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Martins - 2011 - o Som Ouvido, Visto e Sentido PDF
Martins - 2011 - o Som Ouvido, Visto e Sentido PDF
FLORIANÓPOLIS
2011
MORGANA FERNANDES MARTINS
FLORIANÓPOLIS
2011
MORGANA FERNANDES MARTINS
, em 19 de agosto de
2011.
6
ABSTRACT
7
LISTA DE IMAGENS
Imagem 3 p. 80
Beré em O Cano
Imagem 4 p. 80
Beré em O Cano
Imagem 5 p. 81
Beré em O Ovo
Imagem 6 Marció, Porto e Beré em O Ovo p. 82
Imagem 8 O Panzão p. 86
Imagem 9 O Panzinho p. 86
Imagem 11 As Latas p. 89
Imagem 13 O Original p. 91
Imagem 14 O Microtônio p. 91
Imagem 15 O Trombone p. 92
8
Imagem 22 Beré com seu figurino do Lixaranga p. 98
9
SUMÁRIO
RESUMO _______________________________________________________06
LISTA DE IMAGENS ______________________________________________08
INTRODUÇÃO ___________________________________________________13
10
2.3 OS ATORES / MÚSICOS: UMA SOMATÓRIA DE CONHECIMENTOS ____78
2.4 OS INSTRUMENTOS MUSICAIS QUE COMPÕEM AS CENAS__________84
11
3.3.4 Os grandes e os pequenos instrumentos musicais____________136
3.3.5 Texto não: palavras cantadas______________________________136
3.3.6 As músicas / o canto_____________________________________137
3.3.7 Ver / ouvir: o som que se vê, os olhos que ouvem ____________138
3.3.8 Som como diálogo entre os atores__________________________139
3.4 O SOM CONDUZ A DRAMATURGIA?_____________________________140
CONSIDERAÇÕES FINAIS________________________________________142
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS _________________________________147
12
INTRODUÇÃO
1
Trabalho defendido sob a orientação da Profa. Dra. Maria Brígida de Miranda, com o título
Música para ver, teatro para ouvir: quando o repertório sonoro se torna a dramaturgia da cena.
Como etapa conclusiva do Curso de Licenciatura em Educação Artística - Habilitação em Artes
Cênicas, do Centro de Artes, da Universidade do Estado de Santa Catarina.
2
Por uma questão de terminologia justifico a utilização do termo “repertório sonoro na cena”, ao
invés do comumente utilizado “sonoplastia”, não apenas por acreditar ser o mais adequado, como
também para criar uma identidade própria do tema que adapto à pesquisa que desenvolvo.
Maiores detalhes da justificativa dessa terminologia podem ser encontrados ao longo desta
pesquisa, como também na minha monografia Música para ver, teatro para ouvir: quando o
repertório sonoro se torna a dramaturgia da cena por meio do endereço eletrônico:
www.pergamumweb.udesc.br
3
A O’ctus Cia. de Atos é uma companhia de dança contemporânea. Na época, além de bailarina
eu era também a responsável pela criação do repertório sonoro dos espetáculos do grupo. Meu
período como integrante da O’ctus Cia. de Atos foi de novembro de 2001 a outubro de 2003.
13
selecionar músicas que correspondessem com a estética do espetáculo. Durante
este processo percebi que a composição de um repertório sonoro vai muito além
da seleção de músicas para a cena. A partir desta percepção nasceu o desejo de
estudar, na prática e na teoria, as funções e possibilidades do som na cena
teatral.
O meu contato com um trabalho cênico em específico atuou como agente
desencadeador de meus futuros estudos. Em 2005 presenciei em Florianópolis o
espetáculo O Cano, do Circo Teatro Udi Grudi de Brasília, reconheci neste
trabalho uma proposta sonora bastante peculiar e detalhado em meio à cena
teatral. Com o interesse por esta estética, optei pelo Circo Teatro Udi Grudi e pelo
espetáculo O Cano como objetos de pesquisa de minha monografia de Conclusão
de Curso da graduação. Em abril de 2007, de 19 a 22, tive a oportunidade de
participar em Brasília do evento de comemoração relativo aos vinte e cinco anos
de existência do Circo Teatro Udi Grudi. Deste encontro extraí a concepção da
minha monografia e levantei também discussões a respeito do tema repertório
sonoro na cena teatral e suas ramificações.
Três anos se passaram e a aspiração de pesquisar o Circo Teatro Udi
Grudi se manteve por causa da proposta sonora que este grupo incorpora em
seus espetáculos teatrais. Como o objetivo central deste estudo trata da
possibilidade do elemento sonoro se tornar o condutor da dramaturgia da cena,
reconheço nos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi que o som em sua cena
carrega essa função. Por meio, então, da cena do Circo Teatro Udi Grudi,
desenvolvo o termo “dramaturgia sonora”. Este termo está apenas citado, porém
não elaborado, pelo músico e pesquisador Lívio Tragtenberg4 em seu livro Música
de cena (2008).
Trabalhei o termo “dramaturgia sonora” na minha monografia de TCC,
porém não o aprofundei enquanto conceito. Nesta dissertação pretendo discuti-lo
com maior profundidade. Além de refletir sobre as teorias de Tragtenberg e
4
Livio Tragtenberg nasceu em São Paulo. Recebeu bolsas de composição de Vitae e
Guggenheim Foundation. Escreve música para orquestras, grupos instrumentais e vocais, cinema,
teatro, dança, vídeo e instalação sonora. Já recebeu três vezes o Premio de Melhor Trilha Sonora
no Festival de Cinema de Brasília, entre outros prêmios. Em 2007 lançou o CD NEUROPOLIS
pelo selo SESC com a Orquestra de Músicos das Ruas de São Paulo. Criou a Blind Sound
Orchestra. Foi professor de composição musical do Departamento de Música da UNICAMP, na
ULM e PUC-SP. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Livio_tragtenberg em 23-05-2007 às 16:35h.
14
demais pesquisadores sobre o assunto, pretendo exemplificar as possibilidades
da dramaturgia sonora por meio de descrições e discussões a respeito do
repertório sonoro desenvolvido pelo Circo Teatro Udi Grudi em seus espetáculos.
Para o desenvolvimento dos conceitos teóricos sobre repertório sonoro na
cena teatral, além das teorias elaboradas por Tragtenberg, apóio-me nas
pesquisas de Roberto Gill Camargo5. O autor publicou dois importantes livros
sobre o elemento sonoro no teatro: Sonoplastia no teatro (1986) e Som e cena
(2001). Além de Tragtenberg e Gill Camargo, o professor da UFMG, Luiz Otávio
Carvalho Gonçalves de Souza6 também desenvolveu sua tese pela ECA-USP, em
1999, direcionada ao tema repertório sonoro na cena teatral. Outros materiais
teóricos como dissertações, monografias e artigos também foram analisados para
dar suporte à este estudo. Para reforçar o conteúdo teórico da pesquisa contei
também com publicações de autores como José Miguel Wisnik que, em sua obra
O som e o sentido (2009), reflete sobre a questão sonora presente no quotidiano.
Murray Schafer foi outro teórico de suma importância neste estudo. Este autor
teorizou a respeito do conceito “paisagem sonora” na obra A afinação do mundo
(2001), e pesquisou sobre a diversidade sonora no espaço contemporâneo em
seu livro O ouvido pensante (1991).
O material de análise dessa dissertação foi coletado em pesquisa de
campo que realizei no período de 21 a 24 maio de 2010, em Brasília/DF e em
Jataí/GO. Fui convidada pelo próprio grupo a acompanhá-los em um evento
proposto por funcionários da Receita Federal de Jataí. Os integrantes que
participaram da viagem, Luciano Porto, Marcelo Beré e Márcio Vieira, realizaram
uma apresentação sobre seu trabalho, e não um espetáculo específico. Esta
apresentação, assim como o novo encontro com o grupo, rendeu materiais para a
elaboração do relato e pesquisa de campo dessa dissertação, somado ainda ao
conteúdo que possuo sobre o grupo desde 2007.
5
Roberto Gill Camargo pesquisa sobre iluminação e sonoplastia teatral. É doutor em
Comunicação e Semiótica, foi professor de Lighting Design na ESMAE/Instituto Politécnico do
Porto em 2004, leciona iluminação no curso de Graduação em Teatro da Universidade de
Sorocaba-SP e nos cursos de treinamento aos iluminadores de teatros do SESI-SP. Fonte:
www.seminaluz.com/pal_vis.aspx?id=26 em 15 jun 2010.
6
Diretor e pesquisador teatral, doutor em Artes Cênicas pela USP-SP (2000), com estudos sobre
direção teatral e sonoplastia. Professor nos cursos de graduação e pós-graduação da Escola de
Belas Artes da UFMG, na área de Artes Cênicas. Fonte:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.jsp?id=P68 7359 em 15 maio 2010.
15
Entre 24 de maio e 06 de junho de 2010 também realizei pesquisas de
campo. Neste período realizei coleta de material teórico sobre repertório sonoro
na cena teatral em bibliotecas de universidades e instituições públicas de São
Paulo e Rio de Janeiro, especificamente na PUC-SP, UNESP, Centro Cultural
São Paulo e UNIRIO. Houve a tentativa de pesquisar nas bibliotecas
universitárias da ECA-USP e UnB-Brasília, porém ambas encontravam-se em
greve.
Para a escrita desta dissertação divido o trabalho em três capítulos. No
primeiro capítulo elaboro a questão teórica do tema repertório sonoro na cena
teatral. Discuto a importância e as funções do repertório sonoro na cena teatral,
bem como o trabalho do compositor do repertório sonoro e as possíveis etapas do
seu processo de composição. Neste capítulo abordo ainda as possibilidades do
repertório sonoro na cena, focando tanto o sentido estético quanto técnico dessas
possibilidades. Em um subitem desse capítulo, descrevo, como exemplificação, o
processo de construção do repertório sonoro que compus para o espetáculo
Retrato de Augustine (2010).
No segundo capítulo desenvolvo o conceito de “dramaturgia sonora”, a
partir dos trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi. Analiso o termo “dramaturgia
sonora” com relação ao contexto de trabalho do grupo em questão. Aqui exponho
a história do grupo, os processos de criação de seus espetáculos, o trabalho da
diretora Leo Sykes e dos atores de seu elenco e, por fim, a construção e
utilização dos instrumentos musicais do grupo em suas montagens.
No terceiro capítulo desenvolvo uma análise detalhada dos três
espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi selecionados para este trabalho: O Cano
(1998), O Ovo (2003) e A Devolução Industrial (2010). Nesta análise procuro
apontar as possibilidades de exploração e confecção do som na cena a partir dos
focos de análise levantados no primeiro capítulo, e relacionar os três espetáculos
ao termo “dramaturgia sonora”, trabalhado no segundo capítulo.
Dentre diversas funções do som na cena teatral, discuto nesta dissertação
que, quando o repertório sonoro é responsável pela condução da dramaturgia da
cena, várias funções e possibilidades sonoras são exploradas para a cena teatral.
E para apoiar essa afirmativa é que desenvolvo os estudos a respeito dos
espetáculos O Cano, O Ovo e A Devolução Industrial do Circo Teatro Udi Grudi,
16
uma vez que a elaboração do repertório sonoro como condutor da dramaturgia da
cena é uma das principais características presentes nos trabalhos deste grupo.
O ato de pesquisar a respeito do repertório sonoro da cena teatral é
relevante pela carência de publicações e bibliografias no Brasil sobre este
assunto. Muitas vezes, o compositor de repertório sonoro encontra-se sem
materiais que possam servir como apoio e base de seu trabalho. São inúmeras as
possibilidades de exploração e criação do repertório sonoro em um espetáculo
cênico, e quanto maior o acesso do compositor ao material teórico que contribua
com sua prática, maior será a diversidade de sua experimentação. Como
compositora de repertório sonoro para a cena teatral deparo-me com a
necessidade de estudar as teorias sobre o tema. Dada a escassez de estudos
sobre o som e a cena, espero que esta dissertação contribua não apenas com o
trabalho prático de compositores de repertório sonoro para a cena teatral, como
estimule pesquisadores a produzirem outros materiais teóricos a respeito deste
tema.
17
CAPÍTULO 1 – UM POUCO DE TEORIA PARA OUVIR/VER MELHOR O SOM
DA CENA
A arte, independente de sua vertente, pode atingir seu público por diversas
direções, provocar variadas emoções por meio de qualquer um dos cinco
sentidos. Essa dissertação, produzida no âmbito da pesquisa artística teatral, foca
na questão sonora e o que esta vertente é capaz de oferecer. Para o conteúdo
deste primeiro capítulo desenvolvo a questão do repertório sonoro da cena teatral
como conceito, funções e possibilidades de sua criação. Neste capítulo
estabeleço um arcabouço de pressupostos teóricos e reflexivos que são
fundamentais para a percepção e articulação de meu objeto de estudo, o som e a
cena teatral. Observo, portanto, que a estrutura teórica aqui desenvolvida é
subsidiária para melhor explanação de meu objetivo central de análise, qual seja,
o estudo da dramaturgia sonora nos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi.
Num primeiro momento desenvolvo o tema em contexto com os demais
elementos cênicos de uma montagem teatral e o diálogo que esses elementos
podem estabelecer entre si. Em seguida discuto a importância que o repertório
sonoro pode ter em meio à cena teatral. Com o objetivo de esclarecer a respeito
do conteúdo do elemento sonoro, sequencio a dissertação apontando os formatos
sonoros que este elemento compõe. Proponho em seguida o apanhado de
algumas possibilidades sonoras para a cena, assim como funções e
expressividades que o som pode estabelecer quando se coloca em meio à
encenação teatral. A questão do compositor do repertório sonoro e seus recursos
técnicos também é um tema que discuto neste capítulo e, para finalizá-lo,
desenvolvo um relato a respeito do processo de criação do repertório sonoro do
espetáculo Retrato de Augustine, do qual fui compositora.
18
1.1 CONCEITUANDO REGISTROS E FRAGMENTOS SONOROS
19
Quando nos colocamos em lugares ainda não vivenciados a nossa audição
parece estar mais atenta para perceber o registro sonoro desse novo lugar,
ampliando desse modo o nosso repertório sonoro. O músico experimental
Giuliano Obici, em seu livro intitulado Condição da escuta (2008), discute a
questão do registro sonoro como o som enquanto um objeto externo que, a partir
do momento que estabelecemos contato, ele se instaura em nossa consciência.
“Quando ouvimos um som ‘externo’, ele se faz ‘interno’, existindo em nossa
consciência, a partir de quando o percebemos. Ele existe simultaneamente fora e
dentro de nossa consciência” (Obici, 2008, p.28). Nessa colocação o autor propõe
uma incorporação do som, unindo o mundo externo ao interno.
A cena teatral, por sua vez, é sempre um novo lugar para o público e cada
espetáculo possui seus registros sonoros. Esses registros são estudados,
concebidos e colocados em cena como fragmentos sonoros, sejam esses
fragmentos música, paisagem sonora ou efeitos sonoros, sejam eles ao vivo ou
por recurso de aparelhagem eletrônica. Essa junção de registros e fragmentos
sonoros é que formam o repertório sonoro da cena. Portanto, assim como nós
temos o repertório sonoro da nossa vida, a obra cênica possui o repertório sonoro
de sua existência. Este repertório é constituído pelos registros sonoros que foram
atribuídos e dedicados a ele desde a sua concepção (processo), passando pelo
seu “nascimento” (estréia) e aquisição de novos registros (manutenção do
elemento sonoro no espetáculo enquanto ele existir). Esses registros são
construídos, aglomerados (no caso da junção e sobreposição de registros na
mesma faixa) e organizados em fragmentos sonoros. Porém, esses fragmentos
não têm padrão de tempo de duração e tampouco tem a obrigação de serem
executados um de cada vez. Existe a possibilidade de executar um fragmento
sonoro em formato de música sendo apresentada por músicos em cena, sobre
outro fragmento sonoro no formato de “paisagem sonora” (Schafer, 2001),
transmitido por aparelhagem eletrônica, ou ainda ambos executados sobre a voz
do ator numa mesma cena. Assim, como não ouvimos um som em cada momento
do nosso dia, não sabemos qual fragmento sonoro desse nosso dia pode durar
segundos (uma buzina de carro), minutos (a música que toca na rádio), ou horas
(uma chuva que dura o dia inteiro). Podemos ouvir todos eles em momentos
distintos, ou num mesmo momento. Neste segundo caso podemos ainda
20
direcionar nosso foco de atenção para apenas um desses sons, tornando os
demais secundários, ou ainda ouvir a todos sem atender a um som específico e
sentirmos certo desconforto auditivo. É dessa maneira, sem muitas ordens a
serem respeitadas, que se forma o repertório sonoro da cena, uma série de
registros, organizados e divididos em fragmentos, em que o seu todo forma o
repertório sonoro da cena teatral.
7
Utilizo o termo “elemento cênico” nesta dissertação como parte ou ferramenta cênica que
compõe a obra teatral. Optei pela utilização do termo a partir da definição da palavra “elemento”
que consiste em: “Cada uma das partes integrantes e fundamentais de uma coisa.” Fonte:
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=elemento.
Acesso: 15 nov 2010. Ou ainda: “s.m. Cada objeto, cada coisa que concorre com outras para a
formação de um todo: os elementos de uma obra”. Fonte:
http://www.dicionariodoaurelio.com/Elemento. Acesso: 15 nov 2010.
21
Outra característica que podemos visualizar com relação à comunicação
entre os elementos cênicos é a sua conexão, bem como os pontos onde eles se
cruzam e se apóiam. Um elemento cênico pode tanto indicar a inserção de outro
elemento na cena, como também, com relação ao seu propósito, pode reforçar ou
contrapor o que o outro elemento pretende comunicar. No espetáculo Retrado de
Augustine8, por exemplo – que estreou em 2010 em Florianópolis / SC –, do qual
compus o repertório sonoro, a primeira imagem do espetáculo (após a projeção e
música de abertura) corresponde a uma imagem de um olho de um homem
projetada num grande tecido que atravessa o palco numa linha horizontal. O início
da projeção dessa imagem indica a mudança do fragmento sonoro de abertura
para o fragmento da primeira cena, a música escolhida para essa projeção reforça
o propósito da imagem. Este fragmento sonoro, por sua vez indica a intensidade
gradativa do acionamento do foco de luz direcionado ao palco. A saída da
projeção e do som em fade out indica a primeira ação do ator, que corresponde
num estalar de dedos para avisar que neste momento estará tirando um retrato,
junto com o dizer da palavra “Agora!”. Este gesto de estalar os dedos indica ao
iluminador para fazer com que o refletor pisque em forte intensidade,
simbolizando o flash de sua câmera fotográfica, fazendo assim com que o recurso
da iluminação não apenas reforce a contextualização da cena como também
complemente a ação do ator.
O exemplo acima permite perceber o cruzamento entre os elementos
cênicos a partir da atenção de um integrante da equipe com relação aos demais
integrantes, para saber o exato momento da inserção de sua criação na obra.
Levando em consideração que o teatro propõe a possibilidade de aguçar
os cinco sentidos do espectador, dependendo da sua proposta, direciono a
atenção neste momento ao estímulo dos dois sentidos que o púbico
primordialmente experencia: a visão e a audição. Em uma montagem cênica a
fusão entre som e imagem, quando bem planejados e executados, sugere infinitas
combinações e, consequentemente, diversas informações para quem a presencia.
Há uma estreita relação entre o que se vê e o que se ouve, como se não
8
Retrato de Augustine é um espetáculo teatral, vencedor do prêmio FUNART Mirian Muniz / 2008,
sob direção de Brígida Miranda que estreou em abril de 2010 em Florianópolis / SC. A dramaturgia
corresponde à tradução do texto dramático Mesmerized (1990) de Peta Tait e Matra Robertson,
autoras australianas.
22
houvesse possibilidade de separar um do outro. O pesquisador teatral Roberto
Gill Camargo afirma haver uma dependência entre som e imagem num
espetáculo cênico: “Essa inter-relação entre o que se vê e o que se ouve
estabelece no palco um tal jogo de dependência, que é quase impossível falar de
um elemento isoladamente, sem citar o outro” (2001, p. 55). O autor reflete
também sobre a sustentação que um elemento possibilita oferecer ao outro.
23
camuflado em meio à narrativa do espetáculo. Porém, em seguida, Tragtenberg
atenta que o repertório sonoro inserido desta maneira não possibilita ao
espectador a oportunidade de se colocar com uma postura crítica em relação ao
que ele vê, a partir do que ouve. Tragtenberg aponta a superficialidade do
elemento sonoro quando este contribui apenas com o fluxo narrativo do
espetáculo, desperdiçando assim, a oportunidade de se mostrar autônomo e
contrastante na cena.
9
O termo “dramaturgia” nesta dissertação é pautado a partir da teoria de Patrice Pavis. Em sua
obra Dicionário de Teatro (1999, p. 114), o autor define o verbete “dramaturgia” como algo que
deixou de ser o estudo da composição e representação de um texto dramático, e sim amplia o
termo como a concepção da obra teatral como um todo. A respeito dessa afirmativa o autor
discute: “A dramaturgia, no seu sentido mais recente, tende portanto a ultrapassar o âmbito de um
estudo do texto dramático para englobar texto e realização cênica”.
24
com relação a determinado elemento cênico. Dessa maneira o elemento sonoro
apresenta-se disponível a dialogar com a iluminação, espaço, atuação do elenco,
dentre outras possibilidades cênicas. Com relação ao elemento sonoro e sua
possibilidade de comunicação, Souza (1999, p. 78) reflete sobre como é "[...]
necessário que a trilha sonora planejada seja fruto de uma pesquisa significativa
para a compreensão total do espetáculo, é preciso que ela esteja integrada à
peça de acordo com os propósitos estéticos da concepção de encenação da
mesma.”
A partir do estudo geral da concepção da encenação, torna-se possível a
visualização de como – enquanto formato ao vivo, ou gravado – e quando –
enquanto inserção na cena – o som irá interagir com os demais elementos de
cena e, acima de tudo, qual o propósito dessa interação. Tragtenberg discute a
respeito da interação do repertório sonoro na cena e os trajetos que este
elemento pode explorar.
Nessas palavras podemos perceber que autor sugere uma atenção a todas
as direções pelas quais o repertório sonoro, definido pelo autor neste fragmento
como sonoplastia, tem a possibilidade de interagir na cena. O que não significa,
evidentemente, que o compositor do repertório sonoro encare essa atenção como
uma missão de, a qualquer momento, colocar um fragmento sonoro na cena,
correndo assim, o risco de super-nutrir o espetáculo de músicas e efeitos sonoros
dos quais poderia tê-los deixado de lado. Por vezes optar pelo som que a própria
cena produz é uma escolha sensata, uma vez que também faz parte do repertório
sonoro a produção destes sons da cena – a voz do ator representando o texto
dramático, o som dos passos dos sapatos no chão de madeira, o som produzido
no manuseio do cenário e objetos de cena, todos estes, por exemplo, também
compõem o repertório sonoro.
A partir do momento em que o compositor do repertório sonoro identifica os
demais elementos da montagem cênica e reconhece seus significados, se dispõe
25
a ele a oportunidade de explorar os sons que irão interagir com os demais
elementos de cena. Essa interação, quando colocada em cena, poderá
desencadear ao som, mesmo a um simples efeito sonoro, uma série de
interpretações de seu significado em meio ao contexto que se insere. Um ruído,
uma música, ou um instante de silêncio, podem representar uma informação
bastante significativa para o espectador. Essa informação pode interferir na
compreensão total do espetáculo para esse espectador.
26
som limpo, compassado e suave, ou de uma compreensão auditiva codificada do
espectador, como as palavras. O som pode apresentar um aspecto sujo,
distorcido, sobreposto de ruídos, descompassado, com intensidade muito forte ou
muito fraca de volume; contudo, independente da forma de como o som se
apresenta, sua existência, geralmente, aspira por um propósito perante a
narrativa da cena. Tragtenberg discute o tema referindo-se a essa função como
“transparência” sonora na cena.
27
é obrigado a respeitar. O importante mesmo é que o elemento sonoro contribua e
faça diferença no desempenho dramatúrgico da cena. Partindo deste fato, fica
clara a necessidade de conhecimento e experimentação das diferentes e
inúmeras possibilidades que os fragmentos de um repertório sonoro podem
propor à cena.
28
harmonizada e/ou, ao mesmo tempo, a mais bem acabada
representação ideológica (simulação interessada) de que ela
não tem conflitos (1989, p 33 e 34).
29
espaço, que parece impossível nos depararmos num momento de silêncio
absoluto. O músico John Cage (1912-1992), vivenciou a experiência, nos Estados
Unidos em 1973, de se fechar em uma cabine à prova de qualquer som com o
objetivo de perceber a legítima presença do silêncio, porém neste espaço, sem
nenhuma interferência sonora externa, pode ouvir o som grave de sua pulsação
sanguínea e o agudo de seu sistema nervoso.
Na reflexão de Wisnik sobre som e silêncio, o autor comenta que um
encontra-se envolto no outro. Além de nos oferecer um raciocínio sobre a
estrutura espacial que interfere nessas duas qualidades sonoras, se pensarmos
que só existe silêncio porque existe som, logo podemos concluir que o silêncio é
tanto uma qualidade do evento sonoro quanto o próprio som.
30
apresenta de forma desagradável aos ouvidos, pode feri-los se for muito forte a
intensidade de seu volume, ou muito aguda a tonalidade que carrega.
A reflexão de Schafer (1991, p. 68 e 69) com relação ao ruído, nos mostra
o seguinte:
Todos nós sabemos o quanto um ruído pode ser indesejável aos ouvidos,
porém se o analisarmos inserido num contexto artístico, especificamente
contextualizado como um fragmento de um repertório sonoro, ele pode se tornar
uma comunicação muito útil à cena. No espetáculo Retrato de Augustine, como
exemplo, compus um fragmento sonoro para uma das cenas em que todo ele foi
registrado e organizado a partir de uma série de ruídos. Este fragmento sonoro
serve para dialogar com a personagem central da narrativa que vivencia
momentos de ataques de surtos histéricos. Os ruídos, nessa cena, serviram como
materialização do que esta personagem ouve nos momentos de seus ataques.
Um fragmento sonoro elaborado para uma cena teatral composto por uma
série de ruídos e de sons como efeitos sonoros sugere, geralmente, a noção de
uma “paisagem sonora”. Murray Schafer desenvolve uma série de reflexões e
considerações extremamente relevantes sobre a noção de paisagem sonora, e
afirma ser difícil definir este conceito, uma vez que se trata de um material sonoro
complexo e subjetivo. É possível, ao acompanhar as obras de Schafer, concluir
que paisagem sonora refere-se aos registros sonoros que permeiam o nosso
31
cotidiano. O som que acompanha o espaço, ou o som que surge do espaço e nele
se estabelece. Porém, esses são pontos que vão além: descrever, registrar,
denominar e reproduzir uma paisagem sonora são ações bastante complexas de
serem realizadas. Schafer comenta sobre essa complexidade ao discutir o termo
em suas teorias.
32
década, ou qual foi o crescimento da população, mas não
sabemos dizer em quantos decibéis o nível de ruído
ambiental pode ter aumentado em um período de tempo
comparável. Mais que isso: os sons podem ser alterados, ou
desaparecer e merecer apenas parcos comentários, mesmo
por parte do mais sensível dos historiadores. Assim, embora
possamos utilizar modernas técnicas de gravação e análise
no estudo das paisagens sonoras contemporâneas, para
fundamentar as perspectivas históricas teremos que nos
voltar para o relato de testemunhas auditivas da literatura e
da mitologia, bem como aos registros antropológicos e
históricos (Schafer, 2001, p26).
33
[Paisagem auditiva trata-se] não apenas de reconstruir um
meio ambiente ou uma atmosfera característica, mas
sobretudo, de revelar a relação, o acordo ou a discordância,
que liga a personagem ao que está em torno dela. Numa
carta a Tchecov, datada de 10 de Setembro de 1898,
Stanislavski explica que está utilizando em A Gaivota o
coaxar dos sapos "exclusivamente para dar a impressão de
um silêncio completo" (Roubine, 1982, p. 134).
34
1.3.2 A voz – o som e a palavra
10
Passarei a referir-me a esse formato sonoro (som) como efeito sonoro a partir desse momento,
para auxiliar na compreensão quando contextualizá-lo no tema repertório sonoro da cena teatral.
35
1.3.3 As qualidades do elemento sonoro
36
como pensar o elemento sonoro em cena, quais são suas possibilidades e de que
maneira podem ser explorados. Algumas sugestões técnicas e espaciais de como
esses fragmentos sonoros podem ser trabalhados e inseridos em cena serão
analisadas a seguir, ao serem discutidas algumas funções e possibilidades de
repertório sonoro da cena teatral. E na sequência será exibido um relatório
detalhado do processo de composição do repertório sonoro da peça Retrato de
Augustine, como uma sugestão e possibilidade de construção de repertório
sonoro da cena teatral.
37
também sugerir uma reflexão crítica do espectador diante a dramaturgia que
presencia. Se o objetivo é provocar alguma emoção, o elemento sonoro
geralmente está de acordo com as ações dos atores e com o texto que estes
estão representando. Em Retrato de Augustine, por exemplo, quando a
personagem Bernadete entra em cena chorando querendo compartilhar sua dor
com a personagem Augustine, inseri como fragmento sonoro um melancólico e
agudo som de violino, a fim de reforçar a emoção de tristeza trazida pela
personagem Bernadete. Quando o objetivo do fragmento sonoro é contrastar com
a cena, geralmente há uma quebra entre o ritmo do fragmento sonoro com
relação ao ritmo da cena, ou a letra dos versos da canção contrapõe o texto
falado pelos atores – se o fragmento sonoro, neste caso, for uma música que
contem na sua estrutura versos cantados.
O encenador alemão, Bertolt Brecht (1898-1956), demonstrou profunda
preocupação crítica nos versos cantados em canções relacionadas às cenas que
apresentava em suas montagens cênicas. A partir da parceria com Kurt Weill
(1900-1950), músico que compôs grande parte das canções das montagens de
Brecht, o encenador dedicou às suas músicas a responsabilidade de propor ao
público uma leitura crítica diante à cena assistida. Brecht intitulou as canções de
suas encenações como “Musica Gestus” (1967)11, referenciando, a partir deste
termo, o caráter crítico-político das músicas com relação à cena de suas
encenações. As músicas compostas por Weill para a obra A ópera dos três
vinténs (1928), são representantes de destaque da “Música Gestus”. Suas
estruturas foram construídas a partir de músicas de caráter popular12, o que
proporcionou a elas tamanha autonomia ao ponto de serem reconhecidas mesmo
fora do contexto da obra.
Um exemplo contemporâneo que se assemelha à “Música Gestus” de
Brecht, pode ser presenciado no espetáculo Vinegar Tom, criado na disciplina de
Montagem Teatral I e II da UDESC em 2007 e 2008 – também sob a direção de
Brígida Miranda, que na época era professora da disciplina. O repertório sonoro
11
No livro Teatro Dialético: ensaios, edição de 1967, Brecht dedica um capítulo desta obra a
refletir sobre a música em suas encenações. Neste capítulo ele explica o termo “Música Gestus”,
referindo-se à música da cena como uma das ferramentas de reflexão do conteúdo te seu teatro
político.
12
Estilo musical denominado como songs (1967, p.83): músicas populares compostas para
apresentações de cabaré. Esta estética musical se tornou predominante nas obras de Brecht.
38
composto por Renata Swoboda e Claudia Mussi13 foi construído sobre duas
bases, paisagem sonora e músicas executadas por uma banda de mulheres em
cena. A fábula do texto de Caryl Churchill, de 1976, “conta a história da caça às
bruxas na Essex (Inglaterra) do século XVII sob uma ótica feminista” (Miranda &
Mussi, 2008, p2). As músicas tocadas pela banda tinham o objetivo de se
contrapor a dramaturgia da cena. Na montagem havia personagens femininas
que, em cena, sofriam vários tipos de discriminação colocada de maneira
cotidiana. O contraponto crítico era sugerido pela banda, a partir de uma estética
musical inspirada no contexto brechtiniano, porém contextualizada num formato
atual no ritmo de Rock. As sete músicas tocadas em Vinegar Tom sugeriam uma
reflexão sobre os problemas enfrentados pelas mulheres no período do texto,
possibilitando relacionar com os mesmos problemas enfrentados pelas mulheres
no século XX, sendo ainda possível percebê-los em vários aspectos na
atualidade.
O espetáculo Vinegar Tom é um dos diversos exemplos de como o
elemento sonoro pode interferir de maneira qualitativa numa montagem cênica.
Seja essa contribuição de caráter emocional, crítica reflexiva, que dialogue a favor
ou contra a cena representada pelos atores, o importante é que ele tenha uma
postura ímpar no espetáculo e que transmita algo que somente o elemento
sonoro pode representar.
O elemento sonoro na cena teatral por vezes pode ter o poder de
intensificar tensões no público que a palavra e seus significados nem sempre
atingem com a mesma precisão. Por meio desse pensamento é possível refletir
sobre uma primordial função do repertório sonoro da cena teatral: transmitir ao
espectador uma compreensão sensorial e/ou reflexiva na cena, de maneira em
que apenas o formato sonoro possa comunicar. A música, como um dos formatos
que compõe o elemento sonoro, por exemplo, carrega grande poder de sugestão,
de variação emocional e sensorial em que a ouve. Este efeito depende das
variações do ritmo e do andamento no qual a música desempenha durante sua
execução. É comum a música de orquestra, por exemplo, possuir diferentes
andamentos numa mesma obra, isso sugere, muitas vezes, diferentes maneiras
13
Renata Swoboda foi graduada pelo curso de Música da UDESC em 2009 e Claudia Mussi
obteve graduação em Artes Cênicas pela UDESC no mesmo ano.
39
de recebê-la, possibilitando provocar emoções e sensações distintas, variadas
conforme o andamento da música.
Na cena teatral, o elemento sonoro pode adotar a função de provocar
diferentes emoções e sensações no público. Uma vez que o repertório sonoro não
tem a obrigação de manter linearidade em seu estilo e andamento, a quebra
dessas características pode ocorrer de um instante a outro durante uma cena,
permitindo assim aguçar a experiência de diversas sensações e emoções no
espectador. Sobre este assunto, Souza comenta: “dentre todas as características
[da cena] responsáveis pelos vários reflexos emocionais e psicológicos, o jogo de
tensões musicais parece ser o aspecto que mais se sobressai nas relações da
música sem letra com a cena teatral.” (Souza, 1999, p.75)
Outra função bastante característica e eficaz que o repertório sonoro pode
exercer na cena é a possibilidade de substituir ou prolongar algumas referências
visuais por fragmentos sonoros. Contextualizar localizações cenográficas, inserir
vozes de uma multidão de pessoas sem que estas estejam necessariamente
presentes, são algumas das situações que podem ser resolvidas por meio do
elemento sonoro. Camargo comenta como o elemento sonoro pode substituir, em
alguns momentos, determinados elementos visuais.
40
desses espaços pode garantir a boa execução do elemento sonoro da montagem.
Por vezes, optar por estruturas sonoras simples podem render soluções bastante
apropriadas. Pequenos detalhes técnicos sonoros são capazes de produzir efeitos
precisos para a compreensão da cena.
Variações em dimensões e profundidades sonoras podem ser planejadas a
partir do posicionamento das caixas de som, assim como na alternação da
potência do volume dos fragmentos sonoros. Podemos perceber este efeito
sonoro em uma cena, por exemplo, em que o ator representa a ação de estar
caindo em um precipício, onde o público não consegue ver o chão, e este emite
um longo grito que, gradativamente perde seu volume, proporcionando a
sensação de grande profundidade da queda. Esse tipo de efeito também pode ser
explorado por meio de aparelhagem sonora eletrônica e, além do volume, a
variação gradativa da tonalidade sonora pode proporcionar sensação semelhante.
Como o exemplo de um ator que acompanha com o olhar o lançamento de um
míssil desde sua origem até a explosão do alvo, porém toda a trajetória deste
objeto é representada sonoramente. O som do lançamento começa com uma
tonalidade bastante aguda e gradativamente fica mais grave até o apocalíptico
som da explosão.
Além da exploração sonora a fim de variar diversos pontos referenciais no
espaço, assim como a experimentação de diferentes dimensões e profundidades
do som na cena, o elemento sonoro também pode propor a variação da dimensão
do tempo do espetáculo. Essa variação sugere um ritmo temporal diferente do
cronológico. Um fragmento sonoro em formato de música, com um andamento
muito lento, composto por timbres graves e prolongados, podem sugerir a
sensação de que a cena durou mais tempo do que o cronológico em que esta foi
executada. Assim como a sucessão de fragmentos sonoros que quebram o ritmo
frequentemente, geralmente executados num andamento acelerado, alternando
trechos de músicas com efeitos sonoros, essa composição sonora pode sugerir
uma sensação de que o tempo passou mais rápido do que o tempo cronológico
real.
Diversas são as possibilidades de variar as dimensões espaciais e
temporais sugeridas pelo elemento sonoro. E não necessariamente essas
estruturas podem ser exploradas separadamente, o elemento sonoro permite
41
mover espaço e tempo num mesmo fragmento. Isso depende como este
fragmento é estudado e como ele será recebido e processado por meio da
compreensão do espectador. Souza afirma que a música é um formato sonoro
bastante eficaz para produzir o efeito de variação da dimensão espacial e
temporal, quando essa está interligada à proposta dramatúrgica da cena.
42
1.4.1 A expressividade do som e suas funções na cena14
14
Neste item proponho levantar vinte e quatro formas (de a a z) de como o som pode se expressar
na cena, a partir da teoria de Camargo, contida em sua obra Som e cena. O conteúdo na íntegra
que sustenta este item encontra-se da página 101 a 127 da obra do autor. Evitei inserir o número
das páginas citadas em meio ao desenvolvimento dos tópicos pelo simples motivo de não tornar a
leitura cansativa. Porém, permanecerei com o artifício das aspas ao citar o autor para diferenciar
suas palavras das minhas. A opção pelo leve recuo do parágrafo, assim como o espaçamento
entre linhas dos tópicos como simples, também tem o objetivo de facilitar a leitura do conteúdo.
43
consequentemente, procura à obra, uma vez que a tenho como primordial em
acervos de bibliotecas universitárias. Outro motivo que me induziu a levantar este
estudo, é o simples fato deste fragmento do tema ser indispensável em meio ao
conteúdo desta dissertação. De uma maneira ou outra iria realizar apontamentos
de características sonoras expressivas na cena, sabendo que em determinado
momento a própria pesquisa exigiria isto. Acredito que a forma escolhida de
confeccionar este fragmento é a mais honesta, acima de tudo com o autor do
tema em questão, e com o estudo que desenvolvo, dedicando a este o conteúdo
de um fragmento necessário para a dissertação.
Camargo inicia este capítulo justificando que “o som não é apenas um
elemento que traz informações sobre tempo, espaço e ação, mas é também um
elemento expressivo” (2001, p.101). Em seguida o autor reflete sobre os motivos
pelos quais esses sons podem carregar essa expressividade.
44
c. “A expressão do referente”: trata-se de uma releitura sonora a partir de
uma referência sonora concreta. Camargo exemplifica o som de um
trem. Afirma que há vários registros sonoros que o represente tal qual
como ele é, porém esses registros sonoros não são tão criativos como a
recriação desse som. Utilizando, por exemplo, instrumentos musicais,
criando um som que o represente na sua estrutura característica, porém
sem ilustrá-lo literalmente;
45
envolvimento da música e a rapidez com que ela expressa emoções,
sentimentos, estados e climas”;
s. “Som para criar clima”: geralmente é utilizado música para causar tal
efeito. É quando o som estende-se em seu formato, sem bruscas
rupturas, a fim de auxiliar na permanência da atmosfera criada na cena;
46
chama a atenção que a música com objetivo de causar emoção pode às
vezes, se sobressair à cena, transformando-a em um melodrama, ou
até mesmo em uma paródia, muito eficaz se esse for o objetivo;
47
1.5 O COMPOSITOR E OS RECURSOS TÉCNICOS
Nem sempre uma equipe de uma montagem teatral conta com a presença
de um membro que cuida, do início ao fim do processo, do elemento sonoro que
será utilizado em cena. Há ocasiões em que é comum o diretor se dedicar
primeiramente em criar parte das cenas do espetáculo e, somente depois, solicitar
um músico ou um sonoplasta para sobrepor o elemento sonoro nas cenas. Esta
situação pode se originar de diversos e relevantes motivos e ocasiões, pelo
simples desconhecimento da área. A impossibilidade por questões financeiras de
contratar um membro da equipe destinado a trabalhar exclusivamente com o
elemento sonoro durante todo o processo da montagem; a falta de profissionais
qualificados que trabalham especificamente com a construção de repertório
sonoro para cena teatral; a opinião do diretor ou da equipe em acreditar que não
há a necessidade de o elemento sonoro ser desenvolvido durante todo o
processo de sua montagem; ou até mesmo a simples opção da direção ou da
equipe em favorecer o desenvolvimento de determinados elementos cênicos, sem
dedicar a mesma atenção ao elemento sonoro e a demais elementos cênicos. Em
montagens realizadas por grupos teatrais – em que os membros da equipe são
sempre os mesmos integrantes que realizam, geralmente, um repertório de
espetáculos – é comum que um desses integrantes destine seu trabalho voltado
ao elemento sonoro desde o início do processo, mesmo se este integrante seja
responsável por outra função em outro trabalho do grupo.
Particularmente, acredito que o trabalho total da montagem é valorizado
quando o integrante responsável pelo som participa desde o início do processo do
espetáculo junto de toda a equipe, e de todos os níveis de procedimento. Assim
ele pode reconhecer desde o início todas as indicações cênicas que oferecem
referências e aberturas para o elemento sonoro. Ao final do processo, o
compositor, como também a equipe da montagem, possivelmente percebem que
o elemento sonoro se inter-relacionou e dialogou com os demais, e não apenas
foi encaixado em meio a eles.
Um compositor de repertório sonoro não necessariamente tem de ser um
músico. Afinal, são diversas as possibilidades de como o formato do som pode
ser inserido na cena, sem ser preciso compor uma música em si. O som não é
48
propriedade da música, logo, nem dos músicos. O som em si permite-se ser
apropriado por quem o aprecia. Independente do fator que o contextualiza, aquele
que ouve um determinado som se apropria dele, voluntaria ou involuntariamente.
A partir desse fato, qualquer pessoa pode desenvolver sensibilidade sonora, se
por isso optar, sem, necessariamente, tornar-se um músico. Voltado ao âmbito
teatral, o compositor de repertório sonoro dedica sua sensibilidade auditiva, junto
com os estudos a respeito de seu trabalho, à criação do elemento sonoro para a
cena.
Os estudos a respeito da criação do repertório sonoro da cena giram em
torno de alguns pólos inerentes: da própria prática desta atividade, e todos os
pontos desenvolvidos dentro dela; do conhecimento artístico teatral, mesmo que
uma base teórica ou prática a respeito desta vertente artística; do conhecimento
do elemento sonoro em si a partir das teorias elaboradas a seu respeito; e do
conhecimento técnico dos equipamentos e espaços dos quais se confecciona um
repertório sonoro, e se realiza a execução deste em uma apresentação cênica.
Com relação a estes pontos mencionados, Tragtenberg sugere que: “Na música
de cena, o conceito técnico e estético devem conceber e participar de uma
mesma solução encontrada, promovendo assim, uma maior visibilidade das
intenções objetivas” (2008, p.34). Nada adianta se o compositor criar fragmentos
sonoros belíssimos e não tiver uma noção técnica clara de como aproveitar da
melhor maneira sua criação no espaço cênico.
O compositor do repertório sonoro da cena depara-se com alguns
caminhos de possibilidades para a elaboração de sua criação. Souza nos indica
claramente esses caminhos:
49
escolhas pelos meios de criação do repertório sonoro, assim como o conteúdo
que será inserido neste, poderão oferecer à cena diferentes leituras a respeito
dela. Uma vez que cada registro sonoro carrega consigo a possibilidade de
determinada, ou, determinadas interpretações.
Quando a escolha for trabalhar com ruídos e efeitos sonoros ao vivo, ou
por meio de aparelhagem eletrônica, por exemplo, este recurso pode ser bastante
eficaz, assim como podem também, ao mesmo tempo, soar de maneira confusa
ao espectador. Ruídos e efeitos sonoros sugerem, geralmente, uma transmissão
instantânea e objetiva da ideia de representação da cena, por geralmente estar
apoiando seu aspecto ficcional, como refletimos anteriormente com as teorias de
Camargo. Porém, se a intenção for criar uma paisagem sonora por meio desse
recurso para uma cena realista, por exemplo, a capitação do som por aparelhos
de gravação sonora – quando for o caso de transmissão por aparelhagem
eletrônica na cena – nem sempre consegue atingir a exata informação desejada.
Neste caso talvez seja válido optar pela sugestão de Camargo citada
anteriormente, de que a releitura e recriação de efeitos sonoros que representam
sons reais podem ser mais interessantes em cena do que a sonoridade original
desses efeitos.
No caso da música ao vivo na cena, comumente a presenciamos de duas
formas: quando há a presença dos músicos, na grande maioria das vezes visíveis
no palco ou em qualquer outro espaço da arquitetura cênica, ou quando a música
é executada pelos próprios atores.
No primeiro caso, são propostos em cena dois focos distintos e, por vezes,
simultâneos. Tanto os músicos quanto os atores encontram-se no campo de visão
do público. A partir dessa situação o diretor, ou o responsável pela criação
artística do espetáculo, opta pela interação músicos-atores, ou dependendo da
proposta, não estabelece nenhuma relação entre eles.
Quando a música é executada pelos atores o ato da reprodução musical
está diretamente ligado com a partitura corporal dramática do ator. Souza analisa
esta proposta, acrescentando como a música pode influenciar na compreensão a
respeito da personagem.
50
[...] se o executante [da música] for um ator, [...] o significado
da relação executante-cena tenderá a se fundir, de alguma
maneira, compondo, assim, uma única realidade cênica.
Além disso tanto a execução quanto a música em si e o
instrumento tocado podem acrescentar informações à
personagem, como o tipo de temperamento, sua condição
sócio-cultural e seus sentimentos (Souza, 1999, p.99 e 100).
51
Durante o processo da criação cênica, o acompanhamento da construção
de cada elemento de cena indicará ao compositor sugestões e apontamentos a
respeito do conteúdo sonoro que ele desenvolverá em seu repertório. Cada som é
passível de revelar determinadas leituras de seu significado para quem a ouve. A
partir desse ponto, o compositor do repertório sonoro da cena pode voltar a
concepção de sua criação atento às leituras que cada instante sonoro pode
oferecer em meio ao contexto cênico. Pois, como foi analisado anteriormente, por
meio das teorias de Camargo, todo o som revelado em cena carrega em si o
propósito de sua existência.
52
1.6.1 Descrição da concepção do repertório sonoro do espetáculo Retrato
de Augustine
O Primeiro contato
53
conhecia o texto e minha atenção se voltava prioritariamente em assimilá-lo para
assim, posteriormente, pensar nos elementos sonoros que poderia inserir.
Divulgados os resultados do prêmio FUNARTE Mirian Muniz 2008, Fabiano
novamente entrou em contato informando a boa notícia e marcando uma nova
reunião com a equipe, que desta vez superava o número de vinte pessoas
envolvidas. Dentre informações burocráticas, também tivemos um novo contato
com o texto além da organização de um cronograma de ensaios que começaram
dias posteriores.
Como se trata de um elenco relativamente numeroso, além de haver
personagens que necessitaram de um maior tempo de preparação (como o caso
da personagem central, Augustine, interpretada pela atriz Juliana Riechel, que
está em cena praticamente todo o tempo), a direção estipulou núcleos de ensaio,
e ensaios gerais aconteciam esporadicamente durante o início do processo.
Minha primeira conversa com a diretora Brígida Miranda a respeito do repertório
sonoro do projeto ocorreu em meio essas primeiras semanas de ensaio. Brígida
expôs suas idéias sonoras e sua proposta se aproximou muito do que havia
pensado com relação à paisagem sonora do hospital. A diretora ainda colocou
idéias relacionadas às vozes e efeitos sobre elas como distorções, sobreposições
e demais explorações sonoras, efeitos sonoros como chuva e sons variados com
água e também a captação de uma voz masculina, específica, que ela ainda não
sabia de quem seria, mas que eu também pensasse em uma voz.
Além de todas essas referências, Brígida enfatizou uma referência sonora
que foi minha principal busca de pesquisa neste projeto: o som durante os
ataques histéricos de Augustine. A narrativa central do texto Mesmerized é
baseada em uma história real de uma adolescente, Augustine, que é internada no
Hospital La Salpêtrière por ter o diagnóstico de histeria, num período em que esta
doença estava começando a ser estudada por Dr. Charcot na França. Durante
seu período de internação Augustine teve um grande número de ataques
histéricos, alguns deles representados na peça. Brígida propôs para que eu
pensasse então, no som desses surtos partindo da audição de Augustine,
questionando como e quais os sons que esta menina ouvia durante seus ataques.
A partir daí, a diretora sugeriu que eu acompanhasse os ensaios de Juliana
juntamente com Kerrie Sinclair, que além de ministrar o treinamento corporal de
54
Juliana (junto com o ator e preparador físico Pedro Coimbra), coreografou as
partituras corporais da atriz que representam os ataques da personagem
Augustine.
55
Construí, inicialmente, três fragmentos para “os sons de surto” dos quais
um se encaixou perfeitamente com a partitura corporal da atriz e pouco tive que
mudar até a estréia, outro não se adequou com a partitura para qual havia
planejado, porém guardei o fragmento e o encaixei tempos depois em outra cena
e o terceiro fragmento foi descartado completamente, pois nele havia sons de
piano e a diretora achava que o som do piano não era adequado para se
relacionar com a personagem Augustine, pois, para ela, segundo suas memórias,
este som adquire um caráter elitista que a personagem não comporta. Achei
completamente coerente o argumento e descartei o fragmento.
Quando se trabalha com construção de repertório sonoro para teatro, dois
acontecimentos são muito comuns: o primeiro é coletar mais material do que será
colocado por fim na cena, o que implica em deixar guardado para outro momento
muito do que foi pesquisado. No caso de Retrato de Augustine foram construídos
mais de cinqüenta arquivos de áudio dentre gravações de vozes, captações de
ruídos, músicas e diversos experimentos, para resultar em dezoito faixas de
fragmentos sonoros. E o segundo é negociar com a direção o que tira e o que
permanece no repertório, geralmente decidido pelo argumento mais coerente com
relação à proposta do trabalho. Poucos foram os experimentos sonoros que
Brígida sugeriu modificar ou tirar do repertório, na maioria das vezes ela achava
adequado o que eu apresentava e quando ficava em dúvida eu colocava a minha
visão a respeito do fragmento sonoro de determinada cena. Se a diretora
considerasse coerente eu permanecia com o mesmo, porém se ela sugerisse
alguma modificação, a sugestão era acatada, afinal era ela quem estava
idealizando o projeto num todo, sabia melhor do que eu a respeito da harmonia
entre todos os elementos da cena.
Após horas de gravações, edições e uma série de experimentos e
adaptações para a cena, ao todo foram construídos sete fragmentos sonoros
relacionados aos momentos de surto da personagem Augustine, dentre eles
quatro que representavam os momentos de ataques histéricos da personagem.
56
Segunda base: A paisagem e a profundidade sonora
57
Para proporcionar a sensação de profundidade que a imagem da cena já
carregava, emitir esses sons das mesmas caixas de saídas dos demais
fragmentos seria insuficiente, a idéia então foi posicionar outras duas caixas de
som auxiliares no fundo do teatro.
Foi necessário também editar esta faixa sonora com um delicado jogo de
volume, não deixando que o som do lápis no papel fosse mais alto que as
rodinhas da maca, e tanto essas rodinhas quanto os passos, regular num volume
que começasse baixo, fossem aumentando o e terminasse baixo (efeito de fade in
e fade out) para sugerir a sensação de algo que vem chegando, se aproxima e vai
embora.
Com o volume da faixa da paisagem sonora bem distribuído no programa
do computador, o problema seguinte era resolver qual o volume ideal a ser
emitido pelas caixas de som auxiliares. Pelo fato delas estarem posicionadas ao
fundo do teatro, sem o suporte do tripé, pois o teatro não dispunha desse aparato,
é evidente que os espectadores que sentassem nas últimas fileiras ouviriam o
som da paisagem sonora mais alto que os espectadores das primeiras. Por esse
motivo tive de optar entre deixar o volume da faixa um pouco mais alto
possibilitando um excesso sonoro para os espectadores das últimas fileiras, mas
garantindo que os das primeiras pudessem ouvir, ou deixar o volume mais baixo,
sutil aos ouvidos dos espectadores das últimas fileiras, porém sendo quase certo
que os da primeira não escutariam este fragmento sonoro. Considerei coerente a
segunda opção, uma vez que se tratando de profundidade e realismo é possível
que pessoas num determinado espaço ouçam barulhos que outras não ouvem
dependendo da proximidade. Porém, sabia que este tipo de “problema” só
aconteceria em teatros maiores. A peça estreou no Teatro Álvaro de Carvalho, em
Florianópolis, um teatro relativamente grande (cerca de quatrocentos lugares),
onde me deparei com a situação de optar pelo volume do fragmento, porém os
outros dois teatros dessa primeira temporada eram menores (cem lugares
aproximadamente) e a audição da paisagem sonora contemplou todo o espaço.
58
Terceira base: As músicas
59
Atenta em respeitar o período do qual se transmite a narrativa da peça,
pesquisei autores e obras contemporâneas ou antecedentes a ela. De maneira
natural, também por corresponder muito bem à cena e até mesmo por maior
acessibilidade, acabei inserindo um número maior de músicas com base em
violino do que em violoncelo. Brígida, ensaio ou outro, sugeria “nesta cena eu
queria um cello”, e no ensaio seguinte lá estava eu sugerindo mais um som em
violino. Eu realmente acreditava que o som do violino estava fluindo perfeitamente
com a cena que, cogitava sim a ideia do cello, mas acabava acatando o violino. A
última música que selecionei, um ensaio antes da pré-estréia, foi uma cavernosa
e maravilhosa obra de Bach executada por apenas um violoncelo. A música
comporta o som de uma cena apresentada por meio de projeção da qual mostra a
personagem de Augustine poeticamente esfregando as costas de sua mãe
acomodada dentro de uma banheira. Ao mostrar esta música no ensaio, Brígida
se mostrou satisfeita com o que ouviu “lindo este cello, (pausa) eu não gosto de
violino!”. Naquele momento achei muito engraçada sua colocação e ao mesmo
tempo me senti muito bem em saber, mesmo que o som em si do violino não a
agradasse, ela respeitou meu trabalho, minha escolha e, percebendo a coerência
que o som do violino tem com as cenas, não interferiu no repertório sonoro por
uma questão de gosto pessoal.
O todo da obra
60
Há cenas em que a projeção indica o fragmento sonoro, que indica a
abertura do foco de luz, que indica o início das ações dos atores. Um trabalho
harmonioso e, mesmo sendo narrativamente centrado na personagem de
Augustine, cada elemento cênico, em algum momento, tem seu destaque, não
isolado e sim cadenciado.
Refletindo sobre este estudo sonoro percebo que foi um trabalho do qual
tive de estar sempre atenta a todos os elementos de cena, em especial a relação
do som com os atores e do som com as cenas de projeção. Na primeira era
necessário ficar atenta às ações dos atores, bem como o tempo de duração das
cenas, além de tentar sintonizar com o som a intenção (o “clima”) que a cena
propõe, por causa desse processo, geralmente o som era colocado em cena
depois da criação dos atores.
Com relação ao som e cenas de projeção o processo aconteceu na via
inversa, o elemento sonoro geralmente chegara antes do que as cenas de
projeção aos ensaios, porém no momento de sincronizar som e projeção alguns
ajustes sonoros foram realizados. Nestes casos, mesmo que as projeções
dialoguem com a personagem Augustine na cena, construí fragmentos sonoros
que correspondessem em primeiro plano às imagens projetadas. Passei então,
nessas cenas, a transferir o pensamento de construir fragmentos sonoros da
linguagem de teatro para a linguagem do vídeo, mesmo sabendo que estes
vídeos seriam pensados para teatro. Como foi minha primeira experiência com
construção de fragmento sonoro para vídeo, percebi que o diálogo entre esses
dois elementos (som e projeção), é um pouco mais distante que som e atuação
em cena. Como se o som adotasse uma postura subserviente à imagem no caso
da projeção (acredito que por causa do impacto que uma imagem projetada em
uma grande tela em meio a uma peça de teatro possa ter).
O processo da relação entre som e atores em cena, traçou um diálogo
mais estreito, passível de maiores intervenções entre ambos os elementos.
Possível também foi perceber os momentos em que o repertório sonoro se torna o
condutor da dramaturgia da cena, mesmo sabendo que esta estética de
concepção não era o foco do elemento sonoro. Porém, é esse um dos objetivos
que pretendo alcançar quando construo um repertório sonoro.
61
Fazer do elemento sonoro uma ferramenta de diálogo com os demais
elementos de cena e extrair dele várias possibilidades, essa é a minha busca
enquanto compositora de cena. Ora reforçando a imagem proposta pela cena, ora
contrapondo a ela; concordando com alguns elementos e contrapondo com outros
ao mesmo tempo; sugerindo o ambiente da cena; causar sensações no público e,
quando coerente, conduzir a dramaturgia do espetáculo.
62
1.6.2 Repertório sonoro do espetáculo Retrato de Augustine
63
Faixa 14 – ENFERMEIRA CABARÉ: Fragmento sonoro – de Morgana Martins –
trecho de Largo de Andy Carlson junto com trecho de Alegro de Andy Carlson –
Duração: 1’10”.
64
1.6.3 Informações técnicas a respeito da realização da emissão do repertório
sonoro do espetáculo Retrato de Augustine
Equipamentos detalhados
Fonte:
• Um computador notebook contendo dois programas de emissão de
áudio que reproduza o fragmento sonoro em formato de faixas
musicais, como o Windows Media Player, ou o BS Player, por
exemplo.
Processador:
Emissor:
65
Planta baixa do posicionamento das caixas de som para emissão do
repertório sonoro de Retrato de Augustine
Imagem n˚ 1
66
CAPÍTULO 2 – O CONCEITO DE “DRAMATURGIA SONORA” A PARTIR DOS
ESPETÁCULOS DO CIRCO TEATRO UDI GRUDI
67
texto dramático tal como era entendido nas primeiras décadas do século XX. Em
seu verbete sobre dramaturgia, Pavis aponta que foi a partir do teatro épico de
Brecht que se ampliou a noção sobre dramaturgia.
68
A inserção da palavra “sonora”, que complementa o termo em questão,
“dramaturgia sonora”, foi adotada ao perceber que a dramaturgia dos espetáculos
do Circo Teatro Udi Grudi era conduzida pelo repertório sonoro da cena. Nas
montagens do Circo Teatro Udi Grudi há o emprego do signo verbal, porém a
palavra, quando colocada em cena, não carrega consigo a responsabilidade de
oferecer ao público uma noção narrativa da obra. A palavra, em seus espetáculos,
é inserida como mais uma exploração sonora de timbres e intensidade de
volumes, como os demais instrumentos musicais das cenas, do que a significação
do que essa palavra pode representar. A prova disso é que, quando o grupo
apresenta seus espetáculos em outros países, os integrantes geralmente
permanecem com o idioma em português para suas falas, e a reação do público,
segundo Beré em entrevista de 2007, é de achar graça da maneira como as falas
são colocadas em cena, sem ser interrompida por certo abismo linguístico entre
ator e público.
Assim como a fala, ou o texto dito pelos atores nos espetáculos do Circo
Teatro Udi Grudi, está muito mais ligada à sonoridade que ela pode produzir do
que seu próprio significado, é possível também identificar nos demais elementos
de cena essa ligação com o elemento sonoro. As ações dos atores praticamente
giram em torno da produção de um fragmento sonoro, que desencadeiam na
construção de instrumentos musicais, e acaba com a utilização desses
instrumentos na execução das músicas das cenas. O cenário ora serve como
instrumento musical ora o instrumento musical comporta também a finalidade de
cenário. Há cenas em que os figurinos se transformam em instrumentos musicais,
ou todo ele é uma série de instrumentos, como é o caso de Lixaranga. A própria
direção de cena de Sykes é pensada na ação e no som simultaneamente.
Dentre os fatores estéticos sonoros da produção de trabalho do Circo
Teatro Udi Grudi voltados aos seus espetáculos, juntamente com o conceito de
dramaturgia de Pavis, é que encontro as bases para formular o conceito de
“dramaturgia sonora”. O espetáculo cênico que tem por finalidade conceder ao
repertório sonoro a função de ser o elemento condutor da dramaturgia da cena,
apresenta uma “dramaturgia sonora” em seu desencadeamento. A montagem
cênica em que é perceptível a inserção de demais elementos de cena
correspondentes ao repertório sonoro, também mostra o emprego da
69
“dramaturgia sonora” em meio ao trabalho. Essas são características
predominantes nos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi. E foi a partir de seus
trabalhos que despertou em mim o interesse de estudar e pesquisar o repertório
sonoro como condutor da dramaturgia da cena, elaborando assim, o conceito de
“dramaturgia sonora”.
70
proporcionadas por circunstâncias em que o fio musical atua como condutor”
(1999, p.136). Esclareço, referente a este fragmento, que Souza cita o termo “fio
musical”, ou música propriamente, como repertório sonoro da cena. Souza
acrescenta ainda como o elemento sonoro pode contribuir na questão
informacional ou sensorial da cena. Sua afirmação ajuda também a esclarecer a
respeito do trabalho sonoro do Circo Teatro Udi Grudi:
Uma montagem teatral pode ter como ponto de partida qualquer um dos
elementos cênicos, ou até mesmo mais de um deles. É comum presenciarmos
processos teatrais em que o ponto de partida é o texto dramático ou o resultado
de determinado treinamento de ator. Geralmente o elemento cênico escolhido
como ponto de partida pode acabar conduzindo a dramaturgia da montagem
teatral, seja de maneira clara ou subjetiva, independente se esta dramaturgia se
apresenta de forma cronológica ou fragmentada. O Circo Teatro Udi Grudi opta
pelo elemento sonoro como condutor da dramaturgia de seus espetáculos. O
espetáculo O Cano é o trabalho que melhor esclarece essa concepção. Os
espetáculos O Ovo e A Devolução Industrial, outros dois espetáculos objetos de
pesquisa dessa dissertação, também têm o repertório sonoro como condutor da
dramaturgia da cena, e mesmo que nestes dois casos essa característica não
seja tão evidente como em O Cano, é possível discutir e concluir esta análise.
Levantarei um paralelo entre os três espetáculos estudados do Circo Teatro Udi
Grudi a fim de comparar como estes, mesmo referenciando diferentes
abordagens de enredo e evolução de cena, apóiam-se no repertório sonoro como
condutor da dramaturgia de seus espetáculos. Porém, anterior a esta análise,
discorrerei sobre os contextos que envolvem o Circo Teatro Udi Grudi, com o
objetivo de esclarecer a respeito do grupo para melhor facilitar a análise de seus
trabalhos.
71
2.2 CIRCO TEATRO UDI GRUDI: UM BREVE RELATO DE UMA LONGA
HISTÓRIA15
15
Neste item da dissertação optei por relatar de maneira resumida a história do Circo Teatro Udi
Grudi, uma vez que já escrevi uma versão detalhada de sua história em meu Trabalho de
Conclusão de Curso (2007). Acredito, porém, ser relevante da mesma forma mencionar a história
do grupo nesta dissertação, pois nem sempre o leitor se interessará em ler, ou se deparará com
ambas as obras. Outro fator relevante é que diante do contexto desta dissertação julgo
fundamental um fragmento que contextualize a história do Circo Teatro Udi Grudi para melhor
compreender a concepção da discussão e análise do tema deste trabalho.
16
Fernando Pinheiro Villar. Abrindo o Dossiê Udi Grudi: 25 anos insistencialistas. Artigo não
publicado, cedido a mim pela diretora Leo Sykes via e-mail, em 2007.
72
Concorrência FIAT. Neste trabalho, segundo os integrantes, é possível
reconhecer traços dos trabalhos atuais do grupo.
Os integrantes Beré e Porto viajaram à Inglaterra em 1991 e 1992, por
meio de uma bolsa do Conselho Britânico, para o ISTA.17 Neste evento Beré
conhece Leo Sykes, atual diretora do Circo Teatro Udi Grudi. Sykes, nesta época,
era assistente de direção de Eugênio Barba e apresentou no ISTA um trabalho
onde os integrantes do evento poderiam participar. Beré participou do trabalho,
“Marcelo [Beré] fez algo com perna-de-pau e pandeiro, era um brasileiro maluco
lá no meio da coisa que se virou muito bem”, relembra Sykes18. Ao retornarem ao
Brasil, Beré e Porto viram que a produção de trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi
caminhava em passos lentos, nenhum grande trabalho foi realizado pelo grupo
neste período. Em 1994, Porto e Sykes se conheceram no ISTA de Londrina. E
em 1996 Beré, Porto e Astiko participam do ISTA de Copenhage por meio de uma
simbólica e importante ajuda de Sykes, “eles caíram de para-quedas e me
pediram para entrar” (Sykes, entrevista, 2007). Villar escreve em seu artigo, por
meio das palavras de Porto, que no ISTA de 1996, os três palhaços brasilienses
tiveram a oportunidade de ver e conviver com mestres do teatro como Dario Fo,
Franca Rame, Jerzy Grotowski e outros grandes nomes da arte teatral.
Em 1996 Sykes e Beré começaram a namorar, resultando, posteriormente,
em casamento. No final de 1996 Sykes veio morar no Brasil, e Porto a convidou
para dirigir um trabalho que explore a linguagem do clown, utilizando os
instrumentos de Marció, convidando-o também para atuar na montagem. Desta
ideia inicial surgiu o espetáculo O Cano.
O convite foi aceito por Sykes e Marció. No início a diretora se deparou
com um grande choque profissional e estético. Ela, inglesa, há cinco anos
trabalhando como assistente de direção de Eugênio Barba veio morar no Brasil e
começa a dirigir um grupo que, segundo ela nem parecia um grupo. Sykes
percebia que os integrantes eram portadores de grandes talentos teatrais, porém
não era acostumada a trabalhar com as habilidades que eles ofereciam. A saída
encontrada por Sykes foi a “troca”, os atores ofereciam seus números de clown,
17
International School of Theatre Anthropology, fundada em 1979 pelo diretor da companhia
teatral Odin Theatre Eugênio Barba.
18
Leo Sykes, entrevista realizada por Morgana Fernandes Martins, em 22 de abril de 2007, na
sede do Circo Teatro Udi Grudi, em Brasília.
73
suas músicas e instrumentos musicais e ela, então passou a propor a disciplina
conforme sabia trabalhar. Esse cruzamento de experiências gerou um trabalho de
grande visão profissional. Sua estética chamou atenção para além das fronteiras
nacionais.
O espetáculo O Cano foi composto por três atores, Luciano Porto, Marcelo
Beré e Marcio Vieira, sob a direção de Leo Sykes. Este trabalho estreou em
Brasília, no Teatro Dulcina em março de 1998, com excelente recepção do
público. No mesmo ano o grupo levou o espetáculo para Belenzinho, São Paulo,
pelo SESC e lá um produtor suíço conseguiu um convite para o grupo se
apresentar em Edimburgo em 2000. Na apresentação, em que tudo levava a crer
que o Circo Teatro Udi Grudi seriam só uns brasileiros sem muito destaque,
resultou em uma verdadeira conquista entre espetáculo e espectador, incluindo
repórteres e organizadores do evento. Atualmente O Cano continua a ser
apresentado pelo mundo, o espetáculo já foi apresentado em treze países e em
quase todos os estados do Brasil. Em 2007, quando perguntei ao grupo qual seria
o tempo de vida do espetáculo O Cano, os integrantes responderam: “Enquanto o
Marció couber no barril!”19
Durante o período de amadurecimento do espetáculo O Cano, início da
primeira década do século XXI, os integrantes do Circo Teatro Udi Grudi
começaram a construir um novo trabalho, o espetáculo O Ovo, e também neste
período surgiu a proposta de Lixaranga. Ambos os espetáculos tem como
integrantes a mesma equipe de trabalho, Leo Sykes na direção, e Porto, Beré e
Marció no elenco. A proposta estética de O Ovo é bastante semelhante a d’O
Cano, a estrutura do palco italiano, o cenário que ocupa toda a área do fundo
palco, os instrumentos musicais de materiais alternativos, canções populares em
meio às cenas, todas essas característica encontram-se em ambos os trabalhos.
Contudo, a abordagem do conteúdo das duas encenações se difere, ainda que
ambas possuam forte atrativo para o público infantil. Em O Cano há o jogo do
palhaço em meio a todos os materiais que compõem os instrumentos do
espetáculo, em O Ovo, mesmo que se percebam essas mesmas características
em algumas cenas, há uma abordagem social que O Cano não tem. O grupo teve
19
Luciano Porto, Marcelo Beré, Marcio Vieira e Leo Sykes, entrevista realizada por Morgana
Fernandes Martins em 22 de abril de 2007, na sede do Circo Teatro Udi Grudi, em Brasília.
74
bastante dificuldade para construir o novo espetáculo. Em 2007 O Ovo já existia
há quatro anos e lembro-me de Sykes (entrevista, 2007) colocando questões a
respeito do trabalho as quais ela ainda não sabia responder. Na entrevista
realizada em 2007, o grupo seriamente brincava com o nome do espetáculo: “O
problema é o título, O Ovo! Ovo é uma coisa que está sempre pra nascer e não
nasce!”
O espetáculo Lixaranga apresenta uma proposta que difere em maiores
aspectos dos outros dois mencionados. É um trabalho de rua, os integrantes se
relacionam diretamente com o público e seu maior atrativo são os figurinos. Todos
os materiais que vestem os atores possuem a capacidade de emitir sons. Placas
de metal no peito, cano de fiação elétrica que se estende do chapéu de tampo de
chuveiro à boca, também emitindo som ao soprá-lo, além dos próprios
instrumentos musicais de materiais alternativos que os atores carregam
acoplados a esses figurinos. Atualmente o espetáculo Lixaranga não está mais
incluso como um dos espetáculos do repertório do Circo Teatro Udi Grudi.
Entre o início dos ensaios de O Cano, em 1998, até 2007, eram esses os
três espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi: O Cano, O Ovo e Lixaranga. Em abril
de 2007, o grupo estreou um novo trabalho: Udi Grudi em ConSerto. Este trabalho
foi realizado para estrear justamente no aniversário de vinte e cinco anos do
grupo, durante o evento Udi Prata, comemorando as bodas de prata do Circo
Teatro Udi Grudi. Foi neste evento que tive a oportunidade de presenciar todos os
trabalhos do grupo, entrar em contato com sua história, entrevistar, conhecer seus
integrantes, as demais pessoas que acompanham e apóiam o trabalho da equipe.
O espetáculo Udi Grudi em ConSerto apresenta algumas das músicas executadas
em O Cano e O Ovo em uma espécie de concerto musical. Naquela ocasião,
além dos instrumentos já utilizados originalmente nos espetáculos, houve o
acompanhamento primoroso de músicos tocando violinos e violoncelos, além de
um coral de crianças que cantavam as canções da apresentação junto com a
execução sonora dos três atores.
Três anos após a primeira visita à Brasília, em maio de 2010 tive
novamente um encontro com o Circo Teatro Udi Grudi. Após a minha chegada à
cidade fui me encontrar com Sykes, em sua casa, para realizar uma entrevista.
Inicialmente perguntei a ela “O que aconteceu com o Udi Grudi nestes três anos,
75
2007 a 2010?” Sykes respondeu que após o ano de 2007 o grupo foi contemplado
com o edital da Petrobrás, o que gerou uma série intensiva de turnês pelo Brasil,
a contratação de um produtor exclusivo para o gerenciamento dos trabalhos, fato
inédito para o grupo, e o início do processo do espetáculo A Devolução Industrial,
que estreou em março de 2010. Neste novo espetáculo, após doze anos
trabalhando com a mesma equipe, Marció não está em cena, mas ainda assim
confeccionou os instrumentos musicais da encenação. Entrou em cena Joana
Abreu. Joana é cantora de música popular brasileira, este fator enriqueceu ainda
mais o trabalho sonoro do Circo Teatro Udi Grudi.
Desde março de 2010 o grupo está promovendo seu mais recente
espetáculo A Devolução Industrial, porém ainda mantém em seu repertório O
Cano, O Ovo e Udi Grudi em ConSerto, compondo o repertório representativo do
trabalho do Circo Teatro Udi Grudi.
76
compromisso. Por coincidência, ou sorte, a pousada onde me hospedei ficava há
duas quadras da casa de Sykes e Beré. Realizei a entrevista apenas com a
diretora do grupo, pois ela não iria acompanhar-nos no dia seguinte na viagem à
Jataí, interior de Goiás, da qual fui convidada a participar pela própria equipe.
Dia 21 de maio, saímos de Brasília às 15h, e o que seria um trajeto de seis
horas, teve fim às 1h da manhã com a chegada em Jataí. Engarrafamento devido
a acidentes na estrada dentre outros imprevistos nos fizeram sofrer este atraso de
quatro horas. Mesmo cansada, o atraso não me atingiu como um fator negativo,
afinal essa foi a primeira vez em que entrei em contato com Beré, Porto e Marció
sem ser num contexto de entrevista, ou assistindo a um ensaio ou apresentação.
Esta foi uma grande oportunidade de conhecê-los além da condição de objeto de
pesquisa. No dia seguinte os acompanhei desde o descarregamento de
instrumentos musicais e cenários até a montagem dos mesmos para a
apresentação. Esta apresentação encontrava-se ligeiramente fora dos padrões
habituais em que Circo Teatro Udi Grudi costuma se apresentar. Tratava-se de
um evento em um hotel proposto pela Receita Federal de Jataí para seus
funcionários. O coordenador do evento, ao esclarecer sua ideia a Beré, tinha a
intenção de propor a apresentação de um espetáculo teatral que, além de servir
de entretenimento aos seus funcionários, os fizessem perceber também o quanto
é valioso e produtivo o trabalho realizado por si mesmo. O que os três integrantes
realizaram diante desta proposta, foi uma apresentação na qual eles se
comunicavam diretamente com a platéia, conversando com eles. Entre essas
rápidas conversas, das quais também mostravam os instrumentos musicais e
contavam como foram construídos, tocavam algumas músicas de seus
espetáculos. Ao final da apresentação os integrantes convidavam parte do público
e os ensinavam a tocar alguns instrumentos, realizando uma grande interação
com a platéia. O público ficou encantado com o trabalho de Beré, Porto e Marció,
e o coordenador do evento extremamente satisfeito com o resultado. Mesmo
sendo uma apresentação fora dos moldes do Circo Teatro Udi Grudi foi possível
novamente entrar em contato com seu trabalho, e poder tocar e analisar todos os
instrumentos musicais construídos por Marció. Pude ver e experimentar
instrumentos que ainda não existiam em 2007, além de ter a possibilidade de
77
perguntar a Marció sobre qualquer dúvida que tivesse a respeito desses
instrumentos musicais.
No período da noite, ainda antes do jantar, realizei uma entrevista com os
três atores. No dia seguinte, após o almoço, retornamos a Brasília e desta vez
tivemos três horas de atraso na estrada. Imprevistos sempre acontecem, o
importante é que consegui concluir meu trabalho em Brasília. Ainda, como
desfecho desta pesquisa de campo, de Brasília fui para São Paulo pesquisar
material teórico em bibliotecas universitárias e mais uma vez contei com a sorte.
O Circo Teatro Udi Grudi apresentou no dia 07 de junho o espetáculo A
Devolução Industrial em São Paulo, na sala Crisantempo na Vila Madalena,
sendo este o único trabalho que eu ainda não havia visto do grupo. No último dia
que passei em São Paulo, nessa viagem, pude assistir o mais recente trabalho do
Udi Grudi. A oportunidade possibilitou não apenas a inclusão deste espetáculo
como análise na dissertação, como também, e acima de tudo, a apreciação de
mais um trabalho realizado por este grupo.
78
instrumentos convencionais em cenas de palhaço como acordeom, violão e
cavaquinho. Enquanto Beré e Proto atuavam como palhaços, durante a década
de oitenta Marció construía sua carreira como músico, em Brasília, em grupos
como o Liga-Tripa e o Músicas-à-Tentativa.
O estudo e construção de instrumentos musicais com materiais alternativos
de Marció tiveram início quase duas décadas antes da estréia de O Cano. Em
1980 Marció, que tem formação em engenharia elétrica pela UnB e é autodidata
em engenharia acústica, construiu seu primeiro instrumento musical, o Marimbau.
Este instrumento é utilizado ainda nos dias de hoje em O Ovo. Originalmente o
Marimbau era uma estrutura feita com quatro pernas de finas varas de ferro que
apoiavam uma bacia de alumínio e um berimbau na posição horizontal. Sua
estrutura permaneceu a mesma, porém a aquisição de uma garrafa de plástico
azul em uma das pontas do berimbau atribuiu ao instrumento certo formato de
bode, assim, em O Ovo, o instrumento ganhou também um novo nome, o Burrito.
79
Marció relatou20 que tanto o Marimbau, quanto os diversos outros
instrumentos musicais que ele criou posteriormente são variações do instrumental
musical kalimba.21 No ano de 1998, quando estreou o espetáculo O Cano, Marció
já havia desenvolvido uma série de instrumentos musicais, e alguns deles foram
criados especialmente para este trabalho. Marció já havia experienciado a arte
teatral como ator em trabalhos de curta existência em Brasília, durante a década
de oitenta, porém sempre como ator-músico. Foi por meio do espetáculo O Cano
que Marció experimentou, pela primeira vez, a arte teatral como ator num caráter
profissional, sem deixar, neste trabalho também, de exercer seu ofício como
músico.
A figura do palhaço dos atores do Circo Teatro Udi Grudi passou por uma
metamorfose após a entrada de Sykes no grupo, em 1996. A diretora trouxe para
os membros do grupo outra proposição clownesca. Marcelo Beré, por exemplo,
em O Cano, apresenta um clown aparentemente sério, o que contrasta com a
comicidade provocada pelo exagero de seu figurino. Neste espetáculo Beré veste
um terno branco, com uma gravata borboleta preta em seu pescoço, uma calça
preta e um tênis branco bastante grande e volumoso. Seu cabelo é que dá o
toque final na composição de sua figura, de cor originalmente loira, Beré arma
todo seu cabelo para cima como se tivesse levado um choque elétrico.
Imagens n˚ 3 e 4 –
Beré em O Cano.
Fotos de acervo do
grupo. Fonte:
http://www.circoudi
grudi.com.br/fotosc
ano.html
20
Marcio Vieira, entrevista realizada por Morgana Fernandes Martins em maio de 2010, no hotel
que sediou a apresentação do Circo Teatro Udi Grudi, em Jataí / GO.
21
A Kalimba é um instrumento musical de origem africana. Sua estrutura corresponde a uma caixa
de madeira com um buraco circular no centro, no topo da caixa são fixadas teclas de metal das
quais, com o toque de empurrar para baixo essas teclas, elas emitem a sonoridade do
instrumento. Cada tecla emite uma nota musical e todas são organizadas em escala musical. Seus
formatos e tamanhos podem ser diversamente variados.
80
Como podemos ver nas imagens, seu rosto forma uma máscara bastante
expressiva, com seus olhos azuis arregalados atrás dos óculos com armação
preta. É perceptível que a expressão de seu rosto é uma mistura de sisudez com
curiosidade. Este clown nos remete a uma dubiedade, se estamos diante de um
cientista maluco ou um garçom maluco. No trabalho de Sykes se percebe que ela
procurou englobar inúmeras possibilidades de clowns, pois mesmo que esta
técnica predomine em todos os espetáculos do grupo, em cada um deles é
perceptível a exploração de diferentes figuras clownescas.
No espetáculo O Ovo, Beré veste uma capa feita de uma longa manta
coberta por pequenos retalhos pendurados, por baixo da capa usa uma velha
camiseta branca e uma calça azul bastante surrada. Como chapéu usa uma
espécie de velha cartola branca, sem aba e com duas garrafas de plástico verde
presas horizontalmente, uma em cada lado do chapéu.
Inicialmente sua figura aparece de joelhos, como suas pernas não estão à
vista do público, sua imagem causa a impressão de ser um anão. Em uma cena
do espetáculo, Beré levanta-se e atinge sua estatura original. Independente da
estatura do clown de Beré na cena de O Ovo, sua figura nos remete a um
mendigo, ou um morador de rua. Diante o contexto da narrativa do espetáculo,
81
visualizando também o cenário e figurinos, as três personagens sugerem serem
moradores de rua.
82
Estes exemplos das figuras de Beré, nos três espetáculos estudados para
esta dissertação, nos mostra que há um clown para cada um deles. Essa é uma
característica perceptível na direção de Sykes. A diretora aproveita a bagagem de
palhaço que seu elenco possui, mas ao invés de mantê-los com a figura do
palhaço tradicional de circo, ela explora diferentes indumentárias e,
conseqüentemente, diferentes ações para cada um desses clowns.
Cada um dos trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi apresenta um universo
narrativo, mesmo sem haver uma história cronológica contada durante as cenas.
As ações das personagens são estabelecidas por meio de situações criadas por
esses clowns diante do contexto da narrativa dos espetáculos. As situações são
exploradas durante o processo de ensaios por meio de jogos e improvisações do
atores propostos por Sykes. Ao observar o material oferecido por seu elenco, a
diretora seleciona e organiza esse material e os coloca como cenas de seus
espetáculos.
A mais nova integrante do grupo, Joana Abreu, cuja carreira também se
pautou pela música, mais especificamente pelo canto, explora atualmente, em A
Devolução Industrial, a linguagem do clown no teatro. A cantora e atriz teve
passagem por diversos projetos cênicos nas duas últimas décadas em Brasília,
porém Sykes revela na entrevista deste ano, o quanto a linguagem do clown
ainda é algo novo para ela.
Devido às práticas artísticas dos integrantes do grupo, a música está tão
presente no seu trabalho quanto o teatro. E até mesmo Sykes, que nunca estudou
música, soube administrar perfeitamente a qualidade musical de seu elenco nos
espetáculos. Durante a primeira entrevista que realizei com o grupo, em 2007,
perguntei a Sykes se o fato de ela não ter estudado música alguma vez a
atrapalhou em seu processo de direção. A diretora afirmou que nunca lhe faltou
sensibilidade sonora para poder lidar com o material musical e teatral do grupo. E
acrescentou que os únicos momentos em que a música atrapalhava ocorriam
apenas no tempo gasto por Marció para afinar os instrumentos.
83
2.4 OS INSTRUMENTOS MUSICAIS QUE COMPÕEM AS CENAS
84
acordeom, outro acordeom um pouco menor, um violão e um cavaquinho. As
crianças que estavam ouvindo os palhaços tocar os levam à casa do Mestre
André, um cientista maluco interpretado por Marció. Na casa do Mestre André,
Gorgônio e Rapadura conhecem todos os instrumentos criados por esse cientista.
O reconhecimento desses instrumentos é executado por uma música onde os
cinco integrantes da cena, Marció, Porto, Beré e as duas crianças, tocam e
apresentam cada um dos instrumentos. Na cena, os integrantes falam o nome de
cada instrumento musical, o som que eles emitem e demonstram como são
tocados. Neste DVD de quatorze minutos é possível ver boa parte dos
instrumentos musicais construídos por Marció, saber o nome de cada um deles,
conhecer o som que eles emitem, bem como saber sobre o material de que foram
construídos.
Durante a primeira visita ao grupo, que realizei em 2007, em Brasília, tive a
oportunidade de experimentar e fotografar alguns dos instrumentos musicais que
são utilizados tanto nos espetáculos O Cano e O Ovo, quanto no vídeo A Casa do
Mestre André22. Abaixo descrevo alguns desses instrumentos, bem como
exponho imagens dos mesmos para podermos visualizar e compreender melhor
os objetos-chave dos trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi que são seus
instrumentos musicais.
O Panzão e o Panzinho
22
Infelizmente neste ano não tive a oportunidade de fotografar os instrumentos musicais que
compõem A Devolução Industrial, todas as imagens deste espetáculo foram extraídas de fotos da
internet.
85
O Panzão é tocado em O
Cano, e é Beré seu instrumentista. O
ator toca o instrumento com duas
baquetas que parecem raquetes de
ping-pong, porém sua haste é um
longo e fino pedaço de ferro e a parte
que toca na boca do cano é feito por
um material emborrachado
semelhante a um E.V.A.. O Panzão é
responsável pela base das músicas
A Rosa Amarela e O Trenzinho
Caipira.
86
O Ladrilhê, o Baron e o Gira Sino
o
Imagem n 10 – Ladrilhê, Baron e Gira Sino – Foto de Morgana Martins, Teatro Dulcina. Brasília.
Abril de 2007
87
dessas garrafas é afinada por determinada quantidade de ar comprimido e cada
uma delas emite uma nota musical, o conjunto das garrafas possibilita a
sonoridade de uma escala musical. O Baron é tocado no espetáculo O Ovo por
Marció, e uma das músicas tocadas é Aquarela do Brasil, na qual o Baron é
responsável pela melodia da música. Seu som agudo também é semelhante a um
xilofone, porém, por causa do ar comprimido, a sua sonoridade permite maior
tempo de vibração e ondulação.
O Gira Sino aparece na imagem número 10, no canto esquerdo do alto do
Ladrilhê . Seu tamanho é de cinqüenta centímetros de altura e vinte centímetros
de largura. O Gira Sino é um instrumento composto por um arco de ferro revestido
por uma capa de cor verde. Amarrado nas bases do arco há um arame bastante
tencionado e no decorrer desse arame estão penduradas quatro barras cilíndricas
de ferro. Essas barras emitem o som do Gira Sino, tocadas com a mesma
baqueta do Ladrilhê. Cada barra emite o som de uma nota musical e, assim como
os demais instrumentos relatados, sua organização é definida por uma escala
musical. O Gira Sino aparece no espetáculo O Cano, tocado por Marció ao final
da música O Trenzinho Caipira. Seu som se assemelha a um sino dos ventos.
As Latas
88
Imagem n˚ 11 – As Latas. Foto de Morgana Martins, Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007
89
simultaneamente, bater na garrafa com uma baqueta para emitir seu som. O Polly
aparece em várias cenas de O Ovo e é tocado por Beré.
o
Imagem n 12 – Polly. Foto de Morgana Martins no Teatro
Dulcina. Brasília. Abril de 2007
O Original
90
em que, ao tocar a parte da garrafa o som é emitido pelo cano que se estende
nela. O Original aparece como um dos instrumentos do espetáculo O Ovo.
O Microtônio
Imagem nº 14 – Microtônio. Foto de Morgana Martins no Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007.
91
Entre uma nota musical e outra podemos encontrar o meio tom entre as
duas, ou um quarto do tom entre as duas, ou um oitavo do tom, e assim
sucessivamente até o som entre uma nota musical e outra poder se dividir em
micro tons. Foi por meio dessa divisão de micro tonalidades que Marció criou o
Microtônio. Seu som agudo e suave emite uma sonoridade semelhante a do Gira
Sino. Porém, como o Microtônio é composto por centenas de pequenas placas de
alumínio, a variação de tonalidades e a sequência sonora entre uma nota e outra
é tão evidente, que é possível ouvir nitidamente o caminho percorrido do grave ao
agudo. O Microtônio pode ser tocado por uma fina baqueta de madeira, ou até
mesmo com as mãos, deslizando os dedos pelas placas ou tocando nelas como
se fossem teclas de um piano, porém na posição vertical. O Microtônio posiciona-
se num discreto local em meio ao cenário de O Cano, quase que escondido e é
apresentado como um dos instrumentos de A Casa do Mestre André.
O Trombone
92
Negão, ou Negão que Fugiu do Julgo Português
Imagem n˚16 –
Negão e
Marció em O
Cano. Foto de
Fred
Brasiliense e
editada por
Morgana
Martins no
Teatro
Dulcina.
Brasília. Abril
de 2007.
93
Instrumentos sonoros a partir da estrutura do cenário
94
que Porto a interliga à estrutura de canos. Após conectar a mangueira na
estrutura é possível começar a ouvir o gotejar da água por meio da base superior
da estrutura de canos. E aos poucos é possível perceber que cada goteira pinga
água em diferentes tempos rítmicos. As gotas caem exatamente em cima de mini
tambores posicionados estrategicamente no chão do palco. Cada tamborzinho
soa em um tempo de marcação de gotas diferentes uns dos outros e, contudo,
percebemos que toda essa estrutura foi armada para marcar o ritmo do som na
cena. Essas gotas caem e soam até pouco antes do final do espetáculo.
95
Para emitir o som, basta assoprar como se fosse um apito na extremidade
cortada em V do canudo.
Imagem n˚19 –
Marció em O Cano
tocando a mini
corneta de copinho
de café. Foto de Fred
Brasiliense e editada
por Morgana Martins
no Teatro Dulcina.
Brasília. Abril de
2007
96
O som é idêntico ao do Ladrilhê, porém as placas oferecem a possibilidade
de serem ajustadas no próprio figurino dos atores. Essas placas fazem parte do
espetáculo O Cano, em que os atores Beré e Marció as colocam nas costas como
se fossem mochilas.
Dessa maneira, em fila, Marció toca os ladrilhos nas costas de Beré e
Porto toca os ladrilhos nas costas de Marció, com baquetas finas e
emborrachadas nas pontas. Durante a execução desses instrumentos os atores
cantam, tocam e dançam a música La Cucaracha, Beré ainda acompanha o ritmo
da música tocando um chocalho feito com garrafas de plástico.
o
Imagem n 21 – Apresentação do espetáculo Udi Grudi em ComSerto. Foto de Morgana Martins.
No Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007.
97
o
Imagem n 22 – Beré com seu figurino do Lixaranga. Foto de Morgana Martins.
No Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007
o
Imagem n 23 – Porto com seu figurino do Lixaranga. Foto de Morgana Martins.
No Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007.
98
o
Imagem n 24 – Marció com seu figurino do Lixaranga. Foto de Morgana Martins.
No Teatro Dulcina. Brasília. Abril de 2007
99
sensação de parecer estar ouvindo o ritmo da movimentação dos atores em seus
espetáculos, a diretora complementou: “sim, e eu vejo a música”.
O cuidado com o som da imagem proposta nos trabalhos do Circo Teatro
Udi Grudi é o mesmo cuidado que o grupo tem com a imagem do som proposto.
Por meio das palavras de Sykes é possível perceber que não há como pensar na
criação de um sem estar ao mesmo tempo pensando na criação do outro. E, ao
perceber o desencadeamento desse processo, é possível ouvir e ver cada
movimento e som produzido na cena do Circo Teatro Udi Grudi.
100
CAPÍTULO 3 – ANÁLISE DOS ESPETÁCULOS DO CIRCO TEATRO UDI
GRUDI
Os repertórios sonoros dos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi não dão
intervalos ou tréguas. A diversidade dos acontecimentos sonoros, independente
de seu formato (música, efeito sonoro, ruído e até mesmo o silêncio), faz com que
os ouvidos não descansem. Em todo o momento de cena há um som, ora
virtuoso, ora engraçado; ora falado, ora musical, que preenche a atenção do
espectador. Essa atenção toma os olhos para entendermos como aquele som tão
peculiar está sendo emitido de simples objetos inusitados, e toma os ouvidos, pois
destes simples objetos inusitados soam verdadeiras virtuoses sonoras.
Neste terceiro capítulo desenvolvo uma análise detalhada da diversidade
sonora produzida nos três espetáculos investigados do Circo Teatro Udi Grudi - O
Cano, O Ovo e A Devolução Industrial. Apresento as trajetórias sonoras
realizadas pelos atores, que se utilizam deste elemento para conduzir a
dramaturgia de seus trabalhos.
Trabalho as semelhanças e divergências entre os três espetáculos que são
meus objetos de análise nesta dissertação. O estudo pretende revelar que,
mesmo o Udi Grudi utilizando técnicas de atuação do palhaço, e números
musicais executados com instrumentos alternativos nos três trabalhos, o grupo
apresenta peculiar forma de abordagem em cada um deles. Nos três espetáculos
é possível perceber o destaque da utilização do repertório sonoro e como este
elemento é capaz de ser o fio condutor da dramaturgia da cena.
No processo de abordagem realizo primeiro, nas três análises, uma
descrição resumida de cada um. Para na seqüência trabalhar as bases sonoras
dos espetáculos, suas principais características e destaques. Por meio dessa
análise abordo os pontos em comum e as diferenças entre as três montagens
com relação aos seu trabalho cênico e sonoro. Por fim, reflito a respeito das três
obras com o objetivo de compreender como os espetáculos analisados se utilizam
do repertório sonoro com a função de ser o condutor da dramaturgia da cena.
101
3.1 ANÁLISE DESCRITIVA DE O CANO: O SOM COMO PRINCIPAL
CONDUTOR23
23
O espetáculo O Cano é composto por três atores: Luciano Porto, Marcelo Beré e Marcio Vieira,
com direção de Leo Sykes. Estreou em 1998, em Brasília.
102
divertida correria. Em meio a essas ações os atores constroem o Panzão (ver
imagem no 8), um imponente instrumento musical de 4,5 m de altura feito com
canos de PVC.
Outro material entra em cena e ganha seu destaque sonoro. Beré trás
consigo uma caixa de madeira com vários pedaços de ladrilho dentro. Os três
atores testam o som de cada pedaço com uma baqueta e encaixam os ladrilhos
numa placa de alumínio pendurada nas costas de Beré e outra nas costas de
Marció (ver imagem no 20). Em fila os atores começam a cantar, tocar e dançar a
famosa música folclórica mexicana La Cucaracha. Como em uma rumba, Beré é o
primeiro da fila tocando chocalhos feitos de garrafas de plástico, seguido por
Marció e Porto que acompanham o ritmo cantando e tocando os ladrilhos
pendurados nas costas de seus colegas da frente.
Do som agudo dos pequenos ladrilhos os atores passam a explorar em
cena as possibilidades sonoras de um barril de plástico. A palhaçada sonora
começa quando Marció e Beré batucam um ritmo de samba no barril que está
deitado no chão. De repente este barril sai rolando pelo palco. Os atores que
batucavam, neste instante assustados, pensam em fugir do barril, mas este acaba
rolando novamente em direção aos dois e a batucada recomeça até o barril fugir
rolando novamente. O objeto é deixado sozinho em cena e um novo jogo cômico
acontece. Marció entra em cena com um copinho de plástico (ver imagem no 19)
de café e um canudinho em cena. O ator faz deste objeto uma mini corneta, seu
som atrai a saída de um braço de dentro do barril, como se fosse uma cobra
encantada pelo som da flauta. O braço acaba agarrando Marció e o empurra para
dentro do barril de onde sai Porto simultaneamente. A partir deste instante é a vez
de Porto interagir com o barril. O ator deita o objeto no chão e senta em cima
dele, do fundo do barril, que está virado para o público, um canudo bem do centro
do objeto, por meio de um pequeno furo, começa a aparecer. Porto tenta de
diversas maneiras arrancar aquele teimoso canudo que insiste em recuar e sumir
para dentro do barril quando Porto tenta pegá-lo. Até que o ator tem a idéia de
explodir o barril e acende uma vela que solta faíscas e a coloca no furo por onde
sai o canudo. A vela apaga e nada acontece, até que o inesperado som de um
rojão explode, provocando um grande susto em toda a platéia.
103
Após o grande susto do estouro, o som de uma paisagem sonora de
tempestade é realizado em cena. Conseguimos ver apenas os objetos sonoros
sendo batidos e chacoalhados para produzir o efeito, mas não quem os toca.
Neste instante o grandioso Panzão é deslocado de sua posição vertical para
horizontal. O som desse movimento é semelhante ao do abrir de uma grande
porta velha e pesada de madeira, o que ajuda a compor o clima de suspense
instaurado pela paisagem sonora de tempestade. Beré toca as primeiras notas do
instrumento: uma grave introdução da 5˚ Sinfonia de Beethoven. Dessa sinistra
introdução sonora, Beré transforma o ritmo de seu grave instrumento em um
baião, imediatamente acompanhado por Marció que toca o agudo e suave
Ladrilhê (ver imagem no 10), posicionado do outro lado do palco. Porto entra em
cena com um girassol de plástico nas mãos e os três cantam a popular cantiga
brasileira Rosa Amarela. Ao final da música Porto toma para si o trombone de
vara e acompanha sonoramente seus colegas na cena. Em seguida, Porto
também canta o popular samba A Jardineira, de Benedito Lacerda e Humberto
Porto, algumas estrofes têm as palavras trocadas, o que deixa a música mais
cômica. Esta canção é acompanhada por Marció no Ladrilhê.
Os três atores iniciam a construção do Pingador. Este instrumento pode
chegar até cinco metros de altura, dependendo da altura do teatro, sua forma
consiste em um grande triângulo de finos e compridos canos de PVC que fica na
parte superior do instrumento, sua largura consta em torno de quatro metros. Este
triângulo é sustentado por três compridas varas, também de cano, cada uma
posicionada em uma ponta do triângulo. Essas barras de sustentação, fixadas em
cena por um esquema de encaixe, é que determinam a altura do instrumento. Sua
finalidade é gotejar água compassada sobre mini tambores (ver imagem no 18)
que serão posicionados no chão. Cada goteira pinga em um tempo rítmico sobre
os tamborzinhos. Seu som acompanhará os instantes finais do espetáculo. A
construção desse instrumento estimula o riso do espectador devido às ações
típicas de clown. O jogo cômico que se destaca nesta cena são as palavras ditas
pelos atores “Tá alto!” e “Tá Baixo!” para definir a altura do instrumento. Na
conclusão da construção, os atores percebem que começa a pingar água no
palco e logo aproveitam a oportunidade para cantar a famosa canção americana
Singing In The Rain de Arthur Freed e Nacio Herb Brown.
104
O barril de plástico volta a aparecer em cena. Trazido por Marció, o ator faz
deste objeto um perfeito contrabaixo anexando a ele uma corda e um bastão de
madeira. Acompanhado por um gotejar sincronizado do Pingador sobre uma
espécie de atabaque de cano, Marció toca um ritmo de jazz em seu instrumento
que se chama Negão (ver imagem no 16). Beré entra em cena emitindo o som de
um saco plástico cheio de ar, que se assemelha perfeitamente ao som do chimbal
de uma bateria, proporcionando um acompanhamento incrível ao grave som de
contrabaixo realizado por Marció.
Em meio a esse ritmo, Porto entra em cena e posiciona o Panzinho (ver
imagem n˚ 9) no centro do palco. Marció desloca-se até o Ladrilhê e Beré
direciona-se ao Panzão, neste instante os três atores começam a execução
poética e hipnotizante de O Trenzinho Caipira de Vila Lobos. Além da música
executada, o que até então na grande maioria das cenas ouviam-se risos,
aplausos e comentários de crianças, o som que acompanha os atores neste
instante é o mais absoluto silêncio.
Marció e Beré, ainda embalados pelo delicado e sublime ambiente
instaurado por causa da execução de Trenzinho Caipira, posicionam os mini
tambores debaixo das goteiras do Pingador. Porto entra em cena com tochas
acesas e faz um número de malabarismo com as tochas, onde apenas essas
emitem luz no especo. O ator deixa o palco e coloca as tochas dentro de um
recipiente de alumínio. O calor do fogo das tochas faz com que gire a Engenheira,
um instrumento que consiste em uma bacia de alumínio com várias pequenas
placas de ferro penduradas em sua borda. A bacia fica virada com a abertura para
baixo a mais ou menos meio metro do chão, o calor do fogo faz com que ela gire,
provocando assim atrito entre as plaquinhas de ferro, emitindo um som suave e
agudo, semelhante a um sino dos ventos. E dessa maneira os atores finalizam o
espetáculo O Cano, assim como em seu início, apenas o som ostentando seu
espaço na cena.
105
3.1.2 As ações cênicas em função da construção dos instrumentos musicais
106
3.1.3 Os instrumentos musicais como cenário
o
Imagem n 25 - Fonte:
http://joaramos.blogspot.com/200
9/01/circo-teatro-udigrudi-25-
anos-na.html. Acesso: 17 jul
2011.
107
por sua imponência não apenas compõe o cenário do espetáculo, ele é um dos
grandes destaques da cenografia de O Cano.
o
Imagem n 26 - O Ladrilhê,, à esquerda, e o Panzão, à direita, compondo a cenografia
24
de O Cano
24
Fonte: http://www.flickr.com/photos/wesleisoares/sets/72157623564622963.Acesso: 17 jul 2011.
108
musical feito de bacia e placas de alumínio instalado na escada telescópica
posicionada no centro do palco durante as cenas finais do trabalho.
O cenário de O Cano é também um elemento cênico voltado quase que
integralmente à execução do repertório sonoro do espetáculo. Porém, a
cenografia não se destaca apenas pela produção sonora que emite como também
pela grandiosidade e complexidade de sua estrutura.
109
3.1.5 Parcas palavras e seus efeitos fonéticos sonoros
110
tempo em que elas são ditas é que tornam essas palavras interessantes na cena,
e não seu significado em si. Outro recurso vocal utilizados pelos atores de O
Cano é o diálogo em gramelô. Os atores transmitem perfeitamente a
compreensão do diálogo entre eles sem dizer nenhuma palavra carregada de
significado verbal. No espetáculo O Cano os atores deixam claro que a palavra é
apenas mais um recurso sonoro e a voz é somente mais um instrumento de
emissão sonora, como qualquer outro instrumento que compõe o cenário na obra.
111
mas o que ceu que te acontefoi...” O ator canta ao mesmo tempo em que rega a
flor, quando esta volta a ficar em pé, Porto volta a cantar a música para o público
que imediatamente o avisa a respeito da flor que murchou novamente. As
crianças são as responsáveis por avisar o murchar da flor para Porto que repete a
ação de regá-la algumas vezes, transformando assim a cena num divertido jogo
entre ator e público.
A última música executada é Trenzinho Caipira. O momento para essa
música é todo preparado. Um ambiente sonoro introspectivo sob pouca luz é
preparado pelos atores. As primeiras notas do grave Panzão são soadas por Beré
que executa a base da música junto com Porto que toca o Panzinho. De repente
ouvimos os primeiros tilintares suaves e agudos do Ladrilhê tocado por Marció
que executa a melodia da música. Começa, então, a cena mais emocionante do
espetáculo.
A música Trenzinho Caipira é tocante por natureza, e ouvi-la sendo tocada
pelos concentrados atores por meio daqueles instrumentos cenicamente e
sonoramente magníficos, é algo que provoca bastante emoção. Desde a primeira
vez que presenciei O Cano, e até mesmo quando vejo o espetáculo gravado,
sempre sou tomada pela mesma emoção. Acredito não ser a única, pois mesmo
com uma platéia repleta de crianças que participaram ativamente do espetáculo,
no momento de Trenzinho Caipira não se ouve um ranger de cadeiras da platéia,
e após a execução, os aplausos duradouros e calorosos aparecem logo em
seguida como que expulsos das mãos do público.
A música é um recurso bastante eficaz para provocar o efeito de emoção
sobre o espectador, como foi colocado no item “Som e emoção” no primeiro
capítulo desta pesquisa. Camargo chama a atenção a respeito da facilidade
desse recurso se sobressair à cena e transformar o momento que seria
emocionante em um melodrama ou em algo não planejado. Porém, no caso da
cena da música Trenzinho Caipira, isso não acontece. Os atores nesta cena
conseguem instaurar uma atmosfera bastante sensível por meio de todos os
recursos utilizados: a música em si, o som e forma dos instrumentos, o arranjo
musical de cada instrumento, a postura dos atores, a baixa iluminação e a perfeita
execução sonora. As músicas em O Cano são os grandes destaques do
espetáculo, é como se elas fossem a conclusão de todo o “esforço” anterior à sua
112
execução, pois todas as ações são realizadas e os instrumentos construídos para
os atores realizarem as músicas do espetáculo.
A paisagem sonora é um recurso utilizado pelo Circo Teatro Udi Grudi, mas
suas aparições são breves e geralmente acontecem para anteceder ou preparar a
cena seguinte, que na maioria das vezes é a execução de uma música. No
espetáculo O Cano a paisagem sonora acontece duas vezes, antes da execução
da música Rosa Amarela e antes da execução da música Trenzinho Caipira. Na
primeira, a paisagem sonora tem por finalidade instaurar um clima de suspense
na cena, pois é o momento dos atores apresentarem para o público o imponente
Panzão. O Panzão, antes da cena da Rosa Amarela, se encontra na posição
vertical, assim o público não tem a noção da dimensão deste instrumento. Antes
de Beré colocar o instrumento na posição horizontal, Marció emite vários sons de
dentro da cabine esquerda do palco, onde se encontram diversos materiais
alternativos sonoros. Marció produz a paisagem sonora de uma tempestade com
placas de alumínio, canos de fiação elétrica, atinge um objeto de metal no outro;
enquanto isso Beré começa a descer o Panzão. A mudança de posição do
instrumento já emite um som sinistro, como uma grande, pesada e velha porta de
madeira abrindo vagarosamente. Este som compõe perfeitamente com os sons
produzidos por Marció. Em seguida Beré soa as primeiras quatro notas da famosa
5˚ Sinfonia de Beethoven, que por meio do seu cavernoso instrumento o clima de
suspense ainda é maior. O suspense aqui é quebrado quando Beré transforma
essa aparentemente assustadora introdução num ritmo de baião para introduzir a
música Rosa Amarela.
O mesmo instante de paisagem sonora acontece antes da execução da
música Trenzinho Caipira, porem o suspense cede espaço ao lúdico. Esta
paisagem não atinge o mesmo nível de realidade da anterior, apesar das fontes
sonoras serem as mesmas. Este momento é embalado por uma espécie de
viagem sonora que conduz o público a receber a cena seguinte, a performance da
música de Vila Lobos sob um aspecto sonoramente onírico.
113
3.1.8 Ver / ouvir: o som que se vê, os olhos que ouvem
114
plaquinhas de alumínio em movimento circular sobre a chama de uma pequena
fogueira, única fonte de luz da cena. Para acompanhar essa admirável
contemplação ouvimos o suave tilintar das plaquinhas como se fossem centenas
de pequeninos sinos soados ao mesmo tempo, parecendo uma chuva de
sininhos.
Diversos outros momentos em O Cano são dignos de admiração no
quesito som e imagem. Não há dúvidas do cuidado tanto da direção quanto da
atuação a respeito da qualidade do som que produzem em cena, junto com a
maneira e aparatos por onde esses sons são realizados.
115
seguida acende a vela que produz pequenas faíscas e corre pela platéia aos
gritos, seus gritos e correria também provocam os gritos do público. O ponto
sonoro até então concentrado na palavra “Bum!” neste momento se espalha por
todo o espaço físico do teatro. A vela se apaga e o silêncio aparece, o ator volta a
falar com um volume fraco de voz as palavras “Não fez bum!”. Em seguida o
inesperado estardalhaço sonoro de um rojão explodido sem ninguém ter visto
provoca um grande susto em todos. Podemos perceber então, por meio desta
cena as diversas variações de volume e trajetória do som, estes são recursos
bastante explorados em todos os trabalhos do Circo Teatro Udi Grudi.
25
O espetáculo O Ovo está composto por três atores: Luciano Porto, Marcelo Beré e Marcio
Vieira, com direção de Leo Sykes. Estreou em 2003, em Brasília.
116
tonalidade de seu som. Logo surge a primeira canção, Luar do Sertão, de Catulo
e João Pernambuco. E o cenário vai sendo revelado junto com a canção do ator.
Braços aparecem através de uma assimétrica cortina no fundo do palco feita de
sacolas plásticas brancas, parecendo uma grande galinha. As mãos incógnitas
desses braços tocam em algumas das sacolas que soam a base da canção de
Beré, um som agudo e suave, como sino dos ventos. Literalmente uma coisa
também feita com sacolas de plástico brancas, cilíndrica e com mais de dois
metros de altura, começa a dançar com Beré.
Marció e Porto entram em cena, também com roupas aparentemente
desgastadas, mas assim como Beré, fora do comum. Marció, com uma saia de
borracha e um capacete de alumínio na cabeça, parece um soldado com seu arco
e flecha de ponta de borracha nas mãos. Porto veste um comprido macacão azul
marinho, onde o tecido em suas pernas e braços contém vários círculos dando
volume e comprimento à sua roupa, além de um chapéu de couro como de um
cangaceiro, e sapatos feitos com pedaços de pneu de carro. Em princípio os três
parecem se estranhar, mas logo se mostram entrosados realizando um grande
banquete imaginário, fazendo dos objetos de cenas pratos finos como refeição.
Marció parece querer encontrar algo e Beré o ajuda, logo os dois realizam
uma chuva de latinhas de alumínio amassadas pelo cenário. O som é
incrivelmente semelhante ao de uma chuva de verdade, porém o chão fica repleto
de latas. Marció encontra um rolo de fita adesiva branca e Porto briga por ela
arrancando um grande pedaço de fita das mãos de Marció. Porto faz de seu
pedaço uma bolinha que, na verdade parece um ovo. Os três atores começam a
divagar sobre aquele ovo imaginando pratos de comida que poderiam deliciar.
Não há um texto marcado e decorado dito pelos atores, apenas frases chave que
ajudam a ilustrar suas ações.
A fita adesiva rende vários jogos cômicos, e os atores fazem dela mais
pratos imaginários de comida, colam pequenos pedaços em seus rostos como
bigodes e sobrancelhas, realizando caricaturas de tipos étnicos como um francês,
um russo, e disputam quem cola o maior pedaço de fita entre as pernas. Todas
essas ações são acompanhadas por diálogos improvisados e incompreendidos,
como um gramelô, onde apenas uma frase ou outra é dita com palavras
reconhecíveis.
117
Com objetos recicláveis variados nas mãos, os atores introduzem um ritmo
de samba e cantam uma música chamada La gamine: sim ou não, música que
fala sobre um pedido de casamento, cantada em português, francês e alemão
pelos atores. Beré faz de um aro largo de alumínio com algumas latinhas
amassadas em cima o som de pandeiro. Marció tem em mãos uma lata de tinta
cheia de latinhas amassadas dentro dela, o ator a chacoalha no ritmo da música.
E Porto bate com uma baqueta naquela garrafa de plástico que aparece desde o
início do espetáculo. Ao longo da música os atores exploram diferentes maneiras
de extrair som de seus objetos, mas sem perder o ritmo e acompanhamento da
música.
Imagem n˚ 27. Cena da música La Gamine: sim ou não. Foto de Marcelo Dischinger. Fonte:
http://www.circoudigrudi.com.br/fotosovo.html
118
objeto como sacola plástica e um cano largo de fiação elétrica. Moldam o objeto
dando forma a seus materiais e de repente, desse emaranhado de coisas, surge
Polly, ou Pet, um simpático cachorrinho feito de material reciclado.
O cachorrinho é um boneco manipulado por Beré, e acompanhá-lo, eis que
entra em cena Jirimum, ou Marimbal, um instrumento musical na forma de um
bode. Sua cabeça é feita de garrafa de plástico, seu corpo de bacia de alumínio
entre um berimbau na posição horizontal, e suas pernas são feitas de longas e
finas varas de ferro, que parecem antenas. Marció puxa Marimbau para o centro
do cenário e anexado ao instrumento há um suporte de ferro e madeira sobre
rodas feitas com latas de tinta e em cima deste suporte há várias outras latas do
mesmo tamanho.
As Latas, Marimbau e Polly são os instrumentos que acompanham os
atores que cantam a música Acorda, Maria Bonita de Antônio dos Santos. As
Latas é um instrumento composto por vinte e quatro latas de tinta, cada uma
afinada em um tom formando uma escala crescente. O som do Marimbau é
emitido pelo berimbau que compõe o instrumento, podendo variar sua tonalidade
conforme o deslizamento de um pequeno objeto metálico sobre seu arame. O
Polly é um instrumento que varia entre um reco-reco, por causa do cano de fiação
ao longo do seu corpo; e um pequeno bumbo por meio de sua pata traseira que é
composta por uma garrafa de plástico que varia sua tonalidade conforme a
quantidade de ar que é comprimido dentro dela.
Em meio à execução da música Marció permanece tocando o Marimbau e
Porto, as Latas. Porém, Beré deixa Polly de lado e começa a dançar com um
grande saco plástico em formato humanóide, pois tem em seu corpo
alongamentos como braços e cabeça. Esse corpo plástico, preenchido de ar,
flutua pelo espaço com Beré.
As luzes se apagam e Marció acende uma chama de fogo no centro do
palco em uma bacia de alumínio que está no chão. Os atores e Polly se
posicionam ao redor dessa chama como querendo se aquecer. Marció gira uma
garrafa de plástico sobre o fogo, ao mesmo tempo em que bate com uma baqueta
sobre o objeto. A garrafa emite um som gradativamente mais agudo conforme o
calor do fogo sobre ela.
119
Sob a luz do fogo ouvem-se as primeiras notas de uma canção familiar.
Uma sutil luz azul, vinda de trás da grande cortina de sacolas branca, revela um
objeto cheio de garrafas de plástico penduradas nela. Aos pouco percebemos que
as notas são emitidas dessas garrafas de plástico, o nome do instrumento é
Baron, e seu som é agudo e suave como sinos. O som das Latas passa a
acompanhar o Baron como base, logo é possível identificar que a música tocada
é Aquarela do Brasil, de Ary Barroso. Quem toca o Baron é Marció e as Latas é
Porto. Beré desmembra uma das patas de Polly, que é uma garrafa de plástico, e
conforme o ator assopra dentro dela através de uma mangueira conectada em
seu bico, sua tonalidade varia e ouvimos seu som por meio das baquetadas de
Beré na garrafa. Em meio ao andamento da música, Beré troca a garrafa de
plástico de dois litros por uma de vinte litros, o que torna seu som muito mais
grave, muito semelhante a um surdo. Os três atores executam a bela Aquarela do
Brasil de maneira surpreendente e emocionante.
120
3.2.2 Os instrumentos musicais animados de O Ovo
121
Imagem n˚ 29. Ao fundo o manto de sacolas de plástico brancas que remete a uma galinha. Foto
de Marcelo Dischinger. Fonte: http://www.circoudigrudi.com.br/fotosovo.html
122
sacolas plásticas, pano de chão e até mesmo um pinico são objetos que podemos
visualizar no espetáculo.
Muitos desses detalhes sonoros cenográficos surgem ao longo do
espetáculo. Na cena em que Marció procura um rolo de fita adesiva, por exemplo,
até encontrá-la Marció e Beré lançam dezenas de latinhas de alumínio pelo palco
até encontrar o objeto desejado. E espalhadas pelo cenário essas latinhas
permanecem até o final do espetáculo.
Os instrumentos musicais de maior porte acabam por atrair mais a atenção
do público, porém os detalhes sonoros emitidos por pequenos e diversos objetos
também carregam seu importante destaque tanto pela contribuição sonora,
quanto pela composição cenográfica do espetáculo.
123
enferrujadas também a mostra, ajudam a compor o espaço em seu parâmetro
social onde os ficcionais moradores de rua vivem.
A crítica social em O Ovo se consolida por meio da última musica tocada
pelos atores, Aquarela do Brasil, em que sua letra revela um Brasil tão belo,
porém o que vemos em cena é um país com sérios problemas sociais. As estrofes
de Aquarela do Brasil em O Ovo não são cantadas, a melodia da canção é
executada por Marció instrumentalmente por meio do Baron. Esse é um exemplo
bastante evidente de uma releitura sonora de algo já conhecido, que quando
reelaborado por outro viés, nos oferece possibilidades de novas interpretações.
124
3.2.6 As músicas
125
3.2.7 O clima: os efeitos dos sons e das músicas sob auxilio indispensável
da iluminação
126
3.2.8 Ver / ouvir: o som que se vê, os olhos que ouvem
127
característica tão rica que, sem dúvida, é um dos grandes destaques e diferencial
do trabalho do Udi Grudi.
26
O espetáculo A Devolução Industrial está composto por: Joana Abreu, Luciano Porto e Marcelo
Beré, com direção de Leo Sykes. Estreou em 2010, em Brasília.
128
Uma paisagem sonora é criada, sons de galinha, cavalo, cachorro e chuva
são produzidos com pequenos instrumentos como um reco-reco, um agogô de
coco e até um grande instrumento popularmente conhecido como trovão: parecido
com uma cuíca, porém seu cordão de mola pendurado no corpo do instrumento,
ao ser chacoalhado ou em atrito com o chão, produz um perfeito som de
tempestade.
Neste instante é possível visualizar o cenário por completo, ao chão um
grande tapete verde como a grama e no centro um pequeno lago em formato de
círculo. Ao fundo os caixotes de madeira onde Beré se encontrava sentado
sobrepondo-os com seus tecidos brancos, agora descobertos e camuflados entre
outros objetos do mesmo material que parecem ser instrumentos sonoros. Ao
fundo uma grande roda d’água de madeira e pelos cantos alguns vasos e cestos
de palha, cubos vazados de ferro e uma estrutura de metal com rodas a direita.
Porto e Joana representam cuidar desse ambiente como uma fazenda,
uma casa de campo, e a cada ação que desempenham com este propósito o
embalo rítmico produzido por Beré com os objetos de cena acompanha a
trajetória do casal. Em meio à cadência sonora, Joana acende o fogareiro que se
encontra na estrutura de metal com rodas, coloca uma panela em cima e despeja
água dentro do recipiente, enquanto Porto prepara alguns legumes em uma tabua
de madeira.
Uma grande sopa está sendo preparada. Os três cantam uma música
popular regionalista falando a respeito do preparo da comida. Porto toca a base
batendo o cabo da faca na tábua em que cortava os legumes, Beré o acompanha
em um objeto circular branco pendurado ao fundo do palco que representa a lua e
Joana faz de uma cesta com grãos o seu chocalho. A partir desse momento a
sopa fica cozinhando durante o desvendar do espetáculo.
A máscara de palha de Beré é arrancada por Joana que, com o objeto,
começa a varrer o chão do palco. Porém o rosto de Beré não é revelado e sua
imagem remete ao deus hindu, Ganesh, com um tecido comprido caído sobre sua
face, parecendo o rosto de um elefante.
Enquanto Joana varre e limpa o cenário, tirando inclusive vários objetos de
cena, Porto senta a frente do palco com um serrote e faz dele um instrumento
sonoro de timbre agudo e modulado conforme as batidas que é dada em sua
129
lâmina com uma baqueta. Beré o acompanha produzindo um som repicado com
uma tampa de panela. Os dois atores cantam mais uma música regionalista sobre
uma vida mansa na qual não vale à pena trabalhar, enquanto Joana, num ritmo
bastante contrastante aos dois, limpa todo o cenário efusivamente.
A essas alturas do espetáculo a água da sopa está fervendo e o barulho
produzido pelo vapor que sai de um longo bico da panela se propaga aguda e
ruidosamente pelo espaço, num som contínuo e ininterrupto.
Um jogo de ações é realizado por Porto e Joana com cinco estruturas
cúbicas de ferro enquanto Beré propõe o ambiente sonoro em cima das ações do
casal. Com esses cubos Joana e Porto simulam uma guerra pela posse desses
objetos, os empilham, constroem uma espécie de edifício. Todas as ações desse
jogo cênico são acompanhadas sonoramente por palavras chaves e
onomatopéias expressadas pelo casal, junto da execução sonora emitida por
Beré e seus instrumentos alternativos.
Um aro de alumínio é introduzido em cena por Beré, e deste objeto é
representado o surgimento da roda. A disputa pela nova invenção gera uma
discussão entre Joana e Porto que saem de cena brigando pelo objeto. Beré está
só em cena e, com uma cumbuca apanha e despeja água no pequeno lago do
centro do palco, começa então a cair um filete d’água do alto do teatro na direção
do lago onde Beré se encontra. Uma palavra chave é soada por ele: “milagre”.
Esta palavra é repetida por Beré em vários momentos do espetáculo, como uma
marca da figura que representa.
Do filete de água que despenca do alto, Joana e Porto têm a brilhante idéia
de construir uma invenção. Os atores deslocam a roda de madeira do fundo do
palco, este objeto mede em torno de três a quatro metros de diâmetro, e a
colocam debaixo da queda d’água.
130
Com mais alguns objetos os atores montam um moinho d’água que nada
mais é do que um instrumento musical movido a água. A grande roda de madeira
gira com a força da água, este movimento, conectado por uma correia, impulsiona
outro objeto a frente da roda, que consiste em um grande carretel de garrafas de
plástico, este objeto mede em torno de cinqüenta centímetros de altura e um
metro de largura. Cada garrafa soa uma tonalidade por causa da diferente
quantidade de ar comprimido que há em cada uma delas. Ao girarem as garrafas,
baquetas encaixadas acima delas as tocam e cada toque das baquetas nas
garrafas produz o som de uma nota musical. É como se fosse a engenhoca da
caixinha de música, porém com proporções gigantescas e movida a água. Os três
atores deixam o palco para que o público contemple unicamente a magnífica
engenhosidade sonora que acabou de ser construída. E vale lembrar ainda que o
assovio do vapor da sopa fervente neste momento acompanha sonoramente o
instrumento que acontece no centro do palco.
Porto entra em cena e desloca a estrutura com a panela de sopa para trás
do moinho d’água, neste instante é possível perceber que a estrutura é um
triciclo. Porto e Joana se olham e repetem a palavra “inventar”, mesma palavra
que disseram antes de construir o moinho. Enquanto Porto pede ajuda a pessoas
da platéia, que no seu todo são cinco crianças, Joana encaixa atrás da panela
uma roda de bicicleta com várias colheres de sopa fixadas ao redor do aro da
roda e mais uma estrutura plana e baixa atrás do triciclo, como um reboque.
A pilha de cubos de ferro que se encontrava pouco a frente do moinho foi
desfeita por Porto, pelas crianças e por Joana enquanto cantavam Escravos de
Jó. Os cubos foram colocados em cima do reboque engatado no triciclo. Neste
momento é possível perceber a ideia de um trem no todo dessa estrutura. A ideia
é concretizada quando Porto direciona as colheres da roda de bicicleta na direção
do jato de vapor que sai da panela. A roda começa a girar movida pelo vapor e o
que ouvimos é a perfeita reprodução sonora de uma "maria-fumaça".
Beré entra em cena com um instrumento bastante esquisito sobre a
cabeça. Canos compridos de PVC na posição vertical conectados a longas
mangueiras transparentes que alcançam o chão, o som emitido por esse
instrumento é semelhante a um pífano. Joana tira o instrumento da cabeça de
Beré e coloca na cabeça de Porto que está sentado sobre o triciclo como se fosse
131
o maquinista. As mangueiras são conectadas na estrutura do triciclo. Atrás de
Porto está a panela, onde a saída de seu vapor faz a roda de colheres girar. Atrás
disso está Joana que empurra para cima e para baixo garrafas de plástico
adaptadas para fazer soar o instrumento sobre a cabeça de Porto. Atrás de
Joana, como fosse cada uma em um vagão, estão sentadas as crianças sobre os
cubos de ferro.
132
metros de distância do objeto com um cálice de vinho nas mãos, o ator desliza os
dedos sobre a borda do cálice, emitindo o som agudo do cristal.
O fim de A Devolução Industrial e genialmente destrinchado pelos três
atores tocando, com o carretel de garrafas e o exótico instrumento de canos de
PVC e mangueiras, a música Águas de Março de Tom Jobim. Após o black out e
os aplausos, o público é convidado pelo elenco a tomar a sopa feita durante o
espetáculo.
133
justamente seu próprio funcionamento. O som característico de locomotiva é
recriado por meio da inventiva engenhosidade do grupo.
É justamente o exemplo da releitura do som de uma locomotiva que
Camargo cita em sua teoria o som como “A expressão do referente”, mencionada
no primeiro capítulo desta dissertação. Segundo Camargo, através dessa
reflexão, determinado efeito sonoro real pode, em muitos casos, se tornar muito
mais interessante para a cena quando este é recriado com instrumentos diversos,
ao invés do compositor tentar reproduzir o som original do efeito em questão.
O destaque da construção dos instrumentos musicais nas cenas de A
Devolução Industrial é justamente o acompanhamento simbólico entre ação
cênica e confecção sonora. Ambos se relacionam propondo ao público a
apreciação estética característica do grupo, junto com o desenvolvimento da
dramaturgia do espetáculo.
Imagem n˚
33. Cena
de A
Devolução
Industrial.
Foto de
Marcelo
Dischinger.
Fonte:
http://fotoet
al.blogspot.
com/2010/0
3/udi-grudi-
devolucao-
industrial-
28-03-
10.html
134
Como foi descrito no item anterior, os instrumentos musicais que
representam o moinho d’água e o trem comportam tamanhos tão grandiosos em
meio à cena, que não há como desvincular a ideia de que esses instrumentos
representam boa parte da cenografia do espetáculo. E, além de serem
fascinantes por sua justa forma, esses instrumentos surpreendem ainda mais nos
momentos em que se movimentam pelo palco.
Porto comanda a partida do trem, é ele quem pedala o triciclo e faz com
que toda a estrutura do instrumento se desloque. Além de deslocá-lo, o ator
também é um dos responsáveis pelo som da locomotiva, junto com Joana e Beré.
O deslocamento desse instrumento pelo palco faz com que não apenas sua
estrutura transite pelo espaço, como o próprio som que ele produz, nos fazendo
percebê-lo próximo e distante, relembrando o som real do trem que, distante, se
aproxima, para se afastar novamente.
O ponto atraente da movimentação do instrumento musical feito por uma
roda d’água é justamente a autonomia de seu funcionamento. Após a cena em
que Joana e Porto encaixam todas as peças necessárias para o funcionamento
da engrenagem, os atores saem de cena e deixam a roda d’água, junto com o
carretel de garrafas de plástico, fazerem seus próprios trabalhos. A movimentação
de rotação de ambos os objetos, conectados por uma correia e impulsionados por
uma despretensiosa corrente de água, produz o som suave e surpreendente do
instrumento que se move independente no meio do palco, necessitando apenas
de sua própria força.
A variada quantidade de instrumentos sonoros de menor porte distribuídos
pelo espaço cênico de A Devolução Industrial também ajudam a compor a ideia
de uma cenografia que se desloca. Uma vez que a rotatividade do uso desses
instrumentos é bastante intensa por parte dos atores, e o fato de eles repousarem
esses objetos em locais diferentes de suas origens, remete a impressão de um
cenário em constante movimento.
135
3.3.4 Os grandes e os pequenos instrumentos musicais
Após anos de timbres vocais graves, masculinos, eis que surge na cena do
Udi Grudi uma voz feminina. E mesmo sendo a voz de Joana um timbre inclinado
136
para o contralto, categoria de voz feminina grave, sua sonoridade vocal
enriqueceu o contraste das vozes do elenco no espetáculo.
Além de atriz, Joana é cantora, aliás, sua carreira artística declinou-se com
pouco mais de ênfase para o lado da música. E como ela atua neste trabalho com
Beré, portador de um grave cavernoso, e Porto, que tem grande facilidade em
afinação vocal, as vozes de A Devolução Industrial resultaram praticamente em
palavras cantadas em cena.
O jogo de palavras que ocorre nas cenas se sobressai enquanto sua
sonoridade e, assim como há riqueza no entrosamento das vozes dos atores, a
escolha do vocabulário falado também foi bastante ditosa. Essa combinação entre
as vozes dos atores, junto com as palavras escolhidas para as cenas, faz de A
Devolução Industrial o espetáculo de maior destaque sonoro vocal do grupo.
137
3.3.7 Ver / ouvir: o som que se vê, os olhos que ouvem
138
apenas nos instrumentos incomuns que constroem e utilizam em cena, tanto na
forma, como no modo que os atores se relacionam com esses instrumentos,
presenteando os espetáculos de humor e poesia.
139
realizada com extrema sabedoria pelos integrantes do Udi Grudi no espetáculo A
Devolução Industrial, como em seus demais trabalhos.
140
estas situações também ocorrem, porém as cenas em questão são mais curtas, e
acontecem com pouco mais freqüência durante o espetáculo.
De maneira geral, independente se o som apresenta-se em primeiro plano,
ou momentaneamente não é o foco, este elemento encontra-se presente de
maneira destacável na cena dos três espetáculos. Da mesma forma, a emissão
de todo fragmento sonoro interfere diretamente no rumo da subjetiva e
fragmentada narrativa dos trabalhos analisados. Portanto, após realizada essa
análise, é possível concluir a afirmativa de que o repertório sonoro é o condutor
da dramaturgia da cena dos três espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi aqui
analisados.
141
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio dos estudos realizados nesta pesquisa é possível concluir que o
repertório sonoro pode ser um elemento cênico de grande destaque e importância
para um espetáculo teatral. Por acreditar na força dessa afirmação, o grupo
teatral Circo Teatro Udi Grudi foi escolhido como objeto de pesquisa, a fim de
demonstrar o grande valor e espaço que esse grupo atribui ao elemento sonoro.
Seus integrantes utilizam esse recurso como uma ferramenta que molda a cena
de acordo com suas possibilidades, definindo uma trajetória ampla e sinuosa para
o som, de maneira que este atinja todos os demais elementos da cena.
Os diversos formatos do elemento sonoro nos trabalhos do Udi Grudi
mostram o quanto esse recurso cênico pode ser explorado e transformado em
todos os seus aspectos. Com relação às características sonoras os repertórios do
grupo variam em duração de tempo, altura de tonalidades, diferentes timbres e
potência de volume. O Udi Grudi apresenta dilatado vocabulário de exploração
dos quatro métodos possíveis de transformação do som, conforme referenciados
no primeiro capítulo dessa dissertação.
Com relação ao formato estético visual dos instrumentos musicais e
sonoros elaborados e utilizados pelos atores nos espetáculos do Udi Grudi,
percebemos que a variedade desses objetos e adereços cênicos atinge alto grau
de criatividade, virtuosidade e engenhosidade. Os materiais utilizados para a
construção dos instrumentos musicais e sonoros do grupo transitam pelo plástico,
como garrafas, copos, sacolas, pelo alumínio, como latas, placas, bacias, pelos
variados tamanhos de canos de PVC, além de ladrilhos, cordas, madeiras, e todo
e qualquer material alternativo do quais possam ser extraídos sons interessantes
para a cena.
A exploração das trajetórias percorridas pelos repertórios sonoros dos
espetáculos do Udi Grudi também merece atentos apontamentos. O som transita
entre o centro e os quatro cantos do palco, de cima a baixo, e em algumas cenas
se desloca por entre o público. Há momentos em que o som abrange tamanha
potência que parece preencher toda a estrutura física do teatro, em outros
142
momentos se concentra em pequenos pontos, exigindo do público grande
atenção para serem ouvidos.
As intenções dramáticas emitidas por meio do repertório sonoro também
carregam bastante responsabilidade com relação à compreensão das narrativas
subjetivas e fragmentadas dos espetáculos estudados. Muitas das
expressividades que o som pode comunicar, refletidas por meio das teorias de
Camargo no primeiro capítulo dessa dissertação, se apresentam nos fragmentos
sonoros das cenas dos trabalhos do Udi Grudi. As músicas, efeitos sonoros, e
mesmo os momentos de silêncio dos espetáculos, muitas vezes são responsáveis
por causar no público diferentes sensações e emoções. Por meio do som os
espectadores dos espetáculos do Udi Grudi podem provar os efeitos da
comicidade, nostalgia, admiração, curiosidade, estranhamento, variadas
experiências sensoriais e emocionais que trabalhos teatrais cômicos, leves e
reflexivos como os do grupo em questão possam provocar.
Os anos de experiência, o alto nível de entrosamento entre os atores e o
domínio dos objetos explorados em cena fazem com que as ações de cena
realizadas por este elenco sejam realizadas com naturalidade e sabedoria. A
diretora Sykes, junto com a atriz Joana e os atores, Beré, Marció e Porto, revela
que a equação entre técnica de palhaço, mais a utilização de instrumentos
musicais alternativos, sob uma direção objetiva, mas poética, resulta em um
trabalho conciso e envolvente. Pois, se o Udi Grudi fosse apenas um grupo que
realizasse apresentações musicais com instrumentos alternativos, ou um grupo
teatral que somente se utilizasse da técnica do palhaço, evidentemente não
acarretaria para si esse caráter particular, de identidade própria.
Dois palhaços experientes que tocam instrumentos musicais, um
engenheiro acústico e também palhaço que constrói instrumentos musicais, uma
cantora atriz e uma perspicaz diretora teatral optam por realizar um teatro
musicado, ou um musical teatralizado. Em seus trabalhos esses inventivos
integrantes optam pela magia do som como elemento central para construírem
espetáculos repletos de expressividade. Trabalhos em que o som e a imagem se
fundem de tal maneira que é certa a riqueza que um é capaz de oferecer ao outro.
O trabalho do Circo Teatro Udi Grudi é um feliz e pertinente exemplo do
que o elemento sonoro é capaz de realizar em um espetáculo cênico. Assim, é a
143
partir dos trabalhos desse grupo que sugiro a reflexão a respeito das diversas
possibilidades de se criar um repertório sonoro para a cena teatral. Por meio do
trabalho do Udi Grudi podemos perceber que o repertório sonoro pode enriquecer
o espetáculo cênico por todas as vertentes que este pode percorrer. O som pode
comentar uma cena, pode criticá-la, como pode também reforçar a intensidade de
sua mensagem e de sua emoção.
A música em uma cena teatral, por exemplo, tem o poder de provocar no
espectador os mais diversos sentimentos. Os efeitos sonoros podem esclarecer a
compreensão da cena, assim como os ruídos podem confundir a leitura do
espectador com relação ao que vê, tornando a cena mais subjetiva. Uma
paisagem sonora pode localizar de maneira precisa o espaço em que a cena
ocorre, assim como o silêncio tem o poder de dramatizar ainda mais a tensão
provocada durante o fragmento de um espetáculo.
Os recursos sonoros utilizados pelos atores do Circo Teatro Udi Grudi nos
mostram que em muitos momentos a emissão do som de um simples objeto de
cena pode contribuir de maneira ímpar no espetáculo. Sem ter de, em algumas
situações, elaborar esquemas sonoros complexos que, muitas vezes, não dão
conta do recado de maneira eficaz. Por outro lado, é possível perceber também,
por meio do trabalho do grupo em questão, o quanto um repertório sonoro repleto
de detalhes e variações pode promover um caráter imponente e virtuoso ao
espetáculo.
Os recursos técnicos sonoros, aliás, são ricos em diversidade e,
consequentemente, passíveis de diversas leituras, dependendo da maneira de
como o som é emitido na cena. Sejam esses recursos, acústicos ou eletrônicos,
executados por meio de gravação ou ao vivo, é sugerido ao compositor do
repertório sonoro um detalhado estudo de todas as questões que se irá deparar.
Como vimos no primeiro capítulo dessa dissertação, conhecer previamente os
equipamentos sonoros escolhidos e seus efeitos na cena pode garantir a medida
necessária do som em virtude ao espetáculo. Pois, assim como qualquer outro
elemento cênico, seu excesso ou carência pode prejudicar o desenvolvimento de
qualquer outro recurso utilizado no trabalho.
O som é um elemento invisível, porém, ao mesmo tempo, é matéria. Por
meio das teorias de Wisnik e Schafer, referenciadas nesta pesquisa, podemos
144
concluir o quanto o som é subjetivo, impactante e preciso. Inserir qualquer
fragmento sonoro numa cena teatral é inserir uma possível leitura do espetáculo,
dessa maneira, o som pode, muitas vezes, contribuir exatamente na
compreensão da cena, como também desviar o foco da ideia da cena para um
rumo indesejável. Contudo, o elemento sonoro pode oferecer leituras tão
subjetivas que não é necessário exigir do compositor uma exatidão do efeito de
determinado som na cena, mesmo porque é impossível ter essa total ciência. No
entanto, ter noção não apenas dos efeitos físicos do som na cena por meio dos
equipamentos utilizados, é importante também o conhecimento, mesmo que
subjetivo do som e seu efeito em meio à dramaturgia do espetáculo.
Por meio das descrições dos três espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi,
assim como a análise de suas principais bases sonoras, apresentados no terceiro
capítulo, pudemos perceber a precisa intenção dramática de cada som na cena.
Cada som exprime uma informação, e essas informações são lançadas a fim de
pescar as diversas reações de seu público. As reações são, geralmente,
homogêneas, por serem sons expressivamente claros, independendo de suas
intenções. Por tanto, ao vasto vocabulário sonoro apresentado nos três trabalhos
do Udi Grudi se atribui a costura da dramaturgia da cena.
As expressivas ações dos atores, comumente em função da sonoridade
emitida na cena, fazem com que o elemento sonoro ganhe um caráter ainda mais
dramático do que sua procedência puramente sonora. O destaque dos
instrumentos musicais e sonoros que compõem o cenário, sua estética visual
incomum e diversificada, também atribui maior riqueza ao som sobre sua
essência. A iluminação cênica também enriquece a beleza do som emitido,
geralmente contribuindo na execução das músicas finais dos espetáculos. Enfim,
todos os elementos cênicos utilizados nos espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi
oferecem maior vivacidade, contorno e dramaticidade para o som emitido na
cena, independente do seu formato. Podemos assim concluir que o repertório
sonoro, seja evidente como em O Cano, ou de maneira mais indireta como em O
Ovo e A Devolução Industrial, é o condutor da dramaturgia da cena nos
espetáculos do Circo Teatro Udi Grudi.
O propósito dessa dissertação é essencialmente refletir a respeito da
importância do repertório sonoro, além de sugerir como é possível construir
145
repertórios destacáveis, em que estes possam até mesmo ser o condutor da
dramaturgia da cena. E, a partir dessa ideia, estudar um grupo teatral tão rico
quanto o Circo Teatro Udi Grudi como objeto de pesquisa, esclarece de maneira
virtuosa e precisa o tema em questão.
Sei da minha parcialidade com relação à admiração e paixão que tenho
com relação ao trabalho do Circo Teatro Udi Grudi, e sei também que a questão
da parcialidade pode, muitas vezes, distorcer o caminho analítico de uma
pesquisa acadêmica. Contudo, esses sentimentos não cresceriam em mim se não
fosse à necessidade que tenho em ver trabalhos cênicos que se preocupem de
maneira sincera e dedicada com o repertório sonoro da cena teatral.
Percebo também, há quase dez anos, o valor da pesquisa com relação ao
elemento cênico sonoro não somente na prática, como também na teoria. O
quanto é importante encontrarmos materiais sobre esse tema nas prateleiras das
bibliotecas acadêmicas, nos bancos de dados e revistas virtuais ou impressas das
universidades. E, a partir daí, se criar o hábito de discutir e refletir sobre as
infinitas maneiras de se construir um repertório sonoro para a cena. Permito-me
refletir aqui o quanto essa ação pode enriquecer um espetáculo cênico, afinal o
elemento sonoro é um recurso tão rico em sua contribuição quanto qualquer outro
elemento presente no universo teatral. E por fim, desejo, que este trabalho venha,
de alguma forma, contribuir para que os futuros pesquisadores e estudiosos de
nosso teatro busquem na sonoridade/dramaturgia da cena seus futuros objetos de
pesquisa.
146
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APPIA, Adolphe. A obra de arte viva. Trad. Redondo Júnior. Lisboa: Arcádia,
1919.
LIGNELLI, César. “Sonoplastia e/ou entorno acústico: seu lugar na cena teatral”.
Brasília/DF. UnB, 2007.
MARTINS, Morgana Fernandes. “Música para ver, teatro para ouvir: quando o
repertório sonoro se torna a dramaturgia da cena”. Monografia defendida no curso
de graduação em Artes Cênicas – Curso de Habilitação em Artes Cênicas,
Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, 2007.
147
OBICI, Giuliano Lamberti. Condição de escuta: mídias e territórios sonoros.
Rio de Janeiro: 7 Letras, 2008.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009, 2º ed.
148
Entrevistas
Luciano Porto, Marcelo Beré e Marcio Vieira, entrevista realizada por Morgana
Fernandes Martins em 22 de maio 2010, no hotel onde foi realizada parte da
pesquisa de campo, em Jataí / GO.
Leo Sykes, Luciano Porto, Marcelo Beré e Marcio Vieira, entrevista realizada por
Morgana Fernandes Martins em 22 de abril de 2007, na sede do Circo Teatro
Udi Grudi, em Brasília / DF.
Sites consultados
http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume3/numero1/cenicas/claudia_
brigida.pdf. Em 24/08/2010
http://www.circoudigrudi.com.br/fotosovo. Em 14/11/2010
http://www.circoudigrudi.com.br/fotoscano. Em 14/11/2010
http://www.circoudigrudi.com.br/fotosdevo. Em 14/11/2010
http://www.circoudigrudi.com.br/curriculo. Em 14/11/2010
http://www.dicionariodoaurelio.com/Elemento. Em 15/11/2010
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportug
ues&palavra=elemento. Em 15/11/2010
http://primeirosinal.com.br/files/publication/13/94_228.pdf. Em 24/08/2010.
149