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Suicídio Artigo PDF
Suicídio Artigo PDF
Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro
Março de 2006
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Arthur Henrique Motta Dapieve
Ficha Catalográfica
172 f. ; 30 cm
CDD: 302.23
Agradecimentos
Palavras-chave
Jornalismo; suicídio; discurso; egoísmo; altruísmo; anomia.
Abstract
Suicide by contagion: the way in which the press talks about voluntary
death. Coming from the professional experience as journalist, the work relates
Durkheim’s theory with the kind of treatment given by the contemporary press to
the people who kill themselves. The features about the subject published in O
Globo newspaper in 2004 has been re-read, bearing in mind the concepts of
egoism, altruism and anomy. It has been tried to establish as well how the
language used relates itself with the social behaviours that are previous and
external to the creation of the own texts.
Keywords
Journalism; suicide; discourse; egoism; altruism; anomy.
Sumário
Apresentação 9
Dois episódios 9
1 . Introdução 12
1.1. O não-lugar do suicídio 15
1.2. Observação participante 17
1.3. O que diz o jornal? 18
2 . Suicídio e sociedade 21
2.1. O suicídio do tipo egoísta 23
2.2. O suicídio do tipo altruísta 26
2.3. O suicídio do tipo anômico 30
2.4. Anomia e pós-modernidade 33
2.5. A reabilitação da comunidade 36
2.6. Dois casos clássicos: Pavese e Levi 41
2.7. O único problema filosófico sério 45
3 . Suicídio e imprensa 50
3.1. A Golden Gate 53
3.2. Gutenberg quebra o monopólio dos monges copistas 56
3.3. As visões gregas e romanas sobre o suicídio 60
3.4. Repetição, doença, contágio, ideologia 65
3.5. Hamlet, o inventor do sujeito e da psicanálise 69
3.6. ‘Bills of mortality’: a listagem de mortos na imprensa 75
3.7. Os casos de Fanny Braddock e do casal Smith 83
3.8. O papel didático das cartas dos suicidas 88
3.9. As cartas brasileiras e as dos resistentes franceses 92
5 . Conclusão 157
– Chico Buarque
(Construção, 1971)
Apresentação
Dois episódios
1
Em Literatura i periodisme (1993), o professor catalão Lluís-Albert Chillón assim descreve a
tática gonzo: “Em vez de obter a informação desde uma prudente distância profissional, Thompson
se inseria nas situações que tratava, até o ponto de se fazer co-participante. O fato de vivê-las dire-
tamente lhe permitia compreendê-las como não poderia fazer um repórter convencional” (p. 129).
10
2
No More Games. No More Bombs. No More Walking. No More Fun. No More Swimming. 67.
That is 17 years past 50. 17 more than I needed or wanted. Boring. I am always bitchy. No Fun –
for anybody. 67. You are getting Greedy. Act your old age. Relax – This won’t hurt.
1
Introdução
3
Posteriormente, a expressão “efeito Werther” passou a ser usada sempre que um suicídio – sobre-
tudo o de artistas – serve de inspiração para que outras pessoas se matem.
14
4
Tal suspeita é enfraquecida pela inépcia da suposta execução (Barthes morreu apenas a 26 de
março, depois de um mês de agonia no Hospital Pitié-Salpêtrière) e pelo estado de ânimo daquele
que é considerado seu último texto, por ter sido encontrado em processo de revisão datilográfica,
na sua máquina de escrever, na data do atropelamento: “Malogramos sempre ao falar do que ama-
mos” (nele, Barthes trata da transcendência da arte e da esperança a partir de Stendhal).
5
Cf. p. 16.
15
1.1
O não-lugar do suicídio
6
Je ne suis pas médecin, ni psychiatre, ni psychanalyste; je ne suis pais moraliste, no philosophe,
ni théologien; je ne suis pas ethnologue, ni psychologue et si peu sociologue. Je remplis donc les
conditions nécessaires, sinon suffisantes, pour étudier les suicides.
16
mort volontaire, lembra que parte dela se deve a falhas documentais. “As fontes
que concernem às mortes voluntárias são diferentes daquelas que relatam as
mortes naturais. Os famosos registros paroquianos de falecimentos não são aqui
de nenhuma ajuda, porque os suicidas não tinham direito à inumação religiosa”
(MINOIS, 1995, p. 9). Minois assinala, portanto, que os historiadores devem se
dirigir a fontes heteróclitas (memórias, crônicas, jornais, literaturas) e a arquivos
judiciais, pois a morte voluntária quase sempre foi considerada crime. Logo,
também o Direito, canônico ou laico, produziu discursos condenatórios do
suicídio.
Dentro deste espírito – e também como jornalista – irei trabalhar a
primeira das três partes desta dissertação. Lançarei mão de textos produzidos no
âmbito da Sociologia, da História, da Filosofia, da Psicologia, da Antropologia e
até da Literatura, na tentativa de estabelecer elos entre o fato concreto do suicídio
e a idéia generalizada de que ele é, num sentido bem específico, não biológico,
contagioso dentro das sociedades.
No processo, um pouco como Barthes empregou o Werther, utilizarei O
suicídio – Estudo de sociologia [1897] de Émile Durkheim, como “leitura
regular”, em relação às quais se posicionam por alinhamento, divergência ou
oposição as outras. Seu livro é uma referência constante quando se estuda o
suicídio, naturalmente não por ser o primeiro. Sua própria bibliografia o
comprova: está coalhada de livros de médicos e psicólogos sobre a morte
voluntária. Durkheim, porém, propõe uma mudança drástica na abordagem do
fenômeno: não mais vê-lo como a expressão individual de uma doença ou de uma
loucura, e sim como a expressão individual de um fenômeno coletivo. Pensando
desta forma, em seu trabalho, Durkheim isolou para análise uma tipologia do
suicídio ainda válida. Além disso, ele aceitava a idéia de contágio dentro das
sociedades e admitia que, mais do que o mero boca-a-boca, a imprensa poderia
desempenhar um papel potencializador na transmissão se não do suicídio, da sua
sugestão.
17
1.2
Observação participante
1.3
O que diz o jornal?
7
First, their unit of of analysis was not the individual reporter or editor (...), rather, they examined
news organizations as complex institutions. Second, although framed in “neutral” academic lan-
guage, the studies were implicity political. Their authors sought to understand how news came to
support official interpretations of controversial events. Third, sometimes implicity but often ex-
plicity, these studies raised a key epistemological issue: how do news organizations come to
“know” what they “know”.
19
8
“Media contents – The interdisciplinary study of news as discourse”. In: JENSEN, JANKOWS-
KI. A handbook of qualitative methodology for mass communication research. Londres e Nova
York: Routledge, 1991.
20
9
One of the most powerful semantic notions in a critical news analysis is that of implication. (...)
Much of the information of a text is not explicity expressed, but left implicit. Words, clauses, and
other textual expressions may imply concepts or propositions which may be inferred on the basis
of background knowledge. This feature of discourse and communication has important ideological
dimensions. The analysis of the “unsaid” is sometimes more revealing than the study of what is
actually expressed in the text.
2
Suicídio e sociedade
o afirma: “(...) Mostraremos que essa maneira de ver, longe de excluir toda a
liberdade, aparece como o único meio de conciliá-la com o determinismo revelado
pelos dados da estatística.” (ibidem, p. 6, nota de rodapé).
Auxiliado por, entre outros, seu sobrinho Marcel Mauss (ele próprio
sociólogo e antropólogo importante) e por Maurice Halbwachs (que, em 1930,
escreveria Les causes du suicide, respeitosamente discordando de algumas
conclusões do mestre), Durkheim cruzou as estatísticas disponíveis sobre suicídio
na França e em outros países europeus de modo a refutar ou explicar – em bases
científicas, despidas de crendices – por que certas doenças mentais ou religiões,
certas raças ou tipos humanos, certas classes sociais ou sexos, certos climas ou
horários do dia tenderiam a aparecer como mais propensos ao suicídio. Encontrou
um aparente enigma: embora, obviamente, pessoas diferentes se matem por
motivos diferentes, a cota de suicidas de cada sociedade permanece estável por
períodos contíguos de tempo – é isso, especificamente, o que Durkheim chama de
taxa social. Como observa José Carlos Rodrigues, num texto inédito, “Os corpos
na antropologia”:
do método sociológico [1895], foi seu livro de 1897 que uniu forma e conteúdo de
maneira magistral, transformando-se numa aula magna.
No prefácio à edição brasileira de 2000, Carlos Henrique Cardim,
professor do Instituto de Ciência Política e Relações Internacionais da UnB,
lembra que Seymour Martin Lipset, autor de Political man, usava o livro de
Durkheim na primeira aula de seus cursos de Sociologia na Universidade da
Califórnia por considerá-lo um modelo – particularmente atraente para os alunos –
de estudo de ciências sociais. “Além de demonstrar cabalmente a possibilidade e a
necessidade da sociologia que até então estava muito contaminada pela metafísica,
pela psicologia e pelo messianismo redentorista”, acrescenta Cardim (ibidem, p.
XIX).
Durkheim notou que a única constante na Europa era que o suicídio se
relacionava diretamente com o grau de envolvimento do suicida com a sua
sociedade – e que isso às vezes apenas coincidia com o senso comum. Por
exemplo, os homens se matavam quatro vez mais que as mulheres, certo, mas não
porque fossem mais predispostos a isso e sim porque, no século XIX, eles tinham
uma vida social mais ativa que elas. Protestantes se matavam mais que católicos,
certo, mas não porque fossem mais mórbidos e sim porque sua religião se
caracteriza por valorizar mais o indivíduo e o livre-pensar, menos o grupo e a
ortodoxia. “Tudo o que é variação horroriza o pensamento católico”, escreve o
sociólogo (p. 185).
Em sentido inverso, ou seja, desmentindo a impressão popular e
aparentemente lógica de que a hora das trevas ou as longas noites de inverno
influenciavam o espírito das pessoas que, deprimidas e solitárias, se matavam,
Durkheim mostrou que elas o faziam mais freqüentemente de dia, em particular
nas horas ditas comerciais, e nos meses quentes do Hemisfério Norte, justamente
porque eram estes os momentos de maior intensidade da vida social.
2.1
O suicídio do tipo egoísta
10
I haven’t felt the excitement of listening to as well as creating music, along with reading and
writing for too many years now... I’ve tried everything that’s in my power to appreciate it, and I
do. God, believe me, I do... I must be one of those narcissists who only appreciate things when
they’re alone. I’m too sensitive. I need to be slightly numb in order to regain the enthusiasm I had
as a child... (...) Since the age of seven, I’ve become hateful toward all human in general... I’m too
much of na erratic, moody baby! I don’t have passion anymore, and so remember, it’s better to
burn out than to fade away.
11
Segundo ele contou ao biógrafo de sua banda, o jornalista Michael Azerrad, em “Come as you
are – The story of Nirvana”, sobre o Natal de 1974: “A única coisa que eu realmente queria naque-
le ano era um revólver Starsky e Hutch de US$ 5. Em vez disso, ganhei massinha de carvão”.
26
2.2
O suicídio do tipo altruísta
p. 35) aponta para o discreto elogio bíblico à morte voluntária inclusive nas
palavras de Cristo:
Seja como for, o martírio voluntário dos seus santos foi louvado pela
Igreja até o momento em que interesses terrenos o desqualificaram como nobre o
bastante para elidir seu caráter suicidário: o Império Romano converteu-se ao
cristianismo sob Constantino, no começo do século IV. A partir desta época, a
condenação tanto religiosa quanto civil ao suicida vai se tornando mais severa, até
atingir as sádicas penas impostas aos corpos dos suicidas durante a Idade Média:
para a Igreja, matar-se por desespero era desprezar o poder da penitência, isto é, o
seu poder; para o Estado, matar-se era privar o império de novos súditos e
soldados numa época em que a baixa natalidade romana favorecia os bárbaros.
Em Tabu da morte, Rodrigues explicita:
12
Le christianisme naît et se développe dans une atmosphère ambiguë, affirmant que cette vie ter-
restre, dans le “monde” est haïssable et qu’il faut aspirer à la mort por rejoindre Dieu et la vie éter-
nelle. Cette tendance l’emporte nettement dans les débuts de l’Église. D’aprés saint Jean,
l’ambiguïté est telle dans l’eiseignement du Christ qu’à certains moments les Juifs croient que Jé-
sus va se suicider: “Jésus leur redit encore: ‘Je m’em vais: vous me chercherez et néanmois vous
mourrez dans votre péché. Là où je vais, vous ne pouvez aller.’ Les Juifs se dirent alors: ‘Aurait-il
l’intention de se tuer? Il vient em effet de dire: Là où je vais, vous ne pouvez aller.’”
28
13
Recentemente, o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, instituiu uma mesada
para as famílias dos terroristas suicidas, tratados como shahids (mártires), a maior honraria da fé
islâmica, reservada àqueles que morrem por Deus.
29
Japão na época. Suicídios cívicos, no entanto, não são apanágio oriental. Um dos
heróis nacionais holandeses é um oficial de Marinha do século XIX que, vendo
seu navio tomado pelos rebeldes belgas que buscavam a independência, não
hesitou em atirar no paiol e matar a todos: ele próprio, seus companheiros, os
invasores. A eles, nipônicos ou batavos, se aplica o que o sociólogo escreve:
2.3
O suicídio do tipo anômico
Durkheim era um pessimista. Olhava em volta e tudo o que via era a erosão,
pelos sucessivos impactos da revolução, da industrialização e da secularização,
daquilo que o homem europeu ocidental do século XIX entendia como “o seu
papel”. Tornado ignorante dele, sua saída então já era a excessiva invidualização:
nela, o sociólogo enxergava as causas tanto das correntes suicidárias quanto de
outras manifestações de desorganização e alienação. Ou, como Robert A. Nisbet
escreve em The sociological tradition [1966]: “O que de fato é característico do
nosso desenvolvimento, Durkheim sugeriu, é que ele sucessivamente destruiu
todos os contextos sociais estabelecidos” (p. 300). Em troca, nada teria sido criado
para substitui-los. Pode-se argumentar, com Ortiz, que houve, sim, uma rápida
substituição, das referências locais pelas nacionais – e logo destas pelas
transnacionais (como é o caso, por exemplo, da União Européia). Entretanto, isso
não muda o fundamental: a anomia paradoxalmente tornou-se a regra.
33
2.4
Anomia e pós-modernidade
14
Cf. p. 44 .
34
Neste mundo onde, para recitar Marx via Marshall Berman, tudo o que é
sólido desmancha no ar, o homem enfrenta contínuas experiências de ruptura de
equilíbrio – pessoais, familiares, financeiras, sociais, geográficas. Sua sensação de
desarraigamento se dá não apenas entre país e país, mas dentro do espaço mesmo
daquilo que outrora ele entendia como “sua cidade”. Perdido em megalópoles
cada vez maiores, o indivíduo olha em volta e tudo o que enxerga é anomia; literal
e metaforicamente, ele perdeu os pontos de referência. Está mais exposto que
nunca à tentação da morte voluntária do terceiro tipo, tal como isolado por
Durkheim. Não deixa de ser ironia perversa da História que contribua para a
percepção de anomia geral a espetacular visibilidade do suicídio do segundo tipo,
o altruísta, praticado em nome de uma causa além da vida, o Islã, no 11 de
setembro de 2001.
O gigantismo das cidades e das malhas físicas de comunicação gera outra
idéia interessante na tentativa de conceituação de uma pós-modernidade, a de não-
lugares. Para Marc Augé, eles são (mais uma) fonte geradora de perdição porque,
como escreve em Não-lugares – Introdução a uma antropologia da
supermodernidade, “são tanto as instalações necessárias à circulação acelerada
das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os
próprios meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os
campos de trânsito prolongado onde são estacionados os refugiados do planeta”
(2004, p. 36). Nesses lugares, ou melhor, nesses não-lugares, o homem não mais
se reconhece. Jogado no mundo sem regras ou norte, a tentação de partir para
outro não-lugar aumenta.
Volta e meia, ainda que discretamente, alguma notícia menciona alguém
que decidiu pular de um viaduto ou abraçar um trilho eletrificado. Em 2004, uma
pequena nota publicada no jornal “Folha de S. Paulo” anunciava o propósito da
empresa mantenedora do metrô da capital paulista de instalar portas de material
35
Talvez não seja, uma vez mais, o caso de vivermos a simples destruição
dos contextos (sociais, arquitetônicos, espaciais, mentais etc.) estabelecidos e sim
da sua acelerada substituição por novos padrões criados a gosto do capitalismo
mundializado. Ortiz exemplifica com o espelhamento, na miscelânea internacional
de seus empregados, da irrelevância nacional das corporações e do
desenraizamento de seus produtos. Isto criaria em seu ventre a noção de “sistema
de valores universais”, capaz de dar conta de unidades de produção tanto nos
36
EUA quanto na Indonésia. “Ela soldaria seus membros como consciência coletiva
de tipo durkheimiana, moral condizente com a eficácia global e, claro salvadora
dos homens”, escreve Ortiz (p. 154). Estaríamos, hoje, sendo ressocializados
segundo esta nova concepção.
2.5
A reabilitação da comunidade
Tendo-se isso em mente, torna-se menos estranho que nunca se tenha falado
tanto em comunidade, espécie de unidade-padrão da vida social na Idade Média.
A reabilitação desta idéia, no entanto, nada tem de pós-moderna. Ela remonta ao
início do século XIX quando começou a haver, por parte dos estudiosos da vida
em sociedade (talvez não seja acurado chamá-los, naquele momento, de
sociólogos), uma reação à exaltação dos iluministas ao contrato social. Na visão
destes, a nova sociedade racional deveria ser, por definição, o oposto da sociedade
tradicional. Assim, ela seria baseada no homem não como artesão, fiel ou
camponês e sim como homem “natural”. Segundo Nisbet, ela “deveria ser
concebida como um tecido de relacionamentos específicos e voluntários em que
os homens livre e racionalmente entram uns com os outros” (p. 49). Para os
críticos dos iluministas, porém, o contrato não fazia sentido como mera comunhão
de interesses porque também eles se relacionavam a algo externo, que lhes dava
valor – a comunidade.
Tomando o partido da segunda no embate societas versus communitas,
Auguste Comte, por exemplo, via a restauração da comunidade como um
problema de urgência moral. Não tão conservador, embora compartilhando com o
pai do Positivismo alguns pontos de vista, Durkheim lembrava a origem comunal
da própria concepção humana de universo e ressaltava que tudo aquilo que se
eleva acima do nível do fisiológico é social, ou seja, humano.
15
In Durkheim we find the idea of community used not merely substantively, as in Le Play, not
merely typologically, as in Tönnies, but also methodologically. That is, in Durkheim’s hands
community becomes a framework of analysis within such matters as morality, law, contract, relig-
ion, and even the nature of the human mind are given new dimensions of understanding.
38
16
This particular emotional frame of mind can perhaps, generally speaking, de defined as piety.
Piety is a an emotion of the soul which turns into religion whenever it projects itself into specific
forms. Here it should be noted that pietas means the pious attitude towards both man and God.
Piety, which is religiosity in a quase-fluid state, will not necessarily have to coalesce into a stable
form o behavior vis-à-vis the gods; i.e., into religion.
39
qualquer tentação de se achar que o suposto gene suicida sugere até um método. O
principal fator, portanto, continua sendo a imitação, na acepção durkheimiana.
julho de 1961, seu avô, o escritor Ernest Hemingway matou-se, a dias do seu 62º
aniversário, disparando sua espingarda de dois canos contra a cabeça.
Sobre Hemingway, Hunter S. Thompson escreveu, para a revista National
Observer de 25 de maio de 1964, um texto que terminava com a seguinte frase:
“Então, finalmente, e pelo que ele deve ter achado ser a melhor das razões, ele
terminou tudo com uma espingarda de caça” (2004, p. 151). Outras três pessoas
da família do escritor cometeram suicídio: a irmã, o irmão e o pai de Ernest.
2.6
Dois casos clássicos: Pavese e Levi
Se Pavese não se matou pelo fogo, mas nasceu numa região do Piemonte
com alta taxa social de suicídios, seu conterrâneo Primo Levi seguiu fielmente a
cartilha familiar. Levi nasceu em Turim mesmo, a 31 de julho de 1919. Apesar de
judeu, conseguiu formar-se em Química em 1941, já na quadra final do governo
fascista e anti-semita de Mussolini. Tal qual Pavese, decidiu juntar-se aos
partigiani nas montanhas para combater os alemães que ocuparam o seu país
quando do colapso do regime do Duce. Foi preso e despachado para Auschwitz,
onde sobreviveu por um ano (1944-1945) graças à sua utilidade como químico.
A experiência despertou-lhe a necessidade de se expressar literariamente
em memórias, romances e poemas. Sua temporada no inferno rendeu, por
43
17
Embora possa soar incongruente sobreviver a Auschwitz ou a outro campo de concentração para
se matar mais tarde, não são incomuns suicídios nestas circunstâncias. Sobreviventes do Holocaus-
to, o psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990) e o poeta romeno Paul Celan (1920-1970)
também se mataram.
44
Vagienna, onde morava, depois que o seu banco faliu e enfureceu a população
local.
No epílogo de sua minuciosa biografia de Primo Levi, publicada em 2002,
o jornalista inglês Ian Thomson buscou repercutir o que a Itália de 1987 disse
após o suicídio de um de seus maiores escritores. Ele menciona todas as hipóteses
razoáveis para a decisão (a doença da mãe, o próprio sofrimento físico, a crescente
perda de memória e “a explicação romântica”, Auschwitz) e também algumas das
hipóteses desarrazoadas (mania de perseguição, neo-fascistas ameaçando-lhe com
armas etc.). Thomson registra como “a mais bizarra” a do escritor siciliano
Gesualdo Bufalino. Dias antes do suicídio de Levi, a rede estatal RAI exibira tarde
da noite O inquilino [1976], de Roman Polanski, no qual um judeu franco-polonês
(o próprio diretor interpreta Trelkovsky) pula para a morte de um terceiro andar
em Paris. Para Bufalino, autor de O disseminador da peste, Levi fora
“emocionalmente contagiado” pelo filme (citado por Thomson).18
O jornalista recolhe depoimentos que falam de uma depressão ao mesmo
tempo mais arraigada e mais difusa, como os do livreiro Angelo Pezzana (“Primo
não se matou por causa da sua mãe ou de Auschwitz: foi algo profundamente
dentro dele”); de Luciana Nissim, amiga de Levi que, como ele, sobreviveu a
Auschwitz (“Primo estava fora de si com a desgraça, nenhuma quantidade de
amor de outras pessoas poderiam tê-lo salvo”); e de Anna Maria, irmã caçula de
Levi (“Não foi nada, absolutamente nada”). A partir deles, Thomson escreve:
18
O protagonista do thriller psicológico de Polanski, por seu turno, aluga o apartamento onde a
antiga inquilina cometeu suicídio e passa a acreditar que o senhorio e os vizinhos – numa conspi-
ração aparentada à de um filme anterior do cineasta, O bebê de Rosemary (1968) – querem trans-
formá-lo na ocupante anterior. Quando pula, então, aliás, quando pula duas vezes, pois na primeira
quebra apenas a perna, Trelkovsky está vestido de mulher, num toque de humor negro.
19
There are always two suicides – the real one, and the one people think they know about. Over
the years strident public claims have been made that Levi did not in fact kill himself. Underlying
these attempts to exonerate him from ‘self-murder’ is the belief that a great and courageous man
could not have done such a thing. But such men do, often enough.
45
2.7
O único problema filosófico sério
20
In 1967 Levi had written of the Piedmontese poet Cesare Pavese: “Nobody has yet been able to
penetrate the reason and the roots of his suicide.” And the same must be said of Levi. His suicide
was provoked by his clinical depression, which was compounded by a complex web of factors.
46
indiscrição, é condenado pelos deuses a rolar uma enorme pedra montanha acima
para todo o sempre: cada vez que chega ao topo, ela rola encosta abaixo e ele
recomeça o seu trabalho. Tarefa que Sísifo executa conformadamente.
Porque, para Camus, o Absurdo só se completa se o homem não fugir dele,
se matando. Ter consciência da própria mortalidade, do Outro, da ausência de
normas sociais dadas a priori, de significados redentores e da inexistência de
Deus joga o homem num mundo inteiramente anômico, sem regras ou sentido.
Sua liberdade, porém, se não se reafirma nem pela dissipação hedonista nem pela
recusa a vivê-lo e sim pela aceitação responsável do Absurdo. Talvez não haja
melhor síntese deste paradoxo do que o título de um de seus romances, A morte
feliz, espécie de rascunho para O estrangeiro publicado postumamente, em 1970.
Para fisgar o leitor sem desmerecer a complexidade do tema, Camus abre O mito
de Sísifo com aquele que é o mais famoso conjunto de frases sobre o suicídio:
Com estas palavras, Camus de certa forma concorda com Durkheim, que
dedicou ao suicídio o melhor de seus esforços para estabelecer a sociologia como
uma área autônoma do conhecimento21: não existe, para ambos, assunto mais
urgente. Quase meio século depois da publicação de O suicídio, então, Camus
empreende a sua própria investigação sobre a morte voluntária, sempre tendo
como referência seus vínculos ao Absurdo. Aborda o suicídio filosófico; vê em
Don Juan o exemplo do homem absurdo; evoca Kirilov, de Os possessos, de
21
Nem todos concordam com isso. Para Nisbet, por exemplo, “o primeiro trabalho genuinamente
de sociologia do século” (XIX) é As classes trabalhadoras européias, de Frédéric Le Play, publi-
cado em 1869: “O suicídio, de Durkheim, é comumente encarado como o primeiro trabalho ‘cien-
tífico’ na sociologia, mas em nada diminui o seu feito observar que foi nos estudos de Le Play
sobre tipos de família e comunidade na Europa que se encontrou bem mais cedo (...) um trabalho
que combina observação empírica e inferência crucial – e fazê-lo reconhecidamente dentro dos
critérios da ciência.” (op. cit; p. 61)
47
22
O pano de fundo da polêmica entre um Camus já consagrado e um Barthes ainda em busca de
afirmação não é muito lisonjeiro para com o segundo: o autor de A peste acabara de sair do Partido
Comunista Francês e o que viria a escrever Fragmentos de um discurso amoroso fazia, ainda ine-
briado pelas certezas do centralismo democrático, o papel de patrulheiro ideológico. A brasileira
Leila Perrone-Moisés, aluna e amiga de Barthes, diz, na apresentação de Inéditos vol. 4 – Política
(2005, XII), que, em sua maturidade, ele se envergonhava do episódio.
48
23
Segundo Allen, no mesmo livro (p. 209), o personagem do filme chamado Louis Levy, um filó-
sofo que se suicida, não foi inspirado em Primo Levi.
24
Quando o livro foi publicado no Brasil, dois anos depois, reportagem na primeira página do
“Segundo Caderno”, do jornal O Globo, assinada por Sheila Kaplan, citava, sem maiores detalhes,
a estatística brasileira de suicídios como a oitava mais alta do mundo, segundo a Organização
Mundial da Saúde: 17 casos em 100 mil pessoas.
49
Esta sua afirmação se afina com a de Van Dijk sobre a veiculação, nos
textos jornalísticos, de conceitos ou proposições inferidos do senso comum25: ou
seja, não só os temas abordados ou descartados mas também a linguagem utilizada
pela imprensa reflete, pelo fortalecimento das normas, a compreensão que a
25
Cf. p. 22-23.
53
sociedade na qual ela se insere ou a fatia de público ao qual ela se dirige tem do
assunto. Há momentos excepcionais, porém, em que a imprensa pode elevar, ou
ao menos acelerar, a taxa social de suicídios numa determinada comunidade,
contribuindo para o clima geral de anomia. Mesmo neles, porém, ela não criaria
suicidas: excitaria indivíduos por suas próprias razões já propensos a se matar.
3.1
A Golden Gate
Antes, Jones havia andado por Minas Gerais atrás de um refúgio contra a
hecatombe nuclear que o obsedava. Ele se dizia a reencarnação de Jesus Cristo e
de vez em quando testava a obediência dos seguidores com ensaios de suicídios
coletivos. Em novembro de 1978, na pista de pouso da colônia, seus capangas
assassinaram a tiros um deputado americano que havia ido a Jonestown verificar
denúncias de abusos sexuais e escravidão. Antevendo a reação do governo
americano e o desbaratamento da seita Templo do Povo, Jones decidiu antecipá-lo
de forma radical pela auto-imolação coletiva. Seus acólitos tomaram um coquetel
de refresco e cianureto. Ele próprio matou-se com um tiro no rosto.
Friend, em sua reportagem, fala de Marissa Imrie26, uma estudiosa
adolescente de 14 anos que, no dia 17 de dezembro de 2001, saiu de Santa Rosa
(quase 100 quilômetros ao norte) de táxi (numa corrida de US$ 150) para, da
ponte, pular nas águas geladas e cheias de correntes da Baía de São Francisco, 67
metros e quatro segundos abaixo. Quando, depois do salto de Marissa, Renée
Milligan examinou o computador de sua filha, descobriu que ela andara visitando
um site com dicas para aqueles que desejavam se matar, baseado no best-seller
Suicide and attempted suicide: methods and consequences [1999], de Geo
Stone27.
O site desaconselhava tomar veneno (fatal em apenas 15% dos casos) e
cortar os pulsos (meros 5% de eficácia) e recomendava pular de pontes (“saltar de
mais de 80 metros sobre a água é quase sempre fatal”). Nele, Rennée encontrou a
seguinte frase: “A ponte Golden Gate é para os suicidas o que as Cataratas do
Niagara são para as pessoas em lua-de-mel.” Em nome de Marissa, ela entrou com
uma ação contra a repartição pública que cuida da Golden Gate e os
administradores da ponte, pedindo a construção de uma barreira. É pouco
provável que tenha sucesso: anteriormente, três ações similares foram rejeitadas.
Neste contexto, segundo Friend, conforme a contagem de puladores se
aproximava do número 500, em 1973, os jornais locais San Francisco Chronicle e
San Francisco Examiner iniciaram uma contagem regressiva. Quatorze aspirantes
ao título foram impedidos de saltar para a morte no Oceano Pacífico pela polícia.
26
Em seu bilhete de despedida, ela escreveu: “Por favor, perdoem-me. Não se fechem ao mundo.
Todo mundo está melhor sem esta garota gorda, desagradável e chata. Sigam em frente.”
27
O livro hoje encontra-se esgotado na Amazon.com. A loja virtual, no entanto, indica que há qua-
tro exemplares usados à venda, por preços que variam de US$ 999 a US$ 2.475.
55
28
Não existe sinônimo para esta palavra em português: o coroner é uma espécie de promotor pú-
blico encarregado de investigar as mortes violentas, bruscas ou incomuns – antinaturais.
29
Em 1995, um dos que se matou na ponte e teve seu salto noticiado foi Duane Garrett, arrecada-
dor de fundos para o Partido Democrata e amigo do ex-vice-presidente Al Gore. Dois anos antes,
outro suicida ilustre da Golden Gate foi Roy Raymond, fundador da cadeia de lojas de lingerie
Victoria’s Secret.
30
Ken Holmes, the Marin County coroner, told me, “When the number got to around eight hun-
dred and fifty, we went to the local papers and said, ‘You’ve got to stop reporting numbers’”. Wi-
thin the last decade, the Centers for Disease Control and Prevention and the American Association
of Suicidology have also issued guidelines urging the media to downplay the suidices. The Bay
Area media now usually report bridge jumps only if they involve a celebrity or tie up traffic. “We
weaned them”, Holmes said. But, he added, “the lack of publicity hasn’t reduced the numbers of
suicides at all.”
56
3.2
Gutenberg quebra o monopólio dos monges copistas
31
Hoje, em média, uma pessoa pula a cada duas semanas.
32
O tipo móvel já havia aparecido em madeira e argila na China, no século XI, e em cobre na Co-
réia, no século XIV. Não existe conexão comprovada entre Gutenberg e seus colegas orientais.
57
si mesmo”. De tal forma é assim que os suicídios mencionados pela Bíblia não
são, nas palavras de George Minois, “jamais acompanhados de uma reprovação
explícita como à dos assassinatos de outrem” (1995, p. 33)33. Quando Gutenberg
imprimiu a Bíblia no século XV, portanto, valia o interdito que vigora até hoje.
Para Santo Agostinho, formulador da doutrina rigorista que tornar-se-ia a
oficial da Igreja Católica, os que eram culpados de sua morte não teriam acesso à
vida eterna. Para São Tomás de Aquino, o suicídio era proibido por três razões
lógicas e complementares: ele é um atentado contra a natureza e a caridade, pois
contradiz a inclinação natural à vida e ao amor próprio; ele é um atentado contra a
sociedade, porque nós temos um papel a desempenhar dentro de nossa
comunidade; e, por fim, ele é um atentado contra Deus, proprietário de nossa vida.
Para Minois, esta comparação usada por São Tomás de Aquino é reveladora de
sua concepção: “Aquele que se priva da vida peca contra Deus da mesma maneira
que aquele que mata um escravo peca contra o proprietário do escravo”.34 Toda
esta argumentação buscava dar um sentido à vida, resgatando-lhe do absurdo.
Paralelamente às formulações teóricas dos santos-filósofos, tomavam-se
medidas práticas, através do direito canônico, na tentativa de inibir aquilo que até
os anos 1700 era conhecido não por suicídio e sim por “assassinato de si mesmo”.
Na Inglaterra, o Concílio de Hertford proibiu funerais cristãos aos suicidas no
século VII. No final do século X, o pio rei Edgar (959-975), principal
patrocinador de importante reforma monástica, confirmou esta disposição. Do
outro lado do Canal da Mancha, na França, embora a proibição do enterro de
corpos de suicidas nos campos santos remonte ao século anterior, a primeira prova
escrita dela só aparece no Sínodo de Nîmes, em 1284, que recusava a inumação
religiosa aos excomungados, aos hereges e àqueles que se matavam, sem nenhuma
exceção, a menos que o morto tenha dado alguma sinal de se arrepender in
extremis.
A penitência exerce um papel fundamental também na prevenção do
suicídio na Idade Média. Segundo o senso comum, alimentado pela Igreja, havia
apenas duas explicações para uma pessoa desejar a própria morte a ponto de ir ao
33
Minois lembra, entre outros, o suicídio de Saul, que se trespassa com uma espada ao fim de uma
batalha perdida contra os filisteus. O livro de Samuel diz simplesmente: “Saul pegou a espada e se
atirou sobre ela.”
34
Citados por Minois em Histoire du suicide, páginas 38 e 44-45.
58
seu encontro: loucura ou possessão. No primeiro caso, não havia muito a fazer,
exceto, por vezes, absolver o infeliz ou eximir sua família de qualquer culpa ou
cobrança. No segundo caso, porém, o suicida desprezava o poder conferido à
Igreja de, pela prescrição de uma penitência, fazer cessar seu desespero. Ao agir
assim, colocava em xeque a própria autoridade eclesiástica. Só podia estar tomado
pelo Diabo. Recusava-se a possibilidade de alguém se matar por outra causa.
35
Il est frappant de constater que les suicides par simple dégoût de la vie son rangés dans le cas de
folie, comme le déclare explicitement Bracton dans son traité. L’homme médiéval n’imagine pas
que l’on puisse remettre en cause la bonté de l’existence même. Le Moyen Age exclut la possibili-
té de ce qu’on appellera au XVIIIe siècle le “suicide philosophique”. Il est alors inconcevable
qu’un être sain d’esprit puisse considérer de sang-froid que la vie ne vaut pas la peine d’être vécue.
Le simple fait de l’envisager sans raison particulière est en soi un symptôme de folie, de déséquili-
bre mental que l’on commence à appeler “mélancolie”. Le terme, issu du grec et signifiant “hu-
meur noire”, désigne une affection physique, un excès de bile noire obscurcissant le cerveau et
suscitant de sombres pensées. Brunetto Latini est um des premiers à l’employer ao Moyen Age,
vers 1265.
59
Minois chama a atenção para o fato de que Donne não era apenas um
poeta: era, além disso, capelão anglicano da corte da Inglaterra, doutor em
Teologia por Cambridge e professor na maior escola de Direito da Londres da
época, a Lincoln’s Inn. O autor francês assinala, ainda, que o seu livro foi redigido
por volta de 1610, ou seja, antes do livro de Robert Burton. Longe de invalidar a
tese de Scliar, da complementaridade entre melancolia e suicídio, tal circunstância
apenas reforça a simultaneidade do novo mal-estar. Enquanto esteve vivo, Donne
foi consciente do gesto audacioso, ainda mais para alguém de sua posição: fez o
livro circular em pouquíssimas cópias e apenas entre amigos e discípulos. Para um
60
deles escreveu a prudente dedicatória: “Escrito por Jack Donne e não pelo doutor
Donne.” O livro foi impresso apenas em 1647, dezesseis anos após sua morte.
3.3
As visões gregas e romanas sobre o suicídio
36
(...) Est la littérature, qui exprime les rêves, les aspirations, les craintes, les valeus les plus res-
pectées dans l’élite intellectuelle. Or cette élite s’élargit à la Renaissance avec la révolution de
l’imprimerie. Les oeuvres ne sont plus confinées à un public de clercs pour les traités em latin, ou
à un auditoire de chevaliers pour les chansons de geste et les romans courtois. La culture écrite
s’ouvre à une nouvelle frange bourgeoise et à la petite noblesse, qui fournissent à la fois auteurs et
lecteurs. Les livres, beaucoup plus nombreux, reflètent les sentiments d’une couche plus important
de la population. Surtout, l’essor du théâtre permet de toucher un public très large, et de diffuser
auprès des illettrés les idéaux de l’élite.
61
37
Tal gênero ainda persiste em livros recentes como Dicionário de suicidas ilustres (1999), do
brasileiro J. Toledo, e Adiós mundo cruel – Los suicidios más célebres de la Historia (2003), da
espanhola Alicia Misrahi.
62
lettre, aliás, seu sobrinho-genro Brutus e sua filha Pórcia também se mataram38,
quatro anos depois de sua morte.
Catão era um estóico, isto é, um seguidor do estoicismo do filósofo grego
Zenão de Cício, que se matou aos 98 anos, depois de um episódio emblemático:
saindo da sua escola, o ancião caiu e quebrou um dedo; sacudindo a terra de sua
mão, ele recitou um verso de Níobe (“Eu vou. Por que me chamas?”); e
imediatamente se enforcou. Episódio emblemático porque o estoicismo propunha
basicamente uma ética da indiferença, diante das próprias paixões ou diante do
destino. A decisão entre viver ou morrer, assim, era posta na conta da liberdade do
homem racional, que bem poderia concluir ser o suicídio a melhor solução para a
impossibilidade de manter uma linha de conduta pré-estabelecida ou
simplesmente para a necessidade de se conformar à ordem das coisas.
A história de Catão se manteve, ao menos até o século XVIII, como um
verdadeiro campo de batalha entre os críticos e os simpatizantes – se é que esta
palavra se aplica – da morte voluntária. Entre estes, freqüentemente apenas os
suicídios clássicos eram tolerados com a argumentação de que, sendo pagãos, os
antigos não poderiam ser condenados por desobedecerem à quinta lei mosaica,
que desconheciam. Os catecismos dos séculos XVII e XVIII, aliás, passaram a
especificar que o “não matarás” se aplicava também a si mesmo39. Em 1597, por
exemplo, o moralista católico François Le Poulchre reprovou a atitude de Catão
afirmando que “a verdadeira força é a de conter em si mesmo, pelo julgamento da
razão, a cupidez, purgando sua alma de paixões reprováveis”, enquanto o poeta
Chassignet viu no romano o símbolo do suicídio honroso. Em 1709, Jonathan
Swift, autor de As viagens de Gulliver, escreveu um poema no qual via uma
reunião de notáveis da Antiguidade, na qual Catão era louvado veementemente
por Cícero. Quatro anos depois, Joseph Addison escreveu uma peça de grande
sucesso de público e de crítica, Cato, na qual o suicídio do estóico era descrito
38
Um dos assassinos de César, Brutus matou-se ao atirar-se sobre a espada, depois de perder a
Batalha de Filipos, na Macedônia. Teria exclamado na ocasião: “Virtude, não passas de um no-
me!”. Estóica como o pai Catão, o Jovem, Pórcia matou-se engolindo carvão em brasa quando
soube da morte do marido.
39
O que os obrigava a enquadrar o caso de Sansão, por exemplo, numa categoria excepcional, de-
rivada de Santo Agostinho: a daqueles que haviam recebido um chamado especial e secreto de
Deus. Sansão, como se sabe, matou três mil pessoas mas também morreu ao sacudir as colunas do
Templo de Dagon.
63
como sendo de uma nobreza insuperável. Consta que Alexander Pope chorou ao
assisti-la.
Em Sleepless souls – Suicide in early modern England, estudo sobre as
mudanças de mentalidade, da hostilidade à tolerância, em relação à morte
voluntária entre 1500 e 1800, os historiadores americanos Michael MacDonald e
Terence R. Murphy, registram detalhadamente a disposição inglesa para com
Catão.
40
David Hume (1711-1776) escreveu dois ensaios simpáticos ao suicídio, On suicide (de onde
essa citação foi retirada) e On the natural history of religion. Arrependido diante das paixões le-
vantadas, ele caçou como pôde as cópias do livro onde eles se encontravam, Five dissertations
(1756). Os ensaios só reapareceram após a sua morte. Neles, Hume encara o suicídio como um mal
menor, posto que o homem que o pratica não faz mal à sociedade, apenas deixa de fazer o bem. Ao
mesmo tempo, ele advoga uma certa reciprocidade: se a sociedade não faz bem ao homem, por que
ele seria culpado de deixá-la para trás?
41
Cato’s example was used to justify modern suicides from time to time. Most sweeping and ex-
treme was Hume, who declared that: “In all cases Christians and Heathens are precisely upon the
same footing: Cato e Brutus, Arrea and Portia acted heroically; those who now imitate their exam-
ple ought to receive the same praises from posterity.” When the poetaster Eustace Budgell cast
himself into the Thames in 1737, he left behind onde unfinished couplet to justify his deed: “What
Cato did and Addison approved,/ Cannot be wrong”.
64
3.4
Repetição, doença, contágio, ideologia
42
Interessante lembrar que, em pleno século XXI, as Forças Armadas de Israel ainda destroem as
casas dos terroristas suicidas palestinos, desalojando suas famílias. A punição pós-morte renova a
velha prática medieval.
66
43
Les autorités civiles et religieuses mènent le même combat contre le suicide, et leurs mesures
dissuassives se complètent: confiscation des biens et damnation éternelle. Dans le deux domaines,
la proibition du suicide accompagne le recul de la liberté humaine; l’homme perd le droit essentiel
de disposer de sa propre personnne ao profit de l’Église, qui dirige toute son existence et tire sa
force du nombre des fidèles, et au profit des seigneurs, dont certains ecclésiastiques, qui ont besoin
de conserver et d’accroître leur main-d’oeuvre dans un monde sous-peuplé où les famines et les
épidémies viennent régulièrement compromettre la mise em valeur des domaines.
67
de certa forma não muito sutil reproduzimos o mesmo tipo de distinção de classe.
Não seria, afinal, o comportamento da imprensa da área da Baía de São Francisco
em relação aos que pulam da Golden Gate – silêncio, a não ser que o morto seja
uma celebridade ou que seu gesto tumultue o trânsito – o reconhecimento de que o
contágio durkheimiano possa atuar e também de que certas mortes voluntárias são
tacitamente permitidas pelo status ou, ao menos, dignas de serem notadas pelo
transtorno que causam aos concidadãos do suicida? Os jornais da área da Baía de
Guanabara não agem de modo diferente. Eis, por exemplo, o que diz o manual de
redação e texto jornalístico de O Dia:
44
No Evangelho de Lucas, perguntado por um doutor da lei “quem é o meu próximo?” (para poder
amá-lo), Jesus responde com a história do homem assaltado e espancado no caminho de Jerusalém
para Jericó: um sacerdote vê o sujeito caído sem deter o passo; um judeu da tribo dos levitas tam-
bém não pára para ajudá-lo; um samaritano, membro de outro povo da Judéia, isto é, um estranho,
um “distante” é quem se detém para cuidar do infortunado. Ata-lhe as feridas, leva-lhe a uma esta-
lagem e paga os serviços do hospedeiro.
69
3.5
Hamlet, o inventor do sujeito e da psicanálise
entre 1580 e 1600 e, aumento notável, 128 de 1600 a 1625. Alguma obras,
sozinhas, somaram cinco casos. As cinco principais causas para o cometimento do
ato eram, pela ordem, amor, remorso, honra, desespero e – num dado novo, ligado
ao avanço do capitalismo – ruína econômica. “A explicação sociológica,
aparecida em Robert Burton, começa timidamente a concorrer com a psicológica,
enquanto a explicação sobrenatural recua”, explica Minois (p. 127). O suicida,
portanto, assume uma feição humana, mesmo que o tom dos autores não seja
preponderantemente admirado ou compreensivo com suas motivações. E sim
porque, de qualquer forma, o assunto se banaliza no jogo social e perde o apelo
moral.
Os números levantados por Paulin são ainda mais assombrosos porque
deles estão excluídas as 52 mortes voluntárias ocorridas nas peças do maior de
todos os dramaturgos ingleses do período. Em Shakespeare – A invenção do
humano, Harold Bloom vê em Hamlet, por exemplo, a encarnação da nossa busca
pela identidade e pela autoconsciência. “Em Hamlet, a autoconsciência faz
exacerbar a melancolia, à custa de todos os demais sentimentos”, escreve (2000,
p. 505). Noutra obra, O cânone ocidental, o crítico literário americano chega a
dizer que “Freud (...) entendia que Shakespeare inventara a psicanálise, ao
inventar a psiquê, até onde Freud podia reconhecê-la e descrevê-la” (1995, p. 65).
Freud, por sua vez, foi co-responsável pelo descentramento do sujeito, tal
como encampado por Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade
[1992]. Segundo ele, o sujeito – surgido com Hamlet, podemos dizer – foi
deslocado por “uma série de rupturas dos discursos do conhecimento moderno”: o
marxismo, a lingüística (de Saussure), a microfísica do poder (de Foucault), o
feminismo e a psicanálise (de Freud). Todas contribuem para o quadro anômico
verificado por Durkheim e Lipovetsky (e talvez entre essas rupturas pudéssemos
acrescentar o absurdismo proposto por Camus). Para Hall:
45
Em 1659, o jesuíta espanhol Antonio Escobar analisa um caso hipotético extremo. Nele, uma
jovem solteira grávida está determinada a se matar para evitar a vergonha da família. Poderia ela
provocar o aborto por ser este o único meio de a desviar do suicídio?, pergunta-se o casuísta. Sim,
responde, porque trata-se de escolher o mal menor. “Se nos lembrarmos da luta encarniçada trava-
da pela Igreja desde as suas origens contra o aborto, mediremos melhor o horror ao suicídio que
pode representar tal solução” (MINOIS, 1995, p. 147). Se, no entanto, a pobre grávida decidisse
mesmo tirar a própria vida, ai dela. Em 1718, em Château-Gontier, na França, Marie Jaguelin, grá-
vida de seis meses e desesperada com a desonra, se suicidou por envenenamento. Seu cadáver foi
desenterrado, julgado, arrastado. Em praça pública, seu ventre foi aberto, de modo a que o feto
fosse retirado e enterrado na parte do cemitério reservada aos não-batizados. Maria foi pendurada
pelos pés e exposta ao público. Depois, foi queimada. Por fim, suas cinzas foram jogadas ao vento.
72
46
Esta é a data aceita para a versão consagrada de Hamlet, embora existam evidências de que Sha-
kespeare vinha trabalhando na peça havia muito tempo antes, uma ou duas décadas talvez.
73
ao teatro Globe – não se deve perder de vista, mesmo diante do vocabulário hoje
considerado rebuscado de Shakespeare, que era para esse povo que ele escrevia.
Em Sleepless souls, MacDonald e Murphy chamaram a atenção para o fato
de que Hamlet e todo os demais membros da corte se inclinam para o estoicismo
(a mesma escola filosófica de Catão) ao encararem o suicídio como um problema
moral e ético, não religioso. O príncipe, em particular, se indaga sobre a nobreza
do gesto, tema central para os seguidores de Zenão de Cício, retomado no século
XVI por Michel de Montaigne. O que Hamlet se (lhes/nos) pergunta é: vale a pena
viver? Vale a pena suportar golpes do destino, erros do opressor, escárnio alheio,
ingratidão no amor, lei tardia, quando se pode:
47
Pouco provável, embora haja uma ligação familiar entre o autor e o personagem. Seu único filho
chamou-se Hamnet e morreu aos 11 anos, em 1596, pouco antes, portanto, do surgimento da ver-
são final da tragédia protagonizada pelo lendário príncipe dinamarquês. Sintomaticamente, ou não,
o fantasma do pai de Hamlet foi um dos dois únicos personagens interpretados pelo próprio Sha-
kespeare – o outro foi Adão, na comédia Como gostais. James Joyce defendeu, pela voz de seu
alter ego Stephen Dedalus, no capítulo nono de Ulisses [1922], passado na biblioteca, que Hamlet
era inspirado em Hamnet Shakespeare: “tivesse Hamnet Shakespeare vivido ele teria sido gêmeo
do príncipe Hamlet” (2005; p. 213). Bloom, em Shakespeare – A invenção do humano, não acredi-
ta nisso: “Se a dor maior de Shakespeare adveio da morte do filho Hamnet, o luto aparece de tal
modo trasmutado na tristeza de Hamlet que chega a ser irreconhecível” (2000; p. 514). Bloom re-
conhece uma identidade apenas exegética, não pessoal, na posição que Hamlet ocupa na obra de
Shakespeare: tão central quanto Shakespeare é na história da literatura ocidental.
74
48
Bloom concorda com Alvarez: “Dificilmente, conseguiremos estabelecer as tendências religio-
sas de Shakespeare, seja no início ou no fim da vida. Ao contrário do pai, que era católico, Sha-
kespeare manteve-se sempre ambíguo nessa questão perigosa, e Hamlet não é obra católica nem
protestante. Com efeito, a peça, a meu ver, não é nem cristã nem anticristã, pois o ceticismo de
Hamlet não apenas excede uma possível origem em Montaigne como se torna, no quinto ato, algo
estranho e fascinante, algo que não conseguimos rotular” (2000, p. 488-489).
75
lhe roubara o trono)49. Por outro lado, Minois destaca, recorrendo uma vez mais
ao estudo de Paulin50 sobre o suicídio nos palcos ingleses entre 1580 e 1625, que
talvez a grande questão posta em cena por Shakespeare no célebre solilóquio de
Hamlet tenha sido não “ser ou não ser?” e sim “o suicídio tem um sentido?”
3.6
‘Bills of mortality’: a listagem de mortos na imprensa
49
Goethe, pai do Werther, apreciava particularmente esta fala de Hamlet: “Os tempos de hoje es-
tão pervertidos. Oh, maldição que eu tenha nascido um dia para restaurar a ordem!”
50
Escreve Paulin, apud Minois: “Em vez de demonstrar, Shakespare mostra: o suicídio (de Romeu
e Julieta, cuja fatalidade exclui todo julgamento) tem o sentido que lhe dá o conjunto de um mo-
vimento dramático e poético. É por isso que Shakespeare não nos propõe uma apologia do suicí-
dio, mas uma apologia do amor ou, mais precisamente, do amor tal como o viveram Romeu e Juli-
eta. Nesta ótica existencial, o suicídio não apenas coroa a vida; ele a prolonga.”
76
51
Cruzando suas estatísticas, o sociólogo mostrou que não havia nenhuma ligação direta entre o
mau tempo e o número de suicídios. Pelo contrário, a maior parte das pessoas se matava em dias
de bom tempo – segundo sua tese, justamente porque eles representam maior necessidade ou pos-
sibilidade de interação social.
77
52
Compare-se aos números divulgados pelos jornais de 1953 e lidos por Chad Varah (cf. p. 72):
três suicídios por dia – para uma população recenseada em 8.196.807 habitantes em 1951.
78
53
The phenomenal growth of the periodical press and the continuing spread of literacy after 1700
transformed the hermeneutics of suicide, just as they affected almost every other aspect of social
and cultural life. The proliferation of daily and weekly newspapers and monthly reviews created a
new form of communication. Oral tradition and communal rituals played a diminishing role in
popular culture and reading became increasingly important. Pat Rogers rightly remarks that the
rise of the periodical press “affected the way in which people constructed the world around them”.
It greatly broadened the spatial and social horizons of its readers. It brought them news of events
that occurred all over the country, particularly in London, and it publicized new attitudes and ideas
far more effectively than pamphlets or the pulpits. It helped form political consciousness and ex-
posed provincial readers of every social rank to the values and opinions current in London society.
It also carried news of suicides to a vast audience of readers and enabled them to form their own
judgements about them. The rituals of judgement and burial were eclipsed as the chief means by
which people learned of suicides and assessed their significance.
54
The papers would hardly have gained credibility as vehicles of factual data had they treated the
deaths in the bills as evidence of God’s judgements or satanic influence, as the old broadsides had.
80
55
Cf. p 23 e 56.
56
In a sense, then, the newspapers were a kind of collective popular literature. Their style and con-
tent were the product of many people’s tastes and interests, not just those of their printers. Literary
scholars have recently taught us to interpret works of art in terms of the cultural codes they express
and reflect upon. They have called for a “cultural poetics” that regards literary texts as collective
productions – manifestations of cultural practices and collective beliefs – rather than as the unique
expression of their authors’ individual imaginations. No form of “literature” lends itself to this
approach more readily than the popular press.
82
57
Realism is as artificial a convention as allegory. To be convincing a narrative must satisfy our
expectations of what a truthful account of an event includes. It must be able to be visualized, accu-
rate in its circunstantial details, and psychologically plausible. The newspaper is a poor medium
for mimetic art. It affords little scope for creating narrative depth, for most newspaper stories are
short, and serial publication makes it difficult to develop character.
83
3.7
Os casos de Fanny Braddock e do casal Smith
58
Some years after Fanny’s death, John Wood included an account of her death in his Description
of Bath. Wood had been, according to his own testimony, Fanny’s landlord during her last thirteen
months of her life and knew her well. He supplied information about her background, the inheri-
tance of her fortune, her habits, and her connections that had not been previously published. He
also depicted her as the victim of slanderous rumours charging her with being sexually loose, but
he added that she seemed to exercise a power over the desires of women stronger than her consid-
erable attractviness to men. (...) Oliver Goldsmith, in his biography of Beau Nash, developed an
even more poignant version of Fanny’s story. He made her into the victim of na unscrupulous gen-
tleman, whose dissipation causes her to waste her fortune.
85
59
Como vimos, ainda hoje, a Folha de S. Paulo recomenda que o suicídio não seja omitido quan-
do for a causa ou a conseqüência da morte de (mais) alguém. Como veremos na terceira parte des-
te trabalho, homicídio seguido por suicídio é também rotineiramente noticiado pelo Globo.
60
Il est certain que le développement du capitalisme est un facteur important de la hausse du taux
de suicides au cours de cette période. Fondé sur le individualisme, le risque, la concurrence, les
paris hasardeux, c’est un facteur d’instabilité et d’insécurité. Les systèmes de solidarité des guildes
et corporations disparaissent et laissent l’individu seul face à sa ruine. (...) La presse se fait aussi
l’écho des suicides ordinaires pour chagrin d’amour, problèmes conjugaux, drames familiaux,
deuils insupportables, voil, honte, remords, litanie habituelle des misères humaines. Mais il n’est
pas impossible que ces cas aient été multipliés par um début de relâchement des liens familiaux,
les premier signes de la désintégration moderne de la familie large. (...) L’isolement de l’individu
s’accroît au sein même de la grégarité et de la promiscuité urbaines.
86
61
The notes were irresistable to the pressmen because of the vivid impressions that they conveyed
of the Smith’s personalities as well as the heterodox views that they propounded. They made the
simple caricatures of criminal story inadequate, and writers shaped their accounts to enhance their
impact. Richard and Bridget come alive as complex and contraditory human beings in their letters.
They were industrious and honest but embittered against the system and people that had punished
their industry with poverty and degradation. Capable of blowing their child’s brains out, they sho-
wed a tender concern for their dog and cat.
87
3.8
O papel didático das cartas dos suicidas
“No momento da morte, eles não tinham nada mais a não ser a linguagem
para endireitar o mundo” (p. 327), escrevem MacDonald e Murphy acerca não
especificamente dos Smith, mas de todos aqueles suicidas que julgaram adequado
deixar uma carta para a posteridade. Não era apenas uma explicação dos seus
motivos. A carta não se encerrava em si ou com a morte do remetente. Era
também o meio mais eficiente de influenciar a recepção do suicídio pelos
sobreviventes, aí incluídos os conhecidos, os desconhecidos e, last but not least,
as autoridades encarregadas de apurá-lo e, se fosse o caso, puni-lo. Uma grande
audiência, enfim. Neste ponto, cabe informar que as punições aos suicidas só
foram abolidas pelo Parlamento inglês em 1823 (as religiosas), 1871 (as
seculares) e 1961 (a abolição da figura jurídica do felo de se, o assassinato de si
mesmo, na Common Law).
Os historiadores americanos notaram que bilhetes de suicídio eram muito
raros no século XVII. Sua conclusão é de que o mesmo crescimento da
alfabetização que aumentou a circulação dos jornais, o seu número de leitores e o
contato destes com notícias de suicídio também conduziu à multiplicação das
cartas de despedida. Em Sleepless souls, eles conseguiram reunir 70 bilhetes do
século XVIII. Embora seja virtualmente impossível separar os autênticos dos
inventados, e embora reconheçam a limitação numérica de sua amostragem face
ao amplo universo da morte voluntária na Inglaterra daquele período, MacDonald
e Murphy acreditam que ela ainda assim seja útil no sentido de atestar o
estabelecimento do bilhete de suicídio como um outro gênero literário em si.
62
The majority of both the printed and the manuscript notes were written by Londoners, mostly
men and women of the middling classes. The style and content of the dozen manuscript notes clo-
sely resemble those that were printed in the papers. Like the newspaper notes, they employed the
rhetoric of wills, of dying speeches, and of personal letters. Most are in prose, but several were
written in verse. Many notes had an instrumental purpose. They perpetuated the suicide’s influence
at least a brief space after his death. Like the last wills and testaments that they often imitated, they
settled the disposition of the property, bestowed blessings on their surviors, and even issued in-
structions for the burial of their bodies. (...) Some suicides, knowing that their words would be
read publicly at the coroner’s inquest, sought to influence the coroner or the jurors.
90
alto nível literário. Foi o caso da de uma nobre que se afogou voluntariamente no
mar, em Deal, em 1726. Em sua carta, publicada no London Journal, ela começa
oferecendo perdão a todos aqueles que a enganaram, inclusive um certo “Mr. L”,
causador de sua desgraça. Ao mesmo tempo, faz questão de esclarecer que, ao
contrário do que o seu sedutor espalhara pela comunidade, ela não era uma
vagabunda. Apenas fora fraca diante dos repetidos apelos de “Mr. L” (“ele
continuou de joelhos, implorando para perdoá-lo; prometendo tudo o que um
homem pode dizer”, diz um trecho) enquanto o marido dela estava fora, no mar. E
por aí vai, dando a própria versão dos fatos que resultaram na sua morte.
63
This letter is an extraordinary achievement. The writer’s oscillation between anger and grief,
righteousness and shame, hate and love, creates an utterly realistic picture of a mind rent by pow-
erful and conflicting emotions. Like a tragic heroine’s last monologue, this letter captures the ten-
sion between the writer’s recognition of the part that she played in her own downfall and her per-
sistence in the delusion that ruined her. Contemporary tragedy is only one of the genres that pro-
vided the literary materials for this desperate work of art.
64
Cassorla, em O que é suicídio, coleta exemplos de suicídios explicitamente vingativos. Na China
antiga, por exemplo, grupos de homens se suicidavam antes das batalhas, buscando fazer com que
suas almas atacassem furiosamente os inimigos, responsáveis últimos por suas mortes. Em certas
tribos de Gana, se o indivíduo se mata culpando outro habitante da aldeia, este também é obrigado
a se matar. O povo chuvache, da Rússia, costumava se enforcar à porta dos seus desafetos. “Em
muitos grupos, acreditava-se que a alma do suicida perseguia o ofensor; isso persistiu pelos tempos
e continua no psiquismo profundo das pessoas até hoje” (CASSORLA, 2005, P. 38).
91
original que o próprio suicida talvez busque expiar com seu gesto) seja na crença
mística de exercer um devastador poder prático sobre os supostos desafetos.
Se partirmos das cartas de despedida examinadas por MacDonald e
Murphy para as cartas de despedida coletadas por Marc Etkind em ...Or not to be,
iremos encontrar a mesma retórica derivada dos testamentos escritos65, a mesma
pretensão de influenciar o julgamento dos sobreviventes e a mesma tentativa de
atrair-lhes a simpatia e a piedade, além, claro, do mesmo subtexto de vingança.
Eis, por exemplo, um trecho da última carta de Adolf Hitler, que, junto
com a mulher Eva Braun, se suicidou a 30 de abril de 1945 , no bunker sob o solo
da Chancelaria, em Berlim, quando as tropas soviéticas já se encontravam a
poucas centenas de metros (a Segunda Guerra acabaria na Europa oito dias
depois):
65
Cabe lembrar que, com Rodrigues em Tabu da morte, o testamento era oral e “parte naturalmen-
te integrante do rito de morrer”. A partir do século XII é que ele se torna quase um sacramento,
sendo apropriado (e escrito) primeiro por um religioso, depois por um funcionário público.
66
My wife and I choose to die in order to escape the shame of overthrow or capitulation. It is our
wish for our bodies to be cremated immediately on the place where I have performed the greater
part of my daily work during twelve years of service to my people.
67
Pela incineração dos corpos, Hitler quis evitar que acontecesse com ele e com Eva Braun o
mesmo que acontecera com o ditador Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci: após serem
executados por partigiani, seus corpos foram exibidos e vilipendiados por uma multidão furiosa na
Piazzale Loreto, em Milão.
92
3.9
As cartas brasileiras e as dos resistentes franceses
68
Ces lettres figurent parmi les plus forts témoignages que l’écriture humaine nous aît légués. La
lecture et la relecture des dernières lettres nous font pleurer. De quel droit pouvons-nous lire, pu-
blier et commenter ces ultimes messages de condamnés, quand ils sont destinés aux parents, aux
époux, aux proches qu’ils aimaient? Du droit et du devoir de fraternité humaine: ces dernières let-
tres s’adressent à nous parce qu’elles dissent la vie de ces hommes et de ces femmes, ce qui comp-
te alors face à la mort, paroles d’hommes sur la vie de l’homme. Ces lettres s’adressent à nous,
aussi, parce que les condamnés ont explicitement voulu que le sens de leur engagement, de leur
vie, de leur mort nous soit connu.
97
69
Mon cher fils, Avant de mourir, je t’envoie mes dernières pensées, qui seront pour toi. Rappelle-
toi de ton père qui t’a tant aimé et qui va dans quelques instants aller rejoindre celle qui fut ta
mère. Ne fais pas de misère à Yvonne qui a tous seus meubles à la maison. Encore une fois, mon
cher fils, je t’embrasse. Ton père qui t’aime jusqu’à son dernier souffle. Adieu, mon fils, adieu.
Barthélemy.
Ma chère Yvonne, Cette lettre est la dernière. Je vais mourir avec 29 camarades. Je n’ai plus que
quelques instants à vivre. Je garde jusqu’au bout un bon souvenir de toi. Aie du courage. J’en ai.
Nous avons combattu pour le bonne cause. Elle triomphera. Je t’embrasse. Mes meilleurs pensées
pour tous les amis. Adieu Yvonne. Adieu. Barthélemy.
98
70
Entretanto, Fortunato foi condenado pela Justiça apenas em 1957.
101
71
Segundo a versão on-line do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro, do CPDOC da Funda-
ção Getúlio Vargas, “apesar de toda a controvérsia sobre a autoria da Carta-Testamento, há razões
suficientes para se acreditar na sua autenticidade. Várias pessoas, entre as quais Osvaldo Aranha,
Amaral Peixoto, Tancredo Neves, o brigadeiro Epaminondas Gomes dos Santos, declararam ter
visto o presidente ler, assinar e guardar cuidadosamente um papel que devia ser a carta. Outro da-
do fora de discussão é a participação – maior ou menor – na elaboração do documento do jornalis-
ta José Soares Maciel Filho, o redator favorito dos discursos de Getúlio”
(http://www2.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/5458_54.asp)
72
Vargas refere-se à Revolução de 30, que o conduziu pela primeira vez à presidência da Repúbli-
ca, exercida com mão de ferro durante os anos do chamado Estado Novo, de inspiração nazi-
fascista. Mesmo assim, pressionado pelos EUA e pela população, ele mandou tropas para comba-
ter do lado dos Aliados durante a Segunda Guerra. Quando a vitoriosa Força Expedicionária Brasi-
leira retornou da Itália em 1945, porém, instalou-se o paradoxo: como lutar pela democracia lá fora
se ela não existia aqui dentro? Embora Vargas tenha começado a liberalizar o regime, foi deposto
em outubro pelas Forças Armadas. Nas eleições presidenciais, no entanto, ganhou o marechal Eu-
rico Gaspar Dutra, candidato lançado e apoiado por Vargas. No pleito seguinte, em 1950, seria o
próprio Vargas o candidato vencedor, agora legitimado pelas urnas.
102
73
Cf. p. 94 e 96.
103
74
Cf. p. 85.
104
4.1
O que diz ‘O Globo’ sobre ética
Esta última frase não deve ser entendida como um sinônimo para suicídio
de celebridades. A morte voluntária de uma pessoa desconhecida também pode ter
uma relevância histórica que a ultrapasse. Garcia exemplifica com os suicídios em
prisões. Segundo ele, é necessário noticiá-los. Primeiro, porque é comum o
homicídio disfarçado de suicídio, o que exige investigação das autoridades.
Depois, porque, se confirmado o suicídio, a morte paradoxalmente pode ser uma
informação relevante sobre as condições de vida no sistema prisional brasileiro.
As diferenças de interpretação das próprias normas de redação estão
presentes dentro de cada jornal. Contudo, geralmente elas são aplainadas antes de
o produto chegar às bancas. A despeito do que diz o Manual de redação e estilo
sobre o assunto, a percepção da maioria dos jornalistas do Globo, bem como de
boa parte dos seus leitores, é a de que notícias de suicídio simplesmente não são
publicadas. Como este trabalho mostrará, elas são publicadas. Antes, entretanto,
elas passam por tantos filtros, por tantas avaliações baseadas em critérios
jornalísticos de importância, que apenas uma amostra delas chegará às páginas.
Esses filtros são criados ou destruídos informalmente, no dia-a-dia dos
fechamentos.
A visão que o diretor de redação Rodolfo Fernandes, 43 anos de idade, 25
de profissão e 16 de O Globo, tem da suposta periculosidade das notícias sobre
suicídio, por exemplo, é substancialmente distinta da de Garcia. Em meados de
2005, na inexistência de qualquer imposição oficial de silêncio, ele reafirmou aos
seus subordinados que o jornal noticia suicídios, desde que, naturalmente, eles
preencham os pré-requisitos da relevância jornalística, não pelo medo difuso de
um contágio. Em entrevista, sua hipótese para o tabu que molda e era moldado
pelos procedimentos da redação remete à religião:
75
Cf. p. 72.
108
76
Cf. p. 102.
77
Cf. p. 31.
109
Cera das almas) da monumental obra memorialística iniciada por Baú de ossos
em 1972.
O suicídio de um personagem de tal magnitude não poderia passar
despercebido nas redações dos jornais. Ainda assim, e embora Nava tenha
escolhido uma via pública para consumar o ato, houve dúvidas sobre a maneira de
noticiar sua morte. Para Luiz Garcia, a cultura de não publicar notícias de
suicídios estava tão arraigada que quase venceu o dever jornalístico. “Num
primeiro momento, houve uma tendência a não dizer que era suicídio”, lembra.
“Depois, chegou-se à conclusão de que tinha de dar o suicídio, porque certas
pessoas têm tanta importância que não se pode omitir este fato.” O caso virou
referência.
A publicação de que Pedro Nava havia se matado, entretanto, estava longe
de encerrar a questão. Faltava explicar, ou não, o que o levara a se matar. Cerca de
duas horas e meia antes de ele ter feito o disparo contra a própria cabeça, Nava
recebeu um telefonema que o deixou perturbado. Sua mulher, Nieta, para quem
acabara de ler o discurso de agradecimento pelo título de Cidadão Fluminense e
que atendera a ligação, reparou que, depois de ouvir o que o homem do outro lado
da linha tinha a dizer, Nava parecia ter sido vítima de algum abalo, alguma
chantagem. Contudo, ela foi ao banheiro e ele se aproveitou disso para pegar o
revólver numa gaveta e sair sem se despedir, pela porta dos fundos do
apartamento da Glória. Antes de meia-noite, Pedro Nava estava morto.
Já no dia seguinte chegou às redações o boato de que Nava se matara
porque estava sendo ameaçado de ter a homossexualidade divulgada por um
garoto de programa com quem se relacionara, um certo “Beto da Prado Júnior”.
As equipes das diversas publicações saíram a campo para apurar se aquilo era ou,
ao menos, tinha a possibilidade de ser verdade.
Então chefe da sucursal da revista IstoÉ no Rio, o jornalista Zuenir
Ventura, hoje colunista do Globo, narra o episódio em seu livro de memórias,
Minhas histórias dos outros. Dois jornalistas da revista, Artur Xexéo e José
Castello, foram encontrar o tal Beto e voltaram à redação impressionados com o
relato do rapaz, que colocava a culpa da chantagem num outro garoto de
programa, chamado a participar dos seus encontros com Nava. Quase ao mesmo
tempo, na redação da concorrente Veja, o relato de Beto também impressionara os
111
Para Zuenir:
78
Só dois anos depois do suicídio, começaram a aparecer menções à homossexualidade de Nava.
112
(e sua família) quanto com a polícia (e a Justiça): não silenciando e sim noticiando
os crimes – desde que, logicamente, preservadas quaisquer informações
financeiras que pudessem vir a estimular o apetite dos bandidos.
Hoje, como explica Luiz Garcia, entende-se que atender o pedido da
família para que o seqüestro não seja noticiado “não ajuda o seqüestrado em nada
e só facilita a vida do seqüestrador, além de criar um efeito multiplicador dos
seqüestros”. Quebrar o silêncio foi determinante para que o Disque-Denúncia,
criado em 1995 e administrado por Zeca Borges, funcionasse mais eficientemente
no Rio do que em São Paulo79. Aqui, o risco criado para os seqüestradores pela
cultura da denúncia anônima feita por cidadãos de bem, que tomam conhecimento
dos crimes pela imprensa, fez com que tal crime deixasse de compensar. Lá, a
imprensa decidiu manter-se calada e os seqüestros continuam muito comuns. “Se
isso não é causa e efeito...”, ironiza Garcia. Ele chegou a escrever uma coluna
intitulada “O direito de denunciar” sobre o assunto:
79
Além de Rio e São Paulo, hoje também há telefones do Disque-Denúncia funcionando em Cam-
pinas, Caruaru, Itaperuna e Recife, além dos estados do Espírito Santo e de Goiás.
114
soubesse o que estava acontecendo, não teria avisado à polícia.” Para Fernandes, a
quebra do silêncio na televisão pode ter salvo a vida do dono da agência W/Brasil.
80
Ranking feito pelo Ministério da Saúde entre 2000 e 2004, com base nas estatísticas de mortes
não-naturais (homicídios, mortes por arma de fogo sem causa determinada, suicídios e acidentes
de trânsito), mostra que a violência paulistana é a maior do país e quase o dobro da carioca, segun-
da colocada: alcança um índice de 11,53, contra 6,75. Entretanto, o primeiro lugar no ranking iso-
lado dos assassinatos é de Macaé (RJ), com 108,15 homicídios por 100 mil habitantes.
115
bem mais complexa do que a mera emissor-receptor. Ou, como diz Miquel
Rodrigo Alsina:
4.2
A cobertura do ‘Globo’ em 2004
81
La teoría de la construcción del temario (agenda-setting) apunta claramente que es muy posible
que los mass media no tengan el poder de transmitirle a la gente cómo deben pensar o actuar, pelo
lo que sí consiguen es imponer al público lo que han de pensar. Por ello, en principio, se puede
afirmar que la efectividad del discurso periodístico informativo no está en la persuasión (hacer
creer) o en la manipulación (hacer hacer), sino sencillamente en el hacer saber, en su propio hacer
comunicativo.
116
maior do que a sua própria vida, “o Brasil, o povo”, Getúlio Vargas de certa forma
se inocentou do pecado de ter infringido um tabu. Exatamente como os mártires
da fé ou da coletividade estudados pelo sociólogo francês.
A linguagem utilizada pelo editorial de O Globo do dia 24 de agosto de
2004, 50º aniversário da morte do presidente, admite isso quando diz:
82
O editorial se refere ao golpe militar de 31 de março de 1964.
117
83
Tipicamente, o governo boliviano rapidamente negou que a ação que matou dois policiais – a-
lém do mineiro, identificado como Eustáquio Picachuri, de 47 anos – e feriu outros dez configu-
rasse um ataque terrorista. Durante “uma coletiva de imprensa especialmente convocada para tran-
qüilizar a população”, o então presidente Carlos Mesa chegou a qualificar Picachuri como “uma
pessoa desesperado com um conjunto de petições de caráter estritamente pessoal”.
84
Cf. declaração p. 115.
85
Cf. nota p. 120.
120
86
Em tempo: duas semanas depois de Kurt Cobain cometer suicídio, em 1994, O Globo enviou a
Seattle o seu correspondente em Washington, José Meirelles Passos, com a missão de estabelecer
uma “geografia sentimental” do líder da banda Nirvana. O resultado foi publicado em duas páginas
inteiras do Segundo Caderno de 22 de abril daquele ano.
121
4.2.1
Uma jovem palestina em Jerusalém
Note-se que o texto não utiliza nem a palavra “suicida” nem a palavra
“suicídio”. A morte de Zenaib está apenas e tão-somente subentendida na
descrição de sua ação. Ela sequer foi contabilizada entre as duas ocorridas no
atentado.
4.2.2
O dia mais violento no Iraque
entre sunitas, seguidores da tradição, e xiitas, seguidores de Ali, pai do imã morto
e genro de Maomé.
O outro Hussein, Saddam, pertence à minoria sunita do Iraque e durante o
seu governo (1979-2003), a festa foi proibida em todo o país. O principal suspeito
pelo planejamento dos atentados do 2 de março é o terrorista jordaniano Abu
Musab al-Zarqawi, braço da rede al-Qaeda no Iraque. Não se pode, contudo,
afastar a hipótese de eles terem sido obra da resistência sunita, descontente com a
queda de Saddam e a ocupação militar. Tudo isso, e bastante mais, está dito ou
sugerido na página do Globo, tanto no noticiário principal quanto num box
histórico sobre a Achura e num infográfico sobre os principais atentados no
Iraque.
Constam ainda da página uma foto em preto-e-branco (maior) de um
ferido aguardando socorro em meio a destroços e corpos despedaçados em
Karbala e outra foto em preto-e-branco (menor) mostrando os xiitas golpeando-se
na cabeça até sangrarem, para rememorar o sofrimento do imã Hussein. O
material todo mereceu chamada na primeira página do jornal.
Dada a dimensão da série de atentados, compreensivelmente não há o
nome das vítimas ou dos terroristas. Estes são mencionados brevemente.
(...)
Mais de dois milhões de fiéis se reuniram em Bagdá e Karbala
para os festejos, os primeiros em décadas, pois eram proibidos
por Saddam. Na capital, três terroristas suicidas mataram 70
pessoas perto da Mesquita de Kadhimiya. Um quarto terrorista
foi preso antes de detonar os explosivos que levava consigo.
ousadamente nova tanto nos termos do artigo da New Scientist quanto nos da
notícia do Globo, a proposição é inteiramente compatível com o que Durkheim
escreveu em O suicídio, mais de um século antes.
4.2.3
O pacto suicida dos jovens japoneses
(...)
Além de a polícia não encontrar indícios de violência, os jovens
deixaram mensagens relatando a intenção de se matar. Na
camionete estava o testamento de uma das vítimas pedindo
desculpas pelo suicídio. Uma outra havia enviado na segunda-
feira um e-mail a um amigo avisando que ia se matar.
4.2.4
Um executivo italiano da Parmalat
4.2.5
O fim da carreira do ‘Dr. Morte’
sobretudo mulheres idosas que viviam sozinhas, com doses letais de heroína,
desde 1977.
Casado e pai de quatro filhos, ele nunca admitiu os crimes, para os quais,
como sói acontecer, havia tentativas divergentes de explicação: para uns, o
médico queria brincar de Deus; para outros, ele ficara traumatizado com a morte
da mãe, que tinha câncer e tomava heroína para aliviar a dor. Com este currículo,
não causa espanto que o provável suicídio de Shipman ficasse em segundo plano.
(...)
(...)
4.2.6
A dançarina brasileira na Espanha
87
Num toque sinistro adicional, o doutor clinicava em Hyde, subúrbio de Manchester.
133
4.2.7
O assassino da jornalista goiana em Atlanta
88
When I am laid in earth/ May my wrongs create/ No trouble in thy breast./ Remember me, re-
member me/ But, ah!, forget my fate.
135
(...)
89
Cf. p. 100.
136
tentativa de pôr um ponto final na relação. O pai do rapaz, Mário Pereira, morador
de Atlanta, é citado como afirmando que era a jornalista que o assediava.
O parágrafo final do texto reforça a idéia de que a notícia era digna de
publicação, ao destacar a importância de Eliete na comunidade brasileira de
Atlanta: “Ele (sic) era sócia de um site e de uma revista, ambos em português e
direcionados aos brasileiros que vivem nos EUA. Também organizava eventos
como o Miss Brasil 2004 nos Estados Unidos, cuja final foi em Nova York, em
setembro.” Em termos de diagramação, a matéria foi dada em três medidas, na
página oito. Tem uma foto colorida de Eliete em vida. Limita-se, à esquerda e
abaixo, com anúncios; acima, outra notícia da Região Centro-Oeste: “Chefe do
crime organizado em Mato Grosso tem 2.303 imóveis” (em quatro medidas) e um
texto-legenda mostrando, em cor, protesto de estudantes de Maceió (em duas
medidas).
4.2.8
O desempregado na Praça dos Três Poderes
Antes disso surgem outras peças da história: Souza era mineiro, mas
morava no Espírito Santo; carregava um cartaz no qual se dirigia a Lula (“Senhor
presidente, vendi meu barraco por R$ 800 para falar com você. Roubaram meus
documentos, tiraram meu direito de cidadania e estão armando um monte de
problemas para mim. Estou perdendo minha família e pedindo meus direitos de
cidadão.”); sua internação era estimada em 30 dias e iria requerer também
acompanhamento psiquiátrico.
O segundo capítulo no Globo do drama marcaria uma dramática reversão
de expectativas: a morte de Souza – reforçando a posteriori a decisão de se ter
noticiado a ação. “O desempregado que se imolou na frente do Palácio do Planalto
está interferindo na vida do país”, diz Agostinho Vieira, citando-o como exemplo
de ação que diz respeito a outras pessoas além do suicida e de seus familiares90.
No dia 19 de abril, numa primeira página quase totalmente tomada pela
alegria do campeonato estadual do Flamengo (conseguido numa vitória de 3 a 1
sobre o Vasco) e pela manchete “PT cobra do governo ofensiva na segurança”, o
título de uma chamada em duas medidas informava: “Morre o desempregado que
ateou fogo ao corpo”. O pequeno texto rememorava as circunstâncias da ação de
Souza e noticiava a morte por falência múltipla, na véspera, além de apresentar
um dado até então inédito: ele deixava uma filha de 8 anos.
O resto da notícia estava na página quatro da editoria O País, em quatro
medidas, ao lado da coluna política de Helena Chagas e dos resultados das loterias
federais, embaixo das matérias “‘Time’ inclui Lula na lista das cem pessoas mais
influentes do mundo” (subtítulo “Presidente é o único latino-americano citado
entre líderes mundiais”) e “PT decide jogar pesado nas alianças” (subtítulo “Em
Fortaleza, partido decide apoiar PCdoB contra vontade do diretório nacional”).
O título desta reportagem praticamente repetia o da chamada na primeira
página: “Morre homem que ateou fogo ao corpo”. O subtítulo rememorava o seu
gesto: “José Antônio de Souza queria ver Lula para protestar contra o
desemprego”. O texto, de de la Peña e Rodrigo Rangel, trazia os seguintes lead e
sublead:
90
Cf. p. 113.
139
vendera o barraco por R$ 1.000, mas deixara R$ 200 com a mulher. Conta, ainda,
como ela conseguiu viajar a Brasília, para acompanhar os últimos dias de vida do
marido – com uma passagem de avião oferecida pela Prefeitura de Cariacica.
E, por fim, Orletti descreve uma tentativa anterior de suicídio: “Camila
(sua filha de 8 anos) ficou com o avô. Duas semanas antes da viagem, ela evitara
uma tragédia. José Antônio subiu numa árvore para se enforcar. Desistiu ao ouvir
os apelos desesperados da menina.” Emerge das informações a figura de um
homem desesperado e humilhado (“Antônio falava que era muita humilhação
vender caranguejo”, conta Maria das Dores), o que, subliminarmente, além do
dado anômico, remete o suicídio a uma perda temporária ou definitiva da razão.
4.2.9
O adolescente na roleta russa em Meriti
4.2.10
O assassino dos próprios filhos
após matar os filhos não cometeu um ato íntimo e pessoal, interferiu diretamente
na vida da família e da comunidade em que vivia”, reforça Agostinho Vieira.
A notícia ocupava seis medidas no alto da página, sob o título “Pai mata os
dois filhos a tiros e suicida” e o subtítulo “Crime aconteceu no domingo mas
corpos só foram encontrados anteontem em casa de São Pedro D’Aldeia”. Encima
dois outros registros, o do ataque a três moradores de rua em Cascadura (uma das
vítimas morreu) e o do assassinato de um corretor de turismo na Tijuca, este com
uma foto colorida do corpo coberto por plástico preto e cercado de cones de
trânsito, além de um anúncio de meia página.
O caso de Morimoto é merecedor de tamanho destaque – que inclui ainda
a chamada na página dois – porque não se trata apenas de um suicídio mas de um
duplo homicídio seguido de suicídio, com o agravante de as duas vítimas serem
crianças filhas do próprio assassino. A tragédia aí contida depõe a favor da
publicação em detalhes, um pouco como o caso da jornalista brasileira assassinada
pelo ex-namorado em Atlanta. No ano anterior, tinha sido o caso, ainda, de um
fato brevemente referido no pé da matéria assinada por Fábio Vasconcellos: “Há
cerca de um ano, um crime semelhante chocou o Rio. Um engenheiro morador da
Barra matou com tiros de escopeta a mulher as duas filhas enquanto dormiam e
também se suicidou” (p. 22).
A pressa do fechamento levou o repórter a uma ligeira imprecisão na
descrição do armamento empregado: em maio de 2003, o engenheiro Waldo de
Carvalho Wunder se suicidou com um tiro de escopeta na boca depois de matar a
mulher e as duas filhas usando uma pistola Glock calibre 380, na cobertura da
família, na Barra da Tijuca91. Wunder devia mais de R$ 700 mil ao INSS. O
detalhamento das armas utilizadas, que lhes atribui uma certa importância
fetichista, terá desdobramentos importantes na terceira reportagem sobre o caso
Morimoto, como veremos um pouco mais adiante. De imediato, cabe-nos ler lead
e sublead da primeira reportagem, a publicada no 18 de agosto:
91
Em agosto de 2003, um segundo caso assemelhado resultaria no suicídio do empresário Antônio
Schempri. A diferença é que ele não matou a própria família e sim o sócio, a esposa deste e o filho
do casal. O assassino suicidou-se duas horas depois, na sua casa do Recreio.
144
baleado ao tentar invadir a Rocinha com seu bando, a de que o corpo de uma
vítima de seqüestro havia sido encontrado e a de que o Conselho Nacional de
Peritos Judiciais do Brasil pretendia tomar medidas contra o membro responsável
pela filiação de outro traficante, além de dois comunicados pagos. Desta vez, sob
o título “Comerciante que teria matado filhos havia perdido a guarda das
crianças”, o texto de Dimmi Amora concentrava-se, depois da obrigatória
rememoração do fato original, na perfil psicológico de Morimoto, “um pouco
mais fechado, desde que perdera a guarda dos filhos para a ex-mulher”. A
delegada Cláudia Faissal foi ouvida mais uma vez, atrás de novos detalhes das
investigações, entre eles os de que as crianças provavelmente foram dopadas antes
do fuzilamento, para não sofrer.
São ouvidos, ainda, dois psiquiatras, Vera Lengruber, presidente da
Associação Psiquiátrica do Estado do Rio de Janeiro, e Fábio Barbirato. Ela
afirma que “o ato de Rui costuma ser classificado como suicídio coletivo”. Não há
maiores detalhes sobre o que seria isso. Ele, a partir de casos semelhantes nos
EUA, opina: “É um quadro tão grave que a pessoa acha que está fazendo um bem
para os parentes para evitar que eles tenham um sofrimento tão grande quanto o
que ela está sentido. A pessoa deprimida perde a noção.”
No dia 20 de agosto, a terceira reportagem sobre o caso Morimoto opera
um malabarismo editorial. Tendo uma chamada na primeira página e sendo
publicada na página 13, a de abertura da editoria Rio, com direito ao destaque de
um infográfico e encimando uma notícia sobre as idas e vindas do desabamento
do edifício Palace II, ela desvia completamente o assunto. Deixa-se de tratar de
um duplo homicídio seguido de suicídio e passa-se a abordar os riscos de se
manter uma arma em casa e as benesses da Campanha do Desarmamento, que O
Globo apoiou. A campanha pagava entre R$ 100 e R$ 300 por arma entregue.
Tudo porque os repórteres Amora e Maria Elisa Alves conseguiram apurar
que, dias antes do crime, Morimoto entregou dez armas na sede do movimento
Viva Rio. Estas, porém, não eram todas as suas armas, daí o título de gosto
duvidoso: “Só faltou uma arma”. O subtítulo esclarecia: “Pai que matou os dois
filhos e se suicidou havia entregado dez revólveres e pistolas, mas manteve um
38.”
146
92
Dois outros revólveres calibre 38, um revólver calibre 22, uma pistola calibre 380, uma carabina
calibre 44 e cinco garruchas de calibres variáveis.
147
93
É sintomático que o suicídio seja associado à doença, ou seja, a algo fora da ordem, da normali-
dade, alheio a uma natureza humana. Por vias transversas, essa separação remete à antiga culpabi-
lização do Diabo. Além disso, introduz a idéia do Absurdo, na acepção camusiana.
148
4.2.11
O famoso estilista no Arpoador
Nos dias seguintes, O Globo não publicou novas matérias sobre o Caso
Veras. Apenas na edição de 9 de setembro apareceu um texto-legenda sobre a
missa de sétimo dia do estilista. Na foto publicada na página 23, viam-se amigos
de Veras, entre eles Frankie Mackey, durante a cerimônia na Igreja da
Ressurreição, no Arpoador. Mais uma vez, é curioso que, a despeito do suicídio,
ou, ao menos, da suspeita de suicídio, ao morto não tenham sido recusados nem
enterro cristão nem missa. Uma mudança de orientação ou, muito mais
provavelmente, um privilégio pelo status de Veras? Cabe lembrar que, em
Histoire du suicide, George Minois descreve minuciosamente a vista grossa para o
suicídio de nobres e de religiosos durante a Idade Média. Eles eram enterrados
com toda a pompa. No resto da página, o destaque ia para uma granada
encontrada na Fonte da Saudade. Completavam-na os anúncios de falecimentos e
vítimas, na seção Obituário.
A morte de Veras desapareceu das páginas do jornal – e dos jornais – até
maio de 2005. No dia 18, o “Jornal Nacional”, da Rede Globo, revelou o laudo do
IML, segundo o qual o ferimento na testa do estilista dificilmente teria sido
causado por uma queda: o corpo apresentava fratura na base do crânio e edema
cerebral. Na sua edição do dia seguinte, O Globo noticiou as novidades no caso:
“Segundo médicos legistas, Amaury, ainda com vida, sofreu violenta pancada na
cabeça e ingeriu uma quantidade excessiva de tranqüilizantes” (p. 21). O texto
não-assinado reproduzia a declaração de um dos médicos, não-identificado: “Não
há dúvida de que o ferimento na testa, que atingiu o encéfalo, seria suficiente para
deixar qualquer pessoa atordoada, praticamente impossibilitando que ela tivesse
força para se suicidar” (ibidem). As novas informações, dizia-se, levariam a
polícia a marcar uma reconstituição da morte, com a participação de Frankie
Mackey – o que efetivamente viria a ocorrer em junho.
A partir dali, fatos novos vieram a aumentar as dúvidas sobre a ocorrência
de um suicídio, lançando suspeitas sobre a versão do sócio de Veras. Além do
laudo do IML, revelou-se, na edição de 20 de maio, que Mackey continuava
morando no apartamento da Francisco Otaviano, mas enfrentava uma ação de
despejo por atraso de R$ 100 mil no aluguel e tinha tido luz, gás e telefone
cortados por falta de pagamento. Ele se mudaria do imóvel no dia 23 de junho. A
investigação sobre a morte do estilista prossegue quando do fechamento desta
dissertação.
153
Todo o episódio leva a uma reflexão curiosa. Se, num primeiro momento,
por alguma razão, tivesse-se optado por ocultar do leitor o suicídio de Amaury
Veras, o que haveria para noticiar a partir do momento em que a polícia
contemplasse cada vez mais fortemente a hipótese do homicídio? “Olha, aquilo
que a gente não disse que era não é aquilo mesmo não?!”, ironiza Rodolfo
Fernandes, diretor de redação do Globo. “A desgraça da mentira é que, ao contar a
primeira, você passa a vida inteira contando mentira para justificar a primeira que
contou”, declarou o presidente Luiz Inácio Lula Silva em entrevista, a propósito
do escândalo político envolvendo o PT e o repasse de dinheiro de caixa dois a
partidos aliados. O mesmo é verdade se se trocar “mentira” por “omissão”.
4.3
Convicções pessoais e ‘sínteses totalizantes’
sociais. Arlindo Machado critica este tipo de abordagem, que chama de “sínteses
totalizantes”:
O suicídio pode, sim, ser uma notícia espetacular, naquilo que uma notícia
tem de igualmente essencial: o inesperado, a ruptura de uma “ordem natural” das
coisas. Neste sentido, enquadra-se na leitura que Roland Barthes fez dos fait
divers (fato diverso, isto é, desastres, acidentes, mortes etc.). Para o semiólogo
francês, eles seriam a parcela do noticiário que escapa à politização94: são eventos
que, ao menos na aparência, se fecham “em si e para si”, se esgotam em seus
próprios enunciados, não têm contexto exterior – são uma informação calada. O
interesse por eles surge da lógica relacional de seus termos: “Estilista é
encontrado morto em seu apartamento” atrai a atenção do leitor pelos termos
inesperados. No processo, o fait divers se reaproxima do romance, qual os relatos
sobre suicídios publicados nos jornais ingleses do século XVIII. Carlos Henrique
de Escobar ao analisar as relações entre comunicação e fait divers a partir de
Barthes propõe, no caso das notícias policiais, uma reflexão válida também para o
suicídio:
94
Tal definição remete à que Barthes faz dos mitos: “O mito é uma fábula despolitizada” (Mitolo-
gias; p. 163). No entanto, é uma fala despolitizada que pode ser falada politicamente.
159
setores da sociedade. Vem daí o mal-estar que cerca o tema. Ele se mostra, por
exemplo, quando Jean-Claude Bernardet vai assistir a um filme de Abbas
Kiarostami e escreve, a propósito das táticas de envolvimento do cineasta
iraniano: “Se eu tivesse entrado no cinema sabendo de antemão que o projeto do
senhor Badii era o suicídio, não teria alcançado uma relação tão intensa e
perturbadora com O gosto de cereja” (BERNARDET, 2004, p. 54). Por quê?
Porque a bem-sucedida humanização do personagem estabelece entre ele e o
espectador uma sólida identificação secundária, para além de qualquer pré-
conceito em relação ao seu gesto.
O que incomoda em Kiarostami é o seu realismo. Não o “realismo reflexo”
de que fala Ortiz em A moderna tradição brasileira, aquele que “reforça as
demandas subjacentes às exigências do espectador” pois “‘cola’ à realidade já
preexistente. É a falta de distância que lhe retira o caráter reflexivo” (2001, p.
173). Este é o realismo da indústria cultural e do jornal, o que “procura consagrar
uma única versão da realidade, eliminando qualquer tipo de reflexão sobre ela”
(idem). Já o realismo de Kiarostami – e o de Eisenstein, mencionado por Ortiz a
partir de Bazin – é como o do chamado neo-realismo italiano, cujos filmes:
Dentro de cada um dos textos sobre casos de suicídio que consegue atingir
as páginas esta mesma tensão entre a espetaculosidade (sua atração para o
jornalista-leitor) e a subversão existencial da notícia (sua repulsa) é mantida. Eles
são mantidos longe da reflexão, fechados “em si e para si”, numa situação
cômoda. São inúmeros os recursos para desviar o assunto, dentro da estratégia do
fait divers: aqui, o homem-bomba que mal é mencionado; ali, o pai que
colecionava armas; acolá, a suspeita persistente que a morte do estilista foi por
homicídio (pouco importa, aqui, se esta hipótese afinal vier a ser comprovada).
Sendo tributária da imprensa americana, inclusive na adoção da técnica do
lead, virtualmente inexistente na Europa, não é surpreendente que nos EUA se
verifique mais ou menos a mesma queda pela ambigüidade, conforme foi visto no
161
relato de Tad Friend sobre as pessoas que saltaram da Golden Gate. Parece lógico,
não? Se noticiar suicídios os multiplica, calar sobre eles é uma forma de reduzi-
los. Será? Num artigo publicado no site Poynteronline (cujo slogan é “tudo o que
você precisa saber para ser um jornalista melhor”), a radialista americana Cindi E.
Deutschman-Ruiz, conquanto recaia em alguns clichês, discorda disso. Ela chama
a atenção para a impressionante estatística de que 30 mil pessoas se matam
anualmente nos EUA e que outras 500 mil dão entrada em salas de emergência
depois de uma tentativa de suicídio95.
95
Estes dados não devem ser nem menosprezados nem superestimados. Embora em números abso-
lutos os EUA ocupem o quarto lugar no ranking mundial de suicídios (atrás de China, Índia e Rús-
sia), eles caem para 38º lugar quando se considera a taxa por 100 mil habitantes. Segundo esta, os
países com mais suicidas são, pela ordem, Lituânia (com 42 por 100 mil), Estônia, Rússia, Letônia,
Hungria, Sri Lanka, Kazaquistão, Bielo-Rússia, Eslovênia e Finlândia. Os números são da Organi-
zação Mundial de Saúde.
96
Does media coverage reflect these realities? Generally not. Instead, coverage tends to focus on a
rash of suicides at a university; a study that finds evidence of family tendencies toward suicide; or
the proeminent, sucessful doctors, actors, writers, ou business people who kill themselves. And in
some cases, we create written or unwritten rules not to cover suicide out of fear of inspiring copy-
cats. Copycat suicides are a real problem, but suicide experts generally agree that it’s not a ques-
tion of whether media should cover suicide, but how we do so. Gauging from the news, it would
be easy to conclude that suicide is rare, rather than a widespread and ongoing public health prob-
lem. As journalists, we’re fond of criticizing ourselves for over-covering homicide. Why do we
fail to address our under-coverage of suicide?
162
saúde mental – falácia que já desmentida por Durkheim mais de um século antes.
Seja como for, ela não se furta a criar as próprias regras de como cobrir suicídios.
A primeira regra, “o suicídio nunca é o resultado de um único incidente”,
busca aprofundar a compreensão do ato, normalmente associado a uma grave
depressão – o que condiz com o que escreveu o jornalista Ian Thomson, biógrafo
de Primo Levi. A segunda, “detalhes do método ou da locação usada pelo suicida
podem levar a suicídios por imitação”, sugere que o repórter seja cautelosamente
genérico – o que está em acordo com os procedimentos prescritos no Manual de
redação e estilo do Globo. A terceira, “é vital usar estatísticas e informação sobre
saúde mental muito cuidadosamente “, visa a não-associação automática entre o
suicídio e uma patologia – o que objetiva as preocupações da própria Cindi. A
quarta, “a cobertura de suicídio é uma oportunidade de fornecer ao público
informações e recursos que podem salvar vidas”, fortalece a mídia prestadora de
serviços – o que ecoa a experiência de Otavio Frias Filho no CVV.
Como é altamente improvável que Cindi, Thomson, Luiz Garcia e Frias
Filho tenham algum dia se encontrado (e nem mesmo lido uns aos outros) para
deliberar e chegar basicamente às mesmas conclusões quanto ao melhor modo de
abordar o tema, é razoável supor que suas opiniões e ações reflitam, se não o
“bom senso” mencionado por Rodolfo Fernandes, um senso comum. Ou, para
usar as palavras de Alexis de Tocqueville sobre os americanos, uma religião
“menos como doutrina revelada do que como opinião comum”.
Todavia, esta opinião não pode ser entendida como comum apenas aos
profissionais das redações, posto que isto transformaria a comunicação num
circuito fechado e de mão única. Este senso deve ser comum entre estes jornalistas
(e seus colegas) e os leitores (das sociedades cristãs ocidentais a quem os
primeiros se dirigem e dos quais saem os próprios jornalistas). Uns não existem,
ou, como quer Alsina, não sabem sem os outros. Conferir à imprensa o poder
absoluto sobre o processo de comunicação é ignorar as complexas redes de poder
e contrapoder dentro de cada sociedade. Por conta tanto de pesquisas qualitativas
diárias quanto da facilidade de interação imediata com os jornais pelo correio
eletrônico, ou ainda da feroz competição entre empresas que sobrevivem do gosto
do leitor, nunca as redações ficaram tão expostas e sensíveis ao mundo fora delas
quanto hoje.
163
97
Refere-se a Hobbes, no Leviatã, que usa como epígrafe de seu artigo: “Quando imaginamos as
mesmas coisas de maneira diferente, muito dificilmente deixamos de nomeá-las de modo diverso.
Apesar de ser a mesma a natureza do que imaginamos, a diversidade de nossa percepção do objeto,
devido a diferentes constituições do corpo e devido a preconceitos de opinião, confere a cada coisa
o cunho de nossas diversas paixões. E, por esse motivo, um homem deve ter cautela com as pala-
vras quando raciocina; isto porque, além da significação do que imaginamos como sua natureza, as
palavras também contêm a significação da natureza, disposição e interesse daquele que fala”.
164
Nisso, ele está de plano acordo com o tio, cuja uso da análise estatística
para provar suas teorias foi considerado notável. Como frisa Matilda White Riley,
o interesse de Durkheim pelos aspectos sociais do suicídio – e não pelas razões
individuais pelas quais alguém comete e outro alguém não comete suicídio – é
consistente com sua visão de sociólogo, não de psicólogo – ao mesmo tempo em
que não subestima o indíviduo em seu papel na sociedade. Porque é o
desequilíbrio social que se manifesta de modo estatístico: “O suicídio anômico
tende a crescer conforme as normas do grupo e os controles sociais entram em
colapso e o suicídio egoísta tende a crescer conforme as normas prescrevam um
excessivo afastamento do indivíduo do grupo” (RILEY, 1963, p. 413).
A presente tentativa de se tentar entender como jornalistas fazem para lidar
com a idéia do suicídio – alheio – como fato social, em seu dia-a-dia, nasceu da
dúvida que, variadas vezes, acometeu-me dentro das redações do Jornal do Brasil
e do Globo: qual a razão para sermos tão lacônicos sobre as mortes voluntárias,
para sepultá-las sob eufemismos como “as causas da morte não foram divulgadas”
ou “acidente com arma de fogo”? Isso é mera invenção nossa ou reflete, como nós
temos a pretensão de que as páginas reflitam, algo que nos suplanta?
Ao cabo da pesquisa, entendi que o silêncio era menor do que eu supunha
e, mais até que ele, me incomodava o tom das palavras, a desqualificação do
suicida como fanático religioso, criminoso ou louco. Tudo isso, como escreveu
José Carlos Rodrigues, “não se explica apenas porque o suicídio seja um desafio
ao poder, mas também porque todo verdadeiro desafio ao poder seja de natureza
suicidária (p. 282)” Admito que, volta e meia, minhas palavras em relação àqueles
98
Ce sont des troubles organiques qui relèvent de la psychiatrie. Mais, em même temps, tout ma-
lade mental est un homme qui n’est plus adapté à son milieu. Une maladie mentale est um élément
de déséquilibre social. (...) C’est um fait social, qui doit s’expliquer par des causes sociales.
165
Livros:
AZERRAD, M. Comes as you are: the story of Nirvana. Londres: Virgin Books,
1993.
FRIAS FILHO, O. Queda livre: ensaios de risco. São Paulo: Companhia das
Letras, 2003.
AMORA, D. “Comerciante que teria matado filhos havia perdido a guarda das
crianças”. In: O Globo, Rio de Janeiro, 19/8/2004, p. 15.
––––––––––; ALVES, M.E. “Só faltou uma arma”. In: O Globo, Rio de Janeiro,
20/8/2004, p. 13.
DIA mais sangrento no Iraque, O. In: O Globo, Rio de Janeiro, 3/3/2004, p. 33.
EVANS, R. “Suicide around the world every 40 seconds”. In: Reuters, Londres,
8/9/2004.
FRIEND, T. “Jumpers – The fatal grandeur of the Golden Gate Bridge”. In: The
New Yorker, Nova York, 13 de outubro de 2003, p. 48-59.
GOULART, G. “Polícia fará nova perícia na casa de estilista”. In: O Globo, Rio
de Janeiro, 4/9/2004, p. 18.
NOVAES, C.I. “Uma grife irreverente”. In: O Globo, Rio de Janeiro, 3/9/2004, p.
17.
ORLETTI, C. “‘Ele dizia que se sentia humilhado’”. In: O Globo, Rio de Janeiro,
20/4/2004, p. 12.
PACTO suicida entre 9 jovens no Japão. In: O Globo, Rio de Janeiro, 13/10/2004,
p. 24.
POLÍCIA apura se jovem morto fez roleta-russa. In: O Globo, Rio de Janeiro,
1º/5/2004, p. 25.
TERRORISTA suicida não seria fanático. In: O Globo, Rio de Janeiro, 13/5/2004,
p. 32.
172
Artigos na internet:
Entrevistas ao autor: