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RESENHA DO TEXTO “A POÉTICA DA RELAÇÃO” DE ÉDOUARD GLISSANT.

Raísa Feitosa 1

O texto “A Poética da Relação”, de Édouard Glissant, trata de uma qualidade de relação


passível de ser alcançada e que se traduz como um enraizamento que ocorre para a fundação da
identidade no meio circundante, porém de maneira não absoluta. O conceito de rizoma decorre
desse caráter flexível, embora consistente, da relação com o Outro, que permite a percepção de si
mesmo e a troca salutar entre ambos, em que um não impõe ao outro sua configuração cultural, seu
modus operandi particular.

Mas antes de adentrar essa proposição, o autor chama atenção para a necessidade de
compreender as noções de exílio e errância, atentando para o fato que aquilo que os equipara é,
exatamente, a ausência de raiz. Explana que a raiz, conceito criticado por Gilles Deleuze e Félix
Guatarri, é uma espécie de origem unitária que abarca o entorno, mutilando-o para apoderar-se dele.
Mas contrapõe a esse conceito, o de rizoma, que funcionaria como uma raiz flutuante que já não
possui, ou não é possível identificar, ponto de início, mas que se entrecruza e cresce, agregando o
espaço a seu próprio corpo, que se espraia em consonância com o meio, sem descaracterizá-lo. Seria
a relação com o Outro configurada como permuta em que ambos crescem, aprendendo um com o
outro, sem perder sua própria identidade, e sem necessidade de afirmar sua raiz para o outro, visto
que estão tomados pelo rizoma, que desconhece sua raiz em prol do contínuo crescimento em
harmonia com o meio.

Torna-se importante frisar que o rizoma pressupõe enraizamento, todavia esse ocorre sem
flagelo e tende a expansão, não arbitrária, mas negociada, compartilhada por outras raízes,
porventura, rizomáticas. A ideia de rizoma é, essencialmente, o que Glissant chama de poética da
Relação, a qual tem como premissa o prolongamento coletivo e consentido das identidades que se
confrontam positivamente.

Glissant comenta que os autores Deleuze e Guatarri apontam o nomadismo como contrário
à sedentariedade, essa ocasionaria a intolerância, pois estaria pautada na organização social regida
por leis. Menciona Kant, através dos dizeres da “Crítica da razão pura”, os quais associal aos
nômades os céticos. Ou seja, ao invés do nomadismo literal, haveria também um nomadismo

1
Aluna da disciplina Cultura Brasileira I, ministrada pelo Prof. Lourival Holanda, do Depto de
Letras, da UFPE. Exercício avaliativo entregue em 06/02/15.
intelectual, que poderia divergir do senso comum que dá a cola para o corpo social manter-se
fundido culturalmente. Contudo, o autor ressalva que esse nomadismo não implica,
necessariamente, em transformação social, já que não se afirma enquanto ideologia que busca
adesão e tendencia a sublevação, mas tão somente como caminho(s) para relacionar-se com os
mundos concreto e abstrato, de maneira a transitar com mais desenvoltura e discernimento.

Em seguida, problematiza as razões do nomadismo. Seria um impulso da razão que busca o


novo ou um impulso guiado, na verdade, pela necessidade de sobrevivência, estando o sujeito em
situação adversa? Ele explica que há tipos de nomadismo. O circular consiste nesse nomadismo que
é provocado pelas circunstâncias desfavoráveis, que impossibilitam a satisfação de necessidades
básicas. Nesse caso, a sedentariedade sequer é possível. Ele argumenta que o nomadismo circular é
não intolerante, porém quando fala do nomadismo invasor, cujo propósito é a conquista da terra e a
submissão do povo que ali reside, podemos indagar: Mas e se um nomadismo que começou circular
transige para o invasor? O propósito da sobrevivência pode transfigurar-se e os nômades,
percebendo-se mais fortes, tornarem-se opressores, não apenas buscando saciar suas necessidades,
mas exercendo seu poder de forma intolerante? São tênues os limes que separam os tipos de
comportamentos, sejam esses individuais ou coletivos, visto que a complexidade da mente humana
provoca incertezas, dificulta prognósticos e categorizações.

Ou seja, além do circular, temos o nomadismo invasor, o que visa dizimar ou escravizar os
habitantes anteriores do território almejado. O nomadismo invasor pode ocorrer concomitantemente
à sedentariedade, pois os que foram designados para a função bélica (soldados/guerreiros) podem
partir para submeter outros povos e expandir o território ao qual pertencem, enquanto o restante da
população permanece sedentária, como mantenedora do espaço, sujeitando-se a leis que permitem o
convívio social, sem as truculências que de outra forma seriam constantes. Glissant aprofunda a
reflexão acerca do nomadismo invasor, classificando-o como nomadismo em flecha, devido à verve
beligerante que funciona como combustível a gana inquebrantável de novas lutas.

Glissant diz que “O nomadismo em flecha é um desejo devastador de sedentarismo”, mas


esses tipos de nomadismo acabam oscilando, alternando-se, sendo mudados pela própria ação do
tempo, da mesma maneira que os líderes de um povo mudam, afinal, ainda que tenham passado o
tempo de vida no poder, uma hora morrem e outro deverá assumir, por consequência, toda
conjuntura muda. Considere-se o Império Romano, por exemplo, que tanto teve imperadores que
tinham como missão, ás vezes incumbida por eles próprios, expandir seu império, quanto outros que
se concentravam na manutenção das fronteiras, assumindo uma postura defensiva e sedentária, por
assim dizer. Não obstante o autor considerar que o nomadismo em flecha tem a raiz ‘imanifesta’,
isso é discutível. Mas o esforço da classificação se justifica visto que na história do mundo haverá
povos que se enquadram num nomadismo em flecha movido pelo “em-frente” e isento de raiz.

Glissant retoma as noções de exílio e errância, ponderando que a dor do exílio e o prazer da
errância não são congruentes com o nomadismo circular e/ou em flecha, haja vista que a questão da
identidade coletiva pode não ter se tornado uma preocupação fulcral para os sujeitos da comunidade,
que estariam compenetrados na empresa de continuarem vivos. Considera que a identidade se
constrói a partir do mito fundador, intrinsecamente ligado ao território. Essa experiência da
legitimidade pode ser, caso seja impedida pelo exílio forçado, dolorosa, pois inviável, ou, caso não
seja ansiada, quiçá, sendo até mesmo evitada por conta do gosto pela errância, um alívio;
reconfortante pois não houve sua consecução, que mudaria cabalmente a forma de ser e estar no
mundo.

Quando o autor diz que “Na Antiguidade ocidental, o homem no exílio não se sente
inferiorizado nem desapossado, porque não se sente oprimido pela falta – em relação a
uma nação, que para ele ainda não existe.”, traz à tona a lembrança de um poema de
Drummond, “Ausência ”, que fala que a falta na ausência não existe, o que há é a
ausência por estar em si mesmo, e tal sensação remeteria a ideia de falta, mas sendo, na
verdade, uma ausência passível de ser assimilada, tornando-se constitutiva do ser e
conformando nele uma força interior que, a cada instante, é renovada por si mesma.
Talvez essa “ausência assimilada” seja a abertura para a errância, não necessariamente o
gosto por ela, mas o entendimento que pode ser enriquecedor exercê-la, assim como a
força para enfrentar um exílio que, porventura, possa ser imposto ao indivíduo.
Inclusive, essa “ausência assimilada”, esse estar completo, ciente de si mesmo, propicia
estar em uma relação fundadora com o Outro, ou seja, uma relação em que as raízes não
buscam sobrepujar uma a outra, mas, ao contrário, trocam suas seivas e crescem
conjuntamente, agregando novas raízes. As diferenças são, então, reconhecidas e
celebradas. Essa relação fundadora destoa, por exemplo, do comportamento de buscar
no Outro a si mesmo, quando nele não poderá encontrar-se, ou do comportamento
propenso à discórdia, que consiste em se reconhecer como indivíduo a partir da negação
do outro, vendo-o como um território inimigo que deve ser conquistado e submetido.

O texto de Glissant, rico de ideias e considerações antropológicas e históricas,


favorece um olhar aguçado para o passado e uma consciência maior do tempo presente,
estimulando um outro entendimento de cultura, se pensarmos cultura como uma espécie
de identidade coletiva que se transforma com o passar do tempo e é fruto da negociação
daqueles que a configuram através de si mesmos. Nesse sentido a cultura resultaria das
relações estabelecidas entre as pessoas que a cultivam, dando-lhe a própria vitalidade e
tendo-a, muitas vezes, como guia. Se a cultura é compreendida e exercida
consoantemente ao conceito de rizoma, não será um substrato a ser deificado e imposto,
um instrumento de opressão e escarnecimento, mas uma porta que levará a outras
portas, uma senda multiplicada em mil, um forma de acessar a si mesmo e ao(s)
Outro(s).

Referências

GLISSANT, Édouard. A poética da Relação. Disponível em:


<http://www.buala.org/pt/mukanda/a-poetica-da-relacao-pre-publicacao-de-edouard-
glissant> Acessado em: jan/2015.

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