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São Cristóvão-SE | 2017

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE


REITOR
Angelo Roberto Antoniolli
VICE-REITOR
André Maurício Conceição de Souza

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE


COORDENADORA DO PROGRAMA EDITORIAL
Messiluce da Rocha Hansen
COORDENADORA GRÁFICA
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CONSELHO EDITORIAL
Adriana Andrade Carvalho
Aurélia Santos Faraoni
Antônio Martins de Oliveira Júnior
Ariovaldo Antônio Tadeu Lucas
José Raimundo Galvão
Luisa Helena Albertini Pádula Trombeta
Mackely ribeiro Borges
Maria Leônia Garcia Costa Carvalho
Messiluce da Rocha Hansen
Sueli Maria da Silva Pereira
Ubirajara Coelho Neto
Valter Cesar Pinheiro

PROJETO GRÁFICO, EDITORAÇÃO ELETRÔNICA E TRATAMENTO DE IMAGENS


Débora Santos Santana

CAPA
Alana Gonçalves de Carvalho Martins
Débora Santos Santana

IMAGEM VETORIAL DA CAPA


“Projetado por Freepik”

REVISOR TEXTUAL
Sônia Albuquerque

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Aprendendo antropologia em Sergipe : experiências de pesquisa e de ensino [recurso eletrônico] / Orgs: Lorenzo Bordonaro, Ugo
A654a Maia Andrade. – São Cristovão : Editora UFS, 2017.
318 p. : il.
ISBN 978-85-7822-576-6 (online)

1. Antropologia – Sergipe. 2. Antropologia – Estudo e ensino. I. Bordonaro, Lorenzo. II. Andrade, Ugo Maia.
CDU 572.028(813.7)

UFS
Cidade Universitária “Prof. José Aloísio de Campos”
CEP 49.100-000 | São Cristóvão–SE.
Telefone: 3194–6922/6923. e-mail: editora.ufs@gmail.com
www.editora.ufs.br

Este livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita da Editora.
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.
Sumário

Introdução
A Antropologia em Sergipe, sob o
ponto de vista do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia da UFS
06 (PPGA-UFS)
Ugo Maia Andrade
Lorenzo Bordonaro

Lucas Martins Santos Melo


Em Aracaju todo mundo é tabaréu,
exceto quem não é: uma análise
14 acerca da presença de imigrantes
rurais na capital sergipana
Prefácio de Ulisses Neves Rafael

72 Ruth Paes Ribeiro


Quilombola tem que ter uma fala só
Prefácio de Wilson José Ferreira de Oliveira

João Mouzart de Oliveira Junior

120 A cor da oração: a festa e a morte na


irmandade de são benedito
Prefácio Frank Marcon
Lorenzo Bordonaro
Nova Liberdade III:
168 uma experiência didática

Josué Felipe Silva Maia


Interdições do incesto – Lévi-Strauss
e suas considerações sobre Freud
196 e a História
Prefácio de Ugo Maia Andrade

Priscila de Souza Viana


Do silêncio à libertação:
aspectos morais em narrativas
261 de abortamento
Prefácio de Luiz Gustavo P.S. Correia
Introdução

A Antropologia em Sergipe,
sob o ponto de vista do
Programa de Pós-Graduação
em Antropologia da UFS
(PPGA-UFS)
Ugo Maia Andrade
Lorenzo Bordonaro
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

Sete anos se passaram desde que o Programa de Pós-Graduação em


Antropologia da Universidade Federal de Sergipe (PPGA-UFS) entrou
em funcionamento. Não é este, em absoluto, o período de fundação
dos estudos antropológicos no estado, glorificados com presenças
de grande envergadura e expressão nacional, como Felte Bezerra,
Beatriz Gois Dantas e o ancestral dos intelectuais sergipanos devota-
dos às análises sociais, Silvio Romero. Não cabe aqui fazer um balanço
da extensa produção antropológica realizada no estado, por esses e
outros, tarefa para a qual nos falta a competência necessária.

Basta recordarmos que tal produção se espraia por campos distin-


tos da Antropologia, indo dos estudos de expressões do folclore lo-
cal, até análises teóricas do estruturalismo, passando pela etnologia
e pela etnohistória. Trata-se de trabalhos publicados na forma de ar-
tigos, livros, colunas de jornal, comunicações em congressos, entre
outros, e que alcançaram tanto um público especializado quanto
o grande público, amplificando os resultados dessas investigações.

Também não veio o PPGA-UFS inaugurar os estudos pós-graduados


em Antropologia no estado, posto que a Universidade Federal de
Sergipe teve, em um passado não muito distante, especializações
nesta área. O PPGA-UFS representa, isto sim, a primeira iniciativa em
Sergipe de institucionalização da Antropologia na forma de um Pro-
grama de Pós-Graduação, formando aqui antropólogos que estarão
aptos a atuarem em todas as frentes no terreno da Antropologia:
profissional, docência e pesquisa. O período de criação do PPGA-
-UFS coincide com a penúltima fase de expansão dos Programas
de Pós-Graduação em Antropologia no Brasil, quando novos cursos
desta natureza, iniciados apenas com a oferta de um Mestrado, fo-
ram criados, em especial nas regiões Nordeste (UFS, UFPI, UFPB),
Centro-Oeste (UFG) e Sudeste (UFF, UFSCar).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

Ao longo de sua existência, o PPGA-UFS produziu 59 dissertações


desenvolvidas nos mais variados campos temáticos da Antropo-
logia, tanto clássicos – tais como antropologia urbana, antropo-
logia da religião, etnologia e antropologia rural – quanto aqueles
destacados por sua recente criação ou autonomia em face de um
campo matriz, a exemplo dos estudos feministas, de performance e
de gênero. No que concerne à formação originária dos alunos que
têm entrado nas turmas anuais do PPGA-UFS, a heterogeneidade
predomina, havendo, não obstante, prevalência das humanidades,
tais como: Ciências Sociais, História, Comunicação e Letras. Tal mis-
celânea responde, ao menos em parte, pela diversidade de opções
de temas e de abordagens refletidas nas dissertações defendidas ao
longo destes sete anos, seguindo uma tendência já sedimentada na
antropologia brasileira.

Deste modo, os temas clássicos não perdem terreno, mas encon-


tram oportunidade de serem renovados com aportes significati-
vos originários de outros campos do conhecimento, assim como
inspiram “experimentos”, na forma de adaptações metodológicas
e conceituais, em domínios mais novos da antropologia. Mas, seja
por meio de pesquisas perfiladas às “facções” clássica ou moderna,
deve-se resguardar a extrema necessidade da antropologia social
(a que, efetivamente, é ensinada na graduação e pós-graduação
brasileiras) não deixar a sua matriz fundamental: as Ciências Sociais.

Para tal, as sucessivas coordenações do PPGA-UFS vêm buscando


formas de interação com o curso de graduação em Ciências Sociais
desta universidade, beneficiando-se do fato da maioria do quadro
docente permanente do PPGA estar alocada nesse departamento.
Propicia-se não apenas a manutenção do diálogo da Antropologia
com a Sociologia e Ciência Política, mas o interesse de graduandos
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

de Ciências Sociais em desenvolverem seus estudos posteriores


como parte de nosso quadro discente.

Os alunos egressos do PPGA-UFS vêm se inserindo no campo pro-


fissional como antropólogos, trabalhando tanto no setor público
quanto privado; ou lecionando em faculdades locais. Alguns pros-
seguem em cursos de doutorado, normalmente em Antropologia,
oferecidos por outras universidades no Brasil e exterior. O PPGA
mantém um banco de dados sobre seus egressos, a fim de conhecer
melhor suas trajetórias após a conclusão do mestrado e o impacto
que este teve sobre suas vidas. Interessa também saber se tais alu-
nos continuam na Antropologia – seja cursando o doutorado nessa
área ou em outras instituições, seja atuando como antropólogos no
campo profissional ou lecionado em faculdades – ou ainda se se-
guiram outras sendas.

No que concerne ao quadro docente do PPGA-UFS – hoje constituí-


do por 11 professores permanentes, 4 colaboradores e 1 PNPD – a
diversidade também é uma característica salutar, com predomínio
do doutorado nas humanidades: Ciências Sociais (Antropologia e
Sociologia) e Arqueologia. Esta multiplicidade alarga-se quando
checamos a formação anterior ao doutorado, facultando a plurali-
dade temática na pesquisa e na orientação distribuídas nas duas
linhas de pesquisa mantidas pelo Programa: “Cultura, Identidades e
Patrimônio” e “Poder, Rituais e Representações”.

Para um futuro de médio prazo, o PPGA-UFS vem trabalhando a


fim de criar condições adequadas para a criação de um doutora-
do, implicando um esforço coletivo, de docentes e alunos, quanto
ao aumento da produtividade conjunta; aumento da circulação de
docentes, com a respectiva vinda de docentes de outras institui-
ções; diminuição dos prazos de defesa das dissertações; revisão da
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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estrutura curricular e criação de uma agenda anual de eventos. A


presente coletânea – que reúne textos de alunos e de professores
produzidos em torno de dissertações defendidas entre 2015 e 2016
– é parte deste empenho, mas também surge como desejo e neces-
sidade de dar visibilidade às pesquisas que os alunos do PPGA-UFS
vêm produzindo.

Os textos dos alunos, todos egressos nos últimos dois anos, são sín-
teses de suas dissertações, ou um capítulo significativo delas, adap-
tados a fim de fazerem parte da coletânea. Este material é bastante
heterogêneo quanto aos temas e, às vezes, metodologia, mas único
na qualidade. Como forma de produzirmos uma coletânea mista,
com autores discentes e docentes, e facilitarmos ao leitor não ini-
ciado na antropologia o acesso aos resultados das pesquisas aqui
apresentados, optou-se por textos de apresentação escritos pelos
respectivos orientadores dessas pesquisas, à exceção do texto do
Prof. Lorenzo Bordonaro que relata a experiência do projeto OcupA-
ção, por ele coordenado, desenvolvido no interior da disciplina “An-
tropologia, arte contemporânea e intervenção visual” e que contou
com a participação ativa de alunos do PPGA.

Apresentação dos textos


O capítulo de Lucas Martins Santos Melo, “Em Aracaju todo mundo
é tabaréu, exceto quem não é: uma análise acerca da presença de
imigrantes rurais na capital sergipana”, precedido por uma introdu-
ção do professor Ulisses Neves Rafael (PPGA-UFS), orientador da
pesquisa, explora os significados atuais e as dinâmica identitárias
associadas ao termo “tabaréu”, no seu antagonismo com o “citadi-
no”. Este dualismo está relacionado com o modelo de ocupação po-
pulacional que predominou no processo de fundação da nova ca-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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pital de Sergipe, Aracaju, capitaneado por elementos oriundos das


zonas do interior do Estado. Na sua pesquisa, Lucas Martins Santos
Melo analisa a presença e a atual vitalidade de algumas manifes-
tações culturais no contexto da cidade que têm a sua origem na
cultura do interior do estado e das suas regiões mais rurais, entre os
quais a Cavalgada do Aribé, sem deixar de salientar a persistência
de categorias dicotômicas e de valor que continuam contrapondo
tradição rural e cultura citadina.

O texto de Ruth Paes Ribeiro, “Quilombola tem que ter uma fala só”,
com uma introdução do professor Wilson José de Oliveira, orien-
tador da pesquisa, explora as agências e lideranças que atuam na
defesa dos direitos concernentes às Comunidades Remanescentes
de Quilombos no estado de Sergipe, em partícula as dinâmicas de
emergência e de funcionamento da Coordenação Estadual do Mo-
vimento Quilombola de Sergipe (CEMQS).

“Festa e Morte na Irmandade de São Benedito”, de João Mouzart


de Oliveira Junior, com uma introdução do professor Frank Nilton
Marcon, orientador da pesquisa, foca a Irmandade de São Benedi-
to em Aracaju, organismo que resiste até hoje por meio de suas festas
anuais e da obrigação dos membros para com a assistência coletiva de
pessoas da irmandade e seus familiares. São Benedito foi – entre os san-
tos negros – um dos que mais devoção recebeu pelos escravos, desde a
origem do seu culto no inicio do século XVII. Oliveira Junior considera a
festa e a morte na irmandade de São Benedito como “aspectos de
solidariedades e sociabilidades étnicas, procurando entender quais
são as características marcantes desta confraria religiosa que tem
entre seus objetivos possibilitar uma boa morte aos seus irmãos e
familiares e cultuar o seu santo protetor através das festas organiza-
das por seus membros”.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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O texto/ensaio fotográfico “Nova Liberdade III”, por Lorenzo Bordo-


naro, atualmente bolsista de pós-doutorado no Programa, descre-
ve uma experiência didática desenvolvida em 2014 no âmbito da
disciplina por ele ministrada “Antropologia, Arte Contemporânea e
Intervenção no Espaço Público”. Durante o curso, os alunos foram
envolvidos numa aproximação etnográfica à ocupação Nova Liber-
dade III, em Aracaju e, a partir desta experiência, uma exibição ex-
perimental foi organizada pelo professor e pelos alunos na galeria
da CULTART, explorando as potencialidades do cruzamento da et-
nografia e da prática expositiva da arte contemporânea.

O texto de Josué Felipe Silva Maia, com introdução do profes-


sor Ugo Maia Andrade, “Interdições do Incesto – Lévi-Strauss e suas
considerações sobre Freud e a História”, explora as relações, diferenças,
contrastes entre Freud e Lévi-Strauss na análise da interdição do inces-
to. A partir das diferentes interpretações da interdição do incesto, como
fundação da psicologia individual (no caso de Freud) e como origem da
sociedade humana, através da instituição do princípio de troca (no caso
de Lévi-Strauss), Josué Maia chega a colocar uma série de questões inte-
ressantes sobre o estatuto do mito histórico e da narrativa analítica no
campo da psicanálise.

Por fim, “Do Silêncio à Libertação: aspectos Morais em Narrativas


de Abortamento”, por Priscila de Souza Viana, precedido de uma in-
trodução do professor Luiz Gustavo P. S. Correia, orientador da pes-
quisa, explora a prática do abortamento clandestino na região de
Aracaju, a partir da experiência de profissionais paramédicos envol-
vidos e de mulheres que tiveram necessidade de se direcionar para
este serviço. Lamentavelmente, a Interrupção Voluntária da Gravi-
dez (IVG) continua não só ilegal (e, portanto, não regulamentada a
não ser em pouquíssimas exceções) no Brasil, como também objeto
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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de um estigma particularmente agudo, devido também ao ressur-


gimento de integralismos religiosos cujas influências no campo da
política, dos direitos humanos, reprodutivos e de gênero marca de
forma sinistra o atual cenário do país. Viana explora esta dimensão
biopolítica e as práticas discursivas associadas numa abordagem
etnográfica que escolhe o silêncio e o segredo como pontos de par-
tida para abordar temas relacionados com gênero e poder, priori-
zando “a narração das vozes subalternas a respeito de situações de
opressão, exclusão em contextos de conflitos políticos e relações de
poder nas quais estão inseridas”.

RETORNAR AO SUMÁRIO
Lucas Martins Santos Melo

Em Aracaju todo mundo


é tabaréu, exceto quem
não é: uma análise acerca
da presença de imigrantes
rurais na capital sergipana
Prefácio de Ulisses Neves Rafael
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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Prefácio
Ulisses Neves Rafael1

A gente daqui carece de algum verniz, tem pouco arejo


de leitura e civilidade, janela o dia inteiro, bota cadeiras na
porta só para escarafundar as feridas do vizinhos.
Francisco J. C. Dantas. Cartilha do silêncio, 1997.

Aracaju é uma cidade sui generis. Não que outras capitais do país
também não guardem suas particularidades. Poderíamos indicar de
pronto sua juvenilidade e o aspecto original de seu traçado urbanís-
tico, mas teríamos de aceitar também o contra-argumento daque-
les que reivindicam para Teresina, fundada em 1852, a primazia no
país em termos do planejamento moderno, ou o discurso de “cida-
de ideal”, aplicado a Belo Horizonte, fundada também em período
próximo, 1897, e pautado nas mesmas concepções de “Ordem e
Progresso”, características da fórmula positivista que já se anuncia-
va, ainda no auge do Segundo Reinado2.

Onde residiria, portanto, a distinção entre, pelo menos, essas três


capitais brasileiras, que guardam entre si tantas semelhanças quan-
to ao seu impulso inicial? Talvez possamos vislumbrar alguma sin-
gularidade em meio à população responsável por ocupar esses nú-
cleos habitacionais recentes. Arriscaríamos dizer que, ao contrário

1 Professor Associado III do Departamento de Ciências Sociais da Universidade


Federal de Sergipe e membro do quadro permanente do Programa de Pós-
-Graduação em Antropologia da mesma instituição.
2 Sobre o modelo específico de fundação de Belo Horizonte, consultar: MAIA;
PEREIRA, 2009.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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das duas outras capitais mencionadas, fundadas em regiões mais


recolhidas do território e, portanto, em contextos mais propriamen-
te provincianos3, em Aracaju, vamos observar a discrepância entre
as concepções modernistas do discurso subjacentes ao desenho
geográfico de seu projeto inicial e a característica sociológica da
sua população pioneira, constituída, em grande medida, por pes-
soas oriundas das áreas mais recolhidas do Estado, mais especifica-
mente, de remanescentes rurais, as quais, mesmo na cidade e por
muito tempo ainda, assegurariam, através de inúmeros recursos e
estratégias, a referida vinculação com o mundo agrário.

É exatamente sobre o intenso fluxo de moradores em demanda da


capital sergipana, desde o seu período de fundação até os tempos
mais recentes, que o trabalho a seguir, de autoria de Lucas Martins
Santos Melo, debruça-se. Trata-se de uma versão condensada de sua
dissertação de mestrado, intitulada: “Em Aracaju todo mundo é ta-
baréu, exceto quem não é: um estudo acerca da disputa política
entre tabaréus e citadinos”, a qual tive a satisfação de orientar.

Antes, porém, de delegar a palavra para o responsável pela discus-


são em tela, convém tratar ainda sobre as particularidades do pro-
cesso de fundação e ocupação da nova capital sergipana para que
assim, quem sabe, melhor se afigure a importância do seu argu-
mento, em favor do significado simbólico que a categoria “tabaréu”4
assume no contexto local.

3 A ideia de provincianismo aqui utilizada, tanto tem a ver com horizonte geo-
gráfico, quanto com a postura intelectual, mais crítica acerca dos valores cos-
mopolitas e à ideia de progresso. A esse respeito, consultar: OLIVEIRA, 2011 e
DIAS, 2008. Retomaremos a discussão dessa categoria adiante.
4 Reservaremos a definição desta categoria ao próprio Lucas Melo que, no traba-
lho mencionado, teve oportunidade de explorá-la, tanto historicamente quan-
to à luz do debate intelectual mais profundo.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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Aracaju: uma cidade e sua natureza


Aracaju é uma capital, cujas características topográficas, se não jus-
tificam, pelo menos explicam certa “insularidade” presente desde a
sua fundação até a expansão e ocupação de áreas novas em perío-
dos mais recentes5.

A imagem “aquática”, principalmente, foi explorada ad nauseam por


inúmeros estudiosos do tema para representar a cidade em seus
primórdios. Os pesquisadores destacam também a complexidade
de outros aspectos materiais inerentes ao contexto local; fatores
de impedimento do desenvolvimento acelerado de uma capital de
fundação recente, até para os padrões nacionais e, por que não di-
zer, continentais, cuja origem remonta à “aurora do século XVI”.

A “sultana das águas”, como a ela se referiu Manuel da Cunha Gal-


vão, no relatório em que prestou informações da viagem imperial à
Província de Sergipe, em janeiro de 1860, recebeu a atenção redo-
brada de historiadores, cronistas e memorialistas, que optaram por
destacar, pelo menos com relação à primeira fase de sua evolução,
os aspectos naturais do lugar dos cajueiros.

As péssimas condições sanitárias eram motivo das constantes quei-


xas da população, atestadas, inclusive, por viajantes como Avé-Lal-
lemant, que em sua passagem por Aracaju, em 1859, registrou “a fal-
ta de boa água potável”, motivo das febres intermitentes das quais

5 A inspiração para a ideia “insularidade” aqui utilizada foi buscada na literatura


de ficção, o que fazemos, cientes da distância que Aracaju guarda dos contex-
tos marítimos propriamente reclusos com relação a um suposto continente,
embora seja de isolamento físico, exatamente, de que estamos tratando aqui,
além, também, do sentido antropológico que adota a ideia de insulamento
cultural obtido a despeito das condições ambientais. Tentaremos desenvolver
esse argumento na sequência, consoante: VEIGA, 1998 e, quanto ao insula-
mento cultural, verificar: BENEDICT, 2015.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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ele próprio padeceu durante os dias em que permaneceu na Capital


Sergipana; também as edificações à base de taipa e palha dos arra-
baldes não escaparam ao olhar engenhoso do médico alemão:

Permitiram a gente das classes baixas, fixadas aos poucos em Ara-


caju, construírem habitações ao seu modo e conforme os modelos
que já tinham, sob os altos coqueiros. Vê-se assim, por trás e junto
à parte bonita da cidade de Aracaju, uma horrível aglomeração de
casas cinzentas, de barro, com telhados de palha de coqueiro, ran-
chos primitivos, como se justifica no sertão, mas que não deviam
nunca ser permitidos numa nova capital provincial recém-fundada.
Aracaju perde om isso toda ilusão, embora os habitantes fuscos de
seu bairro cinzento, a maior parte deles de origem índia, e até mes-
mo de raças inteiramente puras, muitas vezes bonitos, combinem
muito bem com os telhados de palha e os altos coqueiros, que sus-
surram por cima deles (AVÉ-LALLEMANT, 1961, p. 97 – 98).

Análises desenvolvidas em épocas posteriores sinalizaram a regu-


laridade do discurso voltado para as condições adversas da nova
capital, provocadas, sobretudo, pelas exigências ambientais, tais
como a realizada por José Calazans Brandão da Silva:
Aracaju é uma porção de terra de légua e meia, por entre
rios, entre o rio Poxim Grande, ao sul, e o Sergipe ao norte,
quando neste, antes de chegar ao mar, entra e faz barra
aquele, ficando cercada esta barra a modo de istmo, por
entre rios, quando se vão unir um com o outro e pelo levante
e mais largo, rodeado de um grande invadeável alagadiço,
que começando nos ribeiros do Poxim e formando uns
apecun mui espacelados, deixa algum terreno livre para as
margens do Sergipe (SILVA, 2013, p. 81)6.

6 Utilizamos nesta e nas próximas citações a grafia coeva.


Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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Na justificativa para a transferência da capital, embora atenue os


aspectos naturais em favor de razões comerciais, tais como a proxi-
midade de área propícia à construção de um porto para escoamen-
to da produção do açúcar, fator também associado às condições
geográficas e topográficas específicas, Fernando Porto mencionou
as “praias desabitadas”, os estuários largos, as águas estagnadas, os
mangues, os pântanos, o “deserto de lama”, entre outros motivos do
isolamento material e simbólico de que falamos há pouco: “Bem pe-
sadas as coisas, Aracaju nasceu numa ilha. [...]. Uma terra que qual-
quer aguaceirozinho enquadrava na mais elementar definição de
ilha” (PORTO, 1991, p. 35)7.

E, por fim, entre os principais expoentes de uma interpretação de


Aracaju, que aqui estou denominando de naturista e, talvez, dentre
eles o que mais romantizou a relação da cidade com o meio, Mario
Cabral deixará sua marca entre os estudiosos contemporâneos, em-
bora, nem sempre pelas imagens idílicas com que abre sua obra,
Roteiro de Aracaju:
A Cidade de Aracaju, [...] nasceu assim: feia, pobre,
impaludada, perseguida por muitos, ajudada por
alguns. Ao nascer não contemplou outra coisa que
não fosse mangues, lagoas, pântanos e alagadiços.
Engatinhou sobre um charco imenso, onde, nas noites
longas e tristes, a saparia coaxava em um coro potente e
numeroso (1955, p. 37).

7 A influência de Fernando Porto sobre as gerações futuras de geógrafos se fará


sentir menos pela utilização das imagens “naturistas” para representar Aracaju,
por ocasião da sua transformação em centro de gravidade política do Estado,
e mais pela demarcação da evolução da Capital, em quatro fases – a primeira
delas denominada, entre outras expressões, de “Conquista da duna”. Consultar:
LOUREIRO, 1983; VILAR, 2002, e; ARAÚJO, 2006. p. 15-44.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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E complementa: “Aracaju era o deserto, a praia inhospita, os terre-


nos cheios de mangues e de lagoas, terra sem dono, terra de nin-
guém, povoada, em princípio, pela gente pobre modesta e sem
tradição, sem fidalguia” (CABRAL, 1955, p. 41).

Evidentemente esse tipo de discurso não se reduz aos poucos casos


aqui mencionados. Ele é parte de uma construção que se fez mais pre-
sente, principalmente, por ocasião da comemoração do Centenário
da fundação da cidade, ocorrido em 1955. Sobre este aspecto, desta-
cam-se os nomes de José Aloísio de Campos (1949); Sebrão Sobrinho
(1955) e José Bonifácio Fortes Neto (1955), ainda que a tendência tenha
se estendido por um largo tempo além daquele marco comemorativo
e entre áreas variadas do conhecimento que vão da história à geogra-
fia, passando pela sociologia, arquitetura, entre outros8.

Assim, os testemunhos e registros acerca das origens da recém-


-criada capital, caracterizam-se pelo destaque à paisagem natural,
como suas elevações de terreno constituídas por materiais finos, as
famosas dunas9, em cujos desnivelamentos ou cavas abriam espa-
ços para a formação de pequenos charcos e lagoas; manguezais e
apicuns frequentes por toda extensão das margens paludosas do
complexo fluvial que afeta toda malha urbana, considerados to-
dos fatores primordiais de retardamento do processo de ocupação

8 As representações acerca do aspecto insalubre e ameaçador do ambiente físi-


co onde se fundou Aracaju tem sido uma constante também nos estudos acer-
ca do tema realizados, principalmente, pelos geógrafos, cujas representações
acerca da cidade aquática, por exemplo, vamos encontrar em LOUREIRO 2002,
p. 87-10 e ARAÚJO, 2006, p. 15-44.
9 A recorrência desse tipo de acidente na capital resultou na denominação de
um dos seus bairros mais próximos do centro, a Suissa, com dois “s” e sem acen-
to, uma clara associação de seus cordões de areia com a neve constante dos
Alpes. A grafia popular é mantida pelos órgãos públicos administrativos locais,
nas placas indicativas de localização da cidade até hoje.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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demográfica e de comunicação entre as suas áreas constitutivas,


concorrendo para a formação de verdadeiros enclaves no interior
de uma capital que, a princípio, dispunha-se a ser integrativa, pelo
menos nas primeiras décadas da formação (ARAÚJO, 2006).

Se por um lado, as imagens merencórias da paisagem hostil da nova


capital, composta por “praia inóspita” (SILVA, 1939), águas paradas e
“febres intermitentes” (SILVA, 2013), opõem-se, inicialmente, às repre-
sentações acerca da barroca e caduca São Cristóvão, primeira capital
da Província, com seus conventos coloniais, igrejas seculares, sobra-
dos patriarcais, ruas estreitas, traçado sinuoso e localização recuada,
elementos eminentemente citadinos, porém, topograficamente im-
próprios à tendência de planificação urbanística do 2º Reinado. Por
outro lado, posterior e paulatinamente vai se impondo sobre Aracaju
a imagem do terreno conquistado através da “luta heroica” e da bra-
vura do homem empreendedor (Cf. PORTO, 1991), mais condizente
ao estilo de vida mais propriamente urbanístico, previsto no plano da
moderna capital. No intuito de escapar às imagens de natureza indô-
mita que lhe marcaram sua origem, as representações sobe a cidade
vão assumindo um tom mais colado ao progresso10.

Em meio ao embate entre essas visões envolvendo as duas capitais,


a antiga e a nova, a colonial e a tropical, a barroca e a moderna,
fadado a desaparecer à medida que São Cristóvão foi aos poucos
perdendo seu protagonismo político, outro contraponto principal
despontou para realçar a centralidade urbana de Aracaju, enquanto

10 As ideias aqui levantadas encontram respaldo nas assertivas de Santos, para


quem a cidade de Aracaju se insurge contra a natureza; ela se afirma na ideia
de progresso e na supremacia da técnica sobre o ambiente. Nesse sentido, a
arquitetura possui um papel preponderante para o pensamento que guia as
práticas urbanas: ela se estabelece como “a imagem urbana” capaz de corrigir
as “imperfeições naturais” (SANTOS, 2007, p. 78).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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capital vitoriosa e moderna. Trata-se das comparações entre o estilo


de vida mais orientado pela lógica cosmopolita que se insinuou en-
tre as primeiras levas de moradores e os costumes arraigadamente
provincianos insistentes em se assegurarem na nova capital.

O lugar do tabaréu na cidade


Em Aracaju, estamos inevitavelmente confrontados com um
fenômeno que os incautos poderiam definir como o de uma
suposta “falta de identidade”, afirmativa que recorrentemente
identificamos no discurso corrente, uma convenção, inclusive,
sustentada nos debates acadêmicos. A justificativa para tal tal-
vez deva ser buscada no processo através do qual a capital foi
fundada. Este é o principal ponto a ser explorado a posteriori
na contribuição de Lucas Melo, e que diz respeito, exatamente,
ao modelo de ocupação da nova capital, capitaneado por ele-
mentos oriundos das zonas interioranas do Estado, cuja ligação
com o passado se manteve sem um reinvestimento simbólico no
novo habitat, a despeito dos apelos e influência que a convivên-
cia num centro urbano moderno exerce.

A permanência prolongada no lugar possibilita a observação da


presença de inúmeros e fortes traços diacríticos, em especial, no
que se refere à atuação desse segmento denominado comumente
na capital de “tabaréu”, aliás, expressão bastante arcaica da nossa
língua e de uso desconhecido em estados vizinhos. São os indiví-
duos assim identificados que promovem algumas das manifesta-
ções mais expressivas da vida social urbana, sobretudo, em oca-
siões extraordinárias, como as festas juninas, por exemplo.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

23

Trata-se, portanto, de uma parte populacional, cujos integrantes si-


tuam-se nas franjas da sociedade, ou carregam consigo o estigma
da procedência, razão pela qual sonegam sua origem no conjunto
das transações cotidianas, acionando, sempre que possível, os sím-
bolos de pertença do universo citadino. São as urdiduras em torno
da construção dessa identidade local que iludem os incautos acerca
da sua suposta ausência.

Assim, a análise do processo de fundação da nova capital teria que


impreterivelmente, considerar a presença dessa parte populacional
menos abastada atraída ou pelo projeto modernista da nova capi-
tal, ou pelas condições de sua edificação que exigiam grande quan-
tidade de mão de obra barata, mas cuja presença no “Quadrado de
Pirro”11 não seria admitida. As áreas centrais da cidade foram ocupa-
das apenas pelo alto escalão formado por funcionários públicos, e
por alguns poucos proprietários de engenhos de cidades próximas,
os quais atendiam às exigências econômicas dos códigos de postu-
ra que a cada década eram reeditados, cabendo à parcela pobre da
população recorrer às franjas do “tabuleiro de xadrez”.

Entre os segmentos predominantes nessa primeira fase de ocu-


pação da capital, que compreende o período da sua fundação,
em 1855, até 1900, destaca-se a presença de negros, procedentes,
especialmente, das zonas açucareiras em declínio e os chamados
tabaréus, provenientes, nomeadamente, da área hoje conhecida
como microrregião do agreste, os quais ali passaram a habitar em
casas de taipa e palha, construídas nos morros de areia espalhados

11 Este é o nome pelo qual ficou conhecido o plano urbanístico da cidade, elabo-
rado por uma equipe de engenheiros militares, liderada por Sebastião Pirro.
Para homenageá-lo, foi assim denominada a área que substituiu os terrenos
alagadiços e os manguezais que antes da transferência da capital caracteriza-
vam o tipo de solo em que seria ela seria fundada. (Cf. Porto, 1945).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

24

pelos arredores da cidade, pela região da cidade, hoje compreen-


dida pelos bairros Suíça, Cirurgia, Siqueira Campos, Santo Antônio,
Bairro Industrial e o Dezoito do Forte, principalmente.

Centro da análise aqui proposta, o tema “tabaréu”, portanto, relacio-


na-se aos fluxos internos e, por conseguinte, à contribuição deste
imigrante no processo de consolidação da capital sergipana, que
norteou a investigação de Lucas Melo. Em sua dissertação, ele se
deteve sobre algumas das atividades desenvolvidas no interior des-
se segmento, sobretudo aquelas de caráter mais festivo, as quais
remetem à tradição agrária dos seus agentes, como é o caso dos
festejos juninos e, em particular, da Cavalgada do Aribé. A esta, foi
dedicado um capítulo à parte. Trata-se, nas palavras do próprio pes-
quisador, de um evento com as seguintes características:

Ele é conhecido como Cavalgada do Aribé e ocorre desde 2000,


inicialmente era organizado por Evandro Modesto e Carlos Lôbo,
e que depois Alcivan Menezes, ex-vereador de Aracaju, se juntou a
eles. O evento conta com a presença, nas últimas edições, entre dez
e doze mil cavalos vindos não só de Sergipe, mas também de esta-
dos vizinhos, na primeira quinzena de junho, abrindo o período dos
festejos juninos na Capital. O evento, que já faz parte do calendário
festivo da cidade regulamentado pela lei nº 3.450 de 2007, de auto-
ria do vereador Emanuel Nascimento (PT), é um cortejo de cavalei-
ros montados, carroças, charretes e apreciadores da equinocultura,
percorrendo um trajeto de cerca de dez quilômetros. Alguns dos
participantes levam bastante a sério a cavalgada e chegam a utili-
zar a típica indumentária de couro do vaqueiro com direito a gibão,
perneira, botas e, claro, o tradicional chapéu (MELO, 2016, p. 80).

A partir deste recorte, é possível perceber que, mesmo tendo sido fun-
dada sob o signo do progresso e da modernidade, Aracaju conservou
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

25

e até proporcionou em seu âmbito a emergência de inúmeras expres-


sões culturais de inspiração rural, as quais, aliás, impregnam outros seg-
mentos da capital influenciando o ritmo de vida do aracajuano.

A importância de um estudo sobre tais aspectos relaciona-se tanto à


sua forte presença no processo de consolidação da capital sergipa-
na como ao fato de pouquíssimos trabalhos acadêmicos desenvol-
vidos no estado terem dedicado alguma atenção àquele segmento
e, menos ainda, ao papel desempenhado pelos migrantes no pro-
cesso de consolidação da capital no que diz respeito à implantação
de traços identitários fortes no local. Daí porque, em função da aná-
lise proposta pelo autor principal deste trabalho, fez-se necessário
levantar a discussão da categoria “migrante” e seu correlato local, o
“tabaréu”, que, em Aracaju, adquire um significado sociológico es-
pecial, já que muito frequentemente, ela se apresenta no discurso
dos seus moradores quando se faz oportuno elaborar representa-
ções acerca desses indivíduos provenientes das zonas agrárias do
estado, como também sobre todo aquele que, na capital, age em
descompasso com a perspectiva modernizante da cidade.

Melo destaca, no seu tratamento da categoria em tela, o tabaréu. A


identificação deste é efetivada em situações de tensão, haja vista o
desacordo entre a atribuição que é feita e quem a recebe. De todo
modo, tratam-se daqueles que são detentores de traços diacríticos,
que naquele contexto urbano, repercutem negativamente entre
seus detratores, embora isso nem sempre resulte na negação da
sua própria identidade.

Embora aqui se tenha enfatizado o modelo específico de migração


desenvolvida, principalmente, por motivações econômicas, é possí-
vel supor que, apesar de majoritariamente composta por indivíduos
que buscavam na cidade melhores condições de trabalho, uma par-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

26

cela significativa desses migrantes chegou a Aracaju atraída por


aquilo que ela representava de mais avançado – ou seja, o discurso
e as representações acerca da cidade moderna e planejada exercem
uma influência decisiva sobre um número significativo de pessoas
que para lá se deslocavam. Pode-se também afirmar que, para mui-
tos dos que recorreram à capital em condições menos favoráveis,
buscando ali melhores oportunidades de existência, foi possível,
ao longo de sua permanência no local, sobrepor os percalços da
condição migrante, incorporando-se aos padrões de convivência
na cidade, sem prejuízo das referências e dos valores anteriormente
adquiridos, os quais eram acionados e ressignificados em circuns-
tâncias muito especiais da vida coletiva.

Desse modo, destacar, entre as variáveis explicações acerca da vin-


da dos imigrantes para a cidade, as de caráter mais simbólico. A jus-
tificativa para tal deve ser buscada na preocupação em escapar aos
recortes mais convencionais sobre o tema da imigração, com ênfase
às razões sociológicas e econômicas como variáveis explicativas do
fenômeno por excelência12.

Últimas considerações antes de outro começo


Os estudos variados têm sido localizados sobre segmentos que se
enquadram na categoria de imigrante rural como menção nesses

12 Nestor Garcia Canclini (2003) fala de “narrativas melodramáticas” para se re-


ferir aos estudos sobre migração, transculturação e outras experiências inter-
culturais que em seus relatos enfatizam as experiências de desarraigamento e
conflitos, numa clara resistência aos processos supostamente fracassados da
globalização e em favor das “profundas e persistentes diferenças e incompati-
bilidades entre culturas”. Embora esse autor recomende como postura ideal o
diálogo entre os “defensores das diferenças locais e subjetivas”, e os que fazem
os “relatos épicos” das conquistas da globalização (2003, p. 31-32)
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

27

outros trabalhos por termos correlatos, tais como o caipira e o ma-


tuto; assim como a categoria tabaréu, também atestam uma apre-
ciação negativa baseada no fato de que, na antinomia constante
estabelecida entre o campo e a cidade no Brasil, os aspectos mais
valorizados são aqueles pertinentes ao mundo da industrialização
e modernização. O tabaréu, portanto, está associado às represen-
tações do que é atrasado. Daí as imagens correntes de um sujeito
abobalhado, desconfiado, preguiçoso e grosseiro. É justamente a
recuperação do debate acerca da utilização e remanejamento des-
sa categoria em particular, que Lucas Melo se dedica, realizando de
maneira mais do que satisfatória, um debate que reserva ao autor
uma apresentação de rico material teórico.

Em suma, encerraria esta apresentação, lembrando o escritor por-


tuguês Fernando Pessoa, em suas considerações teóricas, contidas
na obra Textos de intervenção social e cultural: a ficção dos heterô-
nimos (1986), mais especificamente nos textos “O provincianismo
português” (1928) e “O caso mental português” (1932), onde tece
inúmeras considerações acerca do conceito de cidade e de citadino,
em contraposição aos de província/provinciano e ainda ao de “cam-
pônio”, tendo como parâmetro para suas classificações, a atitude e a
naturalidade com que cada um encara a “civilização”: Assim, o “cam-
pônio” “sente violentamente a artificialidade do progresso; por isso
se sente mal nele e com ele, e intimamente o detesta”; “o citadino
não sente a artificialidade do progresso. Para ele é como se fosse
natural. Serve-se do que é dele, portanto, sem constrangimento
nem apreço. Por isso o não ama nem desama: é-lhe indiferente”; o
provinciano sente, sim, a artificialidade do progresso, mas por isso
mesmo o ama. Para o seu espírito deserto, mas incompletamente
desperto, o artificial novo, que é o progresso, é atraente como novi-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

28

dade, mas ainda sentido como artificial”13. E mais, na análise que de-
senvolve sobre o conjunto de pessoas mais cultas, cuja posição na
escala de relação com a cidade tem mais a ver com predisposições
mentais do que por localização geográfica, o estatuto de provincia-
no compreende “três sintomas flagrantes”: “o entusiasmo e admira-
ção pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e
admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental
superior, a incapacidade de ironia”.

Essa condição privilegiada do “provinciano”, com a qual identifico


também o “tabaréu”, permite-lhe transitar entre campos identitá-
rios, às vezes antagônicos, ou seja, ora o imigrante aciona os re-
cursos dessa condição citadina privilegiada, com uma disposição
para sentir, pensar e agir nos moldes do ethos urbano, ora recorre
aos elementos dessa tradição cultural original, que normalmente é
sufocada pelo peso das relações cotidianas enfrentadas na cidade.
Trata-se, portanto, de uma personagem dividida entre dois univer-
sos de referência, uma ambivalência típica das práticas modernas; o
“viajante intercultural” de que fala Clifford.

13 LOUREIRO, 1996, p. 69 – 70; PESSOA, 1986, p. 115.


Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

29

A distinção entre tabaréus e citadinos:


análise conceitual de uma categoria
Lucas Martins Santos Melo14

Introdução
Em Sergipe, temos algumas expressões peculiares, uma das quais,
provavelmente a mais conhecida de todas é “cabrunco”, uma inter-
jeição utilizada para os mais diversos fins. Esse tipo de expressão
que já se incorporou no vocabulário do sergipano, é ouvido de
norte a sul do estado, seja no litoral, seja no sertão. Reza a lenda
que surgiu da palavra carbúnculo, doença fatal que aflige o gado.
Porém, no uso corrente passou a ser utilizada para quase todas as
situações, desde elogio, expressão de espanto, ou até como um pa-
lavrão. Supõe-se que esta seja uma das várias heranças interioranas
ainda permeadas no cotidiano do aracajuano.

Ao contrário de outras localidades do Brasil que usam os termos


matuto15, caipira, jeca, e até caboclo, que é o mestiço do português
com o indígena, referindo-se também a certo tipo de vida e/ou
modo de ser, em Sergipe, de maneira geral, utiliza-se mais frequen-
temente o termo tabaréu, cuja adoção na linguagem coloquial local

14 Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia


da Universidade Federal de Sergipe.
15 Neste trabalho quando mencionarmos os termos: “caipira”, “matuto” ou “ser-
tanejo” estaremos nos referindo ao homem do campo. Deixaremos o termo
tabaréu especificamente para nos referir ao seu aspecto simbólico na cidade
de Aracaju.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

30

e seus desdobramentos ao longo do tempo, é um dos objetos de


análise desta pesquisa, uma vez que seu rastreamento talvez nos
conduza a uma compreensão da construção do ethos local que pas-
sa, fundamentalmente, pela relação da capital com o interior.

O sinônimo de tabaréu é utilizado em nosso país desde o século re-


trasado e tinha como definição os habitantes de cidades pequenas
com hábitos rurais, rústicos (MORAIS FILHO, [1895] 1999). Ou então,
como “[...] o camponês, que trabalha nas terras dos nobres, dos fa-
zendeiros e seringalistas” (MOURA apud CHIANCA, 2013, p. 141). Em
Aracaju, é utilizado corriqueiramente o termo tabaréu para se referir
àquele oriundo do interior, da roça, do campo, ou àquele, mesmo
que nascido na capital, morador de núcleos populacionais meno-
res. Em ambas as origens, o sujeito tachado de tabaréu possui uma
conduta, no meio urbano, acanhada, ingênua, tacanha. A expressão
pode ser usada de forma agressiva, como um xingamento, ou de
forma jocosa, desde que seja com algum conhecido. Foi observa-
do, durante a realização da pesquisa, que quando ocorre o uso do
termo é para se fazer uma distinção entre o ser moderno, sofistica-
do, urbano, citadino e supostamente cosmopolita, daquilo que não
pertence a essas categorias. Um uso marcado para diferenciação
simbólica. É comum se ouvir expressões achincalhadas a respeito
do tabaréu em Sergipe, como: “O tabaréu deveria ter horário para
entrar na cidade, porque só faz atrapalhar o fluxo dela” ou “o tabaréu
é o bicho que mais se parece com gente”.

No entanto, diferente de outras plagas, na capital sergipana uma das


peculiaridades é o fluxo incessante entre o interior e a capital, seja em
razão do trabalho, para estudar, seja por motivos de saúde. A capital é
sempre o local para o qual se convergem às pessoas do interior para
sanar algum tipo de obstáculo maior. Isto ocorre porque a cidade em
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

31

questão, Aracaju, fundada e povoada por toda sorte de “forasteiros”,


ao contrário de algumas capitais, está numa zona central do estado
facilitando o seu acesso. Ademais, o tamanho diminuto do estado,
conta apenas com pouco menos de 22 mil quilômetros quadrados,
onde se verifica um fluxo de deslocamentos mais intensos entre es-
ses dois ambientes, o interior e a capital. A exemplo, o município
mais distante da capital, Canindé do São Francisco, localizado no Alto
Sertão, fica a 213 quilômetros de distância.

Esta diferenciação, entre capital e interior, iniciou-se a partir do sé-


culo XIX quando a zona rural no Brasil começou a sentir os efeitos
de crises, tanto econômicas quanto sociais, que culminaram em
algumas revoltas ao redor do país. O latifúndio de outrora já não
era mais o mesmo; enquanto isso, cada vez mais a zona urbana
aglomerava maior quantidade de pessoas e chamava mais atenção,
inclusive do poder público. Houve o surgimento de ideias referen-
tes à urbanização, especificamente às diferenças entre a vida rural
e urbana, e também à difusão do modo de vida urbana. A revolu-
ção industrial na Europa e o contato cada vez maior entre os dois
continentes fizeram acelerar o processo de urbanização nacional
(FREYRE, 1985). A elite sempre desejando ser, parecer, estar na Euro-
pa e, consequentemente, afastar-se, sair da civilização “atrasada” do
Brasil para pertencer a uma realidade “civilizada”.

Talvez pudéssemos colocar como possibilidade de afirmação um


enunciado, parafraseado de Eduardo Viveiros de Castro16: “Em Araca-
ju, todo mundo é tabaréu, exceto quem não é”. Justificamos. É que
na capital sergipana, temos a impressão de que alguns dos habitan-
tes da cidade fazem questão de renegar esse passado, quando asso-

16 A frase original do prestigiado antropólogo brasileiro é: “No Brasil, todo mundo


é índio, exceto quem não é!”.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

32

ciados à tradição agrária ou provinciana, embora ainda preservem,


inadvertidamente, práticas e costumes considerados tabaréus, muito
provavelmente adquiridos através dos seus ascendentes. Itens como
gastronomia, expressões verbais, modos de entretenimento, como a
Cavalgada do Aribé, para citar alguns exemplos; ou seja, eles “[...] vão
se imiscuindo no ambiente urbano, no esforço de se confundirem
com o ethos urbanístico e progressista da nova capital. [...] [Com o
intuito] de abafar os traços de provincianismo que o identificaria com
a condição anterior de existência” (RAFAEL, 2009, p. 283).

Esta é uma pesquisa pertinente ao nosso modo de ver, já que se faz


necessária uma análise da posição deste sujeito no cenário urba-
no de Aracaju, dado que é notório o afastamento e desdém, pelo
menos por parte do Poder Público, quando o imigrante rural chega
à capital. Sem falar na obliteração dessa figura, que só tem a opor-
tunidade de aparecer no período junino de maneira caracterizada.
E como está em voga a pretensa “sergipanidade” propalada pelo
governo estadual não se considera esta figura de uma forma positi-
vada mostrando-a como um dos formadores da identidade sergipa-
na. Muito diferente da maneira, que é recepcionado o imigrante de
qualquer outro centro importante nacional ou internacional.

No que concerne à metodologia, procuramos realizar uma aborda-


gem empírica e teórica de natureza qualitativa baseada em leitura
de textos antropológicos e sociológicos, em sua maioria, que tra-
tassem de temas sobre o caipira, sociedade e cultura folk e sobre
o desenvolvimento urbano de Aracaju. Levaremos em considera-
ção também as nossas percepções particulares em razão da nossa
vivência na cidade por mais de duas décadas e meia. Após o uso
da bibliografia disponível que se aproxima do tema ou do objeto
(sujeito) trabalhado, fizemos o levantamento de dados relevantes à
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

33

pesquisa em notícias de jornais e revistas. A seguir, realizamos uma


interpretação dos dados auferidos e produzimos uma pauta de per-
guntas a serem respondidas pelos entrevistados escolhidos. As pes-
soas selecionadas foram baseadas em importância na dinâmica do
nosso campo de pesquisa ou por trabalhos alusivos ao tema do tra-
balho. Como Alcivan Menezes e Alexandra Arcieri, organizadores de
cavalgadas, festividade de cunho rural em plena capital sergipana;
Zito Costa, cantor de forró e apresentador de programa de “música
do campo” na rádio e na televisão. Além disso, acompanhamos in
loco todo o percurso de uma edição da Cavalgada do Aribé.

Neste texto, apresentamos, de modo reduzido, o terceiro capítulo da


dissertação defendida no final de maio de 2016, onde discutiremos
a presença do tabaréu nesse contexto e as suas relações de tensão,
como por exemplo, o conflito jurídico entre o Ministério Público Es-
tadual e os organizadores de cavalgadas, uma amostra de práticas
identificadas como rurais no contexto urbano; além de uma descri-
ção etnográfica, particularmente, o caso da Cavalgada do Aribé.

O Tabaréu em contexto: o debate em torno da categoria e


seus correlatos
A nossa pesquisa aponta que, em Aracaju, o incômodo com a figura
do tabaréu vem do início do século XX quando essa gente vinda do
interior com as mais variadas justificativas – atraída à recém-fun-
dada capital de então, já possuidora de alguns elementos e instru-
mentos característicos da belle époque brasileira, tais como cinema,
telefone, telégrafo, maior intensidade de transporte marítimo, clu-
bes sociais, entre outros; fugida da seca que assolava certas regiões
do semiárido nordestino, ou ainda em busca de melhores ofertas
profissionais e educacionais para sua respectiva prole. Eram livres
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

34

de qualquer amparo e quase sem nenhum patrimônio significati-


vo quando aportavam na capital sergipana, em sua maioria. Sen-
do que muitas vezes, como eram vistos como “indisciplinados” nas
suas práticas cotidianas na vida social causavam esse mal-estar em
um momento em que a cidade, sustentada pelas indústrias têxteis
e governada por uma oligarquia com passado rural, procurava se
desenvolver através de projetos de modernização e urbanização da
sua paisagem. Tudo em nome da “civilização”.

De acordo com Elias (2006), o conceito ocidental de civilização é


baseado na conversão das coações exteriores em autocoações, que
é, na verdade, uma característica de todas as sociedades humanas.
No entanto, nem todos os tipos de coação exterior são úteis para
fomentar o desenvolvimento e a massificação de elementos indivi-
duais de autocoação. Por exemplo, é melhor uma coação feita por
intermédio de uma persuasão com parcimônia do que uma abor-
dagem de um tipo de coação exterior exercida através de violência
física, na qual não será assimilada para formar uma autocoação; na
realidade, tem a tendência de produzir o efeito inverso e ser com-
pletamente rejeitado. Mesmo aquelas coações instáveis são, tam-
bém, as menos indicadas do que àquelas fundadas na paciência.
Sendo um dos elementos mais comuns em todos os processos de
civilização é o seu sentido, que é encontrado através do equilíbrio
entre as coações exteriores e as autocoações. Este aspecto da dire-
ção específica é muito similar ao do conceito weberiano de ação so-
cial. Portanto, “[...] os principais critérios para um processo de civili-
zação estão as transformações do habitus social dos seres humanos
na direção de um modelo de autocontrole mais bem proporciona-
do, universal e estável” (ELIAS, 2006, p. 24). Já a descivilização, es-
taria num sentido completamente oposto, recheada de elementos
considerados bárbaros e atrasados.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

35

Convém lembrar que, para o senso comum, civilização “anda de mãos


dadas” com modernização. O indivíduo da vida moderna, principal-
mente o que vive na cidade, tem que estar a par do que acontece,
como acontece e porque acontecem as situações ocorridas ao seu
redor no intuito de não ser considerado um “desinformado”.
O homem na rua moderna, lançado nesse turbilhão, se vê
remetido aos seus próprios recursos – frequentemente
recursos que ignorava possuir – e forçado a explorá-los de
maneira desesperada, a fim de sobreviver. Para atravessar
o caos, ele precisa estar em sintonia, precisa adaptar-se
aos movimentos do caos, precisa aprender não apenas
a pôr-se a salvo dele, mas a estar sempre um passo
adiante. Precisa desenvolver sua habilidade em matéria
de sobressaltos e movimentos bruscos, em viradas e
guinadas súbitas, abruptas e irregulares – e não apenas
com as pernas e o corpo, mas também com a mente e a
sensibilidade (BERMAN, 1992, p. 153).

Ademais, como bem apontou Magno Santos (2015), quando estu-


dou a festa de Bom Jesus dos Navegantes em Aracaju, o processo
de modernização está sempre imbuído da função de controle das
ações das classes populares; isto é, além de modernização e civili-
zação, os gestores se encarregam de disciplinar continuamente as
classes menos favorecidas.

Essa suposta rivalidade entre “tabaréus” e “citadinos” é reflexo de uma


ascensão das unidades de subsistência anteriormente conhecidas
para uma nova configuração: da tribo para o Estado, da aldeia para a
cidade e assim até culminar no modelo de reserva e distanciamento
apresentado aqui. No caso sergipano, há, inclusive, um artigo, que
atualmente o adjetivaríamos como ousado, escrito por Mendonça
(1960), que procura caracterizar as diferenças entre os sergipanos.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

36

Neste texto, o autor faz uma diferenciação entre o habitante do lito-


ral e do interior: “O sergipano, litorâneo e da margem do Baixo São
Francisco, não foge à caracterização do homem do litoral: é expan-
sivo, loquaz, amante do novo, adepto da moda, propenso à mudan-
ça” (p. 133). Enquanto o interiorano também seguiria a “tipificação
clássica” do sertanejo, ele seria “[...] taciturno, desconfiado, cismati-
vo, místico, pachorrento, fanaticamente apegado à terra, arraigado
à tradição, eminentemente conservador, hospitaleiro, mas retraído.
[...] O sergipano do interior é ‘enfaticamente o que o francês chama
‘un mâle’ – um macho” (p. 134). Para sintetizar, o autor classifica, se-
guindo uma terminologia de Ruth Benedict, o sujeito da beira-mar
como dionisíaco, e o sertanejo como apolíneo. Nesta perspectiva, o
litorâneo seria mais sensorial e espontâneo, enquanto o do interior
seria mais propenso ao conformismo e conservadorismo.

Segundo a antropóloga Luciana Chianca (2013), as representações


sociais entre tabaréus e citadinos dão referências a territórios geo-
gráficos e se associam às qualidades morais, sendo os habitués da
urbe identificados como mais civilizados e mais educados, enquan-
to os migrantes são identificados como o oposto dessas qualidades.
“Com tais representações sobre o interiorano, os citadinos de ori-
gem migrante revelam quanto a ideologia dominante tem sucesso
na identificação do personagem matuto com os migrantes pobres”
(CHIANCA, 2013, p. 64).

Neste sentido, durante o cotidiano a imagem típica do tabaréu ape-


nas é apensada a do matuto pobre. No entanto, essa lógica pode
ser invertida durante alguns momentos determinados, como o pe-
ríodo junino, por exemplo. Nesses instantes, o tabaréu é valorizado,
prestigiado, torna-se a referência das festividades (CHIANCA, 2013).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

37

Como o próprio Fredrik Barth já analisou, referente às identidades


étnicas, mas estendendo para qualquer referência coletiva, a iden-
tidade “é construída e transformada na interação de grupos sociais
através de processos de exclusão e inclusão [grifo nosso] que estabele-
cem limites entre tais grupos, definindo os que os integram ou não”
(POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998, p. 11). Ainda de acordo com
o antropólogo norueguês, ele nos esclarece que a manutenção da
fronteira entre membros e não-membros de um grupo étnico é fun-
damental. Sendo o que mantém essa divisão entre incluídos e excluí-
dos são, justamente, as situações de contato social entre pessoas de
culturas diferentes. É a partir do contato entre estas duas identidades
que persiste a dicotomia investigada neste trabalho. No entanto, os
traços culturais que a demarcam podem mudar, assim como as carac-
terísticas culturais dos membros. As relações sociais estáveis e persis-
tentes são mantidas através dessa fronteira, que mesmo que invisível
é a que mantém a dicotomia – apesar do que poderíamos supor que
o contato entre indivíduos de culturas diferentes não causa redução
nas diferenças entre si, já que a interação pode provocar, em determi-
nadas situações, uma convergência de códigos e valores.

Dessa forma, a manutenção do contato entre grupos étnicos impõe


estruturar uma interação que permite preservar as diferenças. Isto
posto, as distinções étnicas não dependem da ausência de interação
social; ao contrário, são as próprias fundações sobre as quais são eri-
gidos os sistemas sociais que as distinções carregam em si. As dife-
renças culturais podem existir mesmo com o contato interétnico e
interdependente dos grupos (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998).

Agora, como surge essa distinção entre incluídos e excluídos no


contexto aracajuano? Para responder este questionamento, adap-
tamos o que Barth (apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998) já
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

38

havia destacado: a atribuição categórica é étnica quando classifica


outra pessoa em termos de sua própria identidade mais básica, pre-
sumivelmente baseada na sua origem. Na medida em que os agen-
tes apelam para esta ação com objetivos de interação, eles formam
grupos étnicos neste sentido organizacional. E daí os grupos étni-
cos persistem como unidades significativas somente se impuserem
diferenças marcantes no comportamento.

Em se tratando de comportamento, há dois pré-requisitos orga-


nizacionais que nos habilitam a ver como as distinções étnicas
persistem: primeiro, a categorização de setores da população
numa hierarquia (imperativa e exclusiva), o citadino acima do
tabaréu, e; segundo, a aceitação do princípio de que normas de-
terminadas podem ser aplicadas a uma categoria e não a outra.
Portanto, em meio à circulação social, o indivíduo deverá evitar
ações e comportamentos que implicam desarranjo de acordo
com as suas orientações valorativas, pois será penalizado, san-
ção esta que poderá ser exercida por um ou por ambos os lados
opositores da dicotomização.

Os considerados tabaréus recebem o estigma do não-pertenci-


mento, o qual nada mais é do que a situação de inabilitação da
plena aceitação social de um indivíduo (GOFFMAN, 1981). Curioso
notar que o termo “estigma” foi inventado pelos gregos para ex-
plicar sinais corporais que se queria evidenciar, algo fora da nor-
malidade ou relativo ao status moral, efetivados a partir de cortes
ou fogo no corpo que denotavam tratar-se de alguém indesejado,
podendo ser um criminoso, um escravo ou um traidor; alguém ri-
tualmente “poluído”, com quem não se deveria ter contato, princi-
palmente em lugares visíveis.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

39

Tempo depois, o estigma ganharia mais duas conotações: uma que


se referia a sinais corporais divinos que apareciam em formato de
uma flor em erupção na pele; e a outra que fazia uma referência
médica à alusão religiosa como os sinais produzidos por distúrbios
físicos. Atualmente, o significado de estigma é mais próximo do
sentido original, porém é aplicado mais ao próprio infortúnio do
que à evidência inscrita no corpo (GOFFMAN, 1981).

O que ocorre na capital sergipana é que aqueles que vêm do


interior são estigmatizados pela sua origem quando não conse-
guem acompanhar e/ou possuir o habitus 17 urbano. Ou então,
quando não se sabe a origem, o próprio tabaréu pode, involun-
tariamente, transmitir algumas informações sociais acessíveis,
as quais geralmente são propagadas por quaisquer símbolos
particulares que confirmam a “suspeita”. O estigma relaciona
um atributo real a um estereótipo; sendo o atributo real a ori-
gem do indivíduo e quando ele não demonstra possuir o ca-
pital social esperado na cidade é associado ao estereótipo do
tabaréu. É um fenômeno processual que demanda um espaço
de tempo para ser “socialmente mediado” entre os sujeitos. Se
associarmos o contexto do tabaréu em Aracaju com os tipos
de estigma apresentados por Goffman (1981), ele estaria no
tipo de estigma de origem relacionado aos aspectos de raça,
nação e religião, que são aqueles transmitidos pela linhagem
“contaminando” todos os membros de uma família. É bastante
comum a escola ser o locus inicial da reprodução da estigma-

17 O habitus é um conceito sociológico difundido a partir de Bourdieu (2007),


mas já utilizado, com algumas variações, por Aristóteles, Elias, Mauss e Mar-
leau-Ponty. Trata-se de uma estrutura de esquemas internalizados, composta
por estilo de vida individual, valores, disposições, pensamentos, que é adquiri-
da por meio de convívio e experiências cotidianas que servem para engendrar
práticas associadas à determinada coletividade.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

40

tização, experiência que às vezes pode levar ao conflito físico


entre o emissor e o receptor18.

Outra questão fundamental é a dos símbolos identitários para os


tabaréus que estabelecem a crença em uma origem comum, marca
da qual não dá para se desfazer, para apagar, no máximo é possível
escondê-la. É incongruente dizer “quando eu era buraqueiro (modo
de se referir ao oriundo de Porto da Folha)...”, ou “quando era cebo-
leiro (alusão ao proveniente de Itabaiana)...”, e nem “antes de virar
papa-jaca (referência feita a quem é de Lagarto)...” ou “antes de virar
propriaense...”. E ainda há a possibilidade de certo tipo de metoní-
mia19 na interação entre o citadino e o migrante rural; existem inú-
meros casos em que o indivíduo é identificado pelo município de
origem, como alguns exemplos públicos de jogadores de futebol
das equipes da capital, que tem nomes associados ao local de nas-
cimento, como: o atacante Pirambu e o meia Muribeca, ambos do
Sergipe. Este último quando “surgiu” na equipe profissional do Ser-
gipe queria ser conhecido pelo nome de batismo Victor Matos, mas
essa intenção se tornou inócua, pois tanto na imprensa, como en-
tre os torcedores, já era o Muribeca; o outro caso é o do lateral Ney
Maruim, do Confiança, que durante seus sete anos de trabalho no
futebol português era conhecido como Ney Santos, mas ao retornar
ao clube em que foi revelado voltou a levar no nome o município

18 Um exemplo disso foi observado por mim quando aluno do ensino médio em
Aracaju, no ano de 2006 ou 2007, tinha como colega de classe um ribeiropoli-
tano que possuía um problema na dicção o que acarretava, de vez em quando,
uma cacofonia cômica. Foi então que alguns integrantes da turma, por sua
vez, acabaram por apelidá-lo de Chico Bento; mesmo que no seu nome não
houvesse Francisco e nem Bento, e sim por associá-lo ao personagem matuto
dos gibis de Maurício de Souza.
19 Figura de linguagem em que há a substituição de um nome por outro em ra-
zão de haver entre eles algum tipo de relação.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

41

do Vale do Cotinguiba; Pirambu, Muribeca e Maruim, todas cidades


do interior de Sergipe.

Quando um citadino se refere a um migrante rural ou a uma pessoa


que possui uma origem familiar interiorana, como tabaréu, há um
processo social denominado labelisação, na sua forma aportugue-
sada. Tal processo é exógeno e faz referência às situações de do-
minação e imposição de um “rótulo”, daí sua denominação labeli-
sation ou labelling, pelo grupo dominante que tem um verdadeiro
poder formativo. Isto é, o fato de nomear tem o poder de fazer existir
dentro da realidade uma coletividade de indivíduos (POUTIGNAT;
STREIFF-FENART, 1998), sendo que em determinadas situações tal
“rótulo” pode ser útil, valorizado, como na época das festas juninas
em que as quadrilhas se apropriam dessa “etiqueta” de sertanejo e
de migrante (CHIANCA, 2013).

No entanto, essa referência a outrem dessa maneira pode estar in-


serida num contexto de brincadeira; ou melhor, numa relação joco-
sa. É comum evocar esse passado no interior para diminuir o outro,
o chamando de tabaréu, numa atitude de gozação. Na teoria antro-
pológica, este fenômeno tornou-se clássico a partir das considera-
ções contidas no artigo Apontamentos sobre a relação de brincadeira
de Radcliffe-Brown (1989), cujo autor se refere a uma relação entre
duas pessoas, sobretudo na África, que fazem troça uma da outra
sem se sentirem ofendidas. Esta é, inclusive, a única obrigação da
relação, qual seja, a de não levar a sério o insulto, na medida em
que não transgrida os limites subentendidos entre os dois agentes.
Ademais, há duas variantes nessa relação, a simétrica, onde os dois
agentes zombam entre si; e a assimétrica, na qual um “tira sarro” do
outro e não há a retaliação jocosa, podendo haver obscenidades e
contato físico ou não. Trata-se de um conflito cordial.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

42

A relação jocosa acaba sendo uma brecha aberta entre duas pes-
soas num mundo onde cada vez mais as relações estão fundadas
na rigidez e no extremo respeito. Para se evitar uma conduta hostil,
utiliza-se o recurso da gozação, que “[...] através da sua repetição,
transforma-se numa constante expressão ou num lembrete dessa
disjunção social, que constitui uma das componentes fundamen-
tais desta relação, enquanto a conjunção social é mantida através
da amizade que não se sente ofendida pelos insultos” (RADCLIFFE-
-BROWN, 1989, p. 137). Porém, o autor de Estrutura e função nas so-
ciedades primitivas procurou considerar a relação jocosa como um
fenômeno atrelado à questão do parentesco.

Há outra posição que também se assemelha à relação de jocosidade


apresentada nesta pesquisa entre tabaréus e citadinos: a de familia-
ridade privilegiada, como diria Robert Lowie (1920), que representa
uma extremidade oposta de uma relação social baseada no estrito
respeito. Trata-se de determinadas ações, onde não há a necessida-
de de reciprocidade, baseadas na irritação ao outro que exigem um
conhecimento prévio entre dois indivíduos. Tal recurso possui uma
importante função: a de ser uma censura moral. Isto é, caso um dos
atores ultrapasse o limite da ética ou etiqueta, o gozador irá repen-
tinamente confrontá-lo publicamente e zombar dele em voz alta
para ele sentir vergonha da falta cometida. Ainda, o transgressor
ficará aguardando uma oportunidade para dar o revide.

É interessante para a presente pesquisa trazer à baila o texto de Ed-


mund Leach (1983), Aspectos antropológicos da linguagem, já que
ele nos oferece elementos profícuos e reflexivos para a nossa dis-
cussão. Por exemplo, no cotidiano de Aracaju se A chamar B por
tabaréu pode ser considerado como um tabu, por ser algo que não
é qualquer um que pode entender o sentido que A quer empregar
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

43

nesta ação, pode não ser muito bem aceito, talvez seja evitado. “O
tabu é simultaneamente comportamental e lingüístico; social e psi-
cológico” (LEACH, 1983, p. 172). É de suma importância não haver
nenhuma ambiguidade nas discriminações básicas: “Não deve ha-
ver absolutamente nenhuma dúvida sobre a diferença entre o eu e
isso, ou entre nós e eles” (Ibid., p. 178).

Todas as regras, preconceitos e convenções têm origem na ques-


tão social e, mesmo dessa maneira, os tabus sociais possuem suas
contrapartidas linguísticas que, apesar dos acidentes de história
etimológica, encaixam-se surpreendentemente: “A criança, no de-
correr da vida, é ensinada a impor sobre esse ambiente uma espécie
de grade discriminatória que serve para distinguir o mundo como
sendo composto de grande número de coisas separadas, cada uma
etiquetada com um nome. Este mundo é uma representação das
nossas categorias de linguagem, não o contrário” (LEACH, 1983, p.
177-178). De acordo com o autor, a linguagem forma o ambiente
e põe cada indivíduo no núcleo de um espaço social de maneira
lógica e segura. Através do esquema explicativo que Leach desen-
volveu no artigo, é possível demonstrar que o uso do termo tabaréu
é um tabu, vejamos: se imaginarmos que A e B são duas categorias
verbais opostas, A é aquilo que B não é e vice-versa, e existe uma
terceira categoria, C, que faz a mediação entre as duas e, comparti-
lhando elementos tanto de A quanto de B, então C será tabu. Nesta
concepção, se imaginarmos que A signifique o urbano e B o rural, C
será o tabaréu que faz a mediação entre esses dois espaços.

Ao estudar a configuração do tabaréu em Aracaju e a partir de con-


versas informais, temos a impressão de que para as pessoas que
aqui fixam residência e conhecem a dinâmica das relações sociais
próprias do lugar, acredita-se ainda na ideia de que, para ser aceito
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

44

como um citadino tem que apagar alguns resquícios que possam


ser considerados como rurais. Por isso os que têm mais sucesso a
partir dessa lógica são aqueles das classes mais favorecidas, que
embora possam ter origens no interior, possuem o capital financeiro
suficiente para ter uma boa educação, sobretudo, em escolas parti-
culares, na aprendizagem de outros idiomas, usufruem de um lazer
equivalente, entre outros; o que alguns poderiam dizer de uma am-
biance própria do mundo civilizado para exigir mais rapidamente a
identidade urbana. Até porque, copiando Elias (2001), um pesquisa-
dor da sociedade aristocrática francesa do século XVII, aquele que
não se adequa conforme seu nível perde o respeito dos seus pares;
pois se coloca atrás deles na “disputa” pelo prestígio social, corren-
do o risco de permanecer abandonado e ser excluído do círculo de
convivência. Ao contrário desses, os migrantes das classes desfavo-
recidas são os que recebem a “pecha” de tabaréu cotidianamente,
justamente por não dispor dos meios socioeconômicos e simbóli-
cos disponíveis por seus conterrâneos mais favorecidos.

A lógica da distinção consiste em manter uma distância razoável en-


tre as práticas: logo que uma delas se difunde, consequentemente
perde o seu poder distintivo e é substituída por outra, reservada aos
membros das classes dominantes. Um exemplo disso é a “exclusão”,
por assim dizer, do tênis do rol dos esportes das elites, sendo supri-
do pelo golfe (BONNEWITZ, 2002). No Brasil, isto ocorreu quando
o esporte da bolinha amarela escapou do âmbito das classes mais
abastadas, a partir do apogeu mundial de Gustavo Kuerten entre o
final da década de 1990 e início dos anos 200020.

A dinâmica da distinção impõe igualmente novas significações por


meio da linguagem, cujo domínio os estabelecidos estão mais afei-

20 Este caso brasileiro foi destacado por comentaristas esportivos.


Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

45

tos do que os outsiders; ela possui o monopólio da competência lin-


guística legítima, ou seja, conforme as regras gramaticais e ao estilo,
garantindo, dessa maneira, sua eficácia. Sua relação com a cultura
opera sobre o modo da distanciação e do desembaraço com os ca-
pitais culturais exigidos pela elite (BONNEWITZ, 2002).

Todos querem fazer parte da “boa sociedade”: trata-se, praticamen-


te, de uma “honraria”21; significando dizer que o indivíduo que pos-
sui todas as qualidades exigidas tem o aval da opinião social. Esta
é a coerção primordial, a necessidade de estar inserido do lado dos
estabelecidos. É a opinião social que modela o prestígio entre os in-
divíduos de uma determinada coletividade através do comporta-
mento interdependente, de acordo com certas regras. A distinção
pela conduta, pelo comportamento, por si só com o objetivo de se
sentirem, ao menos, com indivíduos integrantes da sociedade, sem-
pre observando e fazendo a manutenção necessária da distinção.

Um exemplo desse ethos citadino é oferecido pelo memorialista


Murilo Melins (2000) na passagem sobre as festas de fim de ano
quando as famílias tradicionais mandavam instalar bancos de ferro
na Praça Olímpio Campos com a inscrição dos respectivos nomes,
com o objetivo de assistir confortavelmente ao desfile de modas

21 Elias (2001, p. 112) traz uma breve descrição histórica do surgimento do termo
honra. Tal distinção “[...] expressava a participação em uma sociedade nobre.
Alguém tinha sua honra enquanto fosse considerado um membro segundo a
‘opinião’ da sociedade e, portanto, para a sua própria consciência individual. ‘Per-
der a honra’ significava perder a condição de membro da ‘boa sociedade’. Ela era
perdida em função do veredito da opinião dos círculos bastante fechados de
que o indivíduo fazia parte ou, em certas ocasiões, da sentença de representan-
tes desse círculo escolhidos especialmente para formar um ‘tribunal de honra’.
Esses homens julgavam segundo um ethos específico da nobreza, cujo centro
essencial estava na manutenção de tudo aquilo que servia, tradicionalmente,
para o distanciamento com relação às camadas que ocupavam níveis inferiores,
confirmando com isso a existência nobre como um valor autêntico”.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

46

e aguardar o início da Missa do Galo. A busca pela distinção era


patente tendo uma posição heterodoxa na paisagem efêmera da
festa, já que “[...] mais importante do que assistir às celebrações no
conforto, era a necessidade de ser visto em local de distinção” (SAN-
TOS, 2015, p. 192).

A diferença simbólica entre tabaréus e citadinos torna-se definitiva


nas representações urbanas: “Seu alcance torna esse abismo pro-
gressivamente categórico e reificante, através da construção de um
personagem que vai representar essa antinomia para o citadino.”
(CHIANCA, 2013, p. 151). É a partir dessa conjuntura que o tabaréu
é identificado na capital como um bronco, um “selvagem”, alguém
incivilizado, que não possui os modos e a conduta coerente com
o ambiente de um capital. Sendo a capital sergipana identificada
como centro social, político e financeiro de uma região que ultra-
passa os limites territoriais do estado, tornando-se também referên-
cia para os municípios baianos e alagoanos limítrofes com Sergipe.

A existência de uma cultura considerada legítima estrutura as prá-


ticas, impondo à considerada “ilegítima” as diretrizes de conduta.
Essa diferença, entre uma e outra, é que dá valor ao capital simbóli-
co. Na verdade, podemos dizer que o capital simbólico é um crédito
posto à disposição de um agente através da adesão de outros agen-
tes que o reconhece como tal ou com tal propriedade valorizante
(BONNEWITZ, 2002).

Essa identidade social repousa, por exemplo, sobre o pertencimen-


to a uma família, uma linhagem, sobre a nacionalidade, a profissão,
a religião, a classe social, pertencimentos que fornecem os rótulos
aos indivíduos. Ser socialmente é, portanto, essencialmente ser per-
cebido. Nesta conjuntura, fazer reconhecer as suas propriedades
distintivas de forma tão positiva quanto possível. Apresentemos
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

47

uma situação: se em um determinado campo, um agente bem-su-


cedido passa aos outros uma representação convincente do capital
que ele afirma possuir, logo isso pode acontecer para obter benefí-
cios reais e, até, de propriedades imaginárias, o que o levará a ter o
sucesso esperado será a sua capacidade de convencimento (BON-
NEWITZ, 2002).

Um dos momentos em que há uma ruptura do “bom convívio” é


quando o citadino se vê ameaçado pelo tabaréu das mais diversas
maneiras de intimidação, seja social, financeira ou afetiva. Contudo,
uma dessas formas de ameaça mais patentes se dá no âmbito espor-
tivo, quando uma equipe da capital, seja ela Sergipe ou Confiança22,
enfrentam uma equipe do interior; os próprios torcedores araca-
juanos, esporadicamente, entoam o cântico: “Éu, éu, éu, vá embora
tabaréu!”, quando a partida está próxima de terminar e a vitória está
praticamente garantida. Interessante que a própria imprensa, seja a
de rádio, televisão ou jornal, não noticiam e nem repercutem fatos
deste tipo. Porém, entre os torcedores da própria agremiação, exis-
tem críticas, porque boa parte deles é ou possui origem interiorana,
sobretudo a torcida do Sergipe23; alguns se sentem ofendidos com
essa palavra de ordem, enquanto outros na mesma situação rele-
vam e dizem que se trata apenas de uma brincadeira, já que, em se
tratando de futebol, ela lhe é inerente. Aqueles que proferem tais
palavras talvez o façam com uma maneira de afugentar qualquer
aspecto negativo da formação do seu próprio eu. É em relações de

22 Cf. MELO, 2013. Para saber mais da história, da importância e do desenvolvi-


mento dos clubes na cidade de Aracaju.
23 Cf. Ibid. Como o citado trabalho demonstra, o Club Sportivo Sergipe possui mais
adeptos não só na capital, mas também no interior. E soube se aproveitar na época
da construção da sua nova sede na zona oeste da cidade no bairro Siqueira Cam-
pos, em 1970, onde grande parte da população que ali se encontra é do interior.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

48

tensão como esta, entre os dois modelos idealizados de conduta,


que nos demos conta de que a situação entre eles existe.

Tais conflitos simbólicos visam à imposição de uma visão de mundo


conforme os interesses dos agentes. Essa visão carrega tanto um
lado subjetivo, que são as representações que os agentes fazem do
mundo social, como as tentativas de mudanças na estrutura cog-
nitiva, quanto um lado objetivo, que são as ações com intuito de
demonstrar determinadas realidades (BOURDIEU, 2004).

Um aspecto da cidade em que a presença do tabaréu é percebi-


da está nas ondas da rádio e da televisão. Na capital sergipana, há
um programa diário na Rádio Aperipê AM das 16 até às 18 horas,
de músicas consideradas “sertanejas”, o Sertanejando; e na TV Ape-
ripê, o programa semanal Nossa terra, nossa gente aos sábados às
9 horas. O foco dos programas é a reprodução dessas músicas e a
divulgação de atividades relacionadas ao meio rural, como vaque-
jadas, exposições, cavalgadas, shows – tanto na capital, quanto no
interior. Em ambos, o seu apresentador é Zito Costa, um cantor, com
cerca de quarenta anos de “estrada”, que se apresenta no âmbito
musical em dupla com Léo.

Na entrevista que empreendemos, Zito contou-nos como se deu


sua trajetória, em ambos os meios – musical e radiofônico. Ele nas-
ceu em um povoado do município de Palmeira dos Índios, em Ala-
goas, mas passou a morar em Itabaiana; afirmou-nos ter optado
por Sergipe, em razão de se sentir bem neste estado e ter tido mais
oportunidades de divulgação do seu trabalho artístico.

Zito já havia trabalhado como apresentador de rádio no interior de Ala-


goas. A entrada dele na Aperipê se deu para substituir o poeta Pajeú,
entre 2012 e 2013. Onze meses depois, acabou tendo espaço na tele-
visão do mesmo grupo de comunicação. Com o afastamento do poeta
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

49

por motivos de saúde e, posteriormente, com o falecimento, de Clemil-


da24, que apresentava o programa Forró no asfalto; a TV Aperipê lançou
o programa Nossa terra, nossa gente, cujo título também nomeia um
dos álbuns de Zito, para preencher a lacuna na programação da TV e
dos telespectadores que apreciam as atrações sertanejas.

Durante a entrevista, ele nos contou um caso insólito. Em 1994, nas


eleições para o cargo de deputado estadual, ele fez campanha para
o empresário itabaianense José Milton dos Santos, mais conhecido
como Zé Milton de Zé de Dona. Com a eleição confirmada, no dia da
posse no ano seguinte, o deputado organizou uma cavalgada “fora
de época”, em pleno mês de fevereiro. Contando com cerca de 200
cavaleiros, os quais percorreram aproximadamente dois quilôme-
tros, desde o Bairro Industrial até o Palácio Governador João Alves
Filho, sede do poder legislativo estadual.

Após apresentarmos o contexto do tabaréu em Aracaju mostran-


do, inclusive, uma situação de tensão com os citadinos; posterior-
mente, trataremos do “ponto alto” do tabaréu na capital, onde ele
realmente se mostra no período em que não há o estranhamento: o
período dos festejos juninos.

O tabaréu em festa: etnografia da Cavalgada do Aribé


Temos que destacar nesta pesquisa alguns eventos que fazem par-
te do circuito festivo da cidade e que têm relação com o nosso ob-
jeto (sujeito). Inicialmente, devido à vocação urbana de Aracaju que

24 Clemilda foi uma cantora de forró que teve grande destaque na mídia nacional,
apresentando-se nos programas do Chacrinha, da Xuxa e do Bolinha, por exem-
plo. Seu auge ocorreu durante as décadas de 1970 e 1980, cujo grande sucesso
foi a música “Prenda o Tadeu (Seu delegado)”. Nascida no interior de Alagoas, ela
estabeleceu residência em Aracaju no fim da carreira, vindo a falecer em 2014.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

50

foi a de receber as pessoas de fora e ocasionalmente o inverso, a


cidade se tornou o palco das festividades que interessavam certos
contingentes da população. Isto é, a capital recepcionou práticas
culturais de duas áreas específicas: aquelas que se localizavam em
torno da colina do Santo Antônio e eram organizadas por uma po-
pulação “nativa”; e a outra, proveniente das mobilizações ocasiona-
das a partir das imigrações internas25 (SANTOS, 2015). Assim, como
já dito acerca do processo de formação da capital, podemos afirmar
que Aracaju, apesar do seu traçado urbano considerado moderno,
era tradicional nos hábitos e festejos populares.
Com isso, percebe-se que a participação popular e da elite
aracajuana oscilava de acordo com os dias e horários das
celebrações. Isso não significa dizer que não houvesse
a confluência de classes distintas nas festas, mas que as
mesmas eram protagonizadas por diferentes segmentos
a cada momento (SANTOS, 2015, p. 190).

Com o desenvolvimento urbano da cidade, a sociabilidade das


classes populares vai ficando cada vez mais marginalizada. Um
desses espaços reservados a esse tipo de prática localizava-se
na antiga Rua do Egito26, na região do Centro da cidade, onde se
encontravam botecos e pequenos restaurantes, comercializan-
do as principais iguarias da gastronomia popular. Nessa mesma
região, outro memorialista da cidade, Mário Cabral (1955) men-
ciona as apresentações de grupos folclóricos de Chegança, Rei-
sado e Lambe-sujos a céu aberto na década de 1940, quando há

25 Entendemos por imigrações internas os fluxos migratórios ocorridos dentro


do próprio estado.
26 A Rua do Egito fazia parte de uma região boêmia da cidade que se formava no
entorno da Catedral. Compreendia as ruas Arauá, Santa Luzia, Capela e Santo
Amaro (Cf. MELINS, 2007).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

51

a ocorrência de celebrações, por exemplo, o Natal e a festa de


Bom Jesus dos Navegantes.

Como um modo de levantamento de dados históricos sobre as re-


giões de sociabilidades da capital, devemos destacar também as so-
ciabilidades ocorridas no centro da cidade. A centralidade urbana
tem como premissa ser o lugar com o maior significado simbólico e
o de melhor acessibilidade em uma cidade – um espaço público por
natureza, desenvolvido para incentivar os habitantes a interagir en-
tre si, e também para servir de convergência de todos os caminhos.
O chamado centro histórico de Aracaju é um espaço-território27 do-
tado de simbolismo e sensibilidades, cujo maior exemplo consiste
no fato da praça central levar o nome de Fausto Cardoso. Tal político
foi assassinado naquele lugar e é lembrado na história como defen-
sor do povo sergipano, da liberdade e da democracia, crítico dos
oligarcas de então. Este momento ficou registrado na historiografia
da cidade como um fato revolucionário e de ser, desde então, local
privilegiado para realização de comícios, de manifestações popula-
res e trabalhistas, reivindicando toda sorte de garantias e direitos,
por exemplo. Não é à toa que no centro desta praça há uma está-
tua do político sergipano de frente para as águas do rio Sergipe28,
dando à centralidade um elemento icônico e emblemático para a
identidade urbana de Aracaju, a qual se torna tão significativo que
é a partir dessa área composta de mais duas praças, a Olímpio Cam-
pos e a Almirante Barroso, todas contíguas, que a cidade se divide:

27 Expressão usada por Pesavento (2007).


28 Curioso notar a ambigüidade do simbolismo da centralidade urbana em Ara-
caju, pois na mesma praça em que se evoca a memória de Fausto Cardoso
se encontra também uma homenagem ao seu rival político, Olímpio Campos,
que dá nome ao palácio ali instalado. Palácio que fora por muito tempo a sede
do governo do Estado de Sergipe e que atualmente é um museu.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

52

ao norte dela há os comércios, os bancos, o porto, os mercados, a


outrora estação ferroviária e a antiga Maçaranduba, atual Bairro In-
dustrial; enquanto ao sul do centro, encontrava-se as casas das clas-
ses média e alta, as praias Formosa e a longínqua Atalaia; e a oeste,
os bairros populares, como Getúlio Vargas e Siqueira Campos. As
três praças acomodaram as primeiras funções de sociabilidade e
fruição, nelas ocorrendo as principais festas populares, como: Ano
Novo, Carnaval (a partir da década de 1980, há uma festa provida
pelo Estado, o Clube do Povo), Natal e Bom Jesus dos Navegantes;
também os desfiles militares e posses de governo que denotam a
representatividade deste espaço na conjuntura de Aracaju.

Além das festas específicas, o centro era o local de outro evento


particular da capital, demasiado provinciano para uns, e que mar-
cou época para outros, que foi a chegada do brinquedo, conhecido
como Carrossel do Tobias, por conta de um realejo que continha a
figura de um negro apelidado com este nome. Tratava-se de uma
aparelhagem construída nos Estados Unidos ainda no século XIX
e que chegou à cidade em 1904, após estadias no Recife e Maceió,
tendo perdurado aqui durante 80 anos sempre sendo montado no
período dos festejos natalinos. O que espantava os citadinos ini-
cialmente era a pujança da máquina movida a vapor e iluminada
eletricamente, tendo capacidade para 300 pessoas. Curioso notar
o anúncio de jornal de 1904, sobre a tal engenhoca, às vésperas da
sua instalação na Praça Teófilo Dantas, quando se destacou o sen-
tido de modernidade do brinquedo: “Este mesmo aparelho já tem
sido montado em várias localidades civilizadas [grifo nosso], como
em Pernambuco e outros centros, merecendo sempre os melhores
aplausos do público” (Gazeta de Sergipe, 28/12/1987).

Portanto, o centro tem o seu valor por ser um espaço referencial e


original de uma localidade, primeiro, por adquirir funções de poder
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

53

e onde se manifestam relações de sociabilidade; e segundo, por ser


lugar onde a cidade nasceu no seu sentido urbano. O centro seria
como o coração da capital.

Do centro em direção ao oeste, para melhor entendermos a Caval-


gada do Aribé, é importante conhecermos a região onde ela é rea-
lizada. Inicialmente considerada uma zona remota, contando, até
a década de 1920, com alguns casebres e uma pequena produção
pecuária de subsistência (FREITAS, 2003), naquele início do século
XX, a área se confundia com um ponto de referência conhecido
como Curral. Esta localidade, onde hoje se bifurcam a Rua Riachão
e a Avenida Sete de Setembro, anteriormente conhecida como Rua
Bonfim, era uma zona de pobreza e de baixo meretrício afastado do
centro e da zona nobre da cidade, para os padrões da época. Lá se
encontravam somente algumas casas de taipa cobertas de palha e
o cemitério dos Cambuís, hoje renomeado por Cruz Vermelha, cujos
sepultados eram, em sua maioria, pessoas desfavorecidas financei-
ramente. O processo de urbanização da região só vai se iniciar em
1956 (MELINS, 2015).

A paisagem do Aribé no início do seu povoamento era repleta de


mato, pântanos e alagadiços, possuindo apenas algumas estra-
dinhas de terra, habitada por gente de parcos recursos financei-
ros. Dada essa situação de terrenos de difícil acesso, afastados do
Centro e articulado com os elevados preços e rigidez legal para
se construir no Quadrado de Pirro, a região foi se tornando o lu-
gar de maior preferência na acomodação dos migrantes rurais na
capital. “Desde 1923, tornara-se uma das regiões mais procuradas
pelos indivíduos pobres. Possuindo sítios e áreas pantanosas, esta
região acolheu famílias imigrantes do interior do Estado” (SOUSA
apud FREITAS, 2003, p. 269).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

54

Hoje em dia, o bairro Siqueira Campos é conhecido por ser uma região
bastante ativa economicamente, com uma presença bem evidente do
setor terciário. A referida localidade é, em sua maioria, constituída por
imigrantes rurais e de descendentes de imigrantes. Na pesquisa de Bár-
bara Freitas (2003), há a ratificação da maciça presença dos migrantes
rurais no Siqueira Campos, fato que nos levar a pensar, inclusive, que
essa presença tenha sido ampliada no decorrer dos anos com uma
forte propaganda de parentes e amigos que vieram à Aracaju, esta-
beleceram-se e divulgaram a região de forma espontânea. O efeito do
boca-a-boca se mostra benéfico para a região que, atualmente, conta
com inúmeras instalações comerciais das mais variadas finalidades. No
início, “[...] nas décadas de 1930 e 1940, a maioria dos moradores ou
eram operários, ou eram comerciantes ou eram comerciários”29.

Foi a partir de 5 de janeiro de 1931, que Camilo de Calazans, in-


tendente do município, institucionalizou a mudança do nome do
bairro de Aribé para Siqueira Campos, como forma de homenagear
“[...] ao vulto heróico do levante de 5 de julho no ‘Forte Copacabana’
na Capital da República” (ARACAJU apud FREITAS, 2003). Tal tributo
nos leva a crer que foi baseado no intenso furor militarista pelo qual
passou o País, logo após o Golpe de Estado perpetrado por Getúlio
Vargas. Sendo que, logo após a tomada do poder, o Pai dos pobres
indicou seus correligionários para serem os chefes do poder exe-
cutivo em cada estado do Brasil; caso de Sergipe que teve nesse
período inicial como interventor federal Augusto Maynard30, militar
destacado na Revolução Tenentista de anos antes.

29 SANTOS, Pe. Valdemir Vicente A. Entrevista concedida ao autor, 28 de


abril de 2016.
30 Augusto Maynard, que chegou até a patente de general do Exército, ainda retorna-
ria ao cargo máximo de Sergipe no final do período do Estado Novo. Após as duas
passagens na chefia do executivo, ele dedicou-se ao cargo legislativo de senador.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

55

O “festejo do tabaréu” aparece como algo inusitado no cotidiano da


cidade. Ele é conhecido como Cavalgada do Aribé e ocorre desde
2000. Inicialmente organizado por Evandro Modesto e Carlos Lôbo;
e depois Alcivan Menezes, ex-vereador de Aracaju, juntou-se a eles.
O evento conta com a presença, nas últimas edições, entre dez e
doze mil cavalos vindos não só de Sergipe, mas também de esta-
dos vizinhos, na primeira quinzena de junho, abrindo o período dos
festejos juninos na Capital. O evento, que já faz parte do calendário
festivo da cidade regulamentado pela lei nº 3.450 de 2007, de auto-
ria do vereador Emanuel Nascimento (PT), é um cortejo de cavalei-
ros montados, carroças, charretes e apreciadores da equinocultura,
percorrendo um trajeto de cerca de dez quilômetros. Alguns dos
participantes levam bastante a sério a cavalgada e chegam a utili-
zar a típica indumentária de couro do vaqueiro com direito a gibão,
perneira, botas e, claro, o tradicional chapéu.

O percurso tem início e término na Praça dos Expedicionários, a popular


Praça da Leste, onde, ao final da cavalgada, são realizados shows de mú-
sica sertaneja e forró31, passando pela Rua Basílio Rocha, depois segue
pela Rua São Cristóvão, Avenida Augusto Franco, conhecida popular-
mente como Rio de Janeiro, Avenida Desembargador Maynard, Rua Per-
nambuco, Rua Alagoas, Rua Distrito Federal, Rua Guaporé, Rua Acre, Rua
Rio Grande do Sul, Avenida Tiradentes, Rua Simeão Aguiar, novamente
um pequeno trecho da Rua Alagoas, Rua Juiz Mário Almeida Lobão e fi-
nalmente a Avenida São Paulo, culminando de onde se iniciou.

A localização do festejo sempre foi no Bairro Siqueira Campos. A


escolha e persistência da localização da festa são devidas ao fato

31 De acordo com Alcivan Menezes, a organização do evento recebe muitas ofer-


tas de bandas e cantores de vários gêneros. Mas nas palavras dele, a escolha é,
peremptoriamente, para os grupos de forró e sertanejo. A exclusão do pagode
do line-up da festa é deliberada para não descaracterizar a cavalgada.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

56

de ter havido nessa região um comércio de cavalos de proprieda-


de de um homem conhecido por Sr. Raul, amigo do pai de Alcivan
Menezes, o organizador do evento; e por lá ser próximo da entrada
e saída da cidade facilitando um maior número de participantes.

Ao contrário do que alguém possa imaginar com o incômodo de mi-


lhares de cavalos e carroças passando a sua porta, o evento conta com
o apoio e incentivo moral de gestos e palmas da maioria dos morado-
res da localidade, informação confirmada pelo pároco do bairro, Pe.
Valdemir. Segundo Menezes: “Acredito que Aracaju é a única capital
do Brasil que ainda possua uma cavalgada desse tamanho”32.

Um dos empecilhos indicados pelo organizador refere-se à má von-


tade por parte do Poder Público, principalmente, por parte da Polí-
cia Militar, em disponibilizar a segurança. “Eles [a Polícia Militar] ale-
gam que cavalgada não é para se fazer na cidade. [Que a] cavalgada
é para se fazer numa região suburbana, entendeu? Só de mato”33.
Apenas concordando em fazer a segurança do evento com o paga-
mento, por parte do Governo Estadual, da Gratificação por Atuação
em Eventos (GRAE), que corresponde a um adicional de 20% do sa-
lário de cada policial a cada dia de serviço em festa.

Pesquisando sobre a Cavalgada do Aribé, descobrimos que na capital


sergipana houve também outras cavalgadas, uma que se realizava na
Rua João Andrade, entre os bairros Dezoito do Forte e Santo Antô-
nio; e a outra, a dos Cowboys Quebrados, no conjunto Tiradentes, no
bairro Novo Paraíso. Ou seja, também são eventos cujos locais de rea-
lização se encontram fora das zonas privilegiadas financeiramente,
acontecem na zona norte e oeste da cidade. Longe dos bairros em

32 MENEZES, Alcivan. Entrevista concedida ao autor, 07 de outubro de 2015.


33 Ibidem.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

57

que a maioria dos moradores são considerados das classes superio-


res; embora, ao ouvir os organizadores dos eventos, eles confirmem a
presença de indivíduos que habitam na zona sul. Curioso que, apesar
da Rua João Andrade e da Praça dos Expedicionários, local de onde
parte a Cavalgada do Aribé, estarem em bairros diferentes, a distância
entre elas é de cerca de 800 metros apenas.

A Cavalgada da Rua João Andrade, por exemplo, cuja organizadora


também frequenta a do Aribé, foi criada em 2005, sempre na última
quinzena de maio, sendo que nas duas primeiras edições ela tinha a
concentração no Dezoito do Forte. A partir de 2007, ela teve como
percurso, com início e fim na rua que nomeia a cavalgada, as aveni-
das Maranhão, Simeão Sobral, João Ribeiro, além de ruas do bairro
Industrial, com retorno ao Dezoito do Forte. Iniciava-se à tarde com
o retorno ao ponto de partida no começo da noite.

A festa contava com grande participação popular. Segundo Alexan-


dra Arcieri de Melo, organizadora do evento, chegavam pessoas de
vários lugares, desde municípios próximos à capital, como São Cris-
tóvão, Itaporanga D’Ajuda, Capela, até vindas de conjuntos residen-
ciais, como Eduardo Gomes, Augusto Franco, Lamarão, Getimana. A
animação ficava por conta de cantores e grupos musicais de forró
e arrocha, gêneros musicais de grande apelo popular, que se apre-
sentavam em trios elétricos durante o percurso da cavalgada.

O que podemos afirmar, após as entrevistas concedidas, é que am-


bos os organizadores34 empreenderam esses eventos no intuito de
praticar, na cidade de Aracaju, atividades que tinham o costume e
o prazer de realizar na juventude. Os eventos desses empreende-

34 Estes organizadores, inclusive, têm raízes no interior. Alcivan é de Lagarto e


Alexandra, apesar de ser aracajuana, os avôs possuíam um sítio na Estrada da
Cabrita, em São Cristóvão.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

58

dores culturais tiveram grande aceitação nas localidades em que


aconteceram. Lembremos que a do Aribé chega a ter a participação
de dez a doze mil cavalos, e a da Rua João Andrade contava com a
presença de duas mil e quinhentas pessoas.

Contudo, a Cavalgada da Rua João Andrade acabou se extinguindo


em 2012, em razão de que, anos antes, entre 2010 e 2011, as caval-
gadas de Aracaju enfrentaram obstáculos difíceis de serem ultra-
passados, sobretudo após as denúncias de alguns moradores das
ruas João Andrade e Silvio Romero, insatisfeitos com a realização da
cavalgada na região.
Segundo o relato dos representantes, o evento vem sendo
realizado desde o ano de 2007 em detrimento da “paz e
[d]o sossego” da comunidade local, uma vez que as ruas
do Bairro “são tomadas por cavalos, carroças, vendedores
ambulantes, trios elétricos, carros com som alto”, gerando
incômodos diversos, tais como, acúmulo de lixo nas ruas,
mau cheiro e poluição sonora (ARACAJU, 2011, p. 4-5).

Por conseguinte, desencadearam-se ações extrajudiciais envolven-


do o Ministério Público Estadual, por meio da Promotoria do Meio
Ambiente, Urbanismo e Patrimônio Histórico e Cultural, e as enti-
dades pertinentes à realização de cavalgadas como a Prefeitura, a
Superintendência Municipal de Transporte e Trânsito (SMTT), a Polí-
cia Militar e a Administração Estadual do Meio Ambiente (ADEMA).
Não obtendo o objetivo esperado, o MP/SE ajuizou uma ação civil
pública contra a Prefeitura Municipal e a Empresa Municipal de Ser-
viços Urbanos (EMSURB), em razão da leniência destas instituições
às cavalgadas em Aracaju, requisitando a intervenção do Poder Ju-
diciário para solucionar a questão.

Os motivos dados pelo MP/SE para essa ação foram os seguintes:


problemas no trânsito, por causa da interrupção da livre circulação
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

59

de pedestres e veículos sem a prévia permissão da autoridade de


trânsito; segurança pública, em razão, nas palavras da promotoria,
do elevado aparato estatal que os eventos demandam, prejudican-
do, dessa maneira, o resto da população da cidade em função do
deslocamento de policiais; poluição ambiental, pois há a ocorrên-
cia de lançamento de resíduos sólidos e líquidos, quais sejam: latas,
garrafas, papéis e dejetos dos animais ao longo do percurso, e po-
luição sonora ocasionada pelos trios elétricos, buzinas e fogos de
artifícios; maus tratos, já que os animais são obrigados a realizar o
percurso no asfalto e em horário impróprio, por vezes carregando
mais de uma pessoa, sem descanso, água, e ainda sendo submeti-
dos aos ferimentos ocasionados pelo uso das esporas, tudo sem o
devido acompanhamento veterinário (ARACAJU, 2011).

A SMTT de Aracaju foi outro órgão que se posicionou contrariamen-


te às cavalgadas. Chegou a enviar um ofício ao Ministério Público,
relatando a preocupação com a realização desses eventos.
É enorme a preocupação desta SMTT/Aju com
os inúmeros riscos, transtornos e inconvenientes
provocados no trânsito de Aracaju/SE pelas ‘cavalgadas’,
eventos privados, concebidos e realizados por pessoas
físicas, nas vias públicas da nossa Capital, de maneira
completamente dissociada dos critérios de segurança,
razoabilidade, conveniência e compatibilidade para com
os demais usuários das vias públicas. [...] Os aspectos
aqui demonstrados, ainda que superficialmente,
deveriam ser suficientes para que tais eventos não
fossem autorizados e efetivamente não pudessem ser
realizados da forma como vem sendo. Aliás, desde o ano
passado a SMTT/Aju, por entendê-los inconvenientes,
inseguros e extremamente prejudiciais ao trânsito
seguro da nossa cidade, vem negando autorização aos
seus promotores, sem, contudo, conseguir sucesso em
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

60

impedir que os mesmos ocorram (Ofício nº 127/2010,


de 04/03/2010 apud ARACAJU, 2011, p. 5)

Após uma audiência na sede do MP/SE, esta instituição fez a seguin-


te recomendação:
Para que se matenha a regularidade e a ordem no
Município, requisito ao Comando Geral da Polícia Militar
que seja na data do evento ou em qualquer outra
encaminhe expediente ao Comandante do Policiamento
Militar da Capital servindo o ofício do Ministério Público
como requisição de diligência a que faz menção ao art.
129 da CF/88 determinando que o segmento competente
da PM/SE tome todas as medidas repressivas para impedir
a realização da espécie de evento denominada cavalgada
ou similar procedendo a apreensão de toda e qualquer
espécie de som que exceda os limites legais ou que cause
pertubação do sossego (Ata da audiência realizada em
10/03/2010 apud ARACAJU, 2011, p. 6).

No entanto, mesmo com a recomendação que a Polícia intervisse para


a proibição da realização das cavalgadas na capital sergipana e sem as
autorizações ambientais e de trânsito, elas continuaram a acontecer.

Ao lermos a ação civil, percebemos uma insatisfação à “contumaz e


corriqueira”, nas palavras da petição jurídica, omissão do Poder Pú-
blico municipal. Dado que ele “[...] vem autorizando, estimulando e
subvencionando esta espécie de evento, como é o caso da denomi-
nada ‘Cavalgada do Aribé’, ofensivo, como demonstrado, às normas
de trânsito, urbanísticas e ambientais” (Ibid., p. 9).

Outra reclamação foi quanto à questão da discutida inconstituciona-


lidade da lei nº 3.450 de 2007, aquela que insere a Cavalgada do Aribé
no calendário festivo de Aracaju. As razões para isto foram aquelas já
mencionadas neste trabalho. Para o órgão ministerial, “[...] o simples
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

61

fato de se utilizar de cavalos, jumentos, burros e bois durante as Ca-


valgadas e eventos similares em meio ao ambiente urbano da cidade
de Aracaju, ipso facto, já caracteriza a situação de maus-tratos” (Ibid.,
p. 22-23), logo, torna-se incompatível um dispositivo legal municipal
contrariar um dos artigos da Carta Magna do Brasil.

O pedido do Ministério Público Estadual é, categoricamente, o fim


da realização das cavalgadas dentro da zona urbana de Aracaju, sob
pena de multa diária no valor de R$10.000,00, caso haja o descum-
primento da ordem judicial.

Contudo, a ação civil pública não surtiu o efeito esperado, pois em


2014 saiu a decisão de primeira instância da juíza Simone de Oli-
veira Fraga que indeferiu os pedidos do MP/SE. Em consequência
deste resultado, os promotores entraram com recurso que, atual-
mente, não foi tomada a decisão definitiva, embora o parecer do
relator do processo na segunda instância, produzido pelo desem-
bargador Osório Ramos Filho, esclareça que a proibição em realizar
eventos dessa natureza sob qualquer hipótese constitui-se em fla-
grante ofensa à liberdade constitucional de manifestação cultural.
Sustenta, ainda, que o ideal seria a permissão para ocorrerem as
cavalgadas, desde que se imponham as devidas condições de segu-
rança, respeitando a preservação ao meio ambiente e às normas de
trânsito (SERGIPE, 2015).

Portanto, percebemos que há mais do que uma disputa entre, de um


lado, a tradição e o rural, representados pelos apreciadores da cavalga-
da, e, de outro, a modernidade e o urbano, simbolizado pelo discurso
das entidades reguladoras da ordem pública. Sempre que ocorre esse
tipo de conflito, geralmente, o lado que acaba levando vantagem é o
novo, o urbano, que procura instituir as ideias reguladoras do proces-
so civilizatório em nome da segurança, do bem-estar, da comodidade.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

62

Ora, por que uma procissão, uma maratona ou uma micareta (o carna-
val fora de época), por exemplo, também não sofrem com esses empe-
cilhos citados anteriormente? De acordo com o que pudemos verificar
na pesquisa, tanto o que nos foi dito pelos entrevistados, quanto o que
foi averiguado juridicamente, a razão é o da incompatibilidade deste
“estilo de vida”, como falam os vaqueiros, com o ambiente urbano. No
interior de Sergipe, ainda é possível encontrar algumas cavalgadas,
como a de Itaporanga D’Ajuda, a de Nossa Senhora das Dores, a de
Nossa Senhora da Glória, a de Carmópolis, a de Santa Rosa de Lima, a
de Areia Branca, a de Estância, a de Telha, a de Cumbe, a de São Francis-
co, a de Simão Dias, a de Capela. Ou seja, independente da localização
do município, seja no sertão, agreste ou litoral, ocorrem as cavalgadas
em território sergipano. Tendo quase sempre como trajeto o percurso
entre os povoados desses municípios. No entanto, com tais ações dis-
ciplinadoras, até agora, a capital dos tabaréus é palco de apenas uma
cavalgada, a do Aribé, até o presente momento.

Conclusão
Sabemos que os homens, na maioria das vezes, querem e procuram
subterfúgios para se distinguirem dos seus pares – seja pela classe
social, pela cor da pele, pela origem , seja em razão de posse de
alguma propriedade material ou simbólica. Isto é inegável. Portan-
to, o que ocorre em Aracaju é um recurso utilizado para distinção,
proferido de uma suposta posição superior em direção a alguém
em posição inferior; isto é, o uso do termo “tabaréu” pelo “citadino”
contra alguém que, supõe-se não é possuidor de determinadas ca-
racterísticas compatíveis com o seu meio.

A dicotomia entre estes dois tipos sociais foi baseada no esquema


evolutivo rural-urbano, que por sua vez, pertence a uma dicotomia
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

63

mais abstrata que é a tradicional-moderno, as quais foram fruto das


ciências sociais evolucionistas, e replicadas na fase funcionalista. Tal
lógica perde todo o significado, pois a partir de então se poderia
opor a cidade a alguma outra situação. Talvez até situar a metrópole
como estágio posterior ao da cidade, conjuntura que não vai fazer
com que o debate se aprofunda.

A capital sergipana, cuja população conta já com seus mais de 600


mil habitantes, levando-se em consideração toda a região metro-
politana, foi construída pelos governantes de Sergipe para que a
província acompanhasse a modernidade daquele tempo, e tal obje-
tivo parece ter se impregnado no espírito dos aracajuanos. Sempre
que possível a elite fez questão de esquecer o passado colonial e
suas origens interioranas, ou ao menos, de maquiar tal passado; ou
ainda, olvidando-o naqueles momentos em que lhe convém e rea-
lizando um discurso de futuro.

A disputa entre o tradicional e o moderno se dá em Aracaju em vá-


rias situações. O moderno, para mencionar alguns exemplos, apa-
rece no discurso do Poder Público quando ocorre uma melhoria,
mesmo que sutil, na urbanização da cidade, como no transporte
público ou na abertura de novas vias. Ele também aparece no dis-
curso dos seus habitantes quando estes apelam para que a cidade
possua uma determinada instalação física que outras capitais já
possuem; ou quando a publicidade de um dado estabelecimento
comercial afirma que ele está “pari passu com o que há de mais atual
no mundo”. Exemplos disto não faltam, desde o Ponto Chic (ponto
de encontro da elite aracajuana dos anos 1920 até o início dos anos
1960 – localizado na esquina da Rua João Pessoa com a Rua Laran-
jeiras que, pelo nome já dá a entender que tipo de classe para lá
convergia); o Cacique Chá, que também era um bar e restaurante
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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na Praça Olímpio Campos, mas que oferecia música ao vivo aos seus
frequentadores. Este foi o ponto da high society na noite aracajuana
durante as décadas de 1950 e 196035. Enquanto o tradicional, para
citar alguns exemplos, aparece no falar do aracajuano, seja para se
queixar ou para elogiar; em alguns pratos da culinária cotidiana; em
algum modo de divertimento; ou seja, é quase imperceptível de se
notar, dada a inserção no cotidiano do habitante aracajuano. São
elas práticas herdadas que quase não são indagadas quanto a sua
utilização, sendo passadas despercebidas por alguns.

A ordenação do espaço aracajuano teve como propósito educar


os cidadãos a conviverem na nova ordem de que o final do século
XIX era portador. Esse elemento pedagógico deveria ensiná-los por
onde, quando e como transitar na nova urbe, quais requisitos eles
deveriam cumprir para morar, sem mencionar o comportamento a
ser executado em Aracaju para serem respeitados. A preocupação
com os usos da cidade e a conduta dos habitantes norteou os pri-
meiros dispositivos regulamentares aracajuanos, como a interdição
de gritarias, das feiras livres, o uso indevido dos chafarizes e rios, a
utilização de indumentárias não ofensivas.

A cidade foi crescendo com o passar do tempo, despertando o inte-


resse de estrangeiros e tabaréus. Com os primeiros, vieram também
os novos hábitos e costumes, a Belle Époque à sergipana, presente em
traços tão sutis e, às vezes, quase imperceptíveis. O hábito de pegar
bonde para se locomover, comunicar-se através do telefone ou telé-
grafo, escutar rádio, ir ao cinema, e, também, de se exercitar, embelezar
e fortalecer o próprio corpo praticando alguma atividade física. E com
os segundos vieram a mão de obra bruta que ajudou no crescimento
material da cidade, bem como no seu enriquecimento cultural.

35 Para saber mais sobre estes dois estabelecimentos Cf. MELINS, 2007; 2015.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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Inicialmente, acreditávamos que além do Siqueira Campos e da Ca-


valgada do Aribé, outro locus investigativo seria o Santo Antônio e
sua festa do dia 13 de junho. No entanto, após entrevista realizada
com moradoras mais antigas do bairro e organizadora da festa, cons-
tatamos que, primeiro, no que concerne à formação demográfica do
bairro, ele possui uma mescla de gente de geração nascida em Ara-
caju mesmo e também de pessoas vindas do interior; e segundo, que
a festa não tem um caráter prioritariamente rural, mas sim também
uma mescla entre as classes populares e mais abastadas, festividade
que congrega toda a cidade, e não apenas uma porção dela.

Graças aos recursos minerais de Sergipe, seu crescimento se ace-


lerou ainda mais com a descoberta do ouro negro na cidade de
Carmópolis na década de 1960. Isto permitiu um grande desen-
volvimento econômico do estado e, por conseguinte, da capital,
atraindo para ela, um grande contingente populacional, sobretudo
a partir da década de 1970, época marcada pela instalação da sede
regional da Petrobrás. Aglutinou-se por essas terras gente de outras
partes do Brasil e do mundo, sendo cada vez mais comum encon-
trar não-nativos. Com eles também vieram novos valores culturais
acrescentados aos costumes da capital sergipana. Uns se autode-
clarando como possuidores de competências práticas urbanas, ha-
bituados com o ambiente urbano, sabendo se “comportar” especi-
ficamente para cada situação. Enquanto outros, motivo de chacota,
achincalhados, pela ausência dessas competências; tendo somente
em algumas situações oportunidades de “darem o troco”.

Por isso que retratamos aqui algumas situações cotidianas que


ocorrem na capital. Acreditamos que em razão de possuir uma
identidade urbana frágil, não obstante estabelecida, os citadinos
que aqui residem, em sua maioria descendente de gente do inte-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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rior, resistem ainda em assumir esse antepassado e enxergar esse


rótulo com indiferença como ocorre em outras localidades onde
essa dicotomia capital-interior já passou desse ponto de incômodo.

A inconveniência da presença do tabaréu não foi criada na cidade


de Aracaju, mas foi ali o local onde essa importunidade ainda possui
raízes e, quem sabe no futuro, o aracajuano da terceira ou quarta
geração já não se incomode tanto e assuma as suas origens.

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RETORNAR AO SUMÁRIO
Ruth Paes Ribeiro

Quilombola tem que ter


uma fala só
Prefácio de Wilson José Ferreira de Oliveira
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

73

Prefácio
Wilson José Ferreira de Oliveira

Este artigo tem como base uma investigação realizada para


elaborar uma dissertação de mestrado sobre as agências e
lideranças que atuam na defesa dos direitos concernentes às
Comunidades Remanescentes de Quilombos de Sergipe36.
Tal pesquisa se inseriu problemática mais geral referente
às condições e dinâmicas sociais, políticas e culturais
de emergência e de consolidação de “comunidades
quilombolas” (OLIVEIRA, 2012, 2013) 37.

Um dos princípios norteadores que nos colocamos para a realização


de tais investigações sobre essa temática tem como desafio principal
possibilitar o diálogo entre perspectivas, áreas e objetos de pesqui-

36 Este artigo é uma versão resumida dos capítulos III e IV da dissertação de mes-
trado intitulada “Porque nós não temos fala. Um estudo sobre a organização
política da CEMQS: Coordenação Estadual do Movimento Quilombola de Ser-
gipe. Texto apresentado ao PPGA\UFS-2015. No presente texto, as expressões
acompanhadas de aspas são para destacar termos nativos e as citações diretas
inseridas no corpo do texto. As expressões em itálico serão para se referir a
conceitos.
37 Considera-se remanescentes de quilombo “os grupos étnico-raciais, segundo
critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de rela-
ções territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relaciona-
da com a resistência à opressão histórica sofrida” (Artigo 2º do Decreto presi-
dencial 4887 de novembro de 2003). “Aos Remanescentes das Comunidades
de Quilombos que estejam ocupando as suas terras é reconhecida a proprie-
dade definitiva, devendo ao Estado emitir-lhes os títulos definitivos” (Artigo
68 da Constituição Federal do Brasil de 1988). Destaca-se aqui a incorporação
de novos marcos legais como o Decreto 4887 de 20 de novembro de 2003,
através do DECRETO 5051 de 19 de abril de 2004 que promulga a Convenção
Internacional do Trabalho no 169 de 27 de junho 1989.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

74

sa, geralmente, vistos como distintos e, até mesmo, inconciliáveis.


Contrariamente a certas divisões institucionais e disciplinares, tais
pesquisas procuram demonstrar a pertinência da utilização de pers-
pectivas teóricas e conceituais vinculadas, tanto à antropologia da
política quanto aos estudos sobre formas de mobilização, protestos e
constituição de causas públicas, para a renovação do debate acadê-
mico sobre as condições e as dinâmicas sociais, políticas e culturais
de emergência e de consolidação de “comunidades quilombolas”.

No que diz respeito aos estudos antropológicos sobre as dinâmicas


e formas de exercício do poder e da política, uma das contribuições
relevantes para a problemática de investigação em curso consiste
na crítica e na ruptura referente às abordagens eurocêntricas que
reduzem as concepções e as práticas políticas às formas comumen-
te associadas às sociedades ocidentais (OLIVEIRA, 2015).

Contrariamente à demarcação “fixa” e pré-estabelecida entre


o que é e o que não é “político”, tais críticas demonstraram as
particularidades das condições e dinâmicas vinculadas às “ins-
tituições políticas especializadas”, ao mesmo tempo em que
tornaram visíveis a multidimensionalidade do fato político, ao
considerarem o poder e a política como imbricados com outras
dimensões da vida social em diferentes situações sociais (BRITES,
FONSECA, 2006; BEZERRA, 2009).

Nesse sentido, as investigações de diferentes unidades sociais têm


colocado em evidência o quanto as estruturas de dominação e os
diferenciais de poder socialmente existentes estão estreitamente
ligados às instituições e às redes de relações estabelecidas com as
esferas familiar, religiosa, profissional, associativa, lúdica, das amiza-
des, entre outras.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

75

Decorrente disso, um dos pontos que merece destaque em tais


iniciativas é a valorização do trabalho de campo e da proximidade
com o objeto como forma de apreensão das práticas e concep-
ções nativas do poder e das expressões e encenações da política
seguindo as percepções dos agentes (SCHATZ, 2009), de modo a
não tomar como ponto de partida (e de chegada) no “recorte da
política”, as “formulações e delimitações formais do Estado” (BE-
ZERRA, 2009, p. 12). Tal postura exige que os fenômenos comu-
mente relacionados à participação política sejam apreendidos em
“lugares” e a partir de “categorias” e “práticas” próprias aos atores,
as quais muitas vezes são negligenciadas ou tidas como “não-po-
líticas” e até mesmo “apolíticas” (MEMMI, 1985).

Em consonância com tais perspectivas e orientações, este artigo


toma como objeto de análise as dinâmicas de emergência e de fun-
cionamento da Coordenação Estadual do Movimento Quilombola
de Sergipe (CEMQS). Quais as condições sociais, políticas e culturais
que possibilitaram o surgimento de tal movimento? Qual a relação
entre suas formas de emergência e a maneira pela qual ela irá or-
ganizar-se? Como e em quais espaços seus direitos estão sistema-
tizados, conhecidos e reivindicados? Como ceder espaço à atuação
de um movimento constituído apenas de quilombolas – “sujeitos
estes mais fixados em âmbitos locais” (ANJOS e SILVA, 2008, p.160)
– quando outros atores sociais com elevados potenciais de mobili-
dade no interior das redes de mediação disputam – direta ou indire-
tamente – tal representação?

Trata-se, em linhas gerais, de um movimento que surge através de


um trabalho repartido entre diferentes instâncias (mediadoras) que
atuam em defesa dos direitos concernentes às “comunidades quilom-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

76

bolas” e que, a partir de um dado momento, reivindica uma “fala”38


dita por eles mesmos. Nesse sentido, chamamos de rede quilombo-
la de Sergipe, esses espaços onde se encontram atores oriundos do
meio rural interagindo com outros advindos do meio urbano, ambos,
ligados por uma Política Pública Nacional: o Programa Brasil Quilom-
bola. Esta rede que trataremos aqui é, em grande medida, próxima
do que Anjos e Silva (2008, p. 157) definiram como “rede ampla, de
elaboração e aplicação de políticas públicas [voltada para os quilom-
bolas]”, na qual se introduzem sujeitos diversos, com interesses tam-
bém variados, vivenciando um mundo comum, ou o que Thévenot e
Boltanski chamaram de cidade (DODIER, 1993, p. 80).

Mais precisamente, em três tipos de cidades ou lógicas de justifi-


cação inscritas, de acordo com Boltanski e Chiapello (2009), numa
sociedade cada vez mais conectada por redes. Dentre as lógicas,
ter-se-ia a cidade por projetos – cujas “políticas de luta contra a mi-
séria enquadram-se como um de seus dispositivos, sobretudo, por
pretenderem, ao frear a exclusão, reintegrar pessoas” (BOLTANSKI;
CHIAPELLO, 2009, p. 406); a cidade doméstica – onde a grandeza das
pessoas depende de sua posição hierárquica numa cadeia de de-
pendências pessoais; e a cidade cívica – onde o grande é o represen-
tante de um coletivo cuja vontade geral ele exprime (id., ibid., p. 57).

A rede em torno da política pública para quilombos em Sergipe trata-se,


também, em grande medida, daquilo que Barnes (2010) mencionou
como rede idiossincrática ou constituída de relações “que são pessoais,

38 “Fala” – acepção nativa – será entendida aqui, de um modo geral, como sinô-
nimo de autorrepresentação dos quilombolas em espaços públicos voltados
ou relacionados à Política Pública para quilombos no Estado. “Ter fala” é, espe-
cificamente, poder usar da voz, perante autoridades e/ou demais lideranças
quilombolas (quando se trata da organização interna) para dizer sobre direitos
sociais e problemas vividos nos quilombos de Sergipe.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

77

ou seja, que derivam do status de uma pessoa como amiga, patrono


ou algo semelhante” (BARNES, 2010, p. 202). É, também, uma rede so-
ciotécnica (LATOUR, 1994), permeada por um coletivo ou agregado
(LATOUR, 2012), composta por conexões entre humanos e não-huma-
nos (agentes do governo, partidos políticos, associações quilombolas,
técnicos de ONGs, conceitos, artefatos técnicos como RTIDs, salas de
reuniões, etc.). Com efeito, ao me referir à rede quilombola de Sergipe,
faço-o levando em conta os aspectos conceituais citados acima.

Quanto ao título do texto “Quilombola tem que ter uma fala só” foi
uma expressão usada por liderança39 quilombola a fim de demarcar
fronteira – ou o espaço de “fala” – dos quilombolas perante outras
entidades constituídas de não-quilombolas, as quais integravam a
rede em torno da Política Pública voltada para estas populações no
estado de Sergipe e foi dita, com certo orgulho, no dia do primeiro
evento organizado pela CEMQS junto à CONAQ40.

Dizer que “quilombola tem que ter uma fala só” ilustrava grande par-
te da percepção de algumas lideranças sobre os atores não-quilom-
bolas, os quais adquiriam posição de concorrentes diante da orga-
nização de um movimento quilombola que pretendia constituir-se
apenas por quilombolas. Em um universo de disputas por autorre-
presentação política – além da disputa por diretos sociais – estava
embutida certa obrigação de não falar por influência de outras en-

39 Tomaremos aqui a acepção nativa “lideranças quilombolas” para nos referir-


mos aos membros das diretorias das associações quilombolas, os quais par-
ticipam de atos de mobilização e articulação para uma organização coletiva
das demandas dos quilombolas no estado de Sergipe. Sendo assim, embora
seja possível encontrar alguns casos, tornar-se presidente de uma associação
quilombola não significa, necessariamente, ser uma “liderança quilombola” re-
conhecida “internamente”, como bem frisou Anjos e Silva (2008).
40 Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais
Quilombolas.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

78

tidades, ou de não se misturar – com a Cáritas Diocesana de Propriá,


com o MST41, com o Instituto Braços42, com o INCRA43, ou, até, em al-
gumas situações, com o próprio Movimento Negro (urbano).

Segundo Gohn (2011), os movimentos podem surgir e desenvolver­-


-se, também, a partir de uma reflexão sobre sua própria experiência
(id., ibid., p. 336). A CEMQS vai surgindo a partir do contato de várias
lideranças com este novo universo da participação em eventos após
o PBQ44: seminários, reuniões, congressos, oficinas, projetos, entre
outros, bem como através da relação com o Comitê Gestor, até então,
uma das entidades representativas de quilombo em Sergipe.

Além disso, as lideranças quilombolas possuem experiências


variadas com aquelas mesmas agências que atuam direta ou
indiretamente em políticas públicas para quilombos neste
estado, dentre as principais: o INCRA, a Cáritas Diocesana de
Propriá45, o MST, o Movimento Negro, através da SEDHUC 46 –
que, até 2014, contava com atores ligados a um histórico de
engajamento na causa racial no Estado –, o MNU47, o Instituto
Braços (IB), o quilombo urbano da Maloca, por exemplo. Muitas
destas organizações são constitutivas da gênese de mobiliza-
ção política de algumas comunidades quilombolas no estado

41 Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra.


42 Organização não-governamental.
43 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
44 Programa Brasil Quilombola.
45 ONG ligada à Igreja Católica. Propriá é uma cidade localizada no leste sergipa-
no.
46 Secretaria Estadual de Direitos Humanos e Cidadania. A partir de 2015, perdeu
status de secretaria e tornou-se uma coordenadoria.
47 Movimento Negro Unificado.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

79

de Sergipe, no que tange à solicitação do autorreconhecimento


à Fundação Cultural Palmares48.

A CEMQS, a “coordenação estadual” ou, simplesmente, a “coorde-


nação” são nomes ou diferenciações que expressam a criatividade
de alguns atores em controlar uma riqueza bastante disputada na
rede quilombola de Sergipe: a “fala”, ou o ato de representar pro-
blemas sociais concernentes às populações de negros rurais de
Sergipe, publicamente – através da “fala” ou por meio de documen-
tos. A CEMQS é uma objetificação do controle (WAGNER, 2010b, p.
90). Podemos dizer, assim como Wagner (2010a), ao criticar o uso
de conceitos ditos antecipadamente, que a “Coordenação Estadual
do Movimento Quilombola de Sergipe é um nome que, em grande
medida “delineia um modo de criatividade cujo aspecto mais sério,
ao menos em termos nativos, é o da troca de riquezas. Essa troca,
por sua vez, deriva de outro uso do contraste e da distinção para
eliciar relações sociais” (p. 247).

A fim de controlar o acesso aos espaços de representação política


das Comunidades Quilombolas em Sergipe, o nome estabelecera
fronteiras entre os quilombolas e os não-quilombolas da rede. Os
contrastes que aqui pudemos notar foram com relação ao “gover-
no”, representado nas situações observadas, pelo INCRA, pela SE-
DHUC e pelo Comitê Gestor, bem como com relação a outros ato-
res de atuação no meio rural como o MST, a Cáritas Diocesana de
Propriá – uma das peças que compõe o “movimento do Padre”49 –,

48 Dentre as agências que pudemos verificar como mediadoras dos processos


de constituição de algumas Comunidades Quilombolas no estado, podemos
citar: a Cáritas Diocesana de Propriá, o MST, o INCRA, o Instituto Braços, Secre-
tarias municipais de assistência social, etc.
49 Expressão utilizada por uma liderança ao se referir ao que chamamos de “rede par-
cial de apoiadores” (MAYER, 2010). Conversa informal. Aracaju, INCRA, março de
2013.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

80

além de uma diferenciação entre eles mesmos ou entre os coorde-


nadores da CEMQS e o Comitê Gestor, representado por liderança
do quilombo urbano da Maloca, em Aracaju.

A CEMQS não existe sem aqueles outros aos quais ela se opõe e que
a ela se complementam. Gostaríamos, assim, de fazer uma breve
demonstração de parte da rede quilombola, ou, mais precisamente,
dos principais atores – e dilemas – quilombolas e não-quilombolas
que, de algum modo, influenciaram sua formatação, os quais rela-
cionam-se, direta e constantemente com o grupo.

Antes de prosseguir, ressaltamos que a coleta de dados – e fatos –


para a construção do trabalho, deu-se em sua maior parte in vivo
ou “na constituição de relações de familiaridade e confiança com os
interlocutores [...]” (CEFAI et al., 2011, p. 11), ou derivada da minha
co-participação em eventos públicos ou mais restritos. O tempo
para apreensão destes dados foi de dois anos – de junho de 2013 a
junho de 2015 – e dividiu-se em 6 procedimentos correlacionados:
1) Observação e participação em eventos públicos; 2) Observação
e participação em reuniões mais privadas da CEMQS – as “RMs50” –,
totalizando vinte e quatro eventos51, onde estiveram lideranças qui-
lombolas; 3) Busca de informações, notícias e documentos em sítios
oficiais do governo, além de pesquisa de informações veiculadas às
redes sociais virtuais, como Facebook; 4) Acesso à documentação
pública (física) do INCRA e MPF52; 5) Aplicação de um questioná-
rio supervisionado e, por último, 6) A realização de três entrevistas
como lideranças quilombolas.

50 Reuniões mensais.
51 Neste artigo, os vinte e quatro eventos aparecerão numerados.
52 Ministério Público Federal.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

81

Quilombola tem que ter uma fala só


Ruth Paes Ribeiro

E quantos movimentos existiam [...]? Não! Porque daqui a


pouco, tem uma quebra de braço, porque tem gente ligada
à Caritas, tem gente ligada ao MST. Eu disse: “Ói! Quilombola
tem que ter uma fala só! ” [...] quando nós falamos de
comunidade quilombola, é comunidade quilombola! Não é
movimento dos sem-terra, não é movimento de Igreja, ou
outro movimento, etc., é movimento quilombola! Então, é
isso que eu defendo, eu sempre defendi, minha tese é essa53.

O “movimento do padre”
Quando pedi mais detalhes, a fim de compreender melhor, a lide-
rança, como se não fizesse parte de nenhum dos movimentos, es-
clareceu: “aqui em Sergipe existiam três movimentos quilombolas,
agora são dois, mas antes eram três: um do Padre – junto da Cáritas
Diocesana de Propriá, Instituto Braços e Movimento Nacional de
Direitos Humanos e, também, junto de “Ana Lúcia” [deputada esta-
dual] –; “outro do Comitê Gestor e Associação Quilombola, de Luiz
Bonfim [liderança do quilombo urbano Maloca]; e ainda, outro, que
não existe mais: o “MSK” – Movimento Sergipano Kilombola – “de
Espaço”, que era do MST” (RIBEIRO, 2015, p. 99).

53 Discurso proferido por um dos coordenadores da CEMQS (Coordenação Esta-


dual do Movimento Quilombola de Sergipe) no Primeiro Encontro Nacional de
Fortalecimento da Cadeia Produtiva das Comunidades Quilombolas de Sergipe.
Primeiro encontro realizado pela CEMQS junto à CONAQ, PNUD e CONSEAN. Ho-
tel Riverside. Aracaju. Maio de 2014. Todos os atores citados neste trabalho são
coordenadores da CEMQS; os que não forem serão devidamente discriminados.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

82

A justificativa de que o Comitê Gestor era “governo” a fim de legi-


timar a criação de mais um formato de organização, a CEMQS não
era a única que contribuía para legitimar a necessidade de distinção
ou diferenciação entre os quilombolas e os outros. Outras censuras
eram empreendidas com a finalidade de restringir ou garantir um
espaço de representação política dos quilombolas sobre as políti-
cas públicas voltadas para quilombos em Sergipe.

Uma das censuras era em relação ao envolvimento de algumas


comunidades quilombolas com a Cáritas Diocesana de Propriá ou
com o Padre; além do Instituto Braços junto ao Movimento Nacional
de Direitos Humanos. Este arranjo tratava-se de uma “rede parcial”
(MAYER, 2010) em torno das ações que envolviam quilombos em
Sergipe – ou circunscritas em uma rede total, que não descreverei
aqui –, o que parecia “um movimento próprio” – ou o “movimento
do Padre” – na medida em que, por vezes, era visto por algumas
lideranças, como concorrente das ações de um movimento que ti-
vesse “uma fala só” – ou só dos quilombolas.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

83

Figura 1 Quilombos de Sergipe. Organização, lutas e Conquistas54.


Fonte: Acervo particular da autora.

Brejão dos Negros e Caraíbas eram duas das comunidades quilom-


bolas que tinham relações diretas com esta rede parcial de apoia-
dores. A atuação da Cáritas Diocesana de Propriá nas duas comuni-
dades, de modos diferentes, acabou (de certo modo) por torná-las
mais visíveis no cenário das aparições públicas em Sergipe. Em
Brejão dos Negros, o padre foi o agente que despertou o interesse
da comunidade em requerer a certidão pela FCP55, realizando um
trabalho de conscientização através da Igreja:

54 Evento I: “Encontro de Propriá”, intitulado: “Quilombos de Sergipe. Organização,


lutas e Conquistas”. Organizado pela Cáritas e pelo Instituto Braços, junto à Asso-
ciação Quilombola Santa Cruz de Brejão dos Negros. Junho/2013. Foto da autora.
55 Fundação Cultural Palmares.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

84

Mas a gente só foi despertando com a presença do Padre. Por que a


gente não enxergava, não enxergava isso. A gente era cego mesmo,
a gente estava ali sendo escravo e não sabia e ainda achava que
estava bom [...]56.

Em Caraíbas, os próprios técnicos da Cáritas Diocesana de Propriá,


quando estes prestavam assessoria em um assentamento vizinho
à CQ57, foram acionados por moradores da comunidade, os quais,
na época, interessavam-se em ser “assentados da reforma agrária”:

Rose [ex-técnica da Cáritas] foi quem foi vendo que a gente tinha
características diferentes. Ela que reparou que a gente tinha uma
ancestralidade negra e a partir daí começamos a entender o que era
a política quilombola58.

A forte atuação do pároco em defesa da comunidade de Brejão dos


Negros, bem como de deputada estadual do PT, uma das principais
parlamentares de atuação em defesa dos quilombolas em Sergi-
pe, junto, por outro lado, à confluência de interesses e disputas na
região, através da atuação contrária de um deputado estadual do
DEM, de uma juíza detentora de propriedade no território da CQ
e, ainda, pelo potencial turístico da região do baixo São Francisco,
atraindo, inclusive, o interesse de pretensos investidores estrangei-
ros. Tudo isto, de certo modo, favoreceu uma grande visibilidade à
comunidade de Brejão “ao contrário de outras”59.

56 Entrevista com Isaltina. Evento I.


57 Comunidade Quilombola.
58 Conversa informal com Xifroneze, liderança quilombola do quilombo Caraíbas.
Aracaju. Abril de 2015.
59 Muitas lideranças quilombolas criticavam a atenção que estas duas CQs (Bre-
jão dos Negros e Caraíbas) recebiam diante das autoridades públicas.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

85

Decerto, a CQ de Brejão dos Negros destacou-se mais, por exem-


plo, em número de matérias que circulam na internet, tanto no site
da Assembleia Legislativa, quanto em outros. Há recorrentes falas
e eventos onde aquela deputada aparece junto a comunitários do
quilombo e ao pároco, defendendo Brejão dos Negros. Houve o
curso da “Escola de Fé e Política” ofertado à comunidade por este
mesmo padre, em consonância com a Cáritas Diocesana de Pro-
priá, no início de 2012. Aconteceu também a efetivação de parce-
ria entre INCRA e SEIDES60 – na época em que a deputada estadual
era secretária de Estado – a fim de operacionalizar um projeto de
“resgate cultural” na CQ em 2011 –, com a produção de um vídeo e
uma cartilha. O prêmio concedido ao Padre, em 2013, no Seminário
Nacional de Direitos Humanos e Juventude com a presença da de-
putada e de algumas LQs61 de Brejão dos Negros. A inauguração de
uma casa de farinha em janeiro de 2014 na CQ de Brejão dos Negros
dada pelo mandato da deputada, por exemplo. Aconteceu ainda
uma ocupação62 realizada no INCRA, no início de 2014 – quando a
CEMQS já havia sido criada –, com a presença do Padre, do MNDH e
do IB, sem o apoio das demais comunidades quilombolas, além de
Brejão dos Negros. De modo geral, tudo isto denota um trabalho
realizado na e para a CQ de Brejão dos Negros.

Nesta conjuntura de apoiadores, o Instituto Braços (IB), ONG refe-


renciada como “Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Sergi-

60 Secretaria Estadual de Inclusão e Desenvolvimento Social.


61 Lideranças quilombolas.
62 O ato de ocupar órgãos públicos, como certo estilo de mobilização característico
do MST, já pôde ser descrito por John Cunha Comerford (1999), em “Sociabilida-
de, Falas e Rituais na Construção de Organizações Camponesas. Rio de Janeiro:
Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da Política”. Mais precisamente no ca-
pítulo V.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

86

pe”63, trabalha dando suporte estrutural às ações do MNDH, contan-


do, também, com o apoio indireto da mesma deputada ligada ao
PT. No tocante ao trabalho com Comunidades Quilombolas, a ONG
executa projetos de assessoria técnica e jurídica tanto a Brejão dos
Negros, quanto a CQ de Caraíbas, através de projetos financiados
pelo Governo Federal. Na ONG, havia, também, alguns integrantes
que possuíam trajetória de atuação no movimento negro e alguns
deles já haviam atuado, inclusive, em processos de organização po-
lítica de algumas comunidades quilombolas, a fim de requerer da
FCP certificação: “a relação dos membros do Instituto Braços com
as comunidades quilombolas de Sergipe se deu desde a luta pela
organização e reconhecimento da primeira comunidade remanes-
cente de quilombo, no início dos anos de 1990, a comunidade qui-
lombola de Mocambo”64:

Robson [na época, coordenador geral do IB] procurou a gente para


saber se queríamos que eles desenvolvessem projeto nas nossas
CQs. Do mesmo jeito que me procurou, procurou outras. Algumas
não aceitaram, como Patioba e Maloca. Nós aceitamos e hoje ele tá
lá fazendo trabalho65.

Estes técnicos da ONG são como aqueles mediadores descritos por


Neves (2008):
[...] em grande parte militantes políticos fundamentais no
exercício e constituição, de consagração e de divulgação
de novos ideais, metas e modos de organização, em geral
agregados em torno de alianças estabelecidas por redes
de instituições ou movimentos associativos (p. 10).

63 Informações encontradas no site do IB. http://www.institutobracos.org.br/.


Acessado em: 15 de janeiro de 2015, às 10h15min.
64 Disponível no site da ONG (http://institutobracos.org.br/)
65 Xifroneze. Entrevista, abril de 2015.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

87

A maioria de seus membros possui trajetória ligada aos movimen-


tos sociais, em específico, ao Movimento Negro. Contudo, o rela-
cionamento de tais entidades com as lideranças quilombolas nem
sempre era visto com bons olhos. A censura sobre este tipo de re-
lacionamento, muitas vezes, contribuía para o afastamento de lide-
ranças quilombolas – ou comunidades quilombolas que porventu-
ra possuíssem algum vínculo com estas entidades constituídas de
não-quilombolas – de alguma proposta de movimento que fosse
incapaz de agregar dentro dele estas outras vozes, como podemos
observar na “fala” de Isaltina, na ocasião da reunião ocorrida em
21/12/13, evento III66, na Maloca:
[...] outra coisa! É que quem tá lá na comunidade ajudando
a gente porque a Cáritas é o nossos pés e nossas mãos.
Tudo que a gente precisa lá, se disser: vamos no MPF, a
Cáritas tá lá com a gente, desde o início, quem abriu os
olhos da gente, quem mostrou todos os caminhos pra a
gente foi a Cáritas, gente! Se aqui dissessem hoje, ah! Você
tem que decidir, ou você fica com o “movimento” ou vocês
ficam com a Cáritas, eu ficaria com a Cáritas.

Imputar a obrigação de separar as CQs das demais agências consti-


tuídas em sua base de não-quilombolas era, em paradoxo, conviver
com o risco de levar as lideranças a se movimentarem isoladamen-
te, ou através, apenas, de uma mediação constituída de não-qui-
lombolas e/ou, também, através do acesso direto dos representan-
tes das próprias comunidades quilombolas às instâncias públicas
que tratavam da política quilombola em Sergipe.

66 Reunião no quilombo urbano da Maloca. Marco histórico de formação da CEM-


QS. Aracaju, 21/12/13.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

88

Nesse caso, o INCRA além de outras entidades com mais poder na rede
quilombola, acabava por ampliar a sua capacidade de mediar. Portan-
to, havendo o interesse em construir uma organização – um movimen-
to – capaz de interceder as relações de todas as comunidades com os
outros atores envolvidos na política pública para quilombos no estado
de Sergipe era preciso, em muito, encarar as relações das demais lide-
ranças quilombolas com os diversos agentes “exógenos”. Estes, muitas
das vezes, mediadores importantes dos processos de organização
política das respectivas comunidades quilombolas perante o Estado
brasileiro, no que tange, especificamente, à mobilização para solicitar
certidão de autorreconhecimento à Fundação Cultural Palmares, o que
eleva o agrupamento rural ao status de público da reforma agrária (ét-
nica) ou comunidade quilombola certificada.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

89

O quilombo urbano Maloca e o Comitê Gestor

Figura 2 Símbolo do Comitê Gestor das Comunidades Quilombolas de Sergipe67.


Fonte: Acervo da autora68

O Comitê Gestor da Agenda Social Quilombola é uma organização


criada pelo Estado Brasileiro. A legislação que institui e regulamen-
ta a existência do Comitê Gestor em nível Federal se dá por publica-
ção em decreto Nº 6.261, de 20 de novembro de 2007 com finalida-
de descrita no artigo 5º: “propor e articular ações intersetoriais para
o desenvolvimento integrado das ações que constituem a Agenda
Social Quilombola”. A criação dos Comitês Gestores estaduais, por
outro lado, ocorre através de “incentivo” da SEPPIR69. Dos Comitês

67 Imagem obtida no blog da CONAQ: http://quilombosconaq.blogspot.com.


br/2011/08/carta-aberta-do-3-encontro-de-quilombos.html . Acessado em 20
de abril de 2014 às 20:31.
68 Imagem obtida no blog da CONAQ: http://quilombosconaq.blogspot.com.
br/2011/08/carta-aberta-do-3-encontro-de-quilombos.html . Acessado em 20
de abril de 2014 às 20:31
69 Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Possui status de mi-
nistério e coordena o Programa Brasil Quilombola.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

90

Gestores Quilombolas estaduais no Brasil, são poucos os que foram


formalizados por decreto. De acordo com dados da SEPPIR, cinco
estados, até o ano de 2012, constituíram Comitês, são eles: Alagoas,
Amapá, Goiás, Paraíba e Paraná (BRASIL, 2012, p. 6).

Até 2014, as comunidades quilombolas de Sergipe utilizavam este


nome como uma das principais formas de representarem suas
ações políticas em Aracaju. Todavia, embora em Sergipe existisse
ata que comprovasse o evento “criador” da entidade e, além disso,
a informação de que o ex-governador Marcelo Déda, do PT, tenha
assinado um decreto70 para a criação do Comitê Gestor da Agenda
Quilombola – em 2008 –, nos registros documentais do governo
não foi possível verificar tal existência formal ou regulamentação71.
A entidade havia se tornado algo próprio das lideranças quilombo-
las, na medida em que, mesmo diante do fato de as reuniões de
“criação” e “eleição” não terem sido seguidas de regulamentação por
parte do Governo Estadual, ainda assim, as lideranças significavam
– na prática – o termo (Comitê Gestor) como principal símbolo e
referência para sua organização.

No que se refere ao governo do estado, de outro modo, a decreta-


ção, em 2013, da criação da Unidade Gestora dos Programas que
atendam as Comunidades Quilombolas (UGPCQ)72, inserida no âm-
bito da Unidade Gestora da Agenda Transversal dos Programas do
Plano Plurianual da União”73, grosso modo, parece substituir o Co-

70 Matéria sobre a assinatura do Decreto: http://infonet.com.br/politica/ler.asp?i-


d=76745&titulo=noticias. Em 23/05/2015 às 21:35.
71 Os arquivos foram verificados no site do governo do estado de Sergipe/Acervo
legislativo.
72 Decreto estadual de no 29.050, publicado em 14 de fevereiro de 2013.
73 Lei nº 12.593, de 18 de janeiro de 2012.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

91

mitê Gestor. A UGPCQ, baseada em três pilares: “direito ao acesso à


terra”, “direito à identidade como vertente da dignidade da pessoa
humana” e “incentivo à preservação do patrimônio cultural” (DE-
CRETO nº 29.050; 2012) era composta apenas por um total de dez
secretarias, tendo a SEDHUC como coordenadora. Secretaria, esta,
que tinha em sua composição, representantes do movimento ne-
gro urbano de Sergipe.

Todavia, certa crença no valor do Comitê Gestor perante o Estado,


fazia com que continuassem a se organizar em torno do nome, in-
dependentemente de um entendimento mais preciso sobre este
instrumento ou sobre sua relevância prática. Em paradoxo, no dia
21 de dezembro de 2013, na Maloca (evento III), a aproximação com
este mesmo “governo” ou “Estado”, vista na configuração do Comi-
tê Gestor, era acionada pelas lideranças como justificativa principal
para criarem uma nova organização. O que isto queria dizer?

Ao conversar com uma das ex-presidentes do Comitê Gestor acerca


das funções da entidade, o que pudemos notar foi certa dificulda-
de em defini-la, suas atribuições normativas, os órgãos e entidades
civis que o compunham, a legislação que deveria instituí-la, os cri-
térios de elegibilidade das partes que o formavam, a frequência
de reuniões, entre outros aspectos. Era como se a entidade fosse
o próprio movimento. Por não ter sido absorvido, ou reconhecido
formalmente pelo estado de Sergipe, através de regulamentação, o
que não era de conhecimento das lideranças quilombolas, ao con-
trário do que ocorria em outros estados onde o Comitê havia sido
instituído – muitos dos quais não continham em sua formatação a
participação de quilombolas – em Sergipe, o Comitê Gestor conti-
nuava atuando de um modo peculiar.

De 2008 a 2015, já estiveram à frente do Comitê Gestor em Sergipe


três lideranças quilombolas. A primeira delas pertencia ao quilombo
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

92

de Brejão dos Negros74; a segunda, à Comunidade Quilombola de Ca-


raíbas75 e a terceira, e última, ao quilombo urbano da Maloca76. As
duas primeiras tiveram a assessoria da Cáritas Diocesana de Propriá
que, desde o início, e ainda hoje, estiveram presentes nos processos
de organização política para o autorreconhecimento frentes à FCP.

Ao contrário das outras duas, o quilombo urbano da Maloca orga-


niza o seu processo de autorreconhecimento através de uma ação
coletiva acionada no espaço de mediação de uma organização não-
-governamental própria – a ONG CRILIBER77 – constituída décadas
antes (MARCON, 2008). Cremos que tal protagonismo, bem como
sua posição geográfica privilegiada – na capital do estado, próxima
a órgãos públicos e entidades importantes – contribuirá com certa
centralidade nas ações dos quilombolas no que tange a uma repre-
sentação a nível estadual.

A CRILIBER, entidade representativa do quilombo urbano da Maloca,


constituída já na década de 1980, é ativa em ações voltadas para o
combate ao racismo com ênfase nas crianças, “atuando na promoção
dos direitos das populações afrodescendentes e realizando atividades
culturais e eventos locais de debate contra a discriminação” (MARCON,
2008, p. 100). Uma destas ações acontece desde a década de 1990 e
até hoje realiza-se um concurso da “Beleza Negra”, que ocorre todos os
anos, conforme também foi descrito por Menezes (2011):

No caso da Beleza Negra CRILIBER as meninas da Maloca, tanto


quanto as outras participantes, aprendem sobre a cultura africana,

74 Antônio Bonfim. CQ certificada pela FCP em 2006.


75 Xifroneze. CQ certificada pela FCP em 2005.
76 Luiz Bonfim. CQ Certificada pela FCP em 2007.
77 ONG Criança e Liberdade.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

93

costumes e tradições relembrados no quilombo que serve de ce-


nário para o concurso, assim como, das demais localidades do esta-
do. Participam de oficinas de dança e música afro-brasileira, onde
aprendem uma coreografia que irão encenar durante o concurso
(MENEZES, 2011, p. 9, grifo nosso).

O trabalho empreendido contra a discriminação racial, realizado


por membros da CRILIBER, agora também associado ao espaço do
Comitê Gestor, relacionado à valorização de uma identidade enfa-
tizada em um (novo) entendimento sobre “a beleza de ser negro”,
tendo na culminância da realização do concurso da “Beleza Negra”
seu ápice, ultrapassa o espaço restrito da capital do estado, palco
principal das ações do(s) Movimento(s) Negro(s), de modo geral. A
seguir, a visão do presidente da CRILIBER –representante quilombo-
la no Comitê Gestor Quilombola – sobre a CEMQS:
Eu discuto política de combate ao racismo, eu discuto uma
política de pensar África, uma África sergipana. Eles [CEMQS]
estão fazendo um movimento como se fosse MST [...]. Falo
para você: se o movimento quilombola não entender o
histórico do país como é que vai fazer enfrentamento com
o Estado brasileiro? Se não conhece a colaboração da “casa
de cultura africana”, da casa religiosa que é os filhos de Obá,
lá em Laranjeiras, e outros mais, se não conhece a história
dos nossos heróis africanos, como vai trazer melhoria para o
povo? Como é que vai fazer enfrentamento com o governo?
Ôh meu Deus! É fundamental você ter conhecimento da
estória africana [...]78.

Conforme exposto, é possível notar o valor dado a uma discussão sobre


as relações entre Brasil e África. Debate posto como fundamental aos

78 Liderança quilombola do quilombo urbano Maloca em Aracaju. Entrevista


concedida em 17 de junho de 2015. Maloca, Aracaju.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

94

membros de uma pretensa organização ou movimento étnico, onde


uma (re) aproximação com a África é considerada imprescindível. Sendo
assim, perguntamos: além de desempenhar papel central na introdução
deste debate sobre identidade negra ou “pensar África” e “discriminação
racial” no âmbito das Comunidades Quilombolas em Sergipe, de modo
geral, como o espaço do Comitê Gestor, desde sua origem, feito e signi-
ficado pelas lideranças quilombolas, pode nos fornecer elementos para
pensar a relação destas últimas com o próprio Estado? Por outro lado, e,
acima de tudo, por que as demais lideranças optaram por diferenciarem-
-se deste nome, com a justificativa de que “era governo”?

Ao nosso ver, o distanciamento empreendido por lideranças qui-


lombolas em relação ao “Comitê Gestor”, configura-se em grande
medida, em estratégia a fim de realocar duas centralidades do/no
movimento quilombola de até então em Sergipe: a do “governo” –
que embora não tivesse no Comitê Gestor um espaço normatizado,
adquiria esta imagem de “governo”– e, a de um “pensar África”, mais
precisamente de um discurso que nem todos possuíam até então.
De um discurso que era importante, mas restrito a atores com tra-
jetórias ligadas ao (s) movimento (s) negro (s) urbano de Sergipe.

Sendo assim, a nomeação de uma nova entidade e modo de organi-


zação – a CEMQS – provocou um deslocamento que posicionou ou-
tros atores no protagonismo da representação política das comu-
nidades quilombolas em Sergipe feita pelos próprios quilombolas.
Além de evidenciar uma aparente sobreposição do rural em relação
ao urbano, a criação da CEMQS também impõe separação – relativa
– entre dois lados que emergem como opostos – o da CEMQS e o
do “Comitê Gestor” (ou Maloca) – no espaço de disputas por autor-
representação política no âmbito da política pública voltada para
comunidades de negros rurais.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

95

O MST ou MSK: lembranças de um movimento “forjado”


É preciso situar, também, dentre as histórias que compunham a me-
mória de um movimento quilombola em Sergipe, e que eram capa-
zes de impulsionar as lideranças a se diferenciarem dos agentes não-
-quilombolas envolvidos direta ou indiretamente na rede quilombola
de Sergipe, uma que assombrava algumas lideranças quilombolas.

O fato era sistematicamente relembrado em eventos públicos


ou restritos, enquanto um alerta contra uma possível contami-
nação dos quilombolas, que poderia se dar através de certo tipo
de relacionamento daqueles com setores do MST. Tratava-se de
referência a um caso onde um ex-integrante do Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra (MST) tentou “forjar” um movimento
quilombola, o Movimento Sergipano Kilombola, o (MSK), bem
como uma Comunidade Quilombola. Esta Comunidade de fa-
chada, embora certificada pela Fundação Cultural Palmares,
atualmente encontra-se com o seu processo de RTID79 arquivado
por intervenção do MPF80 e da própria FCP. Estes órgãos, após
receberem denúncias de quilombolas, procederam com ações

79 Relatório Técnico de Identificação e Delimitação do território de uma Comuni-


dade Quilombola. É documento produzido pelo INCRA e compõe-se de diag-
nósticos feitos por antropólogo, engenheiro agrônomo, topógrafo, entre ou-
tros. As informações do documento circulam por diversos órgãos que validam,
atestam, acrescentam, até a publicação de portaria feita pelo (a) presidente (a)
do INCRA Nacional.
80 O MPF, por meio de “Recomendação” no 01/2012, encaminhada ao INCRA
em fevereiro de 2012, sugere que o mesmo não proceda com a elaboração
do Relatório Antropológico, uma das principais peças que compõem o RTID
(Relatório Técnico de identificação e Delimitação do Território]. Recomenda
que a autarquia aguarde a manifestação da FCP e de peritos da “6ª Câmara de
Coordenação e Revisão”. Em uma de suas “considerações” consta “[...] eis que
[a Comunidade Santo Antônio Canafístula] está sendo vista pelo movimento
quilombola como um movimento de famílias que não obtiveram êxito com a
Reforma Agrária e que estão “migrando” para o movimento quilombola”.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

96

administrativas e de perícia, e, a partir daí, pôde se constatar que


se tratava de um acampamento81.

Embora o episódio fosse recorrentemente citado, o MST continua-


va sendo referência para algumas lideranças quilombolas. Algumas
possuíam, inclusive, vínculos muito fortes com o movimento, além
de relações de apoio de parlamentares que representavam os as-
sentados da reforma agrária em Sergipe:
Eu estou entrando assim [na CEMQS] porque minha
comunidade foi certificada dia 25, mas já venho numa luta
de muito tempo. Já tenho um conhecimento. Aí o pessoal
“fala” [falar mal] do MST... Não, gente! A gente tem os
mesmos ideais, os mesmos problemas, é a perseguição, é o
político que entra ali e quer levar você “debaixo da chinela”.
Eu estou militando porque minha mãe é assentada do MST
e eu desde pequenininha que me entendo por gente que
eu gostei de tá no meio, ali participando82.

Desde 2015, inclusive, o principal parlamentar representante dos


assentados da reforma agrária em Sergipe83 tem cruzado o territó-
rio com outra parlamentar, do “movimento do Padre”, uma das mais
destacadas representantes da reforma agrária étnica em Sergipe84.

A alteração do mandato do deputado, agora como federal, parece


torná-los, de algum modo, aliados, na medida em que não concor-
rem e isto também contribui, cada vez mais, com uma (re) aproxi-

81 A comunidade Santo Antônio Canafístula (ou o acampamento) está (ou esta-


va) localizada no município de Propriá/SE e foi certificada pela FCP em 10 de
fevereiro de 2011. Após este episódio, a FCP passou a realizar visitas nas CQs
antes de entregar a certidão de autorreconhecimento.
82 Gressi. Liderança quilombola de Mocambo (de Aquidabã). Evento III.
83 João Daniel, deputado federal do PT.
84 Ana Lúcia Deputada estadual do PT.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

97

mação de algumas lideranças no contexto da CEMQS. Com efeito,


um alerta contra um vínculo com o MST, poderia estar relacionado,
também, a um alerta contra uma convivência com um dado parla-
mentar – ou patrono – comprometido em defender certo movimen-
to, comunidade quilombola ou até servidores com cargos comissio-
nados envolvidos nesta rede em Sergipe.

Sendo assim, é diante de um cenário de relacionamento diverso


entre lideranças quilombolas e mediadores externos ou não-qui-
lombolas, atuantes da rede quilombola, que a CEMQS se constitui
e se reconstitui diariamente como entidade que reivindica para si
a primazia no direito de representar quilombos em Sergipe. Dito
isto, críticas a certos tipos de contato dos atores quilombolas com o
INCRA, com a Cáritas Diocesana de Propriá e com o MST são recor-
rentes, sobretudo, por estes últimos tratarem-se de agentes privile-
giados na rede. O problema da “desunião” das lideranças, sempre ci-
tado por elas, todavia, pareceu encontrar na rede tanto a sua causa,
quanto a chave para resolvê-lo.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

98

Formatação da CEMQS

Figura 3 Símbolo da Coordenação Estadual do Movimento Quilombola de Sergipe.


Fonte: Acervo da autora85

A CEMQS foi fundada, formalmente, em 14 de janeiro de 2014, por


meio de assembleia, e conta com integrantes unicamente pertencen-
tes à CQs localizadas no interior de Sergipe. O número de homens
e mulheres é mais ou menos equilibrado, uma média de 7 homens
para 7 mulheres. Todos os membros são alfabetizados e possuem al-
gum nível de escolaridade, desde o ensino fundamental incompleto
(4ª série) até o ensino superior incompleto (cursos de Direito, ou Ser-
viço Social). Daqueles que cursam ou já cursaram o ensino superior,
havia o coordenador geral, que estava no 4º período de Serviço So-
cial, e o (ex) presidente da FECQS86, que já havia iniciado o curso de

85 Aperto da “mão amiga” sobre o mapa de Sergipe. Símbolo representativo da


CEMQS: “O símbolo que eu estou propondo para a Coordenação Estadual do
Movimento Quilombola de Sergipe é esta mão amiga sendo abraçada pelo
Estado de Sergipe”. Wellington, coordenador-geral da CEMQS. Evento VI.
86 Federação Estadual das Comunidades Quilombolas de Sergipe.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

99

Direito. Havia, ainda, três funcionários públicos, uma merendeira, um


agente de saúde, uma professora, além de um vereador.

A rotina de reuniões mensais (RMs)

A fim de conquistarem um espaço de autorrepresentação na rede,


uma organização das “falas” internas – ou do/no próprio grupo – era
uma exigência também. Desse modo, além da fixidez do local para
reunirem-se, a rotina destes encontros entre coordenadores – ou
entre lideranças quilombolas – era um ponto importante. Do início
ao final da pesquisa, a CEMQS reunia-se todos os meses, sempre,
nas últimas sextas-feiras. Todos os coordenadores, obviamente, sa-
biam desta data, neste sentido, o estabelecimento de um dia fixo
tirava do arbítrio do coordenador-geral, ou de qualquer outra li-
derança, os motivos para encontrarem-se, bem como reduzia, em
parte, as chances das justificativas de um não comparecimento. Au-
mentava-se, com isto, também, o grau de planejamento das “falas”
ou discussões “internas”, na medida em que sabiam o dia em que
estariam juntos, além, também, de ser uma forma de partilhar as
ações dos membros do próprio grupo, dado que as ações coletivas
eram, ou deveriam ser, comunicadas nas RMs.

Com o ritmo constante de RMs, exercitava-se no espaço da sala de


reuniões do CONSEAN, uma vivência comum, por meio de um tra-
balho de ouvir e falar “entre eles” acerca, também, e, sobretudo, dos
problemas vividos em suas comunidades. Problemas como: quan-
tidades de cestas básicas “aquém do necessário”87, problemas com
fazendeiros, conflitos entre associados e diretoria, problemas com

87 As cestas básicas eram o primeiro benefício dado às pessoas que se autorreco-


nheciam enquanto quilombolas. Eram fornecidas, sobretudo, pela FCP.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

100

inadimplência de associados, problemas com políticos locais, com


saneamento básico, moradia e educação.

Também planejavam ações como: “encontros”, atos simbólicos88, co-


municavam eventos, como momentos festivos em suas CQs, semi-
nários e reuniões. Conheciam-se e reconheciam-se constantemen-
te, refirmavam laços de fidelidade grupal, através de um trabalho
constante de trazer para aquele espaço, tudo que circulava sobre
política pública voltada para quilombos em Sergipe.

O valor dos informes e das “falas” internas

Antes nós se sentava, ou no INCRA, quando tinha reunião como


essa. Mas, lá, eu num tinha “fala”, tô dizendo isso porque eu não
tinha “fala”. Nunca falei! Falava um minuto. E quando fundou esse
movimento aqui a gente teve esse poder de “falar”. Quando a reu-
nião era na Maloca, era um movimento que eu não gostei. Aqui a
gente senta, aqui a gente conversa, aqui a gente discute, a gente
tem “fala” e tem opinião89.

As regras de participação nas RMs não eram formalizadas, e não


havia o uso de manuais para um aprendizado de como agir em es-
paços deliberativos. As lideranças – que também administravam
suas associações locais – aprendiam como se portar nestes espa-
ços, na experiência vivida na participação com os outros atores
que detinham um maior grau de experiência com este universo, a
exemplo do coordenador-geral – que vinha de um engajamento no

88 Como o ato simbólico “em defesa de Xifroneze” na CQ de Caraíbas, com a pre-


sença do Padre, do MNDH, de deputados estaduais e candidatos a deputados,
além de outros atores. Além da publicização da “carta ato”, a fim de demarcar o
dia 13 de maio como dia de luta da CEMQS.
89 Zé Raimundo. Evento XV.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

101

movimento sindicalista, e na Central dos Movimentos Populares; da


representante quilombola no CONSEAN – que, mensalmente, tam-
bém, reunia-se com os membros deste conselho, o qual abrigava
outros movimentos sociais; da liderança quilombola de Brejão dos
Negros – que possuía assessoria técnica do IB, da Cáritas e de outros
acostumados a “falar” nestes espaços públicos, além de Gressi, LQ
que cresceu em convívio com militantes do MST, além de outros.

O momento dos “informes”, por exemplo, era onde cada uma das
lideranças podia “falar” de modo relativamente livre, ou seja, sem
que necessariamente estivesse presa às discussões em “pauta” e sem
muitas formalidades. Tratava-se, geralmente, de informações relacio-
nadas a fatos ocorridos ou que ocorreriam em suas próprias comu-
nidades: geralmente problemas a serem resolvidos ou convites para
eventos. Eram “falas” ditas no momento inicial, logo após a abertura
da reunião, feita pelo coordenador-geral. Após esta etapa, geralmen-
te, era seguida de uma oração, realizada por alguém que, esponta-
neamente, quisesse fazê-la, além, também, de uma cantoria “da luta”.

A depender do valor dado pelo grupo aos “informes”, isto poderia


contribuir com a densidade da CEMQS, na medida em que poderia
(este valor dado) ser usado como justificativa para certa divisão. O
modo como as palavras dadas neste momento – no caso de algum
problema – eram apreendidas pelo coordenador-geral ou pelos de-
mais coordenadores, ou seja, se não transformados em problema
coletivo, através da elaboração de comunicação formal ou de um
debate maior, ou mesmo por meio de articulação com a rede para
solucioná-lo, isto poderia gerar fissões internas.

A atenção dada às falas no espaço da audição interna das RMs era


fator crucial para manter a densidade ou até a própria existência
da CEMQS, sobretudo se existia um “outro lado” ou “outros lados”
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

102

disputando as representações dos “problemas”. Caso um “desabafo”


fosse encarado com maior grau de importância que outro, em um
mesmo momento, poderia gerar fissões – ou “ciúmes” – “[...] hoje
ninguém lembra, mas eu passei por isso aqui. Foi um constrangi-
mento meu porque eu trouxe um assunto importante pra ser resol-
vido aqui e ninguém me ouviu”.

Na mesma época, outra liderança havia apresentado um problema


grave onde alguns se mobilizaram e acionaram parte da rede para rea-
lizar uma ação em seu favor: “Missa em homenagem à Xifroneze”, que
ocorreu em sua CQ e contou com a presença de autoridades políticas,
movimentos sociais dentre outros atores. Neste contexto, houve certo
esvaziamento nas RMs, isto, porque, alguém quando se afasta intencio-
nalmente da CEMQS, parece nunca fazer sozinho, ao contrário, sempre
tentando fazê-lo compondo aliados internos e/ou externos.

O espaço argumentativo das RMs, em certa medida, também deveria


caber a cada um. Se alguém concordava com os argumentos de ou-
tra pessoa, juntava-se a ela por meio das “falas” no espaço argumen-
tativo do debate. Dito de outro modo, a “fala” de cada coordenador
era respeitada, mas a partir do momento que era posta na arena das
discussões, ela poderia ser destruída através de argumentos contrá-
rios os quais eram claramente vistos por todos os presentes na RM.

Todos tinham o direito à “fala” nas RMs – lugar e tempo próprio da


CEMQ. Mas cada um deveria ser responsável por preservá-lo e, a
medida da importância dada pelo grupo ao que era dito, também
não era algo estabelecido a priori. Era preciso certa habilidade, sim-
patia e, inclusive, aliados à mesa. Às vezes, tendo em vista alguma
fragilidade em tais atributos ou competências argumentativas ou
de “fala”, a liderança poderia usar de outros meios para garantir a
importância do que seria dito, implorando, dramatizando e/ou bus-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

103

cando aliados fora do espaço público do debate argumentativo. Era,


também, muito comum, que para sustentarem algum argumento à
mesa na sala de RMs posicionassem alguém com maior poder da
rede ao seu lado: “Dra Lívia, inclusive, ligou para mim me pedindo
que eu interferisse no caso [...]”90.

Ademais, a organização da CEMQS, como entidade legítima de re-


presentação dos quilombolas a nível estadual, perpassa uma série de
dilemas e ajustes. O primeiro deles envolvia uma percepção sobre os
agentes externos. No entanto, para que a CEMQS pudesse ser criada
foi preciso empreender uma ação ambígua: ao mesmo tempo romper
com uma imagem e discurso negativo sobre os agentes e agências
constituídos de não-quilombolas, e, por outro lado, proceder com o
estabelecimento de limites que impusessem certo distanciamento.

Governo versus movimento. O INCRA como principal


“parceiro”?
Esta primeira dicotomia, que está na gênese da CEMQS, foi aquela
que estabelecia limites entre “movimento” e “governo” (INCRA e Co-
mitê Gestor). Sobretudo pela excessiva proximidade entre lideran-
ças e INCRA. Isto compunha, também, uma de suas justificativas a
fim de legitimar a necessidade de uma entidade “a mais” – além do
Comitê Gestor – ou uma entidade que fosse feita e constituída “só
por quilombolas”. O esforço por parte das lideranças em perceber e
tornar evidente a diferenciação entre os dois lados parece situar-se,
essencialmente, na condição de “beneficiários” na qual estes atores
ou qualquer quilombola estavam sujeitos.

90 “Dra. Lívia Tinoco” é procuradora do MPF em Sergipe, responsável pela 6ª Câ-


mara de Coordenação e Revisão que trata das Populações Indígenas e Comu-
nidades Tradicionais. Ex-presidente da FECQS. Em RM. Aracaju, evento XV.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

104

Ao passo que o distanciamento do INCRA ou do “governo” se fa-


zem necessários para uma “privacidade” da organização da “luta”;
a aproximação, que se faz representada no símbolo do “aperto da
mão amiga”, diz respeito, em muito, às relações de dependência, ou
de “parceria”, que extrapolam as atribuições meramente técnicas da
autarquia e de seus agentes.

As justificativas em torno da diferenciação entre “movimento” e “go-


verno” oscilavam, assim, em torno da cidade por projeto, inspiradas
em princípios de justiça e mobilidade e, por outro, na cidade do-
méstica, aquela em que a base da justiça ancora-se nas relações de
amizade (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).

Desde o uso do espaço do auditório do INCRA para reunir o movi-


mento, até a participação de técnicos e/ou gestores em reuniões
do próprio movimento fora do INCRA, as conversas “privadas” da
CEMQS, que extrapolavam as paredes de um espaço físico e che-
gavam às pessoas ligadas à autarquia, tudo isto, aos poucos, trouxe
certo desconforto ou incômodo, fazendo com que os coordenado-
res censurassem, também, certo relacionamento pessoal das lide-
ranças quilombolas com alguns técnicos do INCRA, relacionamento
este que pudesse pôr em risco encaminhamentos “coletivos” decidi-
dos pela “coordenação” em RMs.

Com efeito, a fim de elucidar tipos de atuação na rede quilombola,


podemos separar, também, dois modos de atuação política pre-
sentes nas ações que extrapolavam a atuação técnica (não só) dos
gestores do INCRA para com estas populações de beneficiários da
reforma agrária. Aquelas as quais podem compor uma das lógicas
tanto para aproximação quanto para o afastamento dos quilombo-
las em relação ao INCRA, ou seja, tanto aquilo que se chama ações
próprias do redeiro – ou do oportunista – como aquela realizada
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

105

pelo integrador de redes – aquele que visa ao bem comum – ambos


conceitos descritos por Boltanski e Chiapello (2009).

Sendo assim, cremos que seja o perfil do redeiro, o de alguns gesto-


res do INCRA – aquele que investe sempre em uma centralização de
sua posição na rede e pode ser descrito abaixo:
[...] mantendo separados os diferentes fragmentos de
redes entre os quais conseguiu estabelecer uma ponte,
o redeiro pode tornar-se passagem obrigatória. Sua
atividade, assim, concorre para a formação de máfias,
redes de corrupção, privilégios, apadrinhamentos, etc.
(BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 367).

O redeiro do INCRA pode aproveitar sua posição de mediador cen-


tral no aparato do Estado e na rede quilombola, a fim de manter,
sobretudo, seu “cargo de confiança” seguro. Para isto, geralmente,
precisa manter, também os quilombolas sob controle e, de prefe-
rência, também, dispersos e/ou assumindo rivais ou concorrentes
que aquele também tem. Em inúmeras falas das lideranças em seus
momentos de reuniões mensais pudemos notar queixas ou censu-
ras referentes à atuação de gestores da autarquia, que segundo os
quilombolas, visavam a uma desarticulação do grupo – ou como
eles diziam: a “desunião” do movimento quilombola de Sergipe. As
ações de desarticulação, em paradoxo, podiam ser dadas, geral-
mente, através de uma relação de amizade com algum coordena-
dor da CEMQS ou com outras lideranças quilombolas.

Política pública versus “política de favorecimento pessoal”


Outra dicotomia significativa que emerge após a constituição da
CEMQS é aquela que estabelece uma distinção entre “política pú-
blica” e “política de favorecimento pessoal”. Tal distinção denota
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

106

uma preocupação, sobretudo, no que se refere ao uso específico


do poder de “brokers”91: “O broker age como intermediário da tran-
sação, prometendo obter, para o respondente, favores de terceiros”
(MAYER, 2010, p.162).

A CEMQS buscava exercer certo controle sobre negociações do tipo


“patrono-cliente” (WOLF, 2003, p. 109) entre lideranças quilombo-
las e partidários – e/ou com outros atores da rede – sobretudo em
“tempo de política” (PALMEIRA e HEREDIA, 1993).

As lideranças quilombolas são potenciais mediadoras das relações


entre candidatos e comunitários, sobretudo em tempo de política92.
O uso desta relação parecia muito comum, mas na CEMQS era pre-
ciso cumprir, cada vez mais, com algumas obrigações: a primeira
era a de selar, preferencialmente, relações partidárias com “quem
historicamente tinha se posicionado do lado do povo negro”93. A
segunda obrigação era que tais alianças deveriam ser convertidas
em beneficiamento coletivo. Abaixo, a fala de uma das lideranças
sobre como deveria ser o trabalho em tempo de eleição:
O meu “trabalho de campo” na minha comunidade
eu estou fazendo [...]. Agora, essa questão de ter
comunidades apoiando o outro partido [de direita]... Lá,
a nossa campanha está em cima de dois deputados, com
abertura pra quem quiser votar em outros, tem deputado
estadual, tem deputado federal, [...] cada um tem seu

91 “Os brokers são, assim, intermediários dos favores de oficiais do governo, ou


detêm influência junto a poderosos concidadãos, e apresentam-se como ca-
pazes de acelerar os negócios do respondente” (MAYER, 2010, p. 162).
92 De acordo com Moacir Palmeira (2014, p. 398): “Há um tempo da política que
corresponde ao período eleitoral. É o período em que os políticos aparecem,
em que se faz política, em que as facções políticas ganham contornos nítidos”.
93 Carlos (in memoriam), representante do MNU– um dos “convidados” em RM da
CEMQS. Evento XIII.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

107

gosto. Mas não vote em deputado lá do lado de lá [de


direita], é isso que estou fazendo 94.

Usaremos aqui, ligeiramente, este termo nativo “trabalho de cam-


po” para designar as ações de brokerage (MAYER, 2010), mais espe-
cificamente, as ações de brokerage próprias de um cabo eleitoral,
realizadas pelas próprias lideranças quilombolas na comunidade
quilombola a que pertencem, a fim de atrair votos para os candida-
tos para quem trabalham, ou simplesmente apoiam.

A partir da leitura do trecho acima, podemos dizer que a liderança


expressa qual deva ser o modo correto de exercer o “trabalho de cam-
po”. Todavia, as cobranças em torno dessa espécie de ética ou fide-
lidade partidária, eram, também, requeridas indiretamente – através
das conversas mais informas ou após as RMs –, não somente pelos
próprios coordenadores, mas, sobretudo, por aqueles “parceiros”
não-quilombolas vinculados direta ou indiretamente ao PT perten-
centes à rede quilombola, como podemos ver nos trechos abaixo:
Patrocinar candidaturas de pessoas que tradicionalmente
perseguiram é negar nossa própria história. Quem
historicamente nos defende está aqui [apontando para
um panfleto com as propostas da candidata Dilma
Rousseff do PT]. A proposta é essa aqui. Aqui! Quem é que
historicamente está do nosso lado, na história do Brasil?95.

Porque é cruel a gente chegar e dentro de uma CQ e pegar


uma bandeira de “Maria do Carmo” [na época, candidata
do DEM ao Senado], pegar uma bandeira de Amorim [na
época, candidato do DEM ao governo do estado] pegar um

94 Liderança quilombola de Pontal da Barra. Um dos representantes da CONAQ


em Sergipe. Evento XIII.
95 Carlos, representante nacional do MNU em Sergipe. Sala de reuniões do CON-
SEAN. Evento XIII.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

108

companheiro nosso segurando a bandeira de alguém que tem


toda uma posição pública contrária à luta que ele trava todo
dia. Pra a gente é doído. A gente nem pode condenar tanto
o companheiro porque às vezes não teve esclarecimento.
Veja como é desesperador para vocês que são lideranças
quilombolas de ponta chegarem na casa de alguém e ver a
foto de um “Augusto Bezerra” [candidato dep. estadual ligado
ao DEM] pendurado na porta de um quilombola.96

De “donos do movimento” a “parceiros”: o “aperto da mão


amiga” enquanto ponto e contraponto a um movimento de
“uma fala só”
“Donos do movimento” foi expressão encontrada por uma lideran-
ça, a fim de identificar e se contrapor a um modo supostamente
equivocado de enxergar os principais atores não-quilombolas da
rede de atuação em torno da política pública voltada para quilom-
bolas em Sergipe, evocando, imediatamente, um “novo” entendi-
mento acerca deste relacionamentos, como uma maneira de solu-
cionar o “atraso” em sua organização.
[...] se gente não atentar para entender os “parceiros”
como “parceiros” e não como “donos” do movimento ou
como donos de uma comunidade... Enquanto a gente não
tiver essa visão, a gente não vai sair daqui, e minha “fala”
é justamente essa97.

96 Ex-integrante da Cáritas Diocesana de Propriá, atuou durante o processo de


requerimento de certidão de autorreconhecimento à Fundação Cultural Pal-
mares junto à CQ de Caraíbas. Na ocasião, uma das operadoras de campanha
de Dilma Rousseff em Sergipe, fazendo “a ponte” entre a coordenadora Eliane
Aquino e as CQs para o evento de entrega da “carta de demandas” da CEMQS.
Sala de reuniões do CONSEAN. Evento XIII.
97 Xifroneze. Evento III.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

109

Ao sugerir um reposicionamento de percepção das lideranças so-


bre a ação de alguns dos principais atores não-quilombolas da rede
quilombola, Xifroneze acaba por tornar evidente outro modo impe-
rante representado por uma suposta dominação, ambos os modos
pareciam fazer parte da estrutura de relações que compunham a in-
teração entre lideranças quilombolas e não-quilombolas: relações
de cooperação, concorrência e dominação.

“Donos do movimento” era uma classificação para ilustrar um lugar


aparentemente “óbvio” dos quilombolas nas relações de poder com
os não-quilombolas. Estes últimos, providos de recursos capazes de
garantir um melhor posicionamento na rede e maiores espaços de
fala nos cenários e eventos públicos, em “detrimento” daqueles su-
jeitos que pareciam não encontrar saída para apropriarem-se de um
espaço de representação política que pertencia a eles. Sendo assim,
perguntamos, ainda: o que significava nominar os atores não-qui-
lombolas de “parceiros”, como uma espécie de saída para organiza-
rem seu próprio movimento?

Esta “alternativa” que encontra expediente nas relações de “parceria”


– ou de amizade – encerra mais um paradoxo que reflete parte signi-
ficativa da própria estrutura – ou cultura – de relações entre CEMQS e
a rede em torno da política quilombola no estado de Sergipe. A mu-
dança que Xifroneze propõe parece conter a própria continuidade,
aquela descrita por Sahlins [1978 (2003)] em “Ilhas de História”:
[...] não há base alguma nem razão para a oposição
excludente entre estabilidade e mudança. Pois aquilo que
predomina em toda mudança é a persistência da substância
antiga: a desconsideração que se tem pelo passado é apenas
relativa. É por esta razão que o princípio da mudança se
baseia no princípio da continuidade (p. 190).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

110

Decerto, enxergar os “parceiros” como “parceiros” era continuar


relacionando-se com os “donos do movimento”, caso algumas es-
truturas que os levassem a operar com tal classificação não fossem
desfeitas, o que parecia bem provável. Por outro lado, “uma fala só”,
expressão usada a fim de demarcar fronteira, ou território para au-
torepresentação política.

Assim como a expressão “os donos do movimento”, “uma fala só”


servia para ilustrar grande parte da percepção de algumas lideran-
ças sobre os atores não-quilombolas, os quais, de alguma maneira,
pareciam, também, adquirir a posição de “concorrentes” para uma
organização do grupo nesta situação de disputas por voz pública.

A vontade de ter “uma fala só” esbarrava numa ambiguidade ou difícil


tarefa de encontrar um “lugar comum” dentre outras vozes. Diante disto,
remeto à pergunta: como organizar um movimento “só de quilombolas”
com todas estas outras influências ao redor? Tal vontade manifestada
como objetivo em quase todos os eventos que pudemos “observar” pa-
recia esbarrar na contradição sempre posta e nunca superada de se ter
um movimento com “muitas falas” e/ou tantos “apoiadores”. Este para-
doxo parecia um dos principais motivos pelos quais as lideranças ainda
não haviam organizado um movimento “só de quilombolas”, na medida
em que o imperativo de unidade entre todos os quilombolas, através da
obrigação de se ter “uma fala só” – confundida com uma fala isolada – era
como um alerta para que não se “misturassem”.

Tal “imposição”, ora tácita, ora explícita, não parecia encontrar res-
sonância ou interesse nas demais lideranças já que isto as impeliria,
automaticamente, a romper suas relações com seus “apoiadores”,
ainda mais quando “uma fala só” poderia ser, também, a “fala única”
de outra liderança – ou a do seu próprio apoiador ou “parceiro” – e
não a de “todos” os quilombolas como se pretendia que fosse.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

111

Nesse sentido, tendo em vista os conflitos, dilemas, controvérsias e difi-


culdades encontradas pelas lideranças quilombolas ao buscarem orga-
nizar um movimento de “uma fala só”, diante de tantas falas, o símbolo
do “aperto da mão amiga”, apresentado no evento VI, trata-se de uma
objetivação dos paradoxos vividos pelas lideranças quilombolas.

Significa não somente certo manejo estratégico no trato das re-


lações dos coordenadores do movimento quilombola de Sergipe
com outros membros da rede quilombola – um contraponto a um
movimento de “uma fala só”, ou de um movimento constituído so-
mente por quilombolas –, na medida em que traz para o centro ou-
tros atores de “fora”. Ao enxergá-los não mais como “donos do mo-
vimento” e sim como “parceiros”, e assim, investirem em uma “nova”
forma de relacionarem-se com eles, as lideranças encontram um
novo lugar dentro de um movimento quilombola como um todo,
ou seja, passam a existir enquanto grupo quando dão lugar dentro
do próprio grupo àqueles que, em tese, não fazem parte dele.

Não se trata, apenas, de uma expressão “a mais” sobre o modo


como estas lideranças da CEMQS pretendem relacionar-se com os
não-quilombolas a fim de controlar o acesso ao espaço por onde
poderão “falar” e assim, reivindicar os seus direitos, mas, sobrema-
neira, uma forma de controlar a densidade do próprio grupo, sua
própria existência – um “ponto” para um movimento de “uma fala
só”, ou onde os quilombolas estivessem “unidos”. Apertar a mão do
amigo de “fora” – de modo ambíguo – é apertar a mão das próprias
lideranças quilombolas “internamente”.

Caso seja possível entender o conteúdo na forma, representado no


símbolo do “aperto da mão amiga”, o obstáculo à integração – a pre-
sença de vários apoiadores – ou à constituição do grupo, “parece ter
servido, antes, para produzi-la” (LÉVI-STRAUSS, [1962] 2003, p.115).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

112

Neste ponto, o símbolo do “aperto da mão amiga” trata-se da objeti-


vação de uma estrutura de relações contraditórias. Portanto, defen-
der, indiretamente, a necessidade de “uma fala só” como sinônimo
de “isolamento” ou como pré-requisito de uma organização autô-
noma dos quilombolas era esbarrar em “si mesmo”, ou nas próprias
lideranças, que também precisavam de outros atores mediadores
externos da rede quilombola de Sergipe.

Se é possível também proceder com comparação entre os símbo-


los do Comitê Gestor e o da CEMQS poder-se-ia supor, ainda, certa
continuidade e oposição, pois ambos se referem a Sergipe, mas o
lugar dado ao negro exprimi elementos divergentes, tendo em vis-
ta que o primeiro símbolo (figura 2), com a imagem do negro ao
centro poderia indicar, primeiramente, valorização étnica necessá-
ria ao reencontro do negro com sua “cultura”, reencontro cada vez
mais necessário para o acesso aos direitos sociais, evocando, neste
contexto de “disputas” por autorrepresentação, a “ausência” dos de-
mais atores constitutivos da rede quilombola, ou melhor, evidência
à centralidade de um discurso ou de um debate que os negros do
meio rural não tinham.

Em segundo lugar, apresenta uma “solução” para o controle dos re-


lacionamentos entre quilombolas e não-quilombolas, por meio da
negociação com os demais atores da rede – oculta quem, ou que
debate, realmente estava no centro ou pretendia estar.

O símbolo do “aperto da mão amiga” parecia, também, funcionar


como uma espécie de metáfora para ilustrar que o único caminho
possível para o avanço das políticas públicas voltadas para o negro
do meio rural no Brasil se dava por meio da negociação ou das re-
lações de amizade – “nós não conseguimos nada sem a parceria”98.

98 Wellington. Evento XXI.


Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

113

As lideranças quilombolas, para que alcançassem a cidadania ou


o acesso aos direitos sociais, ao passo que precisavam demarcar
fronteiras, necessitavam adquirir habilidades para negociar e fazer
alianças: “e a gente hoje para ter esse direito garantido, a gente tem
que está aqui hoje pedindo apoio. Aquilo que é lei, aquilo que é
direito, a gente precisa pedir apoio”99.

Considerações Finais
Não somente o anseio pelo acesso aos direitos sociais e às políticas
públicas impulsionaram as lideranças quilombolas a organizarem um
movimento “só de quilombolas”. Mas, sobretudo, pelo direito à autor-
representação pública. Ademais, ao acompanhar o processo de or-
ganização da CEMQS, foi possível notar que além da permeabilidade
entre a CEMQS e a rede quilombola, a existência de “uma fala só” – se
entendida como metáfora, a fim de impor distanciamento dos qui-
lombolas em relação aos principais mediadores não-quilombolas da
rede – enquanto antídoto para a resolução do problema de represen-
tação da causa quilombola “pelos próprios quilombolas”, não garan-
tiu o direito à voz própria em cenários e arenas políticas de Sergipe.

Ao contrário, em paradoxo, o contato e interação com uma rede di-


versa, outrora – e, ainda – tida como concorrente, e de atores com
interesses variados foi o único modo de lhes garantir uma “fala” mí-
nima. Desde que as relações com esta rede fossem, também, me-
diadas por uma organização capaz de agregar dentro dela as várias
outras vozes que não pareciam ouvidas anteriormente:
[...] e quando fundou esse movimento aqui a gente teve
esse poder de falar [...] [antes] era um movimento que eu

99 Xifroneze. Evento XII.


Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

114

não gostei. Aqui a gente senta, aqui a gente conversa,


aqui a gente discute, a gente tem fala e tem opinião”100 –
esta era permitida ou não-censurada.

Por um lado, na medida em que cada comunidade quilombola po-


deria funcionar como um movimento à parte, já que a estrutura
para que se mantivessem em movimento poderia ser dada, tam-
bém, por um patrono ou conjunto de “apoiadores” – como no caso
de Brejão dos Negros – o desafio de criar um movimento de “uma
fala só” era, em grande medida, o desafio de aglutinar em um mes-
mo espaço, os diferentes “patronos” e/ou “apoiadores” – no qual o
“símbolo do aperto da mão amiga” pode servir de metáfora – que
reivindicam um eleitorado em espaços locais, precisando do “traba-
lho de campo” de algumas lideranças quilombolas.

Neste ponto, uma das saídas encontradas pela CEMQS para o es-
tabelecimento de um movimento de “uma fala só”, parece-nos que
pôde ser ilustrado através do dilema estabelecido entre “política
pública” e “política de beneficiamento pessoal”, onde há cessão de
direito automático a todas as lideranças quilombolas que preten-
dam estabelecer relações públicas com qualquer não-quilombola,
desde que, partidários do PT – “aqueles que historicamente defen-
deram a luta do povo negro desse país”101 – ou com pessoas que
tragam um benefício “coletivo” e não “pessoal”.

É preciso enfatizar que, a fim de conquistarem um espaço mínimo


de representação política em torno da rede quilombola de Sergipe,
foi preciso, primeiro, a organização de um “falar” interno que os le-
vou a empreender – junto a uma série de diferenciações – uma ação
inicial de separação do Comitê Gestor (e Maloca) e do INCRA. Do

100 Zé Raimundo. Evento XV.


101 Carlos (in memoriam). Representante do MNU em Sergipe. Evento XIII.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

115

primeiro, realocando a centralidade do urbano – ou de um “pensar


África” que era um discurso pouco familiar aos negros rurais quilom-
bolas de Sergipe – em detrimento do rural que era de onde vinha
a grande maioria das comunidades quilombolas de Sergipe. O dis-
tanciamento relativo do INCRA, por outro lado, pôde ser caracteri-
zado, sobretudo, através do esforço em usar um novo espaço físico
– relativamente privado – para reunirem-se. A posição central dada
ao INCRA, tendo em vista o seu lugar de destaque na rede quilom-
bola em torno do PBQ, tributária do lugar legítimo, daquele que de-
tinha, sobretudo, o saber técnico – que era o mesmo que ter poder
na arena pública (CEFAI, MELLO, MOTA e VEIGA, 2011) em torno da
causa quilombola em Sergipe – parecia amortecer a necessidade
de organização política das lideranças quilombolas, quando estas
requeriam seus direitos sociais.

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Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

116

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no âmbito do Programa Brasil Quilombola, e dá outras providências, 2007.

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RETORNAR AO SUMÁRIO
João Mouzart de Oliveira Junior

A cor da oração: a festa e a


morte na irmandade de são
benedito
Prefácio Frank Marcon
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

121

Prefácio
Frank Marcon

Este texto sobre a irmandade de São Benedito em Aracaju é fruto da


pesquisa de mestrado de João Mouzart de Oliveira Junior, orientada
pelo professor Frank Marcon. A temática das irmandades religiosas
no Brasil é geralmente investigada pela historiografia do período
Colonial e Imperial, como demonstra Oliveira Junior (2015). Pouco
se disse sobre as irmandades que sobreviveram ativas durante o sé-
culo XX até nossos dias, talvez por conta da sua significativa perda
de prestígio e importância enquanto meio socializador e ordenador
de hierarquias na sociedade republicana e pós-monárquica, bem
como pelo seu progressivo desaparecimento.

Segundo diferentes estudos, dentre as principais características


das irmandades estava ajuda mútua entre os irmãos sob o domínio
e o controle da Igreja Católica, que sustentava e legitimava certa
hierarquia social. Por isto, as irmandades podem ser consideradas
ao mesmo tempo espaços de dominação e de resistência social, ao
possibilitarem certos reconhecimentos públicos de prestígio, ao
mesmo tempo em que formalizavam o catolicismo, contribuíam
com a definição de certa ordem social pautada pelas referências da
sociedade escravocrata e instituíam certa civilidade normativa.

A Irmandade de São Benedito em Aracaju resiste até hoje por meio


de suas festas anuais e da obrigação dos membros para com a assis-
tência coletiva de pessoas da irmandade e seus familiares. A pesquisa
de Oliveira Junior (2015) aborda com originalidade este tema ao bus-
car entender as dinâmicas da manutenção deste tipo de organização
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

122

tradicional, vinculada à Igreja Católica, e que importância este tipo de


organização tem para as pessoas que a mantém, como elas se rela-
cionam entre si e como são vistas e representadas pelos outros.

Para tanto, Oliveira Junior (2015) buscou realizar uma revisão do cam-
po de pesquisa sobre irmandades no Brasil e em Sergipe, demons-
trando o quanto o tema se tornou uma porta de entrada significativa
sobre inúmeras questões acerca do tema da escravidão, evidencian-
do quais as questões que levaram ao desaparecimento de muitas ir-
mandades e o que fez com que em algumas cidades do País, algumas
delas se mantivessem ativas. Também destacou em sua pesquisa o
quanto as irmandades estiveram pautadas pelo crivo da distinção so-
cial de cor e de classe, aprofundando-se no caso da constituição da
Irmandade de São Benedito como um caso de etnicidade e resistên-
cia, bem como trouxe a tona a composição do perfil social dos irmãos
e o processo histórico de formação e manutenção da irmandade.
Por último, analisou o tema que será tratado neste artigo, a festa e a
morte para irmandade como referências de coesão e de identificação
religiosa, étnica e social entre os associados.

Para a façanha de compreender a irmandade no processo de mais


cem anos de história e se chegar à análise dos anos recentes, foi ne-
cessário criatividade antropológica para lidar com a etnografia sem
esquecer a pesquisa em fontes documentais sem deixar de lado a
relevância da observação direta. O exercício diacrônico foi constan-
te, os documentos mais antigos são escassos, muitos foram perdi-
dos, e isto não permitiu uma longa série analítica de tais fontes.

A observação direta foi prejudicada pelo processo de desmobiliza-


ção pelo qual passa atualmente a irmandade, realizando poucas ati-
vidades públicas anuais. A morte também não é algo com o que se
possa contar com frequência para se observar o tratamento com ela
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

123

no período de dois anos de pesquisa. Estes percalços exigiram certa


criatividade metodológica em que o trato dos documentos recebeu
critérios etnográficos, em que a observação direta foi tratada como
procedimento ao longo de toda a trajetória da pesquisa, seja nas
atividades de pesquisa nos arquivos da Igreja e de instituições pú-
blicas, na participação em encontros de oração e nas festas anuais,
seja através da conversa informal ou entrevistas com irmãos, religio-
sos e simpatizantes, além das observações indiciárias das estruturas
do cemitério da irmandade e de suas lápides.

É significativo lembrar que são conhecidos os problemas de in-


visibilidade sobre a presença negra no passado e no presente do
Brasil, pela falta de documentos, pela falta de produção historio-
gráfica, antropológica e sociológica sobre muitas regiões, o que
sugere um descaso com a cultura e a memória destas populações
(Marcon, 2010), muitas vezes estereotipadas. A ideia metodológica
que guiou a pesquisa foi a de encontrar meios de preencher vazios
documentais e fazer o passado e o presente da irmandade dialogar
entre si e produzirem outras possibilidades interpretativas através
das quais fosse possível criar conexões analíticas para nos ajudar a
entender o processo de identidade e de resistência social coletiva,
o qual teve momentos de significativa relevância durante todo o
século XX e que se perpetua em um cenário de incertezas sobre sua
continuidade e sua razão de existir.

A seguir, prosseguimos com o texto de Oliveira Junior (2015), bus-


cando identificar como se deram as práticas de sociabilidades e
resistências da irmandade a partir da festa de São Benedito e da
solidariedade na hora da morte, destacando como e se dá o auxílio
espiritual e material aos membros e familiares da irmandade, sob a
proteção de São Benedito e quais seus significados sociais.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

124

A cor da oração:
a festa e a morte na irmandade
de são benedito102
João Mouzart de Oliveira Junior

A festa do padroeiro da irmandade de São Benedito


Aqui analiso a festa e a morte na irmandade de São Benedito em
Aracaju como aspecto de solidariedades e sociabilidades étnicas,
procurando entender quais são as características marcantes desta
confraria religiosa que tem entre seus objetivos possibilitar uma
boa morte aos seus irmãos e familiares e cultuar o seu santo prote-
tor através das festas organizadas por seus membros.

O tema da festa esteve presente na vida de homens e mulheres ao


longo dos séculos, também no tocante à religiosidade, cujas co-
memorações atraíam e atraem muita gente. Alguns pesquisadores
entendem tais momentos como algo que quebrava a rotina e inte-
grava a população ao espaço católico (ABREU, 1999; BORGES, 2005;
DEL PRIORE, 1999; LUCAS, 2005). Deste modo, as festas “aos santos
tiveram um papel fundamental no sistema de conversão da popula-
ção preta no espaço católico” (BORGES, 2005, p.153). Assim, tais fes-
tas, organizadas por essas associações em homenagem aos santos

102 Este artigo é uma versão modificada do terceiro capítulo da Dissertação de


Mestrado em Antropologia, defendida na Universidade Federal de Sergipe, em
2015, de autoria de João Mouzart de Oliveira Junior: A cor da oração: socia-
bilidades e resistências na Irmandade de São Benedito em Aracaju/SE, orientada
pelo professor Frank Marcon.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

125

padroeiros, ou outros de devoção, tornaram-se momentos muito


significativos da vida da própria cidade (ABREU, 2002, p. 247). “Essas
festas costumavam confundir as práticas sagradas com as profanas,
nas comemorações externas e nas que eram realizadas dentro das
igrejas” (ABREU, 2002, p. 247).

Para Borges, “São Benedito foi, no Brasil, entre os santos negros, o


mais cultuado pelos escravos, isso talvez tenha a ver com o fato de,
na sua biografia, constar ser filho de pais escravos” (BORGES, 2005,
p.155). A difusão do seu culto data do início do século XVII, na ci-
dade do Rio de Janeiro, quando lhe atribuíram a cura do filho de
uma escrava no convento Santo Antônio. A partir daí, ele foi ado-
tado como santo padroeiro dos negros, principalmente, por parte
das irmandades de escravos e sua devoção se espalhou por todo o
território brasileiro (BORGES, 2005, p.155).

As irmandades, com as suas procissões e festas, despertam aspec-


tos de relações familiares, de grupos sociais e de laços de solidarie-
dade (ABREU, 1999; DANTAS, 1972). Não é por acaso que desde o
início do século XIX, até a década de 70 do século XX, a festa da ir-
mandade de São Benedito era conhecida como a maior “festa preta
de Aracaju”. De antemão, deixo claro que não é meu objetivo fazer
uma discussão do tema a partir da literatura sobre festa. Meu obje-
tivo é trazer à tona as experiências dos membros da irmandade em
torno da realização desta.

Fazendo uma reflexão da transição sobre o século XIX e XX, os mo-


tivos das lutas cotidianas das irmandades pouco mudaram com a
concretização do fim da escravidão. Os motivos dos auxílios presta-
dos no passado se perpetuaram em alguns casos até os dias atuais,
principalmente, sobre o aspecto da morte, a preocupação com as
pessoas necessitadas e a festa ao santo padroeiro. No entanto, no-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

126

vos sentidos são acionados, pois a festa se reinventa a partir dos an-
tigos problemas e dos novos que surgem; ou seja, tal festejo ainda
serve para os irmãos como uma “válvula de escape” dos sofrimentos
e do julgo do dia a dia.

A comemoração se apresentava e ainda se apresenta como forma


de sociabilidade e resistência da vida dos membros. Nesse momen-
to, fortalecem os laços fraternos, promovem a coesão social, religio-
sa e cultural. É interessante perceber que não é meramente uma
ocasião para a bebida, a comida, os fogos, as danças e a música. É
muito mais que isso – é um espaço de solidariedade, esperança e
união em torno do santo.

Como destacaram os Estatutos de 1954, 1971 e 2001, a direção


responsável pela irmandade organiza uma caixa responsável para
a realização da festa ao seu santo padroeiro todo mês de Janeiro,
para coroação dos Reis e Rainhas da irmandade. Em um relatório de
prestação de contas da Festa de São Benedito, de março de 1971,
referente à festa do corrente ano, o então tesoureiro, João Batista
de Oliveira, relatou:
A tradicional festa de São Benedito foi realizada com muita
pompa e brilhantismo, pela sua atual diretoria que não
passou sacrifício, para apresentar como apresentou uma
belíssima festa, destacando-se na santa missa, solene,
o sermão de Frei Marcelino que foi uma peça oratória
tocada de amor,“ DEUS NÃO FAZ DISTINÇÃO DE PESSOAS”,
enchendo o coração dos fiéis de piedade, tocante do
amor de São Benedito. Á tarde a linda procissão saindo
da igreja São Salvador percorreu várias ruas de nossa
capital, acompanhada de um carro com alto-falante
com um grupo de Bandeirantes da Pio X, entoando
hinos sacros e, abrilhantada, pela banda de música do
corpo de bombeiros, verdadeira apoteose da fé cristã do
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

127

povo católico de Aracaju a São Benedito. De retorno, o


encerramento da procissão, em frete ao adro da igreja são
Salvador após ouvirmos o brilhante sermão do cônego
Edgar Brito, que numa linguagem empolgante, reviveu
Aracaju do passado, de areias brancas, de lindos coqueirais
que se debruçam pelas praias e pelos recantos pitorescos
da cidade jardim. Disse, com entusiasmo, da tradição
das festas religiosas com as festas típicas regionais, já
desaparecidas: A chegança, o Cacumbi, o parafuso, os
Reisados, a Taeira, os bailes pastoris e os maracatus. Assim,
saudando Aracaju, disse com eloquência das virtudes
excelsas de São Benedito que tocado pela fé, pelo amor
e pela sua piedade aos pés do altíssimo, alcançou a Graça
de Deus na plenitude dos céus (OLIVEIRA, 1971 p.1).

Sobre o sermão de Frei Marcelino, com ênfase à declaração de que


“Deus não faz Distinção de pessoas”, a distinção apontada por ele é
motivada por dois fatores: o primeiro ligado à concepção da cor e
o segundo relacionado à questão social dos irmãos. Tais elementos
aparecem como marcador étnico e de classe dos membros da ir-
mandade. De modo geral, traz o olhar da Igreja sobre os participan-
tes daquele espaço, deixando claro que os representantes da ins-
tituição percebiam as diferenças que existiam dentro dos templos
religiosos, no que diz respeito aos grupos que os frequentavam.
Assim, seu sermão ganha sentido em busca de minimizar as dife-
renças e conflitos que poderiam existir entre os transeuntes nesse
espaço, localizados em área central da cidade.

Além disso, rememora as festas públicas ligadas à Igreja Católica


em Aracaju, destacando, em sua fala, que era constante a presença
dos grupos de festejos como a Chegança, o Cacumbi, o Parafuso, os
Reisados, a Taeira, os bailes pastoris e os Maracatus, que teatraliza-
vam no espaço urbano. Tais grupos sempre estiveram associados
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

128

ao culto de São Benedito e à população negra na região. Essas prá-


ticas rememoram as celebrações promovidas na época pela Coroa;
assim, “os rituais e as danças dramáticas, incorporadas aos festejos
permitem interpretar as embaixadas e os cortejos de reis e rainhas
africanos” (LARA, 2002, p.81).

Diz o Bispo Dom Duarte sobre a festa:


A festa de São Benedito coincide, sempre, com o Dia da
Epifania, e a festa dos Reis Magos. Não sei bem por quê.
Talvez por que um dos Magos era preto? Esta festa é a
mais popular expressão religiosa de Aracaju. A palavra
“popular”, aqui, é tomada para englobar a parte mais
humilde, mais desprovida de recursos, mais desamparada
da gente de Aracaju. E, sem dúvida, esse grupo humano a
que me refiro, apesar da não-segregação racial existente
(legalmente) no Brasil, é composto, na grande maioria,
das pessoas de cor (DUARTE, 1971, p. 60).

Observo o quanto havia e há sobre a festa de São Benedito toda


uma preocupação dos eclesiásticos com a realização da festividade
da irmandade, trazendo à tona a importância da camada popular
no culto ao “santo preto”. Deste modo, percebo que a maioria dos
participantes advém de classes populares, predominantemente
formadas por afrodescendentes.

Assim, fica patente um reconhecimento da Igreja sobre o fato de ha-


ver uma divisão racionalizada e popular da fé católica. Neste sentido,
o ponto central alude à identificação étnica da festa relacionada à co-
memoração de São Benedito. Naquele momento, procurou-se atribuir
uma identificação ao grupo sobre a realização de tal prática, além de
acionar outra categoria de identificação –as denominadas pessoas de
cor. Suponho que estas são os pretos e os pardos que se identificam
com a festa de São Benedito e que era socialmente a população pobre
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

129

de Aracaju. Mesmo assim, não foi possível identificar se todos que par-
ticipavam da comemoração pertenciam a essa irmandade.

Dentro dessa linha de entendimento, tento olhar para a festa como


o principal indício da presença de uma população atuante, que se
volta para o culto de um santo preto e deposita nele todas as suas
angústias, alegrias e devoção.

Figura 1 Foto de São Benedito.


Fonte: Fotografia de João Mouzart

Com relação à imagem do santo da irmandade de São Benedito em


Aracaju, saliento que ela é representada nessa iconografia com um
hábito preto de irmãos leigos franciscanos, segurando a imagem
do menino Jesus: “Há, no entanto, outras representações como é o
caso da igreja de Nossa Senhora do Rosário de Tiradentes, onde a
sua imagem é retratada com uma abóbora entre as mãos” (BORGES,
2005, p.156).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

130

Atualmente, a festa de São Benedito se constitui entre as principais


práticas da irmandade. Nela, pode-se observar o engajamento dos
irmãos para a efetivação do culto ao santo. A preparação do festejo,
na maioria das vezes, começa logo após a festa de Reis, no final de
janeiro, já com o agendamento da missa de São Benedito para o
ano que sucederá. Observei que, nesta organização, seus membros
se articulam para conseguirem da administração pública a libera-
ção das principais ruas onde passará o cortejo. Dessa forma, a pre-
sença dos agentes de trânsito, nesse momento, se torna crucial para
concretizar o evento. Outra preocupação apresentada como pauta
foi o aspecto da caridade para com pessoas humildes desta cidade.
Assim, o grupo pensa na arrecadação de cestas básicas para entre-
gar aos mais necessitados no dia da missa a São Benedito, ou seja, a
beneficência é uma das características da festa.

Segundo Reginaldo (2005), as festas organizadas por essas asso-


ciações não se resumiam aos atos litúrgicos, mas eram também
ocasiões para manifestações de alegrias menos contidas e solenes.
Essa comemoração ocorria fora do âmbito da igreja, com música,
danças e comilanças, porém, elas dificilmente são mencionadas nos
registros oficiais das irmandades. Durante os festejos do santo de
devoção, os devotos pretos tocavam seus instrumentos, cantavam
e dançavam a seu modo, e com muita alegria. Em Aracaju, a festa
religiosa ocorria em razão de comemorações alusivas ao padroeiro
da irmandade. Exigia-se, de seus membros, investimentos a ponto
de sacrificar o cumprimento de outras obrigações.

Observo que no nordeste o ciclo religioso é composto de grandes


representações repletas de aspectos lúdicos, teatrais e alegóricos,
enfatizados pela espontaneidade do popular na formação cultural
e histórica de um povo. Isso nos mostra o quanto a irmandade é car-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

131

regada de simbologias e significados; e que a festa de São Benedito


de Aracaju traz aspectos cruciais identificadores da sua população.
Destaco ainda que a maioria das irmandades de São Benedito co-
memoram suas festas no Dia de Reis.

Souza (2002) chama a atenção para o fato de que não são todos os
compromissos de Irmandade de “homens pretos” que fazem eleições
de reis e rainhas e que, apesar da maioria dos aspectos da festa não
estarem regulamentados nos compromissos, a coroação não estava
inserida no conjunto de atividades plenamente aceitas pelas autori-
dades eclesiásticas, mas toleradas nas comemorações religiosas.

As ideias apontadas pela autora ajudam a entender a irmandade


em Aracaju, pois, apesar de não estarem regulamentados nos com-
promissos, os irmãos acabavam introduzindo suas crenças e mani-
festações culturais dentro do que era proposto pela Igreja. Então,
ressalto que, para o povo, as festas eram expressões importantes na
sua vida cotidiana, pois contribuíam para afirmar sua identidade re-
ligiosa e cultural preta, constituindo, assim, o espaço de resistência
de manutenção de suas crenças.

Seguindo a narrativa de Andrade (2008), a festa de São Benedito


era comemorada no Dia de Reis e a igreja convidava os membros
da irmandade e todas as associações a participarem dos festejos ao
santo considerado protetor dos pobres. Pela manhã, era realizada a
missa solene com pregação do evangelho; à tarde, por volta das 15
horas, iniciava-se a procissão pelas ruas enfeitadas pelos próprios
moradores, como conta Dona Tereza:
A festa iniciava-se com a missa celebrada por 1 ou 4
párocos; assim, ocorria a coroação do Rei e da Rainha.
Após a missa e a coroação saia-se em cortejo, e ao longo
do trajeto, dançava-se, bebia-se, batucava-se, tudo em
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

132

louvor ao Santo e ao Rei e Rainha recém-empossados. A


festa terminava em frente à igreja, onde se continuavam
às comemorações (TEREZA, 2013).

A entrevista de dona Tereza Cristina destaca a ideia de coroação e


cortejo relacionada aos elementos das festas de preto. Levando em
consideração que a prática da coroação iniciou-se no período Co-
lonial e Imperial do Brasil, chegando até os dias atuais. Por último,
investigo a partir da fala da mesma a concepção de batuque, expres-
são destinada à produção de música nas festas. Tal expressão foi for-
temente repreendida no período Imperial e na República103. Deste
modo, constatei que a coroação, o cortejo e os batuques sobrevivem
como elementos de identificação da festa na irmandade de pretos.

A festa é representada pelos irmãos como um momento de devo-


ção ao Santo Benedito. Nesses espaços, eles encontram amigos e
parentes, entre outros, que se utilizam das músicas e das danças
para homenagear o seu santo protetor. Essas comemorações per-
mitem que a celebração possua um caráter coletivo, representado
por um e por outro, com significados comuns a serem celebrados.
A festa e a procissão de São Benedito seriam um viés muito
rico para considerações sociológicas e profundas que não
cabem aqui. Lembro só que, durante o trajeto triunfante
do santo humilde pelas ruas da capital, muitos irmãos
nossos de pele escura experimentaram muito mais uma
espécie de desrealização, que de caráter de participação
coletiva. Ali vai o Santo Preto fechando o glorioso festejo;

103 Ver as pesquisas sobre Batuque: BRAGA, Reginaldo Gil. Batuque Jêje-Ijexá em
Porto Alegre. A música no Culto aos Orixás. Porto Alegre: FumProarte, Secre-
taria Municipal da Cultura de Porto Alegre, 1998. CORREA, Norton. O batuque
gaúcho. História Viva. Cultos Afro. Porto Alegre, 2007. p. 56-57. OLIVEIRA JU-
NIOR, João Mouzart de. Entre panelas e batuques: arqueologia da diáspora
e gênero no sítio da Palha. Sergipe: Laranjeiras, 2012. Monografia de História.
Universidade Federal da Sergipe
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133

enquanto vão a sua frente, como uma guarda de honra,


abrindo a marcha, aos outros Santos brancos. Eu mesmo
ouvi certa vez uma observação de um cidadão preto
que ia junto à imagem de São Benedito “ele hoje é o rei”
(DUARTE, 1971, p. 62).

Neste trecho, o Bispo Dom Luciano classifica São Benedito como o


santo humilde e o associa aos irmãos de pele escura de Aracaju. É
interessante observar a posição que o mesmo ocupa em relação aos
outros santos que participavam da procissão. Os santos brancos na
frente e o santo preto no fundo. Suponho que a cor seja um elemen-
to expressivo da organização da procissão, articulado com a questão
social dos irmãos e dos participantes que a acompanhavam. Não é
por acaso que o bispo destaca a fronteira entre os santos brancos e
pretos. Assim, torna-se fundamental perceber a reflexão tecida pelo
bispo sobre a festa, ao relatar que esse momento é rico para fazer
diferentes considerações sociológicas. A procissão se constitui como
um espaço de disputas e conflitos, nos quais os grupos reafirmam
suas diferenças, sejam elas religiosas, sejam elas sociais.

Este ato comemorativo comemoração aparece no compromisso de


São Benedito, datado de 1865, que estabelecia em um de seus ar-
tigos, a seguinte obrigação: “Art. 3º - a) fazer solenemente a festa
de seu padroeiro”104. Esse artigo nos ajuda a entender o quanto a
festa é importante para manutenção da existência étnica, religiosa
e social da irmandade. Então, organizar essa celebração era mostrar
a todos da sociedade aracajuana a sua forma de ser e viver. A festa
é fundamental para esta organização como grupo e, por isso, esta
comemoração esteve sempre presente como compromisso para ir-
mandade. Assim, esse espaço trazer à tona as disputas dos irmãos
na organização da festividade.

104 DUARTE, Cabral Luciano Dom. Estatuto da irmandade de São Benedito. Ara-
caju, 1971.p.3.
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134

“Ele hoje é o Rei”: entrando na festa


A partir de minhas observações de campo, durante as festas de
2013 e 2014, constatei alguns discursos lançados acerca da festa da
irmandade de São Benedito. A primeira mostra que durante mui-
to tempo a festa de Reis foi a maior expressão católica de vários
homens e mulheres de pele escura em Aracaju. Relacionando este
discurso com o campo, observei que, ao longo do século, esta co-
memoração vem passando pelo processo de esvaziamento e de in-
visibilidade dentro do cenário urbano da cidade em questão.

No transcurso dos anos, o dia 6 de janeiro tem sido sempre salien-


tado no calendário festivo da cidade, publicado pela prefeitura de
Aracaju. Nesta data, celebra-se a festa do “santo preto”, cultuado pe-
los membros da irmandade e pelos moradores do trajeto da festa.
Nesse cenário festivo se apresentam espetaculares manifestações
externas da fé expressas no empolgante culto ao santo e nas gran-
des procissões que, ao longo dos séculos, passou pelo processo de
transformação das suas práticas comemorativas.

O trajeto da festa da irmandade tem seu ponto inicial na Igreja São Sal-
vador na Rua Laranjeiras. Logo após, os irmãos perpassam pelas Ruas:
Itabaiana, Divina Pastora, que dá acesso ao terminal da Rodoviária Ve-
lha, adentram a Rua Capela, seguem toda a Rua em questão que dá
acesso ao fundo da Catedral metropolitana de Aracaju – a Igreja Nossa
Senhora da Conceição e passam também pela Rua Maruim, até chegar
à Rua Capela, sentido a Igreja São Salvador, ponto final da Festa.

Em Aracaju, antes da efetivação do momento festivo, ocorre uma


reunião extraordinária com o corpo diretório da irmandade, dada
a preocupação com a solenidade. Assim, traçam a divulgação do
evento nos programas de rádio, revistas, blog e cartazes, produzem
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135

lembranças para serem entregues aos fiéis, como, por exemplo, ca-
lendário e santinhos com a imagem e oração a São Benedito.

Organizam ainda a missa, que vai desde a escolha dos leitores (da
primeira leitura e da segunda, do salmo, das preces e de um comen-
tarista para conduzir a missa), até a definição do coral (que também
é outra peça fundamental para realização deste ato), passando pela
seleção dos participantes do ofertório105 (que levam os objetos litúr-
gicos da entrada da igreja até o altar para o pároco), finalizando com
a escolha dos grupos folclóricos para entrar no espaço da igreja, re-
memorando a partir da música e da dança o culto a São Benedito.

Definidos os detalhes, a diretoria prepara um ofício para a liberação


das ruas onde será realizado o cortejo de São Benedito. Neste caso, a
festa organizada pela irmandade de São Benedito torna-se um dos
momentos mais significativos da vida da própria cidade, com uma
estrutura e uma sequência de roteiro a ser seguido durante o festejo.

Como se pode perceber, para concretizar a festa, é fundamental


preparar uma logística de produção: as compras para irmandade, o
comércio, a mão de obra dos irmãos para a decoração do andor106,
a preparação de pessoas responsáveis pelos fogos e o engajamento
dos irmãos na seleção das músicas para conduzir o momento da
procissão, além dos utensílios comerciais ligados ao sagrado por
parte de vendedores externos, que oferecem aos fiéis réplicas do
santo, chaveiros, velas, terços e comidas.

Um dia antes, todos os membros da irmandade se reúnem em torno


da ornamentação da charola para o santo, sendo alguns irmãos res-

105 Rito da missa com o caráter de entrega e doação.


106 O andor tem o mesmo significado de Charola. Designar o artefato de transpor-
tar a imagem de um santo em procissão.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

136

ponsáveis pela condução desse momento. Depois de tudo, sinaliza-


-se o começo da festividade. No outro dia inicia-se a inauguração da
celebração maior em volta do andor, colocam-se flores, preparando
para colocar o São Benedito, com o intuito de deixar mais pomposo
o ato de sua coroação no ritual da missa.

A homenagem a São Benedito ocorre, como já dito anteriormen-


te, no primeiro domingo, dia 6 de janeiro, o Dia de Reis, quando é
comemorado em vários municípios sergipanos, através de missas,
procissões, cortejos de grupos folclóricos e grandes festas, em ho-
menagem a São Benedito.

Verifiquei na festa de 2013, logo pela manhã, vários anúncios na


televisão sobre estas comemorações nas cidades de Japaratuba,
Carmópolis, Ribeirópolis, Laranjeiras, São Domingos e Pirambu. Em
relação à festa de Reis de Aracaju, percebi que existe pouca visibili-
dade na mídia, se comparada com as outras festas de Reis dos ou-
tros municípios sergipanos. A festa tem um caráter mais restrito aos
fiéis do santo e irmãos em Aracaju.

No dia da festa, em 2013, cheguei cedo e observei que, conforme


passavam as horas, aumentavam os fiéis dentro do templo. Aos pou-
cos, as pessoas entravam e começavam a fazer suas orações; ao lado
direito da igreja São Salvador tinha um altar lateral com uma grande
iluminação de copinhos de velas colocados para outros santos. Pes-
soas, que se encontravam com amigos, algumas sentadas e outras
em pé. O espaço da igreja não deu para acomodar a quantidade de
pessoas que foram à missa promovida pela irmandade. Ainda antes
de iniciar a celebração, começaram a rezar um terço para São Benedi-
to, puxado por diferentes grupos na igreja São Salvador.

No espaço interno visualizava-se o preparo do espaço pelos irmãos para


a realização da missa. Pessoas ficavam na frente da igreja recepcionando
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137

os fiéis. A todos, era entregue o folheto da missa e a folha de cântico, pre-


parados para o festejo. Na frente da igreja, encontravam-se três mulhe-
res pedindo esmolas em clemência ao santo protetor. Observei que elas,
todos os dias da semana, estavam ali. Assim, a clemência a São Benedito
contagiava a todos que se encontravam naquele espaço.

Em seguida, visualizei pessoas correndo de um lado para o outro,


para o início da festividade, com a celebração da missa. Percebi
também, na prática, o processo de socialização entre os irmãos com
a comunidade. A zeladora da irmandade, juntamente com o presi-
dente do referido grupo, faziam cordialmente a recepção de todos
dentro do templo. Em seguida, iniciou-se a celebração da missa com
a entrada de São Benedito, todo adornado107. Logo após, entrou o
padre pedindo para que todos clamassem pelo santo em questão.

No desenrolar da celebração, escutei duas senhoras falando: “ain-


da hoje tem muitos pretos na festa”. Fiquei refletindo sobre este
aspecto levantado pela senhora, mas não tive tempo de pergun-
tar a ela o porquê desta observação, que mexeu comigo de tal
modo que comecei a observar a todos que se encontravam na-
quele templo, inclusive a minha presença enquanto um homem
negro dentro daquele espaço.

A missa continuou. Na hora do ofertório entraram alguns membros da


irmandade e o grupo folclórico Bom Jesus dos Navegantes, da cidade de
Laranjeiras, que foi prestigiar a festa, dançando e cantando a São Benedi-
to. O grupo em questão era composto por dançarinas que entraram com
uvas, pão e objetos litúrgicos (cálice108, galheteiras109 e ostensórios110).

107 Adorno está relacionado aos enfeites.


108 É um objeto litúrgico utilizado para a consagração do vinho no ato da missa
109 Recipientes onde se coloca a água e o vinho para serem usados na Celebração
Eucarística
110 Objeto utilizado para expor o Santíssimo, ou para levá-lo em procissão.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

138

Alusivo ao ofertório, observei que, naquele momento, o grupo


folclórico rememorou as práticas do padroado. Para este ritual, as
guardas, em cortejos, buscam os reis e as rainhas que levam o man-
to e a coroa de São Benedito, conduzindo-os em procissão ao ofer-
tório111, em direção ao altar do “rei preto”.

A música torna-se o elemento de conexão do cortejo, não podendo


ser interrompida durante o percurso em que se conduzem tais ob-
jetos. A coroação ao santo constitui o momento de muita importân-
cia e de grande emoção. Todos os participantes se levantam para
ver o ato de coroar e o grupo folclórico, a dançar no altar, realimenta
a ideia de força divina. Depois disso, os fogos de artifícios tornam-se
o grande elemento de anúncio deste grande momento. Nesta oca-
sião, os irmãos colocam no altar, em forma de doação, alimentos
destinados aos necessitados. O que está ligado à fama de São Bene-
dito realizar milagres, ele é sempre visto como aquele que diminui a
fome e cura as doenças dos oprimidos.

Depois, saiu o cortejo pelas ruas da cidade em louvor ao santo, com


músicas e danças. A população acompanhava o cortejo com mui-
ta alegria. Como falou Francisca, “os risos, a alegria e a partilha são
fatores fundamentais na festa de reis” (FRANCISCA, 2013). A partir
do discurso de Francisca, percebo que o tripé, riso, alegria e parti-
lha, são características fundamentais para entender o momento da
festa. Tais elementos são colocados em jogo em suas ocasiões de
sociabilidade e solidariedade em torno do grupo.

A procissão é composta na primeira ala pelos representantes da


diretoria da irmandade, que abrem o cortejo. No início, vem a ban-
deira da irmandade; em seguida, o grupo folclórico, abrindo a ala

111 Ato litúrgico da celebração da missa que são apresentados as oferendas mate-
riais e são colocados os objetos litúrgicos no altar .
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

139

antes do santo. Depois, vem São Benedito e sua charola carregada


por quatro irmãos.

Logo após, os fiéis em louvor, promessa e adoração. A procissão aos


sons das caixas acordam os moradores que vão à janela para ver a
procissão passar. A reação dos moradores, que viam naquele mo-
mento a festa, era de curiosidade.

Aos poucos, a irmandade foi ocupando a Rua Laranjeiras que, a partir


de sua devoção, ressignificava o espaço comercial. Desta forma, as
pessoas vivenciavam a festa, como é o caso do Reisado112 de Bom Je-
sus dos Navegantes, que abria o cortejo do Santo ao som dos fogos.
Este grupo rememora a coroação dos Reis na Festa de São Benedito e
recria a tradição da coroação dentro das irmandades religiosas.

Os fogos são fundamentais dentro do espaço da festa, eles fazem


parte do momento da grande atração dos membros e da sociedade
aracajuana envolvida, como relatou Verônica: Ao relembrar tal festa
no século XX: “É no embalo dos fogos e da música que o grupo fol-
clórico se diverte em torno da procissão de São Benedito”.

Ela continuou:
“O Batuque me faz requebrar ao ritmo religioso, ao ritmo
de São Benedito que venha o barulho dos músicos nesse
ar livre. Gosto da chamada rabada é lá que desfilo, longe
do meu querido padre. Lá pega fogo!”(VERÔNICA, 2013).

É interessante salientar duas expressões na fala de Verônica: batu-


que e rabada. Tais termos são interessantes para pensar os elemen-
tos culturais de resistência presentes na festa de São Benedito e o

112 O Reisado ou Folia de Reis é uma dança popular profano-religiosa, de origem


portuguesa instalou-se em Sergipe no período colonial. Corresponde ao ciclo
natalino de 24 de dezembro a 6 de janeiro onde se comemora a coroação dos
Santos negros, principalmente São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

140

lugar dos irmãos na festa. O primeiro termo torna-se significante


para o grupo para referir-se ao lúdico. O segundo possibilita enten-
der que no fundo da procissão os irmãos se sentiam mais à vontade
para realizar suas danças e brincadeiras na festa. Por isso, que o riso
e a alegria são elementos daquele momento.

Também eles percorrem as ruas da cidade sonorizando sua presença


nessas manhãs com os cantos e ritmos “antigos”. Ao retornarem, é dis-
tribuído lanche para os membros e para o grupo folclórico convidado.

Com isso, verifiquei que, para a realização da festa, é necessário o


engajamento de todos os envolvidos para concretizar a tal espera-
da organização, que articula desde a liberação das ruas na prefeitu-
ra, ou seja, a preocupação com o espaço é uma constante.

Em relação à festa, Carla diz:


A festa para mim é um ambiente familiar, é o ambiente de
rememorar a liberdade à luta a vida. A festa é o momento
da religiosidade católica em nós. Saudamos a todos a
partir da música e da dança, é o nosso momento [...] Não
posso esquecer-me dos grupos folclóricos, assim, gosto
do colorido das roupas, dos chapéus, todos se deslocam
dançado em fileiras (CARLA, 2013).

Os discursos proferidos pela entrevistada possibilitam verificar o


reconhecimento da festa pelo grupo. Nesse momento festivo, é
partilhado e comungado por todos um sentido em comum de es-
paço familiar, e não só isso, pois trata-se de uma ocasião na qual
se rememora a ideia de liberdade diante do culto, por isso que a
entrevistada destaca que a festa é o momento deles, além de se
identificar o colorido do grupo folclórico como características das
festas de homens pretos, tais elementos destacados são referências
étnicas de reconhecimento do grupo.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

141

Nota-se o engajamento dos irmãos para a realização da festa de São


Benedito no espaço da igreja São Salvador, perpassando as princi-
pais ruas de Aracaju. Deste modo, as conjunturas de sobrevivência
da festa pressupõem um processo sempre renovado e inventado de
“dominação” que os mantinha despojados, estando ligada à renova-
ção de suas táticas de sobrevivência que determinavam o ritmo do
processo de ressignificação do espaço em questão. Neste sentido,
dá para perceber como são construídos seus espaços de sociabili-
dades nesta cidade.

A mobilidade no espaço urbano é característica essencial de sobre-


vivência, a contínua mudança espacial do roteiro da festa, a par da
contínua transformação ou improvisação dos costumes, inclusive
a transitoriedade da organização familiar dos novos membros da
irmandade. Ao mesmo tempo, são empurrados pela necessidade
e pelo recurso de resistência ao controle social dos religiosos e das
autoridades policiais.

A festa de São Benedito torna-se uma das práticas que, ao longo do


tempo, conseguiu resistir, mesmo com todo o processo de romani-
zação por que passou o espaço religioso católico de Aracaju. Suas
práticas festivas são elementos cruciais para o processo de sociali-
zação da irmandade no presente.

O sentido da morte na irmandade de São Benedito


As irmandades são uma dessas organizações que se preocuparam
com uma boa morte para seus participantes, assim, desde séculos
passados serviram para o reconhecimento dos lugares sociais de
cada um no seio da sua comunidade e eram locais para o exercício
de uma série de prerrogativas, inclusive, o direito de se desfrutar de
um funeral digno, como chamou atenção Furtado (2001).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

142

Tais preocupações com o “bem morrer” faziam parte das pautas de


diversas irmandades, sejam elas: brancas, pardas e pretas. Deste
modo, a assistência à morte parece ter se tornado uma das prin-
cipais justificativas para a grande adesão dos negros a estas asso-
ciações, uma vez que estão comumente integradas à obrigação de
assistir seus mortos com funerais dignos (PAGOTO, 2004; REIS,1996).

Assim, uma parte importante da vida das irmandades estava relacio-


nada à consagração e aos cuidados a ter com os mortos, por faleci-
mento de qualquer dos irmãos (BORGES, 2005). Para ela, o sacristão
ficava encarregado de anunciar a morte pelo toque fúnebre dos sinos
da igreja, percorrendo as principais ruas com a campainha e uma cruz
na mão, sinal que o morto era irmão (BORGES, 2005, p.165).

Segundo Reis (1991), no século XIX, a morte foi tomando novas formas
e novos sentidos, estimulando a preocupação com uma boa morte.
As concepções sobre o mundo dos mortos e dos espíritos, a maneira
como era esperada, o local da sepultura, o destino da alma, e a rela-
ção entre vivos e mortos eram todas questões sobre as quais muito
se pensava, falava, e escrevia; e em torno das quais se realizavam ritos,
criavam-se símbolos, movimentavam-se devoções e negócios.

Para Reis (1991), o surgimento dos cemitérios está ligado a dife-


rentes motivos de acordo com os séculos em que surgiram, aten-
dendo às demandas culturais da época. No século XIX, por exem-
plo, inicialmente, a sociedade se recusava a aceitar a construção
dos cemitérios; contudo, estes apareceram como forma de orga-
nização da morte, enaltecendo uma nova forma de pensá-la, au-
mentando o apego em relação a tudo que lembrasse seus mortos,
daí a preocupação em construir, delimitar e ornamentar os cemi-
térios (DILLMANN, 2013).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

143

Neste contexto, Aracaju passou por um processo de higienização,


principalmente por medidas que visavam a controlar epidemias,
contribuindo, assim, para fortalecer o surgimento dos cemitérios
nesse espaço. A postura em relação aos mortos se modificou, uma
vez que a população teria que se separar de seus entes, pois os mes-
mos ficariam mais afastados, descansando agora em cemitérios113
(OLIVEIRA & CALLIAN, 2005).

Deste modo, foi necessário incorporar dentro dos estatutos as no-


vas alterações e preocupações ligadas à ideia de boa morte, já que
durante muito tempo foi uma constante dentro da pauta de dis-
cussão das irmandades. No século XIX, a irmandade criou todo um
mecanismo para auxiliar os irmãos que não detinham recursos para
gerir os rituais fúnebres de seus familiares, pois a morte sempre foi
algo muito caro em todas as sociedades, inclusive, nos dias atuais.

Na hora da morte, os irmãos das irmandades podiam ter uma ceri-


mônia de âmbito particular, com os familiares e amigos; e pública,
com a presença da irmandade no cortejo (REIS, 1997). De tal modo,
a organização ficava por conta dos seus familiares, amparados pelos
membros da irmandade que ofereciam as cabíveis assistências. Tais
“grupos procuravam garantir as condições para que os membros fa-
lecidos tivessem um excelente ‘‘bem morrer’’(AGUIAR, 1993, p. 225).

O momento da morte era precedido por todo um ritual que ia


para além dos sacramentos litúrgicos para marcar passagem do

113 Essas modificações não foram aceitas ao mesmo tempo em todas as regiões bra-
sileiras, tendo em vista que as suas particularidades (condições econômicas, cul-
turais, sociais) contribuíram para que fossem aceitas ou não. Inicialmente, como
na Europa a construção de cemitérios não foi aceita, em Salvador aconteceram
sucessivas revoltas, já em São Paulo e no Rio de Janeiro eram notáveis cemitérios
com características similares aos da Europa, com construções que enalteciam as
condições sociais e principalmente a crença cristã dos mortos.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

144

ente querido; assim, a preocupação ia desde a organização do


cortejo, da escolha da mortalha, do ato da celebração da missa até
a definição da sepultura (REIS, 1997; PAGOTO, 2004). A pompa podia
faltar durante a vida, mas era essencial no último momento da
existência. A cerimônia do morto contava com certas convenções
que deveriam estar expressa solenemente. As irmandades eram
detentoras dos aparatos e do saber necessário para uma ceri-
mônia devidamente pomposa. Elas zelavam para que, na morte
de um associado, os irmãos saíssem “em pompa” e “em corpo de
comunidade” com muita compostura.

Neste sentido, a irmandade de São Benedito, durante o século XX,


criou todo um mecanismo de auxílio. Deste modo, uma boa morte
dependia da solidariedade dos vivos, ou do contrato estabelecido
entre a irmandade e os irmãos que, em vida, buscavam cumprir o
pagamento estabelecido pela instituição católica. Portanto, a mor-
te de um membro da irmandade mobilizava toda a comunidade re-
ligiosa em torno de seu cortejo fúnebre.

A morte na irmandade de São Benedito no século XX


Ainda no século XIX, na cidade de Aracaju, especificamente, na Rua
Laranjeiras, na Igreja São Salvador, os enterros eram feitos dentro e
fora do referido templo, tal forma de sepultamento ainda era a úni-
ca conhecida e obrigatória aos aracajuanos católicos. É tanto que, ao
lado da referida igreja, tinha-se um cemitério “em solo sagrado”. Ali-
mentado com a ideia que tal alma estaria protegida se estivesse den-
tro desse espaço. Nesse mesmo século, começou uma alteração no
espaço público das igrejas ligadas às medidas higienistas do final do
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

145

Oitocentos, que proibiram o enterramento no espaço das igrejas114


(PAGOTO, 2004; NASCIMENTO, 2006; REIS, 1996). Com essa proibição,
surgiu o cemitério São Benedito, mantido pela irmandade, voltado
para negros e escravos. Sua construção se deu através de recursos
obtidos pelas irmandades115 dedicadas às pessoas mais humildes, e o
Santa Isabel, ligado à população branca e rica dessa cidade, ligado à
associação Beneficente de Aracaju.116 O cemitério São Benedito loca-
liza-se na Praça Princesa Izabel no Bairro Industrial.

114 Em busca de ambientes salubres e de medidas que prevenissem o contágio


dessas doenças, médicos e sanitaristas apoiavam a construção de cemitérios,
para que assim, os males ficassem restritos a apenas um local e não mais tão
próximos da população. Esta que, por sua vez, temia as constantes epidemias.
Portanto, devido a essa situação, brasileiros precisavam desapegar de seus
mortos e apoiar a construção de cemitérios, que serviam em sua ideia principal
como forma de prevenção de epidemias; porém, a distinção de poder se faz
presente quando os mesmos começaram a ser ocupados e até mesmo cons-
truídos, no momento em que se constroem cemitérios para pretos, pobres e
escravos e cemitérios para ricos e brancos, essas construções colaboram para a
diferenciação social na morte (CHAVES, 2011; DILLMANN, 2013; REIS, 1997).
115 O Testamento de Pedro Homem dos Santos deixa clara a doação feita pelo
mesmo para a construção do cemitério de São Benedito em Aracaju e para
obra da capela do Santíssimo Sacramento da Matriz Conceição da capital. Ver
SANTOS, Pedro Homem dos. Construção do Cemitério São Benedito. Arqui-
vo do Judiciário. Livro de testamento. Cx 01/2143. Aracaju, 1887.
116 Ver: CARVALHO, Fernando Lins de. Vizinhos, sim; enterros à parte. Os Cemi-
térios Santa Isabel e São Benedito. Aracaju, SE (1862-1933). Dissertação.
(Mestrado) – Núcleo de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal
de Sergipe. São Cristóvão, 2003.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

146

Figura 2 Entrada do cemitério São Benedito de Aracaju.


Fonte: Foto de João Mouzart

Figura 3 Fachada do Cemitério São Benedito.


Fonte: Foto de João Mouzart
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147

Chamo atenção que as construções dos cemitérios acabaram mu-


dando o modo de se pensar a cidade. Eles são espaços de significa-
dos, tornando-se referência espacial de um determinado lugar. Se-
guindo as ideias de Pagoto (2004), “os cemitérios a céu aberto, longe
do seio dos vivos, tornou-se, nesse momento, sinal de progresso e de
higienização, considerado um equipamento urbano necessário nas
cidades mais desenvolvidas e modernas” (PAGOTO, 2004, p. 106).

No século XX, a morte ganha outros significados através dos avanços


da modernidade. De tal modo, os cemitérios são construídos dentro
das cidades e essas organizações, que se preocupavam com a morte,
criam também seus próprios cemitérios. Este é o caso da irmanda-
de de São Benedito, que também vai se preocupar com a morte dos
seus irmãos. Contudo, o ato de enterrar os mortos era colocado na
mesma condição de caridade que outras atividades realizadas pelas
irmandades, como o ato de alimentar os necessitados, acolherem os
peregrinos, visitar os doentes e os encarcerados (ARIÈS, 1989).

Essas transformações possibilitam criar algumas indagações: Como


a população viu essa nova medida de sepultar seus entes? Quais
preocupações surgiram no momento da criação do cemitério São
Benedito? O que acharam do distanciamento dos enterros dos seus
membros? Quais garantias tiveram que os corpos dos seus entes
receberiam um tratamento digno? O que denunciaram nesses pri-
meiros momentos? Como se deu a relação entre os enterramentos
novos e tradicionais?

Mesmo não sendo possível explorar tais indagações, a partir da


literatura, tanto de Reis (1991), quanto de Pagato (2004), que ob-
servaram em jornais da Bahia e de São Paulo a presença de várias
denúncias relacionadas aos novos enterramentos, e, preocupadas
com essa nova conduta por parte da igreja, perceberam que tais
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

148

irmãos encontravam nestas medidas o comprometimento de sua


salvação, devido à ganância de alguns.

Assim sendo, chega-se à conclusão de que, inicialmente, tal medida


não foi aceita pelos cristãos causando vários conflitos em seu meio.
Para Pagato, qualquer motivo, por mais peculiar que fosse, era sufi-
ciente para ser usado contra os cemitérios (PAGATO, 2004, p. 116).
Desta forma, surgiu uma nova maneira de tentar entender a morte.

O art. 3ª da irmandade traz como outros deveres dois pontos fun-


damentais que são: “c) – dar sepultura, gratuitamente a todos os
irmãos no seu cemitério; d) – manter uma caixa de pecúlio para
auxiliar a família do irmão por ocasião do falecimento deste.”117

Sabe-se que para entrar na irmandade de São Benedito era neces-


sário pagar uma taxa, então, esse artigo 3º C mostra uma ideia con-
traditória, pois o irmão para se tornar membro deveria pagar uma
taxa e só assim conseguiria ter uma boa morte; sendo assim, se o
componente atrasasse de 6 a 12 meses perderia todo o direito que
a irmandade lhe dava, recebendo assim uma penalidade.

O art.15 diz que

1 – Ficam sujeitos à penalidade de suspensão durante a vigên-


cia, na qual o irmão perderá todos os seus direitos na irmanda-
de, os irmãos que incidirem nas seguintes faltas:

a) – atrasar de 6 até 12 meses o pagamento da mensalidade;118

117 DUARTE, Cabral Luciano Dom. Estatuto da irmandade de São Benedito. Ara-
caju, 1971, p.3.
118 DUARTE, Cabral Luciano Dom. Estatuto da irmandade de São Benedito. Ara-
caju, 1971, p.3.
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149

Nesse contexto da morte, verifica-se toda uma estrutura para con-


seguirem receber os direitos transcritos no compromisso, cujos
componentes não cumpridos com o que foi proposto, não recebe-
riam os benefícios, e sim as penalidades como explicitado no artigo.

Tal como expresso, a morte é um fator importante de formação da


identidade da população aracajuana dentro da irmandade, pois re-
presenta uma das principais fontes de arrecadação do cemitério
São Benedito. O sepultamento era o momento em que se externa-
vam uma das obrigações da irmandade e confrarias, a urna, o local,
as homenagens, preces, missas, orações e encomendas compu-
nham o cenário em que a morte era objeto de prestígio dos mem-
bros das referidas associações.

Tais sinais podiam ser notados por alguns aspectos como a “previ-
são” do momento da morte e a aceitação com resignação do fim
próximo. As ideias de prestígio podem ser visualizadas nas artes
tumulares, dentro dos espaços de enterramento. No caso do cemi-
tério Santa Izabel, visualiza-se com maior expressividade, já no ce-
mitério São Benedito, são inexistentes tais elementos.
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150

Figura 4 Arte tumular do cemitério Santa Izabel.


Fonte: Fotografia de João Mouzart
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151

Figura 5 Espacial do cemitério São Benedito.


Fonte: Fotografia de João Mouzart

Na irmandade de São Benedito, a morte se constituía em um mo-


mento de grande importância, porque mostrava o cuidado que os
irmãos tinham ao enterrar os seus mortos. Conforme estabelecido
no compromisso, entre outras obrigações, cada irmão deveria re-
zar pelos falecidos, além de serem obrigados a participarem das
missas dos irmãos:
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152

Art.3º b) – fazer celebrar no segundo domingo de cada mês


uma missa na Igreja de São Salvador, por todos os membros
da Irmandade vivos e defuntos119.

Existia toda uma preocupação com a alma dos falecidos, por isso
todos tinham o dever de cumprir a obrigação de rezar por todos
que morressem.

Como nos relata o estatuto, todos os irmãos tinham o dever de re-


servar algum dinheiro para os custeios de seu sepultamento, como
também de membros de sua família. A boa morte era uma das preo-
cupações dos membros da irmandade, pois havia uma organização
em cima disso, para quando chegasse esse momento. Neste senti-
do, verifico o relato do Senhor João Batista de Oliveira que, ao se
referir em carta ao então senhor Arcebispo D. Luciano, afirmou:

Dentro do meu programa de trabalho procurei melhorar as condi-


ções da parte térrea do cemitério, [...], já se encontram bem fron-
dosas, dando ao cemitério uma nova feição. Construí mais de qua-
renta carneiras durante todo período da minha gestão, sem se quer
ter lançado mão em nenhuma dessas carneiras... Construí também
mais de cem usuários, o que tem produzido a maior parte das ren-
das da irmandade em apreço120.

Observo com esta afirmação que, no século XX, o cemitério constituía


a grande parte da arrecadação da irmandade, até mesmo por conta
da tradição dentro da própria instituição, que era a de oferecer a seus
membros um sepultamento cheio de adornos e ornamentações.

119 DUARTE, Cabral Luciano Dom. Estatuto da irmandade de São Benedito. Ara-
caju, 1971, p.3.
120 OLIVEIRA, Batista João. Carta dispensa do cargo de administrador do cemitério
São Benedito. Aracaju, 1971. Cúria Metropolitana. Pacotilha.8. Aracaju, 1971.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

153

Contudo, demonstra também o quanto era importante a organiza-


ção do cemitério para irmandade. Ressalto que o cemitério São Bene-
dito, nos dias atuais, continua sendo o principal meio de arrecadação,
além de ser o único patrimônio da irmandade. Por isso, no estatuto
de 2010, a igreja buscou incorporar esse bem para a Diocese.

Outro dado importante, que esta carta de João Batista traz, são as
informações da sua atuação dentro de outros cargos da referida ir-
mandade, como de tesoureiro, escriturário e administrador do ce-
mitério. Continuo a analisar seu discurso: “Dentro de um programa
de trabalho procurei melhorar as condições da parte térrea do ce-
mitério, calçando, plantando algarobas, dando uma nova feição”.121

Para obtenção do lucro desta irmandade, o administrador usou


como ferramenta melhorar as condições do cemitério, para pos-
sibilitar uma maior arrecadação. Esse discurso um pouco do valor
sentimental do administrador para com as atividades exercidas por
ele dentro da irmandade.

Para tanto, existia um envolvimento, um apego muito grande da


população dentro da Irmandade de São Benedito, onde seu culto
possibilitava tanto a celebração da vida através das festas, como
também a preocupação com a alma de seus fiéis.

A partir da documentação encontrada, no arquivo da cúria Me-


tropolitana, observei que o cemitério de São Benedito contratava
funcionários para atuarem no melhoramento e na organização das
práticas de enterramento dos membros da irmandade.

Exemplo disso foi a atuação do coveiro Manoel dos Santos, que mora-
va na Rua São Mateus, no bairro Olimar, na Barra dos Coqueiros (SE).

121 OLIVEIRA, Batista João. Carta dispensa do cargo de administrador do cemitério


São Benedito. Aracaju, 1971. Cúria Metropolitana. Pacotilha.8. Aracaju, 1971.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

154

O mesmo atuou na irmandade durante onze anos como funcionário


do cemitério e foi afastado por problemas de saúde, atestado pelo
médico de ter Miocardiopatia Dilatada, com importante disfunção
sistólica, que vinha evoluindo com os esforços que fazia no cemitério.
Conseguiu, no ano de 2006, a sua aposentadoria por invalidez e seu
afastamento do cargo, além de obter, com sua atuação, o direito de
ser enterrado no cemitério São Benedito. O mesmo não sabia ler e
nem escrever. A partir das suas experiências, verifica-se que a irman-
dade não se constituía apenas pela atuação dos seus irmãos, outras
pessoas se envolviam no andamento de suas atividades.

Percebi, a partir de alguns recibos presente na irmandade, o au-


mento das vendas dos ossuários que, na grande maioria, eram ven-
didos por parte dos seus familiares, mas também identifico a venda
por alguns irmãos. As evidências desses atos se deram a partir dos
anos de 1989, e é uma constante até os dias atuais. Assim, surgiu
uma preocupação por parte dos irmãos de demarcar, de uma forma
mais precisa, o espaço da morte.

Destaco agora a declaração do presidente da irmandade, Pe. Jerôni-


mo Nunes Peixoto, em 2004, que diz:
Declaro para os devidos fins que o ossuário de piso,
localizado na ala antiga do cemitério São Benedito, onde
se encontra-se sepultado José Anacleto dos Santos ,
falecido no dia 18.10.1955, é de propriedade da senhora
Lima de Oliveira , residente à Av. Pedro Calazans Centro,
nessa cidade . O citado ossuário tem como limites: Direita:
Ossuário de Eufrásia Maria da conceição; Esquerda Júlia
Barreto de Jesus e Frente José de Oliveira (PEIXOTO, 2004).

Torna-se interessante, neste documento, olhar para a delimitação


do espaço do cemitério que, desde a década de 1950, era dividi-
do por duas alas espaciais: ala antiga e nova. Com o aumento das
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

155

vendas dos ossuários da irmandade para outras pessoas que não


faziam parte dela, aumentou, por parte dos irmãos, o controle de
seus bens, buscando, perante o presidente, o reconhecimento e a
demarcação de suas heranças. Percebo que, nesse momento, a ir-
mandade criou novas atividades para se manter ao longo do tempo.

Uma das suas estratégias foi aceitar o enterramento de pessoas que


não faziam parte da irmandade. Tal ato gerou nos irmãos um maior
cuidado e apuração sobre a efetivação de seus direitos, por parte da
irmandade perante sua morte. Já em campo, fiz algumas visitas ao
espaço do referido cemitério em busca de conversar com alguns ir-
mãos que poderiam se encontrar naquele espaço. Encontrei o filho
de um casal de irmãos da irmandade que, quando indagado sobre
sua presença no espaço do cemitério disse:
Aqui foi onde meus familiares repousaram; tenho aqui
meu pai e minha mãe, enterrados neste espaço. Fiquei
muito triste com o falecimento deles, eram muito
especiais em minha vida. O sentimento que tenho
sobre a morte é de algo que transmite aflição, tristeza e
solidão. Entretanto, venho buscando revigorar a partir das
lembranças que tive ao lado deles. Neste lugar, busco ficar
mais próximos deles, e reflito sobre a importância da vida.
Deixaram para mim como representante do zelo desse
espaço (MESSIAS, 2014).

A partir da entrevista acima, ficou claro que o espaço da morte é de


assistência familiar, havendo um reconhecimento pelos represen-
tantes dos entes da irmandade que partiram. Percebo, a partir do
depoimento, que o sentimento que eles têm é de separação, que
causa aflição, tristeza e solidão, características da morte instigada
pelo cristianismo. Outro elemento importante na fala é a ideia de
uma herança da morte, que é alimentada pela transferência dos de-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

156

veres dos irmãos ao receber o pecúlio deixado por eles, é tanto que
o parente continuou a pagar as taxas deixadas para seus pais, em
busca de garantir para ele e seus familiares uma boa morte.

Friso que pensar em uma herança da morte, a partir da irmandade


de São Benedito, é se atentar como tal espaço ganha sentido para
diferentes componentes e familiares da irmandade, tornando cru-
cial a herança desse espaço alimentado por duas categorias dentro
da irmandade, a primeira é a ideia de moralidade da morte e a se-
gunda é a economia em torno da morte.

A Moralidade da morte se constitui ao longo da vida dos irmãos, ao


cumprirem certos preceitos traçados para uma ideia de um bom
irmão. Aqueles que não cumprirem, não serão dignos de serem
enterrados nesse espaço, além de ser uma moral compartilhada e
construída etnicamente atrelada ao jogo de identificação, com os
preceitos seguidos por São Benedito, existindo, assim, um sentido
simbólico de fazer parte dessa irmandade na hora da morte. A se-
gunda categoria a ser analisada é o sentido econômico da morte,
pois, o critério que garante uma boa morte perpassa pela fidelidade
dos mesmos no pagamento da taxa mensal à irmandade. A falta
desse pagamento faz com que a irmandade não cumpra o acordo
realizado com o irmão antes da hora de sua morte.

Assim, tais deveres são elementos cruciais para o reconhecimento


dos irmãos – primeiro a ideia compartilhada de cumprir os seus de-
veres para com a Igreja e contribuir financeiramente com a irman-
dade, sendo que só após esses critérios serem verificados pelos re-
presentantes, são prestadas as assistências a eles.

Os componentes da irmandade eram responsáveis por gerir os ritos


católicos e assegurar a boa prática cristã para os associados, bus-
cando seguir “ao pé dá letra” as regras impostas para eles, e destaco
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

157

o controle de seus atos pelos religiosos da época. A irmandade de


São Benedito assumia um papel importante dentro da igreja junto
aos clérigos, através da organização, das procissões, festejos e ri-
tuais fúnebres, além de manter a fé cristã em uma dinâmica social e
culturalmente construída de ritualização da fé e da devoção.

De tal forma, os ritos fúnebres e as festas dedicadas a São Benedito


contribuem para a manutenção das sociabilidades no espaço ur-
bano. Pelo exposto, ficou evidente que os aspectos da morte e da
festa são as principais pautas de sociabilidade discutidas dentro da
irmandade de São Benedito de Aracaju na atualidade. Neste senti-
do, os irmãos não só encontravam assistência material e espiritual,
como dispunham de um espaço de socialização para troca de expe-
riência mútua e reforço das suas identidades.

Considerações finais
Ao concluir esta análise, destaco que as estratégias de sobrevivência
da irmandade de São Benedito no universo católico aracajuano per-
duraram-se em função da etnicidade. A referência da cor se tornou
um elemento aglutinador de um grupo religioso, reconhecido como
pretos. Os discursos étnicos ativados pela irmandade também ajuda-
ram a redimensionar algumas discussões sobre a questão racial no
Brasil, durante o século XX – fato que evidencia que a irmandade re-
fletia as regras sociais estabelecidas no século XIX e que foram trans-
postas para o universo sagrado, perdurando após a Abolição.

Verifiquei que os espaços das sociabilidades étnicas da irmandade


de São Benedito foram compostos pelas procissões, pelos préstitos
fúnebres e as festas dedicadas ao Santo, contribuindo para a manu-
tenção das sociabilidades no espaço urbano de Aracaju. Nesses mo-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

158

mentos, perpassavam pelos prestígios dos irmãos pretos nas festas


e pelas solidariedades na hora da morte, legitimada a partir de uma
construção moral e econômica em torno do reconhecimento dos
irmãos no ato da morte.

A experiência religiosa da irmandade tornou-se um fenômeno ao


mesmo tempo peculiar e particular – cada irmão da irmandade de
São Benedito tem suas especificidades, tornando-as extremamente
significativas nos âmbitos as quais pertencem. Foi na vivência que
os componentes começaram a entrar de fato no universo do siste-
ma religioso que optaram em conhecer.

Elenco ainda que as transformações sociais e econômicas ocorridas


a partir do século XX modificaram, profundamente, toda a estrutura
da sociedade brasileira e a urbanização favoreceu o surgimento de
novas práticas sociais e culturais. Contudo, a maioria dos valores,
crenças e manifestações culturais populares foram constituídas nos
séculos anteriores à urbanização e à industrialização. Por fim, ressal-
vo que a sobrevivência de elementos culturais desses grupos está
ligada à conservação de suas identidades, revelando a disposição
da população vinculada a essas práticas, como debatido e expres-
sado na irmandade de São Benedito.

Referências
ENTREVISTAS
CARLA Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.
Aracaju 6 de jan. 2013.

FRANCISCA. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 de jan.2013.

GILVÂNIA. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 de jan.2013.
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HORTÊNCIA. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 de jan.2013.

JOSEFA. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 de jan.2014.

JÚLIO. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 de set.2013.

JUREMA. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6de jan.2013.

LOURDES. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 Aracaju de jan.2013.

MESSIAS. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 de mar.2013.

PATRÍCIA. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 de out.2013.

ROSA. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 26 de abr.2013.

SELMA. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 de jan.2014.

SOLANGE.Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 Aracaju de jan.2013.

TATIANE. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 6 de jan.2014.

TEXEIRA. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


Aracaju 21 de mar.2014.

TEREZA. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior. Ara-


caju 6 de mar.2013.

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Aracaju 06 de mar.2013.

ZULEIDE. Entrevista concedida a João Mouzart de Oliveira Junior.


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RETORNAR AO SUMÁRIO
Lorenzo Bordonaro

Nova Liberdade III:


uma experiência didática
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

169

Reparei nos barracos da ocupação Nova Liberdade III por acaso. Es-
tava a sair de Aracaju de ônibus em direção a João Pessoa. Da rodo-
viária de Aracaju até a BR101, o percurso – protegido e higienizado
dentro do veículo, poltronas confortáveis, wifi e ar condicionado –
parece uma viagem virtual no tempo, uma simulação que permite
ver, longe do calor e da poeira, as recentes fases da expansão da
periferia de Aracaju. Longe, muito longe, dos prédios da Av. 13 de
Julho, dos shopping, da praia da Atalaia, as casas de tijolo e as ruas
recentemente urbanizadas atravessadas por nauseabundos canais
de saneamento abertos, cedem o espaço de repente aos barracos,
que chegam até à margem da rodoviária BR235.

É a ocupação batizada Nova Liberdade III. Pode surpreender, mas os


barracos da Nova Liberdade III têm uma qualidade indubitavelmen-
te estética. Construídos segundo a conhecida técnica da estrutura
em paus de madeira, sobre os quais são pregadas placas de ma-
deira de diferentes formas, cores e texturas, apresentam-se particu-
larmente interessantes do ponto de vista puramente visual. A ma-
deirite preta, já gasta, arranhada, sobrepõe-se a placas vermelhas,
verdes, brancas, numa combinação que estimula o olhar estético.
Pelo menos o meu. A ocupação Nova Liberdade III surgiu no final
de 2012 ao km 4 da BR235 – zona Oeste do município de Aracaju.

Em 2015, contava com algumas centenas de famílias morando na refe-


rida localidade, apesar da situação dos ocupantes não ter sido até hoje
regularizada, e das várias reintegrações de posse sempre suspensas.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

170

Figura 1 Fachada de uma moradia de Nova Liberdade III (pormenor).


Fonte: Acervo particular do autor.

Figura 2 Parede interior de uma moradia de Nova Liberdade III (pormenor).


Fonte: Acervo particular do autor.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

171

Figura 3 Fachada de uma moradia de Nova Liberdade III (pormenor).


Fonte: Acervo particular do autor.

Figura 4 Fachada de uma moradia de Nova Liberdade III (pormenor).


Fonte: Acervo particular do autor.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

172

Figura 5 Moradia de Nova Liberdade III.


Fonte: Acervo particular do autor.

Figura 6 Moradia de Nova Liberdade III.


Fonte: Acervo particular do autor.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

173

Desde 2014, sou bolsista de pós-doutorado pela CAPES, no Programa


de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Ser-
gipe. Como tal, tenho desenvolvido uma disciplina no Mestrado em
Antropologia que visa a proporcionar aos alunos uma experiência
formativa teórico-prática através de workshops no território urbano
que por um lado explora as possibilidades do diálogo entre prática
etnográfica e linguagens visuais da arte contemporânea; por outro,
investiga na prática as potencialidades, modalidades e limites de prá-
ticas artísticas de intervenção no território, baseadas em pesquisas
etnográficas e direcionadas a visibilizar, questionar e repensar algu-
mas questões urbanas da zona metropolitana de Sergipe.

Os projetos desenvolvidos no âmbito da disciplina visam a contri-


buir, do ponto de vista teórico e prático, com a pesquisa sobre as so-
breposições entre práticas de pesquisa etnográfica e arte contem-
porânea, escolhendo como objeto antropológico cada ano uma
área sensível da região de Aracaju, e um conjunto de preocupações
urbanísticas/sociais. De fato, o território da “capital da qualidade da
vida” é caracterizado por altas taxas de exclusão social e marcado
por processos de segmentação sócio-espacial profundos.

Objetivo dos projetos é desenvolver e utilizar ferramentas que de-


rivam do cruzamento disciplinar entre a prática da pesquisa etno-
gráfica e da arte contemporânea, em particular na sua vertente de
arte pública de intervenção, para pesquisar, documentar, represen-
tar, divulgar e denunciar as formas locais de segmentação sócio-es-
pacial e de marginalização de setores específicos da população em
algumas comunidades periféricas do território metropolitano de
Aracaju – dada a existência de bairros autoconstruídos e “aglomera-
ções subnormais” na Grande Aracaju.

Interessa-me explorar a desigualdade sócio-espacial neste con-


Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

174

texto, analisando a forma como as dinâmicas da desigualdade se


traduzem na ocupação segmentária do espaço da cidade similar-
mente ao que acontece em outros contextos urbanos do Brasil con-
temporâneo (Santos, 2007; Velho, 1989; Caldeira, 2000), e como os
moradores ocupam e re-significam o espaço da cidade, traçando
nele os seus percursos quotidianos (de Certeau, 1990; Hansen and
Dalsgaard, 2008). Quando reparei nos barracos da Nova Liberdade,
soube que o meu primeiro curso iria ser desenvolvido no confronto
com esta realidade habitacional, social e arquitetônica. A antropo-
logia ia sair do campus, e com olhos novos122.

Figura 7 Chegar lá: o ônibus 305 faz ligação entre o terminal rodoviário e Nova Liberdade III.
Fonte: Acervo particular do autor.

122 Na disciplina ‘Tópicos especiais em antropologia: Etnografia, Arte contempo-


rânea e Intervenção no espaço público” ministrada em 2014, participaram os
alunos: Ana Luísa Nobre, Eline Limeira Dos Santos, Josué Felipe Silva Maia, Lí-
dia Matos, Marina Sallovitz Zacchi, Rhaiza Bomfim do Nascimento
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

175

Figura 8 Chegar lá: a bordo do ônibus 305.


Fonte: Acervo particular do autor.

Figura 9 Nova Liberdade III foi construída à margem da BR 235.


Fonte: Acervo particular do autor.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

176

Figura 10 Nova Liberdade III surge entre os municípios de Aracaju e de Nossa Senhora do Socorro.
Fonte: Acervo particular do autor.

De fato, além de proporcionar aos alunos do mestrado uma breve


experiência de exploração etnográfica de um contexto muitas ve-
zes pouco conhecido da cidade onde eles mesmo residem, o curso,
como já mencionei, convida os discentes a explorar outros instru-
mentos de aproximação ao “campo etnográfico”, utilizando instru-
mentos visuais (entre os quais a fotografia – na imagem a seguir,
alguns alunos recebem instruções e dicas do fotógrafo Javier Vala-
do), linguagens e sensibilidades próprios da arte contemporânea.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

177

Figura 11 Fotógrafo Javier Valado e corpo discente do Mestrado em Antropologia.


Fonte: Acervo particular do autor.

A aproximação entre arte contemporânea com o olhar e a lingua-


gem antropológicos, não é tão ilógica como pode soar inicialmente.
Pelo visto, nem é particularmente original. Com efeito, acompanha,
por um lado, uma fase crítica das políticas e das modalidades de
representação no seio da disciplina antropológica; por outro, apa-
rece em sintonia com uma viragem “social” da arte – em especial,
sobretudo, pela conjuntura atual de se repensar o conceito de arte
e o papel da arte na sociedade contemporânea.

Vários eventos de artes e artistas contemporâneos desde os anos


1990 têm mostrado similaridades significativas com a antropologia
e com a etnografia na forma de teorizar a diferença cultural, e em
particular, no que respeita às práticas de representação. Por certo, na
mesma altura que a antropologia com o writing culture turn estava
numa fase de crítica e de revisão da sua metodologia e da sua forma
expressiva clássica (o texto escrito), houve um interesse paralelo para
com uma arte social e culturalmente sensível (Marcus, 2010, p. 269),
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

178

com um conjunto de eventos e artistas que mostraram similaridades


significativas com a antropologia e com a pesquisa etnográfica.

Para citar aqui alguns exemplos, “Documenta XI”, em 2002, com a


curadoria de Okwui Enwezor, focou a forma como a arte contempo-
rânea podia se desenvolver numa relação dialética com uma cultu-
ra sempre mais “global”. Artistas como Lan Tuazon, Nikki S. Lee, Bill
Viola, Francesco Clemente, Jimmy Durham e Susan Hiller, partilham
com os antropólogos uma preocupação para com as políticas da
representação (Schneider e Wright, 2006, p. 19).

Em 2003, a conferência “Fieldworks”, organizada pela Tate Modern


em Londres, uniu artistas e antropólogos para refletir sobre o uso
respectivo do trabalho de campo e para explorar possíveis conver-
gências (Rutten, van. Dienderen e Soetaert, 2013).

O conceito de “site-specific”, hoje em dia, particularmente relevante


na arte contemporânea, tem uma relação forte com a prática etno-
gráfica (Coles, 2000): nesse âmbito, uma série de artistas tem mos-
trado a proximidade entre a prática da arte contemporânea e da
antropologia: entre outros, Lothar Baugarten, Christian Boltanski,
António Ole e, no Brasil, de uma geração mais antiga, Hélio Oiticica.

Ao mesmo tempo, houve um interesse crescente na antropologia


para a arte contemporânea que tem a sua origem na problemati-
zação das possíveis formas diferentes de comunicar dados e con-
ceitos etnográficos. Esta nova preocupação tem sido definida como
o “sensory turn” na pesquisa etnográfica e antropológica (Pink,
2009b). Uma série de textos organizados por Arnd Schneider e Ch-
ris Wright apontaram para a possibilidade e o surgimento de novas
práticas de pesquisa e de exibição que põem em diálogo antropo-
logia e arte contemporânea, visando ultrapassar a dicotomia entre
arte e ciência e restituir à etnografia a sua dimensão experimental e
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

179

sensual que os teóricos do Writing Culture auspicavam no seu texto


de 1986 (Schneider e Wright 2006, 2010, 2013; Schneider, 2008).

Estas formas experimentais de fazer etnografia e de exibir a antro-


pologia ultrapassam o paradigma narrativo linear ainda dominante
mesmo na antropologia visual clássica que, de fato, assenta em mo-
delos logocêntricos e textuais na sua produção. Trata-se portanto de
individuar práticas de representação para a antropologia que ultra-
passem as restrições dos modelos textuais, aproveitando de práticas
mais materiais e sensuais próprias das artes. Schneider e Wright es-
crevem a esse propósito que “a iconofobia e as restrições à expressão
visual que a antropologia impôs a si mesma, devem ser ultrapassadas
através de uma apropriação crítica com um leque de práticas maté-
rias e sensuais próprias das artes contemporâneas” (2006, p. 4).

Os meus alunos foram, portanto, convidados a explorar estes novos


campos interdisciplinares, cuja questão já não é a da “gravação” ou da
“documentação” no sentido mais clássico: trata-se mais de produzir ob-
jetos visuais numa zona dialógica e cinzenta, num terceiro espaço, que
é exatamente o lugar do encontro etnográfico e onde a mesma “etno-
grafia” é produzida de acordo com a epistemologia hermenêutica.

Foi precisamente da relação antropológica com o contexto, dos


encontros com os moradores, que surgiram as inescapáveis com-
plexidades políticas implícitas no ato mesmo de representar. Nova
Liberdade III era, e continua sendo, uma ocupação ilegal. A vida dos
moradores assenta numa momentânea suspensão da legalidade,
que ameaça quotidianamente de voltar a ser reestabelecida de
forma violenta. Cada pessoa de “fora” que entra na ocupação, cada
foto tirada, gera, apesar dos esforços de posicionamento político, o
medo na contraparte etnográfica – o medo da visibilidade, de ser
reconhecido, de ser derrubado, de ver suas casas demolidas e seus
pertences deixados à rua.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

180

Diante dos fatos elencados, para falar da precariedade da vida numa


ocupação, em vez de revelar a cara/ identidade dos moradores, op-
tamos por utilizar os objetos e os materiais construtivos para contar
a história da ocupação, a intimidade das casas, o afeto dos lugares.

Assim sendo, os alunos foram convidados a interrogar e a fotogra-


far os objetos indicados pelos moradores da ocupação como ob-
jetos importantes, como elementos materiais que metaforizassem
da melhor forma o que quer dizer morar, o que é uma casa, o que
é o conforto do lar. Enfim, o que é uma casa se não a metáfora da
apropriação do espaço, da domesticação da malha urbana, da per-
sonalização do infinito e inútil propagar-se do espaço e do tempo
em todas as direções de forma igual?

Nesta perspectiva, os objetos, que foram mostrados e fotografados, são


os frágeis apoios da vida emotiva e doméstica de quem flutua na inde-
terminação e na precariedade – objetos que estão agarrados às paredes
de madeira, humildes, frágeis à beira do desalojo e da reintegração.

Figura 12 O Sr. João foi o único que quis ser fotografado e identificado
em sua casa e perto dos objetos para ele mais importantes.
Fonte: Acervo particular do autor.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

181

Figura 13 Interior de moradia e objetos relevantes – Nova Liberdade III.


Fonte: Acervo da aluna Lídia de Oliveira Matos

Figura 14 Objetos relevantes – Nova Liberdade III.


Fonte: Acervo da aluna Ana Luísa Nobre
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

182

Figura 15 Objetos relevantes – Nova Liberdade III.


Fonte: Acervo da aluna Ana Luísa Nobre

Figura 16 Objetos relevantes – Nova Liberdade III.


Fonte: Acervo da aluna Lídia de Oliveira Matos
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

183

Figura 17 Objetos relevantes – Nova Liberdade III.


Fonte: Acervo da aluna Ana Luísa Nobre

Escolhemos representar os objetos domésticos por serem metáfora


potente do que é casa e, também da fragilidade da “casa” na Nova
Liberdade. Mas, também, de como “casa” em Nova Liberdade é tão
extraordinariamente próxima na sua essência à “casa” onde todos
vivemos, aqueles sapatos, o orgulho pelos eletrodomésticos, o ba-
tom; os utensílios da cozinha, as panelas..

O mundo da arte contemporânea tem demonstrado particular inte-


resse nos bairros autoconstruídos, nas comunidades periféricas e na
sua vivência. A exposição “The Structure of Survival” na 50ª Bienal de
Veneza, em 2003, curada pelo argentino Carlos Basualdo, escolheu a
“favela” como tema guia, incluindo 25 artistas internacionais, entre os
quais: Francis Alÿs, o angolano António Ole e Marjetica Potrc.

Todavia, no projeto “Nova Liberdade III”, a exploração das comuni-


dades periféricas não se traduziu numa abordagem estetizante e
voyeurista (Dezeuze, 2006): etnografia e arte devem ser repensadas
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

184

em conjunto, como elementos que ao mesmo tempo suscitam a


relação interpessoal e possibilitam as condições da produção do
conhecimento (Mjaaland, 2009).

Nesse sentido, interessa-me explorar, nos meus cursos, a relação


entre intervenções artísticas/visuais em contextos urbanos e a prá-
tica de uma antropologia pública e engajada. Para além do objeti-
vo etnográfico, o projeto visou portanto investigar a possibilidade
de uma arte pública crítica, no sentido de uma forma de ativismo
artístico baseado na pesquisa antropológica e que se traduza em
intervenções, cujo objetivo é interrogar o ordenamento urbano, in-
tervindo no espaço polifônico e polissêmico da cidade contempo-
rânea (Canevacci, 2004; Lacy, 1995).

O projeto “Nova Liberdade III”, portanto, na sua fase conclusiva, de-


finiu realizar concretamente uma ação pública – um tipo de ação
artística etnography-based (Bordonaro, 2013a; 2013b) que se situe
entre uma applied visual anthropology (Pink, 2009a) e a arte pública
participativa (Jackson, 2011; Lacy 1995), alterando e perturbando os
circuitos segmentados da cidade contemporânea, promovendo ao
mesmo tempo um cruzamento entre os espaços da academia e da
arte contemporânea. “Nova Liberdade III” configura-se, assim, como
uma intervenção que altera e sobrepõe os percursos físicos da arte,
da pesquisa acadêmica e da intervenção social, no espaço da cidade.

Esta área interdisciplinar representa uma das frentes mais interes-


santes no desenvolvimento contemporâneo da antropologia visual
e ao mesmo tempo da arte contemporânea. De fato, as novas ten-
dências da “arte pública” apontam para a centralidade da relação e
do diálogo no seu processo de criação, não só “para o próprio futuro
da arte pública mas para o discurso entre a arte, o artista, a audiên-
cia, e a sociedade” (Raven, 1993, p. 2).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

185

A arte pública de intervenção comunitária, conceito que estou a de-


senvolver e interrogar do ponto de vista prático e teórico durante
a minha permanência na UFS, é um tipo de prática artística basea-
da no diálogo e na colaboração entre os artistas e as comunidades.
Esta nova tendência chegou a ser conhecida por new genre public
art na expressão de Suzanne Lacy, para marcar um novo espírito de
intervenção artística (Lacy, 1995; Miles, 1997; Cartiere e Willis, 2008).

Este tipo de arte pública introduziu um elemento profundamente


novo na forma como se entende a arte pública. O significado, ou
o valor artístico da obra, deixou de residir no próprio objeto para
passar a manifestar-se num processo de interação social que resulta
da relação entre o artista e o público.

Um dos aspectos que melhor identifica este tipo de intervenção é o


fato de privilegiar, sobretudo, os aspectos sociais, em lugar de apre-
ciar apenas a sua condição estética (Regatão, 2007, p. 117). Isto sig-
nifica que é mais importante o processo como ocorre a experiência
coletiva, do que propriamente o trabalho final.

É certo que o objetivo desta forma de arte pública é criar mecanis-


mos de intervenção que envolvam a participação do público, esta-
belecendo uma relação de cooperação e parceria entre o artista e a
comunidade, desencadeando assim transformações na sociedade.
Este tipo de arte pública induz a participação do público, substi-
tuindo a materialidade do objeto artístico por um processo de tra-
balho interativo, através do qual se estabelece uma aproximação
real entre a arte e a vida – mais do que evidente a proximidade des-
te processo com a prática etnográfica.

Apesar do debate e das numerosas críticas que têm sido levantadas


à instrumentalização da arte e dos artistas pelos estados, com vista
a promover projetos de “inclusão social”(Lind, 2014; Bishop, 2006;
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

186

2012), projetos que assentam em pesquisas etnográficas autôno-


mas na construção de uma relação de viés antropológica, poderão
continuar a ter um papel crítico e político, quando não diretamente
pautadas com as agendas sociais dos estados, e mantenham a sua
autonomia e potencial de denuncia social.

Seguindo estas reflexões, com a conclusão do projeto foi organiza-


da uma exposição pública dos resultados do processo de pesquisa
que se configurou como uma exibição experimental (Macdonald e
Basu, 2007), onde etnografia e arte se cruzam numa afirmação po-
lítica. A instalação “Nova Liberdade III. Fragmentos de vida, arte e
etnografia” foi montada na Galeria Florival Santos no Centro de Arte
e Cultura (CULTART), da UFS, escolhido pela sua posição central em
Aracaju, na zona “nobre” da cidade.

A alternativa não foi casual: como no projeto Ghetto Six que realizei
em Lisboa, baseado na pesquisa no bairro Cabo-verdiano 6 de Maio
(Bordonaro, 2013a; 2013b), um dos objetivos da intervenção/insta-
lação foi questionar a segmentação espacial do território urbano:
levando a periferia para o centro, a instalação visou proporcionar
uma meditação sobre o quotidiano, a precariedade habitacional, a
estética da autoconstrução, a cultura material e o próprio processo
etnográfico na ocupação Nova Liberdade III.

Além disso, “Nova Liberdade III. Fragmentos de vida, arte e etno-


grafia” tentou contrastar a invisibilidade e a naturalização deste e
de outros fenômenos parecidos que acontecem nas periferias das
cidades, solicitando aos gestores políticos para proporcionar solu-
ções eficazes e duradouras ao problema habitacional.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

187

Figura 18 Montagem da instalação “Nova Liberdade III”, no CULTART.


Fonte: Acervo da aluna Ana Luísa Nobre

Figura 19 Montagem da instalação “Nova Liberdade III”, no CULTART.


Fonte: Acervo da aluna Rhaiza Bomfim do Nascimento
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

188

Figura 20 Cartaz da instalação “Nova Liberdade III”.


Elaboração gráfica de Fernando Marinho e Thayane Rocha

A instalação inclui dois elementos centrais, todos relacionados com a


opção narrativa de focar o tema da “casa” como objeto construído e
como espaço de conforto e intimidade. Por um lado, uma seleção de
63 fotografias de objetos e espaços domésticos de autoria dos alunos
do curso, retratando a cultura material do quotidiano, segundo o pro-
cedimento descrito anteriormente, forma compostos num mosaico
(figuras 22, 24, 25). Por outro lado, a uma inteira parede da galeria do
CULTART foi sobreposta uma estrutura em madeira construída como
uma parede de barraco (figuras 19, 26), utilizando a mesma técnica
construtiva aprendida durante o processo etnográfico, e utilizando
os materiais utilizados na construção dos barracos da Nova Liberda-
de, adquiridos no mesmo lugar onde são comumente compradas as
madeiras, no Bugio, em proximidade da ocupação (figura 21).

Além deste dois elementos principais, e para salientar o aspecto


de pesquisa que fundamentou a inteira ação artística, páginas dos
nossos diários de campo foram também exibidas, revelando e do-
cumentando o processo etnográfico subjacente (figura 23) .
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

189

Figura 21 Lorenzo Bordonaro recuperando materiais para a instalação “Nova Liberdade III”.
Fonte: Acervo da aluna Rhaiza Bomfim do Nascimento
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

190

Figura 22 Instalação “Nova Liberdade III” no CULTART (pormenor).


Fonte: Acervo particular Javier Valado

Figura 23 Instalação “Nova Liberdade III” no CULTART (pormenor).


Fonte: Acervo particular Javier Valado
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

191

Figura 24 Instalação “Nova Liberdade III” no CULTART (pormenor).


Fonte: Acervo particular Javier Valado

Figura 25 Instalação “Nova Liberdade III” no CULTART (pormenor).


Fonte: Acervo particular Javier Valado
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

192

Figura 26 Instalação “Nova Liberdade III” no CULTART (pormenor).


Fonte: Acervo particular Javier Valado

Figura 27 Instalação “Nova Liberdade III” no CULTART (pormenor).


Fonte: Acervo particular Javier Valado
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

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RETORNAR AO SUMÁRIO
Josué Felipe Silva Maia

Interdições do incesto – Lévi-


Strauss e suas considerações
sobre Freud e a História
Prefácio de Ugo Maia Andrade
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

197

Prefácio
Ugo Maia Andrade123

O tema das relações entre ritual e neurose gerou ao menos dois


trabalhos clássicos nas Ciências Humanas dos últimos cento e vin-
te anos: Esboço de uma teoria geral da magia (MAUSS & HUBERT,
2003), e Totem e Tabu (FREUD, 1996). No primeiro, Mauss & Hubert
defendem que é a condição socialmente marginal do “mágico” (ou
do “xamã”, do “feiticeiro” ou ainda do “louco”, dá no mesmo) que o
sustenta como uma autoridade, no seu grupo social, em assuntos
atinentes à comunicação com mundos extra-empíricos. Mauss &
Hubert por certo avançam em relação à tese de Frazer, segundo a
qual a religião é a filha promissora da magia, superando em racio-
nalidade sua progenitora (FRAZER, 1982), mas, não obstante apos-
tarem no construcionismo social em sua “sociologia do louco”, foi
necessário esperarmos por Foucault para, descontruindo o velho
construcionismo, descontruir a própria noção de estados patológi-
cos (FOUCAULT, 1978).

No segundo trabalho, Freud, dialogando com a etnografia disponível


em sua época sobre povos originários australianos e com a sociologia
da religião de Durkheim, afirma ser a neurose reminiscência de even-
tos precípuos responsáveis pela fundação da cultura, da sociedade,
da religião e da psique humana. Tais eventos conectam-se ao “horror
do incesto” tão eloquentemente manifesto, segundo Freud, entre os
“povos mais primitivos”, especialmente aqueles cuja morfologia so-

123 Professor do Depto de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em


Antropologia da UFS.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

198

cial está baseada em clãs totêmicos. Refiro-me à passagem, presente


no Capítulo IV de Totem e Tabu, na qual Freud abdica de qualquer
explicação sociológica, biológica ou psicológica para o horror ao in-
cesto a fim de propor uma explicação psicanalítica que, partindo de
(supostos) fatos histórico-evolutivos, recorre a casos clínicos para, en-
tão, retornar aos fatos e iluminar uma conclusão sobre eles:
[...] não há lugar para os primórdios do totemismo na horda
primeva de Darwin. Tudo o que aí encontramos é um pai
violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para
si próprio e expulsa os filhos à medida que crescem [...]
Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram
juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim
um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem
de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido
impossível fazer individualmente. (Algum avanço cultural,
talvez o domínio de uma nova arma, proporcionou-lhes
um senso de força superior.) Selvagens canibais como
eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas
também devoravam a vítima. O violento pai primevo fora
sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do
grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam
a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma
parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais
antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição,
e uma comemoração desse ato memorável e criminoso,
que foi o começo de tantas coisas: da organização social,
das restrições morais e da religião (ib., p. 91).

Há aqui uma dupla revelação: 1- a sociedade surge de um crime de


sangue, o parricídio original, que põe em evidência o imperativo
da ordem no plano social, da expiação no plano religioso/moral e
da ambivalência no plano psíquico e; 2- o destino do homem será
trazer para si a tarefa perpétua de, com a cultura, frear o impulso
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

199

destrutivo da libido, reprimindo-o sistematicamente por meio de


comportamentos padronizados e das instituições sociais que, no
entanto, lograrão êxito restrito. Todavia, não podemos dizer que a
proibição do incesto seja a primeira ferramenta repressora da libi-
do, uma vez que ela está na origem da própria psique humana onde
a libido se radicará como estrutura e força latente.

A explicação histórico-evolutiva do assassinato do pai no seio da


horda primitiva justificaria a universalidade do complexo de Édipo,
pois, lastreado no evento fundante do social, da religião e da pró-
pria psique humana, terá de estar presente em todo lugar. Mas será
que para Freud os “eventos” do assassinato original possuem o es-
tatuto de fatos? Será que o complexo de Édipo é de validade geral,
subsistindo às variações da cultura?124 É aqui que entra o esforço
da dissertação125 de Josué Felipe Maia, apresentada nesta coletânea
sob a forma sintética de um artigo, em extrair coerentemente as li-
nhas de diálogo entre Freud e Lévi-Strauss, não apenas atinentes às
formulações de ambos sobre o inconsciente, mas às suas posições
quanto ao sujeito, à história e à origem da proibição do incesto.

No que concerne a este último ponto, Josué Maia recupera, de ma-


neira competente, as posições de Freud e Lévi-Strauss que, conver-
gindo em não serem explicações de ordem sociológica, irão diver-
gir em praticamente todo o resto. Dessa forma, o trabalho de Josué

124 Em “Totem e Tabu”, versão Jivaro (LÉVI-STRAUSS, 1986), o autor mostrará que
a codificação sexual adotada por Freud é insuficiente para produzir inteligi-
bilidade, tendo o complexo de Édipo como referência, a mitos ameríndios e
mesmo a versões originais do mito de Édipo.
125 Defendida em 30 de março de 2016, no PPGA/UFS, sob o título Claude Lévi-Strauss
e suas relações com a obra de Sigmund Freud e diante de banca examinadora cons-
tituída pelos professores Daniel Menezes Coelho (Departamento de Psicologia e
PPGPS/UFS), Hippolyte Brice Sogbossi (Departamento de Ciências Sociais e PPGA/
UFS) e eu, na qualidade de orientador.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

200

Maia se insere no importantíssimo terreno da Teoria Antropológica


e faz a opção, simultaneamente incomum e relevante, por abordar
as influências contrastantes da psicanálise freudiana sobre o estru-
turalismo, mostrando o quão fundamental foi para Lévi-Strauss se
posicionar diacriticamente em relação ao pensamento freudiano
para construir seu próprio pensamento. Com isso, a dissertação de
Josué Maia soma-se aos trabalhos – ainda algo acanhado no Brasil –
que buscam evidenciar e refletir a respeito das relações, diálogos e
ruídos entre antropologia e psicanálise, dois empreendimentos que
têm em temas como alteridade, sujeito, cognição, estrutura e repre-
sentação razões tanto para balbúrdias quanto para indulgências.

Mas, no campo das dissensões entre psicanálise e antropologia,


Josué Maia mostra-nos que Lévi-Strauss não está para Freud assim
como Marx estaria para Hegel, isto é, numa (quase) relação de sime-
tria inversa capaz de – preservando a natureza sistêmica do pensa-
mento – conturbar suas premissas iniciais. E já que falei em sistema,
podemos considerar que para Lévi-Strauss e Freud o ponto inicial
de seus sistemas é o problema da proibição do incesto, assunto so-
bre o qual Josué Maia dedicará boas páginas de seu artigo e que
merece aqui um parêntese.

Primeiramente, é necessário sublinhar que Freud e Lévi-Strauss se


interessam, no plano etnográfico, não pelo incesto propriamente,
mas pelas formas sociais que vigiam a sua não efetuação de manei-
ra muito mais ostensiva e intensa que as instituições incumbidas
em desencorajar e coibir o homicídio: para a sociedade em geral,
portanto, matar seria um problema lógico menor que a presença
de relações incestuosas em seu seio. As explicações para a causa
da preeminência do incesto dentre as preocupações filosóficas de
toda e qualquer sociedade constituem o parâmetro precípuo so-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

201

bre o qual, de um lado, Lévi-Strauss lastreará a sua teoria da aliança


e, de outro, Freud erguerá a psicanálise, permitindo confrontar as
epistemologias que estão por trás destes dois brilhantes esforços
analíticos de entendimento da cultura e da sociedade. Mas, se para
Freud a proibição do incesto é um assunto que remete às origens da
estrutura da psique individual – fundando o sujeito moderno como
baluarte de forças, às vezes, terríveis, mas perfeitamente inteligíveis
– para Lévi-Strauss será tratado como fundamento do social, por ter
permitido lograr o princípio de reciprocidade:
A proibição do incesto é menos uma regra que proíbe
casar-se com a mãe, a irmã ou a filha do que uma regra
que obriga a dar a outrem a mãe, a irmã ou a filha. É a
regra do dom por excelência. É realmente este aspecto,
frequentemente demasiado desconhecido, que
permite compreender o caráter dela. Todos os erros
de interpretação da proibição do incesto derivam da
tendência a ver no casamento um processo descontínuo,
que tira de si próprio, em cada caso individual, seus limites
e possibilidades (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 522).

E o que são os sistemas de parentesco – motivados pelo princípio de


reciprocidade advindo com a complementação da regra da proibição
do incesto pela exogamia – se não formas múltiplas de classificar pes-
soas entre casáveis e não casáveis, consanguíneos e afins potenciais?
Assim, Lévi-Strauss encerra e inicia As estruturas elementares do paren-
tesco justamente com o problema do incesto, reforçando, ao longo e
ao cabo, o seu ponto de vista diacrítico em relação à posição de Freud
sobre o assunto. E claro está que Lévi-Strauss vê imperativo de ordem
lógico-classificatória onde Freud vê a atuação das potentes forças li-
bidinais, prescrevendo a primazia dos processos cognitivos univer-
sais sobre as pulsões sexuais e definindo a anterioridade do “espírito
humano” sobre o sujeito psíquico.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

202

Foi para defender e desenvolver este ponto de vista que ele dedi-
cou-se a escrever uma obra como O pensamento selvagem, publica-
da treze anos após a primeira edição de As estruturas elementares
do parentesco, encerrando um ciclo de diálogo com Freud que teria
ainda em textos como “Totem e Tabu” versão jivaro (1986) e História
de lince (1991) importantes desdobros.

Em segundo lugar, se Lévi-Strauss demonstra certo fascínio pela or-


dem no domínio do inconsciente, adotará, novamente, um ponto de
vista divergente em relação a Freud sobre o que é esse inconsciente,
pois ao identificá-lo vaga e genericamente com e como o “espírito hu-
mano”, Lévi-Strauss dissolve o sujeito da psicanálise e transforma o in-
consciente freudiano em pura ordem, fazendo com que ele deixe de
ser “[...] o inefável refúgio das particularidades individuais, o depositário
de uma história única, que faz de cada um de nós um ser insubstituível”
(LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 324). Estará assim justificada a sua emble-
mática metáfora do estômago alheio aos alimentos que nele caem
como forma de ilustrar a relação do inconsciente (o estômago) com
termos que a ele chegam do subconsciente para serem ordenados
em discursos simbólicos inteligíveis (ib., p. 324 – 325).

Josué Maia descreve muito bem este ponto capital nas oposições
entre Lévi-Strauss e Freud, acentuando o fato de o inconsciente do
primeiro ser “vazio” e, assim, não definido por conteúdos funda-
mentais socialmente reprimidos por meio da regra da proibição do
incesto e outros artefatos morais. Esta regra é o avatar do princípio
do dom (vide a última citação) e não se reporta a nenhuma outra
situação que não seja à sentença de organizar toda e qualquer re-
lação social humana com base nele, aspecto sintetizado por Josué
Maia ao concluir que:
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

203

Temos aqui, portanto, da parte de Lévi-Strauss, a proibição


do incesto não como um imperativo de um conteúdo
presente em todos os sujeitos que deve levá-lo ao encontro
e possível reconhecimento de uma Lei castradora; o que se
tem, na visão do antropólogo, é a ação estrutural de um
imperativo da reciprocidade (MAIA, prelo).

Esse conteúdo universal do qual fala Josué, em alusão a Lévi-Strauss,


está presente no pensamento freudiano sob a forma sintética daquilo
que ele chamou de “complexo de Édipo” e que se revela, ao psicana-
lista, como discurso simbólico que emerge do próprio inconsciente,
posto que é lá que estão os desejos, as pulsões e emoções basila-
res da psique humana e que remetem ao ato fundante do parricídio
original. Como bem sabemos, o psicanalista pode decodificar tal dis-
curso simbólico porque conhece, de antemão, que ele é modelado
segundo a lógica da antítese afetiva, fonte de inspiração para a lógica
binária do estruturalismo que dela procurará extrair uma racionalida-
de subjacente e universal que confronta o caos aparente das mani-
festações particulares no nível empírico:
A obra de Freud mostrava-me que estas oposições
(racional X irracional, intelectual X afetivo, lógico X pré-
lógico) não o eram realmente, uma vez que as formas
de conduta aparentemente mais afetivas, as operações
menos racionais, as manifestações consideradas pré-
lógicas, são precisamente as mais significativas (LÉVI-
STRAUSS, 1993, p. 49-50 – parênteses acrescentados).

Retornando ao problema do incesto, Lévi-Strauss considera sua


proibição a regra social por excelência e o veículo por meio do qual
a natureza ultrapassou a si mesma e “criou” a cultura como um com-
plexo estrutural inédito (LÉVI-STRAUSS, 1982, p. 63). A relação entre
ambas é, assim, de transformação que, definitivamente, não é moti-
vada por razões biológicas que visariam evitar resultados genetica-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

204

mente nefastos da união sexual entre consanguíneos, uma vez que


a regra da proibição do incesto incide, inclusive, sobre consanguí-
neos classificatórios (especialmente primos paralelos bilaterais).126

Essa célebre formulação, que Lévi-Strauss desenvolve nos quatro


primeiros capítulos de As estruturas elementares do parentesco, é
apenas o ponto de partida para sua teoria da reciprocidade apre-
sentada como teoria da aliança, mas para que a aliança viesse a se
tornar um modelo de relação lastreado na circulação de mulheres
entre grupos sociais diferentes, foi necessária a imediata emergên-
cia da exogamia como seu corolário. Josué Maia não deixa de notar
a influência que a teoria da reciprocidade de Marcel Mauss, no En-
saio sobre a dádiva, exerceu sobre o pensamento de Lévi-Strauss:
“Para defender esta posição, Lévi-Strauss invoca a noção de trocas
totais do cientista social francês Marcel Mauss, que caracterizará de-
terminadas trocas por serem supraeconômicas, ao contrário de meras
operações comerciais”.

Foi no Ensaio sobre a dádiva: forma e razão das trocas nas sociedades
arcaicas que Lévi-Strauss encontrou o ensejo para pensar os inú-
meros atos de reciprocidade de forma sintética, uma vez que reco-
nhece em Mauss o primeiro a buscar atingir “realidades mais pro-
fundas” que permitissem reduzir a diversidade empírica a algumas

126 Inúmeras vezes Lévi-Strauss chamou a atenção para o fato dos parentes con-
sanguíneos não constituírem uma classe natural, posto que “sangue” – en-
quanto definidor de consanguinidade – é classificação cultural e não dado
biológico. Por conseguinte, em vários sistemas terminológicos, como no dravi-
diano, o primo paralelo (filho da irmã da mãe ou do irmão do pai) é interdito ao
matrimônio, ao passo que o primo cruzado (filho da irmã do pai ou do irmão
da mãe) é o conjugue preferencial.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

205

poucas regras combinatórias (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 30).127 Mas, é


nas leis do pensamento simbólico, sempre a gerar um “excedente
de significação”, que Lévi-Strauss encontrará a oportunidade para
avançar a partir do ponto em que Mauss parou, propondo ao mana
o caráter de um significante flutuante, “[...] um valor simbólico zero,
isto é, um signo que marca a necessidade de um conteúdo simbólico
complementar àquele que pesa já sobre o significado, mas que pode
ser um valor qualquer [...]” (LÉVI-STRAUSS, 2003,p. 43).

Com efeito, este excedente de significação que seria próprio do


pensamento humano, mas que estaria melhor representado nos
mitos, é o que lastreia a propriedade indutora dos símbolos evoca-
da por Lévi-Strauss em A eficácia simbólica (LÉVI-STRAUSS, 1975, p.
233); ou ainda – como defende em O pensamento selvagem – que
suporta a lógica sintética do signo que, unificando imagem e con-
ceito, possibilita ao pensamento mítico edificar as estruturas do
conhecimento como mosaico de fatos (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 30).

O simbólico será, portanto, o fio de Ariadne, o modo pelo qual as


estruturas se desmancham para, lá na frente, tecerem-se de novo,
ao modo de uma variação em torno do mesmo tema; pois o próprio
inconsciente, limitando-se a impor leis estruturais (LÉVI-STRAUSS,
1975, p. 235), “[...] se reduz a um termo pelo qual nós designamos
uma função: a função simbólica, especificamente humana, sem dú-

127 Note-se, entretanto, a discordância de Lévi-Strauss (2003) quanto às conclu-


sões de Mauss em torno das obrigações do dar-receber-retribuir interpretadas
à luz de “conceitos nativos” como hau e mana: “A troca não é um edifício com-
plexo, construído a partir das obrigações de dar, de receber e de retribuir, com
o auxílio de um cimento afetivo e místico. É uma síntese imediatamente dada
ao e pelo pensamento simbólico que, na troca como em qualquer outra forma
de comunicação, supera a contradição que lhe é inerente de perceber as coisas
como elementos do diálogo, simultaneamente relacionadas a si e a outrem, e
destinadas por sua natureza a passarem de um a outro” (ib.: 40-41).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

206

vida, mas que em todos os homens se exerce segundo as mesmas


leis; que se reduz, de fato, ao conjunto dessas leis” (ib.: 234).

Todavia, se o simbólico é produção humana, a recíproca é verdadei-


ra e o homem é produto do simbólico: e não estou falando de pro-
duto em termos “simbólicos”, no sentido, bem conhecido de Geertz,
do homem estar preso a uma teia por ele mesmo tecida. A teia do
simbólico não pode ser meramente “tecida” por nós simplesmen-
te porque nossa capacidade para “tecer” qualquer coisa que seja
já é uma habilidade simbólica e, sendo assim, teríamos de assentir
uma total independência do simbólico em relação a nós mesmos.
Portanto, o simbólico tem que ser metassocial e, simultaneamente,
uma função melhor expressa no e pelo comportamento humano.

Deixei para o final o ponto alto – e também o mais instigante e con-


troverso – do trabalho de Josué Maia: as proposições de Freud e Lé-
vi-Strauss sobre a “história” como forma de entendimentos díspares
a respeito do parricídio original. Trata-se aqui de, por meio de uma
sofisticada argumentação, mais palatável para aqueles que ultrapas-
saram os estágios iniciáticos da teoria psicanalítica freudiana, de-
monstrar o esforço de Freud em construir uma epistemologia para
a psicanálise baseada na noção de construções em análise. Conforme
Josué Maia, é necessário reconhecer que o inconsciente opera com
um registro específico de temporalidade que pode ser manipulado
pelo analista, “[...] entregando ao paciente uma estória como história”,
a fim de facultar permutas de conteúdos reprimidos por ações con-
gruentes com uma situação psiquicamente madura. Esta noção de
temporalidade contrastaria com a temporalidade como história – isto
é, factual e linear – adotada pelo próprio Lévi-Strauss:
Quando o estruturalista pensa uma História que tem por
pressuposto um factualismo intransigente para se impor
cientificamente, não está anulando o reconhecimento de
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

207

outras historicidades, modos de se relacionar com e narrar


o tempo que variam culturalmente e que têm também
por elemento constitutivo o olhar de uma cultura sobre a
outra (MAIA, prelo).

Diante do contraste entre os modelos de temporalidades assumi-


dos por Freud e Lévi-Strauss, Josué Maia volta ao ponto precípuo
comum a ambos, procurando iluminá-lo como uma nova questão:
“Como a verdade histórica aparece no edifício psicanalítico e qual
seria sua importância para a legitimidade do mito científico en-
quanto ponto de partida de toda uma teoria social fundamentada
na cena do parricídio original?”.

Recorde-se que buscar a correta percepção de Freud quanto ao


modelo de temporalidade que está por trás do parricídio original
permite melhor compreender qual a origem e natureza dos con-
teúdos reprimidos e encapsulados no inconsciente e como a teoria
psicanalítica – enquanto técnica de transferência e ab-reação – bus-
ca lidar com eles. O parricídio original seria, assim, não uma cena
factual pretérita, mas uma reconstrução com finalidade terapêutica:
[...] teríamos que o ter-estado-lá na análise consistiria
justamente nos fragmentos do evento que porta o
material mnemônico, no entanto a metapsicologia
freudiana reconheceria a impossibilidade de lhe conferir
autenticidade e independência, por entendê-lo como
sujeito às séries de contingências devidas à própria
evolução da história do indivíduo em análise, ou, dito
de outra forma, pelas deformações no que foi de fato de
vivido, deformações consequentes da “perspectiva de um
sujeito que já não se é (MAIA, prelo).

Ao abordar conceitos fundamentais para a psicanálise freudiana,


tais como construções em análise e verdade histórica (vide a próxima
citação), Josué Maia nos permite formular duas questões profun-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

208

damente inquietantes: 1- Qual é, para a psicanálise freudiana, o es-


tatuto da realidade? 2- Não estaria Freud – ao fornecer ao paciente
uma estória construída a partir de fragmentos de fatos biográficos,
mas manipulados com vista a uma totalidade (a ordem psíquica) –
agindo exatamente como um bricoleur e, portanto, edificando a psi-
canálise como um mito?128 No que concerne à primeira pergunta,
podemos buscar uma resposta (ainda que provisória) na seguinte
passagem do ensaio de Josué Maia:
[...] vemos retornar uma chave para situar a importância, para
Freud e a composição de seu Totem e Tabu, que teriam os fatos
e a sua sistematização em sequência como foi reclamado
por Lévi-Strauss no sentido de validar a ‘explicação de certos
traços atuais do espírito humano’. Esta chave seria a noção
de verdade histórica [...] Freud transforma a verdade em que
criam os crentes piedosos numa verdade histórica a partir do
momento em que lhe confere o caráter de deformação de
uma suposta verdade material que emerge e é submetida a
tal deformação tal qual o processo que fora afirmado acerca
do delírio (MAIA, prelo).

Esse processo de transformação da verdade do neurótico em verda-


de histórica acionado pelo analista replica, em certo sentido, a de-
formação e transferência, realizada pelo próprio sujeito psíquico, de
contextos verídicos (isto é, factuais) como forma de autoproteção,
conforme sugere Josué em seu ensaio. E por que a construção de
verdades históricas pelo analista, e sua subsequente devolução ao
paciente, funciona enquanto técnica terapêutica?

Eu arriscaria dizer que o único motivo pelo qual logra êxito é por-
que é familiar ao paciente, embora ele não saiba disso, pois se tra-
ta, no caso dos delírios, do inconsciente agindo sobre um núcleo

128 Quanto a tal questão, veja a resposta de Lévi-Strauss (1986: 236-238).


Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

209

possivelmente factual, denso e traumático e o reelaborando, sem


alimentar a memória com qualquer registro de sua ação. O processo
de deformação de uma verdade material inventa imagens que, no
nível profundo da psique, atuariam como “verdade material”. Con-
forme sublinha Josué, as imagens são necessárias e suficientes, por
serem resultados de uma temporalidade psíquica (isto é, do incons-
ciente) paralela às temporalidades pelas quais se pauta a consciên-
cia, possibilitando um álibi de Freud em analogia à fidelidade da
psicanálise ao domínio do fato e da materialidade.

Sendo assim, não seriam as próprias imagens o equivalente lógico,


o análogo das verdades materiais do nível empírico? E, por sua vez,
não seriam as verdades materiais do nível empírico o equivalente vi-
vido (evocando o jargão que Merleau-Ponty usa para se referir às
estruturas de Lévi-Strauss) das imagens do nível profundo da psi-
que? E ainda: qual a finalidade epistêmica da deformação de uma
verdade material e construção de verdades históricas?

Ao construir verdades, o analista não faz um processo reverso ou


caminha ao contrário coletando migalhas de memória a fim de ofe-
recê-las ao paciente, articuladas na forma de um bom banquete. O
que está em jogo são os labirintos do simbólico, os voos alçados da
significação e, ao fim, o que quer dizer “verdade” para a consciência
e o inconsciente humanos. Diante disso:
Aqui trazemos novamente a questão do inconsciente
estruturado como linguagem. O que se pode perceber
é a desvinculação do acontecimento da realidade
material. Para tanto, foi necessário admitir que a verdade
do acontecimento “se fundaria apenas no registro dos
signos e não mais no das coisas” (BIRMAN, 2003, p. 36). O
trauma materialmente real deixaria de se configurar como
substrato absoluto da produção da neurose e as palavras
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

210

se tornariam mais autônomas, pois no movimento de


encadear-se remetendo-se umas às outras, a carga de afeto
que caracterizava o trauma se orientava então à realidade
psíquica, ao evento na dimensão do símbolo (MAIA, prelo).

Josué Maia esclarece que, em Totem e Tabu, “[...] o pai da psicanálise


produz então um núcleo de verdade histórica através de tal cons-
trução a fim de lograr uma premissa fundamental para o seu cons-
tructo clínico-teórico”. Eis a explicação derradeira para o parricídio
original: um mito – sem descolar por inteiro da factualidade – do
onde partem as fundações da psicanálise. Portanto, as preocupa-
ções histórico-evolutivas de Freud em torno da horda primitiva ins-
pirada em Darwin possui apenas importância residual, posto que é
o palco da temporalidade das imagens que encontra-se iluminado
a fim de receber a cena do assassinato do pai primevo.

Por fim e no que concerne às questões supra sobre as homologias en-


tre imagens e verdades materiais, nível empírico e nível psíquico – o que
poderíamos formular como imagens – verdades materiais, nos níveis
empírico e psíquico, – certamente podemos buscar na noção de reor-
ganização estrutural de Lévi-Strauss (1975, p. 233) subsídios para res-
pondê-las, uma vez que é a partir de tal noção que Lévi-Strauss irá
explicar tanto a cura xamanística quanto a cura psicanalítica.

Estamos novamente no movimento pendular que ora aproxima, ora


distancia Lévi-Strauss de Freud e que Josué procura mapear em seu
ensaio. E no quase infindável terreno da função simbólica encontra-
mos fractais desse deslocamento por teses e antíteses representadas
tanto por proposições do tipo defesa de uma síntese imagem-concei-
to pelo pensamento mítico (LÉVI-STRAUSS, 1989), quanto pela defesa
da ideia de que “[...] pulsões, emoções, o fervilhar da afetividade” não
são forças primevas, pois “[...] irrompem em um cenário já construído,
arquitetados por imposições mentais” (LÉVI-STRAUSS, 1986, p. 249).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

211

Referências
FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo:
Perspectiva, 1978.

FRAZER, James George. O ramo de ouro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar


Editora, 1982[1911].

FREUD, Sigmund. Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1996 [1913].

LÉVI-STRAUSS, Claude. “A eficácia simbólica”. In: Antropologia estrutural.


Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

LÉVI-STRAUSS, Claude. As estruturas elementares do parentesco. Petró-


polis: Vozes, 1982.

LÉVI-STRAUSS, Claude. “‘Totem e tabu’ versão jivaro”. In: A oleira ciumen-


ta. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, p. 229-253.

LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 1989.

LÉVI-STRAUSS, Claude. História de lince. São Paulo: Brasiliense, 1991.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70, 1993.

LÉVI-STRAUSS, Claude. “Introdução à obra de Marcel Mauss”. In: MAUSS, Mar-


cel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 11-46.

MAIA, Josué Felipe. “Interdições do Incesto – Lévi-Strauss e suas considera-


ções sobre Freud e a História”. In: Lorenzo Bordonaro & Ugo Maia Andrade
(orgs) Aprendendo Antropologia em Sergipe. Experiências de pesqui-
sa e de ensino. Aracaju: EDUFS, Prelo.

MAUSS, Marcel & HUBERT, Henri. “Esboço de uma teoria geral da magia”.
In: MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify,
2003 [1904], p. 47-181.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

212

Interdições Do Incesto – Lévi-Strauss e suas


considerações sobre Freud e a História
Josué Felipe Silva Maia

Para que nosso empreendimento seja válido, não é necessário,


em nossa opinião, que goze durante anos, e até os mínimos
detalhes, de uma presunção de verdade. Basta que se lhe
reconheça o modesto mérito de ter deixado um problema difícil
numa situação menos ruim do que aquela em que o encontrou.
Não devemos esquecer que na ciência não pode haver verdades
estabelecidas. O estudioso não é o homem que fornece as
verdadeiras respostas; é aquele que faz as verdadeiras perguntas
(Lévi-Strauss, O Cru e o Cozido).

A Versão Freudiana
Em 12 de maio de 1913, Sigmund Freud lê para a Sociedade Psicanalíti-
ca de Viena o quarto e último ensaio que compunha seu Totem e Tabu,
obra que dialoga diretamente com a antropologia social, baseando-se
em dados etnográficos presentes em trabalhos de autores como Frazer
e Morgan, bem como nas ciências sociais, mais amplamente.

Deve-se ratificar, como o fez Domiciano (2014), que este caráter comu-
nicacional que é inaugurado a partir de tal obra entre a psicanálise e
outros saberes amplia a dimensão de uma fértil abordagem do homem,
na qual o que há de inconsciente, tanto em foro individual, quanto no
âmbito cultural é passível de uma abordagem que põe ambas as instân-
cias em relação.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

213

Não podemos deixar de lembrar que a aproximação com o evolu-


cionismo cultural ensejou críticas ao pai da psicanálise. Seja qual
for, entretanto, a pertinência de tais críticas, não se pode ignorar
o fato de ter o evolucionismo cultural igualado os homens em es-
pécie, tampouco o empreendimento de noções como a de sobre-
vivências, que aproxima residualmente primitivos e civilizados. Em
suma, não se deve tratar tal perspectiva como uma matriz inócua
de pensamento. Portanto, reconhecer uma homologia – em lugar
de uma continuidade que pode projetar ou não seus resíduos – no
que tange à constituição psíquica de “primitivos” e “civilizados”, do-
tada do mesmo “estatuto de racionalidade” e da mesma capacidade
de manipulação de símbolos, pode menos distinguir Freud dos an-
tropólogos em questão que os aproximar. Se o evolucionismo cul-
tural iguala, como já aqui mencionado, os homens em espécie, isto
pode propor que seus partidários considerassem preliminarmente
uma unidade psíquica entre aqueles.

Polêmicas à parte, é no supracitado ensaio, O Retorno do Totemismo


na Infância, que vai aparecer a hipótese representada pela imagem
de inspiração darwiniana segundo a qual, na origem da humani-
dade, haveria hordas primitivas, cujos líderes monopolizavam des-
poticamente a copulação com as fêmeas do grupo, expulsando os
filhos machos e lhes inspirando um sentimento de ódio, cuja con-
sequência Freud declara ser, partindo de outro cientista britânico,
Atkinson, uma rebelião destes filhos contra o pai despótico que os
leva a assassiná-lo.

Após canibalizar este pai, surge entre eles um grave sentimento de


remorso que os leva veementemente a reconhecer dois interditos,
quais sejam, os que se orientam contra matar o genitor e manter
relações sexuais com suas filhas. A situação de substituição da ti-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

214

rania paterna pela fraternidade orientada pelo totem foi uma ideia
inspirada pela Antropologia de Robertson Smith. Por fim, o animal
totêmico que remetia ao pai morto era então cerimonial e coletiva-
mente devorado por estes irmãos.

A ambivalência de sentimentos por parte dos irmãos parricidas,


que caracteriza o desfecho deste mito, é tratada antes, já no segun-
do ensaio, desta vez num paralelo traçado por Freud entre os sinto-
mas presentes na neurose obsessiva e a relação do “primitivo” com
o tabu. A chave de tal aproximação seria justamente a convivência
opositora destes afetos e a relação do selvagem com o objeto, que
diz respeito ao tabu, poderia ser vista como possível antecessora
da relação do neurótico obsessivo com seu objeto. Sobre o status
mitológico de tal cena, discorre Fuks (2014):
Um mito? O espírito científico do pai da psicanálise
adiantou-se aos estudos mais modernos sobre a função
dos mitos na cultura. Segundo esses estudos, eles servem
para transmitir o ato de criação que, produzido num
passado remoto, se perpetua na história e na realidade
atual. Histórias dramáticas que autorizam os costumes,
os ritos e as crenças ou aprovam suas alterações, os mitos
estão entre a dominação e o conhecimento da natureza, e
isso lhes confere uma eficácia simbólica. De uma maneira
geral, a psicanálise rompeu com a avaliação negativa da
razão sobre o mito ao designá-lo como uma narrativa,
de alto valor social e individual, cuja função é expressar
uma verdade sobre as origens e a arquitetura do espírito
humano. O mito Totem e Tabu, conhecido como mito do
pai da horda (Urvater), dá forma ao que não se transmite
pela memória consciente: a origem do recalque primário,
berço da linguagem e da cultura. O mito faz pensar o
impensável (o terror que toca o irrepresentável), fixando a
passagem do homem pré-histórico do estado de angústia
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

215

real (Realangst) e de desamparo exterior, ao da angústia


interiorizada (expressão do temor de reviver o terror). O
mito representa a Coisa (o que excede o desejo e do que,
no entanto, o desejo procede) e finalmente sustenta a
figura do originário (familiar ao sujeito e aos fenômenos
coletivos que comportam e difundem a memória e o
esquecimento que os motivam) (p. 62-63).

Aí está o mito fundador da dimensão cultural do conteúdo universal


e mais importante do inconsciente freudiano, o Complexo de Édipo.
É dentro deste que vai se impor a Lei – a limitação ao princípio do
prazer, um “preço neurótico” para se entrar na dimensão da cultura.
Escolheu-se mais um mito – o de Sófocles – que fala de um Édipo,
filho de Laios, rei de Tebas e de Jocasta. Laios, logo no momento de
seu nascimento, ordena a morte de seu filho, que em verdade, poste-
riormente, é encontrado vivo e entregue ao rei de Corinto.

Ao saber da maldição de que seria protagonista, Édipo decide fugir


para Tebas, e neste percurso, sem o saber, acaba concretizado o que
anunciava a tal maldição – mata seu pai e casa-se com sua mãe, tor-
nando-se rei daquele lugar. Ao consultar o oráculo de Delfos, acaba
por descobrir que as personagens deste seu êxito se tratavam de
seus genitores. Assim, por ação da insuportável culpa, fura seus pró-
prios olhos e condena-se ao exílio. Freud vai então – se admitimos
uma leitura lacaniana – atribuir as estruturas psíquicas à relação que
tem o sujeito com seus pais durante esse processo de percepção
de que nunca seria legítimo tomá-los por objeto de desejo sexual.
Vê-se aí um vínculo da cena edipiana com o que está implicado no
fenômeno da castração, como bem nos lembra Lépine:
O complexo de Édipo se articula com o complexo
da castração; o menino supõe que o pai advinha sua
hostilidade e teme sua vingança. O temor do castigo e
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

216

da castração obriga a criança a renunciar à mãe, pondo


fim ao complexo de Édipo. O menino passa a identificar-
se com o falo do pai, significante privilegiado do poder
do pai e da lei, e objeto do desejo da mãe. Mais tarde,
identificar-se-á com o próprio pai (LÉPINE, 1970, p. 24).

O complexo de Édipo é então responsável pela introdução do indi-


víduo no sistema simbólico. Dota a criança de uma potência de re-
ferenciar-se e consequentemente ocupar um lugar a partir do qual
lhe é possível dizer eu, tu e ele. Assim é porque admitimos que a
ordem simbólica precede o sujeito:
O importante, para nós, é que vemos aqui o nível em que
– antes de qualquer formação do sujeito, de um sujeito
que pensa, que se situa aí – isso conta, é contado, e no
contado já está o contador. Só depois é que o sujeito tem
que se reconhecer ali, reconhecer-se ali como contador.
Lembremos a topada ingênua em que o medidor de nível
mental se esbalda com sacar o homenzinho que enuncia
– Tenho três irmãos, Paulo, Ernesto e eu. Mas é muito natural
– primeiro são contados os três irmãos, Paulo, Ernesto e
eu, e depois há o eu no nível em que se diz que eu tenho
que refletir primeiro o eu, e depois há o eu no nível em
que se diz que eu tenho que refletir o primeiro eu, quer
dizer, o eu que conta (LACAN, 2008, p. 28).

Note-se que a seleção de teses que fez Freud com o objetivo de dese-
nhar sua hipótese de origem do totemismo e da interdição do incesto
não veio sem antes, ainda no âmbito dialógico destes ensaios, refutar
explicações que ele mesmo classificou como nominalista, sociológica e
psicológica. A primeira derivaria – cada versão com suas variações mais
ou menos particulares – o totemismo da necessidade dos grupos de
se diferenciarem entre si através de nomes de animais que figurariam
como “insígnias heráldicas” passadas dos pais aos descendentes.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

217

Isto, no entanto, segundo o pai da psicanálise, não explicaria como


se vinculava a nomenclatura ao sistema totêmico. A segunda seria
composta por teses que atribuíam a origem do fenômeno em tela a
relações socioeconômicas, de modo que cada grupo seria especiali-
zado na produção e/ou consumiria com grande frequência o totem
que lhe nomearia. É nesta linha de raciocínio que há espaço para a
apreciação da ideia de Frazer sobre a cerimônia intichiuma, praticada
pela tribo australiana dos aruntas. O antropólogo britânico via tal ce-
rimônia como uma primitiva via de efetivação de trocas alimentícias
e de vantagens propiciadas pelo controle de fenômenos naturais po-
tencialmente destrutivos que variavam a depender da característica
de cada totem que designava cada grupo envolvido em tais trocas.

Isto estaria ilustrado por uma série de mitos que afirmaria ainda o an-
cestral costume de se efetuar casamentos no interior do clã totêmico.
Freud (2006a), partindo de observações de Durkheim, objeta a afir-
mação colocando os aruntas como um povo deveras sofisticado no
contexto das tribos australianas, relegando os mitos de consumo no
interior do clã a projeções geradas pelo desejo que estimularia o ima-
ginário a uma volta ao passado “tal qual o mito de uma idade de ouro”.

O terceiro conjunto de explicações, as de ordem psicológica, colo-


cava o animismo – tomado aqui como crença na atividade de al-
mas – como base originária do totemismo, de modo que Boas, por
exemplo, com base na observação dos clãs totêmicos dos índios
que estudavam, afirma que “o totem foi originalmente o espírito
guardião de um antepassado, que o adquiriu num sonho e o trans-
mitiu aos seus descendentes” (FREUD, idem). As objeções freudia-
nas a pontos de vista como este partem basicamente do fato de
que os totens eram menos herdados de indivíduos isolados do que
por designações grupais, bem como se deveria atentar, mais uma
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

218

vez, à ocasião de o estatuto primitivo dos grupos mencionados na


ilustração de tais afirmações ser bastante questionável.

Os paralelos traçados pelo psicanalista entre comportamentos dos


ditos primitivos e traços característicos das neuroses em indivíduos
contemporâneos – como timidamente mencionamos mais acima
– atravessam os ensaios que compõem o Totem e Tabu. Como no
caso da menção no último ensaio à fobia do Pequeno Hans frente a
cavalos. Esta repulsa estaria associada ao temor de que o animal
entrasse em seu quarto e o punisse como consequência dos
desejos íntimos do menino de que os cavalos por que via passar na
rua “caíssem e morressem”. Na leitura freudiana, este desejo estaria,
por deslocamento, relacionado à morte do pai. Eis, portanto, o que
queria Hans em dimensão inconsciente – que seu pai deixasse de
ser seu rival na luta pela atenção de sua mãe. Uma ilustração típi-
ca do Complexo de Édipo, cujo caminho reeditado na clínica leva
Freud (idem) a dizer:
A análise pode reconstituir os caminhos associativos
ao longo dos quais esse deslocamento se passa – tanto
os fortuitos como os possuidores de um conteúdo
significativo. A análise também nos permite descobrir
os motivos do deslocamento. O ódio pelo pai que surge
num menino por causa da rivalidade em relação à mãe
não é capaz de adquirir uma soberania absoluta sobre
a mente da criança; tem de lutar contra a afeição e
admiração de longa data pela mesma pessoa. A criança
se alivia do conflito que surge dessa atitude emocional de
duplo aspecto, ambivalente, para com o pai deslocando
seus sentimentos hostis e temerosos para um substituto
daquele [...] Assim que sua ansiedade começou a diminuir,
identificou-se com a criatura temida: começou a pinotear
como um cavalo e, por sua vez, mordeu o pai (p. 134).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

219

A referida passagem nos mostra como se dá o fenômeno que in-


titula este último ensaio, qual seja, o retorno do totemismo na
infância. A ideia de trazer este excerto reforça nosso interesse
primeiramente no fato de como se vincula o que foi vivenciado,
em termos de ambivalência de sentimentos orientados ao totem,
pelo antecessor “selvagem” a uma neurose desenvolvida em uma
criança contemporânea por ocasião de uma relação de competi-
ção e posterior identificação com seu pai – e a esta altura já pode-
mos afirmar que este indivíduo atualizaria deste modo o que fora
vivido por seus primeiros ancestrais.

Indo além disto, chamamos a atenção para o uso da ferramenta ex-


pressa através do verbo reconstituir. É fazendo uso de tal ferramenta
que Freud engendra o mito da horda primeva. Uma reconstituição
talvez implique menos a descoberta de uma sequência rigorosa-
mente factual. Não é por acaso que esta reconstituição é preparada
ao longo da obra pela invocação dos casos clínicos, até mesmo por-
que é assim que se pode conferir a característica de mito implicada
nesta história que é a de se apresentar atravessando o tempo atra-
vés de distintos conteúdos. Este é um ponto que debateremos no
último tópico deste texto.

A Versão Estruturalista
Já em 1949, Lévi-Strauss publica As Estruturas Elementares do Paren-
tesco, e em seu primeiro capítulo o autor faz uma busca pela passa-
gem da ordem natural à ordem cultural.

Depois de visitar e refutar diversas hipóteses, como a suposta ob-


servação de um estado pleno de natureza em meninos que não
foram criados por humanos, ou mesmo que seria possível obser-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

220

var este estado no dito homem primitivo – como, aliás, acreditava


Freud junto aos antropólogos evolucionistas de que se serviu – o
pai da antropologia estruturalista chega à conclusão de que o único
ponto pacífico possível seria admitir que o que fosse universal diria
respeito à ordem natural, enquanto a ordem cultural se relacionaria
com a dimensão do relativo e do particular.

Na busca do termo mediador – o termo desta transição, portanto


possível limite – era preciso encontrar um elemento que contives-
se características das duas ordens. Foi aí que Lévi-Strauss apontou
para a proibição do incesto, uma vez que, apesar de universal entre
as sociedades humanas, esta regra – fundante das demais – apre-
sentava-se sob as mais diversas configurações. Aqui invocamos as
considerações de Lépine:
Obrigando os homens a escolherem uma esposa fora
do grupo biológico, a proibição do incesto dá origem às
regras do casamento e aos sistemas de parentesco que
regulamentam a circulação das mulheres dentro do grupo.
As relações de natureza biológica são assim substituídas
por relações de natureza social que garantem a coesão e a
permanência do grupo (LÉPINE, 1970, p.25).

Tão importante quanto, neste sentido, é o que pontua Pouillon:


A proibição do incesto fornece, pois, a síntese do
particular e do geral: Les Structures élémentaires de la
parenté formulam num mesmo movimento o princípio
geral e o sistema das suas múltiplas diversificações, sem
privilegiar nem o princípio , nem a particularidade, pois
cada universo social exprime inteiramente o princípio,
se bem que não esgote evidentemente todas as suas
modalidades possíveis (2008, p. 80).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

221

Voltando ao caráter transicional da interdição do incesto, podemos


dizer que se faz melhor ilustrado no fato de tal fenômeno não se
vincular necessariamente à consanguinidade real, tendo sim como
um de seus suportes fundamentais o termo pelo qual um indivíduo
se dirige ao outro no âmbito do parentesco. Deste modo, como nos
lembra Lévi-Strauss (2012), “Isto continua verdadeiro, mesmo nos
sistemas da Oceania que permitem o casamento com uma “irmã”,
por classificação, mas distinguem imediatamente entre kave maori
“irmã verdadeira”, fakatafatafa “irmã posta de lado, take yayae “irmã
de um outro lugar”. Se não se poderia vincular esta interdição a uma
forma de evitar resultados nocivos de uma possível união consan-
guínea, seguindo-se que os termos que representam as relações de
parentesco atravessam sem se aterem necessariamente a uma rela-
ção biológica real, a proibição do incest exprimiria então a transição
entre o que haveria de natural, representado pela consanguinidade
e a dimensão cultural, onde estaria implicada a aliança.

Certas sociedades proíbem o casamento entre primos paralelos,


mas autorizam o casamento entre primos cruzados, de modo que
relações do mesmo grau de consanguinidade restam umas sob
proibição, enquanto outras constituem a regra das práticas matri-
moniais. Eis a arbitrariedade do tabu. E Lévi-Strauss (idem) nos faz
notar por via de vários exemplos como na verdade uma sociedade é
sempre mais ou menos incestuosa em relação a outra, de modo que
no antigo Egito, por exemplo, era permitida a união entre irmão e
irmã nas linhagens reais e entre burocratas e artesãos. Desta forma,
aliás, temos uma ilustração na própria mitologia daquele lugar, com
a história de Ísis e Osíris que já se amavam quando ainda no ventre
de Nut. É possível também, no entanto, observar uma multiplicação
de graus de parentesco proibidos em certas sociedades indígenas
norte-americanas. É por isto que nos lembra ainda Georgin:
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

222

También es llamativo el desinterés que suele manifestar la


regla respecto la consanguinidad biológica. La hija de la tia
paterna pertenece a las categorias prohibidas, pero no la hija
del tio materno. La hermana mayor está autorizada, la menor
no. Si se añade que el parentesco de sangre es a menudo
difícil de establecer en comunidades donde reina una amplia
tolerância sexual, se llega a la conclusión de que los grados
prohibidos dependen de un reparto clasificatorio que no
tiene nada que ver con filiación uterina (1983, p.27).

A natureza funcionaria recebendo e dando na mesma medida, o que


enuncia um caráter de equilíbrio. Seria assim com o fenômeno da he-
reditariedade, em que toda a constituição genética dos filhos está
condicionada à dos pais. Este equilíbrio deve ser aceito, no entanto,
somente em comparação aos fenômenos culturais, em que sempre
se recebe mais do que se dá e vice-versa. É assim com os processos
de educação e invenção; ou seja, a cultura introduz o elemento da
acumulação no processo de repetição que caracteriza a natureza.

De modo que o imperativo da aliança é eminentemente natural


até que apresente sua indeterminação no sentido de que seu
conteúdo, isto é, de que maneira vão se dar os arranjos entre os
cônjuges – ou, melhor ainda, como estes indivíduos capazes de
juntos originarem descendentes férteis podem ou não se torna-
rem cônjuges – deve-se à dimensão da síntese, da ordenação de
uma situação que a natureza até então deixou arbitrária – e eis aí
o início do império da cultura.

Note-se, por ora, que Lévi-Strauss (idem) centraliza entre as demais


regras esta que não mais é que a parte organizadora de uma amál-
gama que se dá junto à proibição do incesto:
Assim, pois, a exogamia deve ser reconhecida como um
elemento importante – sem dúvida como, de muito,
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

223

o elemento mais importante – desse conjunto solene


de manifestações que, contínua ou periodicamente,
asseguram a integração das unidades parciais no
interior do grupo total, e exigem a colaboração dos
grupos estrangeiros. Tais são os banquetes, as festas, as
cerimônias de diversas espécies que formam a trama
da existência social. Mas a exogamia não é apenas uma
manifestação incluída no meio das outras, pois as festas
e as cerimônias são periódicas, e a maior parte delas
corresponde a funções limitadas. A lei da exogamia, ao
contrário, é onipresente, atua de maneira permanente e
contínua, e, ainda mais, refere-se a valores – as mulheres –
que são os valores por excelência, tanto do ponto de vista
social, e sem os quais a vida não é possível, ou pelo menos
fica reduzida as piores formas de abjeção. Não é portanto
exagerado dizer que essa lei é o arquétipo de todas as
outras manifestações com base na reciprocidade, que
fornece a regra fundamental e imutável mantenedora da
existência do grupo enquanto grupo (p. 574).

Lévi-Strauss explora ainda um caráter de manutenção econômica pre-


sente em intervenções, como a do incesto. No contexto do “regime do
produto escasso”, o antropólogo lembra que tal qual as regras e fatores
que regulam, por exemplo, a distribuição de alimentos entre os povos
ditos primitivos são análogos aos aplicados à distribuição das mulhe-
res, admitindo-se ambos como vitais e escassos no seio do grupo.

Desta maneira, sabe-se que na Rússia, por exemplo, a noiva seria


chamada por termo equivalente à “mercadoria”, enquanto o noivo
“negociante”. Ainda que haja um equilíbrio no nascimento de mu-
lheres em relação ao de homens, para o pai da antropologia estru-
tural (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 83) “a tendência poligâmica profunda,
cuja existência pode ser admitida em todos os homens, faz aparecer
sempre insuficiente o número de mulheres disponíveis”.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

224

Aqui se deve notar que as regras do matrimônio em determinadas


sociedades excedem o imperativo da satisfação sexual, colocando-
-se no registro da economia. Deste modo, o primeiro poderia ser
resolvido através de , poliandria ou empréstimo de mulheres. No
entanto, a divisão do trabalho em tais sociedades faz com que a fal-
ta de uma mulher se constitua numa grande inviabilidade econômi-
ca, não são poucas as imagens etnográficas que invoca Lévi-Strauss,
a fim de registrar como o indivíduo solteiro é relegado à fome e a
eventuais marginalizações.

Observando as mulheres no mesmo rol de outros bens no interior


dos mais variados grupos – no que diz respeito a sua lógica de fun-
cionamento econômico – a proibição do incesto vai começando a
ganhar forma no que tange ao porquê de sua existência. Mas Lévi-
Strauss analisa e refuta as várias aporias envolvidas em tentativas
anteriores de explicação de tal fenômeno, discutindo raciocínios
que o atribuíam a causas isoladamente naturais, outros que o ti-
nham como mero fenômeno da cultura, ou mesmo os que o tenta-
vam atribuir a uma “atitude racional do pensamento”. O que moti-
varia então, para ele, este elemento que representa a passagem da
natureza para a cultura, contendo ambos?

O motivo desta passagem deve ser procurado na própria natureza,


que é anterior à cultura. É a natureza que “ultrapassa a si mesma”, se
complexificando e “criando novas estruturas” então não existentes (a
cultura). Desta realidade se deriva então um princípio fundamental
na ilustração desta passagem, isto é, o princípio da reciprocidade.

Para defender esta posição, Lévi-Strauss invoca a noção de trocas


totais do cientista social francês Marcel Mauss, que caracterizará
determinadas trocas por serem supraeconômicas, ao contrário de
meras operações comerciais. Se o eminente sobrinho de Durkheim
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

225

observou com maestria estes aspectos pluridimensionais das tro-


cas, Lévi- Strauss disto se serviu e adicionou que:
Deve insistir-se, também sobre o seguinte ponto:
esta atitude do pensamento primitivo a respeito da
transmissão dos bens não se exprime somente em
instituições nitidamente definidas e localizadas. Impregna
todas as operações, rituais ou profanas, no curso das quais
são dados ou recebidos objetos e produtos. Por toda parte
encontramos a dupla suposição, implícita ou explícita,
que os presentes recíprocos constituem um modo,
normal ou privilegiado conforme o grupo, de transmissão
dos bens, ou de certos bens, e que estes presentes
não são oferecidos principalmente, ou em todo caso
essencialmente, com a finalidade de obter um benefício
ou vantagens de natureza econômica. “Após festas do
nascimento”, escreve Turner sobre a requintada cultura
de Samoa, “depois de terem recebido e retribuído os oloa
e os Tonga (isto é, os bens masculinos e os femininos),
o marido e a mulher não saem mais ricos que antes [...]”
(idem, p. 92 – 93).

Depois de exemplificar as trocas totais em sociedades ditas primi-


tivas, em que o caráter supraeconômico se faz deveras evidente, o
pai da antropologia estruturalista aponta uma situação microsso-
ciológica, qual seja, o momento em que, em restaurantes baratos
do Sul da França, um indivíduo, frente a um outro que lhe é estra-
nho e com o qual divide a mesa, enche o copo deste com o vinho
que acompanha sua refeição – neste caso, tratando-se o vinho, por-
tanto, de um bem individual.

Ora, este indivíduo oferece o seu vinho como abertura de uma relação
em que se espera a reciprocidade e sua consequente e potencial mini-
mização de possíveis tensões, o que caracteriza este fato como, bem
além de meramente econômico, social e psicológico, de modo que:
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

226

A situação de duas pessoas estranhas que se defrontam a


menos de um metro de distância dos dois lados de uma
mesa de restaurante barato (a posse de uma mesa
individual é um privilégio pago e não pode ser concedido
abaixo de certa tarifa) é banal e episódica. É entretanto
eminentemente reveladora, porque oferece um exemplo,
raro em nossa sociedade (mas que as formas primitivas da
vida social multiplicam), da formação de um grupo para
o qual, sem dúvida por motivo do caráter temporário,
não se dispõe de uma fórmula já pronta de integração. O
uso de nossa sociedade é ignorar as pessoas cujo nome,
ocupações e categoria social não são conhecidos. Mas, no
pequeno restaurante, tais pessoas acham-se colocadas
durante duas ou três meias-horas em uma promiscuidade
muito estreita, e momentaneamente unidas por uma
identidade de preocupações. Um conflito, sem dúvida
não muito agudo, mas real, o que basta para criar um
estado de tensão, existe numa e noutra, entre a norma
da solidão e o fato da comunidade. As pessoas sentem-
se ao mesmo tempo sozinhas em conjunto, obrigadas à
reserva habitual entre estranhos, enquanto sua posição
respectiva no espaço físico e sua relação com os objetos
e utensílios da refeição sugere, e em certa medida exige, a
intimidade (ibidem, p. 98 – 99).

Este mesmo princípio da reciprocidade operaria na inclusão das


mulheres e suas filhas no número de obrigações recíprocas. Para
ilustrar isto, Lévi-Strauss dá exemplos que passam por infiltrações
linguísticas, como no caso do inglês em que a expressão que define
a concessão do casamento por parte do pai da noiva é “to give up
the Bride” – algo como “desistir da noiva” –, e cita casos mais dire-
tamente emblemáticos como o dos Nambiquara do Brasil Central.

Entre os pequenos bandos que compõem estes grupos há um


medo que se deve no entanto superar a fim de estabelecer as tro-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

227

cas e se conseguir bens que não conseguem eles mesmos produzir.


Uma passagem da potencial hostilidade à aliança começa então a
ser empreendida, a saber, gestos rituais são realizados entre estes
pequenos grupos de modo que os adversários se apalpam admi-
rando os mais variados adereços que enfeitam seus corpos.

Se isto se dá com sucesso, passa-se a uma troca de presentes, de-


vendo-se aqui ressaltar que a permuta se confunde com uma guer-
ra pacificamente resolvida. Em caráter suplementar, pode-se ter
ainda uma relação artificialmente construída de um parentesco em
que os membros masculinos passam a ser cunhados entre si, o que
acaba dando potencial ao casamento entre suas crianças.

Eis aí um bom ponto de visualização das mulheres como inclusas


no rol de obrigações recíprocas. O matrimônio concorrendo com os
mais diversos bens que fazem funcionar a troca. Em tempo, seria
interessante também mencionarmos que nosso rito católico de ca-
samento também é emblemático, pois, idealmente, não é o pai da
noiva que, literalmente, entrega a filha no altar para um outro ho-
mem? Ato que depois é sucedido pela troca de anéis que anuncia e
sacraliza a troca fundamental que é a aliança.

Isto não é tudo. Lévi-Strauss trata ainda da classificação destas tro-


cas, que estariam dispostas, portanto, em restritas e generalizadas.
As primeiras diriam respeito a panoramas protagonizados por po-
vos organizados em metades exogâmicas, de modo que a troca se
restrinja a uma operação que pode ser ilustrada no ato de um ho-
mem A desposar uma mulher da metade B, o que seria então suce-
dido pelo casamento entre um homem da metade B e uma mulher
da metade A. Esta é a realidade das organizações dualistas, grupos
cujas metades estão unidas por obrigações recíprocas. Já no caso
das trocas generalizadas, o que se vê é um movimento cíclico que
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

228

pode ser ilustrado pela fórmula: homem A se casa com mulher B;


Um homem B se casa com uma mulher C; e um homem C reúne os
elementos do sistema casando-se com uma mulher A.

Temos aqui, portanto, da parte de Lévi-Strauss, a proibição do inces-


to não como um imperativo de um conteúdo presente em todos os
sujeitos que deve levá-lo ao encontro e ao possível reconhecimento
de uma Lei castradora; o que se tem, na visão do antropólogo, é a
ação estrutural de um imperativo da reciprocidade:
A lei natural do acasalamento é substituída pela regra, que é
vivida subjetivamente sob o aspecto moral da proibição ou
da obrigação, mas cuja função é a de estabelecer um sistema
de trocas. Estes sistemas de parentesco são elementos de
significação que só adquirem seu sentido revelam-se como
sistemas de comunicaçãoaos quais pode-se aplicar o modelo
fonológico. Como os fonemas, os termos de parentesco são
elementos de significação que só adquirem seu sentido ao se
articularem num sistema constituído por pares de oposição.
Isto significa que o sistema não se situa ao nível dos termos,
mas ao nível das relações diferenciais (LÉPINE, 1970, p. 25).

É assim que cada matrimônio vai se definir por pares de relações


que formam um conjunto obediente a leis que constituem um có-
digo (GEORGIN, 1983).

Eis a versão estruturalista, aquela que não busca qualidades intrínse-


cas aos indivíduos para concebê-los enquanto pai, mãe, filho, filha.
Procura antes entender essas nomenclaturas de forma relacional, de
modo que, em alto e bom estruturalismo, os elementos tenham valor
em relação à posição que ocupam no sistema. Diz o antropólogo:
A maternidade é uma relação não somente de uma
mulher com seus filhos, mas desta mulher com todos
os outros membros do grupo, para os quais não é mãe,
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

229

mas esposa, prima ou simplesmente estranha no que


respeita ao parentesco. O mesmo se dá com todas as
relações familiares, que se definem, simultaneamente,
pelos indivíduos que englobam e também por aqueles
que excluem. Isto é tão verdadeiro que os observadores
muitas vezes se impressionaram com a impossibilidade
que os indígenas demonstram de conceber uma relação
neutra, ou mais exatamente a ausência de relação (LÉVI-
STRAUSS, 2012, p. 529).

E, ainda sobre sua veia estruturalista, temos considerações sobre o mesmo


texto dezessete anos depois, já no primeiro volume de suas Mitológicas:
Por trás da contingência superficial e da diversidade
aparentemente incoerente das regras de casamento,
destacamos, n’As estruturas, um pequeno número de
princípios simples, cuja intervenção fazia com que um
conjunto muito complexo de usos e costumes, à primeira
vista absurdos (e assim geralmente considerados), fosse
redutível a um sistema significativo. Nada garantia,
entretanto, que tais imperativos fossem de origem
interna. Pode até ser que apenas ecoassem, no espírito
dos homens, certas exigências da vida social objetivadas
nas instituições. Sua ressonância no plano psíquico seria,
então, o efeito de mecanismos de que só faltava descobrir
o modo de operação (LÉVI-STRAUSS, 2004a, p. 29).

Alguns dos maiores nomes da história da Antropologia, entre eles


Malinowski, foram refutados pelo estruturalista com base em sua
convicção de que a família considerada do ponto de vista biológi-
co necessita da aliança com outras famílias para a manutenção de
sua perpetuação. O autor de Os Argonautas do Pacífico creditava o
incesto a uma organização mais rígida dos papéis no interior da
família biológica, a fim de que se lograsse o caráter educativo da
socialização familiar. Emoções que viessem a comprometer essas
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

230

divisões geracionais deveriam ser portanto extintas para que fosse


possibilitado o papel educador fundamental da família.

Lévi-Strauss lembrou que, no entanto, no que diz respeito à família


primitiva, os rituais de iniciação que integram definitivamente o in-
divíduo no seio do grupo social implicam uma inversão dos papeis
familiares. Além disso, os sistemas classificatórios primitivos pouco
distinguiriam em termos de faixa etária, de modo que em algumas
sociedades seria possível se ouvir uma criança se referir a um mem-
bro com mais idade da família pelo termo de “filho”.

Refutações à parte, deste posicionamento estruturalista pode ainda


derivar uma intrigante e importante afirmação. Lévi-Strauss proble-
matiza, como aqui, aliás, citado, as consequências positivas da regra
da exogamia. São positivas, no entanto, se se admite que a existên-
cia da sociedade seja algo necessário. No entanto, lembra ele, “a so-
ciedade teria podido não existir” (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 534). Daí
se poderia concluir então que as regras de proibição são a própria
emergência da sociedade. O que vem a repetir a partir de mais um
ponto de emissão a sua tese de que a presença de regras marcaria
por excelência a passagem entre natureza e cultura.

Aliás, esta linha de raciocínio pode facilmente nos remeter a uma


de suas influências, Jean-Jacques Rousseau. O estado de sociedade
é situado no Discours sur l’origine et les fondements de l’inegalité
parmi les hommes (1754) como a passagem da natureza à cultura – e
a reversão da sociedade desembocaria na volta ao estado de natu-
reza defendido por Rousseau como solução. Como aponta Georgin
(1983, pg. 16) sobre esta interseção entre os dois pensadores: “Aho-
ra bien, la cultura es una consecuencia de la función simbólica que,
como todos sabemos, es especificamente humana. De ello resulta
que lo simbólico rige la vida en sociedad”.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

231

Os sistemas de parentescos e de aliança, os mais variados e exaus-


tamente analisados por Lévi-Strauss na obra em tela, são portan-
to manifestações de um conjunto de elementos que podem ser
apreendidos como anteriores ao fenômeno. Os postulados a partir
dos quais o estruturalista expõe suas hipóteses de trabalho repre-
sentariam alguns dos fundamentos essenciais do espírito humano:
Em que consistem as estruturas mentais para as quais
apelamos e cuja universalidade acreditamos poder
estabelecer? São, parece, em número de três: a exigência da
Regra como Regra; a noção de reciprocidade considerada
como a forma mais imediata do dom, isto é, o fato de que a
transferência consentida de um valor de um indivíduo para
outro os transforma em parceiros, e acrescenta uma qualidade
nova ao valor transferido (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 123).

É-nos conveniente citar a importância de tal perspectiva para o pró-


prio desenvolvimento da psicanálise. Fazemo-no através das pala-
vras de Roudinesco (1998):
A partir de 1949, sobretudo em As Estruturas Elementares
do Parentesco, Lévi-Strauss deu à famosa questão da
proibição do incesto um novo esclarecimento. Em vez de
buscar a gênese da cultura numa hipotética renúncia dos
homens à prática do incesto, como tinham feito Freud e
seus herdeiros, ou, ao contrário, de opor a essa origem o
florilégio da diversidade cultural (desde Malinowski até
aos culturalistas), ele contornou essa bipolarização para
mostrar que a proibição realizava a passagem da natureza à
cultura. Essa nova expressão da dualidade natureza/cultura
reativou o debate sobre o universalismo, sem no entanto
dar origem a uma corrente francesa de antropologia
psicanalítica. E foi Jacques Lacan quem se inspirou na
conceituação Lévi-straussiana para elaborar, em especial,
sua teoria do significante e do simbólico (p. 29).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

232

O posicionamento estruturalista de Lévi-Strauss perante a questão


em tela foi mais uma vez mais importante, aliás, no sentido de confe-
rir ao homem de sociedades ditas primitivas uma complexidade que
vinha sendo negada a suas operações mentais por parte dos que, até
então, teriam proposto explicações baseadas em presumidas remi-
niscências históricas, origens irracionais ou mesmo um ato volitivo de
algum legislador. Se neste sentido o protesto lévi-straussiano não se
dava ainda sob forma da notável elaboração presente em La Pensée
Sauvage, uma visível insinuação já estava presente em 1949 em ex-
certos como este, que se refere às conjeturas acerca do fenômeno do
casamento entre primos cruzados nas organizações dualistas:
[...] o casamento entre primos cruzados, por seu caráter
sistemático e pela coerência com a qual a maioria dos
grupos desenvolveram todas as suas consequências,
dá prova de uma potência lógica e capacidade teórica,
privilégio esse que estamos tanto menos dispostos
a conceder ao primitivo quanto, no caso, parecemos
ser incapazes de apreender a razão do sistema (LÉVI-
STRAUSS, 2005, p. 139).

Uma observação de ordem histórica pertinente à percepção da


profundidade d’As Estruturas Elementares do Parentesco é o fato de
tratar-se de uma tese relativa a um Doctorat d’État, grau acadêmico
máximo na França até o processo de reforma da pós-graduação já
nos anos 80, quando o país se encontrava, pois, sob a presidência de
François Mitterrand. Esta modalidade de doutorado correspondia a
pelo menos uma década de pesquisas, o que normalmente resulta-
va em livros dispostos em tomos. A preleção desta obra envolveu
as supracitadas passagens de Lévi-Strauss pelo Brasil e América do
Norte, e toda sua experiência direta com estruturalistas e antropó-
logos do porte de Franz Boas, que morre emblematicamente diante
do estruturalista francês.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

233

A robustez desta tese resulta então justificadamente ressaltada


quando observamos que os anos da marcante experiência que a
sucedeu e o longo tempo que se pode dedicar a sua elaboração
resultaram num trabalho que apresenta um movimento iniciado
da constatação de uma instituição – o incesto; que sua função diria
respeito ao que poderíamos vincular à coesão social, mas que se
manifestaria sob as configurações pertinentes a cada sociedade. E o
fato desta última ter não podido existir, questão já aqui citada, é um
salto qualitativo perante uma possível acusação de mero funciona-
lismo. Completando tudo isto, reconhece Goldman:
Até aí vai As Estruturas Elementares do Parantesco, de uma
contribuição propriamente sociológica ou etnológica, para
explicar como funcionam os sistemas de parentesco até
uma antropologia e uma reflexão filosófica, em sentido
amplo, envolvendo, implicitamente, uma teoria do humano
muito diferente das até então existentes. Contra as hipóteses
de uma natureza humana como feixe de instintos ou
necessidades que devem ser satisfeitas, ou como simples
conjunto de possibilidades, ou, ainda, como algo que vai
evoluindo ao longo da história, Lévi-Strauss delimitará a
natureza humana como um conjunto de regras operatórias
que faz com que a sociedade exista e que, ao mesmo tempo,
exige a sociedade para funcionar (2008, p.59).

Psicanálise e Fatos
Mi única explicación es que así como los hechos reales se
olvidan, también algunos que nunca fueron pueden estar
en los recuerdos como si hubieran sido (García Márquez,
Memoria de mis putas tristes.

Sintetizados esses posicionamentos distintos entre os autores acerca


do fenômeno da interdição do incesto, passemos ao ponto central des-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

234

te texto, qual seja, discutir, partindo da crítica por parte de Lévi-Strauss,


o estatuto mítico da imagem do assassinato do pai da horda primitiva
e suas consequências invocadas e derivadas segundo Freud.

Este é o ponto de colisão que elegemos para atualizar o caráter


comparativo deste texto. Em seguida, buscaremos averiguar com
qual tipo de verdade o pai da Psicanálise busca se comprometer e
o significado da escolha de tal posicionamento epistemológico e
metodológico para o edifício psicanalítico.

Não julgamos necessário aprofundarmo-nos nas críticas que o mito


freudiano da horda primeva sofreu ao longo da história da antro-
pologia, dado o imenso número de vezes que essas aparecem em
livros e artigos. Restringiremo-nos a mencionar dois dos exemplos
mais centrais: Kroeber e o ataque a caráter hipotético dos postu-
lados freudianos na construção do mito científico (DOMICIANO,
idem); Malinowski (1982) e sua recusa a conceber a cena edípica
que derivaria desta construção como causa cultural primeira, de
modo que se deveria antes “culturalizar”, se assim podemos nos ex-
pressar, o complexo familiar nuclear.

Avançando cronologicamente, temos que na altura das últimas pá-


ginas das Estruturas Elementares do Parentesco, no embalo da ratifica-
ção das refutações que fez a teorias que vinculam a proibição do in-
cesto a uma determinada história conjectural, ou a fatores biológicos,
psicológicos e congêneres, Lévi-Strauss ratifica mais atenciosamente
sua crítica (2012) às principais conclusões contidas em Totem e Tabu:
Mas o progresso da etnologia contemporânea seria
insignificante se tivéssemos que nos contentar com um
ato de fé – sem dúvida fecundo e, em seu tempo, legítimo
no processo dialético que deve inevitavelmente fazer
nascer o mundo da reciprocidade, como a síntese de
dois caracteres contraditórios inerentes à ordem natural.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

235

O estudo experimental dos fatos pode ir ao encontro


do pressentimento dos filósofos, não somente para
comprovar que as coisas passaram-se realmente assim,
mas para descrever, ou começar a descrever, como se
passaram. A este respeito a obra de Freud oferece um
exemplo e uma lição. A partir do momento em que se
pretendia explicar certos traços atuais do espírito humano
por um acontecimento ao mesmo tempo historicamente
certo e logicamente necessário, era permitido, e mesmo
prescrito, tentar reconstituir escrupulosamente a
sequência dos fatos (p. 535).

Esta passagem ilustra a natureza da História, com a qual o autor es-


tabelece seus diálogos. Temos aí uma visão de história amalgamada
à sequência dos eventos, uma disciplina etapista e factual. Schwarcz
(1999) analisa estes diálogos do estruturalista com tal disciplina
a partir do que é enunciado em dois textos homônimos, embora
distintos em conteúdo e data, intitulados História e Etnologia. No
primeiro, publicado em 1949, Lévi-Strauss parece – depois de ten-
tar estabelecer uma boa vizinhança insinuando uma dependência
mútua entre os dois saberes – subordinar a História à Antropologia
da seguinte forma, nas palavras de Schwarcz (idem):
Não obstante, querendo ou não, o artigo introdutório
atingia de frente a prática da História que se transformava
em uma “etapa” para realizações futuras, sob a
responsabilidade de outra disciplina. Estranho caminho é
esse que faz Lévi-Strauss eleger sua noiva na linguística e
largar a história no altar. É difícil deixar escapar o paralelo
com o texto de M. Bloch, Os reis taumaturgos, publicado
em 1924. Nele o autor também afirma na conclusão que
antes de ter feito uma história da cura teria realizado uma
história do milagre, ou melhor, do desejo do milagre. Com
efeito, esse e outros exemplos mostram como estávamos
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

236

distantes do modelo positivo e évenementiel a que Lévi-


Strauss relegara e definira a História de seu tempo (p. 209).

No segundo texto, que se tratava de uma palestra proferida na Sor-


bonne em 1983, o estruturalista faz as pazes com a História que
qualificava de “menor”, ou seja, a História que se vinculava a uma
epistemologia já muito criticada e refutada àquela época desde a
Escola dos Annales – e por isso a “menor História”. Fica claro, portan-
to, que a cobrança de rigor por uma composição sequencial de fa-
tos na hipótese freudiana é uma consequência da própria visão de
História de Lévi-Strauss, direcionada ao privilégio dos événements
organizados de forma firmemente etapista como possibilidade de
legitimação desta disciplina.

É, no entanto, profundamente necessário fazermos aqui uma res-


salva antes de prosseguirmos. Quando o estruturalista pensa uma
História que tem por pressuposto um factualismo intransigente
para se impor cientificamente, não está anulando o reconhecimen-
to de outras historicidades, modos de se relacionar com e narrar o
tempo que variam culturalmente e que têm também por elemento
constitutivo o olhar de uma cultura sobre a outra. Este problema,
para citar um entre muitos outros exemplos possíveis na obra de
Lévi- Strauss, é colocado com alguma demora em seu texto Raça e
História, sendo ilustrativo o trecho a seguir:
Poderíamos, na verdade, dizer que as sociedades
humanas utilizaram desigualmente um tempo
passado que, para algumas, teria sido mesmo um
tempo perdido; que umas metiam acelerador a
fundo enquanto que as outras divagavam ao longo
do caminho. Seríamos assim conduzidos a distinguir
duas espécies de histórias: uma história progressiva,
aquisitiva, que acumula os achados e as invenções para
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

237

construir grandes civilizações, e uma outra história,


talvez igualmente ativa e empregando outros tantos
talentos, mas a que faltasse o dom sintético, privilégio
da primeira. Cada inovação, em vez de se acrescentar a
inovações anteriores e orientadas no mesmo sentido,
dissolver-se-ia nela numa espécie de fluxo ondulante
que nunca consegue afastar-se por muito tempo da
direção primitiva (LÉVI- STRAUSS,1993, p. 333).

Continuando ainda este escrito, podemos ver um Lévi-Strauss cen-


tralmente preocupado com uma crítica ao ponto de vista que carac-
teriza a história do Outro, aliás, não à toa se pode caracterizar como
problema fundamental deste texto a questão do etnocentrismo.
Ou, para avançarmos ainda mais, seria oportuno sublinharmos a
importância histórica de tal escrito, uma vez que tal texto se trata de
um documento sob chancela da Unesco, num contexto pós-guerra
(1950), em que se fazia extremamente conveniente opor o valor da
amplitude do conceito de etnia ao de raça, este último, como se
deve saber, vitalmente adotado na empreitada nazista. Como bem
pontua Arruti: “desta forma, a diversidade racial do mundo é subs-
tituída pela diversidade cultural, cuja razão de ser já não é mais o
isolamento e a manutenção da pureza, mas justo o contrário, os en-
contros e as trocas entre populações” (ARRUTI, 2014, p. 201).

Portanto, é importante não se confundir a associação apontada aci-


ma a uma História próxima dos cânones positivistas, que privilegia
uma organização de fatos irrefutáveis, em que a subjetividade do
historiador não pode gozar de qualquer espaço. O estruturalista foi
muito além desta mera concepção antropologizando, se podemos
assim expressar, a própria História, o que se torna mais facilmente
compreensível se considerarmos os sentidos da história para ele,
como nos lembra Goldman (1999):
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

238

Sob o pretexto de construir uma restrita defesa da


antropologia contra as investidas da história, Lévi-Strauss,
na verdade, utiliza a experiência da antropologia para
elaborar uma crítica generalizada do imperialismo da
história no pensamento ocidental. O primeiro passo é
explicitar a polissemia do termo. Como todos sabemos,
mas tendemos por vezes a esquecer, por história pode-se
entender pelo menos três coisas bem diferentes: a “história
dos homens”, ou historicidade (aquela que eles fazem
“sem saber”), a “história dos historiadores” e a “história dos
filósofos”, ou filosofia da história (Lévi-Strauss, 1962: 286).
Os problemas de Lévi-Strauss com a história se resumiriam,
aparentemente, ao terceiro sentido do termo, e é contra
a idéia de que haveria algum sentido privilegiado na
história, e de que esta definiria a própria humanidade dos
homens, que o último capítulo de O pensamento selvagem
foi escrito. No entanto, creio ser preciso ter em mente que
é muito difícil para a história dos historiadores livrar-se
completamente das tentações da filosofia da história. E é
extremamente significativo que algumas das páginas mais
importantes de “História e dialética” sejam consagradas
justamente a demonstrar que o conhecimento histórico
é tão esquemático quanto outro qualquer; e que, mais
do que isso, a antropologia — por buscar adotar uma
perspectiva estranha a qualquer sociedade particular e por
voltar-se para o inconsciente — tende a produzir um saber
mais abrangente que o da história.

Este tripé distintivo nos parece um lugar oportuno para a visuali-


zação da pertinência de nossa observação. De um lado, a “história
dos historiadores” é defendida nos textos homônimos História e
Etnologia como a factual, caso tivesse o propósito de se legitimar;
de outro, quando se toma o sentido da “história dos homens”, o
reconhecimento - central na própria história da antropologia – da
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

239

autenticidade de maneiras outras de relação dos homens com o


tempo, as historicidades confirmam o seu plural. Isto tudo serve
para pontuar que nada havia de ingênuo na relação do estrutura-
lista com a – e agora, as – história(s), muito pelo contrário, houve
de sua parte, ainda na chave de uma “antropologização da histó-
ria”, uma contribuição autoral decisiva para os caminhos da an-
tropologia. Lévi-Strauss se colocou com veemência contra a ideia
evolucionista de que a história teria um sentido e que a acumu-
lação de conhecimentos culminaria necessariamente no que se
tornou a civilização ocidental:
Contra as hipóteses de uma natureza humana como feixe
de instintos ou necessidades que devem ser satisfeitas,
ou como simples conjunto de possibilidades, ou, ainda,
como algo que vai evoulindo ao longo da história, Lévi-
Strauss delimitará a natureza humana como um conjunto
de regras operatórias que faz com que a sociedade
exista e que, ao mesmo tempo, exige a sociedade
para funcionar. A realização do humano, portanto, não
obedece ao esque evolucionista (hegeliano, na verdade)
de uma natureza real desde o início, mas que só se totaliza
no fim da história. Ao contrário, trata-se de uma natureza
virtualmente total que nunca se totaliza, pois só pode,
por definição, se realizar de modos parciais. Em última
instância – mas em última instância mesmo – o que cabe
ao antropólogo fazer é reconstruir essa natureza virtual
e total a partir de suas manifestações reais e parciais.
(GOLDMAN,1999 p. 59)

Reinvocamos as reflexões da professora Lília Schwarcz para fa-


zermos outros apontamentos também muito importantes neste
sentido. Primeiro, o posicionamento de Lévi- Strauss em relação
à “história dos historiadores” não está desvinculado ao percurso
das próprias tensões entre Antropologia e História, no sentido da
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

240

necessidade de definição da primeira para a sua afirmação como


disciplina. Em segundo lugar, não é sem maiores reflexões que o
estruturalista francês realizou a crítica que guia este nosso tópico,
afinal, isto tem consequência direta na própria prevalência da sin-
cronia em seu método. A cautela se direcionava então à própria
consistência dos materiais que iriam se prestar ao que a disciplina
História produziria, e esta preocupação vem já de seu contato com
a antropologia de seu amigo Franz Boas:
[...] já na perspectiva culturalista, a descoberta de que
os documentos encontrados nas sociedades pelos
antropólogos desencorajariam qualquer historiador a
analisá-los fez com que se reconhecesse uma distinção,
pautada na ausência de materiais e dados comprovatórios.
Segundo Lévi-Strauss, Boas manifestara a decepção de
ter de renunciar à aspiração de compreender “como as
coisas chegaram a ser como são”; ou seja, renunciar a
compreender a história para fazer do estudo das culturas
uma análise sincrônica das relações entre seus elementos
constitutivos, no presente (SCHWARCZ, 2001, p. 126).

É possível afirmar, portanto, que a história dos historiadores não se


faz tão decisiva ao seu método eminentemente sincrônico quan-
to a história dos homens, esta última abrindo espaço para pontos
nevrálgicos de sua obra. No entanto, fato é que sua crítica a Freud
quanto à elaboração do mito científico partiu de sua visão sobre o
primeiro sentido de história que acabamos de citar.

Caracterizada a crítica de Lévi-Strauss, retomemos então a pro-


vocação iniciada ao fim do primeiro tópico deste texto, qual seja,
como se caracteriza a construção do mito freudiano da horda pri-
meva, objeto de tal apreciação por parte do estruturalista fran-
cês. Podemos indagar sob forma de alguns problemas: Como a
verdade histórica aparece no edifício psicanalítico e qual seria sua
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

241

importância para a legitimidade do mito científico enquanto pon-


to de partida de toda uma teoria social fundamentada na cena
do parricídio original? Seria um ponto central na obra de Freud
sistematizar uma antropogênese?

A preocupação com os termos de uma verdade histórica é problema-


tizada por Freud já no final da década de 1930, cujo último ano viu
ser apresentada sua obra intitulada Moisés e o Monoteísmo. Sobre o
rigor histórico e mesmo a visão epistemológica de história de que se
aproxima o fundador da psicanálise, observa Cerqueira Filho (2008):
Freud fala claramente do quanto deixa a imaginação se
apoderar desse seu escrito; chega a dar conta de uma
certa arbitrariedade e até inescrupulosidade com relação
à fonte bíblica. Recorda ser um homem idoso que poderia
inclusive não estar à altura da tarefa à qual se propõe.
Mas não desiste facilmente. Para o que nos interessa, em
especial a hipótese de que Moisés pudesse ser egípcio,
e não judeu, cumpre assinalar o quanto Freud recorre
menos à dedução e indução e mais, muito mais, aos
procedimentos abdutivos, num enfoque muito próximo
daquele observado por Carlo Ginzburg (p. 566).

Faz-se antes necessário advertir que não se tratava de um diálogo


direto de Freud com a Nova História, e sim de uma linha de racio-
cínio que emerge de premissas semelhantes, até porque vemos o
supracitado Carlo Ginzburg (2007) situar no início dos anos 1950,
décadas após os principais trabalhos do psicanalista, o início mais
visível do abandono progressivo desta história obsessiva pela au-
tenticidade dos fatos. É possível admitir-se já a esta altura, aliás,
um paralelo entre trabalho do psicanalista e o do historiador, na
medida em que ambos buscam a reconstrução – cada qual se ser-
vindo principalmente das peculiaridades de seu método – de uma
série de acontecimentos significativos do passado, a fim de enten-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

242

der o presente, tendo em vista que a ordenação de seu material de


investigação corresponde, nos dois casos, a um discurso narrativo.
Neste sentido, as elaborações da psicanálise trouxeram ferramen-
tas e questionamentos válidos para o fazer historiográfico, como
melhor enumera Brauer:
A pesar de lo cuestionable que puedan resultar las
transposiciones analógicas que aplican conceptos la
psicologia individual a entes colectivos y particularmente
a la historia, no cabe duda de que ciertas nociones han
demonstrado, incluso en su inadecuación parcial, um
carácter fructífero, al menos por el debate y la revisón
crítica que han generado. Me refiero a nociones tales
como “trauma” utilizada para hacer inteligibles el impacto
de determinados acontecimientos político-sociales en la
conciencia colectiva o, en general, al empleo de categorias
psicoanalíticas para explicar la acción de determinados
personajes históricos o la conducta de grandes masas de
la población en determinadas circunstancias. Más allá de
su uso controversial, no puede negarse que una serie de
categorias que provienen de la teoria psicoanalítica han
contribuído a ampliar el inventario conceptual de que se
sirve el historiador para tratar de hacer comprensibles
determinados fenômenos humanos (2010, p.107).

No entanto, vamos nos valer de uma noção desenvolvida por Freud,


no seio de sua própria experiência analítica, apresentada num tex-
to escrito em 1937, que é a noção de construção, ou melhor, das
Construções em Análise. Quando ressaltamos, no primeiro tópico do
texto, o aspecto reconstitutivo – invocado pelo fundador da psica-
nálise – da história do paciente no decorrer da análise, tínhamos por
escopo lembrar que para Freud a reconstituição pressupõe cons-
truções. E mais do que uma mera interpretação (esta direcionada
a alguma expressão específica do discurso do paciente), a constru-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

243

ção seria algo como entregar ao paciente uma estória como história
buscando um desenvolvimento da clínica em que, emergindo suas
resistências e negações ou seus falsos e verdadeiros consentimen-
tos, o analista pudesse então lograr a substituição do conteúdo re-
primido por “reações de um tipo que corresponda a uma condição
psiquicamente madura” (FREUD, 2006b).

Ora, trata-se, portanto, de uma corajosa empreitada sugerida por


Freud diante das óbvias limitações que tem um analista diante de
um discurso que emerge de um conteúdo que ele não pode viven-
ciar. Diz Freud (idem): “Qual é, então, sua tarefa (a do analista)? Sua
tarefa é a de completar aquilo que foi esquecido a partir dos traços
que deixou atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo”. Aí está
uma forma mesmo de vincular analista e analisado no trabalho de
análise, pois há, ainda que os esforços de um e outro não estejam
em consonância, um desenvolvimento que fazem o analista a ela-
borar e entregar as construções e o analisando ao postar seus frag-
mentos de lembranças que emergem nos sonhos, seus relatos por
via da livre associação bem como a expressão de repetições de seus
afetos reprimidos pelas mais diversas vias, material a partir do qual
devem partir essas estórias de escopo clínico.

Além disso, no seio da própria teoria psicanalítica, é possível con-


cluir que a mera recordação por parte do paciente não pode figurar
como escopo decisivo, afinal esta pode emergir tanto como uma
lembrança encobridora ou configuração congênere que mais se
apresenta, como um percalço à fluidez da clínica.

Deste modo, faz-se mais oportuno que o trabalho analítico produza


novas recordações, novos arranjos a partir de traços mnêmicos, a fim
de se efetivar a chegada às reações condizentes com determinada
maturidade psíquica, tal qual foi citado mais acima, e neste ponto a
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

244

construção tem um papel vital. Isto se faz importante invocar, uma


vez que nos reportamos aqui ao próprio estatuto de realidade de
uma recordação como legitimador sua validade; sabe-se, no entanto,
que a própria distância temporal em que se encontra o analisando
em relação ao passado que produziu determinado material mnemô-
nico que está ali então por emergir faz com que se empreenda uma
interpretação daquele conteúdo por parte de um sujeito que não se
é mais, ou, como melhor explica novamente Brauer:
Es que tampoco el sujeto es dueño de sus vivencias. Las
imágenes recordadas son algo a la vez propio y ajeno,
el producto de una actividad figurativa que escapa
a su conciencia y que sólo en parte es captada por
ésta, desde la perspectiva de un sujeto que ya no se
es en el momento de la rememoración. El recuerdo no
es un mero registro de lo que pasó sino una imagen
cargada del sentido originario que se le dio a una
huella mnémica, un documento de referencia de la
construcción histórica en la que el sujeto ancla la
comprensión de su identidad (2010, p.115).

Isto nos lembra as considerações de Barthes (1984) sobre os efeitos


de real, quando tratou da necessidade de autenticação do real que
pairava como zeitgeist em décadas anteriores a este escrito, num
contexto em que as mais diversas técnicas, como a fotografia, expo-
sições organizadas por museus e outras formas de registros congê-
neres, se desenvolviam sob a regência da “história objetiva”:
Tudo isto diz que o real é suposto bastar-se a si mesmo, que
é bastante forte para desmentir qualquer ideia de “função”,
que sua enunciação não tem nenhuma necessidade de
ser integrada numa estrutura e que o ter-estado-lá das
coisas é um princípio suficiente da palavra (p. 42)
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

245

Diante do que foi exposto, teríamos que o ter-estado-lá na análise


consistiria justamente nos fragmentos do evento que porta o ma-
terial mnemônico, no entanto a metapsicologia freudiana reconhe-
ceria a impossibilidade de lhe conferir autenticidade e independên-
cia, por entendê-lo como sujeito às séries de contingências devidas
à própria evolução da história do indivíduo em análise, ou, dito de
outra forma, pelas deformações no que foi de fato de vivido, defor-
mações consequentes da “perspectiva de um sujeito que já não se
é”, como citado mais acima.

Mas, é através da problematização da experiência clínica com pa-


cientes em delírio que Freud começa a se encaminhar para o arre-
mate final deste texto. Normalmente o que se propunha acerca dos
delírios era sua vinculação a um afastamento da realidade, como
se nada ali houvesse de verdade. O pai da psicanálise então recon-
sidera a questão sob outro prisma: haveria uma possibilidade de
que os próprios mecanismos de defesa do psiquismo provocassem
uma deformação e um deslocamento em cima de um conteúdo
que partira de um núcleo de verdade. Semelhantemente se daria
o empreendimento das construções, e aqui temos como conse-
quência: “Tal como nossa construção só é eficaz porque recupera
um fragmento de experiência perdida, assim também o delírio deve
seu poder convincente ao elemento de verdade histórica que ele
insere no lugar da realidade rejeitada” (FREUD, idem, p. 286).

Com esta citação, vemos retornar uma chave para situar a impor-
tância, para Freud e a composição de seu Totem e Tabu, que teriam
os fatos e a sua sistematização em sequência como foi reclamado
por Lévi-Strauss no sentido de validar a “explicação de certos tra-
ços atuais do espírito humano”. Esta chave seria a noção de verdade
histórica. Aliás, como bem pontua Danelinck: “la verdad histórica ra-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

246

dica en la resonancia psíquica, no en el hecho externo; y no presta


evidencia más que en el retorno, en la medida en que algo nuevo se
experimenta como protofamiliar” (2010, p.190).

Na segunda parte do capítulo terceiro de seu Moisés e o Monoteís-


mo, Freud, após resumir o que elaborou acerca do patriarca judeu
e sua relação com a origem do monoteísmo, abre espaço para dis-
cutir o estatuto histórico de seu texto. Em meio a suas inferências,
o psicanalista soluciona, sem maiores explanações neste texto, que
a crença em deuses partiria de uma busca por respostas cosmogô-
nicas e proteção pessoal que se daria da mesma forma tanto para
os homens primitivos, quanto para contemporâneos. Restava, no
entanto, construir algo que explicasse a força de um deus para de-
terminado povo para que ele se tornasse o único a existir. Freud traz
então a explicação dos crentes piedosos, para os quais o monoteís-
mo teria sua força por ser seu deus uma verdade eterna. Que verda-
de seria esta? Problematiza Freud (idem):
Também nós gostaríamos de aceitar essa solução. Mas uma
dúvida se apresenta a nós. O piedoso argumento repousa
numa premissa otimista e idealista. Não foi possível
demonstrar, em relação a outros assuntos, que o intelecto
humano possua um faro particularmente bom para a
verdade, ou que a mente humana demonstre qualquer
inclinação especial para reconhecê-la. Encontramos
antes, pelo contrário, que nosso intelecto facilmente se
extravia sem qualquer aviso, e que nada é mais facilmente
acreditado por nós do que aquilo que, sem referência à
verdade, vem ao encontro de nossas ilusões carregadas
de desejo. Temos, por esta razão, de acrescentar uma
reserva à nossa concordância. Nós também acreditamos
que a solução piedosa contém a verdade – mas a verdade
histórica, não a verdade material. E assumimos o direito
de corrigir uma certa deformação a que essa verdade
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

247

foi submetida em seu retorno. Isso equivale a dizer que


não acreditamos que exista um único e grande deus
hoje, mas que, em tempos primevos, houve uma pessoa
isolada que estava fadada a parecer imensa nessa época e
que, posteriormente, retornou na memória dos homens,
elevada à divindade (p.143).

Note-se que Freud transforma a verdade em que criam os crentes


piedosos numa verdade histórica a partir do momento em que lhe
confere o caráter de deformação de uma suposta verdade material
que emerge e é submetida a tal deformação tal qual o processo que
fora afirmado acerca do delírio. Não à toa, o psicanalista (FREUD,
idem) invoca novamente a sua experiência clínica para melhor si-
tuar a verdade histórica:
Aprendemos das psicanálises de indivíduos que suas
impressões mais primitivas, recebidas numa época em
que a criança mal era capaz de falar, produzem, numa
ou noutra ocasião, efeitos de um caráter compulsivo,
sem serem, elas próprias, conscientemente recordadas.
Acreditamos que temos o direito de fazer a mesma
presunção sobre as experiências mais primitivas da
totalidade da humanidade. Um desses efeitos seria o
surgimento da ideia de um único e grande deus – ideia
que deve ser reconhecida como uma lembrança que
foi deformada. Uma ideia como essa possui um caráter
compulsivo: ela deve ser acreditada. Até o ponto em que
é deformada, ela pode ser descrita como um delírio; na
medida em que traz um retorno do passado, deve ser
chamada de verdade. Também os delírios psiquiátricos
contêm um pequeno fragmento de verdade e a convicção
do paciente estende-se dessa verdade para seus
invólucros delirantes (p. 286).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

248

Assim sendo, é por se dar num estágio pré-linguístico que tais “im-
pressões primtivas” se vinculam menos à rememoração que à re-
produção, uma vez que está sujeita às mais diversas deformações
devidas à inexistência atual de seu passado contexto de produção,
podendo voltar então com ares alucinatórios.

É, portanto, no seio da admissão do delírio – e dos processos que a


ele se assemelhem - como elementos que vão remeter a uma reali-
dade já intangível que devemos considerar a relação de Freud com
os fatos na construção do edifício psicanalítico:
Se considerarmos a humanidade como um todo e
substituirmos o indivíduo humano isolado por ela,
descobriremos que também ela desenvolveu delírios
que são inacessíveis à crítica lógica e que contradizem
a realidade. Se apesar disso, esses delírios são capazes
de exercer um poder extraordinário sobre os homens, a
investigação nos conduz à mesma explicação que no caso
do indivíduo isolado. Eles devem seu poder ao elemento
de verdade histórica que trouxeram à tona a partir da
repressão do passado esquecido e primevo (p. 287).

Se a convicção na construção tem o mesmo resultado terapêutico


que uma lembrança recapturada, e se a reconstituição de imagens
primevas a toda humanidade, como as que teriam originado o
monoteísmo e o tabu do incesto, também implica um trabalho de
construção, seria de fato pertinente uma crítica a Freud no sentido
de exigir- lhe uma sequência rigorosamente factual – o que pressu-
põe um arranjo de verdades materiais – em suas explicações acerca
de traços da psique?

Podemos concluir que não, se admitirmos que estas imagens, ainda


que se direcionem a aspectos supraindividuais, são pressupostos
que precisam ter efeito não como uma antropologia psicanalíti-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

249

ca, baseada numa série de fatos sociais que deem sustento a uma
explicação, e sim como continuidades entre uma materialidade
epistemologicamente intangível para a psicanálise e os aparelhos
psíquicos individuais. As construções afirmam, dentro da teoria psi-
canalítica, que há uma maneira de se reconstituir uma verdade de
modo que ela passe a ser histórica, e não necessária. Se esta surte
efeito dentro da experiência clínica, entendemos que se tem a sa-
tisfação de um empreendimento intelectual e prático, como a psi-
canálise. Assim, confirmam-nos novamente as palavras de Brauer:
A diferencia de lo que sucede en las ciencias naturales,
una “construction”, aún siendo parcialmente incorrecta
puede tener um efecto heurístico disparador en su objeto:
dado que ella contiene una serie de interpretaciones
interdependientes, el rechazo de una de ellas por parte
del paciente puede traer consigo su corrección parcial y la
confirmación en líneas generales del marco conjetural en
que se inscribe. Es precisamente su efecto de interpelación
y por lo tanto de intervención fundamentalmente en los
mecanismos mnémicos y reactivos, en las asociaciones y
analogías, en los sueños y actos fallidos que despierta en el
paciente, que “complementan y amplían la construcción” y
no el rechazo o aceptación de la propuesta en su conjunto,
lo que sirve de criterio de distinción entre construcciones
que Freud califica de “correctas” o “incorrectas”. Las
consecuencias observacionales, repito, no son inferidas
sólo a partir de las hipótesis de trabajo, sino que surgen
como efecto de la provocación que suscita en el paciente
la interpretación sugerida (2010, p. 113).

Totem e Tabu é uma dessas construções, em cujo procedimento de


escrita Freud não se pretendia historiador ou antropólogo; preten-
dia, sim, fazer dialogar a disciplina que fundou e desenvolvia com
as ciências sociais de sua época. Faz-se oportuno lembrarmos aqui
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

250

a observação de Mezan (2008) em que vincula a autonomia e inde-


pendência institucional de que a Psicanálise já desfrutava – à esta
altura já constituída como movimento psicanalítico – e o caráter
mais ousado em termos especulativos das obras dos últimos anos
da trajetória intelectual do psicanalista vienense, pois sem o vínculo
já menos imediato entre a psicanálise e seu nome, Freud se permi-
tiu com mais liberdade estas flutuações como a que fez surgir seu
Moisés e o Monoteísmo.

Mas, voltando a Totem e Tabu, o pai da psicanálise produz então um


núcleo de verdade histórica através de tal construção a fim de lo-
grar uma premissa fundamental para o seu constructo clínico-teóri-
co. Ação que empreende um método, cuja conveniência nos alerta
Fridman (2012, p. 40):
Diante de enigmas e impasses clínicos, os mitos de Freud
são uma conjectura teórica na qual se entrecruzam
a observação clínica, a teoria metapsicológica e a
especulação própria ao mito. A importância de recuperar
a crítica que Freud fez de sua função na cultura e na vida
anímica, reside na verdade que se denuncia no seu relato,
permitindo-nos derivar aproximações e distanciamentos
entre o relato mítico coletivo e os mitos individuais
que Freud escutava. Os dados da experiência analítica
não podiam ser verificados pela historiografia ou pelas
tradições etnológicas e antropológicas nas quais Freud
submerge para depois romper com seus cânones.

Não à toa, Freud (2006b, p. 276 ) encerra suas considerações sobre o


tópico, fazendo tal defesa:
Até o dia de hoje, atenho-me firmemente a essa construção
(Totem e Tabu). Repetidamente defrontei-me com violentas
censuras por não ter alterado minhas opiniões em edições
posteriores de meus livros, apesar do fato de etnólogos
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

251

mais recente terem unanimemente rejeitado as hipóteses


de Robertson Smith e em parte apresentado outras teorias,
totalmente divergentes. Posso dizer em resposta que
esses avanços ostensivos me são bem conhecidos. Mas não
fui convencido quer da correção dessas inovações, quer
dos erros de Robertson Smith. Uma negação não é uma
refutação, uma inovação não é necessariamente um avanço.
Acima de tudo, porém, não sou etnólogo, mas psicanalista.
Tenho direito de extrair, da literatura etnológica, o que
possa necessitar para o trabalho de análise. Os escritos de
Robertson Smith – um homem de gênio – forneceram-me
valiosos pontos de contato com o material psicológico da
análise e indicações para seu emprego. Nunca me encontrei
em campo comum com seus opositores (p. 145).

As construções dizem respeito então ao panorama da realidade


psíquica, muito embora tragam, como já insistentemente afirmado,
fragmentos da realidade material. A primeira, sabemos, constrói-se
segundo uma valoração impressa pela psiquê do indivíduo sobre
determinados elementos que passam a ter relevância num contex-
to patogênico, independentemente de sua correspondência com
uma suposta materialidade. Válido lembrar que passou longe do
nosso propósito afirmar eventualmente que Lévi-Strauss (2012)
não teria conhecimento de tal noção em Psicanálise. Continuando
sua supracitada crítica, conclui o estruturalista:
Estas audácias relativamente à tese de Totem e Tabu
e as hesitações que as acompanham são reveladoras.
Mostram uma ciência social como a psicanálise – porque
é uma delas – ainda flutuante entre a tradição de
sociologia histórica que procura, conforme fez Rivers, em
um passado longínquo a razão de ser de uma situação
atual, e uma atitude mais moderna e cientificamente mais
sólida, que espera da análise do presente o conhecimento
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

252

de seu futuro e de seu passado. É realmente esse, aliás, o


ponto de vista prático. Mas nunca é demais acentuar que,
ao aprofundar a estrutura dos conflitos de que o doente é
palco, para refazer a história dele e chegar assim à situação
inicial em torno da qual todos os desenvolvimentos
ulteriores se organizaram, o prático segue um caminho
contrário ao da teoria, tal como é apresentada em Totem
e Tabu. Em um caso, remonta-se da experiência aos mitos,
e dos mitos à estrutura. Em outro, inventa-se um mito
para explicar os fatos. Em resumo, procede-se do mesmo
modo que o doente, em lugar de interpretá-lo (p. 537).

Tem-se, neste ponto de vista, dois eixos que caracterizam a psicaná-


lise tanto como prática analítica quanto como ciência, e neste caso
uma ciência social. Num trânsito entre a procura de uma solução
diacrônica e um empreendimento sincrônico no que diz respeito
ao que o estruturalista está classificando como prática, é nesta últi-
ma que se vê algo muito próximo À noção de construções – tomada
aqui como uma prática de “refazer a história do doente” - emergir
para em seguida ser criticada. Há, entretanto, algumas observações
que se devem fazer a tal ponto de vista, em consonância com o que
já foi por nós considerado neste artigo. A primeira diz respeito a
esta separação entre a prática e a teoria psicanalítica. Deve-se, já a
princípio, tomar algum cuidado ao propor tal dualismo, pois como
confirma Coelho (2010, p. 177):
A metapsicologia não é apenas um constructo teórico
estanque de toda atividade clínica. É ela que, propondo
uma leitura, mesmo que fantástica, dos eventos clínicos,
orienta a atividade de consultório. Qualquer intervenção
na metapsicologia, assim, bate diretamente no campo
clínico, e, apesar de ser ela que orienta a atividade clínica,
ela é também orientada por esta última, que a modifica e
a substitui de acordo com as necessidades.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

253

Esta retroalimentação, aliás, foi fundamental para construirmos


nosso argumento de que caso a construção contida em Totem e
Tabu tenha alguma dívida no que tange a uma eventual legitimida-
de empírica, tal dívida deve ser quitada então com a eficácia tera-
pêutica da própria clínica.

Devemos registrar ainda que muito embora se admita que no seu


início a psicanálise adotasse uma objetividade histórica em sua in-
tepretação no sentido de que o que se buscava era reestabelecer
uma narrativa original do indivíduo – até então deformada pelos
mais diversos mecanismos de censura - não tardaria para que Freud
começasse a vincular-se a uma outra postura em relação à história:
Sin embargo, Freud se distancia progresivamente de esta
noción de verdad. El punto de ruptura es la carta enviada
a Fliess el 21 de septiembre de 1897 donde rompe con la
teoría traumática de la seducción: Freud dice no creer ya al
pie de la letra a sus histéricas. Es el origen del psicoanálisis
en tanto que tal, al introducirse la dimensión de la propia
palabra, el lenguaje y su drama, la arbitrariedad del vínculo
entre significado y significante (DANELINCK, 2010, p.192).

Aqui trazemos novamente a questão do inconsciente estruturado


como linguagem. O que se pode perceber é a desvinculação do
acontecimento da realidade material. Para tanto, foi necessário admi-
tir que a verdade do acontecimento “se fundaria apenas no registro
dos signos e não mais no das coisas” (BIRMAN, 2003, p. 36). O trauma
materialmente real deixaria de se configurar como substrato absolu-
to da produção da neurose e as palavras se tornariam mais autôno-
mas, pois no movimento de encadear-se remetendo-se umas às ou-
tras, a carga de afeto que caracterizava o trauma se orientava então à
realidade psíquica, ao evento na dimensão do símbolo.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

254

Outra observação a ser feita, e que se desdobra em duas críticas, é


direcionada à passagem em que o estruturalista francês acusa o
analista vienense em sua prática clínica de “proceder do mesmo
modo que o doente, em lugar de interpretá-lo”. Viu-se que é necessá-
rio para o processo das construções que estejam implicados de ma-
neira equivalente paciente e analista, afinal não só a materialidade do
que é expresso pelo primeiro é constitutiva na construção sugerida
pelo segundo, como também as resistências desencadeadas, ou não,
são elemento essencial para o êxito clínico de tal empreitada. Refor-
çamos tal assertiva nas palavras de Coelho e Santos (2012):
No referido ensaio (Construções em Análise), Freud
assevera que o trabalho da análise desdobra-se em duas
partes distintas, a do analista e a do analisando, de modo
que para cada uma dessas, atribui-se uma tarefa específica.
Ao analisando cumpre o esforço de tentar recordar aquilo
que foi experimentado e que sofreu a ação da repressão.
Por sua vez, ao analista compete “completar aquilo que
foi esquecido, a partir dos traços que [o paciente] deixou
atrás de si ou, mais corretamente, construí-lo” (Freud,
1937/1996g, p. 276).

Ainda sobre as construções como um proceder com o analisante,


podemos citar novamente Fridman (2012):
Lidando com o relato do analisante como o mito que
estrutura a verdade na análise e amparado pela noção de
construção como o trabalho feito por analista e analisante,
Freud trata cada caso como uma história única onde
ficções e fatos se sobrepõem, confundindo-se. Para tanto,
foi necessário ir além da comprovação empírica e da
justificativa cronológica (Freud, 1918/2004b) e se fiar na
maneira como o sujeito se posiciona dentro do que conta
ao analista e qual o lugar que toma na história que conta.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

255

A segunda observação a ser feita ao que diz Lévi-Strauss em tal ex-


certo é mais exatamente à frase que o encerra, qual seja, a afirma-
ção de que a proposta de Freud levaria o analista a proceder “da
mesma forma que o doente, no lugar de interpretá-lo”.

Começando pelo fim da frase, se aqui o estruturalista francês se refe-


ria a um empreendimento interpretativo similar aos que fazem uso
as técnicas direcionadas a extrair e estabelecer um sentido para um
texto – como a crítica literária, só para darmos um exemplo - de fato
não se trata de uma acepção de interpretação com a qual a clínica
psicanalítica estaria em consonância. O objeto de tal clínica nunca se-
ria tão passivo quanto um texto, de modo que podemos lançar mão
de um sentido de interpretação que considera o aspecto comunica-
cional – em outras palavras, como esta interpretação é passada ao
paciente - como seu elemento constitutivo. Nesta linha, lembra-
-nos Roudinesco (op. Cit.) a preocupação lacaniana acerca do “perigo”
de se admitir um caráter estritamente vertical da interpretação:

Consciente do perigo, também Jacques Lacan, em 1958, no con-


texto de sua teoria do significante, tratou de revisar essa noção e
sua utilização técnica. Colocou ênfase na necessidade de interrogar
incessantemente, no correr da análise, o desejo do analisando, sem
no entanto despejar sobre ele verdades já prontas (p. 389).

Temos então, se é esta a acepção que assumimos, a interpretação como


uma das ações centrais na psicanálise, afinal, como afirmam Laplanche
e Pontalis (2001): “A interpretação está no centro da doutrina e da técni-
ca freudianas. Poderíamos caracterizar a psicanálise pela interpretação,
isto é, pela evidenciação do sentido latente de um material”.

Retomando então a chave acima invocada do aspecto comunica-


cional implicado na interpretação, temos condição de minimizar a
crítica lévi-straussiana no que diz respeito mais uma vez à confusão
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

256

do fazer do analista com o procedimento “do doente”. Vejamos as


seguintes considerações de Dunker (2003):
A interpretação, no entanto, não equivale a uma tradução
direta ou explicação adequada acerca de tais formações do
inconsciente. A escuta interpretativa recairá primordialmente
sobre os elementos dessas formações do inconsciente,
pressupostas teoricamente como compósitas: compromisso
entre desejo e defesa, identificação entre eu e objeto,
combinação entre exigências do Id e do superego, sucesso
e fracasso do recalcamento. As formações em questão
veiculam a realização de desejo e para tanto envolvem
processos específicos da memória, como a lembrança
e esquecimento, além de modos de encobrimento,
deformação (Enstellung) ou ciframento do desejo. No
entanto, tais elementos não devem adquirir soberania sobre
aquilo que captura a atenção flutuante no analista, ou sobre
a questão que se articula no sujeito. Em outras palavras, a
interpretação de um sonho ou de um sintoma não devem se
impor como uma finalidade em si, que uma vez iniciada deve
alcançar seu esgotamento. Pelo contrário ela se faz através
de intervenções sucessivas, giros, retornos e progressões
alternadas ao longo do tratamento.

Podemos conceber, junto às palavras do professor de psicologia


da USP, as interpretações como ações que devem ser relançadas a
cada manifestação – dentre as que foram acima caracterizadas – do
sujeito, de modo que um caminho razoável para sua compreen-
são é atentarmos a seu caráter de fluência e atualização, integran-
do assim mais a dinâmica terapêutica do que se constituindo um
procedimento que se encerra em si mesmo. Tal dinâmica implica
necessariamente o sujeito que analisa e o paciente.

Não foi à toa que, quando convocado pelo historiador francês Ma-
xime Leroy para a interpretação de três sonhos do filósofo René
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

257

Descartes, Freud respondeu apontando os percalços de se “traba-


lhar com tal material na ausência do principal interessado” (ROU-
DINESCO, idem).

Referências
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RETORNAR AO SUMÁRIO
Priscila de Souza Viana

Do silêncio à libertação:
aspectos morais em
narrativas de abortamento
Prefácio de Luiz Gustavo P.S. Correia
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

262

Prefácio

Silêncio, segredo e
anonimato: o aborto
voluntário e os dilemas de
uma pesquisa antropológica
Luiz Gustavo P. S. Correia
DCS/PPGA/PPGCINE – UFS

Acompanhar a pesquisa de Priscila Viana como orientador foi um


desafio, mas um desafio extremamente recompensador. Em nossos
primeiros contatos, a recém-formada em Jornalismo pensava em
desenvolver um projeto em que unia os interesses fomentados por
suas experiências pessoais e acadêmicas. Logo após o ingresso no
mestrado em Antropologia, esboçou uma investigação sobre ques-
tões de gênero, militância e antropologia feminista no cinema, pro-
jeto que buscava conectar a bagagem teórico-metodológica herda-
da da comunicação social e sua formação nos coletivos feministas.

Ao discutirmos o filme “À margem do corpo” (DINIZ, 2006), ela co-


mentou sobre seu interesse em investigar a prática do aborto em
filmes de ficção e documentários. Não me pareceu uma ideia per-
tinente, pelo menos da maneira como chegamos a pensar naquele
momento. Mas, nesta mesma conversa, ela explanou rapidamente
sobre o seu contato com uma enfermeira que realizava tais práticas
e que possivelmente daria abertura para que acompanhasse o coti-
diano do seu espaço de atendimento.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

263

Definimos então que as narrativas de mulheres sobre a prática do


aborto voluntário seriam o foco da pesquisa. Só não imaginávamos
os obstáculos e dilemas que a pesquisa reservaria até o fim. Uma
parte dessa história será contada no capítulo seguinte, de sua au-
toria. Nessa breve apresentação que faço sobre seu estudo, vou me
deter em um elemento que ganha sentidos diversos nas narrativas
de suas interlocutoras e nas passagens em campo relatadas na dis-
sertação: o silêncio.

Aborto, gênero e poder


A dissertação de Viana (2015) sintetiza o intenso processo de inser-
ção em um campo com desafios metodológicos e questionamen-
tos éticos específicos colocados em primeiro plano durante todo
o percurso. O desenho final do texto, fruto também das leituras e
sugestões de Nadia Meinerz, Patrícia Rosalba Moura, Mariana Selis-
ter Gomes e Ulisses Neves Rafael, expõe a forma como Viana buscou
discutir relações de poder e gênero via narrativas de mulheres que
interromperam a gravidez voluntariamente.

No primeiro capítulo, expôs perspectivas sobre a problemática do


aborto nos estudos de gênero e as contribuições das teorias femi-
nistas e críticas pós-coloniais para a discussão antropológica sobre
relações de poder e direitos reprodutivos. Mais que uma extensa
revisão da literatura da área, este capítulo estabeleceu diálogos
teóricos e apresentou os contrastes entre os discursos de institui-
ções e segmentos da sociedade e a produção antropológica sobre o
aborto, evidenciando os conflitos que configuram a interrupção da
gravidez como objeto de variadas interpretações e disputas no ce-
nário brasileiro. Entrecruzaram-se os discursos jurídicos e a legisla-
ção sobre a prática do aborto, as noções religiosas sobre a vida e sua
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

264

influência no campo dos direitos reprodutivos, os saberes biomédi-


cos e seus poderes legitimados sobre o corpo da mulher e, por fim,
a perspectiva feminista em diálogo com o pensamento pós-colo-
nial, com seus giros críticos, estratégias de ação e circulação de co-
nhecimento em contraposição às práticas discursivas hegemônicas.

Os quatro capítulos seguintes dedicaram-se às narrativas das per-


sonagens. Cada um deles apresentou uma interlocutora, com a
intenção de ressaltar a individualidade dos processos, suas dores,
sofrimentos e resistências próprias. No capítulo intitulado “Do silên-
cio à libertação”, Priscila repercutiu a violência institucional médico-
-hospitalar e a dimensão moral e religiosa como discursos e práticas
voltadas ao corpo da mulher e norteadoras dos sentidos e noções
de maternidade nas esferas pública e privada.

No capítulo seguinte, “Família, conjugalidade e acontecimento”, a


personagem apresentada narrou suas experiências de aborto pro-
vocado no Brasil e na França. Sua trajetória permitiu visualizar como
as relações de gênero, as relações familiares e os contextos marca-
dos diferentemente por saberes jurídicos e biomédicos enredam a
interrupção da gravidez nos distintos contextos.

O quarto capítulo, “Até hoje elaboro isso”, trouxe a experiência de


uma profissional da área de saúde e militante do parto humanizado
para refletir sobre a arena em que se defrontam noções de empode-
ramento feminino e direitos reprodutivos com os discursos morais
e religiosos a respeito da vida. As angústias, medos, culpas e cons-
trangimentos da interlocutora em falar do aborto pessoalmente,
recorrendo a e-mails como forma de conseguir relatar suas expe-
riências à pesquisadora foram alguns dos elementos discutidos.

O quinto e último capítulo, “O aborto como necessidade”, apresentou


a única personagem que dispensou o anonimato proposto pela pes-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

265

quisadora. Usar o nome real se revelou uma estratégia de resistência


da interlocutora através da visibilidade de sua identidade e a quebra
do silêncio em torno das práticas abortivas. Suas narrativas versaram
sobre as aparentes contradições entre as noções de maternidade vi-
gentes na sociedade e a escolha por interromper a gestação.

Silêncio e segredo
Para o texto aqui publicado, Viana selecionou a primeira interlocu-
tora de sua pesquisa, Laura (nome fictício), para tratar mais detida-
mente a questão do silêncio e as dinâmicas do segredo, bem como
o papel performatizador ou “libertador” da fala (VIANA, 2015, p. 55).
Da maneira como se fez notar na pesquisa, o silêncio pode ser inter-
pretado à luz da perspectiva simmeliana do segredo e a dinâmica
que envolve os processos de ocultação e revelação, o estabeleci-
mento da confiança e o receio da traição entre aqueles que compar-
tilham determinada informação.

A rede de contatos em que se inseriu durante a presença em cam-


po teve a ocultação das informações, o sigilo e a discrição como
formas de proteção do segredo. A interpretação das vias e sentidos
da ocultação exigiu a compreensão do seu contraponto imediato, a
revelação, e o seu análogo oposto, a traição, como fatores determi-
nantes das relações entre as pessoas no seu universo de pesquisa.

Relembro aqui as indicações de Maldonado sobre o segredo, con-


soante a ótica de Simmel, como “[...] uma dinâmica comunicativa,
feita de retóricas, de silêncios, de transparência, de opacidade e
também de certas formas de revelação” (1999, p. 219). Assim, o si-
lêncio que envolve a prática do aborto, seus procedimentos, medi-
camentos, instrumentos e atores sociais envolvidos, revela a tensa
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

266

ligação entre a ocultação e a revelação como princípios estruturan-


tes das relações interpessoais enredadas nessa trama.

Ao apresentar sua trajetória em campo, Viana evidenciou a impor-


tância do segredo nas redes estabelecidas em torno da prática do
aborto voluntário e “as relações de confiança forjadas no percurso
da clandestinidade” (VIANA, 2015, p. 20). Essa tensão marcou não
apenas os contatos entre as interlocutoras e os demais atores so-
ciais envolvidos direta ou indiretamente na prática do aborto, mas
exigiu perspicácia e sensibilidade da pesquisadora, tendo em vista
que a confiança no compromisso ético com o conteúdo emocional
revelado nas narrativas definia as aproximações e distanciamentos
agenciados pelas personagens da pesquisa.

Viana mostrou, então, como ela e suas interlocutoras perceberam e


atribuíram sentido ao “sonoro silêncio” em torno do aborto provo-
cado, tal como observa Motta (2013). Uma prática entendida como
comum, constante e conhecida, mas ocultada ou silenciada por seu
caráter ilegal e moralmente condenável aos olhares de larga faixa
da sociedade. Tal silenciamento, ou “o esquecimento que encobre
um assunto proibido sobre o qual ninguém quer falar” torna-se rui-
doso, aponta rastros e deixa vestígios significativos a serem investi-
gados (MOTTA, 2013, p. 687).

Ao contextualizar a interrupção da gravidez em um cenário de


conflito e poder, Viana evidenciou as ambivalências nas falas e dis-
cursos a respeito de um tema condenado e defendido, praticado e
evitado, enfim, desvelou algumas das nuances que tornam o aborto
provocado um assunto tabu (VALPASSOS, 2013, p. 465).

O silenciamento, o constrangimento e os paradoxos expostos nas


falas das interlocutoras não rementem exclusivamente a um sen-
timento de culpa ou a uma percepção de que tais experiências de
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

267

dor e sofrimento devem ser reprimidas. São elementos compreen-


didos acima de tudo como tentativas de autopreservação ou pro-
teção da própria privacidade do julgamento alheio, dos olhares e
falas retratados nas narrativas das personagens com todo o peso
das contradições que envolvem o tema na esfera pública.

Nas palavras de Laura, “não é o aborto somente que nos machuca


(porque essa decisão é muito difícil, quando não é decidido tam-
bém é muito difícil), é o silêncio forçado por uma sociedade que fala
mais do que deveria, que coloca a mulher no sagrado e no profano
a seu bel prazer” (VIANA, 2015, p. 56).

O anonimato e a reflexividade no texto antropológico


O silêncio de Laura foi quebrado apenas alguns anos após o aborto,
com as entrevistas realizadas para a pesquisa. Segundo a entrevis-
tada, o anonimato garantido pela pesquisadora foi algo fundamen-
tal para iniciar a “libertação” das “palavras contidas” e das “sensações
escondidas”. Expor tais narrativas colocou Viana diante de outro de-
bate caro à antropologia: o anonimato e a ética nos textos etnográ-
ficos (FONSECA, 2010). Destaco aqui a postura de Viana a respeito
do uso de nomes fictícios ou reais, contextualizados pelas perspec-
tivas das entrevistadas sobre a garantia de sigilo ou a visibilidade
intencional da identidade.

Uma das faces da discussão levada a cabo por Viana foi o dilema
de ter acesso às narrativas marcadas pela dor e pelo sofrimento
solitário, a empatia que envolveu pesquisadora e interlocutoras
durante o contato em campo devido às suas experiências com-
partilhadas e o seu próprio silenciamento, suas próprias angústias
contidas, resguardadas, decorrentes da discrição necessária por
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

268

conta das relações de confiança estabelecidas e do compartilhar


de dores tão próximas.

Viana buscou superar o debate sobre a neutralidade científica, res-


saltando a importância de desvelar as narrativas das interlocutoras
como forma de ir contra a invisibilização e a sub-representação das
mulheres nas pesquisas etnográficas (BONETTI, 2009) e destacar
suas trajetórias pessoais e relatos sobre a prática abortiva como es-
paço de fala de pessoas subalternas em um contexto específico de
relações de poder (SPIVAK, 1993).

Viana encontrou sua própria resposta à pergunta de Fonseca, “Qual


a etnografia que estamos propondo?” (2010, p. 222). Equilibrou-se
na “corda bamba” ética e metodológica sem usar o anonimato de
forma impensada, respeitando a riqueza de detalhes das narrativas
e escapando da cilada de reforçar o estigma das suas interlocutoras
como “pessoas que têm algo a esconder” (FONSECA, 2010, p. 214).
Viana, assim, demonstrou como a escolha pelo sigilo ou pela identi-
ficação das entrevistadas reflete, para além de um posicionamento
ético, a consciência das implicações políticas da pesquisa.

Não à toa, portanto, uma das interlocutoras tem seu nome real apre-
sentado. A justificativa apresentada por Viana é o posicionamento po-
lítico da própria entrevistada, feminista de reconhecida militância, para
quem deve haver não apenas um questionamento dos discursos bio-
médicos, religiosos e jurídicos a respeito do aborto, mas que a proble-
matização de tais arranjos de poder surja da escuta das falas femininas
sobre o seu corpo, os sentidos da maternidade e os direitos reproduti-
vos. Ou melhor, que as vozes das mulheres possam deslocar e recon-
figurar tais discursos, mostrando a legalidade da opção pelo aborto
como uma “necessidade da mulher” (VIANA, 2015, p. 116), fazendo
coro com pesquisadoras e militantes feministas sobre a importância da
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

269

quebra do silêncio e a descriminalização das práticas abortivas como


fundamental para a emancipação feminina (FERRAND, 2008; MOTTA,
2008; TORNQUIRST, LAGO e SILVA, 2008).

Assim, sem fugir dos dilemas de uma pesquisa de cunho etnográ-


fico, Viana apresentou as angústias próprias de uma pesquisado-
ra em campo, investigando uma prática clandestina. Sem cair no
cientificismo ou no subjetivismo, posicionou-se ao lado daquelas e
daqueles que enxergam o papel emancipatório da pesquisa antro-
pológica (VIANA, 2015, p. 28).

Buscou tal posicionamento tendo as narrativas como construções


dialógicas, espaços de compartilhamento de experiências em que
não procurou a reafirmação ou a negação de uma verdade hege-
mônica, nem tratou como investigação de fatos ou verificação de
informações. Dispôs-se, com competência, a compreender a signifi-
cação dos marcos das memórias pessoais pelas entrevistadas, a en-
tender os processos de “decupagem” e “montagem” que compõem
o ato de rememorar e as novas tessituras das experiências indivi-
duais que o diálogo em campo provoca.

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Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

271

Do silêncio à libertação: aspectos morais


em narrativas de abortamento
Priscila de Souza Viana

Introdução
Polêmico e controverso, o debate a respeito da prática do aborto no
Brasil envolve uma série de questões delicadas, que incluem desde
aspectos éticos e morais até discursos nos âmbitos da saúde e da
legislação. No Brasil, o aborto é regulamentado pelo Código Penal e
considerado um “crime contra a vida” desde a década de 1940, nos
artigos 124 a 128 (SARMENTO, 2006), com exceção de três permis-
sivos legais: quando a gravidez é resultante de estupro; quando o
aborto é considerado necessário, ou seja, quando a gestante cor-
re risco de morrer; e nos casos de anencefalia fetal diagnosticada.
Entre os impactos dessa ilegalidade estão a estigmatização (GOF-
FMAN, 1982) das mulheres que recorrem à prática; a subnotificação
da quantidade de mulheres que abortam e das condições estrutu-
rais e de higiene em que a prática é realizada; e os altos índices de
morte por aborto, que representam cerca de 12% dos casos de mor-
talidade materna no Brasil (DOMINGOS; MERIGHI, 2010).

Desde que o aborto passou a ser proibido pelo Código Penal, há


mais de 70 anos, o destaque recebido pelo assunto nos espaços pú-
blicos de discussão e decisão política oscila a depender do recorte
temporal e de seus respectivos contextos políticos (ROCHA, 2006).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

272

Recentemente, o debate sobre o aborto na agenda pública brasilei-


ra vem se fortalecendo a partir de alguns fatos recentes de grande
repercussão, entre os quais destaco: o crescimento da Frente Parla-
mentar Evangélica no Senado Federal129 e a consequente intensifi-
cação de embates travados entre representantes políticos/religio-
sos, parlamentares ligados aos movimentos feministas e LGBTT e
movimentos sociais nos espaços políticos de decisão (Ibid.); a libe-
ração por parte do Supremo Tribunal Federal (STF) da interrupção
de gravidez de fetos anencéfalos com assistência médica, em abril
de 2012; a aprovação do Projeto de Lei nº 478/07, também chama-
do de Estatuto do Nascituro, pela Comissão de Seguridade Social e
Família da Câmara dos Deputados, em junho de 2013; a decisão do
Conselho Federal de Medicina (CFM) em defender que a interrup-
ção voluntária da gravidez seja realizada até a 12ª semana de ges-
tação sem nenhuma penalização para a mulher, em março de 2013;
e as recentes polêmicas em torno das pesquisas células-tronco e a
manipulação de embriões congelados – o que reacende o debate
em torno das concepções acerca do “início da vida” (LUNA, 2007a).

Em maio de 2014, o Ministério da Saúde revogou a Portaria nº 415,


de 21 de maio de 2014, que estabelecia o registro específico, na ta-
bela do Sistema Único de Saúde (SUS), dos procedimentos de abor-
to previstos em lei, causou indignações por parte de grupos femi-
nistas, profissionais de saúde e movimentos sociais ligados à pauta

129 A FPE tem ganhado cada vez mais força nas últimas eleições. De acordo com
o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), após as
eleições de 2010, a bancada evangélica aumentou sua participação no Con-
gresso Nacional em quase 50%. Se antes a composição era de 78 deputados
federais, após as eleições de 2014 o número aumentou para 82 membros.
Disponível em: <http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/poli-
tica/2014/10/12/interna_politica,535569/bancada-evangelica-fica-maior-na-
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Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

273

dos direitos reprodutivos. A medida fora adotada logo após ampla


pressão dos parlamentares da bancada evangélica à presidente Dil-
ma Roussef130. Já no final do mesmo ano, duas mortes envolvendo
aborto repercutiram nacionalmente: a de Elisângela Barbosa, 32
anos, após ter sido internada com um sangramento no útero em
São Gonçalo, no Rio de Janeiro; e a de Jandira Magdalena dos San-
tos Cruz, 27 anos, cujo corpo foi encontrado carbonizado dentro
de um carro após semanas desaparecida. Ambas foram vítimas de
procedimentos abortivos realizados de maneira clandestina e inse-
gura, o que, por um lado, reacendeu o apelo popular de segmentos
específicos da sociedade civil pela perseguição policial às clínicas
clandestinas de aborto (POLÍCIA FECHA..., 2015) e, por outro, forta-
leceu as reivindicações pela descriminalização do aborto, levanta-
das principalmente pelos movimentos feministas131.

É em meio a cenário de embate político e ideológico que se situa a


questão do aborto no Brasil, o que se reflete diretamente na produ-
ção de estudos e pesquisas sobre o assunto.

O segredo como elemento constitutivo do aborto


O campo de pesquisa pensado inicialmente é significativo: uma
casa onde uma enfermeira realizava procedimentos abortivos de

130 A Portaria nº 415, de 21 de maio de 2014 não alterava a lista de serviços de saúde
credenciados para a realização de procedimentos relacionados ao abortamento
legal, tampouco modificava as situações já previstas pela legislação. “Ela apenas
criava uma categoria própria de registro para o procedimento, que deixava de
ser marcado na categoria mais ampla de curetagem (método usado em outras
situações para além do abortamento) e passava ser registrado como interrupção
da gestação ou antecipação do parto”. (APÓS CRÍTICAS..., 2014).
131 CORTÊZ, Natacha. Precisamos falar sobre aborto. Revista TPM, São Paulo, Ano
13, n. 148, p. 40-49, nov. 2014.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

274

modo cirúrgico. No local, ela recebia as mulheres, fazia perguntas


acerca do ciclo menstrual e da trajetória reprodutiva e realizava o
procedimento com o auxílio de equipamentos próprios da profis-
são, como espéculo, popularmente conhecido como “bico de pato”,
e ali mesmo realizava a curetagem.

Levada ao local através de uma rede de atuação feminista, naque-


le momento, percebi minhas próprias contradições ao conhecer
fisicamente um “espaço clandestino”. Medo, tensão e reprodução
de estigmas foram alguns elementos dos quais não consegui me
desprender de imediato. Não foi com muita simpatia que conhe-
ci a enfermeira, bem como me flagrei observando as condições de
higiene, os instrumentos utilizados e todo o ambiente de manei-
ra pejorativa. As amigas e militantes feministas que eu agora sabia
“frequentarem esse lugar” já não eram vistas da mesma forma por
mim – era “inevitável” pensar que “ela já abortou” e a partir daí cons-
truir uma série de imaginários acerca desse tipo de representação.

A partir do compartilhamento com diversas experiências de aborto,


pude perceber que o silêncio e os sentimentos de autoculpabilização
não eram os únicos elementos em comum entre os diversos relatos
“silenciados”. Os discursos morais presentes nas redes de convivência
e sociabilidade dentro das quais nos inseríamos – relações familiares,
conjugais e de amizade – também ecoavam sobre nossas experiências,
compartilhadas “em segredo” apenas entre nós. A maneira como se
configuram as mulheres inseridas em contextos de prática de aborto
e como se incluem em meio à arena de combate entre os discursos
religiosos, biomédicos, jurídicos, entre outras vertentes, é a problema-
tização que serve como ponto de partida para esta pesquisa.

Decidi então fazer algumas visitas informais à enfermeira para sa-


ber se seria possível realizar uma observação etnográfica no espaço
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

275

onde ela atua – a sua casa –, fase exploratória da pesquisa (GOLDEN-


BERG, 2004) na qual foi possível construir a memória pré-campo. No
decorrer das visitas, solicitei a ela algumas informações sobre o pro-
cedimento: há quanto tempo ela faz, como aprendeu, que tipo de
pessoas recebe, como as pessoas que ela não conhece sabem de sua
existência, como é a sua relação com a comunidade onde mora, o
que a família pensa sobre o assunto, entre outros questionamentos.

Pacientemente, ela respondia tudo de maneira simples. Disse-me


que aprendeu a fazer partos com a sogra, que era parteira, até
que várias mulheres começaram a procurá-la, solicitando que ela
interrompesse gestações indesejadas. Ela então percebeu que “a
demanda pelo aborto é muito grande” e que “elas precisavam de
alguém que fizesse isso”.

Perguntei então sobre a possibilidade de usar aquele espaço como


campo de estudo, analisar a rotina da casa e entrevistar algumas
mulheres, caso elas aceitassem colaborar com a pesquisa. Imediata-
mente o tom da conversa mudou, para revelar dados pertinentes à
memória pré-campo: ao destacar que recebe diariamente “mulhe-
res casadas que engravidam de outros homens, vizinhas, menores
de idade acompanhadas com a mãe, mulheres religiosas, além de
esposas de militares e de políticos132, ela ressaltou não querer “mui-
ta movimentação” no local para não intimidar as mulheres e que,
com certeza, nenhuma delas iria almejar falar sobre o assunto.

Neste primeiro momento de diálogo com o campo de pesquisa,


percebi que estava diante do primeiro percalço: como eu já man-
tinha uma relação de confiança e intimidade com a enfermeira,

132 Em consonância com o depoimento da enfermeira, estudo recente divulgado


pela Unicamp mostra números significativos sobre a prática do aborto entre
famílias de médicos e juízes (EM FAMÍLIA..., 2015).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

276

previa que ela aceitaria colaborar com a pesquisa. No entanto, era


preciso traduzir etnograficamente o que estava por trás de seu dis-
curso: o silêncio que ronda a questão do aborto já se tornava uma
categoria que merecia análise mais profunda. Até então, faltava-
-me compreender a delicadeza da relação (CARDOSO DE OLIVEIRA,
2000) que, ao ser conduzida, “depara-se com a barreira do segredo
[...] que dá força à pessoa” (CARVALHO, 1984, p. 214) diante de um
sistema de valores específico.

Eu estava diante de uma mulher que conseguiu exercer, em sua


casa, uma atividade considerada ilegal por 15 anos e cuja clandesti-
nidade é fortemente combatida por médicos, legisladores, policiais,
religiosos e pessoas da sociedade civil que se colocam publicamen-
te contrárias ao aborto – sob um discurso muito forte de “defesa da
vida” e da família. No entanto, eu não havia me questionado como
ela conseguia exercer por tanto tempo uma atividade clandestina e
fortemente perseguida por tantos setores – até refletir melhor so-
bre os perfis apontados por ela como seus “clientes”.

A continuidade da atividade que ela exercia dependia justamente


do segredo – todos da comunidade sabiam a respeito de sua ativi-
dade, fator que se tornava perceptível ao chegar à casa dela e per-
ceber a vizinhança se posicionando de maneira a observar bem
as pessoas que paravam em sua porta. Pessoas que fazem parte
dos mesmos segmentos que criminalizam a prática do aborto,
segundo a enfermeira, a procuravam quando convinha, ou seja,
dependiam de seu silêncio sobre os procedimentos e as respecti-
vas identidades, a fim de manter as máscaras sociais (GUIMARÃES,
1990). Trata-se de relações de confiança forjadas no percurso da
clandestinidade, independente dos discursos que atravessam a
prática do aborto.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

277

Mas, diante da visível dificuldade de etnografar o local e tentar


compreender a maneira como se configuram as práticas e relações
ali presentes, decidi então entrevistar mulheres que eu conhecia e
que eu sabia já terem ido lá para interromper uma gravidez. Falei
com todas elas de maneira discreta e particular, solicitando uma
entrevista e garantindo, de antemão, o sigilo total quanto às suas
identidades. Ressaltei também que poderiam me indicar outras
mulheres que conheciam e que já teriam feito um aborto também.

Com base nas minhas redes de amizade e convivência, pensei que


elas aceitariam falar sobre o assunto e, assim, eu teria uma série de
entrevistas para analisar e delinear os rumos da pesquisa. No entan-
to, fui surpreendida por um “sonoro silêncio” (MOTTA, 2008). Muitas
que eu sabia já terem abortado negaram tê-lo feito e a maioria se-
quer respondeu aos recados. Mas esse mesmo silêncio me pareceu
um forte dado, passível de ser analisado, e pude então compreen-
der essas mesmas mulheres como “interlocutores em campo” que
podem emitir “sinais e sentidos que nos remetem a novas e inexplo-
radas ideias sobre a pesquisa” (FLEISCHER & SCHUCH, 2010, p. 16).

No dia seguinte, uma delas me mandou uma mensagem dizendo


que queria falar. Diante da minha primeira oportunidade de entre-
vista e sem saber ainda o foco da pesquisa, elaborei um questioná-
rio amplo e semiestruturado, mas “flexível o suficiente para aderir
às situações subjetivas que estão presentes no encontro etnográ-
fico” (ROCHA & ECKERT, 2008, p. 14), com perguntas sobre saúde
reprodutiva, contraceptivos, sexualidade, histórico de atendimento
médico ginecológico, relações familiares, aspectos morais e religio-
sos, opiniões acerca do tema e outros elementos, além, é claro, de
perguntas sobre a experiência pessoal do aborto.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

278

Continuei procurando outras mulheres, sem deixar de enfatizar a


garantia do anonimato e em quatro meses, apenas duas mulhe-
res se dispuseram a colaborar, confirmando assim a dificuldade de
entrevistar sujeitos que se configuram em uma situação de ilegali-
dade e, portanto, envolvidos em contextos estigmatizantes (GOF-
FMAN, 1982), como é o caso do aborto. Em alguns meses, mais duas
mulheres entraram em contato comigo – uma delas aceitou falar
somente por e-mail, alguns meses depois de afirmar que não se
sentia “à vontade pra falar” sobre a sua experiência.

Ao alternar a realização das entrevistas com a literatura antropoló-


gica acerca do aborto, foi possível compreender melhor a impor-
tância do anonimato para as entrevistadas. O que para mim parecia
tão somente um detalhe do conjunto de condutas éticas necessá-
rias à pesquisa antropológica, para elas constituía a manutenção de
uma situação de “normalidade” em suas vidas, pois elas destacavam
a todo o momento – com exceção de apenas uma, que recusou o
anonimato – as consequências irreversíveis em suas relações pes-
soais e familiares caso a informação de que já provocaram um abor-
to viesse à tona.

Compreender suas inseguranças e a natureza da preferência pelo


anonimato e pela discrição é dar a devida importância ao “aspecto
mais humano” (DA MATTA, 1978, p. 35) da rotina antropológica, sem
o qual não é possível estabelecer uma relação de confiança e empa-
tia junto aos sujeitos pesquisados.

A repreensão moral às ações de abortamento, julgamentos e recri-


minações que sofre quem aborta também foram destacados como
fatores que acarretaram dificuldades à realização de entrevistas por
Valpassos (2013), pois, “a garantia de sigilo sobre as identidades,
ou seja, a promessa de manutenção de um anonimato, é condição
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

279

sine qua non para que uma pesquisa sobre essa temática possa ser
realizada” (VALPASSOS, 2013, p. 466). Além disso, “em uma pesquisa
que visava recuperar narrativas sobre abortos, com suas dimensões
públicas e, sobretudo, privadas, não caberia, pois, a revelação da
identidade das personagens” (Ibid.). Manter em sigilo as identida-
des das entrevistadas e, acima de tudo, fazer com que as pessoas
próximas a nós não percebessem a realização das entrevistas, era
uma medida necessária, mas que ocasionou uma série de obstácu-
los à condução do trabalho de campo.

Após a realização das entrevistas e antes mesmo de iniciar a parte


escrita deste trabalho, percebi que eu precisava refletir sobre os ele-
mentos apresentados pelo campo. O primeiro dilema era me despir
dos códigos legislativos e morais vigentes em nossa cultura, os quais
criam uma fronteira entre aqueles que “seguem a lei” e “aqueles que
não a seguem” – estes últimos considerados inimigos comuns a toda
a sociedade e, portanto, devem ser controlados e combatidos (FOU-
CAULT, 1987; XAVIER, 2006). Relativizar a categoria de crime e o sen-
tido dos desvios sociais como uma construção histórica, social e cul-
tural (BECKER, 1996) era um exercício necessário, mas difícil, embora
ele já houvesse sido iniciado a partir da minha própria experiência
de aborto. Para Velho (1978), esse seria um dos principais desafios ao
antropólogo que se debruça sobre sua própria sociedade – a necessi-
dade de relativizar as categorias sociais à sua volta.
[...] em princípio, dispomos de um mapa que nos familiariza
com os cenários e situações sociais de nosso cotidiano,
dando nome, lugar e posição aos indivíduos. Isto, no
entanto, não significa que conhecemos o ponto de vista e
a visão de mundo dos diferentes atores em uma situação
social nem as regras que estão por detrás dessas interações,
dando continuidade ao sistema. Logo, sendo o pesquisador
membro da sociedade, coloca-se, inevitavelmente, a
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

280

questão de seu lugar e de suas possibilidades de relativizá-


lo ou transcendê-lo e poder “pôr-se no lugar do outro”
(VELHO, 1978, p. 40, grifo do autor).

A ética, portanto, ganha relevância fundamental nesse aspecto, vis-


to que o assunto requer “uma sensibilidade específica que vai além
de sua apropriação metodológica” (FLEISCHER & SCHUCH, 2010, p.
10), para que a pesquisa não se transforme em um instrumento de
poder a ser utilizado contra os sujeitos entrevistados (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 2000).

Com a pesquisa desenvolvida durante a dissertação de mestrado,


não pretendo de maneira alguma compactuar com qualquer forma
de julgamento, incriminação ou reprovação moral que as informan-
tes possam vir a sofrer pela equivocada revelação de seus nomes –
quando não for do desejo delas serem identificadas. Além do mais,
na posição de uma mulher que já havia abortado, era inevitável sen-
tir empatia e me envolver com a narrativa das entrevistadas. Depois
de algumas entrevistas, eu passei vários dias “digerindo” os relatos
emocionados das interlocutoras, para somente depois conseguir
traduzir etnograficamente o que havia ouvido (Ibid.), pois não há
como negar que, no trabalho de campo:
[...] existe o envolvimento pessoal entre pesquisador e
informante (fruto de muita convivência, e não só de uma
entrevista) – aquela sensação de que os dois participam,
pelo menos momentaneamente, de uma mesma
comunidade moral (FONSECA, 2010, p. 221).

Além disso, à medida que realizava as entrevistas, pude perceber


que não se tratava apenas de uma regra rígida entre perguntas-res-
postas, mas acima de tudo, era preciso adotar certa delicadeza no
trato com o assunto, pois era muito comum, em distintos momen-
tos, as entrevistadas ficarem emocionadas e intercalarem seu relato
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

281

entre memórias dolorosas, soluços e intervalos de silêncio. Em um


caso específico, ela encarou a entrevista como uma oportunidade
de desabafo, depois de muitos anos guardando sua experiência em
silêncio. Segundo a interlocutora, ela percebeu que aquele diálogo
que se travava entre nós era uma oportunidade de ela “colocar pra
fora” o que a fazia “adoecer por dentro”. Nos encontros com as inter-
locutoras, percebi que essa pesquisa era uma:
[...] etnografia que permitia a empatia, a subjetividade e
o diálogo, a fim de explorar melhor os mundos interiores
das mulheres, até o ponto de ajuda-las a expressar (e
assim superar) a sua opressão. A ‘entrevista’ tradicional
(que implicitamente coloca o pesquisador em um papel
de poder) também é rejeitada em favor de um diálogo
mais igualitário, frequentemente incorporado na forma
da história de vida na qual uma pessoa é incentivada a
contar a sua própria história de sua própria maneira e nos
seus próprios termos, com um mínimo de interferência do
pesquisador (ANGROSINO, 2009, p. 23, grifos do autor).

A princípio, elas me pediram sigilo “apenas” com relação aos seus


nomes. No entanto, no decorrer da escrita etnográfica, à medida
que eu ia associando os dados obtidos através das entrevistas à
teoria antropológica, percebi que era preciso manter segredo sobre
outras informações a respeito do cotidiano das entrevistadas, como
profissão e local de trabalho. São elementos que, se fossem divul-
gados a partir das narrativas analisadas, poderiam se tornar instru-
mentos de revelação da identidade das interlocutoras. O desafio
estava em encontrar o equilíbrio entre a divulgação dos elementos
necessários à análise antropológica de perspectiva biográfica e, ao
mesmo tempo, manter a cautela necessária à manutenção dos se-
gredos pactuados entre nós a ponto de não as expor.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

282

Ao final, questionei a todas as entrevistadas se aceitariam conversar


comigo caso eu fosse um homem ou uma pessoa desconhecida,
independente das marcações de gênero. Todas foram unânimes em
dizer ‘não’, situação relatada por Valpassos (2013).
Num tema amplamente marcado pelo seu caráter
oficioso [...] e no qual pouco me ajudava meu sexo,
o acompanhamento da decisão de um aborto e sua
sequente realização era algo que só acontecia nos meus
sonhos mais pretensiosos. [...] Nada mais distante de
minhas experiências de campo (VALPASSOS, 2013, p. 469).

Vivenciando um contexto delicado quanto à relação entre pesqui-


sador e entrevistadas, o antropólogo, que também realiza trabalho
de campo em um universo marcadamente feminino, destaca con-
tradições e desafios similares que, a princípio caracterizados como
detalhes, determinam a coleta e análise de dados no desenvolvi-
mento da pesquisa.

O campo de pesquisa e o percurso metodológico


Geralmente explanado de forma aparentemente fragmentada, o
aborto como objeto de estudo traz uma complexidade específica
que demanda certa transdiciplinaridade à sua própria compreen-
são. Dessa maneira, problematizei o assunto tendo como ponto de
partida o levantamento de artigos, dissertações, teses e outros es-
tudos acadêmicos da Teoria Antropológica, aliando-os a pesquisas
de diversos campos disciplinares - Direito, Saúde, Psicologia, Ciência
da Religião, entre outros -, destacando principalmente o amplo e ao
mesmo tempo profundo tecido que envolve a questão do aborto
na sociedade ocidental moderna.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

283

Além disso, esta pesquisa se apresenta em diálogo com as orien-


tações teórico-metodológicas dos estudos Pós-Coloniais e da An-
tropologia Feminista, tendo como pontos centrais de análise as
relações de poder e gênero que se configuram entre as trajetórias
marcadas pela prática do aborto. O principal instrumento para ob-
tenção de dados no trabalho de campo, portanto, foi a entrevista
com as mulheres que já interromperam uma gravidez indesejada.

Não obstante as críticas à realização de entrevistas como instru-


mento metodológico para a obtenção de dados etnográficos, a im-
possibilidade de observar a realização de um procedimento aborti-
vo, por exemplo, tornou a narrativa uma estratégia primordial para
o acionamento de um tema de foro tão íntimo e moralmente deli-
cado. Aqui, não nos cabe comprovar a suposta veracidade de fatos
concretos ou elencar relatos descritivos sobre situações. O que in-
teressou nesta pesquisa foram narrativas de experiências pessoais
e subjetivas sobre situações de abortamento, a partir da ótica das
próprias protagonistas. Dessa forma, as entrevistas se apresentaram
como o caminho mais próximo de “olhar, ouvir, escrever” (CARDOSO
DE OLIVEIRA, 2000) experiências de aborto.

Para tal, parti de uma perspectiva ligada à Antropologia Pós-Co-


lonial, que prioriza a narração das vozes subalternas a respeito de
situações de opressão, exclusão em contextos de conflitos polí-
ticos e relações de poder nas quais estão inseridas (CARVALHO,
2001). A partir de um breve levantamento bibliográfico sobre a
produção acadêmica no Brasil a respeito do aborto, percebi que
boa parte das análises converge para discursos oficiais ou institu-
cionais, centralizando assim o olhar antropológico sobre as estru-
turas sociais e suas estratégias de coerção, abordando a mulher
sob a posição de “vítima”.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

284

Na arena de embates discursivos que se entrecruzam acerca do


aborto entre o discurso jurídico que constrói a “criminosa”, o discur-
so religioso sobre a “pecadora” e a construção discursiva biomédica
sobre a “paciente”, as vozes das próprias mulheres que passam por
situações de aborto são silenciadas, invisibilizadas. No âmbito da
produção de conhecimento acadêmico, a maneira como essas mu-
lheres resistem e se reconstroem em meio a essa ordem discursiva
é muito pouco abordada.

Por isso, além de propor a superação entre estrutura-agência (ORT-


NER, 2006a; 2006b), há muito sobrelevada nos estudos das Ciências
Sociais, priorizei a descentralização do olhar antropológico para a
perspectiva das vozes silenciadas, subalternas, e sua capacidade de
se subjetivar autonomamente, como ponto de partida para a cons-
trução desta etnografia (SPIVAK, 1993).

É no diálogo entre as perspectivas pós-colonial e feminista que


apresento as reflexões analíticas sobre o gênero e o poder como
categorias centrais. Em se tratando do aborto como objeto de estu-
do, a problemática das relações de gênero vem à tona como consti-
tuinte das relações que servem como fio condutor desta pesquisa.
Adotei como ponto de partida a sugestão teórico-metodológica de
Strathern (2006), de compreender o gênero como:
[...] categorizações de pessoas, artefatos, eventos,
sequências etc. que se fundamentam em imagens -
nas maneiras pelas quais a nitidez das características
masculinas e femininas torna concretas as ideias das
pessoas sobre a natureza das relações sociais (STRATHERN,
2006, p. 20)

Além disso, ao destacar, através dos relatos em questão, “um jogo


cultural muito elaborado [...] de prestígio masculino [...] em uma
arena particular das relações de poder – a de gênero”, abordo a cen-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

285

tralidade do poder “tal como organizado e incorporado à ordem


cultural ou institucional”, assim como constitutivo de uma “relação
social real de atores na vida concreta” (ORTNER, 2006a, p. 24). Ou
seja, aliado ao gênero, o poder surge aqui como categoria de análi-
se, principalmente auxiliando na compreensão acerca da trama de
relações que envolve o saber médico, o poder jurídico, o discurso
religioso e a perspectiva feminista.

A análise do poder nas relações sociais em torno do aborto surge


a partir da perspectiva foucaultiana acerca das práticas discursivas
(FOUCAULT, 2004) em torno de disputas sobre moralidades, do po-
der disciplinar e do poder biopolítico (Idem, 2008) como constituin-
tes das relações sociais travadas entre os sujeitos da pesquisa e as
estruturas e que influenciam ativamente no processo de subjetiva-
ção do sujeito (Idem, 2004).

Ao enfocar a memória e a subjetividade através da dimensão biográfica


e reivindicar a adoção de referenciais teóricos e metodológicos ligados
às perspectivas de cunho feminista e pós-colonial, busco a superação
da suposta “neutralidade” científica. Não há como tentar compreender
o entrecruzamento de práticas discursivas e de relações sociais e a ma-
neira como se configuram em uma determinada cultura sem situar o
conhecimento, isto é, sem relativizar o processo cognitivo do conheci-
mento a partir das circunstâncias em que ele ocorre.

Dito de outro modo, “o conhecimento pode estar mais ou menos


vinculado à experiência e às habilidades de indivíduos ou grupos,
sendo assim mais ou menos compartilhável ou transferível” (CUPA-
NI, 2004, p. 14), ou seja, propor a produção de conhecimento acerca
dos aspectos entremeados na prática do aborto a partir da narrati-
va de mulheres que já passaram por essa experiência é reconhecer
que o conhecimento adquirido pelos indivíduos sobre as relações
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

286

estabelecidas e a maneira como ele mesmo se configura como su-


jeito social é objetivado (FOUCAULT, 2004) e pode ser representado
simbolicamente. Em outras palavras, “é impossível que o conheci-
mento não contenha traços que pertencem ao sujeito cognitivo e à
sua matriz biossocial” (CUPANI, 2004, p. 14).

Por fim, as narrativas dos sujeitos da presente pesquisa colocam


como imprescindível a reflexão sobre a memória e o silêncio. Ao re-
colher histórias de vida, pode-se refletir até que ponto as memórias
resgatadas no momento da entrevista são realmente individuais, em
se tratando de sujeitos inseridos em relações de poder, controle e do-
minação em um contexto moral e sociocultural específico. O longo
silêncio incorporado pelas interlocutoras que abortaram – revelado
principalmente através da recusa em falar sobre o assunto e em as-
sumir suas identidades ao relatar suas experiências – contrasta com
a enxurrada de discursos e representações oficiais acerca do assunto.
Mas o contraste não está no “não falar” ou “não revelar”. Ao contrá-
rio, é através do próprio silêncio que procuro analisar o seu poder de
revelação e a maneira como ele “fala” dados imprescindíveis à com-
preensão dos sentidos entremeados nas narrativas colhidas.

Aborto: produção antropológica


Pesquisas acadêmicas sobre aborto no Brasil, em sua maior parte
de caráter transdisciplinar, intensificaram-se principalmente a partir
dos anos 1990, pela junção de alguns fatores, entre os quais: a in-
serção da bioética como campo de produção de conhecimento nos
cursos de pós-graduação em saúde coletiva e a aproximação desse
campo com os estudos de gênero, a partir do “reconhecimento de
que gênero é uma variável de pesquisa para a compreensão e aná-
lise dos conflitos morais em saúde” (DINIZ, 2008b, p. 208); a emer-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

287

gência de “um novo campo de produção científica articulando as


temáticas de gênero, sexualidade e saúde reprodutiva” (MENEZES
& AQUINO, 2009, p. S193); e o desenvolvimento das Teorias Femi-
nistas e dos Estudos de Gênero como ferramentas de produção de
conhecimento aliadas à atuação aos movimentos sociais (Bonetti,
2007b; Grossi, 2004; 2013), entre outros.

Mais especificamente, na disciplina antropológica, o recorte da An-


tropologia Feminista (STRATHERN, 2009), uma vertente disciplinar
“caracterizada pelo grande apego à etnografia e à reflexão acerca do
poder” (BONETTI, 2009, p. 105), tem direcionado maior atenção e cen-
tralidade aos temas relativos às relações de gênero e poder, como fa-
tor primordial que tem auxiliado significativamente a ampliação dos
estudos e análises acerca do aborto e de assuntos correlacionados.

A partir da proposta desta pesquisa, que não é a de confrontar di-


vergentes discursos e práticas de maneira dicotômica, mas com-
preender as disputas simbólicas e morais em torno de múltiplas
“verdades” disseminadas acerca de um mesmo assunto, e o contex-
to a partir do qual um enunciado se cristaliza como afirmação ab-
soluta, sigo a metodologia proposta por Foucault (2004) de “análise
dos enunciados”, segundo a qual é preciso compreender o discurso
não como aquilo que é dito sobre algo ou como palavras aleató-
rias sem aparente significado, mas como atribuições a objetos e/ou
seres objetificados, como exemplos “o delinquente”, “a mulher que
aborta”, “o criminoso”, entre outros.

Foucault utiliza o conceito de “acontecimento” para se referir a


práticas e discursos que determinam um “atributo” a um objeto ou
a um ser – o atributo seria uma propriedade que se atribui a algo,
aquilo que se afirma sobre o ser, mas não como uma característica
do ser em si. Ou seja:
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

288

[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao


mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que
têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar
seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade (FOUCAULT, 2004, p. 8-9).

É através das “práticas discursivas” que um acontecimento ou atri-


buto é apreendido como “verdade”, em detrimento a uma multipli-
cidade de discursos que disputam a legitimidade sobre o que se
afirma. A partir de então, o atributo passa a ter “realidade material”.
Para que determinado enunciado possa ser formulado e, conse-
quentemente, disseminado, é preciso que outros enunciados sejam
esquecidos, calados, invisibilizados. Por isso, essa análise dos dis-
cursos não se debruça somente no que “é dito” acerca do aborto,
mas também sobre discursos silenciados, pois “mais importante do
que a questão de opor uma determinação à outra (razão/desrazão)
é preservar a multiplicidade dos discursos, das narrativas, dos enun-
ciados” (TEMPLE, 2013, p. 141-2).

A análise do cenário de disputas discursivas acerca do aborto traz


em si a necessidade da compreensão sobre os procedimentos pelos
quais um discurso é recortado, situado, delimitado e disseminado,
para então se tornar um instrumento através do qual se reivindica
a “verdade” e a legitimidade social em torno dela. Ao considerar a
história como um acontecimento apreendido a partir de múltiplas
“verdades” discursivas, compreende-se que o deslocamento das
narrativas de mulheres criminalizadas pela prática do aborto para
o espaço de centralidade a partir do qual se conduz este estudo
acaba por restituir à própria história vozes silenciadas diante dos
diversos saberes instituídos.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

289

Através das narrativas colhidas junto às próprias protagonistas de


um contexto de aborto e cujas vozes são invisibilizadas não só pelos
discursos oficiais como também pela produção acadêmica sobre o
assunto, foi possível trazer à tona elementos subjetivos constituin-
tes da prática do aborto, tais como: a influência das relações sociais,
familiares e conjugais no processo de decisão que culmina em um
aborto; os discursos morais em torno da sexualidade e dos direitos
reprodutivos configurados em torno dos sujeitos; estratégias acio-
nadas a partir do estabelecimento de relações de poder, identifi-
cadas principalmente em percursos de atendimento médico-hos-
pitalar; as representações sociais que são construídas em torno de
parentalidades; e, principalmente, os sentidos atribuídos ao aborto
por parte das próprias mulheres cujas trajetórias seguem marcadas
pela invisibilidade, pelo silêncio e por representações de estigma. É
a partir de suas respectivas vozes que essa análise se debruça, colo-
cando os próprios sujeitos sociais na centralidade da produção de
conhecimento antropológico. Ao todo, foram entrevistadas quatro
mulheres que trazem consigo diferentes trajetórias reprodutivas,
familiares, conjugais e políticas, mas com um ponto em comum: são
corpos marcados pela prática do aborto criminalizado, inseguro e
clandestino. Como limite de análise para este artigo, foi escolhido
um único caso, devido à sua singularidade em relação aos demais
depoimentos sobre os processos de abortamento e suas diferentes
elaborações. A singularidade do caso de Laura133 se deve ao cru-

133 Laura é um nome fictício escolhido pela própria entrevistada. Conhecemo-nos


há muitos anos através de amigos em comum e fui informada por outra entre-
vistada que ela havia passado por uma “experiência dolorosa” ao interromper
a gravidez e decidi abordá-la pedindo que aceitasse colaborar com a pesquisa.
Mandei um recado através de uma rede social em particular e ela respondeu
positivamente, com a condição de que eu “não contasse para ninguém” sobre
a experiência dela e prometesse não revelar sua identidade.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

290

zamento de elementos de diversas ordens aprofundados na dis-


sertação “Gênero, poder e silêncio: um olhar antropológico sobre
narrativas de aborto”, como os aspectos religiosos que envolvem as
delicadas discussões sobre o aborto na concepção acerca da vida e
de quando ela se inicia; a contextualização do aborto no campo da
bioética, os impactos da ilegalidade do aborto na relação entre os
profissionais de saúde e as usuárias da rede pública de saúde, es-
pecialmente em casos de aborto; a centralidade do corpo feminino
como instrumento de punição moral, entre outros.

Um estudo de caso: aborto vivido, corpo punido, memória


silenciada

Do silêncio à libertação
“Um aborto e emudeci. Não perdi a voz, nem o direito
de falar, mas me tranquei por medo e por julgamento.
Não era o que deveria ser, mas foi, pois quando tudo
aconteceu (porque eu quis) estava tão trancada em falar
do meu “erro”, do meu “pecado”, da minha “falta de amor”
que preferi emudecer ao ser julgada.

Sufoquei a minha dor e dor internalizada é uma ferida que


não pode ser curada, que inflama e mata.

Dois abortos e uma parte de mim morreu ali, naquela sala


em que acordei sem a pulseirinha de identificação (que
coloca no braço da mãe para relacionar a criança). Morri
e ainda tinha tantas perguntas a serem respondidas: “foi
susto?”, “você queria mesmo?”, “você usou algo?” e eu
pensando o que tinha feito para me culpar de alguma
coisa e acabar logo com a inquisição.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

291

Nunca deixei de ser falante, conversar sou muito boa, mas


se alguém toca no assunto logo eu pensava “acho que vou
ali”, “banheiro” e fugia disso para não começar novamente
o turbilhão de perguntas, àquelas perguntas que não
importa a resposta porque cada um vai criar uma versão
diferente do que eu fiz de errado, mesmo que existam
coisas que não precisem ser respondidas.

Um dia vejo uma pesquisadora querendo entrevistar


mulheres que já tivessem feito aborto e penso: “acho que
vai ser difícil pra ela então vou ajudar”, mal sabia eu que
seria o contrário, que estaria ajudando a mim mesma a me
libertar desse silêncio forçado, das palavras contidas, das
sensações escondidas e dos maus tratos na maternidade
sufocados com gosto e cheiro de hospital.

Falar disso não é fácil, não foi simples, mas foi libertador.
Alguém que não podia me julgar, que eu podia falar a verdade
sem ter que montar uma história que agradasse porque não
teve nada de agradável em nenhuma situação que passei.
Surpreendentemente contei e pronto, ponto. Então é assim,
eu sou normal mesmo tendo acontecido isso comigo?

Sentia-me frustrada porque “um raio não cai no mesmo


lugar duas vezes” e caiu, mas depois de poder falar sobre
isso procurei ajuda psicológica pensando que podia sim
superar o trauma (e que trauma!), então na primeira
sessão com a psicóloga para falar sobre isso eu adoeci,
mas falei tudo, sensação por sensação do dia com as
palavras que eu queria sem precisar medi-las.

Tive febre alta o resto do dia 39° - 40°, meu corpo tremia
de frio e esquentava as roupas, diarreia, náuseas, dor de
cabeça, dor no estômago. Meu corpo entrou num colapso
da libertação de tirar uma capa de “mulher de ferro” que
pesava muito mais do que eu podia suportar, do que eu
segurava sozinha e eu senti que a ferida estava exposta e
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

292

que o vento e a água que passavam no meu corpo tinham


a possibilidade de poder cicatrizá-la.

Na libertação da voz, da mente, do corpo que senti que


eu não sou incompleta, eu não sou incapaz, eu não deixei
de ser mulher e nem virei um monstro, eu apenas passei
por processos difíceis e precisava de ajuda ao invés de
julgamento. Por isso agradeço muito a pesquisadora pela
iniciativa, por ter deixado esse sangue estancado correr
do meu coração, por ter libertado minha voz a dizer que
eu sou sim responsável por minhas decisões, mas que elas
pertencem a mim.

Não é o aborto somente que nos machuca (porque essa


decisão é muito difícil, quando não é decidido também é
muito difícil), é o silêncio forçado por uma sociedade que
fala mais do que deveria, que coloca a mulher no sagrado
e no profano a seu bel prazer. É quando esse silêncio é
rompido que se rompem as amarras da injustiça, que abre
a porta para a liberdade entrar e espaço para o amor (o
verdadeiro) existir.”

Aracaju, 04 de julho de 2014

Laura

O relato acima é da interlocutora Laura, 26 anos, que passou por


dois abortos: um provocado e um espontâneo, em um intervalo de
três anos. Ela pediu para nos encontrarmos em seu local de trabalho
para a realização desta entrevista e logo deixou claro que eu era a
primeira pessoa com quem ela conversava sobre o assunto, mes-
mo depois de alguns anos. Quatro meses depois da entrevista, ela
me enviou esse depoimento, destacando que “só então” percebeu
“o quanto guardar isso estava fazendo mal”. Em seu relato, além do
que já havia sido dito na ocasião da entrevista, é nítida a dificulda-
de da interlocutora em falar sobre o assunto, sobre a sua própria
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

293

experiência e sinais de dor, trauma, medo e silêncio. Aos 21 anos,


ela se deparou com a descoberta da primeira gravidez, destacando
que sempre teve “vontade de ser mãe”, mas uma série de fatores a
“impediam” de concretizar esse desejo:
Quando descobri que tava grávida, fiquei muito confusa.
Eu sempre quis ser mãe, alimentei muito isso, mas naquele
momento era muito complicado. Eu não me sentia segura
com meu companheiro na época, achava que ele não tava
preparado pra ser pai e as responsabilidades que viriam
junto com um filho. E ainda tinha a questão financeira,
a gente ainda estudava, como é que eu ia chegar em
casa dizendo que tava grávida? Ia ser muito difícil minha
família aceitar. Se não fosse tudo isso, um companheiro
que desse pra formar família, um emprego fixo, eu acho
que teria sim (Laura).

Laura decidiu abortar, mas não sabia como fazer. Através “da amiga de
uma amiga”, descobriu que poderia comprar misoprostol134 em uma
farmácia da cidade, onde seria instruída “por um farmacêutico” sobre
como tomar a medicação. Laura foi à farmácia indicada com o então
namorado, que comprou o remédio enquanto ela o esperava no carro.
Ele chegou lá e disse que queria um remédio pra resolver
um problema. O farmacêutico já entendeu logo e voltou
com o remédio embalado. Cada comprimido foi R$ 80,
então ao todo ficou R$ 300. Ele disse pra tomar dois e
colocar dois por baixo e que se não tivesse efeito, tinha
que tomar mais dois e enfiar mais dois (Laura).

134 “O misoprostol, substância análoga à prostaglandina, amplamente conhecido


por seu nome comercial, Cytotec, é utilizado para prevenção de úlceras gástri-
cas associadas à administração de anti-inflamatórios não esteróideos (ANES).
Além disso, o misoprostol estimula as contrações uterinas, de modo que é usa-
do, com frequência, por mulheres com a finalidade de interrupção da gravi-
dez” (PORTO, 2009. p. 116).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

294

Na mesma farmácia onde comprou o medicamento, Laura foi in-


formada a respeito de um médico especialista em obstetrícia que
“realizaria o aborto de maneira segura, com um anestesista”.
Eu liguei pra ele e disse que estava com um probleminha pra
resolver e que peguei o número dele na farmácia. Ele disse
pra eu ir no consultório dele pra gente conversar, e disse
que era R$ 3 mil. Onde eu ia arrumar esse dinheiro todo?
Tomei o remédio em casa mesmo. É bem horrível, depois
que toma sente muita dor, pode ou não fazer o efeito. Estava
psicologicamente decidida a tomar, mas achava que a culpa
era minha, eu não tinha me cuidado (Laura).

Anteriormente utilizado para tratamento de úlcera gástrica, o mi-


soprostol entra em cena nos contextos de abortamento no início
dos anos 1990 – não se sabe ainda se difundido clandestinamente
por farmácias e profissionais da saúde ou se a disseminação de seu
uso deve-se ao uso obstétrico para indução do parto. O fato é que,
estudos da área de Saúde Coletiva, realizados entre os anos de 1990
e 2000, identificaram três razões pelas quais as mulheres passaram
a substituir os chás, ervas e objetos perfurantes pelo misoprostol:
“privacidade, segurança e recusa ao aborto em clínicas privadas”
(DINIZ, 2008a, p. 29). Nesse sentido:
[...] estudos que enfocam as complicações pós-aborto
destacam a menor ocorrência de eventos infecciosos
e hemorrágicos com o uso do Misoprostol, situação
distinta daquela identificada em pesquisas realizadas no
início dos anos 80, em que métodos mais agressivos para
interrupção da gravidez eram citados (MENEZES; AQUINO,
2009, p. S196).

Independente do método utilizado e das condições em que o


procedimento é realizado, as complicações por aborto incomple-
to representam uma das quatro principais causas de internação
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

295

hospitalar no Brasil (FONSECA, 1997), fator citado por Laura como


determinante para a escolha pelo uso do misoprostol. Durante a
entrevista, ela declarou ter tido “muito medo” de uma possível com-
plicação causada pela ingestão do medicamento, mas era “o único
jeito de minha família não saber”.

Após ingerir o medicamento, Laura apresentou hemorragia e, sen-


tindo fortes dores, buscou atendimento médico em um grande
hospital de urgência da cidade. Na sua narrativa, fortemente entre-
meada de silêncios, lágrimas e soluços, ela relata práticas médicas
de atendimento desumano, culpabilização e represália moral:
Cheguei no balcão e disse que tava sentindo muita dor
porque tinha provocado um aborto. Já percebi logo os
olhares e eu fiquei um tempão esperando por atendimento.
Quando o médico me chamou, levei uma hora de sermão,
ele me chamou de irresponsável, falou que eu devia ter
pensado nas consequências, que a gente tem que controlar
antes do sexo, mas não pode controlar o que Deus quer. Eu
chorava muito, mal conseguia ouvir o que ele tava falando,
ele falava muito de Deus, que eu tava indo contra a lei de
Deus, tentando contornar o que Deus queria. Foi horrível, eu
só queria que aquilo ali acabasse logo, nem me preocupei
em falar nada, porque a dor era muito forte (Laura).

O processo de autoculpabilização de Laura é muito comum em ca-


sos de abortamento no Brasil, em que a piora no atendimento pelos
“profissionais do aborto” torna-se um dos fatores responsáveis por
complicações no atendimento pós-aborto (SCHOR, 1990), fator que
contribui para que a mulher não busque auxílio médico. Entre as
principais causas associadas a óbito relacionado ao aborto “são a
demora em buscar auxílio médico por medo de denúncia policial
e o uso combinado do misoprostol com métodos de alto risco” (DI-
NIZ; MEDEIROS, 2010, p. 1795).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

296

Através do depoimento de Laura, é possível perceber um percurso


de atendimento médico-hospitalar marcado pela centralização do
corpo feminino como instrumento de punição. Mas não é um corpo
qualquer: trata-se de um corpo socialmente visto sob a função da
reprodução, mas que no caso específico de Laura, está marcado por
uma significação específica que o coloca à margem dos padrões
femininos de reprodução, que age “contra a lei de Deus” ao negar
“o dom da maternidade”. Um corpo que, ao se inserir no espaço de
atuação biomédica marcado pela prática do aborto, torna-se um
campo de batalha (LE BRETON, 2010) que aciona em torno de si
uma disputa simbólica por dominação.

Sobre o corpo de Laura são investidos constrangimentos e coerções


que têm como objetivo exercer um controle disciplinar (FOUCAULT,
1987) e, “por ser estratégico no jogo demográfico, passa a ser um
centro de saberes mais apurados, de poderes mais articulados e,
consequentemente, lugar de um discurso superabundante, às ve-
zes até verborrágico” (PERROT, 2003, p. 22).

Ao analisar as relações constituídas entre profissionais da saúde


que trabalham em hospitais e maternidades autorizados pelo MS a
realizar procedimentos abortivos amparados pela legislação brasi-
leira e as mulheres que optam pelo aborto, Porto (2009) constata a
dimensão que o discurso religioso ocupa na biomedicina e que se
manifesta tanto nos discursos quanto nas práticas e comportamen-
tos dos profissionais de saúde. A interferência direta e indireta das
questões morais e religiosas sobre o exercício profissional seria um
fator responsável por causar sérios impactos no corpo e na saúde
reprodutiva das mulheres.

A autoridade e o poder conferidos aos profissionais para atuarem


sobre o corpo de uma maneira geral, especificamente sobre o cor-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

297

po feminino a partir de sua visão de mundo e sua religiosidade um


ambiente biomédico, “incita determinados profissionais a adota-
rem uma postura negligente ou acusatória em diversas situações
de abortamento” (PORTO, 2009, p. 6).

Sob o pretexto da objeção de consciência135, “tais representações


religiosas são heterogêneas e se disfarçam sob outros interesses, o
que acaba destituindo as mulheres de seus direitos reprodutivos”
(Ibid., p. 13), além de negar à mulher o atendimento médico-hospi-
talar de urgência do qual necessita ao dar entrada após a realização
de um aborto em condições inseguras.

O peso do ambiente hospitalar e do atendimento médico prestado


à mulher que acaba de passar por uma situação de aborto é comu-
mente apontado como determinante para as repercussões emocio-
nais traumáticas e/ou depressivas junto a esta mulher, seja o aborto
espontâneo, ou provocado, “pois no ambiente hospitalar a mulher
é tratada com indiferença, sem o apoio devido a ser prestado no
momento em que ela se encontra vulnerável e depressiva” (ASSUN-
ÇÃO; TOSSI, 2003, p. 5).

A atenção prestada a Laura no atendimento pós-aborto reduz-se a


cuidados corporais e técnicos, sem levar em consideração as suas
necessidades físicas e emocionais. Durante a entrevista, Laura afir-
ma que foi naquele momento que “caiu a ficha” sobre o que ela “ha-
via feito”, referindo-se ao próprio processo de internalização de cul-

135 “A objeção de consciência é um instrumento que garante a integridade moral


de profissionais de saúde em situações de confronto com crenças e práticas di-
vergentes às suas convicções pessoais. [...] Em geral, é uma proteção acionada
em situações limite: aquelas em que o profissional de saúde se vê moralmente
ofendido caso prossiga um procedimento ou atendimento. [...] Mas uma carac-
terística dos casos de objeção de consciência que ascendem à esfera pública é
que, em geral, são situações envolvendo mulheres e decisões reprodutivas. Nes-
se cenário, a situação mais recorrente é a de aborto [...]” (DINIZ, 2008b, p. 209).
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

298

pabilidade sobre uma ideia de morte relacionada ao aborto. O que


se percebe aqui é que a maneira como se desenrolou seu trajeto
de atendimento médico-hospitalar, conduzido por profissionais de
saúde foi determinante nesse sentido.

“A médica me mostrou ele lá”: elementos para a construção


moral da maternidade
A noção de “instinto materno” é motivo de históricas controvér-
sias, inclusive entre as produções acadêmicas relacionadas à ma-
ternidade e à família. Difundida principalmente na década de
1970 através da pediatria norte-americana, a tese criada com base
na ciência etológica (o estudo dos comportamentos das espécies
animais) enfatiza o papel da mãe como uma “mamífera por essên-
cia”, explicando o exercício da maternidade através de argumentos
biológicos, como a presença de oxitocina e prolactina na “mater-
nagem” (BADINTER, 2011). Somada ao ideal de “instinto materno”,
a formação histórica da família nuclear moderna, na qual os filhos
ocupam uma posição de centralidade (ARIÈS, 1981), influencia na
construção de um imaginário ideal de maternidade que visa ao
cuidado e à proteção da família.

A internalização subjetiva do “sonho de toda mulher” apresenta


a maternidade como condição da identidade feminina essencial,
ideal que pode configurar-se culturalmente de acordo com o que
Foucault (1999) apresenta como “produções de verdade” associadas
a “jogos de desejo”, um mecanismo de intensificação e multiplica-
ção de desejos que, longe de estar dissociado do poder, ao con-
trário, contribui para produzi-lo. Para Foucault, o poder biopolítico
caracteriza-se como um conjunto de estratégias de controle sobre
a população, de uma:
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

299

[...] arte liberal de governar e a forrnidável extensão dos


procedimentos de controle, de pressão, de coerção que
vão constituir como que a contrapartida e o contrapeso das
liberdades. Insisti bastante sobre o fato de que as tais grandes
técnicas disciplinares que se ocuparn do comportamento dos
indivíduos no dia-a-dia, até em seus mais ínfimos detalhes
são exatamente contemporâneas, em seu desenvolvimento,
em sua explosão, em sua disseminação através da sociedade
(FOUCAULT, 2008, p. 91).

Entre essas estratégias, ele destaca o surgimento e o desenvolvi-


mento da medicina social como um dispositivo de controle sobre a
vida da população por parte do Estado.
O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera
simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas
começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático,
no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade
capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é
uma estratégia biopolítica (FOUCAULT, 1992, p. 47).

Segundo Foucault, é através dessas estratégias de controle e poder


que são produzidos desejos individuais e coletivos, colocando indi-
víduos em uma posição de proximidade com as práticas de poder,
ou seja, “a vontade dos indivíduos não é outra senão a produzida
pelas estratégias do poder” (TEMPLE, 2013, p. 108). Ao reproduzir
a ideia de que a maternidade é “um sonho de todas as mulheres”,
apresenta-se uma escolha que pode ser feita ou não pela mulher –
o exercício da maternidade – como um desejo coletivo legitimado
principalmente por discursos religiosos e biomédicos, revelando as-
sim a intervenção de um poder biopolítico nas relações cotidianas,
familiares, através da produção de verdade (Foucault, 1999).

Este discurso, que apresenta a maternidade como uma “essência fe-


minina” e condição inerente à mulher, por outro lado, contribui para
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

300

a estigmatização e exclusão simbólica das mulheres que evitam a


gravidez por meio de práticas contraceptivas ou que recorrem ao
aborto. No entanto, as questões que envolvem o processo de deci-
são sobre ser ou não mãe estão inseridas em contexto de aconte-
cimentos e de relações sociais muito mais complexo do que possa
ser determinado.

Através do próprio depoimento de Laura, não se pode afirmar que


a decisão pelo aborto configura-se exatamente em uma “negação”
da maternidade, visto que no mesmo depoimento ela afirma que
“sempre quis ser mãe, alimentei muito isso, mas naquele momento
era muito complicado”. A confusão psicológica e sentimental frente
a um processo de decisão que envolve desde a descoberta de uma
gravidez indesejada até a realização do aborto é sintomático de uma
trama de sentidos muito mais ampla do que se pretende determinar
através de discursos oficiais de criminalidade e culpabilização.

Diante de uma gravidez indesejada, Laura optou por realizar o


aborto, mesmo tendo “alimentado muito” o desejo de ser mãe. Esse
conflito interno é intensificado ainda mais quando entra em cena o
poder biomédico, através da tecnologia de imagem que, no contex-
to da reprodução, associa-se à construção social da maternidade.
De maneira geral, o exame médico, ao ser introduzido como re-
curso primordial na regulamentação dos cuidados com a saúde da
população, tem como característica principal a classificação entre o
que está “normal” e o que não está, conjugando o estabelecimento
da verdade, do poder e do saber (FOUCAULT, 1992).

Ou seja, é o exame ultrassonográfico que vai não só estabelecer


uma “verdade” sobre a existência da gravidez, como também confir-
má-la dentro das condições de “normalidade” que se espera da mes-
ma – não somente no tocante ao aspecto fisiológico da gestação,
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

301

mas também com relação às condutas moralmente recomendadas


em torno da maternidade. Desde que o exame de ultrassonografia
passou a ser incorporado pela medicina obstetrícia, em meados da
década de 1950, o acompanhamento da gestação, desde o início
até o parto, passa a ser considerado como um fenômeno de respon-
sabilidade estritamente médica, acontecimento conhecido como
“medicalização da maternidade” (CHAZAN, 2005) ou “medicalização
da reprodução” (LUNA, 2007a).

Segundo Chazan, a explicação para esse fenômeno estaria na:


[...] conexão entre o surgimento do feto nos discursos e
nas práticas e a medicalização do parto, em torno dos
anos 1930 a 1950. Para Arney, o surgimento do feto nos
discursos e nas práticas é decorrente da medicalização e
da expansão do projeto obstétrico, além de uma estratégia
de contraposição ao movimento do parto natural. Shorter
parece considerar que a partir do surgimento do feto há
um reforço na medicalização da gravidez. As diferentes
abordagens podem ser vistas como complementares,
evidenciando um ciclo de realimentação positiva entre a
construção do feto como paciente e a medicalização do
parto e da gestação (CHAZAN, 2005, p. 145).

Com a medicalização da gravidez e a incorporação da ultrassonogra-


fia como condição essencial do acompanhamento médico da ges-
tação, o embrião ganha centralidade como “pessoa”, “indivíduo”, que
merece todos os cuidados, mesmo antes de nascer. Quando ques-
tionada se, em algum momento entre o processo de descoberta da
gravidez e a realização do aborto ela havia se sentido “mãe”, Laura res-
pondeu que “desde o início estava decidida a abortar, mas quando fiz
a ultrassom e a médica me mostrou ele lá, me senti mal, culpada por
perceber que estava tirando uma vida”. A visualização do feto ainda
dentro do útero através do exame de ultrassonografia não só ajudou
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

302

a repercutir no imaginário de Laura a existência de “uma vida” que ela


estava prestes a “tirar”, como também foi determinante para construir
em Laura um sentimento de maternidade que até então não existia.
Em sua trajetória médico-hospitalar, a realização do exame ultrasso-
nográfico foi determinante para a construção da sua memória acerca
do que poderia representar a gravidez indesejada e um papel a ela
atribuído de mãe pelo poder médico.

A construção dessa subjetividade é chamada por Chazan de bon-


ding, processo através do qual:
[...] o vínculo precoce mãe-bebê é rapidamente aceito
e incorporado, tornando-se parte da expansão e da
consolidação do projeto obstétrico e que, contando com
a providencial ajuda dos ultrassonografistas, foi ampliada,
passando a abranger também o feto (CHAZAN, 2005, p. 150).

Em contextos de abortamento, portanto, a maneira como um exa-


me técnico-científico é realizado, aliado ao discurso médico de le-
gimitação de um modelo de “maternidade”, é elemento diferencial
para a repercussão de reações e sentimentos os mais diversos e
complexos, pois os chamados “benefícios” trazidos pela realização
da ultrassonografia à gestante vinculam-se “de modo estreito à dis-
ciplinarização e à medicalização dos comportamentos das gestan-
tes, exercendo um papel potencialmente normativo sobre elas no
mesmo processo em que é reforçada a subjetivação da gravidez e
da gestante” (Ibid., p. 154).

Memória, silêncio e autopunição


Após a realização da curetagem, Laura solicitou ao médico que a
atendeu um atestado, para que “pudesse ir pra casa descansar e
não ter que trabalhar”. Mas “o médico disse que eu não precisava de
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

303

atestado não, porque a curetagem era um procedimento simples e


eu poderia sair andando tranquilamente. Eu disse que não era sim-
ples, que foi muito invasivo e agressivo e que eu estava me sentindo
mal, eu tava sangrando e ainda sentia dores. Ele disse assim: invasi-
vo foi o que você fez. E aí a médica que fez a ultrassom me deu um
atestado de 40 dias e me recomendou repouso.”

No entanto, ela seguiu para o trabalho, pois “não queria prejudicar


meus alunos por um problema que na verdade era meu, eu que
tinha causado tudo aquilo”. Mesmo com o documento em mãos
que lhe garantia o direito a 40 dias de repouso, Laura afirma ter
ido trabalhar, “segurando a dor e tentando disfarçar, pra ninguém
perceber, porque eu tinha noção de que o que eu fiz foi errado e
não quis comprometer a vida dos alunos que dependiam de mim
pra terminar o ano letivo”. Após todo o trajeto pelo hospital para a
realização da curetagem, esse foi o início de um longo processo de
autossilenciamento e culpabilização.

A trajetória médico-hospitalar de Laura, tendo como pontos nortea-


dores as pessoas com quem ela se relacionou e as práticas discur-
sivas nesse percurso, é um acontecimento fundamental para com-
preender o silêncio que envolve a prática do aborto. Assim como
boa parte das mulheres que já provocou aborto, Laura só aceitou
falar sobre o assunto com a condição de que eu “não contasse para
ninguém” sobre a sua experiência, tampouco revelasse a sua iden-
tidade, deixando claro que eu era “a primeira pessoa com quem ela
falava detalhadamente sobre o assunto”.

Após a entrevista, ela decidiu compartilhar outro depoimento,


dessa vez em forma de desabafo – reproduzido anteriormente –,
para falar sobre impactos psicológicos e emocionais que a realiza-
ção desta entrevista lhe causaram, por conta do acionamento da
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

304

memória a respeito desses acontecimentos. Assim como pode ser


destacado na ocasião pós-curetagem e no evento do qual ela par-
ticipou em Brasília, o silêncio ganha centralidade como categoria a
ser melhor analisada.

Ao dissertar sobre o peso da normatização e das práticas discur-


sivas para a constituição dos sujeitos e, ao mesmo tempo, desta-
car a necessidade de analisar mais profundamente o processo de
silenciamento de Laura a partir de sua experiência, retomada pelo
acionamento da memória enquanto narrativa, o objetivo deste es-
tudo não era o de transformar o silêncio da interlocutora em um
“discurso” ou “dar voz” a um discurso que fora invisibilizado. Nesse
sentido, o silêncio torna-se central a partir da necessidade de com-
preensão de sua presença como componente de uma situação de
estigmatização, de exclusão, de marginalização e confinamento.
Tomando como pano de fundo a experiência de Laura, o silêncio
aparece como elemento que se constitui a partir de um processo
de sujeição, cuja análise torna-se essencial para compreender os as-
pectos morais e simbólicos em torno de contextos de abortamento.

Após a realização do aborto e da curetagem, Laura “emudeceu” so-


bre esse episódio de sua trajetória reprodutiva. No evento em que
várias mulheres foram questionadas sobre a possibilidade de ter
provocado um aborto, Laura não levantou a mão e se negou a falar
sobre a sua experiência. Ao preferir “emudecer ao ser julgada”, Laura
também não falou sobre o assunto com sua família, amigos e outras
pessoas com quem se relaciona, e só aceitou colaborar com a pes-
quisa mediante a minha promessa de manter o anonimato sobre
sua identidade.

No entanto, o processo de silenciamento incorporado e reproduzido


pela interlocutora não se reduz à linguagem – ao receber um atesta-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

305

do médico que comprovava sua necessidade de repouso de 40 dias


e, mesmo assim, trabalhar “normalmente” após a realização de um
procedimento delicado, “segurando a dor e tentando disfarçar, pra
ninguém perceber, porque eu tinha noção de que o que eu fiz foi
errado e não quis comprometer a vida dos alunos que dependiam
de mim pra terminar o ano letivo”, estamos diante de um corpo que
também fora silenciado – não somente pelo discurso médico de cul-
pabilização, mas também pela própria interlocutora, que, inevitavel-
mente se constitui nos desdobramentos das relações de poder.
Mas o corpo também está diretamente mergulhado
num campo político; as relações de poder têm alcance
imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem,
o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a
cerimônias, exigem-lhe sinais. [...] Temos em suma que
admitir que esse poder se exerce mais que se possui, que
não é o “privilégio” adquirido ou conservado da classe
dominante, mas o efeito de conjunto de suas posições
estratégicas — efeito manifestado e às vezes reconduzido
pela posição dos que são dominados. Esse poder, por
outro lado, não se aplica pura e simplesmente como uma
obrigação ou uma proibição, aos que “não têm”; ele os
investe, passa por eles e através deles; apoia-se neles, do
mesmo modo que eles, em sua luta contra esse poder,
apoiam-se por sua vez nos pontos em que ele os alcança
(FOUCAULT, 1987, p. 29-30).

O percurso do silêncio em um contexto de abortamento exercido


em meio a relações de poder em uma instituição de diagnóstico,
controle e classificação, como o hospital, portanto, é componente
de um processo de exclusão que, segundo Foucault, “denuncia não
apenas os procedimentos de sujeição dos discursos, mas, também,
os de sujeição do sujeito” (Ibid., p. 155). O silêncio ao qual Laura fora
submetida no hospital, tanto em relação ao seu discurso/lingua-
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

306

gem, quanto em relação a um corpo punido e oprimido, não pode


ser dissociado do processo de objetivação através de imposições
que lhe são exteriores e que estão entremeadas em um processo
de objetivação que se manifesta, principalmente através de práticas
discursivas e divisórias segundo as quais “o sujeito é dividido no seu
interior e em relação aos outros”, através de um processo que o ob-
jetiva, como “o louco e o são, o doente e o sadio, os criminosos e os
‘bons meninos’” (FOUCAULT, 1995, p. 231). O saber médico, a centra-
lidade do feto em práticas discursivas biomédicas que apontavam
“a irresponsabilidade de tirar uma vida”, a situação de diferenciação
coercitiva ao ser encaminhada a uma sala junto com parturientes,
portanto, compõem uma rede tecida por elementos de punição fí-
sica, psicológica e simbólica.

Considerações finais
Diante dos fatos elencados, os discursos e práticas adotados por
Laura após a sua experiência particular de aborto, principalmente
no tocante ao percurso que enfrentou ao entrar no hospital para
a realização da curetagem, não podem ser analisados e interpre-
tados sem que se leve em consideração as relações de poder es-
tabelecidas nesse percurso, a força das práticas discursivas bio-
médicas para a sua subjetivação enquanto “pecadora”, “criminosa”,
“irresponsável” e, em consequência disso, a sujeição a mecanis-
mos de poderes e, finalmente, à reprodução de um silenciamento
à qual ela mesmo fora submetida – ao negar a si mesma o direito
de repouso físico e mental, “ignorando” o atestado que ela havia
solicitado ao médico que a havia oprimido e, em uma situação de
debate coletivo acerca de experiências de aborto, ter se recusado
a falar sobre sua experiência.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

307

A reprodução do próprio processo de silenciamento pode ser pen-


sada como uma ação que, ao fazer parte dos desdobramentos dos
mecanismos de poder, não deve ser pensada a partir de uma di-
cotomia do tipo estrutura x indivíduo, mas a partir de um comple-
xo contexto que envolve, também, a subjetivação do indivíduo e a
constituição de uma subjetividade.

Aqui, não abordo o poder como simplesmente uma força externa


que age sobre um indivíduo “desprevenido”, mas como um conjun-
to de mecanismos que, ao agir sobre o indivíduo, objetivando-o
a partir de classificações de caráter de exclusão, como “criminosa”,
também provoca a sua própria subjetivação, ou seja, a internaliza-
ção dessas “verdades” e a sua consequente reprodução.

Ao “escolher” a reprodução do silêncio sobre si mesma e sobre sua


própria experiência de aborto em seus círculos de convivência,
mesmo diante de mulheres em um evento de caráter feminista,
Laura não só reproduz subjetivamente os processos de objetivação
e subjetivação pelos quais passou diante de um poder biomédico,
como também utiliza o silêncio como proteção – uma proteção
diante de pessoas que “podem julgá-la”. O silêncio de Laura a res-
peito de sua experiência só foi quebrado a partir da realização desta
pesquisa, diante de uma relação de confiança estabelecida, sob a
promessa do anonimato, pois eu seria “alguém que não podia me
julgar, que eu podia falar a verdade sem ter que montar uma histó-
ria que agradasse”.

Esse processo de silenciamento, iniciado e desenvolvido a partir de


relações de poder, envolvendo a sujeição do corpo, os jogos de ver-
dade a que são submetidas as práticas discursivas e o exercício da
punição, é um elemento que não pode ser dissociado da análise
sobre narrativas de abortamento.
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

308

A batalha simbólica entre “legalidades” e “moralidades” está presen-


te não só no relato de Laura, mas também em todas as outras narra-
tivas apresentadas. Em meio a toda a arena de embates discursivos
em que se insere a questão do aborto e em torno da qual se cons-
troem representações as mais diversas acerca da vida e da morte,
os relatos nos mostra que a problemática apresenta uma complexi-
dade muito maior que a dicotomia usualmente acionada entre “ser
contra” ou “a favor” do aborto.

Além disso, também foi possível perceber, através das entrevistas,


que o contexto restritivo da lei brasileira quanto ao aborto (DINIZ;
MEDEIROS, 2010) não exerce significativa influência no processo de
decisão da mulher sobre interromper uma gravidez. Ao contrário,
diante da proibição legal do aborto, percebe-se que elas acionam
uma rede de contatos em torno de pessoas que elas acreditam ter
informações sobre a comercialização de Cytotec e/ou sobre pessoas
que realizam o procedimento de maneira cirúrgica. Mesmo falando
sobre o “medo” do aborto como um fator causado pela “atmosfera
da ilegalidade”, tanto Laura quanto as outras entrevistadas mantive-
ram sua decisão de abortar.

Além disso, a escolha pelo método leva em consideração a questão


financeira, a disponibilidade do método e, em alguns casos, a sen-
sação de “segurança”. Laura e as outras entrevistadas compraram
Cytotec através do acionamento de uma rede de amigos. Além do
medicamento, Laura tinha em mãos o contato de um médico que
fazia o aborto, mas não tinha dinheiro suficiente para pagar o preço
que ele cobrava. Ao passo que a situação de ilegalidade não restrin-
ge a prática ou não impede que as mulheres recorram ao aborto
clandestino como alternativa frente a uma gravidez indesejada, ela
beneficia financeiramente pessoas que conseguem comercializar o
Aprendendo Antropologia em Sergipe: experiências de pesquisa e de ensino

309

Cytotec e profissionais de saúde que fazem o procedimento cirúr-


gico na ilegalidade.

Diante da informação recebida por Laura sobre “um médico espe-


cialista em obstetrícia que realizaria o aborto de maneira segura,
com um anestesista”, a questão financeira em um contexto de ile-
galidade surge como fator determinante para a realização de um
aborto considerado seguro.

Por sua vez, a relação que a mulher estabelece com o corpo médico
também é um elemento presente na narrativa e que se torna deter-
minante para configurar a maneira pela qual ela passa a interpretar
sua experiência de aborto, destacando elementos como “trauma”,
“silêncio” e “culpabilização”. A narrativa nos mostra, portanto, que
embora o contexto de ilegalidade ajude a elaborar discursos e signi-
ficados controversos quanto à questão do aborto, os impactos emo-
cionais de “tristeza”, “trauma”, “sofrimento” e “culpa” estão associados a
aspectos morais e aos sentidos subjetivamente construídos sobre a
gestação indesejada, demonstrando a complexidade da relação en-
tre os aspectos morais/filosóficos acerca do aborto e da percepção
atribuída ao feto/embrião. As relações familiares e conjugais também
foram destacadas nas narrativas como fatores que se refletem direta-
mente não só no processo de decisão que culmina no aborto como
também no processo de elaboração sobre o acontecimento.

A partir de diferentes trajetórias e do olhar antropológico sobre nar-


rativas pessoais e a maneira como as mulheres dão sentido às suas
experiências de aborto, é possível perceber uma complexidade
muito maior do que os determinantes disseminados como “verda-
de” por discursos religiosos, biomédicos ou jurídicos. Entre as práti-
cas e os significados atribuídos pelas mulheres às suas próprias ex-
periências e os discursos oficiais que propõem e legitimam políticas
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310

públicas e determinantes legislativos – criação de leis ou alteração


dos códigos vigentes – que se refletem diretamente na vida dessas
mulheres, há certo distanciamento que necessita ser reavaliado.

As narrativas das mulheres marcadas por trajetórias de aborto as-


sociam-se diretamente a um contexto sociopolítico que se destaca
pela inserção de discursos religiosos nos espaços de discussão e
decisão política, a exemplo do julgamento sobre a legalidade da in-
terrupção de gravidez em casos de anencefalia fetal no STF (VEJA...,
2012); do peso representativo da bancada parlamentar evangélica
para a revogação da Portaria nº 415, de 21 de maio de 2014, que
que estabelecia o registro específico, na tabela do Sistema Único de
Saúde (SUS); e das recentes posições adotadas publicamente pelo
presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha, eleito sob apoio da
bancada evangélica, sobre a “impossibilidade” de qualquer projeto
relacionado à legalização do aborto ser votado durante seu manda-
to (EDUARDO..., 2015).

Dessa forma, a centralidade que os aspectos morais adquirem nos


diversos discursos que se entrecruzam em meio à prática do aborto
e a ligação que apresentam com os processos vividos e sentidos
pelas mulheres referentes ao aborto mostra a necessidade de pes-
quisas que tenham como foco a relação entre Estado e laicidade,
além do amadurecimento do debate público a respeito do assunto.

Não obstante a relação entre os discursos morais/religiosos sobre


o aborto e as políticas de Estado, torna-se imprescindível também
refletir sobre a relação simbólica entre as leis vigentes e a sua aplica-
bilidade, além da relação desses fatores com “os imponderáveis da
vida real” (MALINOWSKI, 1978).
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