveu: “Por favor, perdoem-me. Não se fechem ao mundo.
Todo mundo está melhor sem esta garota gorda, desagradável e chata. Sigam em frente.”
27
O livro hoje encontra-se esgotado na Amazon.com. A loja virtual, no entanto, indica que há qua-
tro exemplares usados à venda, por preços que variam de US$ 999 a US$ 2.475.
55

Um deles, bem pouco discreto, trazia pendurado no pescoço um papelão com o


número 500 escrito a giz. O “vencedor” do macabro torneio, que ironicamente
escapou do registro das câmeras e dos braços dos policiais, foi um hippie que
havia tomado LSD. Em seu bilhete de despedida, coletado por Etkind, ele pedia:
“Não avisem minha mãe. Ela é cardíaca.”
Em 1995, o placar já se aproximava de 1.000 mortes quando um locutor de
rádio de São Francisco chegou a anunciar que mandaria um carregamento de
refrigerantes para a família do milésimo suicida. Em junho daquele ano, a fim de
tentar inibir a corrida à ponte, a policia rodoviária da Califórnia parou de
contabilizar os mortos quando eles já somavam 997. No começo de julho, Eric
Atinkson, de 25 anos, tornou-se não-oficialmente o milésimo suicida: foi visto
pulando, mas seu corpo nunca foi achado. Apenas 1% dos saltadores sobreviveu,
com seqüelas físicas que de fato tornam a morte uma opção mais razoável que a
vida.

Ken Holmes, o coroner28 do Condado de Marin, contou-me:


“Quando o número se aproximou dos 850, nós fomos aos
jornais locais e dissemos ‘Vocês têm de parar de dar números’”.
Durante a última década, os Centros para Controle e Prevenção
de Doença e a Associação Americana de Suicidologia
divulgaram recomendações apelando à mídia para ela
minimizar os suicídios. A mídia da área da Baía de São
Francisco agora noticia saltos da ponte normalmente apenas se
eles envolvem uma celebridade29 ou se congestionam o trânsito.
“Nós os desacostumamos”, disse Holmes. Mas ele acrescentou,
“a falta de publicidade de modo algum reduziu o número de
suicídios.” (FRIEND, 2003, p. 54).30

28
Não existe sinônimo para esta palavra em português: o coroner é uma espécie de promotor pú-
blico encarregado de investigar as mortes violentas, bruscas ou incomuns – antinaturais.
29
Em 1995, um dos que se matou na ponte e teve seu salto noticiado foi Duane Garrett, arrecada-
dor de fundos para o Partido Democrata e amigo do ex-vice-presidente Al Gore. Dois anos antes,
outro suicida ilustre da Golden Gate foi Roy Raymond, fundador da cadeia de lojas de lingerie
Victoria’s Secret.
30
Ken Holmes, the Marin County coroner, told me, “When the number got to around eight hun-
dred and fifty, we went to the local papers and said, ‘You’ve got to stop reporting numbers’”. Wi-
thin the last decade, the Centers for Disease Control and Prevention and the American Association
of Suicidology have also issued guidelines urging the media to downplay the suidices. The Bay
Area media now usually report bridge jumps only if they involve a celebrity or tie up traffic. “We
weaned them”, Holmes said. But, he added, “the lack of publicity hasn’t reduced the numbers of
suicides at all.”
56

Uma constante observada por Durkheim em seu estudo, por sinal, é a de


que todas as taxas sociais nacionais de suicídio sobem lenta mas regularmente. A
Golden Gate foi inaugurada em 1937. Passaram-se três meses até que a primeira
pessoa saltasse31. Passaram-se 36 anos até que o número de suicídios chegasse a
500, em 1973. Passaram-se apenas 22 anos, no entanto, até que o número de
suicídios chegasse ao número 1.000, em 1995. A população de São Francisco,
ressaltado o fato de que, como foi dito, pessoas de outras partes da Califórnia e
dos EUA foram saltar da ponte, não havendo, portanto, correlação direta,
experimentou um crescimento bem mais suave no mesmo período: era de 634 mil
habitantes em 1940, de 715 mil habitantes em 1970 e de 776 mil habitantes em
2000, segundo os dados oficiais do Censo americano.

3.2
Gutenberg quebra o monopólio dos monges copistas

A relação da imprensa com o suicídios, claro, precede em muito a


construção da Golden Gate. De certa forma remonta à própria invenção da
tipografia por Johannes Gutenberg, provavelmente em Estrasburgo, hoje na
França, por volta de 1440.32 Embora o alemão logo tenha posto os seus tipos
móveis de metal a serviço da fé, imprimindo suas famosas 180 Bíblias de 42
linhas compostas por página, involuntariamente também abriu caminho para a
publicação de livros que fizeram circular as visões greco-romanas sobre, entre
outras coisas, a morte voluntária – sem falar na publicação de jornais, que um dia
ampliariam o boca-a-boca da comunidade, relatando (ou não) casos de suicídios.
As visões clássicas eram bem distintas daquelas que, após a conversão do
Império Romano ao cristianismo, no início do século IV, haviam sido
progressivamente fixadas pela Igreja em obras como, por exemplo, a Cidade de
Deus, de Santo Agostinho (354-430), finalizado em 426, e a Suma teológica, de
São Tomás de Aquino (1225-1274), finalizada em 1273. Os escolásticos
buscavam, ao conciliar fé e razão, interpretar a ambigüidade do Quinto
Mandamento da Lei Mosaica, que diz “não matarás”, mas não “não matarás nem a

31
Hoje, em média, uma pessoa pula a cada duas semanas.
32
O tipo móvel já havia aparecido em madeira e argila na China, no século XI, e em cobre na Co-
réia, no século XIV. Não existe conexão comprovada entre Gutenberg e seus colegas orientais.
57

si mesmo”. De tal forma é assim que os suicídios mencionados pela Bíblia não
são, nas palavras de George Minois, “jamais acompanhados de uma reprovação
explícita como à dos assassinatos de outrem” (1995, p. 33)33. Quando Gutenberg
imprimiu a Bíblia no século XV, portanto, valia o interdito que vigora até hoje.
Para Santo Agostinho, formulador da doutrina rigorista que tornar-se-ia a
oficial da Igreja Católica, os que eram culpados de sua morte não teriam acesso à
vida eterna. Para São Tomás de Aquino, o suicídio era proibido por três razões
lógicas e complementares: ele é um atentado contra a natureza e a caridade, pois
contradiz a inclinação natural à vida e ao amor próprio; ele é um atentado contra a
sociedade, porque nós temos um papel a desempenhar dentro de nossa
comunidade; e, por fim, ele é um atentado contra Deus, proprietário de nossa vida.
Para Minois, esta comparação usada por São Tomás de Aquino é reveladora de
sua concepção: “Aquele que se priva da vida peca contra Deus da mesma maneira
que aquele que mata um escravo peca contra o proprietário do escravo”.34 Toda
esta argumentação buscava dar um sentido à vida, resgatando-lhe do absurdo.
Paralelamente às formulações teóricas dos santos-filósofos, tomavam-se
medidas práticas, através do direito canônico, na tentativa de inibir aquilo que até
os anos 1700 era conhecido não por suicídio e sim por “assassinato de si mesmo”.
Na Inglaterra, o Concílio de Hertford proibiu funerais cristãos aos suicidas no
século VII. No final do século X, o pio rei Edgar (959-975), principal
patrocinador de importante reforma monástica, confirmou esta disposição. Do
outro lado do Canal da Mancha, na França, embora a proibição do enterro de
corpos de suicidas nos campos santos remonte ao século anterior, a primeira prova
escrita dela só aparece no Sínodo de Nîmes, em 1284, que recusava a inumação
religiosa aos excomungados, aos hereges e àqueles que se matavam, sem nenhuma
exceção, a menos que o morto tenha dado alguma sinal de se arrepender in
extremis.
A penitência exerce um papel fundamental também na prevenção do
suicídio na Idade Média. Segundo o senso comum, alimentado pela Igreja, havia
apenas duas explicações para uma pessoa desejar a própria morte a ponto de ir ao

33
Minois lembra, entre outros, o suicídio de Saul, que se trespassa com uma espada ao fim de uma
batalha perdida contra os filisteus. O livro de Samuel diz simplesmente: “Saul pegou a espada e se
atirou sobre ela.”
34
Citados por Minois em Histoire du suicide, páginas 38 e 44-45.
58

seu encontro: loucura ou possessão. No primeiro caso, não havia muito a fazer,
exceto, por vezes, absolver o infeliz ou eximir sua família de qualquer culpa ou
cobrança. No segundo caso, porém, o suicida desprezava o poder conferido à
Igreja de, pela prescrição de uma penitência, fazer cessar seu desespero. Ao agir
assim, colocava em xeque a própria autoridade eclesiástica. Só podia estar tomado
pelo Diabo. Recusava-se a possibilidade de alguém se matar por outra causa.

É impressionante constatar que os suicídios por simples


desgosto da vida são enquadrados nos casos de loucura, como
declara explicitamente Bracton no seu tratado. O homem
medieval não imagina que se possa pôr em dúvida a própria
bondade da existência. A Idade Média exclui a possibilidade
daquilo que no século XVIII chamaremos de “suicídio
filosófico”. É então inconcebível que um ser são de espírito
pudesse considerar a sangue-frio que a vida não valia a pena ser
vivida. O simples fato de o considerar sem razão particular é em
si sintoma de loucura, do desequilíbrio mental que se começa a
chamar de “melancolia”. O termo, oriundo do grego e
significando “humor negro”, designa uma afecção física, um
excesso de bile negra obscurecendo o cérebro e suscitando
pensamentos sombrios. Brunetto Latini é um dos primeiros a
empregá-lo na Idade Média, em torno de 1265. (MINOIS, 1995,
p. 51)35

Latini ocupa apenas uma linha de Saturno nos trópicos – A melancolia


européia chega ao Brasil, de Moacyr Scliar. É mencionado como um dos autores
que ajudou a povoar os bestiários medievais (com a mantícora), eles mesmos,
porém, expressões da angústia do homem com o desconhecido mundo que
habitava, fonte, por sua vez, do sentimento definido como melancolia. De resto, a
história que Scliar conta é compatível com a de Minois. Inclusive pela
importância que ambos depositam na publicação do caudaloso A anatomia da
melancolia, pelo inglês Robert Burton, bem mais tarde, em 1621.

35
Il est frappant de constater que les suicides par simple dégoût de la vie son rangés dans le cas de
folie, comme le déclare explicitement Bracton dans son traité. L’homme médiéval n’imagine pas
que l’on puisse remettre en cause la bonté de l’existence même. Le Moyen Age exclut la possibili-
té de ce qu’on appellera au XVIIIe siècle le “suicide philosophique”. Il est alors inconcevable
qu’un être sain d’esprit puisse considérer de sang-froid que la vie ne vaut pas la peine d’être vécue.
Le simple fait de l’envisager sans raison particulière est en soi un symptôme de folie, de déséquili-
bre mental que l’on commence à appeler “mélancolie”. Le terme, issu du grec et signifiant “hu-
meur noire”, désigne une affection physique, un excès de bile noire obscurcissant le cerveau et
suscitant de sombres pensées. Brunetto Latini est um des premiers à l’employer ao Moyen Age,
vers 1265.
59

Scliar relaciona a publicação do livro com a chegada a Messina, na Sicília,


em 1347 ou 1348, ou seja, quase dois séculos antes, de uma frota genovesa que
inadvertidamente trouxe do Oriente a Peste Negra. Dali em diante, a doença
ceifaria um terço da população européia. Até a publicação de Burton, Londres
esteve livre da Peste Negra por apenas doze anos. Por isso, a emergência de
doença tão letal levou à Europa uma nova consciência da fragilidade e da finitude
da vida humana justamente num momento em que a Renascença inflava a
esperança no conhecimento. Estabeleceu-se, desta forma, um distúrbio bipolar
continental.
Entre tantas e tantas obras representativas do período, Scliar menciona
Biothanatos – A declaration of that paradoxe, or thesis, that self-homicide is not
so naturally sinne, that it may never be otherwise, do poeta John Donne:

Nele, Donne sustenta a tese de que o auto-homicídio, ou seja, o


suicídio, não é por natureza um pecado, no que se opõe
frontalmente a Tomás de Aquino. Biothanatos foi publicado
apenas alguns anos depois de A anatomia da melancolia, o que
é significativo: o estudo da melancolia conduziria
inevitavelmente à questão do suicídio, a única questão
filosófica verdadeiramente importante, no dizer de Camus. E,
como na abordagem da melancolia, temos duas possibilidades.
De um lado, o suicídio seria visto como um crime contra a
religião, um pecado terrível, com a figura de Judas vindo de
imediato à mente. Essa era a posição, digamos, oficial. (...)
Mas, por outro lado, o suicídio poderia ser encarado, pelos
intelectuais, como uma conseqüência até certo ponto previsível
da situação de miséria moral e desespero resultante da tristeza.
(SCLIAR, 2003, p. 38-39).

Minois chama a atenção para o fato de que Donne não era apenas um
poeta: era, além disso, capelão anglicano da corte da Inglaterra, doutor em
Teologia por Cambridge e professor na maior escola de Direito da Londres da
época, a Lincoln’s Inn. O autor francês assinala, ainda, que o seu livro foi redigido
por volta de 1610, ou seja, antes do livro de Robert Burton. Longe de invalidar a
tese de Scliar, da complementaridade entre melancolia e suicídio, tal circunstância
apenas reforça a simultaneidade do novo mal-estar. Enquanto esteve vivo, Donne
foi consciente do gesto audacioso, ainda mais para alguém de sua posição: fez o
livro circular em pouquíssimas cópias e apenas entre amigos e discípulos. Para um
60

deles escreveu a prudente dedicatória: “Escrito por Jack Donne e não pelo doutor
Donne.” O livro foi impresso apenas em 1647, dezesseis anos após sua morte.

3.3
As visões gregas e romanas sobre o suicídio

Gutenberg, como se vê, abriu à Renascença e à posteridade um mundo novo


que, se não é exatamente admirável, permite uma circulação de idéias inédita na
Idade Média. Círculos cada vez mais numerosos de leitores – mais numerosos seja
pelas tiragens crescentes dos livros, seja pela melhoria na educação, seja, em
breve, pelo aumento de circulação de jornais – terão à disposição textos que
escapam do modelo cultivado pelas elites medievais. Antes mesmo de Burton ou
de Donne, antes mesmo de Thomas More (Utopia, 1516) ou de Michel de
Montaigne (A propósito de um costume na Ilha de Ceos, um de seus célebres
Ensaios, de 1580), dois autores modernos que ousaram se debruçar sobre o tema
sem preconceitos religiosos ou de classe, visões bem menos intolerantes sobre a
morte voluntária começaram a circular graças à impressão de clássicos gregos e
romanos.

(...) É a literatura, que exprime os sonhos, as aspirações, os


receios, os valores mais respeitados na elite intelectual. Esta
elite, porém, se amplia na Renascença com a revolução da
tipografia. As obras não são mais confinadas a um público de
clérigos para os tratados em latim ou a um auditório de
cavaleiros para as canções de gesta e os romances cortesãos. A
cultura escrita se abre a uma nova parcela burguesa e à pequena
nobreza, que ao mesmo tempo fornece autores e leitores. Os
livros, muito mais numerosos, refletem os sentimentos de uma
camada mais importante da população. Sobretudo o
desenvolvimento do teatro permite tocar um público maior e
difundir junto aos iletrados os ideais da elite. (MINOIS, 1995,
p. 79-80)36

36
(...) Est la littérature, qui exprime les rêves, les aspirations, les craintes, les valeus les plus res-
pectées dans l’élite intellectuelle. Or cette élite s’élargit à la Renaissance avec la révolution de
l’imprimerie. Les oeuvres ne sont plus confinées à un public de clercs pour les traités em latin, ou
à un auditoire de chevaliers pour les chansons de geste et les romans courtois. La culture écrite
s’ouvre à une nouvelle frange bourgeoise et à la petite noblesse, qui fournissent à la fois auteurs et
lecteurs. Les livres, beaucoup plus nombreux, reflètent les sentiments d’une couche plus important
de la population. Surtout, l’essor du théâtre permet de toucher un public très large, et de diffuser
auprès des illettrés les idéaux de l’élite.
61

Nomes como Pitágoras, Diógenes, Demócrito, Sócrates, Catão, Lucrécia,


Brutus, Sêneca, Antônio e Cleópatra, entre inúmeros outros, que se mataram por
sentimentos tão distintos quanto patriotismo e remorso, honra ultrajada e
indiferença, amor e razão, voltam a circular envoltos em admiração – e não mais
no pavor e no ódio devotados aos suicidas na Idade Média. Surgem, compilados
por autores contemporâneos, até mesmo dicionários biográficos de suicidas
célebres37. Particularmente notável entre eles é o de Ravisius Textor, cujo
Officina, publicado em Paris no ano de 1520, coleta 150 casos clássicos e, não
contente de os relatar, freqüentemente os elogia. Meio século mais tarde, dentro
do mesmo espírito, Théodore Zwinger retoma e completa a lista de Ravisius no
seu Theatrum vitae humanae. A intenção de livros como estes provavelmente não
era a de sabotar a moral cristã e sim apenas elogiar gestos encarados como
heróicos num tempo em que também o individualismo renascentista se insere no
distúrbio bipolar desencadeado pela Peste Negra.
Um dos casos clássicos, em particular, despertava profunda admiração
nesses livros e em quem quer que tratasse do assunto: o do romano Marcius
Porcius Cato (95-46 a.C.), dito Catão, o Jovem para diferenciá-lo do bisavô Catão,
o Censor, autor da célebre frase Delenda Cartago (“Cartago deve ser destruída”).
Marcius Porcius desenvolveu brilhante carreira política e militar, tendo travado
combate, por exemplo, contra os gladiadores insurrectos de Espartacus. Adepto
fervoroso da República romana, opôs-se o quanto pôde ao triunvirato formado por
Crasso, César e Pompeu. Quando a guerra civil eclodiu entre os dois últimos,
aliou-se a Pompeu. Ao ver sua cidade, Útica, cercada por César, Catão cometeu
suicídio. Neste ponto, as versões divergem. Ou ele se matou para não cair
prisioneiro, enfiando a espada no peito e tratando de rasgar o ferimento e as
entranhas com as próprias mãos quando viu que demorava a morrer. Ou ele foi
feito prisioneiro e se matou depois que soube da morte de Pompeu e que releu o
diálogo Phedon, de Platão, o que simboliza o perigoso poder dos livros. Seja
como for, sua férrea determinação de preservar a honra foi louvada por
contemporâneos e, graças à tipografia, pósteros. Num “efeito Werther” avant la

37
Tal gênero ainda persiste em livros recentes como Dicionário de suicidas ilustres (1999), do
brasileiro J. Toledo, e Adiós mundo cruel – Los suicidios más célebres de la Historia (2003), da
espanhola Alicia Misrahi.
62

lettre, aliás, seu sobrinho-genro Brutus e sua filha Pórcia também se mataram38,
quatro anos depois de sua morte.
Catão era um estóico, isto é, um seguidor do estoicismo do filósofo grego
Zenão de Cício, que se matou aos 98 anos, depois de um episódio emblemático:
saindo da sua escola, o ancião caiu e quebrou um dedo; sacudindo a terra de sua
mão, ele recitou um verso de Níobe (“Eu vou. Por que me chamas?”); e
imediatamente se enforcou. Episódio emblemático porque o estoicismo propunha
basicamente uma ética da indiferença, diante das próprias paixões ou diante do
destino. A decisão entre viver ou morrer, assim, era posta na conta da liberdade do
homem racional, que bem poderia concluir ser o suicídio a melhor solução para a
impossibilidade de manter uma linha de conduta pré-estabelecida ou
simplesmente para a necessidade de se conformar à ordem das coisas.
A história de Catão se manteve, ao menos até o século XVIII, como um
verdadeiro campo de batalha entre os críticos e os simpatizantes – se é que esta
palavra se aplica – da morte voluntária. Entre estes, freqüentemente apenas os
suicídios clássicos eram tolerados com a argumentação de que, sendo pagãos, os
antigos não poderiam ser condenados por desobedecerem à quinta lei mosaica,
que desconheciam. Os catecismos dos séculos XVII e XVIII, aliás, passaram a
especificar que o “não matarás” se aplicava também a si mesmo39. Em 1597, por
exemplo, o moralista católico François Le Poulchre reprovou a atitude de Catão
afirmando que “a verdadeira força é a de conter em si mesmo, pelo julgamento da
razão, a cupidez, purgando sua alma de paixões reprováveis”, enquanto o poeta
Chassignet viu no romano o símbolo do suicídio honroso. Em 1709, Jonathan
Swift, autor de As viagens de Gulliver, escreveu um poema no qual via uma
reunião de notáveis da Antiguidade, na qual Catão era louvado veementemente
por Cícero. Quatro anos depois, Joseph Addison escreveu uma peça de grande
sucesso de público e de crítica, Cato, na qual o suicídio do estóico era descrito

38
Um dos assassinos de César, Brutus matou-se ao atirar-se sobre a espada, depois de perder a
Batalha de Filipos, na Macedônia. Teria exclamado na ocasião: “Virtude, não passas de um no-
me!”. Estóica como o pai Catão, o Jovem, Pórcia matou-se engolindo carvão em brasa quando
soube da morte do marido.
39
O que os obrigava a enquadrar o caso de Sansão, por exemplo, numa categoria excepcional, de-
rivada de Santo Agostinho: a daqueles que haviam recebido um chamado especial e secreto de
Deus. Sansão, como se sabe, matou três mil pessoas mas também morreu ao sacudir as colunas do
Templo de Dagon.
63

como sendo de uma nobreza insuperável. Consta que Alexander Pope chorou ao
assisti-la.
Em Sleepless souls – Suicide in early modern England, estudo sobre as
mudanças de mentalidade, da hostilidade à tolerância, em relação à morte
voluntária entre 1500 e 1800, os historiadores americanos Michael MacDonald e
Terence R. Murphy, registram detalhadamente a disposição inglesa para com
Catão.

O exemplo de Catão foi usado para justificar suicídios


modernos de vez em quando. Mais radical e extremo foi
Hume40, que declarou: “Em todos os casos, cristãos e pagãos
estão precisamente na mesma senda: Catão e Brutus, Arria e
Pórcia agiram heroicamente; aqueles que agora imitam seus
exemplos devem receber os mesmos elogios da posteridade.”
Quando o poetastro Eustace Budgell atirou-se ao Tâmisa em
1737, ele deixou para trás um par incompleto de versos para
justificar seu gesto: “O que Catão fez e Addison aprovou,/ Não
pode estar errado.” (MACDONALD e MURPHY, 1990, p. 180-
181).41

Diferentemente dos romanos, tolerantes quando não incentivadores de


certo tipo de suicídio, entre os gregos havia uma pluralidade de opiniões sobre o
assunto – como, de resto, sobre todos os outros assuntos. Os epicuristas, por
exemplo, recomendavam que nos matássemos sempre que a vida se nos tornasse
insuportável. Os pitagóricos, ao contrário, condenavam o suicídio porque ele
liberava a alma de uma expiação corpórea que ela deveria cumprir até o final e
porque ele quebrava a harmonia numérica da associação da alma ao corpo. Platão
era ambíguo quando tratava do assunto; Aristóteles, radicalmente contrário.

40
David Hume (1711-1776) escreveu dois ensaios simpáticos ao suicídio, On suicide (de onde
essa citação foi retirada) e On the natural history of religion. Arrependido diante das paixões le-
vantadas, ele caçou como pôde as cópias do livro onde eles se encontravam, Five dissertations
(1756). Os ensaios só reapareceram após a sua morte. Neles, Hume encara o suicídio como um mal
menor, posto que o homem que o pratica não faz mal à sociedade, apenas deixa de fazer o bem. Ao
mesmo tempo, ele advoga uma certa reciprocidade: se a sociedade não faz bem ao homem, por que
ele seria culpado de deixá-la para trás?
41
Cato’s example was used to justify modern suicides from time to time. Most sweeping and ex-
treme was Hume, who declared that: “In all cases Christians and Heathens are precisely upon the
same footing: Cato e Brutus, Arrea and Portia acted heroically; those who now imitate their exam-
ple ought to receive the same praises from posterity.” When the poetaster Eustace Budgell cast
himself into the Thames in 1737, he left behind onde unfinished couplet to justify his deed: “What
Cato did and Addison approved,/ Cannot be wrong”.
64

Ambos, porém, consideravam o homem na perspectiva de um ser social, inserido


numa comunidade, diferentemente das correntes individualistas que os
precederam.
Em Roma, herdeira do pensamento grego, porém, a simpatia pelo suicídio
desenvolveu-se até tornar-se a mais alta entre todas as civilizações ocidentais até
hoje. Excetuando-se a interdição aos soldados e escravos, nascida de evidentes
motivações econômicas, existe apenas uma menção, feita por Plínio, o Velho, a
uma proibição legal à morte voluntária: deveriam ser crucificados aqueles que se
suicidassem para protestar contra a tirania de Tarquínio, o Soberbo, o último rei
de Roma (534-509 a.C.). A idéia era evitar que os mortos se vingassem dele:
pregados à cruz num lugar afastado, os pássaros os devoraram e, assim, atraíam
para eles mesmos qualquer energia negativa.
Nisso, Roma não se diferenciava nem da Grécia, nem de sociedades
africanas, nem da Europa Medieval. Como anota Minois, parece haver “um fundo
comum de temor supersticioso em relação a um ato fora do comum e, portanto,
sobrenatural” (p. 62). Na Grécia arcaica, a despeito da aberta celeuma filosófica
sobre o ato em si, na prática cortava-se a mão direita do suicida de modo a evitar
que ele cometesse crimes. Já os bangandas, tribo da África central, queimavam o
corpo do suicida junto com a árvore que ele utilizara para se enforcar e, quando as
mulheres passavam perto das cinzas, se recobriam a fim de evitar que o espírito do
morto não as pudesse penetrar e assim renascer.
Na Idade Média européia, os corpos dos suicidas eram vilipendiados de
variadas maneiras: desmembrados, pendurados, jogados num rio dentro de um
tonel. A Lei de Beaumont, do século XIV, ordenava que o cadáver fosse arrastado
“o mais cruelmente que se possa, para mostrar a experiência aos outros” – as
próprias pedras sobre as quais ele foi arrastado deveriam ser arrancadas. Para
Minois, “na França, a questão é tratada sobretudo na metade norte do reino, onde
o direito visivelmente assimilou práticas supersticiosas mais antigas visando a
impedir os suicidas de voltar a incomodar os vivos” (p. 47).
65

3.4
Repetição, doença, contágio, ideologia

Podemos, aqui, arriscar algo acerca da natureza deste incômodo. O corpo


era brutalizado ou para servir de exemplo aos outros membros da comunidade que
cogitassem se matar ou para evitar que ele mesmo, ou o espírito que o empolgara
em vida, voltasse à Terra para atazanar os vivos. No primeiro caso, é evidente o
caráter exemplar da medida: havia a tentativa de evitar que o ato se repetisse na
sociedade (em particular na família do suicida, obrigada a assistir à desonra
pública de seu corpo) – que o suicídio a contagiasse. No segundo caso, impedir o
retorno do morto seria tanto a expressão de um temor literal, expresso por um
zumbi cometendo atrocidades, quanto de um temor figurado, o de que ele voltasse
à vida no corpo de outros – mais uma vez, que o suicídio contagiasse a sociedade.
O “fundo comum de temor supersticioso” ainda se manifesta de outras formas.
Até Gutenberg, a concentração do objeto livro na mão de clérigos e nobres
– e freqüentemente ambas as classes se reuniam numa mesma pessoa –
significava, no que tange à morte voluntária, um duplo movimento. Por um lado,
o martírio voluntário, conceito dos primórdios da cristandade ressuscitado pelas
Cruzadas (empreendidas entre os séculos XI e XIII) era considerado diferente do
suicídio e, assim sendo, louvado. Por outro, dificilmente o nobre precisaria se
matar se assim o desejasse: ele estava constantemente envolvido em guerras que
ao mesmo tempo davam vazão às suas pulsões suicidas e as protegiam delas.
Suicídios de religiosos e de nobres, portanto, tinham tratamento discreto, quando
não heróico. Se, porém, um homem do povo ou um burguês ousasse se matar,
fugindo de suas obrigações para com Deus ou para com seu senhor terreno, ai
dele.
Paralelamente à condenação religiosa do suicida, introduziu-se nas leis
seculares francesas desde 1205 a figura do confisco, em proporções variáveis, dos
bens móveis e imóveis do morto, de sua esposa e de sua família, em benefício do
barão local. Em algumas províncias, como Maine e D’Anjou, a casa do morto
tinha ainda a fachada demolida42, seu terreno era queimado e suas vinhas e

42
Interessante lembrar que, em pleno século XXI, as Forças Armadas de Israel ainda destroem as
casas dos terroristas suicidas palestinos, desalojando suas famílias. A punição pós-morte renova a
velha prática medieval.
66

árvores eram cortadas à altura de um homem. Neste mundo prestes a ser


revolucionado pela invenção de Gutenberg, havia a preocupação de enquadrar o
seu habitante.

As autoridades civis e religiosas travam o mesmo combate


contra o suicídio, e suas medidas dissuasivas se complementam:
confisco de bens e danação eterna. Nos dois domínios, a
proibição do suicídio acompanha o recuo da liberdade humana:
o homem perde o direito essencial de dispor da sua própria
pessoa, em benefício da Igreja, que dirige toda a sua existência
e tira sua força do número de fiéis, e em benefício dos senhores,
alguns dos quais eclesiásticos, que têm a necessidade de
conservar e de aumentar sua mão-de-obra num mundo
subpopulado onde a fome e as epidemias regularmente
comprometem o valor dos domínios. (MINOIS, 1995, p. 42-
43).43

É interessante notar que a moral censitária em torno da morte voluntária


resultou na criação, pela casta militar e religiosa medieval, de uma distinção que
antecipa, noutros termos, aquela que, séculos depois, Durkheim iria fazer entre
suicídio egoísta e altruísta. O morto que se mata por suas próprias razões, dívidas
ou adultério, por exemplo, seria entregue solitariamente ao fogo dos infernos: era
condenado severamente tanto pela lei de Deus quanto pela lei dos (gentis)
homens. Estava, então, duplamente distanciado da sociedade na qual vivia. Era
um egoísta – e seu exemplo deveria ser desinfetado e, se possível, banido. Já o
morto que se matava em nome da fé cristã ou dos ideais da cavalaria seria
admitido no reino dos céus: era absolvido por ter buscado a morte em nome de
algo que não ele mesmo. Este estava, por seu turno, perfeitamente inserido na sua
comunidade. Era um altruísta – e seu exemplo merecia ser divulgado.
A ideologia medieval, como tantas outras, antes e depois dela, igualava o
interesse da elite ao do conjunto da população. No processo, criava suicidas de
primeira e de segunda classe. Mais interessante ainda é notar que nós, tão
distantes da Idade Média quanto o homem medieval estava do Império Romano,

43
Les autorités civiles et religieuses mènent le même combat contre le suicide, et leurs mesures
dissuassives se complètent: confiscation des biens et damnation éternelle. Dans le deux domaines,
la proibition du suicide accompagne le recul de la liberté humaine; l’homme perd le droit essentiel
de disposer de sa propre personnne ao profit de l’Église, qui dirige toute son existence et tire sa
force du nombre des fidèles, et au profit des seigneurs, dont certains ecclésiastiques, qui ont besoin
de conserver et d’accroître leur main-d’oeuvre dans un monde sous-peuplé où les famines et les
épidémies viennent régulièrement compromettre la mise em valeur des domaines.
67

de certa forma não muito sutil reproduzimos o mesmo tipo de distinção de classe.
Não seria, afinal, o comportamento da imprensa da área da Baía de São Francisco
em relação aos que pulam da Golden Gate – silêncio, a não ser que o morto seja
uma celebridade ou que seu gesto tumultue o trânsito – o reconhecimento de que o
contágio durkheimiano possa atuar e também de que certas mortes voluntárias são
tacitamente permitidas pelo status ou, ao menos, dignas de serem notadas pelo
transtorno que causam aos concidadãos do suicida? Os jornais da área da Baía de
Guanabara não agem de modo diferente. Eis, por exemplo, o que diz o manual de
redação e texto jornalístico de O Dia:

O Dia não publica suicídios. Exceto em situações particulares,


pela notoriedade dos envolvidos ou pelo interesse público das
razões que o levaram ao ato. São exemplos disso os suicídios do
ex-técnico da Seleção Brasileira de vôlei, Inaldo Manta, do
aluno do Colégio Militar que não resistiu aos rigores da
disciplina e suas humilhações, e do banqueiro que se matou em
um quarto de hotel ao ver descoberto o desfalque que praticara.
(O DIA, 1996, p. 47).

Não é preciso estar à beira-mar para adotar tal procedimento. O Manual da


Redação da Folha de S. Paulo é sucinto às raias da ambigüidade em sua seção
“Padronização e estilo”: “Não omita o suicídio quando ele for a causa da morte de
alguém” (2001, p.99) A morte de alguém além do suicida, depreende-se. Tal
recomendação é consistente com a posição pessoal do seu diretor de redação,
Otavio Frias Filho. No livro Queda livre – Ensaios de risco, publicado em 2003,
ele se propôs a enfrentar “os círculos do inferno pessoal” em sete ensaios-
reportagens, um deles sobre seu trabalho anônimo e voluntário, durante cerca de
um ano, num dos postos de atendimento do Centro de Valorização da Vida, em
São Paulo.
O CVV nasceu de uma idéia implantada em Londres por um reverendo
anglicano, Chad Varah, em 1953. Psicólogo por formação, ele leu num jornal que
em média três pessoas se suicidavam por dia na capital inglesa. Lembrou-se,
imediatamente, que seu primeiro trabalho como sacerdote, em 1936, se dera no
funeral de uma suicida de 14 anos, que se apavorara, temendo uma doença
venérea, ao ver o sangue da sua primeira menstruação. Pouco depois, Varah
tornou-se reitor da paróquia de St. Stephen, no centro de Londres, e decidiu fazer
alguma coisa a respeito dos suicidas. A 2 de novembro de 1953, os mesmos
68

jornais que trouxeram a informação que tanto impressionara o pastor publicaram a


notícia de que qualquer pessoa deprimida que quisesse falar com Chad Varah
deveria telefonar para o número tal. A agenda encheu-se rapidamente, e também
de encontros com pessoas que, tendo lido os jornais, queriam ajudar na tarefa a
que o reverendo havia se proposto, sem jamais, no entanto, dar um enfoque
religioso à conversa.
Varah logo notou que em quase todos os casos bastava a pessoa angustiada
conversar com um dos seus assistentes na fila de espera para ir embora,
pacificadas. E, se esse “cliente” (palavra por ele adotada) voltava, era para
conversar com o mesmo assistente da primeira visita. Todo o atendimento, então,
logo passou do reverendo-psicólogo para os leigos. A elas caberia ouvir
atentamente – e nada além disso, nada de perguntar ou de aconselhar – as pessoas
em desespero. Falar, afinal, seria uma forma simples de exorcizar o suicídio.
Logo, o tablóide sensacionalista Daily Mirror publicou uma reportagem sobre
Varah com o título “Pastor samaritano vai salvar suicidas”. Sem querer, o redator
deu uma boa idéia ao próprio reverendo: a partir dali, o seu grupo de apoio
chamar-se-ia Samaritanos, também por referência à parábola bíblica44.
Nasceu ali a primeira organização leiga – desde o ano anterior funcionava
na Califórnia um centro de prevenção do suicídio a cargo de psicólogos, fundado
pelo Dr. Edwin Shneidman – a prestar auxílio a pessoas que contemplavam a
morte voluntária. Os Samaritanos tornaram-se a inspiração para outras
organizações de voluntários, como o Centro de Valorização da Vida, na qual
trabalhou Otavio Frias Filho. Um pouco por sua experiência no CVV, um pouco
pela convicção pessoal na preponderância de um fator clínico nas taxas de
suicídio, ele escreve em Queda livre, num trecho revelador do norte das
coberturas jornalísticas sobre o assunto, não só na Folha de S. Paulo, não só no
Brasil, mas em todo o Ocidente:

44
No Evangelho de Lucas, perguntado por um doutor da lei “quem é o meu próximo?” (para poder
amá-lo), Jesus responde com a história do homem assaltado e espancado no caminho de Jerusalém
para Jericó: um sacerdote vê o sujeito caído sem deter o passo; um judeu da tribo dos levitas tam-
bém não pára para ajudá-lo; um samaritano, membro de outro povo da Judéia, isto é, um estranho,
um “distante” é quem se detém para cuidar do infortunado. Ata-lhe as feridas, leva-lhe a uma esta-
lagem e paga os serviços do hospedeiro.
69

Como jornalista, eu não poderia deixar de mencionar um


aspecto muito controvertido: a divulgação de suicídios pelos
órgãos de comunicação. Não existe dúvida de que casos
sensacionais, noticiados com estardalhaço, dão ensejo a
imitadores. Minha opinião é que a mídia deveria se obrigar a
certas renúncias na cobertura de suicídios e temas correlatos,
como na prática já ocorre na grande maioria dos casos. Só me
parece admissível noticiar suicídios quando o fato implicar de
alguma forma o interesse público ou envolver celebridades que
despertem curiosidade irrefreável. Seria bom que essas notícias
omitissem detalhes mórbidos e prestassem algum
esclarecimento científico. Informações sobre os meios práticos
para cometer suicídio não deveriam ser publicadas. Mas o
debate desimpedido sobre os mecanismos psicológicos do
suicídio e os modos de preveni-lo é a melhor maneira de
enfrentar a questão. Adquiri a convicção de que saber mais
sobre o fantasma do suicídio pode ser o caminho para dominá-
lo. Ajuda a dissipar a névoa de fantasia e ignorância que tanto
obscurece os terrores que acompanham esse ato de desamparo
extremo, como impede de ver que o suicídio não somente pode,
mas deve ser evitado. (FRIAS FILHO, 2003, p. 284).

Ao mesmo tempo em que reproduz o velho consenso sobre o caráter


perigoso (contagioso) do ato suicida, o texto de Frias Filho também se inscreve no
movimento de humanização do suicida, cujo início, como vimos, remonta à
Renascença européia e à invenção da tipografia. A anatomia da melancolia, de
1621, já advogava, lembra Minois, que “a tendência suicidária, resultado da
melancolia, é (...) uma doença, e não um pecado satânico: a obra de Burton marca
uma mudança no modo de encarar o homicídio de si-mesmo” (p. 123). No mesmo
país, duas décadas antes, outras obras imensamente populares prepararam o
espírito da população para contemplar os suicidas de outra maneira: as peças de
teatro, que à época se dirigiam, majoritariamente, a um público de iletrados.

3.5
Hamlet, o inventor do sujeito e da psicanálise

Na virada do século XVI para o século XVII, o suicídio foi um componente


quase obrigatório no teatro inglês, seja nos dramas clássicos, seja nas tragédias
contemporâneas. Bernard Paulin, em Du couteau à la plume – Le suicide dans la
littèrature anglaise de la Renaissance (1580-1625), estudo publicado na França
em 1977 e citado por Minois, contou, em cem peças, nada menos que 43 suicídios
70

entre 1580 e 1600 e, aumento notável, 128 de 1600 a 1625. Alguma obras,
sozinhas, somaram cinco casos. As cinco principais causas para o cometimento do
ato eram, pela ordem, amor, remorso, honra, desespero e – num dado novo, ligado
ao avanço do capitalismo – ruína econômica. “A explicação sociológica,
aparecida em Robert Burton, começa timidamente a concorrer com a psicológica,
enquanto a explicação sobrenatural recua”, explica Minois (p. 127). O suicida,
portanto, assume uma feição humana, mesmo que o tom dos autores não seja
preponderantemente admirado ou compreensivo com suas motivações. E sim
porque, de qualquer forma, o assunto se banaliza no jogo social e perde o apelo
moral.
Os números levantados por Paulin são ainda mais assombrosos porque
deles estão excluídas as 52 mortes voluntárias ocorridas nas peças do maior de
todos os dramaturgos ingleses do período. Em Shakespeare – A invenção do
humano, Harold Bloom vê em Hamlet, por exemplo, a encarnação da nossa busca
pela identidade e pela autoconsciência. “Em Hamlet, a autoconsciência faz
exacerbar a melancolia, à custa de todos os demais sentimentos”, escreve (2000,
p. 505). Noutra obra, O cânone ocidental, o crítico literário americano chega a
dizer que “Freud (...) entendia que Shakespeare inventara a psicanálise, ao
inventar a psiquê, até onde Freud podia reconhecê-la e descrevê-la” (1995, p. 65).
Freud, por sua vez, foi co-responsável pelo descentramento do sujeito, tal
como encampado por Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade
[1992]. Segundo ele, o sujeito – surgido com Hamlet, podemos dizer – foi
deslocado por “uma série de rupturas dos discursos do conhecimento moderno”: o
marxismo, a lingüística (de Saussure), a microfísica do poder (de Foucault), o
feminismo e a psicanálise (de Freud). Todas contribuem para o quadro anômico
verificado por Durkheim e Lipovetsky (e talvez entre essas rupturas pudéssemos
acrescentar o absurdismo proposto por Camus). Para Hall:

A teoria de Freud de que nossas identidades, nossa sexualidade


e a estrutura de nossos desejos são formadas com base em
processos psiquícos e simbólicos do inconsciente, que funciona
de acordo com uma “lógica” muito diferente daquela da razão,
arrasa com o conceito do sujeito cognoscente e racional provido
de uma identidade fixa e unificada – o “penso, logo existo” do
sujeito de Descartes. (HALL, 2002, p. 36).
71

Nas tragédias de Shakespeare, as pessoas se suicidam de todas as formas e


por todos os motivos. Cássio, Brutus, Antônio e Cleópatra, por exemplo, evocam
os suicídios clássicos, honrosos. Os jovens Romeu e Julieta se matam por amor –
e mal-entendido. Macbeth se mata para cumprir seu destino. Otelo, por remorso.
Ofélia, enlouquecida, afogada, por nenhuma razão em especial. Dela, o espectador
não ouve nenhuma palavra de explicação.
No entanto, na primeira cena do quinto ato, o mesmo espectador de
Hamlet escuta dos coveiros de Ofélia um irônico diálogo que remete aos nós-em-
pingo d´água dados pela casuística católica (que, ao analisar situações caso a
caso45, deliberando se a pessoa havia ou não se matado, por exemplo,
involuntariamente nem encerrava a questão e nem pacificava o espírito dos fiéis,
como pretendia) e ao caráter censitário da reprovação ou não ao suicídio:

1º coveiro. Deve ser enterrada em sepultura cristã aquela que


buscou voluntariamente a salvação?
2º coveiro. Digo-te que deve; portanto, abre logo essa cova. O
pontífice informou-se de tudo e deliberou que o enterro fosse
cristão.
1º coveiro. Como pode ser isso, a não ser que ela se afogasse
em sua própria defesa?
2º coveiro. Ora, foi decidido assim.
1º coveiro. Deve ter sido se ofendendo, nem pode ser de outro
modo. Pois esse é o ponto: se eu me afogo voluntariamente,
isso indica ato, e um ato tem três partes: agir, fazer e consumar.
Ergum, ela afogou-se voluntariamente.
2º coveiro. Não; mas, escuta, mestre cavuqueiro.
1º coveiro. Com licença. Aqui está a água, bem; aqui está o
homem, bem; se o homem vai para esta água e se afoga, queira
ou não queira, é ele que vai. Presta atenção: mas se a água vem
para ele e o afoga, não é ele que se afoga; ergum, ele não é o
culpado de sua própria morte, ele não encurta a própria vida.
2º coveiro. Mas isso é lei?
1º coveiro. É, sim, senhor; lei de borda e capelo.
2º coveiro. Queres saber a verdade? Se ela não fosse nobre,
seria enterrada fora do ritual cristão.

45
Em 1659, o jesuíta espanhol Antonio Escobar analisa um caso hipotético extremo. Nele, uma
jovem solteira grávida está determinada a se matar para evitar a vergonha da família. Poderia ela
provocar o aborto por ser este o único meio de a desviar do suicídio?, pergunta-se o casuísta. Sim,
responde, porque trata-se de escolher o mal menor. “Se nos lembrarmos da luta encarniçada trava-
da pela Igreja desde as suas origens contra o aborto, mediremos melhor o horror ao suicídio que
pode representar tal solução” (MINOIS, 1995, p. 147). Se, no entanto, a pobre grávida decidisse
mesmo tirar a própria vida, ai dela. Em 1718, em Château-Gontier, na França, Marie Jaguelin, grá-
vida de seis meses e desesperada com a desonra, se suicidou por envenenamento. Seu cadáver foi
desenterrado, julgado, arrastado. Em praça pública, seu ventre foi aberto, de modo a que o feto
fosse retirado e enterrado na parte do cemitério reservada aos não-batizados. Maria foi pendurada
pelos pés e exposta ao público. Depois, foi queimada. Por fim, suas cinzas foram jogadas ao vento.
72

1º coveiro. Assim o disseste; e é uma lástima que os grandes


deste mundo tenham o direito de afogar-se ou de enforcar-se,
mais do que qualquer outro cristão. Vamos, a minha pá. Não há
gentis-homens mais antigos do que os jardineiros, os cavadores
e os coveiros; eles conservam a profissão de Adão.
(SHAKESPEARE, 2004, p. 287-288).

É, no entanto, um pouco antes, na primeira cena do terceiro ato, de um


personagem que não se mata na mesma peça de 160046, data redonda e simbólica,
que as platéias escutam a problematização do suicídio em termos eminentemente
modernos, pois despidos de dogma religioso ou superstição em favor do exame
racional do custo-benefício de se viver. Afinal, o solilóquio mais famoso da
história do teatro não fala de outra coisa que não disso, embora Harold Bloom, em
Hamlet – Poema ilimitado, discorde: “Convém afirmar de maneira direta: não se
trata de uma reflexão que, seriamente, contemple o suicídio” (p. 42) Não mesmo?

Ser ou não ser, essa é a questão:


Será mais nobre suportar na mente
As flechadas da trágica fortuna,
Ou tomar armas contra um mar de escolhos
E, enfrentando-os, vencer? Morrer – dormir,
Nada mais; e dizer que pelo sono
Findam-se as dores, como os mil abalos
Inerentes à carne – é a conclusão
Que devemos buscar. Morrer – dormir;
Dormir, talvez sonhar – eis o problema:
Pois os sonhos que vierem nesse sono
De morte, uma vez livres deste invólucro
Mortal, fazem cismar. Esse é o motivo
Que prolonga a desdita desta vida.
(ibidem, p. 217-218).

Sim, é Hamlet quem a um tempo sintetiza todo o pensamento ocidental


sobre o suicídio e, também, o externa com uma clareza contundente, capaz de
atingir tanto o velho público letrado religioso-militar, aquele que até menos de
duzentos anos antes detinha o monopólio da palavra escrita, quanto o novo
público iletrado dos grandes centros, cuja maior diversão era beber, fornicar e ir

46
Esta é a data aceita para a versão consagrada de Hamlet, embora existam evidências de que Sha-
kespeare vinha trabalhando na peça havia muito tempo antes, uma ou duas décadas talvez.
73

ao teatro Globe – não se deve perder de vista, mesmo diante do vocabulário hoje
considerado rebuscado de Shakespeare, que era para esse povo que ele escrevia.
Em Sleepless souls, MacDonald e Murphy chamaram a atenção para o fato
de que Hamlet e todo os demais membros da corte se inclinam para o estoicismo
(a mesma escola filosófica de Catão) ao encararem o suicídio como um problema
moral e ético, não religioso. O príncipe, em particular, se indaga sobre a nobreza
do gesto, tema central para os seguidores de Zenão de Cício, retomado no século
XVI por Michel de Montaigne. O que Hamlet se (lhes/nos) pergunta é: vale a pena
viver? Vale a pena suportar golpes do destino, erros do opressor, escárnio alheio,
ingratidão no amor, lei tardia, quando se pode:

(...) procurar repouso


Na ponta de um punhal? Quem carregara
Suando o fardo da pesada vida
Se o medo do que vem depois da morte –
O país ignorado de onde nunca
Ninguém voltou – não nos turbasse a mente
E nos fizesse arcar co’o mal que temos
Em vez de voar para, esse que ignoramos?
(ibidem, p. 218)

A linguagem é tão veraz, tão visceral que Minois, retoricamente, pergunta


em Histoire du suicide: “Hamlet é Shakespeare?”47 Esta discussão, tão velha e
fascinante quanto inconclusiva já empolgou as melhores cabeças da Humanidade.
Aqui, em relação especificamente a uma suposta identidade entre os pontos de
vista suicidários de criador e criatura, quem responde é Alvarez:

47
Pouco provável, embora haja uma ligação familiar entre o autor e o personagem. Seu único filho
chamou-se Hamnet e morreu aos 11 anos, em 1596, pouco antes, portanto, do surgimento da ver-
são final da tragédia protagonizada pelo lendário príncipe dinamarquês. Sintomaticamente, ou não,
o fantasma do pai de Hamlet foi um dos dois únicos personagens interpretados pelo próprio Sha-
kespeare – o outro foi Adão, na comédia Como gostais. James Joyce defendeu, pela voz de seu
alter ego Stephen Dedalus, no capítulo nono de Ulisses [1922], passado na biblioteca, que Hamlet
era inspirado em Hamnet Shakespeare: “tivesse Hamnet Shakespeare vivido ele teria sido gêmeo
do príncipe Hamlet” (2005; p. 213). Bloom, em Shakespeare – A invenção do humano, não acredi-
ta nisso: “Se a dor maior de Shakespeare adveio da morte do filho Hamnet, o luto aparece de tal
modo trasmutado na tristeza de Hamlet que chega a ser irreconhecível” (2000; p. 514). Bloom re-
conhece uma identidade apenas exegética, não pessoal, na posição que Hamlet ocupa na obra de
Shakespeare: tão central quanto Shakespeare é na história da literatura ocidental.
74

A atitude de Shakespeare para com problemas morais era


basicamente igual à sua atitude para com suas fontes:
pragmática. O que importa é a peça. Ele nunca permitiu que os
seus próprios preconceitos religiosos48 – fossem eles qual
fossem – sub-vertessem o seu instinto para a boa e prática
eficiência dramática. Além disso, os gostos da Alta Renascença
com relação à tragédia não implicam que houvesse uma nova
tolerância para com o suicídio real. O sofrimento de um herói
trágico, distanciado e enobrecido pelo drama poético, fica
literalmente a um mundo de distância do suicídio fora do palco,
que raramente é trágico, nunca é grandioso e na maior parte das
vezes é sórdido, deprimente, confuso. Não haveria a menor
razão para que o corpo de um Otelo da vida real não fosse
arrastado pelas ruas atrás de um cavalo e enterrado numa
encruzilhada com uma estaca cravada no coração. (ALVAREZ,
1999, p. 159).

Para Alvarez, a diferença entre a Idade Média e a Renascença não esteve


num “súbito acesso de esclarecimento na prática” e sim numa mudança de
perspectiva na abordagem não só deste mas de todos os problemas morais da
época: a emergência do individualismo – aquele mesmo individualismo que,
agudizado nos séculos por vir, Goethe captaria na figura romântica do seu
Werther e Lipovestky descreveria como a viga-mestra do Modernismo – tornou-
os mais complexos e sujeitos a controvérsias. Do mesmo modo, Minois registra
que não houve, fora dos palcos ingleses, aumento das taxas de suicídio
comparável às deles. Discutir o tema, obviamente, não é igual a esposá-lo; mas já
se trata de uma mudança.
Inclusive Hamlet, convém repetir, não se mata. Por um lado, ele
experimenta consigo mesmo o procedimento dos Samaritanos e do CVV: falar do
suicídio é, de certa forma, exorcizá-lo. Além disso, o príncipe da Dinamarca tem
um objetivo bem preciso, que transcende a sua própria existência e, por
conseguinte, o livra de uma das pré-condições durkheimiana para o gesto
extremo: alertado pelo fantasma do pai, Hamlet fica obcecado em vingar o
assassinato dele pelo tio adúltero (que lhe roubara a rainha-mãe) e usurpador (que

48
Bloom concorda com Alvarez: “Dificilmente, conseguiremos estabelecer as tendências religio-
sas de Shakespeare, seja no início ou no fim da vida. Ao contrário do pai, que era católico, Sha-
kespeare manteve-se sempre ambíguo nessa questão perigosa, e Hamlet não é obra católica nem
protestante. Com efeito, a peça, a meu ver, não é nem cristã nem anticristã, pois o ceticismo de
Hamlet não apenas excede uma possível origem em Montaigne como se torna, no quinto ato, algo
estranho e fascinante, algo que não conseguimos rotular” (2000, p. 488-489).
75

lhe roubara o trono)49. Por outro lado, Minois destaca, recorrendo uma vez mais
ao estudo de Paulin50 sobre o suicídio nos palcos ingleses entre 1580 e 1625, que
talvez a grande questão posta em cena por Shakespeare no célebre solilóquio de
Hamlet tenha sido não “ser ou não ser?” e sim “o suicídio tem um sentido?”

3.6
‘Bills of mortality’: a listagem de mortos na imprensa

Se o sentido do suicídio é tema de reflexão, ainda que na idealização dos


palcos e da literatura, também na sujeira cotidiana das ruas ele começa a ser
examinado. Neste duplo movimento, avança um processo de humanização do
suicida, visto não mais como possuído, mas como doente. No começo do século
XVII, as autoridades londrinas estava preocupadas com a insalubridade, com o
progresso das epidemias, com o espectro da Peste Negra. Passaram, então, a
publicar nos jornais da cidade um cômputo semanal de mortes por doença ou
acidente, as bills of mortality (contas da mortalidade, i.e, listagem de mortos). Seu
propósito prático era alertar os leitores sobre os perigos da vida na metrópole, de
modo que eles pudessem evitar a ida a uma zona infectada por uma moléstia ou se
prevenir contra o afogamento acidental no Tâmisa. MacDonald e Murphy
acreditam que elas serviam também a “um profundo propósito psicológico,
mantendo os leitores cientes da fragilidade da própria vida em si e assim
afirmando simultaneamente a boa sorte deles e a incerteza da continuação dela”
(1990, p. 306).
Os suicídios eram incluídos na porção dos acidentados, juntamente às
vítimas de outros acasos infelizes. Na maior parte dos casos, tais notícias se
restringiam a indicar se uma ou mais pessoas de uma paróquia em particular
haviam se matado por enforcamento, afogamento, facadas, saltos etc., e se devia-
se atribuir à loucura alguma(s) da(s) morte(s). Um texto típico, coletado por

49
Goethe, pai do Werther, apreciava particularmente esta fala de Hamlet: “Os tempos de hoje es-
tão pervertidos. Oh, maldição que eu tenha nascido um dia para restaurar a ordem!”
50
Escreve Paulin, apud Minois: “Em vez de demonstrar, Shakespare mostra: o suicídio (de Romeu
e Julieta, cuja fatalidade exclui todo julgamento) tem o sentido que lhe dá o conjunto de um mo-
vimento dramático e poético. É por isso que Shakespeare não nos propõe uma apologia do suicí-
dio, mas uma apologia do amor ou, mais precisamente, do amor tal como o viveram Romeu e Juli-
eta. Nesta ótica existencial, o suicídio não apenas coroa a vida; ele a prolonga.”
76

MacDonald e Murphy no Weekly Journal da semana terminada em 21 de janeiro


de 1721, nos dias que se seguiram a uma crise de especulação financeira, dizia:
“Enforcaram-se 6. Um na Christ-Church em Londres, três (atordoados) em St.
Giles in the Field, um (lunático) em St. James Clerkenwell e um em St. Martin in
the Fields.” Às vezes, porém, eram adicionados, nesta ordem de freqüência, a
profissão do morto, seu endereço ou o local da sua morte, o seu nome e o
veredicto do coroner.
Ao lado de Catão ou de Ofélia, então, o inglês comum passou a se
acostumar ao suicídio ocorrido, por assim dizer, na porta ao lado – cometido por
outro inglês comum. Embora não houvesse nem exatidão quanto às causas nem
precisão estatística, a publicação das listas semanais inadvertidamente tornou a
morte voluntária familiar à Inglaterra, passando aos leitores a impressão de
regularidade do fenômeno, de tal modo que logo surgiria o mito da “doença
inglesa” – um eufemismo para suicídio, assim como “inefável vício grego” foi por
muito tempo usado para calar a palavra homossexualidade. A expressão foi
consagrada em The English malady, or a Treatise of nervous diseases of all kinds
[1733], obra de um famoso e devoto médico, George Cheyne. Na ocasião, ele
admitiu ter sido instigado a escrevê-la por amigos alarmados justamente com a
freqüência e o crescimento do número de suicídios registrado largamente pelos
jornais. A idéia da existência de uma maladie anglaise pegou sobretudo na
França.
Cheyne culpava basicamente duas causas complementares pela
concentração de suicídios na Inglaterra: o avanço do ateísmo, estimulado pelo
culto aos clássicos greco-romanos; e a tendência à melancolia, devida ao mau
tempo das ilhas britânicas. As pessoas realmente acreditavam numa razão
climática, ao menos até a publicação do estudo de Durkheim51. Seu conterrâneo
César de Saussure, por exemplo, recém-chegado a Londres, em 1727, declarou-se
abatido com as condições meteorológicas e que, se inglês fosse, certamente se
suicidaria. Em Histoire du suicide, Georges Minois comenta que “este mito das
Luzes só se atenuaria com o advento das estatísticas modernas” (p. 213).

51
Cruzando suas estatísticas, o sociólogo mostrou que não havia nenhuma ligação direta entre o
mau tempo e o número de suicídios. Pelo contrário, a maior parte das pessoas se matava em dias
de bom tempo – segundo sua tese, justamente porque eles representam maior necessidade ou pos-
sibilidade de interação social.
77

John Graunt, considerado o primeiro demógrafo inglês digno deste nome,


embora criticasse a exatidão dos números das bills of mortality, utilizou-os para
calcular uma média de 15 suicídios por ano em Londres entre 1629 e 1660 – para
uma população estimada entre 350 mil e 400 mil em 165052. Havia, dentro desse
período, picos tidos como inexplicáveis. É o caso dos 36 suicídios registrados em
1660. Minois levanta uma hipótese: “Há uma ligação com a troca de regime
ocorrida naquele ano, a monarquia sendo restaurada e pondo fim às esperanças de
alguns puritanos? Impossível de saber” (p. 178). Diferentemente do que pode ser
dito em relação à variável climática, porém, este pico é perfeitamente compatível
com a visão de Durkheim sobre a anomia, momento de transformações em que o
homem perde suas referências dentro da sociedade. Naquele 1660, a monarquia
foi restaurada, com Charles II sagrado rei, sucedendo ao “lorde protetor” Oliver
Cromwell e, após sua morte, ao seu filho Richard Cromwell.
Seja como for, sobretudo sob a Coroa, o número de suicidas registrado nas
bills of mortality era jogado para baixo pelo mascaramento dos óbitos em naturais
ou acidentais. Os júris locais, formados por moradores da comunidade,
freqüentemente também tratavam de subavaliar os bens do suicida, de modo a
proteger sua família da Justiça Real e do confisco que julgavam injusto. Uma lei
de 1693 estimularia ainda mais a fraude nos veredictos: por ela, os bens dos
suicidas não seriam mais confiscados em benefício do rei e sim do senhor local –
que os jurados odiavam ainda mais visceralmente.
Antes mesmo disso, MacDonald e Murphy mencionam com espanto o caso
de um certo John Wilkins, merceeiro em Norwich. Ele teria morrido em 1598,
uma semana depois de ter cortado a garganta. Chamados a testemunhar diante do
júri, coisa que raramente acontecia, um médico e três cirurgiões declararam que o
ferimento não poderia ter sido mortal. O júri, então, registrou que a misteriosa
doença fatal era anterior ao golpe, de modo a livrar Wilkins da condenação como
felo de se (expressão latina para “assassino de si mesmo”) que também adviria se
a doença fosse considerada posterior ao golpe. “A história toda é boa demais para
ser provável, embora, é claro, possa ter sido real” (p. 80), escrevem os autores.

52
Compare-se aos números divulgados pelos jornais de 1953 e lidos por Chad Varah (cf. p. 72):
três suicídios por dia – para uma população recenseada em 8.196.807 habitantes em 1951.
78

Em seu livro, eles destacam um capítulo inteiro – macluhanianamente


batizado de The medium and the message – para o papel da imprensa no
importante processo que chamam de “secularização do suicídio”, ou seja, a
passagem do tema do domínio religioso para o domínio leigo durante o período
estudado, 1500-1800. Nestes três séculos, no contexto da reação às idéias da
Renascença, a atitude prevalente na sociedade inglesa foi de severidade e
repressão ao suicídio; e, num segundo momento, no contexto do Iluminismo, foi
de aumento da tolerância – com respeitáveis contra-correntes de sensibilidade às
razões da morte voluntária e de intolerância dentro de cada uma dessas marés.
A partir de 1695, a maré da tolerância cresceu lado a lado com o notável
aumento da tiragem dos jornais na Inglaterra e, portanto, do notável aumento da
circulação das bills of mortality. As tiragens dos principais títulos londrinos
atingiram 15 mil exemplares (às vezes três dias por semana) em 1704. A feroz
cobrança de impostos pela Coroa e a correspondente sonegação pelos editores
impossibilitam a obtenção de dados precisos para os anos seguintes. No entanto,
mesmo as incompletas estatísticas oficiais apontam para o crescimento acentuado
do número de exemplares vendidos: 7,4 milhões em 1753 e 15 milhões em 1792 –
100% de aumento em menos de cinqüenta anos. Tais cifras estão longe de conter
o universo de leitores não só pelas fraudes, mas também porque pubs, cafés e
estalagens faziam assinaturas de jornais. Seus fregueses discutiam os temas em
pauta, da política ao suicídio. Ou seja, indiretamente, a profusão de publicações na
época atingia inclusive os analfabetos da população. Ocorreu uma revolução,
descrita na seguinte citação (o grifo no final é meu):

O fenomenal crescimento da imprensa periódica e o contínuo


avançar da alfabetização depois de 1700 transformou a
hermenêutica do suicídio, assim como afetaram quase todo
outro aspecto da vida social e cultural. A proliferação de jornais
diários e semanais e de resenhas mensais criou um novo modo
de comunicação. O papel da tradição oral e do ritual
comunitário diminuiu e ler se tornou crescentemente
importante. Pat Rogers corretamente assinala que a ascensão da
imprensa periódica “afetou o modo como as pessoas
construíram o mundo em torno delas”. Ela alargou
enormemente o horizonte espacial e social dos leitores. Ela
levou-lhes notícias de eventos ocorridos por todo o país,
particularmente em Londres, e divulgou novas atitudes e idéias
muito mais efetivamente do que panfletos ou púlpitos. Ela
ajudou a formar consciência política e expôs leitores
provincianos de todas as classes sociais aos valores e opiniões
79

correntes na sociedade londrina. Ela também carregou notícias


de suicídios para um vasta audiência de leitores e os habilitou
a formar seu próprio juízo sobre eles. Os rituais de julgamento
e enterro foram eclipsados como o principal meio pelo qual as
pessoas conheciam suicídios e avaliavam seu significado.
(MACDONALD e MURPHY, 1990, p. 301).53

As próprias necessidades intrínsecas ao moderno texto jornalístico


facilitavam a compreensão da morte voluntária e de sua freqüência dentro da
sociedade. A credibilidade dos jornais passava – e passa – pela cobertura extensa,
acurada e detalhada de dados: cotações da bolsa, preços de mercadorias,
estatísticas, votações, placares. No século XVIII, as bill of mortality entravam
neste pacote. O Northampton Mercury, por exemplo, se gabava: “A Bill of
Mortality, ou conta dos batizados e enterros, será inserida (aqui) com a mais
precisa exatidão.” Dizia-se isso na insinuação de que os concorrentes poderiam
estar – e às vezes efetivamente estavam – omitindo de suas listagens os suicidas.
Assim, até esta briga empresarial pelo nascente mercado de jornais ajudava a
consolidar a passagem do assunto da esfera religiosa para a esfera leiga – sua
secularização.

Os jornais dificilmente teriam conquistado respeitabilidade


como veículos de dados factuais se tivessem tratado as mortes
nas bill of mortality como evidência dos julgamentos de Deus
ou influência satânica, como as velhas folhas faziam.
(MACDONALD e MURPHY, 1990, p. 306).54

53
The phenomenal growth of the periodical press and the continuing spread of literacy after 1700
transformed the hermeneutics of suicide, just as they affected almost every other aspect of social
and cultural life. The proliferation of daily and weekly newspapers and monthly reviews created a
new form of communication. Oral tradition and communal rituals played a diminishing role in
popular culture and reading became increasingly important. Pat Rogers rightly remarks that the
rise of the periodical press “affected the way in which people constructed the world around them”.
It greatly broadened the spatial and social horizons of its readers. It brought them news of events
that occurred all over the country, particularly in London, and it publicized new attitudes and ideas
far more effectively than pamphlets or the pulpits. It helped form political consciousness and ex-
posed provincial readers of every social rank to the values and opinions current in London society.
It also carried news of suicides to a vast audience of readers and enabled them to form their own
judgements about them. The rituals of judgement and burial were eclipsed as the chief means by
which people learned of suicides and assessed their significance.
54
The papers would hardly have gained credibility as vehicles of factual data had they treated the
deaths in the bills as evidence of God’s judgements or satanic influence, as the old broadsides had.
80

A apresentação do suicídio como mero fato da vida, como uma desgraça


igual a qualquer outra, desestimulava e ridicularizava as interpretações
sobrenaturais do gesto de tal modo que nem mesmo o devoto doutor Cheyne
invocava mais o demônio em suas perorações anti-suicidárias pós-1700. Sua
crença na “doença inglesa” se referia a fatos sociais e – ao menos supostamente –
científicos, ou seja, deste mundo, não do outro. A imprensa inglesa da época,
contudo, não se limitou a secularizar o suicídio pela revelação de sua freqüência e
de sua quantidade nas bills of mortality. O imperativo jornalístico-mercadológico
da veracidade também atuava no sentido de detalhar casos específicos.
A eficiência da personalização ainda é válida nos jornais de hoje: uma
notícia irá interessar mais fortemente ao leitor conforme adquira uma feição
humana. Informar apenas o aumento médio do preço do material escolar, por
exemplo, não é tão atraente para o público quanto achar, nas lojas, uma
determinada mãe, com nome e sobrenome – uma pessoa comum com quem o
leitor possa se identificar. Ao abundantemente noticiarem, crescentemente
detalharem, largamente debaterem e seguidamente reescreverem os casos mais
célebres de suicídio de seu tempo, os jornais da Inglaterra do século XVIII
fizeram o mesmo: mostraram que o morto era uma pessoa comum atravessando
um mau momento. Na maior parte das vezes, ele era digno de pena, não de
condenação ou excomunhão.
Se a partir de 1780 o respeitável The Times experimentou uma onda
conservadora, elogiando, por exemplo, o coroner de Middlesex por seu rigor
investigativo contra os suicidas, também foi capaz de carrear solidariedade a um
certo Kennedy, “um ator se não eminente, útil”, na sua edição de 23 de junho de
1786 (citada em Sleepless souls, p. 314-315). Kennedy havia tido seu rosto
desfigurado no incêndio que matou sua esposa. Por conta dos ferimentos, sua
carreira acabou. Deprimido, ele ficou paralítico depois de um derrame. Ficou
inteiramente dependente de um amigo, que, por sua vez, também não tardou a
morrer. Diante dessa sucessão de desgraças, o Times publicou: “Pobre Kennedy,
que foi um homem de espírito e de estrita integridade, (quando sua vida) tornou-
se insuportável, ele saiu de cena pela última vez com uma navalha, nos seus 66
anos!”
Dois outros casos levantados na época por Sleepless souls dão bem uma
idéia de a que minúcias os jornais ingleses desciam no duplo propósito de
81

protestar apego aos lamentados fatos e aproximá-los do distinto público leitor. Os


exageros da concorrência, porém, freqüentemente faziam que o segundo propósito
preponderasse sobre o primeiro em relatos fantasiosos e – de jornal a jornal, ou
mesmo de versão a versão num mesmo veículo – contraditórios. MacDonald e
Murphy entendem, de um modo que ecoa Van Dijk55, que:

Num sentido, então, os jornais eram um tipo de literatura


popular coletiva. Seus estilos e conteúdos eram produto dos
gostos e interesses de muitas pessoas, não apenas os de seus
impressores. Professores de literatura recentemente nos
ensinaram a interpretar obras de arte em termos de códigos
culturais que elas expressam e refletem. Eles pediram uma
“poética cultural” que contemple os textos literários como
produções coletivas – manifestações de práticas culturais e
crenças coletivas – mais do que como expressão única das
imaginações individuais de seus autores. Nenhuma forma de
“literatura” se presta melhor a essa abordagem do que a
imprensa popular. (ibidem, p. 302)56

Em seu texto incluído em A handbook of qualitative methodologies, o


pesquisador holandês utiliza um texto publicado no jornal inglês Daily Mail, em
sua edição de 21 de janeiro de 1989, como exemplo da ênfase e reprodução, pela
imprensa conservadora ocidental, de estereótipos negativos sobre minorias,
imigrantes e refugiados, “assim contribuindo para o crescimento de formas de
intolerância, preconceito e discriminação contra os povos do Terceiro Mundo na
Europa e na América do Norte” (1991; p. 111).
Este, afinal, é o foco de sua pesquisa: o racismo no discurso jornalístico.
Van Dijk destrincha a notícia da repatriação de um refugiado do Sri Lanka, Viraj
Mendis, depois de ele ter buscado refúgio numa igreja de Manchester. Encontra
nela os elementos que reforçam a ideologia de seus próprios leitores: forasteiros
são perigosos e não são bem-vindos. Mendis, de quebra, é chamado de
“marxista”, rótulo irrelevante no contexto, como nota o estudioso. Mesmo aqueles
ativistas que foram protestar contra sua deportação no entorno do aeroporto de

55
Cf. p 23 e 56.
56
In a sense, then, the newspapers were a kind of collective popular literature. Their style and con-
tent were the product of many people’s tastes and interests, not just those of their printers. Literary
scholars have recently taught us to interpret works of art in terms of the cultural codes they express
and reflect upon. They have called for a “cultural poetics” that regards literary texts as collective
productions – manifestations of cultural practices and collective beliefs – rather than as the unique
expression of their authors’ individual imaginations. No form of “literature” lends itself to this
approach more readily than the popular press.
82

Gatwick, em Londres, não escapam deste tipo de associação despropositada: são,


para o jornal, revolucionários, gays, lésbicas e negros – não exatamente os grupos
sociais aos quais os leitores do Mail são simpáticos.
Nos dois casos levantados por MacDonald e Murphy, o mecanismo é o
mesmo, mas atua no sentido contrário: não o de despertar a ojeriza dos leitores e
sim o de estimular-lhes a simpatia. Detalhes irrelevantes são apresentados à
Londres do século XVIII como estratégia para tornar os suicidas simultaneamente
mais reais e mais humanos aos seus olhos. Bilhetes de despedida, em particular,
eram disputados a tapa pelos jornais. Para os historiadores americanos, as extensas
descrições permitiam transportar o leitor para a cena da morte; e os bilhetes
permitiam-lhe entrar na própria cabeça do morto, ouvir-lhe a voz, reverberando do
além, a dar explicações sobre o seu gesto extremo. Antes de os examinarem eles
fazem uma ponderação que se aplica tanto ao caso analisado por Van Dijk quanto
aos casos publicados no Globo em 2004, que veremos mais adiante:

O realismo é uma convenção tão artificial quanto a alegoria.


Para ser convincente, uma narrativa deve satisfazer nossas
expectativas do que inclui um relato verdadeiro de um evento.
Ela deve ser apta à visualização, acurada nos detalhes
circunstanciais e plausível psicologicamente. Os jornais são
ruins para a arte mimética. Eles oferecem pouca possibilidade
para criar uma narrativa profunda, porque a maior parte das
histórias nos jornais são curtas e a publicação seriada torna
difícil o desenvolvimento dos personagens. (MACDONALD e
MURPHY, 1990, P. 316).57

A aparência de verdade, portanto, surge como tão indispensável ao


jornalismo como a própria verdade. Não raro se escuta nas redações, ainda hoje,
uma frase que remete ao rocambolesco caso do veredicto para John Wilkins (cf. p.
83): “Esta história é boa demais para ser verdade!” Logo, é a construção da
história – inventada ou não, no todo ou parcialmente – por detalhes verossímeis
que impulsiona o marketing da verdade praticado pelos primeiros jornais
modernos.

57
Realism is as artificial a convention as allegory. To be convincing a narrative must satisfy our
expectations of what a truthful account of an event includes. It must be able to be visualized, accu-
rate in its circunstantial details, and psychologically plausible. The newspaper is a poor medium
for mimetic art. It affords little scope for creating narrative depth, for most newspaper stories are
short, and serial publication makes it difficult to develop character.
83

3.7
Os casos de Fanny Braddock e do casal Smith

O primeiro caso destacado por Murphy e MacDonald é o de Fanny


Braddock, dama da sociedade que se enforcou em Bath, em 1731. Após sua
morte, ela foi universalmente descrita pela imprensa como uma pessoa estimada
por seus bons comportamento e senso. A discreta nota crítica se deu não sobre o
seu ato, mas sobre seu gosto pelo jogo. Ela dissipara duas grandes heranças, de £
6 mil cada, uma recebida diretamente de seu pai, outra, indiretamente, de sua
irmã. A mensagem nos textos, portanto, era a de que a jogatina era um vício
perigoso e não a de que o suicídio era um pecado. Simplesmente não se tratava
mais disso. Assim, os jornais se esmeraram – não raro entrando no terreno do
meramente fantasioso – sem culpas na descrição de detalhes de como seu corpo
fora encontrado.
O Fogs Weekly Journal, por exemplo, destacou o fato de que ela usou uma
cinta de ouro para se enforcar. Já o Gentleman’s Magazine explicou que, na
verdade, ela usara duas cintas, uma de ouro, outra de prata, para fazer o nó
corrediço que lhe tirara a vida. O primeiro jornal imaginava que a suicida,
imediatamente antes de sua morte, se encontrava num estado contemplativo por
causa da posição da cadeira e de um livro sobre a mesa. O segundo detalhava o
modus operandi de Fanny: um laço vermelho rasgado numa primeira tentativa, a
cadeira usada para se equilibrar antes do enforcamento etc. O Gentleman’s
Magazine avançava também em detalhes mórbidos, como o rosto congestionado
de sangue e a língua mordida. MacDonald e Murphy consideram este caso
“especialmente interessante porque mostra o quão indeterminada era a fronteira
entre jornalismo e ficção” (p. 318):

Alguns anos após a morte de Fanny, John Wood incluiu um


depoimento sobre ela em seu Description of Bath. Wood foi,
segundo ele mesmo, senhorio de Fanny durante os últimos treze
meses de sua vida e a conhecia bem. Ele forneceu informações
sobre o seu passado, a herança da fortuna, os hábitos e suas
conexões que não haviam sido publicadas previamente. Ele
também a descreveu como vítima de rumores caluniosos que a
acusavam de levar uma vida sexual promíscua, mas acrescentou
que ela parecia exercer um poder mais forte sobre o desejo das
mulheres do que o seu considerável atrativo aos homens. (...)
Oliver Goldsmith, em sua biografia de Beau Nash, desenvolveu
84

uma versão ainda mais pungente da história de Fanny. Ele a


tornou vítima de um cavalheiro inescrupuloso, cuja dissipação a
levou a gastar a sua fortuna. (ibidem, p. 318-319).58

Os autores duvidam que tanto Wood quanto Goldsmith – um dos maiores


autores da época, frisam – estivessem cientes da distinção entre ficção e não-
ficção. Interessante, no relato do primeiro, é notarmos a aparição não-conclusiva
do tema da homossexualidade ou, ao menos, do homoerotismo, tema ao qual aos
leitores conservadores da época de Fanny, como, aliás, os do contemporâneo
Daily Mail, ainda reagem mal, como mostrou Van Dijk. Igualmente, na
reconstrução ficcionalizada do segundo, cabe ressaltar o empenho no sentido de
atrair a solidariedade do público à desafortunada dama. Neste duplo e discreto
movimento, de repulsa e de atração, porém, os leitores de jornais e de livros do
século XVIII experimentam o suicídio cotidiano de um modo substancialmente
diferente daquele vivido pelos que os precederam. Fanny emergia como uma
mulher de carne e osso, com qualidades e defeitos, não mais como uma
endemoniada ou louca. Foi nesta época, aliás, entre os séculos XVII e XVIII, que
Michel Foucault, em História da Loucura, localiza a consciência de que a loucura
é um problema social, com a conseqüente multiplicação dos lugares destinados ao
seu confinamento. Porque era lógico, não natural, que ela configurasse uma
ameaça à era que se pretendia da Razão.

A Salpêtrière abrigava 3.059 pessoas em 1690; cem anos mais


tarde, mais do dobro, 6.704, segundo o recenseamento feito por
La Rochefoucauld-Liancourt para o relatório do Comitê de
Mendicância. (...) De repente, todos se põem novamente a
praticar o internamento dos loucos de que se tinha notícia ainda
na Renascença. (FOUCAULT, 2003, p. 382-383).

58
Some years after Fanny’s death, John Wood included an account of her death in his Description
of Bath. Wood had been, according to his own testimony, Fanny’s landlord during her last thirteen
months of her life and knew her well. He supplied information about her background, the inheri-
tance of her fortune, her habits, and her connections that had not been previously published. He
also depicted her as the victim of slanderous rumours charging her with being sexually loose, but
he added that she seemed to exercise a power over the desires of women stronger than her consid-
erable attractviness to men. (...) Oliver Goldsmith, in his biography of Beau Nash, developed an
even more poignant version of Fanny’s story. He made her into the victim of na unscrupulous gen-
tleman, whose dissipation causes her to waste her fortune.
85

Um episódio ocorrido no ano seguinte à morte de Fanny Braddock ilustra


ainda melhor a humanização da figura do suicida e a conseqüente secularização
do seu ato: o duplo suicídio de Richard e Bridget Smith, no dia 18 de abril de
1732. Antes de se enforcarem em seus alojamentos, o pai matou o filho de dois
anos com um tiro na cabeça. As primeiras histórias a circular faziam de Richard o
assassino também de sua esposa59. Ele estaria sendo pressionado por uma parenta
dela, de quem tomara dinheiro emprestado. No noticiário, a culpa pela tragédia era
apontada muito mais para a falta de sensibilidade desta personagem misteriosa do
que para as furiosas paixões do marido. A imprensa popular inglesa da época –
como, aliás, qualquer imprensa popular de qualquer período subseqüente – era
particularmente simpática aos devedores, seus potenciais leitores. Afinal, havia
cada vez mais devedores naquela época de anomia, capitalismo iniciante,
crescimento urbano desordenado e decomposição das solidariedades tradicionais:

É certo que o desenvolvimento do capitalismo é um fator


importante na alta da taxa de suicídios ao curso daquele
período. Fundado sobre o individualismo, o risco, a
concorrência, as apostas arriscadas, é um fator de instabilidade
e de insegurança. Os sistemas de solidariedade das guildas e
corporações desaparecem e deixam o indivíduo sozinho face à
sua ruína. (...) A imprensa ecoa também os suicídios ordinários
por desilusão amorosa, problemas conjugais, dramas familiares,
lutos insuportáveis, violação, vergonha, remorso, litania
habitual das misérias humanas. Mas não é impossível que estes
casos tenham sido multiplicados por um começo de
afrouxamento dos laços familiares, os primeiros sinais da
moderna desintegração das grandes famílias. (...) O isolamento
do indivíduo cresce no próprio seio do gregarismo e da
promiscuidade urbanos. (MINOIS, 1995, p. 218-219).60

59
Como vimos, ainda hoje, a Folha de S. Paulo recomenda que o suicídio não seja omitido quan-
do for a causa ou a conseqüência da morte de (mais) alguém. Como veremos na terceira parte des-
te trabalho, homicídio seguido por suicídio é também rotineiramente noticiado pelo Globo.
60
Il est certain que le développement du capitalisme est un facteur important de la hausse du taux
de suicides au cours de cette période. Fondé sur le individualisme, le risque, la concurrence, les
paris hasardeux, c’est un facteur d’instabilité et d’insécurité. Les systèmes de solidarité des guildes
et corporations disparaissent et laissent l’individu seul face à sa ruine. (...) La presse se fait aussi
l’écho des suicides ordinaires pour chagrin d’amour, problèmes conjugaux, drames familiaux,
deuils insupportables, voil, honte, remords, litanie habituelle des misères humaines. Mais il n’est
pas impossible que ces cas aient été multipliés par um début de relâchement des liens familiaux,
les premier signes de la désintégration moderne de la familie large. (...) L’isolement de l’individu
s’accroît au sein même de la grégarité et de la promiscuité urbaines.
86

Richard e Bridget, contudo, deixaram três bilhetes de despedida, um para o


seu senhorio e dois para um familiar de nome Brindley. Liberados por este último
para a imprensa, uma semana depois da morte do casal e do filho, eles lançaram
novas luzes sobre o episódio, dividindo a responsabilidade entre marido e mulher,
destacando a face humana, demasiado humana do seu gesto. O bilhete endereçado
ao senhorio pedia-lhe que pagasse algumas contas pendentes e que arrumasse um
novo lar para o cão e para o velho gato da família. Eles haviam deixado um pouco
de dinheiro e alguns bens especificamente com este propósito. O segundo bilhete,
dirigido ao próprio parente, acusava uma pessoa não identificada, provavelmente
um credor, pela desgraça da família Smith. A terceira, também dirigida a
Brindley, fazia uma longa defesa filosófica da morte voluntária. O conjunto era
espetacular. Tanto que o Country Journal, por exemplo, publicou toda a história
como uma espécie de conto epistolar, pouca informação acrescentando além da já
presente nos três bilhetes. “Nós escolhemos dá-las genuínas ao leitor e deixar a ele
fazer suas reflexões sobre cena tão chocante” (p. 320-321), justificou.

As notas eram irresistíveis para os homens de imprensa por


causa das vívidas impressões que transmitiam das
personalidades dos Smith e também pelas visões heterodoxas
que eles propõem. Eles tornam inadequadas as caricaturas
simples das histórias criminais, e os redatores modelaram seus
relatos para aumentar o seu impacto. Richard e Bridget revivem
em suas cartas como complexos e contraditórios seres humanos.
Eles eram trabalhadores e honestos, mas amargurados contra o
sistema e as pessoas que haviam punido sua labuta com pobreza
e degradação. Capazes de estourar os miolos de seu filho, eles
mostraram ternas preocupações pelos seus cão e gato
(MACDONALD e MURPHY, 1990, p. 321).61

Segundo o relato do Fog’s Weekly Journal, porém, eles também


demonstraram comoventes cuidados um pelo outro: entre os corpos pendurados
do marido e da mulher teria sido encontrada uma cortina suspensa, detalhe
interpretado como “supostamente para impedir a visão um do outro quando sob as

61
The notes were irresistable to the pressmen because of the vivid impressions that they conveyed
of the Smith’s personalities as well as the heterodox views that they propounded. They made the
simple caricatures of criminal story inadequate, and writers shaped their accounts to enhance their
impact. Richard and Bridget come alive as complex and contraditory human beings in their letters.
They were industrious and honest but embittered against the system and people that had punished
their industry with poverty and degradation. Capable of blowing their child’s brains out, they sho-
wed a tender concern for their dog and cat.
87

agonias da morte”. Já o redator do Historical Register, citado por MacDonald e


Murphy, fez um significante elogio fúnebre de Richard e Bridget ao escrever:
“Eles foram, talvez, o mais carinhoso casal a ser encontrado nas Bills of
Mortality”. Mesmo jornalistas menos simpáticos ao suicídio fizeram questão de
ressaltar que os Smith eram tidos por todos os seus vizinhos como honestos,
trabalhadores e carinhosos, tamanha a simpatia despertada por eles na consciência
de seus contemporâneos.
Livros e impressos parecem envolver toda a história do casal Smith.
Richard era encadernador. Pouco antes da sua morte, havia sido publicada, não
sem escândalo, uma apologia do suicídio escrita por Alberto Radicati, conde de
Passerano, exilado em Londres. A Philosophical dissertation upon death podia
faltar sutileza filosófica ou originalidade, mas não paixão na defesa da morte
voluntária. Radicati era um epicurista. Como os estóicos, ou seja, como Catão, os
epicuristas buscavam atingir a indiferença diante da morte, a ponto mesmo de
buscá-la se a Natureza, tida como fundamentalmente benévola, não mais lhes
proporcionasse qualquer pequeno prazer. Dada a profissão de Richard e o apego
da família pelos livros, o nobre italiano foi acusado de influenciar a drástica
decisão dos Smith.
No mais filosófico de seus bilhetes de despedida, eles tentavam justificar
seu suicídio e o assassinato de seu filho apelando não tanto ao desespero mas à
razão. Eles chegavam a dizer que sua fé em Deus não era propriamente fé e sim
uma crença racional, “deduzida da Natureza e da Razão das Coisas”. Assim
sendo, diante da harmonia universal vislumbrada para além da morte, acreditaram
que seriam julgados com misericórdia pela bondade divina, posto que não
anteviam nada mais, exceto degradação, diante de si e de seu bebê. Sua defesa da
morte voluntária – cuja seriedade era certificada pelo seu próprio suicídio –
circulou por jornais não apenas de Londres e da Inglaterra, mas de toda a Europa,
proporcionando notoriedade à obra de Radicati. Não por acaso, no ano seguinte ao
suicídio dos Smith, o alarmado Cheyne publicava The English malady.
88

3.8
O papel didático das cartas dos suicidas

“No momento da morte, eles não tinham nada mais a não ser a linguagem
para endireitar o mundo” (p. 327), escrevem MacDonald e Murphy acerca não
especificamente dos Smith, mas de todos aqueles suicidas que julgaram adequado
deixar uma carta para a posteridade. Não era apenas uma explicação dos seus
motivos. A carta não se encerrava em si ou com a morte do remetente. Era
também o meio mais eficiente de influenciar a recepção do suicídio pelos
sobreviventes, aí incluídos os conhecidos, os desconhecidos e, last but not least,
as autoridades encarregadas de apurá-lo e, se fosse o caso, puni-lo. Uma grande
audiência, enfim. Neste ponto, cabe informar que as punições aos suicidas só
foram abolidas pelo Parlamento inglês em 1823 (as religiosas), 1871 (as
seculares) e 1961 (a abolição da figura jurídica do felo de se, o assassinato de si
mesmo, na Common Law).
Os historiadores americanos notaram que bilhetes de suicídio eram muito
raros no século XVII. Sua conclusão é de que o mesmo crescimento da
alfabetização que aumentou a circulação dos jornais, o seu número de leitores e o
contato destes com notícias de suicídio também conduziu à multiplicação das
cartas de despedida. Em Sleepless souls, eles conseguiram reunir 70 bilhetes do
século XVIII. Embora seja virtualmente impossível separar os autênticos dos
inventados, e embora reconheçam a limitação numérica de sua amostragem face
ao amplo universo da morte voluntária na Inglaterra daquele período, MacDonald
e Murphy acreditam que ela ainda assim seja útil no sentido de atestar o
estabelecimento do bilhete de suicídio como um outro gênero literário em si.

A maioria tanto dos bilhetes impressos quanto dos manuscritos


foi escrita por londrinos, principalmente homens e mulheres das
classes médias. O estilo e o conteúdo da dúzia de bilhetes
manuscritos acompanham de perto os que eram impressos nos
jornais. Como os bilhetes na imprensa, eles empregam a
retórica dos testamentos, das últimas palavras e das cartas
pessoais. A maioria é em prosa, mas vários foram escritos em
versos. Muitos bilhetes tinham um propósito instrumental. Eles
perpetuavam a influência do suicida ao menos por um curto
período após a sua morte. Como as últimas vontades e os
testamentos que eles freqüentemente imitavam, eles
combinavam a disposição de suas propriedades, concediam
89

bênçãos aos sobreviventes e até expediam instruções para o


enterro de seus corpos. (...) Alguns suicidas, sabendo que suas
palavras seriam lidas publicamente durante o inquérito do
coroner, procuravam influenciá-lo ou influenciar os jurados.
(ibidem, p. 327-328).62

Portanto, as pessoas aprendiam a se dirigir do além-morte ao grande


público, seja nos inquéritos seja nos jornais, lendo na própria imprensa outras
cartas de despedida. Tomadas como modelos, elas ensinavam tanto o modo de se
expressar como, também, quais tópicos deveriam ser preferencial ou
obrigatoriamente incluídos. MacDonald e Murphy afirmam que, mais que
qualquer outra, a grande preocupação dos suicidas em seus bilhetes era com sua
reputação. Cientes de que, como eles mesmos haviam feito a fim de apreender
uma retórica da morte voluntária, outros leriam suas alegações finais, não
poupavam recursos no sentido de comover a sua platéia, apresentando-se, o mais
das vezes, como vítimas das circunstâncias, simples merecedores de piedade, não
de animosidade.
A necessidade de prestar satisfações confirma as idéias de Durkheim sobre
a relação, pela afirmação ou pela negação, entre a morte voluntária e a sociedade
em que ela se dá: o egoísta se matando por estar desligado dela, o altruísta por
estar ligado demais a ela e o anômico por não mais se localizar nela. Fosse qual
fosse o tipo, ele não levava muito a sério o conteúdo das cartas do suicídio.

As confidências que o próprio sujeito nos faz sobre seu estado


são, na maioria das vezes, insuficientes, quando não suspeitas.
Com muita freqüência ele é levado a enganar-se a respeito de si
mesmo e da natureza de suas disposições; por exemplo, imagina
que age com sangue-frio, ao passo que está no auge da
superexcitação. (DURKHEIM, 2000, p. 166-167).

A despeito deste possível processo de mistificação, porém, ou talvez


justamente por causa dele, as cartas de Sleepless souls não raro alcançavam um

62
The majority of both the printed and the manuscript notes were written by Londoners, mostly
men and women of the middling classes. The style and content of the dozen manuscript notes clo-
sely resemble those that were printed in the papers. Like the newspaper notes, they employed the
rhetoric of wills, of dying speeches, and of personal letters. Most are in prose, but several were
written in verse. Many notes had an instrumental purpose. They perpetuated the suicide’s influence
at least a brief space after his death. Like the last wills and testaments that they often imitated, they
settled the disposition of the property, bestowed blessings on their surviors, and even issued in-
structions for the burial of their bodies. (...) Some suicides, knowing that their words would be
read publicly at the coroner’s inquest, sought to influence the coroner or the jurors.
90

alto nível literário. Foi o caso da de uma nobre que se afogou voluntariamente no
mar, em Deal, em 1726. Em sua carta, publicada no London Journal, ela começa
oferecendo perdão a todos aqueles que a enganaram, inclusive um certo “Mr. L”,
causador de sua desgraça. Ao mesmo tempo, faz questão de esclarecer que, ao
contrário do que o seu sedutor espalhara pela comunidade, ela não era uma
vagabunda. Apenas fora fraca diante dos repetidos apelos de “Mr. L” (“ele
continuou de joelhos, implorando para perdoá-lo; prometendo tudo o que um
homem pode dizer”, diz um trecho) enquanto o marido dela estava fora, no mar. E
por aí vai, dando a própria versão dos fatos que resultaram na sua morte.

Esta carta é uma extraordinária realização. A oscilação da


autora entre raiva e dor, honradez e vergonha, ódio e amor, cria
um quadro inteiramente realista de uma mente tomada por
emoções poderosas e conflitantes. Como o monólogo final de
uma heroína trágica, esta carta captura a tensão entre o
reconhecimento da autora do papel que desempenhou em sua
própria queda e sua persistência na ilusão que a arruinou.
Tragédia contemporânea é apenas um dos gêneros que
fornecem o material literário para esta desesperada obra de arte.
(MACDONALD e MURPHY, 1990, p. 333).63

Além do zelo com sua reputação póstuma, os suicidas do século XVIII


tentavam, por intermédio das palavras, ou amenizar a dor dos entes queridos ou,
ao contrário, aumentá-la com um derradeiro gesto de vingança – como parte da
carta da senhora de Deal. Cita-se ainda o bilhete de John Stracy, que, a despeito
do my dear de praxe no início, culpa a mulher infiel pela sua morte e ainda espera
que o amante dela pense em sua “triste catástrofe”. Explícita ou implicitamente,
no final das contas, a vingança64 sempre foi um componente forte do suicídio, seja
para espicaçar a já pesada culpa que toma as pessoas próximas (sem falar na culpa

63
This letter is an extraordinary achievement. The writer’s oscillation between anger and grief,
righteousness and shame, hate and love, creates an utterly realistic picture of a mind rent by pow-
erful and conflicting emotions. Like a tragic heroine’s last monologue, this letter captures the ten-
sion between the writer’s recognition of the part that she played in her own downfall and her per-
sistence in the delusion that ruined her. Contemporary tragedy is only one of the genres that pro-
vided the literary materials for this desperate work of art.
64
Cassorla, em O que é suicídio, coleta exemplos de suicídios explicitamente vingativos. Na China
antiga, por exemplo, grupos de homens se suicidavam antes das batalhas, buscando fazer com que
suas almas atacassem furiosamente os inimigos, responsáveis últimos por suas mortes. Em certas
tribos de Gana, se o indivíduo se mata culpando outro habitante da aldeia, este também é obrigado
a se matar. O povo chuvache, da Rússia, costumava se enforcar à porta dos seus desafetos. “Em
muitos grupos, acreditava-se que a alma do suicida perseguia o ofensor; isso persistiu pelos tempos
e continua no psiquismo profundo das pessoas até hoje” (CASSORLA, 2005, P. 38).
91

original que o próprio suicida talvez busque expiar com seu gesto) seja na crença
mística de exercer um devastador poder prático sobre os supostos desafetos.
Se partirmos das cartas de despedida examinadas por MacDonald e
Murphy para as cartas de despedida coletadas por Marc Etkind em ...Or not to be,
iremos encontrar a mesma retórica derivada dos testamentos escritos65, a mesma
pretensão de influenciar o julgamento dos sobreviventes e a mesma tentativa de
atrair-lhes a simpatia e a piedade, além, claro, do mesmo subtexto de vingança.
Eis, por exemplo, um trecho da última carta de Adolf Hitler, que, junto
com a mulher Eva Braun, se suicidou a 30 de abril de 1945 , no bunker sob o solo
da Chancelaria, em Berlim, quando as tropas soviéticas já se encontravam a
poucas centenas de metros (a Segunda Guerra acabaria na Europa oito dias
depois):

Minha mulher e eu escolhemos morrer para escapar da


vergonha da deposição ou da capitulação. É nosso desejo que
nossos corpos sejam cremados imediatamente no lugar onde eu
prestei a maior parte do meu trabalho durante doze anos a
serviço do meu povo. (apud ETKIND, 1997, p. 20).66

Não encontramos aí tanto a justificativa para o gesto e o protesto de honra


quanto a mal-disfarçada acusação? De acordo com seu biógrafo Joachim Fest,
Hitler, tomado por delírios de abandono e traição nos últimos dias de sua vida,
passou a culpar a suposta fraqueza do povo alemão pela derrota do Terceiro
Reich67. Diferentemente dos Smith, que pouparam o gato e o cão, Hitler ordenou
que até a sua amada cadela pastor alemão, chamada Blondi, fosse morta, bem
como seus cinco filhotes, para evitar que também ela caísse na mão dos
soviéticos.
Outro duplo suicídio mencionado por Etkind adota, em seu bilhete de
despedida, um tom não muito diferente, apesar do conteúdo e da conjuntura

65
Cabe lembrar que, com Rodrigues em Tabu da morte, o testamento era oral e “parte naturalmen-
te integrante do rito de morrer”. A partir do século XII é que ele se torna quase um sacramento,
sendo apropriado (e escrito) primeiro por um religioso, depois por um funcionário público.
66
My wife and I choose to die in order to escape the shame of overthrow or capitulation. It is our
wish for our bodies to be cremated immediately on the place where I have performed the greater
part of my daily work during twelve years of service to my people.
67
Pela incineração dos corpos, Hitler quis evitar que acontecesse com ele e com Eva Braun o
mesmo que acontecera com o ditador Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci: após serem
executados por partigiani, seus corpos foram exibidos e vilipendiados por uma multidão furiosa na
Piazzale Loreto, em Milão.
92

completamente diversas. É o do casal Arthur e Cynthia Koestler. Autor de O zero


e o infinito, entre outras obras, o escritor, jornalista, filósofo, ex-combatente e
ativista político inglês nascido na Hungria foi vice-presidente de uma sociedade
pelo direito à morte digna, chamada sugestivamente de Exit (saída, em inglês).
Para ela, escreveu A guide to self deliverance. Aos 77 anos de idade, sofrendo de
um tipo raro de leucemia e de Mal de Parkinson, e apesar de já mal andar ou falar,
Koestler decidiu passar da teoria à ação. Deu o cão de estimação e se trancou na
casa do bairro londrino de Knightsbridge para se matar ingerindo barbitúricos, a 2
de março de 1983. Sua terceira mulher e mãe de sua filha, Cynthia Jeffries, então
com 55 anos, embora gozasse de perfeita saúde, decidiu acompanhá-lo.
No bilhete que começara a escrever oito meses antes de sua morte,
Koestler expôs suas mazelas físicas, suas razões para cometer o suicídio e disse:
“O que (...) torna difícil dar o último passo é a reflexão sobre a dor que ele está
destinado a infligir a meus poucos amigos vivos e, sobretudo, à minha esposa
Cynthia.” Ao pé da página, porém, ela acrescentou: “Eu gostaria de terminar meu
relato sobre o trabalho com Arthur – uma história que começou quando nossos
caminhos se cruzaram, em 1949. Contudo, eu não posso viver sem Arthur, a
despeito de certos recursos interiores.” Suicídios de viúvas não são raros noutras
sociedades.

3.9
As cartas brasileiras e as dos resistentes franceses

O único trabalho realizado no Brasil em torno de cartas e bilhetes – além de


fitas cassete – deixados por suicidas até a presente data coube à psicóloga paulista
Maria Luiza Dias. Em Suicídio – Testemunhos de adeus (1991), originado de sua
dissertação de mestrado na USP, ela coletou exemplos relativos aos anos de 1986
e 1987 no Instituto de Criminalística de São Paulo, estado em cuja capital estima-
se que mais de 1.000 pessoas se matem a cada ano. Antes de enveredar pela
análise destas últimas palavras, Maria Luiza levanta brevemente as principais
visões (sobretudo as clínicas) sobre o tema e narra sua experiência como
voluntária do Centro de Valorização da Vida, assim como o jornalista Otavio
Frias Filho.
93

Os exemplos levantados por ela em cartas e bilhetes de suicidas de São


Paulo guardam notáveis diferenças com aqueles analisados por MacDonald e
Murphy, deixados por habitantes de Londres, duzentos anos antes. Isto a despeito
de sua falta de circulação nos jornais brasileiros. Sem platéia, a retórica muda
bastante: torna-se mais íntima, menos literária, menos grandiloqüente. Todavia,
eles parecem submetidos a um tabu ainda mais feroz que o que cerca o próprio
ato. Minois pensava nisso ao dizer que Montaigne, Shakespeare e Donne, entre
outros, abordavam a questão como abstrata, intelectual, filosófico e moral – bem
diferente de casos concretos: “(...) Tratam de um problema perigoso, uma bomba
que eles desativam por sua própria conta afogando-a em suas hesitações, mas que
pode ser fatal aos outros, mais dados à ação que à meditação” (p. 159). Assim, crê
o historiador francês, fica claramente colocada a responsabilidade dos escritos
sobre o suicídio. Imagine-se, então, o perigo dos escritos dos suicidas.
Os grupos pesquisados por Maria Luiza, MacDonald e Murphy buscam
projetar a sua existência para o futuro, para além de suas mortes, seja zelando por
sua reputação, seja dando instruções aos sobreviventes, seja, ainda, efetivamente
concebendo uma nova existência, sobrenatural, menos sofrida. Nisso, são
consistentes também com as observações de Cassorla de que, no fundo,
quantidade expressiva dos suicidas não quer de fato morrer, deixar de existir, e
sim se livrar de um problema – pela simples e absoluta impossibilidade de pensar
a própria morte. Em Testemunhos de adeus, a partir do Freud de Luto e
melancolia, Maria Luiza explica como o melancólico reintrojeta o objeto perdido,
amado ou odiado, e passa a se identificar com ele. “O indivíduo, no impulso de
livrar-se do mal que o perturba, acaba por destruir-se por inteiro. (...) Assim, o
suicídio é um homicídio, onde o indivíduo que mata é também a própria vítima”
(p. 23). A expressão “assassinato de si mesmo” revela-se, afinal,
psicanaliticamente premonitória.
Maria Luiza opta por não identificar os suicidas, a não ser por iniciais.
O.T.C.F., homem de 36 anos que se enforcou, deixou quatro bilhetes bastante
prosaicos. Todos com indicações práticas sobre o que fazer com seu corpo ou
como seus parentes devem se comportar. Quer que seu corpo seja cremado no
Cemitério de Vila Alpina. Não quer que ninguém veja o seu cadáver. Pede que o
pai e a mãe sejam levados tão logo possível para Araçatuba. Especifica quanto
dinheiro tem em casa ou no Bradesco. R., mulher de 20 anos que se matou com
94

arma de fogo nas dependências da PUC-SP, deixou quatro cartas e um bilhete.


Embora não conste nenhuma referência a elas no laudo assinado pelo perito do
Instituto de Criminalística de São Paulo, o que a faz pensar que “a população que
deixa mensagem seja mesmo muito maior do que se tem registro”, Maria Luiza
informa que a notícia do suicídio de R. publicada no jornal Folha de S. Paulo as
menciona – mas não as reproduz, coisa que a psicóloga consegue graças à cessão
pela família da moça. Um deles não se dirige a ninguém em especial.

Não posso mais continuar!


Chega!
É o fim da trilha!
Tenho sofrido mais que o suportável.
Tudo deu errado em minha vida. Talvez eu tivesse nascido em
hora errada, tempo errado. Merda!
O que quer que eu faça é errado!
Será que é porque admiro Hitler, sou anarquista, esquerdista e
adepta do comunismo?
Será que é porque minha mãe nunca se casou?
Porque o meu pai era um panaca perfeito?
Que ódio passei a ter de tudo isto!
Da vida!
Uma grande e gigantesca droga!
Meu Deus ou devo chamar pelo Diabo? Quem me ajudaria?
Uma criatura como eu, jovem, fria, inteligente, mas que em
nada deu certo.
Coloquem todas as cartas no correio lacradas como estão, isto
aliviará algumas pessoas da culpa. Não é culpa de ninguém,
mas do sistema.
O sistema mata!
Não tentem me salvar, pois outras oportunidades surgirão.
(apud DIAS, 1997, p. 204).

Esta carta é um verdadeiro compêndio de temas presentes nos testemunhos


de adeus, tal como também relatados por Etkind, MacDonald e Murphy. Fala em
narcisismo, sofrimento e culpa, na desordem da vida e do mundo, na inadequação
ao próprio tempo, em problemas com a família, pede providências práticas, faz a
ameaça de se repetir caso a presente tentativa seja malsucedida. Ao mesmo tempo,
traz o distanciamento característico das cartas de suicida, expresso, entre outras
coisas, pela mordacidade da menção a Deus e ao Diabo. Por fim, mas não menos
sintomaticamente (não na acepção psicanalítica, mas do ponto de vista de uma
retórica da morte voluntária), há uma menção a Hitler. O Fuehrer parece
95

desempenhar, na contemporaneidade, o papel que foi de Judas na antiguidade. É o


nome que concentra a ignomínia associada ao ato de abrir mão da própria vida.
A retórica clássica do suicídio pode ser encontrada, ainda, por exemplo, nos
últimos bilhetes escritos pelos resistentes franceses condenados à morte ou pelos
invasores alemães ou pelo governo colaboracionista de Vichy durante a Segunda
Guerra Mundial, não raro a poucos instantes de encararem o pelotão de
fuzilamento. Embora formalmente eles não sejam suicidas, por não terem chegado
à morte pelas suas próprias mãos, grande parcela deles tem plena noção de que
chegou à morte pelos seus próprios atos: sabia que a luta contra os fascistas era
passível de punição com pena de morte. Neste ponto, tais casos se aproximam aos
dos mártires voluntários do cristianismo, prontos a sacrificarem a vida por uma
causa que a suplanta. Uma causa laica: a França, a humanidade, a liberdade, o
amanhã.
Guy Krivopissko selecionou e comentou 120 cartas escritas nestas
circunstâncias no livro La vie à en mourir _ Lettres de fusillés 1941-1944.
Aquelas que não foram escritas por homens condenados injustamente ou rapazes
que se engajaram na Resistência sem avaliar as possíveis conseqüências de seus
atos, isto é, aquelas que são maioria mantêm o tom dos bilhetes de suicidas
analisados por MacDonald e Murphy: tanto buscam influenciar o juízo dos
sobreviventes sobre os seus atos, garantir-se uma boa reputação, quanto
transformam algo que a princípio deveria ser apenas uma comunicação pessoal a
parentes em um discurso diante de uma platéia mais ampla, de desconhecidos
capazes de lerem suas últimas palavras em cópias mimeografadas ou nos jornais
clandestinos. O prefácio de outro historiador francês, François Marcot, capta-lhes
o alcance e a intensidade.

Essas cartas figuram entre os mais fortes testemunhos que a


escrita humana nos legou. A leitura e a releitura delas nos faz
chorar. Com qual direito podemos ler, publicar ou comentar
estas últimas mensagens dos condenados, quando elas são
destinadas aos pais, aos esposos, aos próximos que os amavam?
O direito e o dever da fraternidade humana: estas últimas cartas
se dirigem a nós porque elas narram a vida desses homens e
dessas mulheres, que se encontravam então face à morte,
palavras de homens sobre a vida do homem. Estas cartas se
dirigem a nós, também, porque os condenados explicitamente
96

desejaram que o sentido de seu engajamento, de sua vida, de


sua morte nos seja conhecido. (KRIVOPISSKO, 2003, p. 9).68

Tão tocantes nas cartas quanto os patrióticos brados de “Vive la France!”


são as preocupações práticas com os sobreviventes: não chore por mim, arranje
um outro bom homem como marido, cobre ou entregue meus pertences a fulano,
não brigue com sua irmã, diga a nossos filhos quem fui. Nenhuma dessas cartas
foi mais reproduzida ou teve maior repercussão durante o curso restante da guerra
que a de Henri Fertet a seus pais. Aos 16 anos, ainda aluno do liceu de Bezançon,
ele se juntou à Resistência e participou de ações como a destruição de linhas de
alta tensão e a tomada de um depósito de explosivos. Preso na casa de seus pais e
torturado, foi fuzilado pelos alemães, com 26 outros companheiros, a 26 de
setembro de 1943. Na carta, Fertet fala, nesta ordem, do amor pela família, da
confiança na “eterna França”, avisa sobre livros emprestados, proclama que morre
voluntariamente pela sua pátria e explica: “Talvez minha escrita esteja tremida,
mas é porque tenho um pequeno crayon (...) Desculpem os erros de ortografia,
não há tempo de reler” (idem; p. 244). Típicas também são as palavras
endereçadas, em dois bilhetes distintos, do campo de Choisel a seu filho e à sua
companheira pelo ferroviário Henri Barthélemy, fuzilado pelos alemães a 22 de
outubro de 1941.

Meu querido filho,


Antes de morrer, eu te envio meus últimos pensamentos,
que serão por ti. Lembra-te de teu pai que tanto te amou e que
vai em alguns instantes reencontrar aquela que foi tua mãe. Não
jogue na miséria Yvonne, que tem todos os seus móveis na
casa. Mais uma vez, meu querido filho, eu te beijo. Teu pai, que
te ama até o seu último suspiro.
Adeus, meu filho, adeus.
Barthélemy

Minha querida Yvonne,


Esta carta é a minha última. Eu vou morrer com 29
camaradas. Tenho apenas alguns instantes por viver. Guardo até

68
Ces lettres figurent parmi les plus forts témoignages que l’écriture humaine nous aît légués. La
lecture et la relecture des dernières lettres nous font pleurer. De quel droit pouvons-nous lire, pu-
blier et commenter ces ultimes messages de condamnés, quand ils sont destinés aux parents, aux
époux, aux proches qu’ils aimaient? Du droit et du devoir de fraternité humaine: ces dernières let-
tres s’adressent à nous parce qu’elles dissent la vie de ces hommes et de ces femmes, ce qui comp-
te alors face à la mort, paroles d’hommes sur la vie de l’homme. Ces lettres s’adressent à nous,
aussi, parce que les condamnés ont explicitement voulu que le sens de leur engagement, de leur
vie, de leur mort nous soit connu.
97

o fim uma boa lembrança de ti. Tem coragem. Eu tenho. Nós


combatemos pela boa causa. Ela triunfará. Eu te beijo. Meus
melhores pensamentos para todos os amigos. Adeus Yvonne.
Adeus.
Barthélemy.
(apud KRIVOPISSKO, 2003, p. 75-76)69

Embora não fossem militares profissionais, os dois Henri comungam de


uma característica que Durkheim, já em O suicídio, apontava como sendo típica
dos exércitos: o altruísmo. O sociólogo chega, inclusive, a afirmar que “o suicídio
militar não é mais que uma forma do suicídio altruísta”. Não se refere nem ao
soldado que avança destemidamente sobre a metralha nem, muito menos, àquele
que sabe que, uma vez capturado pelo inimigo, será fuzilado – como era o caso
dos resistentes franceses cujas cartas foram coletadas em La vie à en mourir.
Refere-se, isto sim, à predisposição “ao altruísmo, sem o qual não há espírito
militar”. Durkheim acha que, aqui, mais uma vez, cabe falar em contágio porque,
para ele, o soldado se mata diante da menor contrariedade – uma recusa de
licença, uma punição considerada injusta etc. – “ou até, simplesmente, porque
presenciou ou ficou sabendo de outros suicídios” (p. 299). Isso implica que:

É daí que provêm os fenômenos de contágio freqüentemente


observados nos exércitos e dos quais já demos exemplos. Eles
seriam inexplicáveis se o suicídio dependesse essencialmente
de causas individuais. Não se pode admitir que o acaso tenha
reunido justamente num determinado regimento num
determinado ponto do território, um número tão grande de
indivíduos predispostos, por sua constituição orgânica, ao
homicídio de si mesmos. Por outro lado, é mais inadmissível
ainda que uma tal propagação por imitação possa ocorrer
independentemente de qualquer predisposição. (DURKHEIM,
2000, p. 299-300).

69
Mon cher fils, Avant de mourir, je t’envoie mes dernières pensées, qui seront pour toi. Rappelle-
toi de ton père qui t’a tant aimé et qui va dans quelques instants aller rejoindre celle qui fut ta
mère. Ne fais pas de misère à Yvonne qui a tous seus meubles à la maison. Encore une fois, mon
cher fils, je t’embrasse. Ton père qui t’aime jusqu’à son dernier souffle. Adieu, mon fils, adieu.
Barthélemy.
Ma chère Yvonne, Cette lettre est la dernière. Je vais mourir avec 29 camarades. Je n’ai plus que
quelques instants à vivre. Je garde jusqu’au bout un bon souvenir de toi. Aie du courage. J’en ai.
Nous avons combattu pour le bonne cause. Elle triomphera. Je t’embrasse. Mes meilleurs pensées
pour tous les amis. Adieu Yvonne. Adieu. Barthélemy.
98

Para o sociólogo, a moral militar representa a sobrevivência de uma


“moral primitiva”, pela qual o indivíduo está disposto a se desfazer da existência
se assim orientado ou coagido pelas normas, seja praticando um suicídio altruísta
seja adotando um comportamento temerário na frente de batalha. Se, entretanto,
circunstâncias pessoais também lhe colocarem diante da opção pela morte
voluntária, o militar também não hesitará em praticá-la. De novo, vê-se que
dificilmente um suicídio é de um tipo puro, mas sim, como queria Thomson,
biógrafo de Primo Levi, se deve a uma complexa teia de fatores. Os jornais a
reproduzem.
4
Como a imprensa brasileira trata o suicídio

Retórica bastante parecida à utilizada pelos resistentes franceses contra os


nazistas pode ser encontrada no mais famoso bilhete de suicídio da História do
Brasil, a chamada carta-testamento de Getúlio Vargas. Acuado no Palácio do
Catete, no Rio de Janeiro, então capital da República, o presidente matou-se com
um tiro do seu revólver Colt calibre 32 no coração, às 8h25m do dia 24 de agosto
de 1954. Tinha 71 anos. Até aquele momento, Vargas encontrava-se sob imensa
pressão política e pessoal: a oposição udenista fazia uma campanha pesada contra
seu governo, que acabara de conceder um aumento de 100% ao salário-mínimo; as
multinacionais o sabotavam, contrariadas pela lei que limitava a remessa de lucros
para o exterior em 10%; os militares haviam retirado o seu apoio; a quase
totalidade da imprensa o atacava ferozmente (a solitária exceção era Samuel
Wainer, cujo jornal Última Hora fora fundado sob os auspícios do próprio
presidente).
A agonia que desembocaria no suicídio começara dezenove dias antes,
quando o principal opositor a Vargas, o jornalista e deputado federal pela UDN
Carlos Lacerda, havia sido alvo de um atentado a tiros quando chegava de
madrugada ao seu prédio, na Rua Toneleros, 180, em Copacabana, vindo de uma
conferência antigetulista no Externato São José, na Tijuca. Lacerda levou apenas
um tiro no pé, sem gravidade. No entanto, o major da Aeronáutica Rubens Vaz,
que voluntariamente se revezava com outros jovens oficiais da mesma arma na
segurança ao político, foi baleado no peito e morreu a caminho do hospital. Ao
saber do atentado, Vargas disse: “Este tiro é uma punhalada em minhas costas.”
A arma que matara o major Vaz era de calibre 45, privativo das Forças
Armadas. Este pormenor fez as investigações, por injunções do próprio Lacerda,
serem retiradas da polícia e levadas para a Aeronáutica. Um dos três pistoleiros do
chamado Atentado da Toneleros foi identificado – e posteriormente preso, ao fim
de uma intensa perseguição que mobilizou de cães policiais a helicópteros – pelo
100

Inquérito Policial-Militar (IPM) como Climério Eurides de Almeida. Ele era um


dos 200 membros da guarda presidencial, quase todos gaúchos, como o próprio
presidente nascido em São Borja. Ao fim do IPM, ficou estabelecido que o
mandante direto da ação havia sido o chefe da guarda presidencial, Gregório
Fortunato, conhecido como Anjo Negro, fiel guarda-costas de Vargas70. Acima
dele, suspeitas nunca comprovadas recaíram, entre outros, sobre Lutero Vargas,
filho de Getúlio, e sobre o general getulista Ângelo Mendes de Morais. A partir
deste ponto, o presidente viu-se confrontado com as opções de renunciar ou de
resistir até o fim. Vargas escolheria uma terceira via. Na manhã do dia 24, pôs fim
à própria vida. Apenas dois minutos depois de o estampido ter sido ouvido no
Catete, Samuel Wainer recebia um telefonema de seu repórter no palácio
presidencial.

Um tiro no coração, informou Luís Costa, em prantos.


Desliguei o telefone e corri para a oficina do jornal. As
emissoras de rádio transmitiam incessantemente a notícia, e um
clima de absoluta comoção se espraiava pelo país. Na oficina,
encontrei operários chorando, outros desmaiados. Lembrei-me,
então, de que a página com a manchete publicada na véspera –
SÓ MORTO SAIREI DO CATETE – continuava composta em
chumbo. Naquele época, tínhamos o hábito de guardar algumas
páginas numa estante, para a eventualidade de republicar certos
textos, anúncios principalmente. Nos dias seguintes íamos
utilizando os tipos de chumbo ali armazenados e a página era
desfeita aos poucos. Aquela histórica primeira página, contudo,
permanecia intacta, e tive a idéia de republicá-la exatamente
como saíra na véspera, mudando apenas alguns detalhes. Numa
linha no alto da página, escrevi: “Ele cumpriu a promessa.”
Abaixo da frase em que Getúlio prevenia que não o tirariam
vivo do palácio, descrevi o suicídio do presidente da República.
(WAINER, 2005, p. 260).

Naquele dia, a gráfica da Última Hora imprimiu em sucessivas edições


800 mil cópias, recorde brasileiro na ocasião. Elas rapidamente se esgotaram sem
nem serem distribuídas às bancas: o povo emocionado as tirava direto dos
caminhões, atirando o dinheiro para dentro dos veículos. A mesma comoção
resultou no empastelamento dos outros grandes jornais, todos antigetulistas,
sobretudo da Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda. Vargas virara a maré
política.

70
Entretanto, Fortunato foi condenado pela Justiça apenas em 1957.
101

Naquele mesmo 24 de agosto, rádios e jornais começaram a reproduzir a


sua carta-testamento. Com o passar do tempo, foram levantadas dúvidas sobre a
sua verdadeira autoria e surgiu até um “bilhete verdadeiro”, muito menos
eloqüente que a versão consagrada, possivelmente até o rascunho que Alzira
Vargas, confidente e secretária do pai, encontrara entre os papéis dele em meados
do mês71. Na ocasião, o presidente tratara de tranqüilizá-la: “Não te preocupes,
minha filha, não penso em suicidar-me”. Todavia, a beleza literária de sua peça de
despedida mostra que ele ruminou longamente não apenas a decisão de sair de
cena pelas próprias mãos como também suas últimas palavras.

Mais uma vez, as forças e os interesses contra o povo


coordenaram-se novamente e se desencadeiam sobre mim. Não
me acusam, insultam; não me combatem, caluniam – e não me
dão o direito de defesa. Precisam sufocar a minha voz e impedir
a minha ação, para que eu não continue a defender, como
sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o
destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e
espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais,
fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de
libertação e instaurei o regime de liberdade social . Tive de
renunciar. Voltei ao governo nos braços no povo.72 (...)

Ao ódio, respondo com o perdão. E aos que pensam que me


derrotaram, respondo com a minha vitória. Era escravo do povo
e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui
escravo não será mais escravo de ninguém. Meu sacrifício
ficará para sempre em sua alma e meu sangue terá o preço do
seu resgate. Lutei contra a expoliação do Brasil. Lutei contra a
expoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as
infâmias, a calúnia, não abateram meu ânimo. Eu vos dei minha
vida. Agora ofereço a minha morte. Nada receio. Serenamente

71
Segundo a versão on-line do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, do CPDOC da Funda-
ção Getúlio Vargas, “apesar de toda a controvérsia sobre a autoria da Carta-Testamento, há razões
suficientes para se acreditar na sua autenticidade. Várias pessoas, entre as quais Osvaldo Aranha,
Amaral Peixoto, Tancredo Neves, o brigadeiro Epaminondas Gomes dos Santos, declararam ter
visto o presidente ler, assinar e guardar cuidadosamente um papel que devia ser a carta. Outro da-
do fora de discussão é a participação – maior ou menor – na elaboração do documento do jornalis-
ta José Soares Maciel Filho, o redator favorito dos discursos de Getúlio”
(http://www2.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5458_54.asp)
72
Vargas refere-se à Revolução de 30, que o conduziu pela primeira vez à presidência da Repúbli-
ca, exercida com mão de ferro durante os anos do chamado Estado Novo, de inspiração nazi-
fascista. Mesmo assim, pressionado pelos EUA e pela população, ele mandou tropas para comba-
ter do lado dos Aliados durante a Segunda Guerra. Quando a vitoriosa Força Expedicionária Brasi-
leira retornou da Itália em 1945, porém, instalou-se o paradoxo: como lutar pela democracia lá fora
se ela não existia aqui dentro? Embora Vargas tenha começado a liberalizar o regime, foi deposto
em outubro pelas Forças Armadas. Nas eleições presidenciais, no entanto, ganhou o marechal Eu-
rico Gaspar Dutra, candidato lançado e apoiado por Vargas. No pleito seguinte, em 1950, seria o
próprio Vargas o candidato vencedor, agora legitimado pelas urnas.
102

dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida


para entrar na História. (apud NOSSA HISTÓRIA, 1980, p.
124).

Como se disse acima, a carta-testamento de Vargas guarda notáveis


semelhanças com os patrióticos bilhetes dos resistentes franceses selecionados por
Krivopissko. Porém, não apenas com eles como com os distanciados bilhetes de
suicidas ingleses do século XVIII e brasileiros do século XX, analisados por
MacDonald, Murphy e Maria Luiza Dias. Previsivelmente neste gênero literário73,
o presidente justifica o seu gesto extremo não pelo desespero pessoal ou pela
dificílima situação política e sim por uma causa maior: os humildes, o povo, o
futuro do Brasil. De suas próprias palavras, o suicídio emerge não mais como um
pecado ou uma fraqueza de caráter, mas como um sacrifício ao qual ele,
destemidamente, está disposto a fazer. Qualquer suposição de desespero é
afastada, também, pelo distanciamento sentimental, pelas belas frases de efeito
que sobreviveram na memória popular como slogans nacionalistas e pela
presunção, aliás, quase certeza, de que a posteridade saberia interpretar seu ato de
modo correto e isento. Reconhece-se, neste particular, a intenção do suicida que
pretende influenciar o juízo que os outros terão a seu respeito e a tentativa
(muitíssimo bem-sucedida no caso de Vargas) de fazer com que o suicídio
prolongue simbolicamente a vida.
Naturalmente, no dia 24 de agosto de 1954, não passou pela cabeça de
nenhum jornalista brasileiro omitir ou mascarar a causa da morte de Vargas. Era
necessário noticiá-la com todas as letras, por conta da importância pública do
suicida e das conseqüências do seu gesto para a sociedade (critérios que valeriam
ainda hoje em qualquer redação). Além disso, é preciso ter em mente que a
imprensa brasileira de meados dos anos 50 do século passado não se intimidava
diante da morte voluntária. Era uma imprensa bastante diferente da que estaria nas
bancas do final da década em diante. Portanto, era similar àquela que o jovem
Nelson Rodrigues encontrou, quando começou a trabalhar como repórter policial,
na redação do A Manhã, jornal que seu pai, Mário Rodrigues, fundou em 1925.
Nela, embora as páginas dos crimes fossem o filé-mignon da edição junto com as

73
Cf. p. 94 e 96.
103

dedicadas à política e à literatura, cobriam uma cidade a anos-luz do atual Rio de


Janeiro. A colorida descrição é de Ruy Castro:

Os jornais da época, principalmente os vespertinos, davam


dezenas de ocorrências policiais por dia. E, numa cidade
lindamente sem assaltos como o Rio, em que a captura de um
ladrão de galinhas era uma sensação, quase todos os crimes
envolviam paixão ou vingança. Maridos matavam mulheres por
uma simples suspeita, sogras envenenavam genros porque estes
não lhes tinham dado bom-dia aquela manhã e casais de
namorados faziam pactos de morte como se estivessem
marcando um encontro no “Ponto Chic”.

As matérias eram feitas na delegacia ou por telefone, mas nos


casos escabrosos, a “caravana” do jornal (como então se
chamava a dupla de repórter e fotógrafo) pegava o vale de vinte
mil réis para o táxi e saía feito uma flecha. Era importante
chegar antes da concorrência porque, com o rádio ainda de
fraldas e a TV inexistente, os jornais trabalhavam com o “furo”,
ou seja, a notícia em primeira mão. (...)

A “caravana” era onipotente. Não se limitava a entrevistar os


parentes da vítima ou do assassino. Quando chegavam antes da
polícia, repórter e fotógrafo julgavam-se no direito de vasculhar
as gavetas da família e surrupiar fotos, cartas íntimas e róis de
roupa do falecido. Os vizinhos eram ouvidos. Fofocas
abundavam no quarteirão, o que permitia ao repórter abanar-se
com um vasto leque de suposições. Como se não bastasse, era
estimulado, quase intimado pela chefia a mentir
descaradamente. (No futuro, Nelson lamentaria: “Hoje o
repórter mente pouco, mente cada vez menos.”) De volta à
redação, o repórter despejava o material na mesa do redator e
este esfregava as mãos antes de exercer sobre ele os seus
pendores de ficcionista. (CASTRO, 1992, p. 47).

Interessante notar a semelhança entre o quadro descrito por Castro e o


ambiente de competição entre os jornais londrinos no século XVIII, tal como
pintado por MacDonald e Murphy em Sleepless souls74, ambiente que, lá como cá,
ensejava aventuras ficcionais nas redações, inclusive na hora de informar casos de
suicídio. Dentro dessa cultura, por conseguinte, os detalhes sobre a morte do
presidente não gozavam de nenhum privilégio em relação aos da morte do
bancário que tomava chumbinho por descobrir a traição da esposa. O suicídio era
notícia corrente nos jornais brasileiros do período. Isto, porém, iria mudar.

74
Cf. p. 85.
104

Um dos principais agentes desta mudança freqüentava a mesma redação de


A Manhã na qual Nelson Rodrigues era o foca que fazia a rondas das delegacias
pelo telefone, atrás dos casos escabrosos que ensejassem o despacho das
“caravanas” formadas por colegas mais experientes. Seu nome era Danton Jobim.
Era um dos medalhões da redação. Vinte e cinco anos depois, no começo daqueles
anos 50, Jobim era o diretor de redação do Diário Carioca, jornal fundado dois
anos depois de A Manhã e onde surgiria na imprensa brasileira a técnica
americana do lead (pela qual o primeiro parágrafo de cada notícia deveria
responder às seis seguintes questões: Quem? O quê? Quando? Onde? Por quê?
Como?), bem como suas decorrentes exigências de objetividade e neutralidade.
A mudança estilística coincidiu com uma mudança física na redação do
Diário Carioca, anota Nelson Werneck Sodré em História da imprensa no Brasil
(1983). Em 1951, a velha sede da Avenida Presidente Vargas havia sido vendida
justamente para a Última Hora que Samuel Wainer estava criando. O Diário
Carioca passou a funcionar, então, na esquina de Avenida Rio Branco e Rua São
Bento. Como toda criança bonita, a reforma tem vários pais: Sodré credita-a ao
chefe de reportagem Luís Paulistano, que, de quebra, inventou o sublead (segundo
parágrafo, a sustentar o lead); Ana Arruda Callado, em seu artigo O texto em
veículos impressos (in CALDAS, 2002), elege Danton Jobim, por ele ter estado na
Universidade de Columbia, em Nova York, antes do terceiro candidato; este, o
chefe de redação Pompeu de Sousa, costuma ser citado pelos contemporâneos.
A favor de seu eleito, Ana Arruda cita trechos do livro Espírito do
jornalismo, publicado por Jobim no final dos anos 50: “O que se observa nas
redações é que o estilo do repórter melhora quando ele escreve dentro da medida
padrão, do cânone, imposto pelas exigências da tipografia e da paginação. O
limite certo obriga a esquematizar as idéias e os fatos a narrar” (p. 47). Como se
pode supor, o novo estilo industrializado se contrapôs ao velho estilo romântico,
que um Nelson Rodrigues já tarimbado ecoaria em suas crônicas cheias de
escândalos e exageros. O cadáver de Vargas surgiu em meio a esta transição. Com
alguma licença poética e uma mesóclise – ambos agradariam em cheio aos
redatores de A Manhã – poder-se-ia dizer que, depois dele e da gigantesca
comoção que sua morte gerou, os jornais brasileiros tratariam o suicídio de
maneira diversa. Não foi bem isto que aconteceu, naturalmente. No entanto, como
a forma determina o conteúdo (já na proposição citada de Jobim), o texto
105

sanitizado nos conformes do lead foi paulatinamente obrigando redatores e


repórteres a abrir mão do exagero e da fantasia, preparando o terreno para a
irrupção de uma palavra inexistente no vocabulário de qualquer redação de jornal
em 1954: ética.

4.1
O que diz ‘O Globo’ sobre ética

No Manual de redação e estilo (1992) do matutino carioca O Globo,


organizado e editado para publicação pelo jornalista Luiz Garcia, a única e breve
menção direta ao suicídio surge exatamente no capítulo denominado “Questões
éticas”: “O jornal evita noticiar suicídios de desconhecidos, exceto quando o fato
tem aspectos fora do comum (p. 87).” Na introdução a “Segurança”, porém,
quesito que engloba tanto o procedimento do Globo em relação à morte voluntária
quanto aos casos de seqüestro, como ainda a instruções para fabricação de armas e
bombas ou para burlar a lei, o manual conceitua:

Sempre que houver risco para a segurança pessoal de pessoa


inocente, é dever do jornal omitir informações que criem ou
aumentem esse risco. Cabe ao jornal informar-se para decidir,
sempre por conta própria, se a notícia é realmente perigosa.
Esse princípio tem aplicação freqüente, mas não obrigatória, em
casos de seqüestros. Leva-se em conta o fato de que o respeito à
privacidade de alguém tem um preço: significa uma informação
sonegada ao público (que, por exemplo, tem o direito de saber
que há uma onda de seqüestros na cidade); em contrapartida, é
difícil conceber notícia tão importante que justifique a
probabilidade de perda de uma vida. (GARCIA, 1992, p. 87).

O texto insinua, em expressões como “criem ou aumentem esse risco” e


“se a notícia é realmente perigosa”, a persistência da noção de contágio ou de
imitação. É isso mesmo? Em entrevista especialmente concedida para esta
pesquisa, Luiz Garcia, ex-editor-chefe e de Opinião, atual articulista, 69 anos de
idade, 52 de profissão e 31 de O Globo, diz que sim: “Eu sempre entendi, e foi a
política geral do jornal, a idéia de que há muita gente que é suicida de imitação.
Noticia-se o menor número de suicídios e só se noticia aquele que tem uma
importância, uma referência histórica qualquer.”
106

Esta última frase não deve ser entendida como um sinônimo para suicídio
de celebridades. A morte voluntária de uma pessoa desconhecida também pode ter
uma relevância histórica que a ultrapasse. Garcia exemplifica com os suicídios em
prisões. Segundo ele, é necessário noticiá-los. Primeiro, porque é comum o
homicídio disfarçado de suicídio, o que exige investigação das autoridades.
Depois, porque, se confirmado o suicídio, a morte paradoxalmente pode ser uma
informação relevante sobre as condições de vida no sistema prisional brasileiro.
As diferenças de interpretação das próprias normas de redação estão
presentes dentro de cada jornal. Contudo, geralmente elas são aplainadas antes de
o produto chegar às bancas. A despeito do que diz o Manual de redação e estilo
sobre o assunto, a percepção da maioria dos jornalistas do Globo, bem como de
boa parte dos seus leitores, é a de que notícias de suicídio simplesmente não são
publicadas. Como este trabalho mostrará, elas são publicadas. Antes, entretanto,
elas passam por tantos filtros, por tantas avaliações baseadas em critérios
jornalísticos de importância, que apenas uma amostra delas chegará às páginas.
Esses filtros são criados ou destruídos informalmente, no dia-a-dia dos
fechamentos.
A visão que o diretor de redação Rodolfo Fernandes, 43 anos de idade, 25
de profissão e 16 de O Globo, tem da suposta periculosidade das notícias sobre
suicídio, por exemplo, é substancialmente distinta da de Garcia. Em meados de
2005, na inexistência de qualquer imposição oficial de silêncio, ele reafirmou aos
seus subordinados que o jornal noticia suicídios, desde que, naturalmente, eles
preencham os pré-requisitos da relevância jornalística, não pelo medo difuso de
um contágio. Em entrevista, sua hipótese para o tabu que molda e era moldado
pelos procedimentos da redação remete à religião:

Desconfio que é mais um problema religioso, de a Igreja


católica negar enterro, do que propriamente um medo de que se
propagassem os suicídios aí pelo mundo, um medo de gerar
imitação. Isso no Brasil. Não sei como é na imprensa
estrangeira. Era uma dessas regras não-escritas da imprensa.
Não sei como começou. Só sei que dizíamos assim: “Não
publicamos suicídio”. No próprio dia-a-dia, em decisões que
nós fomos tendo de tomar, a regra não-escrita foi sendo abolida.
Não há motivo para não noticiar um suicídio, sendo que você
noticia coisas muito mais violentas, agressivas e potencialmente
destrutivas para a moral da sociedade. Até porque esta é uma
longa discussão na imprensa. O que se publica que vai gerar
107

danos à sociedade? Há uma quantidade grande de leitores que


acha que existe violência no Rio de Janeiro porque os jornais
publicam violência no Rio de Janeiro. Então, por aí, você não
publica mais nada, não tem jornalismo. (FERNANDES, 2005).

O diretor executivo Agostinho Vieira, 45 anos de idade, 25 de profissão e


20 de O Globo, cinco deles passados no comando da editoria Rio, interpreta as
normas do jornal de modo ligeiramente diverso dos de Garcia e Fernandes. “O
suicídio é um ato pessoal, íntimo, desesperado, maluco e talvez até libertador,
dependendo da crença de cada um,” diz ele, em entrevista Se este ato fica
limitado à decisão íntima e não interfere na vida de outras pessoas, da cidade ou
do país, o jornal deve respeitar e não se envolver nisso. “Claro que existe o temor
de que a publicação de uma notícia de suicídio sirva de ‘inspiração’ para alguém
mas esse não é o motivo ou o critério principal”, acredita Vieira. Segundo ele,
mesmo porque o temor de que a notícia seja contagiosa não se limita aos
suicídios:

Com certeza existe esse temor. A responsabilidade de um jornal


é muito grande e esse medo faz parte do nosso dia-a-dia.
Pessoalmente não acredito muito nisso. Pelo menos não
acredito como regra. Uma vez, quando era Editor da Rio,
publicamos uma matéria sobre um menino de 12 anos que
matou o amigo a porrada depois de ter visto o filme “Karatê
Kid” na TV. Com certeza o maior problema desse garoto não
foi ter visto as lutas do Daniel-san. (VIEIRA, 2005).

Vieira recorda, ainda, uma das notícias de suicídio publicadas quando de


sua passagem pela chefia do noticiário local – uma das notícias mencionadas nas
normas de redação do concorrente O Dia75. No dia 17 de maio de 1990, O Globo
publicou, em detalhes, a história de Celestino José Rodrigues Neto, o Netinho, de
14 anos, que se matou com o revólver calibre 38 do pai, sargento da Aeronáutica.
Dias antes, ele fora surpreendido colando de um livro de Geografia durante uma
prova no Colégio Militar, onde cursava a oitava série do Ensino Básico. Tirara
zero e havia sido punido publicamente – com seis dias de suspensão e a perda de
seis pontos no quesito Comportamento – durante a formatura semanal de sua
turma. Achou que submetera sua mãe a uma grande humilhação e entrou em

75
Cf. p. 72.
108

depressão. Matou-se com um tiro na cabeça, deixou uma carta-testamento e virou


notícia, cujo texto foi assinado pelo repórter Múcio Bezerra.
Reproduzida integralmente pelo jornal, a sua carta de despedida,
endereçada à mãe, Magda Rego Rodrigues, guarda notáveis semelhanças com a de
Henri Fertet76, no tom contido e no conteúdo prático. Netinho pede desculpas à
mãe, por ter sido o responsável pela humilhação, exime o colega Clóvis de culpa
no episódio, atribui o problema a dois outros alunos e destina os seus pertences
aos parentes e aos amigos. “(...) O skate e o quadro para o meu melhor amigo,
Marcos Gadelha de Lima (Bolão). A bicicleta, a prancheta e os álbuns para o meu
segundo melhor amigo, Marcelo Gomes de Lima (Bolinha) (...)”, escreveu o
garoto, por exemplo. Depois, agradeceu à mãe: “Obrigado pela vida que você me
proporcionou até hoje”. Houve dúvida sobre a publicação da notícia do suicídio de
Netinho? Vieira acredita que não, justamente pelo interesse coletivo:

O caso do menino que deixou a bola de herança para um amigo


era uma história emocionante e foi muito bem contada pelo
Múcio. Envolvia o Colégio Militar e o rigor das cobranças do
colégio e dos pais. Ou seja, um drama envolvendo muita gente.
Mas acho que não chegamos a ficar na dúvida se publicávamos
ou não. (idem, 2005).

Para Fernandes, a notícia de um suicídio não se distingue essencialmente


de qualquer outra notícia. Cada uma deve ser avaliada dentro de seu próprio
contexto. “Um pobre coitado” que pula da Ponte Rio-Niterói talvez não mereça
registro, “um(a nota no) colunão na (editoria) Rio”, se tanto. No entanto, se o
mesmo saltador estiver sendo perseguido pela polícia, depois de assaltar um
banco, a história já é outra e terá de ser avaliada em sua singularidade.77 “Como
sempre em jornal, você tem de estar atento ao bom gosto, em não expor violências
desnecessárias, coisas gratuitas, mesmo dentro do enorme contexto de violência
da cidade tem”, afirma o diretor de redação do Globo.
Pelo fato de um suicídio ser considerado, em princípio, “um ato íntimo,
pessoal e desesperado”, ela é igualado a outras notícias que o jornal opta por não
publicar em respeito à privacidade. “Nessa linha, também não publicamos a
notícia de um político muito famoso e conceituado que tem um filho fora do

76
Cf. p. 102.
77
Cf. p. 31.
109

casamento”, exemplifica Vieira. “Ou que o jogador X ou Y se droga todos os dias,


ou que o ator fulano de tal é gay e adora festas sadomasoquistas...” A idéia é a de
que notícias assim em nada interferem na vida da sociedade.
Mesmo fotos de cadáveres em vias públicas também são evitadas na
primeira página do jornal. Houve o dia, porém, em que um fotógrafo registrou um
cadáver sendo carregado num carrinho de mão, favela da Rocinha abaixo, depois
de um confronto entre os traficantes e a polícia. Excepcionalmente, O Globo
decidiu publicá-la. “Seguramente grande parte dos nossos leitores ficou chocada
com aquela foto”, conta Fernandes. “Era uma foto chocante, um fato chocante.
Não tinha como não dá-lo de uma forma chocante. Talvez chocar fosse uma forma
de denunciar também.”
O recurso ao bom senso – que remete, por sua vez, à “opinião comum” de
Tocqueville (cf. p. 41) – também faz parte da argumentação de Garcia, que,
diferentemente de Fernandes e em concordância parcial com Vieira, crê no efeito
multiplicador do noticiário sobre suicídio:

Outro fator que deve ser considerado é a proximidade. O


suicídio do cantor de rock australiano vai ter muito menos
efeito propagador, digamos assim, do que se o Cauby Peixoto
se matar. O risco de reflexo é muito maior. É sempre uma
questão em aberto. O bom senso faz com que as decisões da
grande imprensa tendam a coincidir. Não é uma coisa
combinada. Na imprensa, nada se combina. Quando alguém diz,
“a imprensa decidiu fazer tal coisa” é mentira, porque você não
vê o (diretor do jornal O Estado de S. Paulo, Ruy) Mesquita
ligar para o João Roberto (Marinho, vice-presidente das
Organizações Globo) e dizer: “O que você acha? Ah, então
vamos nessa!” Há, isso sim, uma briga de foice por um
mercado cada vez menor. (GARCIA, 2005).

Houve, no entanto, um caso de suicídio em que jornalistas – mas, ainda aí,


não os donos das empresas – de ao menos duas publicações se comunicaram de
modo a estabelecer um procedimento comum em relação a um de seus aspectos: o
do médico e escritor Pedro Nava. Por volta das 23h30m do dia 13 de maio de
1984, ele se matou com um tiro de revólver na cabeça. Estava sentado num meio-
fio do bairro onde morava, a Glória, próximo a uma área em que prostitutas e
travestis habitualmente fazem ponto. Tinha 80 anos, estava a dias de receber o
título de Cidadão Fluminense (era mineiro) da Assembléia Legislativa do Estado
do Rio de Janeiro e mal havia começado a escrever o sétimo volume (intitulado
110

Cera das almas) da monumental obra memorialística iniciada por Baú de ossos
em 1972.
O suicídio de um personagem de tal magnitude não poderia passar
despercebido nas redações dos jornais. Ainda assim, e embora Nava tenha
escolhido uma via pública para consumar o ato, houve dúvidas sobre a maneira de
noticiar sua morte. Para Luiz Garcia, a cultura de não publicar notícias de
suicídios estava tão arraigada que quase venceu o dever jornalístico. “Num
primeiro momento, houve uma tendência a não dizer que era suicídio”, lembra.
“Depois, chegou-se à conclusão de que tinha de dar o suicídio, porque certas
pessoas têm tanta importância que não se pode omitir este fato.” O caso virou
referência.
A publicação de que Pedro Nava havia se matado, entretanto, estava longe
de encerrar a questão. Faltava explicar, ou não, o que o levara a se matar. Cerca de
duas horas e meia antes de ele ter feito o disparo contra a própria cabeça, Nava
recebeu um telefonema que o deixou perturbado. Sua mulher, Nieta, para quem
acabara de ler o discurso de agradecimento pelo título de Cidadão Fluminense e
que atendera a ligação, reparou que, depois de ouvir o que o homem do outro lado
da linha tinha a dizer, Nava parecia ter sido vítima de algum abalo, alguma
chantagem. Contudo, ela foi ao banheiro e ele se aproveitou disso para pegar o
revólver numa gaveta e sair sem se despedir, pela porta dos fundos do
apartamento da Glória. Antes de meia-noite, Pedro Nava estava morto.
Já no dia seguinte chegou às redações o boato de que Nava se matara
porque estava sendo ameaçado de ter a homossexualidade divulgada por um
garoto de programa com quem se relacionara, um certo “Beto da Prado Júnior”.
As equipes das diversas publicações saíram a campo para apurar se aquilo era ou,
ao menos, tinha a possibilidade de ser verdade.
Então chefe da sucursal da revista IstoÉ no Rio, o jornalista Zuenir
Ventura, hoje colunista do Globo, narra o episódio em seu livro de memórias,
Minhas histórias dos outros. Dois jornalistas da revista, Artur Xexéo e José
Castello, foram encontrar o tal Beto e voltaram à redação impressionados com o
relato do rapaz, que colocava a culpa da chantagem num outro garoto de
programa, chamado a participar dos seus encontros com Nava. Quase ao mesmo
tempo, na redação da concorrente Veja, o relato de Beto também impressionara os
111

jornalistas Flávio Pinheiro e Dácio Malta, respectivamente chefe e subchefe da


sucursal carioca.

Entre dois fogos, eu continuava em dúvida. Liguei então para


Flávio Pinheiro (...). Tanto quanto nós, eles dispunham apenas
da versão do rapaz. Normalmente, concorrente não consulta
concorrente, a não ser para coisas menores: uma declaração que
o repórter perdeu numa coletiva, trecho de um discurso. Nunca
para tópicos mais relevantes, menos ainda para tratar da edição
– de como se vai dar uma matéria. Mas aquela era uma situação
nova para nós dois. (VENTURA, 2005, p. 169).

As redações, então, se dividiram internamente entre os que queriam apurar


mais para confirmar ou refutar a versão de Beto e os que queriam simplesmente
ignorar a questão da homossexualidade de Nava. Pesadas as opções, ganhou a de
não mencioná-la na ocasião78. Para Garcia, no caso do médico e escritor omitir
este detalhe equivaleu a renunciar a explicar toda a história: “Como vão se fazer
os livros de História depois? Se o cara vai aparecer em livro de História, em
antologia, se o cara vai ser citado em alguma coisa, já é obrigação não tirar isso da
biografia dele.” O jornalista Humberto Werneck, então na IstoÉ, embora não
tenha tido qualquer influência na não-publicação da informação pela revista, faz
uma autocrítica importante porque teria votado por ela.

Sinto vergonha das futuras gerações, da geração dos meus


filhos, sinto vergonha do futuro biógrafo de Pedro Nava quando
fosse remexer no assunto, já distante da circunstância: eu era
jornalista naquele momento e fui a favor de sonegar ao leitor
uma informação importante. (apud VENTURA, 2005, p. 172).

Para Zuenir:

O “caso Pedro Nava” encerra uma das questões éticas mais


complexas do jornalismo: os limites entre aquilo que é público
e cujo conhecimento é um direito de todos – e um dever do
jornalista divulgar – e o que, por pertencer à esfera privada,
deve ser mantido como tal. Nava era um homem público que
escolheu uma via pública para praticar um gesto que, ele sabia,
teria repercussão, chegaria à imprensa e seria investigado em
suas causas e motivações. O ato final de sua tragédia foi
exposto como um espetáculo de rua.

78
Só dois anos depois do suicídio, começaram a aparecer menções à homossexualidade de Nava.
112

(...) Hoje, acho que os jornais e revistas teriam publicado mais


do que publicamos, embora se deva admitir que ainda cultivem
uma boa dose de tabus e interditos morais. (VENTURA, 2005,
p. 173).

O diretor de redação do Globo, Rodolfo Fernandes, tem um ponto de vista


distinto. Para ele, as mudanças entre 1984 e 2005 não foram grandes a esse ponto:
“Se o Pedro Nava tivesse se matado hoje, não haveria dúvidas quanto a noticiar o
suicídio, mas ainda teríamos cuidado com a questão da homossexualidade, cuja
importância não estava muito clara no episódio.”
Todavia, tabus e interditos morais se modificam, conforme se modificam
as circunstâncias objetivas da vida em sociedade, na qual a imprensa desempenha
um papel simultaneamente de formadora e de repetidora de opinião. As mudanças,
entretanto, podem ser lentas a ponto de não serem percebidas no interior de cada
geração. Por isso, uma das mais significativas diz respeito ao tratamento dado
pelos jornais do Rio de Janeiro aos casos de seqüestro.
Antes da época de redação do manual do Globo, por exemplo, o
comportamento geral da imprensa carioca em relação aos seqüestros ocorridos na
cidade era bastante diferente do que aquele nele prescrito. Quase invariavelmente
acatava-se a exigência dos seqüestradores – reforçada pelo desespero das famílias
dos seqüestrados – de manter silêncio sobre os casos, como, aliás, acontecia com
os suicídios. O colunista Ancelmo Gois, há seis anos no Globo, tem uma opinião
original sobre o fim da lei do silêncio em torno destes temas. Para ele, quem de
fato a quebrou foi a multiplicação e a concorrência de outros meios de
comunicação:

Há não muito tempo, o figurão ligava para o doutor Roberto


Marinho aqui no Globo, ligava para o doutor Nascimento Brito
no Jornal do Brasil e ligava para o doutor Ary de Carvalho no
Dia e pedia para que os jornais não noticiassem o suicídio da
mulher dele. Era atendido. Hoje, enquanto ele está dando os
telefonemas, os sites na internet, as rádios e os canais de TV por
assinatura, em desabalada competição pelo furo, já estão
noticiando o fato. A informação circula mais e mais rápido.
(GOIS, 2005).

O seqüestro do publicitário Roberto Medina, dono da agência Artplan e


idealizador dos festivais Rock in Rio, em 1990, começou a mudar o modo de os
jornais cariocas perceberem como poderiam colaborar melhor tanto com o cativo
113

(e sua família) quanto com a polícia (e a Justiça): não silenciando e sim noticiando
os crimes – desde que, logicamente, preservadas quaisquer informações
financeiras que pudessem vir a estimular o apetite dos bandidos.
Hoje, como explica Luiz Garcia, entende-se que atender o pedido da
família para que o seqüestro não seja noticiado “não ajuda o seqüestrado em nada
e só facilita a vida do seqüestrador, além de criar um efeito multiplicador dos
seqüestros”. Quebrar o silêncio foi determinante para que o Disque-Denúncia,
criado em 1995 e administrado por Zeca Borges, funcionasse mais eficientemente
no Rio do que em São Paulo79. Aqui, o risco criado para os seqüestradores pela
cultura da denúncia anônima feita por cidadãos de bem, que tomam conhecimento
dos crimes pela imprensa, fez com que tal crime deixasse de compensar. Lá, a
imprensa decidiu manter-se calada e os seqüestros continuam muito comuns. “Se
isso não é causa e efeito...”, ironiza Garcia. Ele chegou a escrever uma coluna
intitulada “O direito de denunciar” sobre o assunto:

Para que os cidadãos disquem para denunciar é importante,


claro, que saibam que seqüestros andam acontecendo. O que
ocorrerá se os meios de comunicação o informarem disso. (...)
Infelizmente, isso é comprovado também pelo confronto com a
atitude dos meios de comunicação de São Paulo, que não
apenas atendem a todos os pedidos de sigilo sobre seqüestro
como dão pouca importância ao registro de crimes em geral. E
lá, mesmo sem o problema das favelas enquistadas em todos os
cantos da cidade, crimes como seqüestro estão em alta. Cada
um publica o que acha relevante, e não estou aqui para ensinar
o ofício a ninguém. (...) Mas tenho certeza de que quase sempre
publicar o que mexe com a vida do cidadão é melhor do que
abusar de um suposto dever de o proteger de pedaços
desagradáveis da realidade. (GARCIA, 2005, p.7).

Rodolfo Fernandes concorda com Garcia e oferece um exemplo – um


exemplo, aliás, que serve também para o que Gois diz sobre a multiplicação e a
aceleração da informação. O cativeiro do publicitário Washington Olivetto só foi
estourado em 2002 porque a Rede Globo o anunciou, diferentemente dos jornais
paulistanos em papel, que, fiéis a suas próprias avaliações, não o noticiaram.
“Senão aquela menina na casa ao lado, que ouviu o cara bater na parede dizendo
que era o Washington Olivetto, ia achar que era um trote”, lembra. “Se ela não

79
Além de Rio e São Paulo, hoje também há telefones do Disque-Denúncia funcionando em Cam-
pinas, Caruaru, Itaperuna e Recife, além dos estados do Espírito Santo e de Goiás.
114

soubesse o que estava acontecendo, não teria avisado à polícia.” Para Fernandes, a
quebra do silêncio na televisão pode ter salvo a vida do dono da agência W/Brasil.

Dar seqüestro é hoje uma regra muito clara. A gente dá


seqüestro como um serviço. Nunca ninguém vai chegar para o
Globo e dizer “foi seqüestrado um figurão do Rio de Janeiro,
vamos evitar dar”. Isso não existe. Está muito claro que hoje em
dia a gente noticia qualquer tipo de seqüestro. Mas, mesmo
neste caso, com algumas condições. Por exemplo, a gente não
noticia valor de resgate. Não dá ao bandido informações sobre o
estado financeiro da vítima. (FERNANDES, 2005).

Agostinho Vieira acrescenta:

Não damos o patrimônio da família, evitamos dizer o valor do


resgate porque isso pode servir de parâmetro para os
seqüestradores etc. Mas publicamos a notícia e damos sempre,
com destaque, a cara dos bandidos. Essa decisão não tem sido
acompanhada pelos jornais de São Paulo, que não dão notícias
de seqüestro. Mas acho que o tempo mostrou que tínhamos
razão. Quando damos a notícia, publicamos a foto e divulgamos
o telefone do Disque-Denúncia, a polícia tem muito mais
chances de resolver os casos. Não podemos ser coagidos por
bandidos. (VIEIRA, 2005).

Garcia, entretanto, não atribui a postura dos jornais paulistanos ao


bairrismo ou a qualquer tentativa de esconder a violência local. Prefere a
explicação urbano-geográfica. “São Paulo tem a população de classe alta e classe
média de um lado e a marginal nas marginais (dos rios Tietê e Pinheiros)”, diz.
“O crime e a violência têm lá os seus lugares definidos. Não mexem tanto com a
vida da comunidade em geral.” Assim, como a pobreza que ocasiona a maior parte
da violência está longe da vista de quem lê e de quem faz jornal, os órgãos de
imprensa praticamente a ignoram em seus noticiários locais – e a exibem muito
justamente escandalizados em seus noticiários nacionais, dando a falsa impressão
de que o Rio de Janeiro, por exemplo, é uma cidade mais violenta do que São
Paulo80. Neste ponto, mais uma vez, vê-se como há uma relação dialética entre
sociedade e imprensa, em que uma interage sobre a outra. Isso implica uma visão

80
Ranking feito pelo Ministério da Saúde entre 2000 e 2004, com base nas estatísticas de mortes
não-naturais (homicídios, mortes por arma de fogo sem causa determinada, suicídios e acidentes
de trânsito), mostra que a violência paulistana é a maior do país e quase o dobro da carioca, segun-
da colocada: alcança um índice de 11,53, contra 6,75. Entretanto, o primeiro lugar no ranking iso-
lado dos assassinatos é de Macaé (RJ), com 108,15 homicídios por 100 mil habitantes.
115

bem mais complexa do que a mera emissor-receptor. Ou, como diz Miquel
Rodrigo Alsina:

A teoria da construção da temática (agenda-setting) aponta


claramente que é muito possível que os mass media não tenham
o poder de transmitir às pessoas como elas devem pensar ou
atuar, mas o que conseguem sim impor ao público é o que ele
há de pensar. Por ela, em princípio, se pode afirmar que a
efetividade do discurso jornalístico informativo não está na
persuasão (fazer crer) ou na manipulação (fazer fazer), mas
simplesmente em fazer saber, em seu próprio fazer
comunicativo. (ALSINA, 1989, p. 14).81

O que a imprensa pretende “fazer saber”, no entanto, é estabelecido não


apenas por uma agenda própria, mas também pela percepção e pelo reflexo de
mudanças na sociedade a que ela se dirige. Mudanças, claro, que ela também
ajudou a ensejar. Logo, mesmo num tema como o suicídio, sobre o qual
aparentemente paira um interdito imutável, alterações significativas podem ser
percebidas num período relativamente curto, do ponto de vista histórico. Duas
gerações. Ou cinqüenta anos. É esta a distância entre a morte de Getúlio Vargas
(1954) e o ano objeto de análise mais detalhada (2004) no presente estudo.

4.2
A cobertura do ‘Globo’ em 2004

Para lembrar o ex-presidente, O Globo publicou, no dia 22 de agosto de


2004, um caderno especial de 16 páginas sobre sua vida e sua morte. Durante todo
o ano, o suicídio de Vargas mereceu – expurgadas matérias secundárias, sobre
exposições e documentários, por exemplo – 60 menções nas páginas do jornal.
Parece muito, mas trata-se, como vimos, de um suicídio fixado no passado, épico,
altruísta, para usarmos a denominação de Durkheim. Ao matar-se por uma causa

81
La teoría de la construcción del temario (agenda-setting) apunta claramente que es muy posible
que los mass media no tengan el poder de transmitirle a la gente cómo deben pensar o actuar, pelo
lo que sí consiguen es imponer al público lo que han de pensar. Por ello, en principio, se puede
afirmar que la efectividad del discurso periodístico informativo no está en la persuasión (hacer
creer) o en la manipulación (hacer hacer), sino sencillamente en el hacer saber, en su propio hacer
comunicativo.
116

maior do que a sua própria vida, “o Brasil, o povo”, Getúlio Vargas de certa forma
se inocentou do pecado de ter infringido um tabu. Exatamente como os mártires
da fé ou da coletividade estudados pelo sociólogo francês.
A linguagem utilizada pelo editorial de O Globo do dia 24 de agosto de
2004, 50º aniversário da morte do presidente, admite isso quando diz:

Poucos fatos da História se eternizaram como o suicídio do


presidente Getúlio Vargas. O tiro que Vargas disparou no
coração na manhã de 24 de agosto de 1954, talvez o gesto
pessoal mais ousado da crônica da nossa República, transcende
o ato em si. Além de sacramentar a entrada de Vargas na
História como uma espécie de mártir do povo – como ele
próprio intuiu e registrou na carta-testamento – o suicídio teve
até mesmo o poder de adiar por uma década uma ruptura
institucional cujas raízes, profundas, vinham do movimento
tenentista da década de 2082. (s/a, 2004, p. 6).

Luiz Garcia começou a trabalhar como jornalista em 1953, ano anterior ao


suicídio de Vargas. Não só isso. Seu primeiro emprego foi na Tribuna da
Imprensa, de Carlos Lacerda, vizinho de prédio da família Garcia na Rua
Toneleros 180, em Copacabana. Nesta condição, cobriu parte do julgamento de
Gregório Fortunato. “No tempo de Vargas sequer se discutia essa questão de não
publicar suicídio”, conta. “Não me lembro de este assunto ser discutido. Mas não
era uma decisão tomada, de publicar ou não publicar. Publicava-se naturalmente,
não se encarava isso como uma questão.” Em 1957-1958, Garcia estudou, numa
bolsa conseguida pelo próprio Lacerda, na mesma Universidade de Columbia que,
anos antes, inoculara com a idéia então revolucionária do lead o pessoal do Diário
Carioca. Garcia ficou na Tribuna da Imprensa até o Golpe de 64, trabalhou
brevemente no Globo e nas sucursais cariocas dos principais jornais paulistanos.
Até ali, não ouviu ou participou de nenhuma discussão ética sobre o suicídio.
“Não é que os jornais não fossem éticos ou fossem éticos”, afirma. “É que não era
uma questão que se considerava necessário discutir.”
Na Veja, onde trabalhou de 1972 a 1974, como correspondente em
Washington, a questão ética era suplantada pela proeminência dos mortos: “A
revista não trabalhava com o noticiário corriqueiro, mas apenas com o suicídio de
pessoas muito famosas.” Trinta e um anos atrás, de volta ao Brasil e,

82
O editorial se refere ao golpe militar de 31 de março de 1964.
117

definitivamente, ao Globo, então dirigido por Evandro Carlos de Andrade, Garcia


pela primeira vez se viu num país e num jornal onde havia discussões éticas a
serem travadas, entre elas a do suicídio. Contudo, por ter estado no exterior dois
anos, ele hoje não consegue estabelecer um marco para a mudança de
comportamento da imprensa brasileira em relação ao tema, de comum e
escandaloso a raro e discreto.
Cabe registrar, porém, que o retorno de Garcia ao Brasil praticamente
coincide com a suposto suicídio do jornalista Vladimir Herzog nas instalações do
DOI-Codi de São Paulo, de 24 para 25 de outubro de 1975. Em 2004, por sinal,
cinco matérias publicadas pelo Globo lembraram a morte suspeita de Herzog, cujo
corpo com marcas de tortura à época gerou uma crise no seio do próprio regime
militar. O pretexto foi a publicação, pelo Correio Braziliense, de fotos de um
homem ainda vivo, nu e desconsolado no DOI-Codi: provavelmente o então
diretor de jornalismo da TV Cultura. A sua viúva Clarice Herzog reconheceu-o.
Para a Agência Brasileira de Informação (Abin), entretanto, o homem na foto não
seria Herzog, mas outro investigado pelos órgãos de segurança da ditadura, não
em 1975, mas em 1974. A identidade deste suposto outro preso não foi revelada.
Além das 60 matérias sobre Getúlio Vargas e das cinco sobre Vladimir
Herzog, dois outros suicidas ou supostos suicidas do passado brasileiro foram
objeto de reportagens do Globo durante o ano de 2004: Tito de Alencar Lima, o
Frei Tito, e Iara Iavelberg. O primeiro enforcou-se em L'Arbreste, no sul da
França, em 1974. Segundo decisão da Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos políticos, tomada em 10 de agosto (e registrada no jornal na edição
do dia seguinte), sua família ganhou direito a indenização porque concluiu-se que
seu suicídio decorreu das seqüelas físicas e psicológicas deixadas pelas torturas a
que foi submetido pelo regime militar. Já Iara se matou a bala em Salvador, Bahia,
em 1971. Segundo a mesma comissão, em decisão anunciada pelo Globo para 1º
de dezembro, a militante política e última companheira do guerrilheiro Carlos
Lamarca se suicidou porque estava acuada pelo Exército no seu encalço. Iara
também ganhou direito a indenização do governo. No caso dela, a reportagem de
Evandro Éboli, da sucursal de Brasília, menciona o tabu religioso enfrentado pelos
Iavelberg:
118

Em 2003, a família de Iara obteve na Justiça direito de exumar


o seu corpo, enterrado no Cemitério Israelita de São Paulo. A
mãe e os três irmãos de Iara contestam a versão de que a ex-
guerrilheira se suicidou e querem tirar seus restos mortais da ala
de suicidas do cemitério judaico. Para os judeus, o suicídio é
considerado ofensa e, por isso, o corpo é enterrado de costas e
próximo do muro do cemitério, longe do túmulo da família.
(ÉBOLI, 1º/12/2004, p. 13).

As duas decisões da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos


cumpriram, além de sua função precípua de restauração histórica, outra missão,
simbólica: ao reconhecerem a culpa do regime militar pela morte de Frei Tito e de
Iara Iavelberg, de certa forma os absolveu de seu próprio suicídio, dando sustento
às alegações da família dela (e, possivelmente, da do religioso também).
Somados, os textos sobre os suicídios altruístas de Getúlio Vargas,
Vladimir Herzog, Frei Tito e Iara Iavelberg totalizam 67 – quase metade – das 142
menções ao tema nas páginas do Globo no decorrer de 2004. Das 75 restantes, 37
mencionam o suicídio de maneira mais ou menos genérica, por tratar do tema ou
em abstrato ou fazendo referência a acontecimentos distantes do tempo etc.. São
estudos (por exemplo, sobre o crescimento do número de casos de suicídio entre
os soldados americanos servindo na Guerra do Iraque), entrevistas (com o
cientista político alemão Rolf Tophoven, sobre o ataque terrorista islâmico a uma
escola de Beslam, Ossétia do Norte), artigos (do cronista Luis Fernando
Verissimo e dos jornalistas Ali Kamel e Mauro Ventura), recapitulações (uma
nova hipótese ligando o Brasil ao atentado à Associação Mutual Israelense
Argentina, em Buenos Aires, no ano de 1994, no qual morreram 85 pessoas) e
ameaças não-consumadas por homens-bomba (contra o estádio Old Trafford, do
Manchester United).
Ou seja: apenas 38 no total de 142 são notícias sobre mortes voluntárias de
fato ocorridas em 2004. Ainda assim, destas, menos de 25% – nove – ocorreram
fora do contexto de atentados terroristas. Todas as outras 29 noticiam a morte em
ação de militantes radicais no Paquistão, no Afeganistão, no Iraque, na Palestina,
em Israel, na Turquia, na Rússia, na Espanha e até na Bolívia. Com exceção desta
última, efetuada por um mineiro desempregado dentro do anexo do Congresso
119

boliviano83, em La Paz, no dia 30 de março, as outras 28 foram praticadas por


muçulmanos, o que, para utilizarmos a definição de Alsina, pode “fazer saber” ao
leitor algo enganoso, ou seja, que o Islã é leniente para com a morte voluntária.
Entretanto, isto não seria verdade. No islamismo, a condenação do suicídio é
similar à do judaísmo e à do cristianismo. Bane o fiel dos campos santos e
envergonha as famílias. Só se pode cometê-lo em nome de Deus. Jamais em nome
do fiel.
Mais especificamente ainda, destes únicos nove casos (sendo que um
envolve as mortes de nove jovens japoneses que fizeram um pacto) de suicídio
não associado a terrorismo, apenas três foram cometidos no Estado do Rio de
Janeiro, um em São João do Meriti, o outro em São Pedro D’Aldeia e o terceiro na
capital. O que nos leva à questão da proximidade levantada anteriormente por
Garcia84. Se a possibilidade de um dado suicídio despertar, no bojo da reação a
ele, um outro suicídio (configurando o “contágio” ou a “imitação”) está na
proporção direta da proximidade com quem a cometeu, faz sentido que dos 96
casos registrados pela pesquisa do Ministério da Saúde que visava estabelecer o
ranking das cidades brasileiras com mais mortes violentas85 somente um tenha
sido registrado no jornal.
Esta, ao menos, seria uma boa teoria conspiratória. Porque uma
porcentagem certamente maior dos 2.220 homicídios anotados pela mesma
pesquisa no Rio de Janeiro em 2004 chegou às páginas do Globo. Embora ele não
adote a linha popularesca do “se espremer, sai sangue”, raro é o dia em que não
traga a notícia de ao menos um assassinato. Logo, de alguma forma, e o
depoimento de Garcia o confirma, teme-se que a publicação da notícia de um
suicídio estimule algum leitor a cometer outro suicídio.
Em Ideologia e técnica da notícia (1982), Nilson Lage destaca seis itens
que, no campo da avaliação empírica, estabelecem se uma notícia merece ou não
ser publicada, isto é, se ela vai ou não interessar ao leitor. São eles a proximidade,

83
Tipicamente, o governo boliviano rapidamente negou que a ação que matou dois policiais – a-
lém do mineiro, identificado como Eustáquio Picachuri, de 47 anos – e feriu outros dez configu-
rasse um ataque terrorista. Durante “uma coletiva de imprensa especialmente convocada para tran-
qüilizar a população”, o então presidente Carlos Mesa chegou a qualificar Picachuri como “uma
pessoa desesperado com um conjunto de petições de caráter estritamente pessoal”.
84
Cf. declaração p. 115.
85
Cf. nota p. 120.
120

a atualidade, a identificação, a intensidade, o ineditismo e a oportunidade.


Trocando em miúdos: cada notícia publicada correlaciona internamente um, dois
ou vários desses itens, criando aí um valor jornalístico.
Como “a noticiabilidade dos acontecimentos é uma valoração assumida
socialmente, embora não necessariamente compartilhada” (ALSINA, 1989, p.
108), é importante ressaltar que a proximidade pode ser mais do que meramente
física. “O raciocínio corrente é de que o homem se interessa principalmente pelo
que lhe está próximo. No entanto, esta proximidade varia tanto com as trocas
materiais (o comércio) quanto com as trocas culturais ou populacionais
(migrações)” (LAGE, 1979, p. 67). Para o meu propósito, isto significa que o
“próximo” pode ser o padeiro vizinho que comete o suicídio, mas também,
dependendo do caso, o personagem romântico de uma novela alemã do século
XVIII ou um roqueiro angustiado de Seattle86. Ambos se enquadram na categoria
das “trocas culturais”.
Se o objetivo desta pesquisa é comprovar e, na medida do possível,
entender o temor de que alguma notícia publicada possa trazer – para usar a
expressão constante no Manual de redação e estilo do Globo – “risco para a
segurança pessoal de pessoa inocente” parece-me natural que ela se detenha mais
meticulosamente sobre aqueles casos que, de acordo com o peso dos fatores
proximidade e identidade, se afigurem mais potencialmente perigosos. Ou seja os
três acontecidos no Estado do Rio, embora sobre o de Meriti haja exigüidade de
dados.
Abordarei também, por se valerem da mesma linguagem, os seis únicos
outros casos em que o(s) suicida(s) não era(m) terrorista(s), pois parece-me
necessário estabelecer algum parâmetro pelos quais eles possam ser medidos em
seu “valor jornalístico”. Em cinco deles, o morto ganhou o direito de ser
metaforicamente enterrado sob as páginas do jornal ainda portando nome,
sobrenome, humanidade. Se tomarmos esta deferência como uma metáfora para o
túmulo individualizado, podemos lembrar José Carlos Rodrigues em Tabu da
morte:

86
Em tempo: duas semanas depois de Kurt Cobain cometer suicídio, em 1994, O Globo enviou a
Seattle o seu correspondente em Washington, José Meirelles Passos, com a missão de estabelecer
uma “geografia sentimental” do líder da banda Nirvana. O resultado foi publicado em duas páginas
inteiras do Segundo Caderno de 22 de abril daquele ano.
121

(...) O túmulo individualizado, quer pela escritura quer pela


representação da figura do morto, era um luxo. Para o mortal
comum, a única marca que aponta para uma sobrevivência
simbólica no aqui é uma marca coletiva, a grande cruz plantada
no meio do terreno de inumação, sobre a qual periodicamente
se escrevia um epitáfio coletivo, dirigido a todos os vivos por
todos os mortos e ainda presente nos cemitérios das cidades do
século XIV. (RODRIGUES, 1983, p. 127).

Como contraponto a esta individualização lançarei mão também de dois


exemplos de notícias de atentados cometidos por homens ou mulheres-bomba. É
importante frisar, de imediato, que os atentados terroristas de 11 de março de
2004, em Madri, perpetrados pela al-Qaeda e que mataram 191 pessoas, não
lançaram mão de homens-bomba, apesar das suspeitas iniciais. Os explosivos
foram acionados por celulares. Na caçada policial aos responsáveis é que cinco
deles, cercados num apartamento da capital espanhola, cometeram suicídio.
Conquanto a identidade de um ou outro terrorista suicida (altruísta) possa
vir a ser estabelecida, freqüentemente em vídeos preparados antes da ação, a
reclamar a autoria dos atentados e um lugar no Paraíso, o que sempre lhes é
negado é justamente o direito à humanidade. Isto diz respeito não somente ao
caráter “desumano” – termo extremamente auto-benevolente, posto que apenas o
bicho homem comete atos desumanos – de sua ação, mas também à velha idéia de
que o suicídio tem algo de “sobre-humano” – de louco ou de demoníaco. No dia-
a-dia, não raro a sua morte sequer é computada claramente entre as causadas pela
própria ação terrorista. Não foi o caso, excepcionalmente, do mineiro boliviano.:

Três pessoas morreram dentro de um anexo do Congresso da


Bolívia depois que um suicida detonou explosivos que levava
junto ao corpo, na tarde de ontem. Além do suicida – um
mineiro desempregado – morreram na explosão dois policiais
que tentavam negociar com ele. (s/a, 31/3/2004, p. 35).

A ambigüidade quanto à inclusão da morte do suicida ou dos suicidas entre


as vítimas de sua própria ação tem, parece-me, o propósito de apaziguar a
consciência do leitor, de afastá-la do fato de que ao menos uma daquelas pessoas
– que no Iraque ocupado por vezes atingem a casa das centenas – morreu
voluntariamente. O choque pela brutalidade de sua ação soterra esta evidência
igualmente perturbadora. O que acontece, portanto, é duplamente ambíguo: o
terrorista suicida é condenado, mas não pela sua própria morte. Assim sendo, seu
122

fim individual pode ser desinfetado e inscrito na ordem da normalidade e se tornar


inócuo. Ao menos, naturalmente, para o leitor brasileiro. São conhecidos os
efeitos multiplicadores das suas ações e, logo, dos seus suicídios, entre os jovens
árabes sem perspectivas que vêem no martírio islâmico um atalho para o Paraíso.

4.2.1
Uma jovem palestina em Jerusalém

No dia 23 de setembro, O Globo publicou, em sua página 31, editoria O


Mundo, a notícia de um atentado a bomba contra guardas de fronteira israelenses
em Jerusalém, cometido por uma palestina de 18 anos, Zeinab Ali Issa Abu
Salem. Naquele momento, tratava-se do primeiro atentado do tipo na cidade em
sete meses. A matéria foi publicada em seis medidas – ou seja, ocupando toda a
largura da folha tamanho standard do jornal – no meio da página, abaixo de uma
reportagem sobre o risco de epidemias no Haiti após a passagem da tempestade
tropical Jeanne e acima de um anúncio e de uma coluna de três notas: uma sobre o
programa nuclear iraniano; outra sobre o novo diretor da CIA; e a terceira sobre
um talibã americano que combinou sua libertação com o Departamento de Estado.
Isto significa que ela não foi escondida pela edição da página: quem
“fechou” a notícia do ataque suicida julgou-a – possivelmente levando em conta
os mesmos itens de avaliação empírica que Lage chama de atualidade, ineditismo
(no caso, pelos últimos sete meses) e oportunidade – merecedora não só deste
espaço, como ainda de uma foto, que chama a atenção do leitor para o texto,
sinalizando-lhe a importância. A foto colorida mostra um dos 17 feridos no
atentado sendo socorrido por médicos israelenses.
É na linguagem utilizada, porém, que se apresentam os estratagemas
característicos, embora dificilmente conscientes, para se desviar o foco do suicídio
da terrorista. A palavra “suicida”, aliás, aparece apenas uma vez, no título, lugar
de destaque, mas apenas ali: “Palestina suicida mata 2 em Israel”. O subtítulo traz:
“Jovem de 18 anos detona bomba em Jerusalém pela primeira vez em sete meses”.

JERUSALÉM. Uma mulher-bomba palestina matou ontem dois


policiais de fronteira israelenses e feriu outras 17 pessoas num
atentado em Jerusalém, o primeiro do tipo em sete meses na
cidade. Paralelamente, o primeiro-ministro Ariel Sharon
123

anunciou que a retirada unilateral israelense dos 21


assentamentos da Faixa de Gaza e de quatro na Cisjordânia
começará em meados de 2005 e durará um ano.

O ataque ocorreu no bairro de French Hill, na parte oriental da


cidade, habitada majoritariamente por árabes e tomada da
Jordânia em 1967. A palestina Zeinab Ali Issa Abu Salem, de
18 anos, aproximou-se de um ponto de carona usado por
soldados e, ao ser abordada pelos policiais, detonou os
explosivos que levava numa bolsa. Os guardas de fronteira
Menaché Komami, de 19 anos, e Mamoya Tahyo, de 20,
morreram.

– Ela jogou o corpo para trás e houve a explosão – contou uma


testemunha, Debbie Segal, à Rádio do Exército.

As Brigadas dos Mártires de al-Aqsa disseram que o atentado


foi uma resposta à morte de cinco de seus militantes pelo
Exército israelense em Nablus na semana passada. A mulher-
bomba era do campo de refugiados de al-Askar, na Cisjordânia,
tinha nove irmãos e, segundo sua família, acabara de passar nos
exames do Ensino Médio. O premier palestino, Ahmed Qorei,
condenou o atentado. (...) (s/a, 23/09/2004, p. 31).

Note-se que o texto não utiliza nem a palavra “suicida” nem a palavra
“suicídio”. A morte de Zenaib está apenas e tão-somente subentendida na
descrição de sua ação. Ela sequer foi contabilizada entre as duas ocorridas no
atentado.

4.2.2
O dia mais violento no Iraque

No dia 3 de março, a mesma editoria O Mundo havia dedicado uma página


inteira, a de número 33, àquele que, como dizia o título da matéria, era “O dia
mais sangrento no Iraque” até então, desde a queda do ditador Saddam Hussein e
da ocupação do país for forças anglo-americanas. Na véspera, uma série de
ataques na capital, Bagdá, e em Karbala havia matado mais de 180 pessoas e
deixado quase 500 feridos. Em ambas as cidades, os homens-bomba se infiltraram
em multidões que festejavam a Achura, maior festa do calendário dos
muçulmanos xiitas. Nela, lembra-se a morte do imã Hussein, neto do profeta
Maomé, numa batalha perto de Karbala, no ano 680, travada por ele se recusar a
jurar lealdade ao califa Yazid, da dinastia rival dos omíadas. Hussein foi
decapitado e sua cabeça levada para Damasco. O fato marca a separação definitiva
124

entre sunitas, seguidores da tradição, e xiitas, seguidores de Ali, pai do imã morto
e genro de Maomé.
O outro Hussein, Saddam, pertence à minoria sunita do Iraque e durante o
seu governo (1979-2003), a festa foi proibida em todo o país. O principal suspeito
pelo planejamento dos atentados do 2 de março é o terrorista jordaniano Abu
Musab al-Zarqawi, braço da rede al-Qaeda no Iraque. Não se pode, contudo,
afastar a hipótese de eles terem sido obra da resistência sunita, descontente com a
queda de Saddam e a ocupação militar. Tudo isso, e bastante mais, está dito ou
sugerido na página do Globo, tanto no noticiário principal quanto num box
histórico sobre a Achura e num infográfico sobre os principais atentados no
Iraque.
Constam ainda da página uma foto em preto-e-branco (maior) de um
ferido aguardando socorro em meio a destroços e corpos despedaçados em
Karbala e outra foto em preto-e-branco (menor) mostrando os xiitas golpeando-se
na cabeça até sangrarem, para rememorar o sofrimento do imã Hussein. O
material todo mereceu chamada na primeira página do jornal.
Dada a dimensão da série de atentados, compreensivelmente não há o
nome das vítimas ou dos terroristas. Estes são mencionados brevemente.

(...)
Mais de dois milhões de fiéis se reuniram em Bagdá e Karbala
para os festejos, os primeiros em décadas, pois eram proibidos
por Saddam. Na capital, três terroristas suicidas mataram 70
pessoas perto da Mesquita de Kadhimiya. Um quarto terrorista
foi preso antes de detonar os explosivos que levava consigo.

– Vi um homem andar para dentro da multidão e explodir. Ele


simplesmente dissolveu-se no ar – contou um zelador da
mesquita.

Após as explosões, uma multidão de milhares de pessoas


marchou até uma base americana e atacou os soldados com
pedras.

Em Karbala, a chacina foi responsabilidade de um único


suicida, junto com morteiros e explosivos escondidos na
multidão. Pelo menos 112 pessoas morreram em seis explosões
ocorridas por volta de 10h (hora local). (...) (s/a, 3/3/ 2004, p.
33).
125

Neste texto, diferentemente do relativo ao atentado executado pela jovem


palestina, há referências a suicidas. Os quatro terroristas (três em Bagdá e um em
Karbala) são assim qualificados, bem como é mencionado um quinto, que não
conseguiu detonar os explosivos que levava consigo e foi preso na capital. Tal
qual a notícia analisada anteriormente, porém, suas mortes são apenas sugeridas,
recebendo uma ligeira ênfase graças à cinematográfica descrição do zelador da
mesquita de Khadimiya (“dissolveu-se no ar”).
Tanto no primeiro caso quando neste, o essencial da notícia está no
resultado do ato terrorista e não no detalhe que ele próprio foi, por assim dizer,
detonado por quatro suicídios em nome da fé. Não se trata, mais uma vez, de
apenas desviar a atenção do leitor, de modo que ele não se detenha nas motivações
de alguém disposto a sacrificar a própria vida por uma causa, mas, também, de
encarar este gesto política e existencialmente radical como ordinário. Essa
“naturalidade”, associada ao preconceito ocidental sobre o mundo islâmico,
neutraliza a universalidade do suicídio. Ele se torna coisa de fanático, de maluco,
do Outro, não de gente normal. Assim, o leitor pode ler o jornal tranqüilamente.
O mesmo O Globo, entretanto, informou no dia 13 de maio que um estudo
publicado na revista New Scientist dizia que a imagem estereotipada dos
terroristas suicidas como fanáticos religiosos não corresponde à verdade. O autor
do artigo, Michael Bond, analisou 500 atentados em que o terrorista se matou,
ocorridos no mundo inteiro desde 1980, para chegar a esta conclusão. Para Bond,
“este tipo de terrorista não é menos racional ou está menos mentalmente são. Não
tem um menor nível de educação nem é mais pobre. Tampouco é mais religioso
do que os outros terroristas” (p. 32).
Na notícia, Bond ressaltava que este resultado é mais alarmante do que o
estereótipo porque aumenta enormemente o campo de surgimento para novos
terroristas suicidas. “Havendo as circunstâncias adequadas, qualquer um pode se
tornar um terrorista”, afirmou. Em outras palavras, qualquer um também pode se
tornar um suicida. Mas quais seriam as circunstâncias adequadas? Para Bond, a
formação, pelas organizações, de pequenos grupos de voluntários que se tornam
alvo de intensa doutrinação ideológica. “Este sentido de serviço à comunidade,
mais especialmente a uma irmandade de companheiros, é a razão mais importante
pela qual se persuadem pessoas racionais a se converterem em terroristas
suicidas”, concluiu Bond. Destaque-se que, embora se apresente como
126

ousadamente nova tanto nos termos do artigo da New Scientist quanto nos da
notícia do Globo, a proposição é inteiramente compatível com o que Durkheim
escreveu em O suicídio, mais de um século antes.

4.2.3
O pacto suicida dos jovens japoneses

No dia 13 de outubro, a editoria O Mundo do Globo noticiou, em sua página


24, a descoberta dos corpos de nove jovens japoneses, mortos por asfixia, dentro
de dois carros alugados. Numa camionete estacionada perto de Saitama, 50
quilômetros a oeste de Tóquio, a polícia encontrou quatro homens e três mulheres,
com idades variando entre 20 e 30 anos. Em Kanagawa, 50 quilômetros ao sul da
capital do Japão, um carro parado em frente a um templo escondia os cadáveres de
mais duas mulheres, igualmente jovens. Em ambos os veículos, os mortos haviam
acendido fogareiros e morrido intoxicados por monóxido de carbono, pois as
janelas tinham sido fechadas.
A notícia ocupa quatro colunas no meio da página. Não há fotos. Acima
dela está reportagem sobre a investigação oficial da morte de uma adolescente
palestina com mais de 20 tiros disparados por soldados israelenses. Eles
suspeitaram que Iman al-Hams carregava explosivos em sua mochila e atiraram
nela quando ela estava a 70 metros do seu posto, no campo de refugiados de
Rafah. Os soldados denunciaram seu comandante pela morte. Ao lado da notícia
sobre o pacto suicida no Japão está uma coluna com duas notas, uma sobre a
libertação de um mafioso na Itália e outra sobre negociações entre EUA e Irã em
torno do programa nuclear. Na parte inferior da página, vem a seção Ciência e
Vida, tratando, entre outras coisas, de um estudo italiano que associa genes à
homossexualidade. A notícia oriunda do Japão mereceu chamada na página dois
do jornal.
A linguagem da matéria sobre as mortes voluntárias é direta. Diz o título:
“Pacto suicida entre 9 jovens no Japão”. Diz o subtítulo: “Casos de morte coletiva
no país podem ter sido organizados pela internet”. O lead é igualmente objetivo:
127

TÓQUIO. Os corpos de nove jovens japoneses mortos por


asfixia foram encontrados ontem em dois carros alugados, em
dois lugares perto de Tóquio, no que é provavelmente o maior
caso de suicídio coletivo no país. A polícia investiga se as
mortes foram organizadas pela internet. (s/a, 13/10/2004, p. 24).

O texto se destaca é pelo contexto, pelas informações que complementam


a notícia propriamente dita, da metade para o final, como se lê a seguir:

(...)
Além de a polícia não encontrar indícios de violência, os jovens
deixaram mensagens relatando a intenção de se matar. Na
camionete estava o testamento de uma das vítimas pedindo
desculpas pelo suicídio. Uma outra havia enviado na segunda-
feira um e-mail a um amigo avisando que ia se matar.

– A mensagem indicava o local preciso do suicídio, e o amigo


nos avisou – declarou o porta-voz da polícia de Saitama.

No carro em Kanagawa também foi encontrada uma nota: “Não


se trata de assassinato. Nós planejamos isto.”

Não se sabe se os casos estão relacionados, mas o método leva


a polícia a suspeitar de ligação com a internet. Recentemente o
Japão tem observado uma onda de suicídios nos quais as
pessoas usam a internet para buscar companhia para morrer.

Dezenas de sites sobre suicídio foram criados recentemente no


Japão e muitos oferecem conselhos de como se matar. No
entanto, especialistas dizem que não adianta culpar a internet e
que um olhar mais atento deveria ser lançado à sociedade em
que os casos ocorrem.

Segundo a polícia, 24 pessoas cometeram suicídio coletivo


desde o ano passado, em atos organizados pela internet. Desde
janeiro foram 20, contando as vítimas de ontem. (ibidem).

O trecho final do texto parte do que há de específico na notícia para o


geral, situando a descoberta dos corpos no dia 12 de outubro dentro de um quadro
maior de suspeição: o de que a internet estaria ajudando a alastrar a idéia do
suicídio entre os jovens – isto no seio de uma sociedade já normalmente menos
horrorizada com ele do que a ocidental. O contágio aqui se daria,
apropriadamente, como um vírus – de computador. Um velho perigo atualizado
pela tecnologia.
128

Talvez valha a pena fazer somente um ligeiro reparo histórico ao texto


publicado pelo Globo a partir de material enviado pelas agências de notícia.
Certamente o caso de Saitama/Kanagawa não é “o maior caso de suicídio coletivo
no país”. Em tempos de paz, talvez. Porque, na Segunda Guerra, por fidelidade ao
imperador ou por vergonha da derrota, unidades inteiras do Exército cometeram
haraquiri, o tradicional suicídio ritualizado, praticado em nome da honra.
A eles se aplica o que Durkheim escreve ao examinar o suicídio de tipo de
altruísta: “Se o homem se mata, não é porque se arroga o direito, mas, o que é
bem diferente, porque tem o dever” (2000, p. 272). Se o indivíduo foge a esse
dever, advêm a desonra e os castigos religiosos porque, do mesmo modo que a
sociedade veda a morte voluntária de seus membros, ela também pode obrigá-los
a se destruir. Para ele, ao suicida egoísta, ela fala uma linguagem que “o desliga
da existência”; ao altruísta, ela “prescreve formalmente abandoná-la” (p. 273).
Para Durkheim, em ambos os casos o sacrifício é imposto pelos fins sociais.
Não nos cabe, aqui, tentar adivinhar as motivações por trás dos suicídios dos
nove jovens de Saitama/Kanagawa, embora a explicação padrão de que eles se
encontram pressionados por uma sociedade extremamente competitiva e
ritualizada seja razoável, para não dizer tentadora. Insistir nisso, porém, poderia
implicar resvalar no etnocentrismo fantasioso de que o próprio Durkheim não
escapa ao falar dos japoneses, que se matariam pelas razões mais insignificantes:
“Conta-se até que eles praticam uma espécie de duelo estranho em que os
adversários lutam, não usando a habilidade de se atingirem mutuamente, mas a
destreza de abrir seus ventres com as próprias mãos” (ibidem, p. 276-277).

4.2.4
Um executivo italiano da Parmalat

No dia 24 de janeiro, na página 35 do jornal, a editoria de Economia


noticiou o suicídio, na Itália, de um assessor financeiro da Parmalat, Alessandro
Bassi, de 32 anos. O registro se insere no contexto específico – o que, de certa
forma, o afasta e isola do leitor carioca tanto quanto o caso dos jovens japoneses –
de um escândalo envolvendo quantias astronômicas na companhia de leite e
derivados que, até então, atuava vigorosamente no mundo, inclusive no Brasil.
Como desdobramento de um caso rumoroso, o que nos remete ao item atualidade
129

da lista de Lage, a morte abre um noticiário que, de maneira alguma, se detém


nela.
Na verdade, o suicídio de Bassi funciona praticamente como um “gancho”
para atrair a atenção de um leitor que, de outra forma, o jornal correria o risco de
perder por exaustão diante de um assunto àquela altura velho de duas semanas nas
páginas. O título, sobretudo, tem enorme poder de atração: “Parmalat: assessor
financeiro se mata na Itália”. E ainda é reforçado pelo subtítulo: “Funcionário
trabalhava com os ex-diretores Fausto Tonna e Luciano Del Soldato, presos
devido a fraudes contábeis”. Bassi ocupa os três primeiros parágrafos do material,
que totaliza 12 parágrafos e teve chamada na primeira página do jornal, e depois
sai de cena, para não mais ser citado, nem nos dias seguintes:

PARMA e MILÃO. Alessandro Bassi, assessor financeiro da


Parmalat, suicidou-se ontem se jogando de uma ponte, na
cidade de Rubbiano di Solignano, próxima a Parma, segundo
informou a polícia. Bassi trabalhava diretamente com os ex-
diretores financeiros da Parmalat Fausto Tonna e Luciano Del
Soldato, dois dos 11 presos devido ao escândalo de mais de
US$ 12 bilhões em fraudes envolvendo a companhia. A polícia
local apressou-se em descartar a hipótese de assassinato.

– É claramente um suicídio. Um pedestre o descobriu – disse


um policial.

Bassi, de 32 anos, era empregado do departamento financeiro


da Parmalat e foi interrogado por juízes esta semana, mas não
estava sob investigação. Em nota divulgada ontem, Enrico
Bondi, administrador responsável pela tentativa de reerguer a
Parmalat, expressou condolências à família, que, por sua vez,
disse a jornalistas que Bassi estava muito estressado com o
escândalo financeiro.

(...) (s/a, 24/1/2004, p. 35).

O suicídio emerge das palavras claramente como um suicídio de honra,


altruísta. Para retomar Durkheim, Bassi não exerceu um direito ao tirar a própria
vida. Pelo contrário, ao agir assim, obedeceu a uma pressão social sobre a sua
consciência individual, foi forçado a fazê-lo por vergonha da desonra de estar, de
alguma forma, associado a atos ilícitos. O texto, simultaneamente, se empenha em
afastar de modo enfático a suspeita de assassinato, comum nas circunstâncias de
uma quadrilha lutando para salvar a pele. Tal movimento é contrário ao que se vê
mais comumente (veremos adiante) nas páginas dos jornais: o de colocar em
130

dúvida a ocorrência do suicídio, levantando a hipótese de um assassinato


disfarçado.
Na mesma página 35, há ainda uma foto colorida do ex-diretor financeiro
Fausto Tonna, no momento de sua prisão, dez dias antes; duas matérias oriundas
do Rio de Janeiro (“Produtor do Rio quer duplicata da empresa”) e de São Paulo
(“No Brasil, metade da produção está parada”); e, em seu miolo, um anúncio
colorido, irregular no formato, do lançamento de um filme nacional.
Há, porém, um interessante e pequeno box na metade interna da página, a
da esquerda, por se tratar de página ímpar. Sob o título “Suicídios no mundo
corporativo”, historiam-se três casos recentes de mortes voluntárias praticadas por
altos funcionários de grandes empresas. O primeiro é o do americano John
Clifford Baxter, ex-vice-presidente da notoriamente fraudulenta Enron. O
segundo, do sul-coreano Chung Mong-hun, diretor-executivo da Hyundai Asan,
braço turístico do grupo Hyundai. Baxter deu um tiro na cabeça. Chung, acusado
de ter enviado US$ 500 milhões para Coréia do Norte, pulou do seu escritório
num 10º andar.
O terceiro parágrafo do box merece reprodução integral por sua vinculação
ao caso anterior, o dos jovens envolvidos num pacto: “O Japão, país do seppuku
(suicídio ritual), não fica de fora. No fim dos anos 90, durante uma crise do
sistema bancário, vários executivos se suicidaram, incluindo Takayuki
Kamoshida, presidente do Banco do Japão, em maio de 1998.” (s/a, 24/1/2004, p.
35).

4.2.5
O fim da carreira do ‘Dr. Morte’

No dia 14 de janeiro, a editoria O Mundo havia publicado, à página 28, a


notícia de que Harold Shipman, mais conhecido como Dr. Morte, médico
considerado o maior assassino em série da história da Grã-Bretanha, havia sido
encontrado morto em sua cela na penitenciária Wakefield, em West Yorkshire, no
dia anterior. Na data da edição de O Globo, Shipman estaria completando 58 anos.
Ele estava preso desde 2000, quando fora condenado, pela morte de 15 pacientes,
a 15 penas perpétuas consecutivas. Uma investigação subseqüente, no entanto,
revelou que o médico havia matado ao menos 215 pacientes, talvez 260,
131

sobretudo mulheres idosas que viviam sozinhas, com doses letais de heroína,
desde 1977.
Casado e pai de quatro filhos, ele nunca admitiu os crimes, para os quais,
como sói acontecer, havia tentativas divergentes de explicação: para uns, o
médico queria brincar de Deus; para outros, ele ficara traumatizado com a morte
da mãe, que tinha câncer e tomava heroína para aliviar a dor. Com este currículo,
não causa espanto que o provável suicídio de Shipman ficasse em segundo plano.

(...)

Funcionários da Penitenciária Wakefield, em West Yorkshire,


encontraram-no pela manhã, pendurado numa forca feita com
lençóis presos às barras da janela. Eles ainda tentaram reanimá-
lo, mas não conseguiram. Shipman esteve sob vigilância em
outras prisões porque as autoridades temiam que cometesse
suicídio. Mas segundo Jane Parsons, porta-voz do Serviço
Penitenciário britânico, ele não parecia oferecer risco à própria
vida.

– Seu comportamento não era causa de preocupação. E ele não


havia recebido ameaças – contou Parsons.

Embora os indícios apontem para suicídio, será aberta uma


investigação.

(...)

Os parentes das vítimas estavam revoltados com a notícia do


suicídio, reclamando que assim nunca saberão por que os
pacientes foram mortos.

– Foi uma saída fácil para ele. Shipman nunca demonstrou


remorso, e agora a porta está fechada para nós – declarou Jane
Ashton-Hibbert, cuja avó, Hilda, foi assassinada. (s/a,
14/1/2004, p. 28).

Nas declarações tanto da porta-voz do Serviço Penitenciário britânico


quanto da neta de uma das vítimas de Shipman, encontram-se dois juízos
freqüentemente associados ao suicídio. Primeiro, que a pessoa precisa demonstrar
algum tipo de intenção de se matar para ser realmente vigiada (“não era causa de
preocupação”). Segundo, que o suicida foge de alguma coisa (“uma saída fácil”).
Uma ignora que a morte voluntária, como Durkheim comprovou pelo cruzamento
de estatísticas, é um fenômeno da razão, não da loucura. Outra, que é
132

perfeitamente aceitável um ponto de vista contrário, não-religioso: de que um


suicida está indo voluntariamente ao encontro de algo que todos os outros
tememos. Ademais, embora ele estivesse condenado à prisão perpétua, 15 delas, a
ênfase na vigilância aproxima o caso do Dr. Morte daqueles de condenados à
morte vigiados dia e noite para não fazerem aquilo que o Estado se arroga o
direito exclusivo de fazer.
Dada a notoriedade de Shipman, a notícia da sua morte foi publicada, com
o título chamativo “Dr. Morte é encontrado enforcado” e o cauteloso subtítulo
“Aparente suicídio na prisão do médico que matou 215 pacientes revolta parentes
das vítimas”, no alto da página, em cinco medidas, com uma foto em preto-e-
branco da venda de um tablóide de Manchester anunciando o seu enforcamento87.
Faziam-lhe companhia, na página, a divulgação de uma gravação que ligaria o
primeiro-ministro israelense Ariel Sharon a um escândalo de fundos de campanha
eleitoral; a notícia da condenação de um editor de mangás (histórias em quadrinho
japonesas) por pornografia, em Tóquio; e a seção Ciência e Vida, destacando o
fato de que 12 pessoas haviam morrido de gripe aviária no Vietnã.

4.2.6
A dançarina brasileira na Espanha

Embora Elizângela Barbosa Guimarães fosse brasileira, o seu suicídio ainda


não faz parte daqueles que melhor atendem ao pré-requisito de proximidade na
avaliação empírica da notícia. Ela se matou em Gijón, na Espanha, e sua morte
parece ter sido, ainda que indiretamente, relacionada com os atentados terroristas
de Madri, meses antes. Portanto, a notícia da sua morte foi publicada ainda na
editoria O Mundo, na edição de 14 de dezembro de 2004, em uma medida, no alto
da página 33. Na verdade, a reportagem “especial para O Globo” de Priscila
Guilayn era um box de uma matéria maior, intitulada “Zapatero: Aznar apagou
registros de ataques”, na qual o atual chefe do governo acusava seu antecessor de
ter apagado dos computadores da Presidência os registros efetuados entre o dia 11
de março e as eleições de 14 de março, pelas quais os socialistas voltaram ao
poder.

87
Num toque sinistro adicional, o doutor clinicava em Hyde, subúrbio de Manchester.
133

O tom do título do box contrasta fortemente com o do texto de Priscila.


Um é circunspecto (“Comissão liga morte de brasileira a 11 de março”). O outro,
vagamente romanesco, como nestes dois primeiros parágrafos, num total de sete:

MADRI. Seu nome de guerra era Lorena. Trabalhando de


dançarina erótica numa casa noturna de Gijón, a brasileira
Elizângela Barbosa Guimarães conheceu o marido, importante
testemunha nas investigações do 11 de Março, atentado que
matou 191 pessoas em Madri este ano. No último dia 3,
Elizângela teria anunciado a amigos e parentes, em mensagem
no celular, que se mataria. Afogou-se no Mar Cantábrico, na
praia de San Lorenzo, dois dias antes de completar 23 anos.

Embora a autópsia tenha confirmado o afogamento, alguns


órgãos dela foram trazidos a Madri para exame toxicológico,
ainda sem resultado. Um dos membros da comissão do 11 de
Março abriu uma investigação sobre a morte da brasileira. (...)
(GUILAYN, 14/12/2004, p. 33).

Daí em diante, a jornalista conta que Elizângela havia chegado à Espanha


vinda de Goiás, cinco anos antes de sua morte. Conheceu o marido, Francisco
Javier Villazón, o “Lavandero”, quando ambos trabalhavam na boate Club
Horóscopo. Ele cuidava das cobras com quais a brasileira fazia o seu número
erótico. Em 2001, ele fora procurado por dois homens interessados em alguém
que fabricasse bombas que pudessem ser detonadas com um telefone celular –
precisamente o tipo utilizado no 11 de março de 2004. Villazón tornou-se, então,
testemunha contra os terroristas e passou a viver sob a proteção da polícia.
Elizângela tivera um filho com ele (além de dois que já deixara no Brasil)
e se separara. O ex-marido foi um dos que recebeu, pelo celular, mensagens em
que ela avisava que se suicidaria. O então patrão de Elizângela na boate Sagitário,
um português identificado como João G., declarou a Priscila Guilayn: “Por volta
das 5h de sexta-feira, Lorena saiu do clube com amigas e foi percorrendo bares,
discotecas que marcaram a vida dela aqui em Gijón. Foi a lugares que a faziam
lembrar do marido e do filho. Era uma despedida” (ibidem). Segue-se um relato
dramático da sua tentativa de impedir que Elizângela consumasse o ato.
Toda a narrativa, nota-se, adquire um tom novelesco, destinado a atrair
simpatia para a infeliz dançarina brasileira. Ela até mesmo se aproxima do tipo de
texto comum nos jornais brasileiros pré-lead. A história se torna tão singular que,
mais uma vez, não pode ser compartilhada a ponto de se tornar um foco de
134

contágio. Além disso, segundo a clássica tipologia de Durkheim, este é o primeiro


caso analisado de suicídio preponderantemente egoísta.
Neste ponto, recordo o final da ópera Dido & Aeneas, do compositor
inglês Henry Purcell (1659-1695). A rainha de Cartago, Dido, e o príncipe
troiano, Enéas, embora apaixonados, são separados pelo sortilégio de uma
feiticeira, que simula uma ordem de Júpiter para que ele abandone a capital
fenícia no norte de África e funde uma nova Tróia. A natureza já melancólica de
Dido evolui rapidamente para a decisão de morrer – não fica claro como, o que
abre a porta para uma interpretação suicidária – e ela canta uma ária famosa,
When I am laid in earth: “Quando eu estiver deitada na terra/ Que os meus erros
não criem/ Problemas em vosso peito/ Lembrai-vos de mim, lembrai-vos de mim/
Mas, ah, esquecei meu destino”88. O texto sobre Elizângela de certa forma faz o
mesmo que os dois versos finais: pede que nos lembremos dela, mas esqueçamos
seu destino.

4.2.7
O assassino da jornalista goiana em Atlanta

No penúltimo dia do ano, a editoria O País noticiou outro suicídio de


brasileiro ocorrido no exterior. Por que não O Mundo? Porque a regra interna
(não-escrita) do Globo é que fatos envolvendo brasileiros fora do Brasil ainda são
assunto das páginas nacionais. Exceções como a de Elizângela – ou de Jean
Charles de Menezes, fuzilado pela polícia inglesa no ano seguinte – aparecem nas
páginas internacionais apenas se estão vinculados a eventos maiores, como os
atentados terroristas do 11 de março em Madrid (2004) ou do 7 de julho em
Londres (2005). O suicídio de Marley Alves Pereira, portanto, foi publicado na
seção costumeira e teve chamada na página dois. O caso, todavia, tem uma
característica distinta.

88
When I am laid in earth/ May my wrongs create/ No trouble in thy breast./ Remember me, re-
member me/ But, ah!, forget my fate.
135

GOIÂNIA. Foi liberado ontem à tarde o corpo da jornalista


goiana Eliete Barcelos, de 33 anos, assassinada no fim de
semana com um tiro em Atlanta, nos EUA, pelo ex-namorado,
o também goiano Marley Alves Pereira, de 27, que se matou em
seguida. O corpo será levado para Goiânia, onde será sepultado.
Já o enterro de Marley será em Edéia, a 127 km de Goiânia.

Os corpos foram encontrados pela polícia de Atlanta em um


quarto do Hotel Comfort Inn, na tarde de segunda-feira. A
polícia americana informou que os dois morreram no domingo
e que o crime foi premeditado por Marley, que foi modelo em
Goiás mas trabalhava como preparador de carne numa
churrascaria de Miami. Ele teria cortado a linha de telefone e
trancado a porta do quarto antes de atirar no rosto de Eliete e
contra a própria cabeça. A arma do crime, uma pistola 12mm,
foi achada no local.

(...)

(SOUZA, 30/12/2004, p. 8).

Homicídios seguidos de suicídio eram, ao menos até a multiplicação dos


homens e mulheres-bomba, o tipo mais comum de aparição da morte voluntária na
imprensa brasileira. Os casos passionais – como o envolvendo Marley e Eliete –
proliferavam nos jornais no tempo de Nelson Rodrigues e das cidades muito
menos violentas. Neles, não é incomum que, após eliminar o objeto do seu desejo
(a retórica possessiva é deliberada), o sujeito apaixonado aja de forma a se unir a
ele na eternidade. Se, como quer Maria Luiza Dias89, “o suicídio é um homicídio”
nestas circunstâncias, deve ser válido também concluir que “o homicídio é um
suicídio”. Por outro lado, o suicídio, com toda a pesada carga de interdição que o
cerca em nossa sociedade, na qual sua figura emblemática é Judas, também surge
no caso de se seguir a um homicídio como uma pena imediata, uma danação.
A reportagem sobre o caso tem o título “Jornalista brasileira é assassinada
por ex-namorado nos Estados Unidos”. O que não deixa dúvida quanto à real
notícia que o jornal pretende dar. O suicídio surge coadjuvantemente, apenas no
subtítulo: “Rapaz, que também era de Goiás, suicidou-se com um tiro na cabeça”.
Depois do lead e do sublead, acima reproduzidos, o texto “especial para O
Globo”, assinado por Isonilda Souza, entrevista o pai da moça, José Otávio
Barcelos, que conta ter o namoro sido interrompido havia seis meses, sem que, no
entanto, Marley parasse de ameaçá-la. O encontro dos dois no hotel teria sido uma

89
Cf. p. 100.
136

tentativa de pôr um ponto final na relação. O pai do rapaz, Mário Pereira, morador
de Atlanta, é citado como afirmando que era a jornalista que o assediava.
O parágrafo final do texto reforça a idéia de que a notícia era digna de
publicação, ao destacar a importância de Eliete na comunidade brasileira de
Atlanta: “Ele (sic) era sócia de um site e de uma revista, ambos em português e
direcionados aos brasileiros que vivem nos EUA. Também organizava eventos
como o Miss Brasil 2004 nos Estados Unidos, cuja final foi em Nova York, em
setembro.” Em termos de diagramação, a matéria foi dada em três medidas, na
página oito. Tem uma foto colorida de Eliete em vida. Limita-se, à esquerda e
abaixo, com anúncios; acima, outra notícia da Região Centro-Oeste: “Chefe do
crime organizado em Mato Grosso tem 2.303 imóveis” (em quatro medidas) e um
texto-legenda mostrando, em cor, protesto de estudantes de Maceió (em duas
medidas).

4.2.8
O desempregado na Praça dos Três Poderes

O texto-legenda na página dois do dia 14 de abril trazia o primeiro capítulo


de uma história singular no ano de 2004: um suicídio que, conquanto à primeira
vista pudesse ser altamente contagioso, foi acompanhado pelo jornal como uma
pequena novela. Nele, a foto mostrava “o desempregado José Antônio Andrade de
Souza, de 40 anos, que ateou fogo em frente ao Palácio do Planalto numa tentativa
de chamar a atenção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva” (s/a, 14/4/2004, p.
2). O texto informava, ainda, que o homem tivera 85% do corpo queimado e
estava em estado grave, além de chamar para a reportagem completa, na editoria
O País. Ele era visto deitado de costas para cima, com a cabeça levantada,
recebendo primeiros socorros. Nada na foto traduzia a gravidade da situação de
Souza. Nem nela, nem na foto colorida em duas medidas da página 12. Ambas,
todavia, tinham como pano de fundo o Palácio do Planalto, ocupado pela
Presidência.
Na foto do alto da página 12, mostrava-se o desempregado sendo
carregado numa maca, ainda de costas para cima, como aparecera na primeira
foto, mas já a caminho do hospital. O título da matéria em quatro medidas
assinada pelo repórter Bernardo de la Peña, da sucursal de Brasília, era direto:
137

“Homem ateia fogo ao corpo em frente ao Planalto.” O subtítulo enfatizava quão


graves tinham sido os ferimentos e o propósito de seu ato extremo:
“Desempregado de 40 anos ficou com 85% do corpo queimados; ele disse que
queria chamar a atenção de Lula.” O conjunto encimava uma notícia sobre a
quarta invasão de terras pelo Movimento dos Sem Terra (MST) no Pontal do
Paranapanema, no Oeste paulista, “nos últimos dois dias”; e outra sobre a
condenação a quatro anos de prisão do dono do Canecão Mineiro, boate de Belo
Horizonte que, ao pegar fogo, em 2001, matou sete pessoas e feriu outras 360.
Ambas ocupavam apenas uma coluna. As outras cinco da parte superior da página
12 para baixo correspondiam à metade de um anúncio colorido de venda de
celulares que se completava na fronteira página 13.
Texto-legenda, título e subtítulo eram adequados ao teor do lead:

BRASÍLIA. Na tentativa de chamar a atenção do presidente


Luiz Inácio Lula da Silva, o desempregado José Antônio
Andrade de Souza, de 40 anos, ateou fogo ao corpo ontem de
manhã na Praça dos Três Poderes, em frente ao Palácio do
Planalto. Enquanto Lula recebia um grupo de empresários e
representantes das 27 federações de indústria do país, Souza
usou um produto inflamável para molhar as roupas e ateou fogo
ao corpo. Aos policiais e bombeiros que o socorreram, Souza
disse que queria falar com o presidente. (DE LA PEÑA,
14/4/2004, p. 12).

Ressalte-se, de imediato, o uso, pelo repórter, da técnica de redação


conhecida como lead de contraste ou “lead contraste” (como prefere Lage), na
qual se contrapõem duas informações de modo a sugerir ao leitor uma idéia, não
necessariamente enunciada adiante. No caso, enquanto o trabalhador
desempregado se imolava na Praça dos Três Poderes, o presidente operário se
reunia com os industriais. Mais adiante, porém, o texto não apenas diz, citando a
assessoria do Palácio do Planalto, que Souza não pediu uma audiência ao
presidente (como ser recebido se não houve pedido neste sentido?), como ainda
informa que Lula ordenou que sua equipe médica se juntasse à do Hospital
Regional da Asa Norte, para onde o desempregado queimado foi levado. “Assim
que soube do fato, o presidente orientou para que a situação fosse acompanhada
no hospital”, declarou o porta-voz da Presidência, André Singer, já à noite, a de la
Peña. “O presidente lamenta muito o ocorrido e espera que José Antônio tenha
uma rápida recuperação no hospital.”
138

Antes disso surgem outras peças da história: Souza era mineiro, mas
morava no Espírito Santo; carregava um cartaz no qual se dirigia a Lula (“Senhor
presidente, vendi meu barraco por R$ 800 para falar com você. Roubaram meus
documentos, tiraram meu direito de cidadania e estão armando um monte de
problemas para mim. Estou perdendo minha família e pedindo meus direitos de
cidadão.”); sua internação era estimada em 30 dias e iria requerer também
acompanhamento psiquiátrico.
O segundo capítulo no Globo do drama marcaria uma dramática reversão
de expectativas: a morte de Souza – reforçando a posteriori a decisão de se ter
noticiado a ação. “O desempregado que se imolou na frente do Palácio do Planalto
está interferindo na vida do país”, diz Agostinho Vieira, citando-o como exemplo
de ação que diz respeito a outras pessoas além do suicida e de seus familiares90.
No dia 19 de abril, numa primeira página quase totalmente tomada pela
alegria do campeonato estadual do Flamengo (conseguido numa vitória de 3 a 1
sobre o Vasco) e pela manchete “PT cobra do governo ofensiva na segurança”, o
título de uma chamada em duas medidas informava: “Morre o desempregado que
ateou fogo ao corpo”. O pequeno texto rememorava as circunstâncias da ação de
Souza e noticiava a morte por falência múltipla, na véspera, além de apresentar
um dado até então inédito: ele deixava uma filha de 8 anos.
O resto da notícia estava na página quatro da editoria O País, em quatro
medidas, ao lado da coluna política de Helena Chagas e dos resultados das loterias
federais, embaixo das matérias “‘Time’ inclui Lula na lista das cem pessoas mais
influentes do mundo” (subtítulo “Presidente é o único latino-americano citado
entre líderes mundiais”) e “PT decide jogar pesado nas alianças” (subtítulo “Em
Fortaleza, partido decide apoiar PCdoB contra vontade do diretório nacional”).
O título desta reportagem praticamente repetia o da chamada na primeira
página: “Morre homem que ateou fogo ao corpo”. O subtítulo rememorava o seu
gesto: “José Antônio de Souza queria ver Lula para protestar contra o
desemprego”. O texto, de de la Peña e Rodrigo Rangel, trazia os seguintes lead e
sublead:

90
Cf. p. 113.
139

BRASÍLIA. O desempregado José Antônio Andrade de Souza,


de 40 anos, que ateou fogo ao corpo na manhã da última terça-
feira na Praça dos Três Poderes, em frente ao Palácio do
Planalto, morreu ontem, por falência múltipla dos órgãos. José
Antônio faleceu às 15h40m no Hospital Regional da Asa Norte,
onde estava internado.

O corpo de José Antônio, que nasceu em Minas Gerais, foi


transferido para o Instituto Médico-Legal e hoje deverá ser
liberado para o enterro. A mulher do desempregado, Maria das
Dores Claudia, que chegou a Brasília na quarta-feira, está num
abrigo na cidade. A família ainda não sabe como vai transferir o
corpo, mas pretende enterrar José Antônio em Cariacica, no
Espírito Santo, onde ele morava. (DE LA PEÑA E RANGEL,
19/4/2004, p. 4).

O miolo da matéria basicamente reproduzia as informações veiculadas


cinco dias antes – até a foto preto-e-branco escolhida era a mesma que havia sido
publicada na página 12 da edição de 14 de abril – e atualizava alguns dados sobre
o estado de saúde de Souza. O final dela descrevia o último dia de vida do
desempregado. Estava consciente, característica que, segundo o chefe do plantão
no Hospital Regional da Asa Norte, Delmir Ferreira Souto, é comum aos
pacientes com queimaduras. Estava agitado, incomodado com os curativos
aplicados sobre a pele, na tentativa de reconstituir os tecidos destruídos. Além
disso, passava por hidratação, para repor os nutrientes, e tomava analgésicos
contra a forte dor.
Esta descrição relativamente pormenorizada da agonia de Souza funciona,
ainda que inconscientemente, como um alerta do tipo “não façam o mesmo, senão
os sofrimentos serão similares”. Ele talvez se fizesse necessário – do ponto de
vista do temor de o jornal se tornar um propagador do suicídio, naturalmente –
porque as notícias sobre o suicídio do desempregado mineiro são a um tempo
singulares e comuns: uma morte ocorrida em protesto contra as elevadas taxas de
desemprego (não raro beirando os 17% nas principais regiões metropolitanas do
Brasil) poderia ser entendida, em algum nível, como incitação à imitação. Tudo,
porém, pode ser muito mais complexo: sua publicação também se enquadra na
linha de crítica ao governo mantida, em variados tons, pelo jornal, bem como
assinala o grau de desespero a que alguns brasileiros estavam sendo levados pelo
desemprego. A avaliação geral sobre o valor desta notícia é, como em todas as
outras, sujeita a controvérsias, ambigüidades e variadas correlações de forças.
Parece fora de dúvida, no entanto, que trata-se de um suicídio do tipo anômico:
140

Souza havia tido os documentos roubados – perdendo, literal e metaforicamente,


sua identidade – e encontrava-se em dificuldades financeiras. Perdera as
referências.
O epílogo da história de José Antônio Andrade de Souza no Globo ocorre
na edição do dia seguinte, 20 de abril. O título e o subtítulo da matéria principal –
no alto, em seis medidas – da página 12 da editoria O País estampavam,
respectivamente, “Avião da FAB leva corpo de desempregado” e “José Antônio
de Souza, que pôs fogo em frente ao Planalto, foi enterrado na Região
Metropolitana de Vitória”. O lead de Rodrigo Rangel livrava o leitor da angústia
inserida no capítulo da véspera (“A família ainda não sabe como vai transferir o
corpo”):

BRASÍLIA. O corpo do desempregado José Antônio Andrade


de Souza, morto após atear fogo em si mesmo na sexta-feira em
frente ao Palácio do Planalto, foi levado ontem para Vitória
num avião da Força Aérea Brasileira (FAB) por determinação
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O enterro foi num
cemitério da periferia de Cariacica, na Região Metropolitana de
Vitória. Era perto de lá que José Antônio morava com a mulher,
a doméstica Maria das Dores de Souza, e uma filha de 8 anos.
Também por ordem do Palácio do Planalto, um médico da
Presidência acompanhou a viúva. (RANGEL, 20/4/2004, p. 12).

O resto da matéria principal repete, uma segunda vez, os detalhes do ato de


Souza – necessidade freqüente no jornalismo dada a incerteza se o leitor
acompanhou os lances anteriores da história – e acrescenta algumas novas
informações sobre o morto: morava no bairro de Nova Rosa da Penha, um dos
mais violentos de todo o estado do Espírito Santo; estava desempregado havia
quatro meses; sua mulher estava grávida de novo, também de quatro meses. “No
atestado de óbito, registrado num cartório de Brasília, a mulher fez constar a
‘profissão verdadeira’ dele, ajudante de pedreiro”, escreve Rangel (idem).
A página traz duas fotos coloridas: a mesma do atendimento a Souza
publicada na página dois da edição do dia 14 de abril; e a da viúva Maria das
Dores. Ela é a principal personagem da matéria secundária, feita pelo repórter
Carlos Orletti, de Vitória, a única outra constante da página (o resto é tomado por
variados anúncios), de título “‘Ele dizia que se sentia humilhado’” e subtítulo
“Viúva conta que marido estava desesperado e que já tentara se enforcar”. O texto
apresenta novos detalhes da vida miserável de Souza e de Maria – na verdade, ele
141

vendera o barraco por R$ 1.000, mas deixara R$ 200 com a mulher. Conta, ainda,
como ela conseguiu viajar a Brasília, para acompanhar os últimos dias de vida do
marido – com uma passagem de avião oferecida pela Prefeitura de Cariacica.
E, por fim, Orletti descreve uma tentativa anterior de suicídio: “Camila
(sua filha de 8 anos) ficou com o avô. Duas semanas antes da viagem, ela evitara
uma tragédia. José Antônio subiu numa árvore para se enforcar. Desistiu ao ouvir
os apelos desesperados da menina.” Emerge das informações a figura de um
homem desesperado e humilhado (“Antônio falava que era muita humilhação
vender caranguejo”, conta Maria das Dores), o que, subliminarmente, além do
dado anômico, remete o suicídio a uma perda temporária ou definitiva da razão.

4.2.9
O adolescente na roleta russa em Meriti

Mantendo a idéia de vir aproximando os casos de suicídio do Rio de Janeiro


– lembremo-nos que desde Durkheim, ao menos, a proximidade surge como um
fato importante no suposto contágio – o caso seguinte ocorre já na nossa região
metropolitana. Trata-se da morte de um jovem em São João do Meriti, na Baixada
Fluminense. “Os suicídios de adolescentes, por exemplo, geram um sentimento de
culpa muito grande”, reconhece Luiz Garcia. “Já estive numa situação dessas e sei
o que que é, fica todo mundo abilolado.”
Talvez por isso, talvez por a morte ter ocorrido numa roleta-russa, o caso
não mereça mais que uma curta matéria na metade inferior do espaço editorial da
página 25, editoria Rio, edição de 1º de maio. Acima dela, informa-se que um
encontro internacional sobre armas realizado na cidade geraria um relatório com
sugestões de combate ao tráfico de armas. Até por suas pequenas dimensões, o
texto analisado é característico deste tipo de notícia. Sob o título “Polícia apura se
jovem morto fez roleta-russa” e o subtítulo “Estudante de 15 anos é encontrado
em casa com tiro na cabeça”, lêem-se três sucintos parágrafos:

O estudante Tiago Ferraz Ribeiro, de 15 anos, foi encontrado


morto anteontem, com um tiro na cabeça, dentro de casa, no
bairro Tietê, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense.
Ontem, durante o enterro do rapaz no Cemitério Corte Oito, em
Duque de Caxias, amigos disseram que ele morreu durante uma
brincadeira de roleta-russa com um outro menor. A polícia, no
142

entanto, não confirma a versão e investiga a possibilidade de


suicídio.

– Vamos ouvir o depoimento da família para saber como estava


o estado emocional do garoto. Mesmo se for uma roleta-russa,
isso já é um suicídio – disse o delegado Jorge Luiz Diequez, da
64ª DP (Vilar dos Teles), que deseja saber onde a arma que
pode ter sido usada pelo rapaz estava guardada.

O pai de Tiago é o policial militar Marco Barreto Ribeiro,


lotado no 15º BPM (Caxias). Ele e a mulher, Isabel Cristina,
não estavam em casa na hora em que o filho foi baleado. O
garoto foi socorrido por um vizinho, que teria ouvido o disparo.
(s/a, 1º/5/2004, p. 25).

Há ao menos duas idéias não enunciadas, e por isso mesmo


particularmente significativas, na breve notícia da morte do jovem Tiago: segundo
o jornal, em versão atribuída a amigos do morto, pode não ter havido suicídio e
sim um acidente “durante uma brincadeira de roleta-russa” (o que, mais uma vez,
retira o fato da alçada da consciência ou da razão implacável da morte voluntária);
e a culpa indiretamente é atribuída ao pai PM, que deixou uma arma carregada em
casa (breve outro caso analisado deixará claro como essa crítica se insere dentro
do apoio, pelo jornal, à Campanha do Desarmamento). É ao delegado “Diequez”
(sic) que cabe a ponderação de que a roleta-russa já é, em si, uma forma de
suicídio.

4.2.10
O assassino dos próprios filhos

No dia 18 de agosto, a página 22 do Globo, editoria Rio, publicou a primeira


de três reportagens sobre um dos dois únicos suicídios noticiados no ano de 2004
a envolver um morador da cidade do Rio de Janeiro: o empresário Ruy Kenji
Morimoto, de 47 anos. O ato, todavia, foi cometido fora dos limites da cidade, ou
melhor, noutro município: São Pedro D’Aldeia, na Região dos Lagos. Além disso,
Morimoto não apenas se matou a tiros: imediatamente antes ele matara seus dois
filhos, uma menina de 9 anos e um menino de 7 anos, cujos nomes jamais são
mencionados. O empresário estava separado da mãe das crianças havia meses.
“No caso dele, o resto era também importante. Não se podia contar a
história sem mencionar o final”, avalia Luiz Garcia. “O pai separado que se mata
143

após matar os filhos não cometeu um ato íntimo e pessoal, interferiu diretamente
na vida da família e da comunidade em que vivia”, reforça Agostinho Vieira.
A notícia ocupava seis medidas no alto da página, sob o título “Pai mata os
dois filhos a tiros e suicida” e o subtítulo “Crime aconteceu no domingo mas
corpos só foram encontrados anteontem em casa de São Pedro D’Aldeia”. Encima
dois outros registros, o do ataque a três moradores de rua em Cascadura (uma das
vítimas morreu) e o do assassinato de um corretor de turismo na Tijuca, este com
uma foto colorida do corpo coberto por plástico preto e cercado de cones de
trânsito, além de um anúncio de meia página.
O caso de Morimoto é merecedor de tamanho destaque – que inclui ainda
a chamada na página dois – porque não se trata apenas de um suicídio mas de um
duplo homicídio seguido de suicídio, com o agravante de as duas vítimas serem
crianças filhas do próprio assassino. A tragédia aí contida depõe a favor da
publicação em detalhes, um pouco como o caso da jornalista brasileira assassinada
pelo ex-namorado em Atlanta. No ano anterior, tinha sido o caso, ainda, de um
fato brevemente referido no pé da matéria assinada por Fábio Vasconcellos: “Há
cerca de um ano, um crime semelhante chocou o Rio. Um engenheiro morador da
Barra matou com tiros de escopeta a mulher as duas filhas enquanto dormiam e
também se suicidou” (p. 22).
A pressa do fechamento levou o repórter a uma ligeira imprecisão na
descrição do armamento empregado: em maio de 2003, o engenheiro Waldo de
Carvalho Wunder se suicidou com um tiro de escopeta na boca depois de matar a
mulher e as duas filhas usando uma pistola Glock calibre 380, na cobertura da
família, na Barra da Tijuca91. Wunder devia mais de R$ 700 mil ao INSS. O
detalhamento das armas utilizadas, que lhes atribui uma certa importância
fetichista, terá desdobramentos importantes na terceira reportagem sobre o caso
Morimoto, como veremos um pouco mais adiante. De imediato, cabe-nos ler lead
e sublead da primeira reportagem, a publicada no 18 de agosto:

91
Em agosto de 2003, um segundo caso assemelhado resultaria no suicídio do empresário Antônio
Schempri. A diferença é que ele não matou a própria família e sim o sócio, a esposa deste e o filho
do casal. O assassino suicidou-se duas horas depois, na sua casa do Recreio.
144

A Polícia Civil ainda não sabe o que levou o empresário Rui


Kenji Morimoto, de 47 anos, a matar os dois filhos e se
suicidar. O crime ocorreu na noite de domingo, mas os corpos
só foram encontrados anteontem, no bairro Ponta da Areia, em
São Pedro D’Aldeia, após a polícia receber informações de que
o empresário havia desaparecido com as crianças: uma menina
de 9 anos e um menino de 7. As crianças foram mortas com
tiros na cabeça. Ao lado do corpo do pai – que morreu com tiro
na boca – foi achado um revólver calibre 38 com cinco cápsulas
deflagradas.

Os corpos das crianças, que moravam com a mãe num


condomínio da Avenida Sernambetiba, na Barra da Tijuca,
foram sepultados ontem no Cemitério do Caju. Morimoto foi
enterrado no Cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap, no fim
da tarde. O desaparecimento das crianças começou a ser
investigado na segunda-feira, depois que ex-mulher de
Morimoto, Lise Werneck de Menezes, registrou o caso na 16ª
DP (Barra da Tijuca). (VASCONCELLOS, 18/8/2004, p. 22).

O texto é direto e sem meias-palavras. Há, neste trecho inicial, duas


insinuações importantes. Logo a primeira frase do lead nos fala da aparente falta
de motivação para o crime e o suicídio. Implicitamente, portanto, admite-se que
uma morte voluntária tem um motivo, uma razão – o que ajudaria a lançar alguma
luz, dar algum sentido, a gestos tão chocantes. Depois, no sublead, faz-se uma
espécie de preâmbulo ao drama familiar que ronda, sem de fato eclodir, todo o
resto do texto: a polícia pretendia tomar o depoimento de Lise e de outros parentes
para tentar estabelecer o que motivou Morimoto, dono de uma loja de miniaturas e
brinquedos no Edifício Avenida Central; ele pegara os filhos na sexta-feira, mas
não os entregara em casa no domingo, conforme acordado pelo casal na Justiça;
“ele era uma pessoa reservada e nunca falava dos seus problemas familiares”.
Logo em seguida a esta observação, surge uma declaração aparentemente
inútil da delegada Cláudia Faissal, de São Pedro D’Almeida: “A cena do crime
leva a crer que o pai foi mesmo o autor dos disparos.” Em nenhum momento
anterior fora levantada qualquer outra hipótese. É como se houvesse uma torcida
silenciosa para que as três mortes fossem um triplo latrocínio ou um triplo
homicídio por vingança, crimes com os quais a sociedade teria menos dificuldade
de lidar do que com o pai matando seus dois filhos e, ainda pior, se matando a
seguir.
No dia seguinte, o jornal manteve o caso no seu noticiário local, em três
colunas no meio da página 15, entre a informação de que um traficante fora
145

baleado ao tentar invadir a Rocinha com seu bando, a de que o corpo de uma
vítima de seqüestro havia sido encontrado e a de que o Conselho Nacional de
Peritos Judiciais do Brasil pretendia tomar medidas contra o membro responsável
pela filiação de outro traficante, além de dois comunicados pagos. Desta vez, sob
o título “Comerciante que teria matado filhos havia perdido a guarda das
crianças”, o texto de Dimmi Amora concentrava-se, depois da obrigatória
rememoração do fato original, na perfil psicológico de Morimoto, “um pouco
mais fechado, desde que perdera a guarda dos filhos para a ex-mulher”. A
delegada Cláudia Faissal foi ouvida mais uma vez, atrás de novos detalhes das
investigações, entre eles os de que as crianças provavelmente foram dopadas antes
do fuzilamento, para não sofrer.
São ouvidos, ainda, dois psiquiatras, Vera Lengruber, presidente da
Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro, e Fábio Barbirato. Ela
afirma que “o ato de Rui costuma ser classificado como suicídio coletivo”. Não há
maiores detalhes sobre o que seria isso. Ele, a partir de casos semelhantes nos
EUA, opina: “É um quadro tão grave que a pessoa acha que está fazendo um bem
para os parentes para evitar que eles tenham um sofrimento tão grande quanto o
que ela está sentido. A pessoa deprimida perde a noção.”
No dia 20 de agosto, a terceira reportagem sobre o caso Morimoto opera
um malabarismo editorial. Tendo uma chamada na primeira página e sendo
publicada na página 13, a de abertura da editoria Rio, com direito ao destaque de
um infográfico e encimando uma notícia sobre as idas e vindas do desabamento
do edifício Palace II, ela desvia completamente o assunto. Deixa-se de tratar de
um duplo homicídio seguido de suicídio e passa-se a abordar os riscos de se
manter uma arma em casa e as benesses da Campanha do Desarmamento, que O
Globo apoiou. A campanha pagava entre R$ 100 e R$ 300 por arma entregue.
Tudo porque os repórteres Amora e Maria Elisa Alves conseguiram apurar
que, dias antes do crime, Morimoto entregou dez armas na sede do movimento
Viva Rio. Estas, porém, não eram todas as suas armas, daí o título de gosto
duvidoso: “Só faltou uma arma”. O subtítulo esclarecia: “Pai que matou os dois
filhos e se suicidou havia entregado dez revólveres e pistolas, mas manteve um
38.”
146

O infográfico trazia os desenhos das armas entregues em três visitas


distintas ao Viva Rio, em troca de R$ 1.200, e da arma não entregue. Elas92 têm
seus calibres informados, bem como, com exceção do fatídico revólver calibre 38,
as datas em que foram deixadas na sede da Glória. O título é um primor (“Um
arsenal nas mãos erradas”) e o subtítulo é ainda pior (“As dez armas entregues
pelo criminoso”). Lembra uma atualização retórica do castigo medieval ao
cadáver.
Completa o infográfico um quadrinho sobre o funcionamento da Campanha
do Desarmamento. Na página, há também um box intitulado “Como aderir à
campanha”. A redundância da abordagem desarmamentista é um sintoma da
mudança de enfoque, radicalizada pela tomada de declarações do coordenador do
projeto de controle de armas do Viva Rio, Antônio Rangel Bandeira, e de um
membro do Laboratório de Análise da Violência da Uerj, Ignácio Cano.
Rangel Bandeira diz:

A campanha é para que as pessoas entendam que manter arma


em casa é um risco para a família. Se esse comerciante tivesse
entregue todas as armas, talvez não tivesse matado os filhos
num momento de fraqueza. Se até um pai mata as crianças
quando está desesperado e com uma arma na mão, imagina só
como é fácil ocorrerem crimes passionais, mortes após
discussões de vizinhos. (apud AMORA e ALVES, 20/8/2004,
p. 13).

Como diz o próprio Rangel Bandeira, talvez. A crença de que a arma de


fogo é determinante para que se cometam crimes, aí incluídos, segundo a lógica
vigente, suicídios, faz tábula rasa da constatação de que cada sociedade escolhe
um modus operandi para se matar – mas que, não obstante as dificuldades ou
impossibilidades materiais, seus membros não deixam de se matar – e insiste em
criminalizar a morte voluntária – o que evoca a figura retórica do “assassinato de
si mesmo”. Na campanha para o referendo sobre a proibição ou não da
comercialização de armas de fogo e munição, realizado em 2005, a frente pelo
Sim, na qual o Viva Rio desempenhou papel importante, afirmou que os suicídios
também diminuiriam caso sua proposta fosse vencedora. Será? Talvez.

92
Dois outros revólveres calibre 38, um revólver calibre 22, uma pistola calibre 380, uma carabina
calibre 44 e cinco garruchas de calibres variáveis.
147

Em setembro de 2004, especialistas em suicídio reunidos em Genebra


estimaram que uma pessoa se mata ao redor do mundo a cada 40 segundos. Na
ocasião, José Bertolote, da Organização Mundial da Saúde, ligada à Organização
das Nações Unidas, estimou a morte voluntária como responsável por 1,5% do
custo total das doenças na sociedade93. E Lars Mehlum, presidente da Associação
Internacional de Prevenção ao Suicídio, disse que a restrição de acesso a armas de
fogo de fato pode reduzir o número de tentativas bem-sucedidas. “Armas de fogo
são o instrumento mais letal de suicídio”, declarou a Robert Evans, da agência de
notícias Reuters. “Pouca gente sobrevive a tentativas de se balear.”
O texto mais precioso do material publicado no dia 20 de agosto,
entretanto, era a íntegra de uma carta enviada por Lise Werneck de Menezes à
redação do Globo. Na falta de um bilhete de despedida de Morimoto, é a mãe das
crianças que verbaliza o drama real, não o conflito de idéias abstratas. Apesar de a
carta não ter sido escrita por uma suicida, encontramos nela ecos daquelas
analisadas por MacDonald e Murphy, especialmente na tentativa de influenciar a
percepção do suicida perante uma ampla audiência.

Neste momento de dor em que todos buscam uma resposta para


esta tragédia, gostaria de esclarecer o pouco do que pude
entender nos últimos tempos. Meu ex-marido Ruy era um pai
extremado, afetivamente falando. Aos nossos filhos
proporcionou grandes e imensas alegrias. Eles o adoravam. No
entanto, nunca teve a guarda dos filhos. Sempre como mãe
extremada e dedicada, eles estiveram sob minha supervisão
permanente. Ultimamente, Ruy dava claros sinais de
desequilíbrio, causando imensos transtornos para mim, meu
marido e sua própria família.

Talvez o falecimento de seu pai, Shigemi Morimoto, fundador


da Hobbylandia, há cerca de três meses, tenha piorado seu
estado. Infelizmente, sua confusão emocional tornou-se
insuportável a ponto de retirar sua própria vida e a de nossos
filhos. A minha dor e a de meus familiares é indescritível, mas
não deixo de acreditar na força divina. Peço a todos que os
conheceram que orem por suas almas. Que elevem seus
pensamentos para que meus dois anjos estejam no paraíso. Peço
também orações para a alma de Ruy. Muito obrigada. Lise
Werneck de Menezes. (p. 13).

93
É sintomático que o suicídio seja associado à doença, ou seja, a algo fora da ordem, da normali-
dade, alheio a uma natureza humana. Por vias transversas, essa separação remete à antiga culpabi-
lização do Diabo. Além disso, introduz a idéia do Absurdo, na acepção camusiana.
148

4.2.11
O famoso estilista no Arpoador

Afinal chegamos ao primeiro e único caso de suicídio cometido por carioca


(famoso) no Rio de Janeiro noticiado pelo Globo em 2004: o do estilista Amaury
Vencini Veras, de 53 anos, sócio da grife Frankie Amaury com o argentino
Francisco Mackey, de 50 anos. Mesmo este exemplo, entretanto, se revela, já num
primeiro olhar, não um caso de suicídio noticiado e sim um caso de suposto
suicídio noticiado. A relutância em admitir a morte voluntária, porém, teria, mais
adiante, a recompensa de antecipar uma das linhas de investigação da polícia,
linha que só ganhou corpo no ano seguinte: a de que Veras não teria se matado e
sim sido morto, sendo o seu enforcamento no apartamento que dividia com
Mackey na Rua Francisco Otaviano, no Arpoador, apenas uma encenação.
Em 3 de setembro de 2004, todavia, quando a notícia da morte de Veras
foi publicada com destaque, isto é, chamada na primeira página e quase uma
página inteira da editoria Rio (apenas um anúncio de tamanho médio impediu
isso), nada havia neste sentido, exceto a tradicional relutância da imprensa em
tratar do assunto e a protocolar imperícia da polícia fluminense. Ambas as
características conviviam nos principais título e subtítulo da página 17,
respectivamente: “Estilista é encontrado morto em seu apartamento” e “Corpo de
Amaury Veras, da grife Frankie Amaury, estava pendurado pelo pescoço. Polícia
registra o caso como suicídio”. Esta era exatamente a mesma linha crítica da
chamada na primeira página, de título “Estilista é achado morto em casa”: “Um
dos mais famosos estilistas do Rio, Amaury Vencini Veras, de 53 anos, da grife
Frankie Amaury, foi encontrado ontem morto, enforcado, em seu apartamento, no
Arpoador. A polícia registrou o caso como suicídio mesmo sem laudo
cadavérico.”
O lead e o sublead da cobertura feita por Célia Costa, Fernanda Pontes e
Gustavo Goulart mantinham o tom discreto, apesar de ressaltarem a importância
do morto para a cidade do Rio de Janeiro, tanto por seu trabalho quanto por ele
viver num prédio em que morava outra pessoa famosa, a modelo e apresentadora
de televisão Cynthia Howlett-Martin:
149

A moda carioca perdeu ontem um de seus mais destacados


representantes. O estilista Amaury Vencini Veras, de 53 anos,
da grife Frankie Amaury, foi encontrado morto em seu
apartamento, no Arpoador. Quem o encontrou foi seu sócio,
Francisco Mackey, conhecido como Frankie, de 50 anos, que
morava com Amaury no imóvel da Rua Francisco Otaviano. A
14ª DP (Leblon) registrou o caso como suicídio, mas vai
aguardar o resultado do exame cadavérico para a confirmação
oficial.

O corpo foi encontrado por volta das 9h. Segundo Frankie,


Amaury estava pendurado pelo pescoço por uma echarpe presa
à porta, de cerca de 2,5 metros de altura, da sacada de seu
quarto. Ao lado havia uma pequena escada. O sócio contou em
três depoimentos à polícia que pôs Amaury na cama para tentar
reanimá-lo. Depois, segundo ele, bateu à porta de uma vizinha,
a modelo e apresentadora Cyntia (sic) Howlett, que não estava,
e pediu ajuda a outra moradora. (COSTA, PONTES e
GOULART, 3/9/2004, p. 17).

O restante da reportagem se dividia em três aspectos da morte: os


procedimentos práticos da polícia, que descobrira um pequeno ferimento na testa
(atribuído a uma queda no momento em que o corpo foi levado para a cama) e
outro na nuca (causado pelo próprio enforcamento) de Veras; declarações de
amigos do estilista; e informações sobre o seu estado psicológico. Do ponto de
vista deste trabalho, são estas as mais importantes, porque falam das estratégias
psicológicas dos sobreviventes – aí incluídos os jornalistas – para superar o
choque de um suicídio, arranjando-lhe uma causa, mas jamais uma desculpa ou
uma explicação.
A matéria cita a médica ortomolecular Doris Israel, que confirmou na
delegacia estar tratando havia seis anos do falecido. Segundo ela, Veras sofria de
transtorno bipolar – outrora conhecida como psicose maníaco-depressiva. Além
disso, “ele descobriu recentemente que era diabético, que estava com a taxa de
açúcar no sangue um pouco alta” (ibidem). O psicoterapeuta Tito Gomes, amigo
do morto, confirmou: “Ele sempre foi uma pessoa muito alegre. Mas, na última
vez em que nos encontramos, percebi que estava triste” (ibid.). Imediatamente a
seguir, o texto cita que “fontes da polícia” apuraram que, “além de deprimido,
Amaury enfrentava problemas financeiros”. Tudo desmentido enfaticamente pela
declaração da assessora de imprensa da grife, Celina Penteado:
150

Não estamos nadando em dinheiro, mas ninguém lançaria a


coleção verão com um coquetel para a imprensa, como
aconteceu há uma semana, se estivesse em crise. Além disso,
estamos para inaugurar mais uma loja, em outubro, no Rio
Design Center, no Leblon. Amaury não estava em depressão,
trabalhou até tarde ontem (anteontem) e tinha planos para hoje
(ontem) e amanhã (hoje). (apud COSTA, PONTES e
GOULART, 3/9/2004, p. 17).

Completava a primeira reportagem do jornal dedicada à morte de Veras


um box, assinado por Carolina Isabel Novaes, que historiava a parceria Frankie
Amaury, cuja primeira loja fora aberta em 1981, no Fórum de Ipanema. Diziam
seu título e subtítulo, respectivamente: “Uma grife irreverente” e “Frankie
Amaury fez do couro a cara do Rio.” A página era ilustrada por quatro fotos em
preto-e-branco: uma de Veras, de arquivo, a maior; outra da echarpe presa à porta
de seu apartamento; uma terceira do corpo do estilista sendo levado do Arpoador
para Instituto Médico-Legal pelos bombeiros; e a última mostrando o bilhete
afixado na porta da loja pioneira, fechada em sinal de luto. Vinte dias depois, ela
estaria fechada definitivamente, bem como a filial do BarraShopping, por causa
das dívidas da dupla de estilistas com senhorios e funcionários.
No dia seguinte, um sábado, a cobertura do Globo do caso Veras ganhou
mais três matérias, duas na editoria Rio e uma no caderno de moda “Ela”. Na
página local, a 18, havia fotos coloridas da echarpe (que seria submetido a um
teste de resistência), de um cristal usado para meditação pelo estilista (“a polícia
pode utilizar luminol em busca de vestígios de sangue”, antecipava a legenda) e
Frankie Mackey despejando pétalas sobre a sepultura do sócio, no Cemitério da
Ordem Terceira do Carmo, no Caju. Não há, em todo o material, embora a
segunda retranca da página trate especificamente da cerimônia, nenhuma menção
a qualquer interdição de enterro em campo santo devido à natureza da morte.
O título da retranca principal, em seis medidas, assinada pelo repórter
Gustavo Goulart, insistia na dúvida: “Polícia fará nova perícia na casa de
estilista”. E o subtítulo reforçava o cada vez menos sutil tom de crítica à
corporação: “Objetivo é descobrir como Amaury, que segundo a polícia já tentara
o suicídio duas vezes, sofreu ferimento na cabeça”. Os três primeiros parágrafos
da matéria mantêm a tensão entre o suicídio e a suspeita de homicídio:
151

A Polícia Civil vai fazer nova perícia no apartamento do


estilista Amaury Veras, da grife Frankie Amaury, encontrado
morto por enforcamento em seu quarto, na manhã de
anteontem. O objetivo é tentar descobrir como o estilista se
feriu na cabeça. Um corte sobre o supercílio esquerdo levantou
a suspeita de que ele tenha sido golpeado antes de morrer. O
Instituto Médico-Legal (IML) confirmou, no entanto, que a
causa da morte de Amaury foi asfixia mecânica.

Segundo o chefe de Polícia Civil, Álvaro Lins, além do corte,


não há qualquer outro indício de que possa ter ocorrido crime e,
por isso, o caso continuará sendo tratado pela polícia como
suicídio, pelo menos até a conclusão da nova perícia.

– Não há qualquer outro indício de que Amaury tenha se


defendido ou sofrido agressão. Não há lesões nos braços,
vestígios sob as unhas. (GOULART, 4/9/2004, p. 18).

Seguem-se informações sobre as duas tentativas anteriores de suicídio no


mesmo ano de 2004, ambas utilizando gás de cozinha: na primeira, em fevereiro,
Veras foi salvo pela empregada, que o levou ao Hospital Pró-Cardíaco; na
segunda, mais recente, foi salvo por Mackey. Diante do quadro, a única voz a
admitir a hipótese de a morte não ter sido causada por suicídio era a do diretor do
Departamento de Polícia Técnica e Científica, Roger Ancilotti. Pela própria
natureza de seu trabalho, ele foi cauteloso: cogitou que Veras ainda poderia estar
vivo quando do socorro, explicou que a pessoa enforcada pode ter convulsões e se
machucar – mas aguardava o resultado dos exames para concluir algo.
A retranca dedicada ao sepultamento no Caju, escrita por Fernanda Pontes,
recolhe depoimentos de parentes a amigos sob um título respeitoso (“Cem pessoas
comparecem a enterro”) e um subtítulo idem (“Frankie Mackey presta
homenagem usando blazer e anel do amigo”). Este material tem chamada na
página dois. Completam a página 18 a caricatura sabática de Lan e um anúncio.
No mesmo dia, no caderno “Ela”, a editora de moda Heloísa Marra assina a
matéria que se estende, cheia de fotos coloridas dos bons tempos, pela primeira e
pela segunda páginas, sob o título geral “Querido Amaury”, descrito como
“artesão da carioca sensual”. Este material tem chamada na primeira página,
como, aliás, qualquer edição de qualquer suplemento diário ou semanal. Era uma
excepcionalidade absoluta o principal assunto do “Ela” estar ligado a um caso de
(suposto) suicídio.
152

Nos dias seguintes, O Globo não publicou novas matérias sobre o Caso
Veras. Apenas na edição de 9 de setembro apareceu um texto-legenda sobre a
missa de sétimo dia do estilista. Na foto publicada na página 23, viam-se amigos
de Veras, entre eles Frankie Mackey, durante a cerimônia na Igreja da
Ressurreição, no Arpoador. Mais uma vez, é curioso que, a despeito do suicídio,
ou, ao menos, da suspeita de suicídio, ao morto não tenham sido recusados nem
enterro cristão nem missa. Uma mudança de orientação ou, muito mais
provavelmente, um privilégio pelo status de Veras? Cabe lembrar que, em
Histoire du suicide, George Minois descreve minuciosamente a vista grossa para o
suicídio de nobres e de religiosos durante a Idade Média. Eles eram enterrados
com toda a pompa. No resto da página, o destaque ia para uma granada
encontrada na Fonte da Saudade. Completavam-na os anúncios de falecimentos e
vítimas, na seção Obituário.
A morte de Veras desapareceu das páginas do jornal – e dos jornais – até
maio de 2005. No dia 18, o “Jornal Nacional”, da Rede Globo, revelou o laudo do
IML, segundo o qual o ferimento na testa do estilista dificilmente teria sido
causado por uma queda: o corpo apresentava fratura na base do crânio e edema
cerebral. Na sua edição do dia seguinte, O Globo noticiou as novidades no caso:
“Segundo médicos legistas, Amaury, ainda com vida, sofreu violenta pancada na
cabeça e ingeriu uma quantidade excessiva de tranqüilizantes” (p. 21). O texto
não-assinado reproduzia a declaração de um dos médicos, não-identificado: “Não
há dúvida de que o ferimento na testa, que atingiu o encéfalo, seria suficiente para
deixar qualquer pessoa atordoada, praticamente impossibilitando que ela tivesse
força para se suicidar” (ibidem). As novas informações, dizia-se, levariam a
polícia a marcar uma reconstituição da morte, com a participação de Frankie
Mackey – o que efetivamente viria a ocorrer em junho.
A partir dali, fatos novos vieram a aumentar as dúvidas sobre a ocorrência
de um suicídio, lançando suspeitas sobre a versão do sócio de Veras. Além do
laudo do IML, revelou-se, na edição de 20 de maio, que Mackey continuava
morando no apartamento da Francisco Otaviano, mas enfrentava uma ação de
despejo por atraso de R$ 100 mil no aluguel e tinha tido luz, gás e telefone
cortados por falta de pagamento. Ele se mudaria do imóvel no dia 23 de junho. A
investigação sobre a morte do estilista prossegue quando do fechamento desta
dissertação.
153

Todo o episódio leva a uma reflexão curiosa. Se, num primeiro momento,
por alguma razão, tivesse-se optado por ocultar do leitor o suicídio de Amaury
Veras, o que haveria para noticiar a partir do momento em que a polícia
contemplasse cada vez mais fortemente a hipótese do homicídio? “Olha, aquilo
que a gente não disse que era não é aquilo mesmo não?!”, ironiza Rodolfo
Fernandes, diretor de redação do Globo. “A desgraça da mentira é que, ao contar a
primeira, você passa a vida inteira contando mentira para justificar a primeira que
contou”, declarou o presidente Luiz Inácio Lula Silva em entrevista, a propósito
do escândalo político envolvendo o PT e o repasse de dinheiro de caixa dois a
partidos aliados. O mesmo é verdade se se trocar “mentira” por “omissão”.

4.3
Convicções pessoais e ‘sínteses totalizantes’

No tratamento que O Globo dá ao tema do suicídio, não entram, como em


tantos outros assuntos, as convicções pessoais de cada jornalista da redação ou
nem mesmo de cada membro da sua chefia. Elas tendem a se fundir e de certa
forma se anular numa outra convicção, ou melhor, na percepção do que seria a
convicção do jornal. Esta percepção, por sua vez, é fortemente influenciada pelo
perfil da parcela maior dos leitores, tal como percebido por intermédio de
pesquisas qualitativas diárias. Nem mesmo a família Marinho estabelece a linha
isoladamente. Ela surge no embate diário entre o jornal e o leitor, como, nas
palavras de Voyenne, um pedaço do social que volta ao social. Por exemplo, os
donos do Globo acreditam que a única forma de combate eficiente ao tráfico de
drogas seria a legalização de todas elas. As pesquisas, porém, indicam que tal
posição causaria escândalo entre os leitores. A posição do Globo, então, é
favorável à descriminação da posse de maconha, postura intermediária externada
sem maior alarde.
Nos três jornalistas da chefia entrevistados especialmente para esta
pesquisa, há três convicções pessoais distintas sobre a morte voluntária que se
articulam dentro da própria cultural organizacional numa linha única de trabalho
diário. Dois deles, Luiz Garcia e Rodolfo Fernandes, declaram-se distanciados de
qualquer religião, embora não usem a palavra “ateu”. Agostinho Vieira é o único
manifestamente religioso:
154

Sou católico e acredito em Deus, apesar de não praticar nem um


pouco. Sou contra o suicídio como solução para qualquer coisa.
Mas entendo o grau de solidão e desespero que uma pessoa que
toma essa decisão deve enfrentar. Tenho dúvidas sobre a
eutanásia, que é uma espécie de suicídio com acompanhante.
Em alguns casos de doença terminais é difícil chamar aquilo de
vida. (AGOSTINHO, 2005).

Luiz Garcia, pragmático, não se distancia muito disso:

Acho que o suicídio não é uma decisão racional. É sempre uma


decisão provocada por um distúrbio emocional muito forte. Eu
não vejo nenhuma qualidade que redima o suicídio. Também
não vejo nenhuma que o execre, mas não há nobreza no
suicídio. Não há aqui nada parecido com a cultura japonesa.
(GARCIA, 2005).

A partir do suicídio de um primo-irmão, a associação entre suicídio e


desespero surge também entre as convicções pessoais de Rodolfo Fernandes:

Tem um caráter de desespero. Mas não chega a ser mais


traumático que um acidente de automóvel, a morte numa
tragédia. Como não tenho fundadas raízes religiosas, não me
considero católico, não pratico, não tenho ligação, não vejo isso
como tabu. Vejo mais pelo lado psicológico, do desespero do
gesto. Minha aproximação do assunto é puramente pessoal. E,
no caso de publicar, as convicções que tenho em relação a isso
são só as básicas de edição de jornal: entre 100 assuntos por
dia, por que publicar este assunto e não outro? (FERNANDES,
2005).

A necessidade de escolher um assunto em detrimento de outro, dada a


realidade física de que o espaço editorial é inelástico e o papel de jornal custa
caro, freqüentemente atrai críticas a este trabalho de seleção. Segundo elas, ora os
critérios seriam categorias inventadas pelos próprios jornalistas, ora seriam
categorias impostas a eles pelos seus patrões capitalistas.
Pode-se aceitar que os assuntos selecionados pela imprensa determinem a
agenda temática (agenda-setting) da sociedade, os assuntos que ela irá discutir,
independentemente da relevância deles ou não, mesmo porque “relevância” pode
ser um conceito assaz relativo. Coisa bem diversa, porém, é considerar um jornal,
ou a imprensa em geral, como um estrutura homogênea, desprovida de sutilezas e
campos de força interna, totalmente resguardadas de influências pessoais ou
155

sociais. Arlindo Machado critica este tipo de abordagem, que chama de “sínteses
totalizantes”:

Muitos discursos sobre as mídias parecem mais próximos da


ficção científica do que da análise objetiva. Eles imaginam uma
trama maquiavélica, na qual age o vilão, uma espécie de Big
Brother, que tudo controla graças à sua onividência, onisciência
e onipresença, ao mesmo tempo que domina os milhares de
escravos mudos e submissos colocados a seu serviço em todo o
mundo e determina o que a humanidade ao seu redor deve
pensar e fazer. Para o analista, bom seria se tudo fosse tão
simples assim.

As mídias são encaradas, nessa abordagem, como estáticas e


monolíticas, expressões cristalinas da vontade daqueles que as
forjam, impermeáveis ao tempo e contexto, sem conflitos
internos ou pressões externas, sem perspectivas de perfuração e
contágio. (MACHADO, 2004, p. 49-50).

A abordagem de Ortiz do que chama de “esquema geradores” do discurso é


sutilmente distinta. Comentando os estudos de Bordieu da ideologia das classes
dominantes francesas e relacionando-os à atual literatura da administração global,
ele lembra que, se às vezes discursos de grupos diferenciados e talvez conflitantes
parecem dizer a mesma coisa, isso se dá porque “as categorias de classificação do
pensamento são idênticas, e antecedem a própria ideologia, elas permitem
entender como, em situações variadas, a mesma ‘forma de pensar’ se impõe”
(ORTIZ, 1994, p. 162). Neste caso, pondera, a estratégia do discurso
mundializado é que nos leva a pensar o poder como descentralizado, parcial,
flexível, local.
Retornando especificamente ao discurso da imprensa em torno do suicídio
(mais do que sobre o suicídio), no meu entender, ela não se inventou como o
ponto focal da idéia de transmissão do suicídio na sociedade; ela mesma foi
contagiada pela idéia de contágio, que, como vimos, lhe é externa e anterior. A
rigor, por sua própria função, qual seja a de fazer circular fatos e conceitos pelos
seus concidadãos/consumidores, ela em tese poderia ser responsabilizada por
virtualmente todas as idéias que pegam/não pegam na sociedade. Tanto, apenas
por exemplo, aliás, apenas por ser o meu exemplo, a de que o suicídio pode ser
transmitido como uma doença – e, portanto, deve ser tratado com os cuidados
156

devidos a uma doença altamente contagiosa – quanto a contrapartida de que o


homem deve preservar sua saúde e seu meio ambiente. No caso da morte
voluntária, isolar o comportamento reticente da imprensa sob a lupa, no
laboratório, implicaria ignorar toda a história da Humanidade e as práticas e
rituais que os homens adotaram, com o passar dos milênios, para lidar com os que
se decidiram por não mais ser.
5
Conclusão

Os versos de Chico Buarque que servem de epígrafe para esta pesquisa


remetem ao linguajar dos jornais. Frases como “agonizou no meio do passeio
público” ou “morreu na contramão atrapalhando o tráfego” parecem extraídas de
uma notícia real. Perguntei por e-mail ao compositor se, na sua cabeça, a história
do operário de “Construção” era uma queda ou um pulo. “É deliberadamente
ambíguo”, Chico respondeu. A despedida algo cerimoniosa da mulher, a
ebriedade dos últimos momentos, o corpo estatelado no chão, todas estas imagens
compõem este quadro de ambigüidade deliberada. Na imprensa brasileira, a
tensão notícia espetacular X temor de contaminação é quase a regra quando o
assunto é suicídio.
Esta tensão e os efeitos colaterais – o vazio, a sombra, a ausência de
explicação, a omissão, a evasiva, o eufemismo – que a seu modo negam um
túmulo ao morto chamam a atenção exatamente porque se chocam com uma das
condições sine qua non do jornalismo: a clareza. Benjamin, ao analisar a obra de
Nikolai Leskov em O narrador [1936], é bem claro quanto a isso ao contrapor a
secura racionalista da informação (e do romance, posto que para ele ambos
nascem da mesma procura burguesa pelo sentido, real ou ficcional) às antigas e
exuberantes formas narrativas advindas da experiência coletiva. Ele lembra uma
definição de notícia feita pelo fundador do Figaro, Villemessant (“Para meus
leitores, o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma
revolução em Madri”), para mostrar como, na imprensa, o longe (seja espacial
seja temporal) perde para o próximo como fonte da sabedoria porque não é
passível de comprovação.

A informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais


nada, ela precisa ser compreensível “em si e para si”. Muitas
vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto
esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso, é
indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é
158

incompatível com o espírito da narrativa. (BENJAMIN, 1996,


p. 203).

O suicídio pode, sim, ser uma notícia espetacular, naquilo que uma notícia
tem de igualmente essencial: o inesperado, a ruptura de uma “ordem natural” das
coisas. Neste sentido, enquadra-se na leitura que Roland Barthes fez dos fait
divers (fato diverso, isto é, desastres, acidentes, mortes etc.). Para o semiólogo
francês, eles seriam a parcela do noticiário que escapa à politização94: são eventos
que, ao menos na aparência, se fecham “em si e para si”, se esgotam em seus
próprios enunciados, não têm contexto exterior – são uma informação calada. O
interesse por eles surge da lógica relacional de seus termos: “Estilista é
encontrado morto em seu apartamento” atrai a atenção do leitor pelos termos
inesperados. No processo, o fait divers se reaproxima do romance, qual os relatos
sobre suicídios publicados nos jornais ingleses do século XVIII. Carlos Henrique
de Escobar ao analisar as relações entre comunicação e fait divers a partir de
Barthes propõe, no caso das notícias policiais, uma reflexão válida também para o
suicídio:

Outro tipo de fait divers dentro deste plano de


“inexplicabilidade” é aquele que expressa o crime misterioso.
Este fait divers é fecundo pela sua riqueza e pelo poder de
implicação simbólica que tem com a cultura. Ele tem níveis e às
vezes desprende implicações filosóficas especiais no entender
do homem, da morte, da sua procura intensa de uma causa. (...)
O próprio Barthes (que) enfatiza esta suspeita de que “se os
acontecimentos se repetem é porque eles querem significar”, de
certa forma assopra no interior de todas as crenças, o que nos
leva a sentir a importância dessa espécie de fait divers, e isso
não apenas no interior contemporâneo do sistema de imprensa,
mas no fait divers de todos os tempos. (s/d; p. 115-117).

Da outra ponta do cabo-de-guerra, o discreto tratamento do tema suicídio


pela imprensa mal esconde o temor disseminado de que noticiar um possa
conduzir a outro. Daí a necessidade de fazer cada caso aparentar ser único,
isolado, fechado, fruto amargo de uma perturbação pessoal. Transplantar a morte
voluntária da categoria dos fait divers (Amaury Veras, por exemplo) para a das

94
Tal definição remete à que Barthes faz dos mitos: “O mito é uma fábula despolitizada” (Mitolo-
gias; p. 163). No entanto, é uma fala despolitizada que pode ser falada politicamente.
159

informações políticas (Getúlio Vargas) implica promovê-la à categoria dos


enunciados que não se esgotam em si e que se relacionam com o resto da vida,
numa grande narrativa.
Mesmo aqueles que, na nossa sociedade, estão destacados para batalhar na
linha de frente contra a morte, os médicos, não têm com ela uma relação fácil só
porque a testemunham todos os dias. A morte de cada paciente é sentida pela
classe como um atestado de fracasso profissional, pois os seus conhecimentos e
esforços não foram suficientes para manter o paciente vivo – mas não só isso. Nas
palavras de Sérgio Zaidhaft em Morte e formação médica, “a necessidade é a de
triunfar sobre a morte, de negar sua própria mortalidade. Esta crença em sua
imortalidade é que é abalada a cada morte de paciente” (1990, p. 21). Cabe aos
psiquiatras, aliás, prevenir o suicídio e identificar os componentes suicidas em
pacientes, mesmo os politraumatizados e os terminais. É como se a ciência médica
acreditasse, como a religião, que cada morte tem a sua hora.
Se uma morte natural ou acidental já causa um desconforto nos
circunstantes, estejam eles profissionalmente preparados ou não (Zaidhaft discute
longamente o mecanismo psicológico de distanciamento e defesa que faz o
médico negar-se a própria vida a fim de negar-se também a própria morte), uma
morte voluntária é ainda pior. Defensor radical da racionalidade do ato suicida, o
filósofo argentino Julio Cabrera lembra as “três entidades burocráticas” que
oficialmente sabem da vida e da morte na nossa sociedade: a Igreja, a Justiça e a
Medicina. Como vimos, as duas primeiras condenam o suicídio como ofensa a
Deus e como crime contra si próprio. Para Cabrera, a terceira reproduz em seu
jargão a mesma idéia de que a vida e a morte não fazem parte do patrimônio de
cada pessoa, mas da sociedade.

Os médicos costumam dizer de alguém que se suicida que ele


estava “fora de si mesmo”, ou que “não era ele mesmo” quando
fez aquilo, que se “tivesse se recuperado” não teria chegado a
tal ato. Nessa formulação, nega-se ao suicida a possibilidade
dele ser “dono” da sua morte, sujeito dela. (...) O suicida desafia
essas supervisões institucionalizadas da vida, e cai na dupla
condenação de “doente” e “subversivo”. (CABRERA, 1990, p.
41).

A imprensa, como tomadora de linguagens emprestadas, retransmite a


desqualificação da morte voluntária como ímpia, ilegítima ou doentia para outros
160

setores da sociedade. Vem daí o mal-estar que cerca o tema. Ele se mostra, por
exemplo, quando Jean-Claude Bernardet vai assistir a um filme de Abbas
Kiarostami e escreve, a propósito das táticas de envolvimento do cineasta
iraniano: “Se eu tivesse entrado no cinema sabendo de antemão que o projeto do
senhor Badii era o suicídio, não teria alcançado uma relação tão intensa e
perturbadora com O gosto de cereja” (BERNARDET, 2004, p. 54). Por quê?
Porque a bem-sucedida humanização do personagem estabelece entre ele e o
espectador uma sólida identificação secundária, para além de qualquer pré-
conceito em relação ao seu gesto.
O que incomoda em Kiarostami é o seu realismo. Não o “realismo reflexo”
de que fala Ortiz em A moderna tradição brasileira, aquele que “reforça as
demandas subjacentes às exigências do espectador” pois “‘cola’ à realidade já
preexistente. É a falta de distância que lhe retira o caráter reflexivo” (2001, p.
173). Este é o realismo da indústria cultural e do jornal, o que “procura consagrar
uma única versão da realidade, eliminando qualquer tipo de reflexão sobre ela”
(idem). Já o realismo de Kiarostami – e o de Eisenstein, mencionado por Ortiz a
partir de Bazin – é como o do chamado neo-realismo italiano, cujos filmes:

Propunham uma leitura social que necessariamente implicava o


distanciamento do espectador em relação à sua posição atual. O
real mostrado na tela deslocava a atenção do público,
colocando-o na situação incômoda de ter ou não que tomar
partido (e não simplesmente gostar ou desgostar) sobre o que
lhe era proposto. (ORTIZ, 2001, p. 73).

Dentro de cada um dos textos sobre casos de suicídio que consegue atingir
as páginas esta mesma tensão entre a espetaculosidade (sua atração para o
jornalista-leitor) e a subversão existencial da notícia (sua repulsa) é mantida. Eles
são mantidos longe da reflexão, fechados “em si e para si”, numa situação
cômoda. São inúmeros os recursos para desviar o assunto, dentro da estratégia do
fait divers: aqui, o homem-bomba que mal é mencionado; ali, o pai que
colecionava armas; acolá, a suspeita persistente que a morte do estilista foi por
homicídio (pouco importa, aqui, se esta hipótese afinal vier a ser comprovada).
Sendo tributária da imprensa americana, inclusive na adoção da técnica do
lead, virtualmente inexistente na Europa, não é surpreendente que nos EUA se
verifique mais ou menos a mesma queda pela ambigüidade, conforme foi visto no
161

relato de Tad Friend sobre as pessoas que saltaram da Golden Gate. Parece lógico,
não? Se noticiar suicídios os multiplica, calar sobre eles é uma forma de reduzi-
los. Será? Num artigo publicado no site Poynteronline (cujo slogan é “tudo o que
você precisa saber para ser um jornalista melhor”), a radialista americana Cindi E.
Deutschman-Ruiz, conquanto recaia em alguns clichês, discorda disso. Ela chama
a atenção para a impressionante estatística de que 30 mil pessoas se matam
anualmente nos EUA e que outras 500 mil dão entrada em salas de emergência
depois de uma tentativa de suicídio95.

A mídia reflete essas realidades? Geralmente não. Em vez


disso, a cobertura tende a se deter numa erupção de suicídios
numa universidade; num estudo que encontra evidência de
tendências familiares em relação ao suicídio; ou em
proeminentes e bem-sucedidos doutores, atores, escritores e
empresários que se matam.

E em alguns casos, nós criamos regras escritas ou não-escritas


para não cobrirmos suicídios por causa do medo de inspirar
imitadores. Suicídios por imitação são um problema real, mas
especialistas em suicídio geralmente concordam que não se
trata de questionar se a mídia deve cobrir suicídios, mas como o
fazemos.

Estimando-se pelo noticiário, seria fácil concluir que o suicídio


é raro, e não um problema de saúde pública disseminado e
atual. Como jornalistas, nós adoramos nos criticar por
supercobrir o homicídio. Por que não encaramos nossa
subcobertura do suicídio? (DEUTSCHMAN-RUIZ, 2003).96

O ponto central da argumentação que Cindi desenvolve a seguir, porém, é


o de que o suicídio deve ser enquadrado dentro do contexto de um problema de

95
Estes dados não devem ser nem menosprezados nem superestimados. Embora em números abso-
lutos os EUA ocupem o quarto lugar no ranking mundial de suicídios (atrás de China, Índia e Rús-
sia), eles caem para 38º lugar quando se considera a taxa por 100 mil habitantes. Segundo esta, os
países com mais suicidas são, pela ordem, Lituânia (com 42 por 100 mil), Estônia, Rússia, Letônia,
Hungria, Sri Lanka, Kazaquistão, Bielo-Rússia, Eslovênia e Finlândia. Os números são da Organi-
zação Mundial de Saúde.
96
Does media coverage reflect these realities? Generally not. Instead, coverage tends to focus on a
rash of suicides at a university; a study that finds evidence of family tendencies toward suicide; or
the proeminent, sucessful doctors, actors, writers, ou business people who kill themselves. And in
some cases, we create written or unwritten rules not to cover suicide out of fear of inspiring copy-
cats. Copycat suicides are a real problem, but suicide experts generally agree that it’s not a ques-
tion of whether media should cover suicide, but how we do so. Gauging from the news, it would
be easy to conclude that suicide is rare, rather than a widespread and ongoing public health prob-
lem. As journalists, we’re fond of criticizing ourselves for over-covering homicide. Why do we
fail to address our under-coverage of suicide?
162

saúde mental – falácia que já desmentida por Durkheim mais de um século antes.
Seja como for, ela não se furta a criar as próprias regras de como cobrir suicídios.
A primeira regra, “o suicídio nunca é o resultado de um único incidente”,
busca aprofundar a compreensão do ato, normalmente associado a uma grave
depressão – o que condiz com o que escreveu o jornalista Ian Thomson, biógrafo
de Primo Levi. A segunda, “detalhes do método ou da locação usada pelo suicida
podem levar a suicídios por imitação”, sugere que o repórter seja cautelosamente
genérico – o que está em acordo com os procedimentos prescritos no Manual de
redação e estilo do Globo. A terceira, “é vital usar estatísticas e informação sobre
saúde mental muito cuidadosamente “, visa a não-associação automática entre o
suicídio e uma patologia – o que objetiva as preocupações da própria Cindi. A
quarta, “a cobertura de suicídio é uma oportunidade de fornecer ao público
informações e recursos que podem salvar vidas”, fortalece a mídia prestadora de
serviços – o que ecoa a experiência de Otavio Frias Filho no CVV.
Como é altamente improvável que Cindi, Thomson, Luiz Garcia e Frias
Filho tenham algum dia se encontrado (e nem mesmo lido uns aos outros) para
deliberar e chegar basicamente às mesmas conclusões quanto ao melhor modo de
abordar o tema, é razoável supor que suas opiniões e ações reflitam, se não o
“bom senso” mencionado por Rodolfo Fernandes, um senso comum. Ou, para
usar as palavras de Alexis de Tocqueville sobre os americanos, uma religião
“menos como doutrina revelada do que como opinião comum”.
Todavia, esta opinião não pode ser entendida como comum apenas aos
profissionais das redações, posto que isto transformaria a comunicação num
circuito fechado e de mão única. Este senso deve ser comum entre estes jornalistas
(e seus colegas) e os leitores (das sociedades cristãs ocidentais a quem os
primeiros se dirigem e dos quais saem os próprios jornalistas). Uns não existem,
ou, como quer Alsina, não sabem sem os outros. Conferir à imprensa o poder
absoluto sobre o processo de comunicação é ignorar as complexas redes de poder
e contrapoder dentro de cada sociedade. Por conta tanto de pesquisas qualitativas
diárias quanto da facilidade de interação imediata com os jornais pelo correio
eletrônico, ou ainda da feroz competição entre empresas que sobrevivem do gosto
do leitor, nunca as redações ficaram tão expostas e sensíveis ao mundo fora delas
quanto hoje.
163

Philip J. Stone coloca cristalinamente a questão da interação entre a


linguagem individual (e, poderíamos acrescentar, crença individual) e o ambiente
social que a molda quando escreve sobre o pressuposto fundamental da inferência,
entendida por ele como a raison d’être da análise de conteúdo:

As palavras não apenas refletem a “significação do que


imaginamos como sua natureza” mas “também contêm a
significação da natureza, disposição e interesse daquele que
fala”. A “disposição e interesse” de quem fala refletem em parte
as pressões da situação social geral, que podem condicionar o
tópico em discussão e engendrar a necessidade de atingir um
efeito determinado sobre os demais. A “natureza de quem fala”
inclui características de personalidade e estilos de expressão,
derivados em parte da experiência passada do indivíduo na
família, vizinhança, escola e trabalho. (STONE, in: COHN:
1978, p. 318).97

Portanto, a partir do exposto acima, é ainda mais razoável supor que o


procedimento recalcado da imprensa frente ao suicídio reflita o mal-estar de toda
a nossa sociedade diante da morte voluntária. Porque, mais do que os próprios
jornalistas, os suicídios levantam questões demais. Questões perturbadoras
demais, como aquela proposta por Camus. “Julgar se a vida merece ou não ser
vivida”, contudo, não é tão-somente “responder a uma questão fundamental da
filosofia”. É ter de admitir que, para um número considerável e crescente de
pessoas, a resposta é não. E ainda ter de aprender a conviver com isso. Daí a
milenar satanização ou criminalização da figura do suicida, daí o wishful thinking
de que apenas uma pessoa sem a posse da sua saúde mental pode cogitar tirar a
própria vida.
Não é bem assim. Nem mesmo a depressão profunda é uma explicação
universal e mecânica para todo suicídio, até porque uma pessoa em depressão
profunda não tem ânimo ou forças nem para se matar. Outra maneira de recolocar

97
Refere-se a Hobbes, no Leviatã, que usa como epígrafe de seu artigo: “Quando imaginamos as
mesmas coisas de maneira diferente, muito dificilmente deixamos de nomeá-las de modo diverso.
Apesar de ser a mesma a natureza do que imaginamos, a diversidade de nossa percepção do objeto,
devido a diferentes constituições do corpo e devido a preconceitos de opinião, confere a cada coisa
o cunho de nossas diversas paixões. E, por esse motivo, um homem deve ter cautela com as pala-
vras quando raciocina; isto porque, além da significação do que imaginamos como sua natureza, as
palavras também contêm a significação da natureza, disposição e interesse daquele que fala”.
164

o “duplo aspecto” da loucura e da doença mental é feita por Maurice Halbwacs,


sobrinho de Durkheim, em Les causes du suicide [1930]:

São perturbações orgânicas tratadas pela psiquiatria. Mas, ao


mesmo tempo, toda doença mental é um homem que não está
mais adaptado ao seu meio. Uma doença mental é um elemento
de desequilíbrio social. (...) É um fato social que deve ser
explicado por causas sociais. (HALBWACS, 2002, p. 382-
383).98

Nisso, ele está de plano acordo com o tio, cuja uso da análise estatística
para provar suas teorias foi considerado notável. Como frisa Matilda White Riley,
o interesse de Durkheim pelos aspectos sociais do suicídio – e não pelas razões
individuais pelas quais alguém comete e outro alguém não comete suicídio – é
consistente com sua visão de sociólogo, não de psicólogo – ao mesmo tempo em
que não subestima o indíviduo em seu papel na sociedade. Porque é o
desequilíbrio social que se manifesta de modo estatístico: “O suicídio anômico
tende a crescer conforme as normas do grupo e os controles sociais entram em
colapso e o suicídio egoísta tende a crescer conforme as normas prescrevam um
excessivo afastamento do indivíduo do grupo” (RILEY, 1963, p. 413).
A presente tentativa de se tentar entender como jornalistas fazem para lidar
com a idéia do suicídio – alheio – como fato social, em seu dia-a-dia, nasceu da
dúvida que, variadas vezes, acometeu-me dentro das redações do Jornal do Brasil
e do Globo: qual a razão para sermos tão lacônicos sobre as mortes voluntárias,
para sepultá-las sob eufemismos como “as causas da morte não foram divulgadas”
ou “acidente com arma de fogo”? Isso é mera invenção nossa ou reflete, como nós
temos a pretensão de que as páginas reflitam, algo que nos suplanta?
Ao cabo da pesquisa, entendi que o silêncio era menor do que eu supunha
e, mais até que ele, me incomodava o tom das palavras, a desqualificação do
suicida como fanático religioso, criminoso ou louco. Tudo isso, como escreveu
José Carlos Rodrigues, “não se explica apenas porque o suicídio seja um desafio
ao poder, mas também porque todo verdadeiro desafio ao poder seja de natureza
suicidária (p. 282)” Admito que, volta e meia, minhas palavras em relação àqueles

98
Ce sont des troubles organiques qui relèvent de la psychiatrie. Mais, em même temps, tout ma-
lade mental est un homme qui n’est plus adapté à son milieu. Une maladie mentale est um élément
de déséquilibre social. (...) C’est um fait social, qui doit s’expliquer par des causes sociales.
165

que se mataram, recusando-se a lhes pespegar os estigmas tradicionais, possam ter


soado como apologia ao suicídio. Em absoluto. Isso seria tão inútil quanto fazer a
apologia da vida. O que me parece necessário é encará-los, ambos, de frente.
Recorro aqui, uma última vez, a Rodrigues, quando diz que as mortes voluntárias:

São um imenso clamor pelo direito à felicidade, uma


demonstração, por um gesto irrecusável, de que a vida tal como
é não merece mais que a ela se esteja ligado. São uma
escandalosa afirmação do direito à liberdade e à dignidade,
afirmação que o opróbrio lançado contra o suicida e seus
próximos tenta anular. (...) Além de dramas pessoais, estes
dados podem nos permitir supor que, embora de modo
desorganizado e privado, muitos transgrediram o tabu da morte
em busca da liberdade. (RODRIGUES, 1983, p. 282).
Referências Bibliográficas

Livros:

ALLEN, Woody. Woody Allen on Woody Allen: in conversation with Stig


Björkman. Nova York: Grove Press, 1993.

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Entrevistas ao autor:

FERNANDES, R. Realizada 16 de novembro de 2005.

GARCIA, L. Realizada 16 de novembro de 2005.

GOIS, A. Realizada em 16 de novembro de 2005.

VIEIRA, A. Realizada em 2 de dezembro de 2005.


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