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ARANTES, Paulo - Ideologia Francesa, Opinião Brasileira PDF
ARANTES, Paulo - Ideologia Francesa, Opinião Brasileira PDF
OPINIÃO BRASILEIRA
UM ESQUEMA
Paulo Arantes
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IDEOLOGIA FRANCESA, OPINIÃO BRASILEIRA
nervoso desses sintomas reavivados por novo bando de idéias novas, o falso
dilema de sempre: desprovincianizar-se tomando carona e aprofundar, dan-
do mais uma volta ao parafuso, o "mal superior português", como dizia Fer-
nando Pessoa, ou dar as costas ao frenesi internacional, correndo o risco de
ficar mesmo para trás, encalhado na modorra local? Nas palavras de nosso
Autor: "será provinciano participarmos no debate estruturalista como se fôs-
semos os seus inspiradores ou condutores, mas não o será menos se nos ex-
cluirmos dele para assim afirmarmos a nossa firmeza e maturidade intelectu-
ais". Como a pura e simples recusa não trouxesse a ninguém originalidade e
atualização, um espírito bem formado não poderia hesitar, até porque, alega-
va o Autor, desconfiar do caráter frívolo e leviano da moda, cuja impregna-
ção pelo estruturalismo parisiense denunciavam os espíritos graves, não se-
ria trair um apego muito suspeito ao "valor de certas essências, de princípios
eternos, de razões absolutas?"2. Embora inepto, um álibi a não se desdenhar (2) Cf. Estruturalismo —
sob o fogo da chantagem acadêmica, aliás resíduos de importações passadas. Antologia de Textos Teó-
ricos, seleção e introdu-
O leitor português era assim convidado a aderir sem remorsos ao novo siste- ção de Eduardo Prado
Coelho, Lisboa, Portugá-
ma explicativo universal, confiando em que a próxima revoada de idéias não lia, 1967.
trouxesse de volta o velho drama da consciência nacional.
Um drama familiar, como se há de reconhecer. A menos que queira se
iludir — como os espíritos bem envernizados que brilham sem atmosfera nos
confins do subdesenvolvimento —, qualquer intelectual brasileiro sabe que
vive mais ou menos entalado como seu confrade português. As teorias conti-
nuarão vindo de fora, pelo menos até segunda ordem e a depender de razões
que na sua maioria independem do esforço de cada um. Foi assim com o Es-
truturalismo, como tinha sido antes com a Fenomenologia e o Existencialis-
mo, aconteceu com as figuras da Nova Retórica Francesa e voltará a ocorrer
(como de fato está ocorrendo) com o Neo-humanismo franco-alemão em dis-
puta com o derradeiro e confuso avatar "pós-moderno" da Ideologia France-
sa americanizada.
O que fazer? No que concerne a este último conflito, parece que esta-
mos voltando, tal a força da tradição, e mais particularmente, do nosso incu-
rável vezo de arbitrar tête à tête de gigantes, aos tempos de Sílvio Romero, aos
tempos em que púnhamos em campo — o nosso — Doutrina contra Doutri-
na: aos poucos vão se recompondo as duas escolas, a teuto-sergipana em ba-
talha campal com a galo-fluminense. Tal combate de doutrinas, convenhamos
que não podemos glosá-lo impunemente, como se tivéssemos nascido dentro
delas, tampouco descartá-las sem mais, afinal somos parte e vítima do pro-
cesso mundial sobre o qual elas deslizam. Seja como for, uma opinião razoa-
velmente consistente, exigida pela própria internacionalização, por certo de-
sigual, da vida ideológica, não pode perder de vista as pontas desse dilema
clássico da dependência cultural. Quero dizer com isto que se desejarmos de
fato atinar com a índole original da Ideologia Francesa e opinar em conse-
qüência sobre uma linha evolutiva por assim dizer multinacional — conforme
a maior ou menor densidade ou tenuidade cultural do país envolvido, avivan-
do muita brasa dormida ou guihotinando problemas em vias de formulação —,
que em parte está se esgotando, em parte está rasgando a antiga fantasia e
kdk
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seja no âmbito da cultura dita livre, seja nos domínios especializados da cul-
tura universitária. Voltemos a insistir que são linhas que convergem para a
constituição de um sistema da cultura brasileira, por certo sempre insegura
de si mesma. Ora, a Ideologia Francesa, variando a temporada e o corte con-
forme o nível de maturação e consistência do setor concernido, passou a
gravitar na órbita da glosa "teorizante" exigida pela reprodução sincopada
do referido sistema. Não surpreende então que o seu principal foco de irra-
diação, ao contrário do surto existencialista anterior, nele compreendida,
com maior razão, a fase marxizante e terceiro-mundista, tenha sido a Univer-
sidade. E que a resistência, ou pelo menos a recepção mais circunspecta, ve-
nha naturalmente das esferas já formadas.
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Veja-se o caso da música, que refiro de trás para a frente. Durante al-
gum tempo lá pelos idos de 70, a Nova Crítica Musical — não por acaso vin-
da da universidade — andou meio perdida, em razoável medida porque a
melhor estética musical contemporânea, a de Adorno, por mais voltas que se
lhe desse, não se adaptava à irrelevância estético-social das manifestações
avulsas de nossa música erudita, nem ajudava a penetrar a couraça fetichista
— presumida por definição — de nossa música dita popular porém industri-
alizada. Finalmente um musicólogo, estudioso de Mário de Andrade e crítico
literário formado na escola de Antonio Candido, atinou com o nó da questão:
que seria preciso levar em conta a principal característica da prática musical
brasileira, a saber, que "no Brasil a música erudita nunca chegou a formar um
sistema onde autores, obras e público entrassem numa relação de certa cor-
respondência e reciprocidade; lamente-se ou não esse fato, o uso mais forte
da música no Brasil nunca foi estético-contemplativo"6. Passemos então — (6) José Miguel Wisnik,
"O Minuto e o Milênio",
concluía o Autor — aos momentos decisivos na formação do sistema musical in AA. VV., Anos 70 —
popular brasileiro e ao seu complexo funcionamento atual. O que torna mui- Música Popular, Rio de
Janeiro, Ed. Europa,
to mais picante a legítima curiosidade pelos motivos da debandada que se se- 1979/1980, pp. 12-13.
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vinculada à técnica de estufa dos Mestres, sem tempo nem rumo, formou-se
pela primeira vez um sistema de obras (ainda que o "estilo" moderno viesse
de fora, como sempre), artistas, público e intelectuais referidos em conjunto
ao seu passado imediato, ele mesmo anúncio de um projeto de interpretação
plástica da vida cultural em vias de se constituir no país. Sem a formação des-
se sistema7 o gênero de que falávamos teria o fôlego curto de um mero epi- (7) Até onde posso saber,
assinalada pela primeira
sódio retórico, e só a gravitação de conjunto de ambos facultaria o juízo du- vez mais ou menos nestes
termos por Carlos Zilio, A
plo sobre a Ideologia Francesa da Representação Plástica em Crise e o simi- Querela do Brasil, Funar-
lar brasileiro. te, 1982.
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de ninguém mas resultado de uma construção coletiva, como frisado acima. In-
versamente, já não será mais possível avaliar a trajetória da Ideologia Francesa
ignorando o rastro revelador que deixou no Brasil, nas condições indicadas.
Numa palavra, já é possível conceber sem disparate uma História concisa da
Novos Estudos
Ideologia Francesa contada por brasileiros, sem dúvida uma história necessa- CEBRAP
riamente comparativa, mesmo na falta do pendant correspondente, bastando o Nº 30, julho de 1991
simples tirocínio do olho condenado à lente bifocal do comparatismo que é pp. 149-161
nosso lote, para imaginar a contraparte que poria em perspectiva o elo original.
RESUMO
Uma história concisa da Ideologia Francesa contada por brasileiros é possível? O presente estu-
do procura mostrar em que condições, lembrando rapidamente a formação de um sistema da
cultura brasileira, a partir do qual se poderia observar — como numa câmara de decantação —
o enorme girar em falso do circuito internacional cumprido pela referida ideologia. Quem
quiser entendê-lo precisará sobrevoar elos fortes e fracos de uma corrente ao longo de cuja
expan-são os imperativos do desenvolvimento desigual e combinado foram introduzindo uma
linha de ponta do assim chamado culturel no sistema mundial de trocas. Por outro lado, a
experiência intelectual básica em sociedades malacabadas condena o observador também
interessado em opinar ao comparatismo: este vezo acaba armando o ponto de vista da periferia
e configurando uma das raras e derradeiras vantagens do atraso.
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