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As aventuras de Karl Marx contra a

pulverização pós-moderna das resistências


ao capital*
MARCELO DIAS CARCANHOLO
GRASIELA CRISTINA DA CUNHA BARUCO

O título deste trabalho é, obviamente, uma paródia baseada na obra


de Löwy1. Ali, o autor procurava mostrar que todo conhecimento e
interpretação da realidade social estão ligados ao que ele chama de
“grandes visões sociais de mundo”, ou seja, que a pretensa neutralidade
ideológica no trato científico – tão cara à tradição positivista – é uma
mera ilusão, mistificação. Neste trabalho, o objetivo é analisar criti-
camente as bases teóricas do pensamento pós-moderno que levam à
defesa de um posicionamento fragmentado e meramente heterogêneo
diante da lógica do capital – que, segundo Marx, é, de fato, totalizante
e homogeneizadora, ainda que do ponto de vista apenas formal.
Na primeira parte, são esboçados alguns elementos do pensamento
de Foucault sobre o caráter microdeterminado do poder, o que pode
ser identificado como um dos fatores que compõem a gênese da ideia
pós-moderna sobre as microcontestações fragmentadas.
A segunda visa discutir o caráter dialético dessas microcontestações.
Se, por um lado, elas apresentam possibilidades no enfrentamento com
a lógica do conteúdo-capital, devido ao fato de que este efetivamente
se manifesta nos distintos terrenos da sociedade; por outro, essas lutas
fragmentadas possuem limites óbvios ao restringirem-se cada uma
S
O
G
I

* Os autores agradecem os comentários críticos de João Leonardo Medeiros.


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1
Michael Löwy, As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo
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na sociologia do conhecimento (São Paulo, Busca Vida, 1987).


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ao seu terreno, supostamente autônomo e independente, reduzindo
assim a própria efetividade de suas contestações.
Na terceira parte, apresenta-se a relação que existe entre essa
dialética das microcontestações e a temática das alternativas ao ca-
pitalismo, principalmente no que diz respeito ao sujeito social que
pode se propor a transformar esse modo de produção, o sujeito
revolucionário. Por último, e como consequência, conclui-se com
uma apreciação crítica sobre o capitalismo e o socialismo dentro da
perspectiva pós-moderna.

Microfísica do poder e microcontestações fragmentadas


O pós-modernismo, enquanto pensamento político-ideológico,
parte da premissa de que a sociedade hoje em dia viveria uma
época de fragmentação2, em que distintas e múltiplas identidades
foram construídas, independentemente de qualquer ordenamento
social mais geral. A isso se relaciona a defesa de que a sociedade
contemporânea seria pós-industrial, isto é, não teria no processo

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produtivo a sua lógica fundante, como na época moderna. Estaria
muito mais ligada ao crescimento do setor de serviços e à exacer-
bação do consumo3.
O individualismo seria, assim, uma de suas características, o que
redefine uma importância para o que se chama micrologia do coti-

DA
diano, isto é, às distintas e heterogêneas microidentidades da vida

GRASIELA CRISTINA
cotidiana. Esse individualismo teria nascido com o modernismo, mas
seria exagerado, de forma narcisista, na realidade pós-moderna.
Dessa forma, cada microidentidade teria como perspectiva política
a atuação voltada aos diversos e específicos modos de opressão e
poder que atingem esses distintos e autônomos campos da vida so-
cial. A origem da defesa pós-moderna das contestações fragmentadas
está no rechaço que essa forma de pensamento promove a qualquer
E

perspectiva totalizante e na defesa que faz da fragmentação da (nova)


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realidade social.

2
A esse respeito ver Deise Mancebo, “Contemporaneidade e efeitos de subjetivação”, em Ana
Mercês Bahia Bock (org.), Psicologia e o compromisso social (São Paulo, Cortez, 2003); e Virgínia Fon-
tes, Reflexões im-pertinentes: história e capitalismo contemporâneo (Rio de Janeiro, Texto, 2005).
3
É exatamente o que fazem Michael Hardt e Antonio Negri, Império (Rio de Janeiro, Record,
2001), cap. 3.4, ao assumirem que a pós-modernidade se caracteriza pela passagem do paradigma
industrial para o dos serviços e da informação, no que eles chamam de informatização.

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Não por acaso, esse tipo de perspectiva parece construir-se, entre
outras bases4, a partir de uma leitura específica do que seja a ideia da
microfísica do poder em Foucault.
A questão do poder passa a ser parte importante do pensamento
de Foucault a partir de um determinado momento, fazendo com que
a genealogia desse5 se torne o projeto central de sua reflexão. Entre-
tanto, não existe, como poderia parecer, uma natureza geral (essência)
do poder. O que há são formas heterogêneas, diferentes, múltiplas
e dispersas de suas práticas de poder. Esse novo tipo de análise da
questão faz parte do que o autor chama de “microfísica do poder”, o
que não poderia ser confundido com a mera opressão estatal, uma
vez que os poderes são exercidos em esferas e graus de intensidade
diferenciados.
Tais poderes estariam relacionados ao que cada sociedade constrói
e apresenta como verdade, ou saberes:
A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções
e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu
regime de verdade, sua “política geral” de verdade: isto é, os tipos de dis-
curso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros, os mecanismos e as
instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a
maneira como se sancionam uns e outros; as técnicas e os procedimentos
que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que
têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.6
Assim, verdade é poder7, um conjunto de procedimentos intima-
mente relacionados a sistemas e efeitos de poder. Para Foucault, esses

4
Alex Callinicos, em seu Contra el postmodernismo: una crítica marxista (Bogotá, El Ancora, 2003),
disponível na internet em <http://www.socialismo-o-barbarie.org/actualizaciones_formacion/
formacion.htm>, identifica na origem desse tipo de pensamento uma mescla entre três fontes:
movimento artístico pós-moderno, em contraposição dialética com as bases da arte moderna;
filosofia pós-estruturalista, principalmente as ideias de Deleuze, Derrida e Foucault; e a noção
do que seria uma sociedade pós-industrial.
5
“É essa análise do porquê dos saberes que pretende explicar sua existência e suas transfor-
mações situando-o como peça de relações de poder ou incluindo-o em um dispositivo político,
S

que em uma terminologia nietzscheana Foucault chamará ‘genealogia’.” Cf. Roberto Machado,
O

“Introdução: por uma genealogia do poder”, em Michel Foucault, Microfísica do poder (23. ed.,
G

Rio de Janeiro, Graal, 2007), p. X.


I

6
Ibidem, p. 12.
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7
Ibidem, p. 13: “[...] entendendo-se mais uma vez, que por verdade não quero dizer ‘o
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conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou fazer aceitar’, mas o ‘conjunto das regras
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saberes verdadeiros não podem ser entendidos separadamente do
poder, ou melhor, dos distintos mecanismos e instrumentos técnicos
que legitimam os processos de dominação.
Quem exerceria esse poder? A resposta marxista padrão, segundo
Foucault, seria que esse é um exercício de dominação de classe8.
Entretanto, para ele, o poder não tem centro; não haveria interesse,
em termos analíticos, na restrição ao campo da luta de classes, nem
na atuação do Estado, mas sim pelas táticas de governabilidade. O
Estado, que não é entendido como um instrumento direto da domina-
ção de classe9, não se define pela sua territorialidade; esse é mais um
elemento, não necessariamente o mais importante. Dessa forma, se
o poder não tem centro, trabalha-se com o local, o micro, o corpo, o
hábito – e seu exercício se dá em níveis variados, não se situando em
nenhum ponto específico da estrutura social, mas em todos ao mesmo
tempo, com distintos graus de incidência, e sem nenhum referente
unitário, centralizado, que lhe dê sentido.
Assim, se não há dominação de classe, ao menos de forma direta,

CUNHA BARUCO
na definição dos mecanismos de poder quem o exerce? Para Foucault,
ele se exerce em todo espaço: ninguém é propriamente dono do po-
der, ele é genuinamente difuso; não se sabe ao certo quem o detém,
embora se possa saber quem não o detém.

DA
GRASIELA CRISTINA
segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos espe-
cíficos de poder’”.
8
Isso não significa que o poder e o Estado, para Marx, sejam meras correias de transmissão
do domínio de uma classe perante a outra, ainda que essa concepção se apresente, em maior
ou menor grau, em algumas interpretações que se pretendem marxistas. De fato, o poder e
o Estado, dentro de uma sociedade capitalista, estão inseridos em uma lógica de dominação/
exploração de uma classe que vive do seu trabalho por outra que vive do trabalho alheio,
E

mas isso não permite desconsiderar as contradições internas e/ou fracionamentos dentro
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das próprias classes sociais, da estrutura de poder e do Estado. A sociedade capitalista não é
um reflexo perfeito da contradição capital-trabalho em todas as suas instâncias, mas, a partir
dessa contradição fundamental do capitalismo, constitui-se como um complexo de comple-
xos, obviamente dialéticos. Ver Antonino Infranca, Trabajo, individuo, historia: el concepto de
trabajo em Lukács (Caracas, Monte Ávila Editores Latinoamericanos, 2006), cap. IV.
9
Desde já é salutar o alerta de que, para uma análise marxista mais robusta e condizente com
a dialética marxista, não existe essa interpretação direta e rasteira da determinação linear da
estrutura sobre a superestrutura. O que parece, em muitas passagens de Foucault, é que ele
está tratando certo tipo de marxismo, realmente reducionista e vulgar, próprio da época em
que pensava esse autor, como se fosse o pensamento de Marx e/ou de qualquer perspectiva
marxista possível.

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Por tudo isso, a proposta de Foucault não aceita o tratamento tra-
dicional de esquemas teóricos totalizantes, unitários. Nesse ponto, o
autor é explícito ao se dirigir contra o pensamento freudiano tradicional
e o marxismo10. Especificamente sobre este último:
Se temos uma objeção a fazer ao marxismo é dele poder efetivamente ser
uma ciência [...]. Vejo-os atribuindo ao discurso marxista e àqueles que o
detêm efeitos de poder que o Ocidente, a partir da Idade Média, atribuiu
à ciência e reservou àqueles que formulam um discurso científico.11
Ou seja, o principal problema de Foucault com o marxismo, se-
gundo ele próprio, seria duplo: a consideração da estrutura de poder
como algo unitário, centralizado dentro da lógica de opressão do ca-
pital diante do trabalho; e a pretensão, inerente a essa teorização, de
se constituir como uma forma de poder, no sentido de que ela traria
consigo a pretensa única maneira de fazer ciência, isto é, de descobrir
a verdade12. Para Foucault, tal tem um sentido de desqualificação de
tudo aquilo que “não é ciência”, ou seja, de qualquer outro discurso,
seja teórico ou não, que não o marxista13.
A isso Foucault contrapõe o que chama de genealogia, que seria
um projeto para libertar os saberes históricos dessa sujeição e opressão
construídas pelos saberes totalizantes e pretensamente científicos: “a
reativação dos saberes locais – menores, diria talvez Deleuze – contra a
hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de

10
“Foucault rejeita o marxismo como saber inscrito na racionalidade de mundo ocidental e
trata de mostrar que este saber constrói um sistema de poder que ele mesmo, Foucault, não
pode senão recusar.” Roberto Nigro, “Foucault lecteur et critique de Marx”, em Jacques Bidet
e Eustache Kouvélakis (orgs.), Dictionaire Marx contemporain (Paris, PUF, 2001), p. 434.
11
Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 172.
12
“El poder no es unitario, sostiene, y consiste en una multiplicidad de relaciones que infiltran
la totalidad del cuerpo social. Por ello, es imposible asignar una prioridad causal a la base
económica, como lo hace el marxismo. Más aún, el poder es productivo: no opera median-
te la represión de los individuos y no circunscribe sus actividades, sino que las constituye.
Foucault ilustra lo anterior, primordialmente, en las instituciones ‘disciplinarias’ tales como
la prisión, creada a comienzos del siglo XIX. Por último, el poder suscita por necesidad una
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oposición, una resistencia, si bien tan fragmentaria y descentralizada como las relaciones de
O

poder que combate” (Alex Callinicos, Contra el post modernismo, cit., cap. 3, p. 11). Deve-se
G

destacar o caráter profundamente crítico que Callinicos imprime a esse tipo de pensamento
I

em sua obra.
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13
É fundamental notar que, nessa passagem, Foucault está endereçando a crítica também, em
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termos idênticos, para o discurso e a prática psicanalíticos.


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poder, eis o projeto das genealogias desordenadas e fragmentárias”14.
Note-se que isso é feito sem ter como referência um sujeito – qualquer
que seja – universal, transcendente, mas justamente a multiplicidade
dos saberes locais, isto é, ao que se pode chamar de microssujeitos.
Mas, qual é a relação disso com as microcontestações fragmen-
tadas tão glorificadas pelo pensamento pós-moderno? Harvey a
percebe perfeitamente:
É clara a crença de Foucault no fato de ser somente através de tal ataque
multifacetado e pluralista às práticas localizadas de repressão que qualquer
desafio global ao capitalismo poderia ser feito sem produzir todas as múlti-
plas repressões desse sistema numa nova forma. Suas ideias atraem os vários
movimentos sociais surgidos nos anos 1960 (grupos feministas, gays, étnicos
e religiosos, autonomistas regionais etc.), bem como os desiludidos com as
práticas do comunismo e com as políticas dos partidos comunistas.15
Inicialmente, da forma como colocado por Harvey, pode-se inter-
pretar essa relação do pensamento de Foucault com os movimentos

Grasiela Cristina da Cunha Baruco


sociais fragmentados dos anos 1960 como algo direto do primeiro para
os segundos, como se a interpretação teórica do autor surgisse por
inspiração iluminada e os movimentos sociais apenas seguissem essa
ideia. O próprio Foucault não dá margem a esse tipo de interpretação,
quando afirma que “só se pode começar a fazer esse trabalho [de
estudo das formas concretas do poder] depois de 1968, isto é, a partir
das lutas cotidianas e realizadas na base com aqueles que tinham que
se debater nas malhas mais finas da rede do poder”16.
Se o poder não é centralizado – e, portanto, seus detentores e
mecanismos de operação tampouco são unificados, mas dispersos e
diluídos –, um combate a essas formas de opressão só poderia advir
de um confronto também fragmentado, multifacetado, o que coloca
o enfrentamento político contra a realidade do poder no terreno das
E

chamadas microcontestações fragmentadas.


MARCELO DIAS CARCANHOLO

Mas e a lógica do conteúdo-capital? Não é, de fato, totalizante,


global e unificadora, por mais que as diversas formas de poder a ela
relacionadas sejam dispersas? Se essas lutas fragmentadas rejeitam

14
Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 172.
15
David Harvey, Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural (16
ed., São Paulo, Loyola, 2007), p. 51-2.
16
Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 8.

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deliberadamente qualquer interpretação holística17 – para usar o termo
de Harvey – do capitalismo contemporâneo, fica aberta a questão de
como conseguem construir um confronto realmente progressivo e
progressista às contradições centrais da lógica do conteúdo-capital. É
disso que passamos a tratar.

Dialética das microcontestações fragmentadas18


Não se pode confundir a crítica, necessária, à fragmentação das
contestações sociais, pelo fato de que realmente não se contrapõem à
totalidade da lógica do capital, com uma negação total das contestações
locais, focalizadas, tão necessárias para uma prática revolucionária
anticapitalista. Isso define uma dialética das microcontestações, frag-
mentadas em relação à lógica totalizante do movimento do capital.
Essa dialética se define, por um lado, pelos limites óbvios colocados
à efetividade das lutas fragmentadas, no sentido de que não enfrentam,
questionam, opõem-se, à lógica do capital – ou seja, à exploração do
trabalho (indiferentes às distintas formas em que este se apresente) e ao
estranhamento/fetichismo/alienação próprios da sociedade mercantil-
capitalista. Ao contrário, essas lutas fragmentadas adequam-se à lógica
do capital. O que se mostra claro para Wood, quando afirma que
No capitalismo, muita coisa pode acontecer na política e na organização
comunitária em todos os níveis sem afetar fundamentalmente os poderes de
exploração do capital ou sem alterar fundamentalmente o equilíbrio decisivo
do poder social. Lutas nessas arenas continuam a ter importância vital, mas
precisam ser organizadas e conduzidas com a noção clara de que o capita-
lismo tem notável capacidade de afastar a política democrática dos centros
de decisão de poder social e de isentar o poder de apropriação e exploração
da responsabilidade democrática.19

17
“No holismo, os indivíduos empíricos são, sobretudo, representados como identidades
posicionais, isto é, como identidades cujo valor é dado pelo lugar que ocupam na hierarquia es-
tratificada da sociedade; no individualismo, forma hegemônica das sociedades ocidentais, o valor
da identidade individual é dado, sobretudo, pela ideia de autonomia do sujeito em relação ao
todo.” Cf. Deise Mancebo, “Indivíduo e psicologia: gênese e desenvolvimentos atuais”, em Ana
S

Maria Jacó-Vilela e Deise Mancebo (orgs.), Psicologia social: abordagens sócio-históricas e desafios
O

contemporâneos (Rio de Janeiro, Eduerj, 1999), p. 36.


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18
Ellen Meiksins Wood, em seu Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo
I

histórico (São Paulo, Boitempo, 2003), prefere chamá-las de terreno das contestações extra-
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econômicas.
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19
Ibidem, p. 236.
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Isso nos leva a outro polo dessa dialética das lutas fragmentadas, o das
possibilidades. De fato, justamente porque o conteúdo-capital, em sua
lógica totalizante, se manifesta nos distintos terrenos da sociedade, várias
formas de manifestação, específicas, das suas contradições (exploração e
estranhamento) são observadas no real-concreto. Assim, as diversas lutas,
em diferentes arenas (opressão de gênero, raça, movimentos ecológicos,
étnicos etc.) são formas reais de confronto ao capital, enquanto, e desde
que, partes de uma totalidade de oposição à sua lógica.
Entretanto, a possibilidade de vitórias das lutas fragmentadas, se
não desejam, mesmo com vitórias pontuais, perpetuar-se ad infini-
tum contra novas formas de manifestação das desigualdades, está
relacionada com a possibilidade de uma vitória maior dentro de um
confronto anticapitalista, por mais que isso soe incômodo ao ouvido
pós-moderno. Isso porque
[...] o capitalismo tem uma tendência estrutural a rejeitar as desigualdades
extraeconômicas, mas essa tendência é uma faca de dois gumes. Estrate-

Grasiela Cristina da Cunha Baruco


gicamente, ela implica que as lutas concebidas em termos exclusivamente
extraeconômicos – puramente contra o racismo, ou contra a opressão
de gênero, por exemplo – não representam em si um perigo fatal para
o capitalismo, que elas podem ser vitoriosas sem desmontar o sistema
capitalista, mas que, ao mesmo tempo, terão pouca probabilidade de sair
vitoriosas caso se mantenham isoladas da luta anticapitalista.20
De fato, as lutas fragmentadas não têm nenhuma chance de vitória
diante do capital enquanto exasperarem a lógica isolacionista de cada
uma delas. Por uma razão muito simples: o capitalismo tem a tendência
a “identificar”/igualar as especificidades dos indivíduos no momento em
que, a partir da expropriação dos meios de produção, cria dois tipos
distintos de inserção nessa sociabilidade. Aqueles que não possuem
os meios de produção e são, por isso, obrigados a vender sua força de
E

trabalho (manifeste-se ela da forma que for) justamente para aqueles


MARCELO DIAS CARCANHOLO

(os proprietários dos meios de produção) que necessitam comprá-la


para transformar seu capital-dinheiro na forma capital-produtivo. Não
importa o tipo específico de trabalho material realizado nos distintos ra-
mos produtivos. As relações sociais21, no capitalismo, são definidas com

20
Ibidem, p. 232.
21
“Karl Marx (1818-1883) procura estabelecer um ponto concreto, calcado na vida material,
a partir do qual se poderia definir o processo histórico. Considera os homens não a partir

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base no fato de que alguns compram para vender (circulação capitalista
de mercadorias), enquanto outros são obrigados a vender (sua força de
trabalho) para comprar (meios de subsistência)22. Nesse sentido, todos os
indivíduos são formalmente iguais, “livres”, para decidir se vendem (ou
não) sua força de trabalho no mercado. É a democracia formal burguesa
em toda sua fantasmagoria da liberdade, igualdade e fraternidade23.
Essa trindade basilar do liberalismo clássico é meramente formal,
aparente, no sentido de que “[...] todo o mundo precisa querê-las, mas
elas não podem realizar-se. A única coisa que lhes pode acontecer
é que o sistema que as gerou desapareça, assim abolindo os ‘ideais’
juntamente com a própria realidade”24. A identificação/igualitarismo
dos indivíduos específicos é meramente formal, aparente, e esconde
a real desigualdade entre os proprietários dos meios de produção e
os proprietários da força de trabalho, mistificando a exploração do
trabalho no sistema capitalista.

dos valores aos quais aderem, mas a partir da forma social de produção e reprodução na qual
se inserem. É a organização da vida social, o que, para ele, permite explicar a emergência e
a generalização de determinados valores, e não o contrário.” Cf. Virgínia Fontes, “História e
verdade”, em Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta (orgs.), Teoria e educação no labirinto do
capital (Petrópolis, Vozes, 2001), p. 126.
22
Essa é a base categorial em Marx para uma teoria das classes sociais, mas está longe de dar
conta de toda a complexidade do assunto, especificamente dos diferentes níveis de mediação
entre as distintas frações de classe. O debate marxista acerca do tema é extenso, e se torna ainda
mais complexo pelo fato de Marx, no capítulo LII do livro III de O capital, que trata justamente do
assunto, terminar a escrita, após algumas pistas, sem fornecer sua resposta. Um bom tratamento
da questão pode ser encontrado em Daniel Bensaïd, Marx, o intempestivo: grandezas e misérias
de uma aventura crítica (séculos XIX e XX) (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999), segunda
parte, especialmente o capítulo 4.
23
Os discursos que tratam a “sociedade civil”, as ONGs, o “terceiro setor”, como únicas formas
de confronto social caem nas mesmas armadilhas porque “[...] oscurecen la profunda división de
clases, la explotación y la lucha clasista que polarizan la ‘sociedad civil’ contemporánea. Aunque
analíticamente inútil y engañoso, el concepto de ‘sociedad civil’ facilita la colaboración de las or-
ganizaciones no gubernamentales con los capitalistas que financian sus instituciones y les permite
orientar a sus proyectos y seguidores hacia relaciones subordinadas a los intereses de las grandes
empresas a la cabeza de las economías neoliberales.” Cf. James Petras e Henry Veltmeyer, El
Imperialismo en el siglo XXI: la globalización desenmascarada (Madri, Popular, 2002), p. 194. Isso
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não significa que toda ONG seja funcional e esteja a serviço do capitalismo neoliberal; apenas que
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considerar a luta fragmentada como única forma de confronto ao capital é, primeiro, afirmá-lo ao
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invés de negá-lo, e, segundo, justamente esconder as diferenças ideológicas que existem entre
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os distintos elementos que compõem o “terceiro setor”.


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24
Fredric Jameson, “O pós-modernismo e o mercado”, em Slavoj Žižek (org.), Um mapa da
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ideologia (Rio de Janeiro, Contraponto, 1996), p. 281.


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Note-se que o igualitarismo formal não apaga as diferenças, desi-
gualdades, especificidades dos diferentes indivíduos, apenas as torna
formalmente igualadas, pela participação “igual” de cada um no
mercado. Dessa forma, o capitalismo não precisa dessas opressões
extraeconômicas – no sentido de Ellen Wood –, mas também as utiliza
para seu próprio benefício.
Em primeiro lugar, porque “quando os setores menos privilegiados
da classe trabalhadora coincidem com as identidades extraeconômicas
como gênero ou raça, como acontece com frequência, pode parecer
que a culpa pela existência de tais setores é de causas outras que não
a lógica necessária do sistema capitalista”25. Nesse sentido, pode-se
definir uma primeira razão positiva que a funcionalidade das opres-
sões extraeconômicas tem para o sistema capitalista: se as identidades
extraeconômicas normalmente se confundem com setores menos pri-
vilegiados da força de trabalho, e a lógica do capital prescinde de suas
diferenciações econômicas, a razão para tais opressões, nesse terreno,
não pode ser a lógica capitalista, que é econômica. O capitalismo se

Grasiela Cristina da Cunha Baruco


isenta de qualquer responsabilidade nesse terreno.
Segundo, é possível definir uma razão negativa para a funciona-
lidade. Se pela razão positiva o capital não implica – do (seu) ponto
de vista meramente aparente – desigualdades extraeconômicas, estas
últimas servem para esconder/mistificar as contradições estruturais
da sociedade capitalista – o que, no plano político, leva à divisão da
classe trabalhadora. Divisão esta que ocorre porque cada fragmento
da classe, enquanto afirmado em uma unidade/identidade extraeco-
nômica específica, pode lutar, por mais radical que seja, apenas em
seu microterreno, abrindo mão da luta maior.
Wood resume a ideia dessa forma:
[...] a indiferença estrutural do capitalismo pelas identidades sociais das
pessoas que explora torna-o capaz de prescindir das desigualdades e
E
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opressões extraeconômicas. Isso quer dizer que, embora o capitalismo


não seja capaz de garantir a emancipação da opressão de gênero ou raça,
a conquista dessa emancipação também não garante a erradicação do
capitalismo. Ao mesmo tempo, essa mesma indiferença pelas identidades
extraeconômicas torna particularmente eficaz e flexível o seu uso como
cobertura ideológica pelo capitalismo.26

25
Ellen Meiksins Wood, Democracia contra capitalismo, cit., p. 229.
26
Ibidem, p. 241.

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Em adição à reflexão da autora, acrescentaríamos, para concluir
esse ponto, que o principal erro da postura pós-moderna, que afirma
as lutas em favor das identidades extraeconômicas, ao mesmo tem-
po em que rejeita radicalmente a superação – no sentido dialético,
que não pode ser confundido com supressão – dessas lutas em um
projeto revolucionário anticapitalista, é a confusão que se faz entre
várias formas fragmentadas de manifestação da desigualdade entre
seres humanos com o conteúdo capitalista dessas desigualdades, ou
seja, o estranhamento/fetichismo e a exploração do trabalho. Pior, a
exasperação dessa posição pós-moderna, hipostasiando as formas das
desigualdades, separando-as de qualquer conteúdo capitalista – como
se cada forma fosse um conteúdo em si –, leva à aceitação do capi-
talismo como sistema social indiscutível e à fragmentação da classe
trabalhadora, sujeito que tem a possibilidade de ser revolucionário,
o que decididamente não pode ser confundido com necessidade de
ocorrência histórica.

Classes sociais e sujeito(s) revolucionário(s)


Essa discussão nos traz ao tema das alternativas que se colocam
ao capitalismo contemporâneo e dos (novos) sujeitos que teriam, ou
não, a capacidade de implementá-las27. A esquerda marxista tradicional
costuma falar de um sujeito revolucionário, a classe trabalhadora. Mas
isso não faz mais sentido para o pensamento pós-moderno. A negação
do sujeito revolucionário ocorre em razão da afirmação que o pós-
modernismo faz da fragmentação, característica basilar da condição
pós-moderna atual, assim como da defesa da tese segundo a qual a
nova economia informacional e de serviços implica, inexoravelmente,
uma transformação na natureza e qualidade do trabalho.
Esse tipo de pensamento conclui pela negação do sujeito revolucio-
nário tradicional, marxista, a partir de dois fatores inter-relacionados,
além de sua rejeição radical a qualquer perspectiva totalizante: a
mudança da sociedade industrial para a pós-industrial, ou de servi-
ços, e a emergência de um trabalho imaterial – em contraposição ao
material, fabril, da época moderna – que estaria na base da economia
S
O

27
Note-se que essa forma de colocar a questão está perfeitamente adequada ao discurso pós-
G

moderno, uma vez que não haveria mais um único sujeito histórico, mas vários, que representam
I

múltiplas e distintas identidades, conformando, portanto, alternativas, ao invés de uma única alter-
T

nativa totalizante. Colocar a questão no plural, e não no singular, não é meramente uma opção
R

discursiva, mas um sintoma da ideologia que está contida no pensamento pós-moderno.


A

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informacional e de serviços. Hardt e Negri28, por exemplo, distinguem
três tipos de trabalho imaterial. O primeiro caracterizaria a própria
produção industrial, agora “informacionalizada” e com novas tecno-
logias de comunicação. O segundo englobaria as tarefas analíticas e
simbólicas que perpassam os distintos setores da nova economia. O
último seria aquele que se relaciona com a produção e manipulação
de afetos, sensibilidades, em suma, toda aquela gama de característi-
cas que definem uma microidentidade, que fornece especificidade ao
sujeito individual, categoria basilar desse tipo de pensamento.
Qual é a relação disso com a negação do sujeito revolucionário tra-
dicional, a classe trabalhadora29? Essa relação fica clara quando Hardt e
Negri afirmam que, independentemente da sua forma, o trabalho material
possui a característica inerente de cooperação, ou seja, esta última não
seria o resultado de uma imposição externa, como ocorreria nas formas
anteriores de trabalho. Assim, a força de trabalho atual não teria a sua
potencialidade efetivada necessariamente por intermédio da imposição
da lógica do capital30 – ou seja, não seria mais capital variável. Isso im-

Grasiela Cristina da Cunha Baruco


plica o rompimento da relação antagônica entre capital e trabalho, pois
o resultado do processo de trabalho, em sua cooperação, não lhe seria
mais estranhado, a partir da apropriação da mais-valia pelo capital. Se
não há mais antagonismo, conflito, luta entre as classes (capital e traba-
lho), a classe trabalhadora não pode ser mais o sujeito revolucionário, no
sentido de que teria a possibilidade de se colocar como uma alternativa

28
Michael Hardt e Antonio Negri, Império, cit., p. 314-5.
29
É fundamental ressaltar já neste ponto a total incompreensão dos pós-modernos – embora
isso se estenda para outros tipos de interpretação, inclusive algumas “marxistas” – a respeito do
que é capital industrial, força de trabalho, trabalho produtivo e classe trabalhadora. Para esse tipo
de pensamento, capital industrial e indústria são sinônimos. Assim, só seria trabalho produtivo
aquele que fosse implementado no processo industrial e, portanto, a teoria do valor trabalho e a
E

classe trabalhadora, em Marx, só seria aquela ligada ao setor industrial. O que nem de longe se
MARCELO DIAS CARCANHOLO

aproxima do que Marx realmente entendia por essas categorias é algo que basta uma leitura nem
tão atenta assim da seção I do livro II de O capital. Ricardo Antunes, em Os sentidos do trabalho:
ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho (São Paulo, Boitempo, 2003), também trata do
tema, ainda que se sinta obrigado a falar da classe-que-vive-do-trabalho para representar a classe
trabalhadora na atualidade, quando bastaria, em nosso entendimento, o tratamento correto da
categoria trabalho produtivo em Marx.
30
“Cérebros e corpos ainda precisam de outros para produzir valor, mas os outros de que eles
necessitam não são fornecidos obrigatoriamente pelo capital e por sua capacidade de orquestrar
a produção.” Cf. Michael Hardt e Antonio Negri, Império, cit., p. 315. Tudo se passa como se
alguma(s) micrológica(s) pudesse(m) tornar-se independente(s) do processo de acumulação de
capital, ou seja, como se este deixasse de ser totalizante, ainda que em algum grau.

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integralmente anticapitalista. Não há oposição, não há luta, não pode
haver revolução; nem, portanto, sujeito revolucionário31!
No que se refere à relação entre a fragmentação e a negação do
sujeito revolucionário, Chaui constata que
[...] o pós-modernismo comemora o que designa de “fim da metanarra-
tiva”, ou seja, dos fundamentos do conhecimento moderno, relegando à
condição de mitos eurocêntricos totalitários os conceitos que fundaram
e orientaram a modernidade: as ideias de verdade, racionalidade, univer-
salidade, o contraponto entre necessidade e contingência, os problemas
da relação entre subjetividade e objetividade, a história como dotada de
sentido imanente, a diferença entre Natureza e cultura etc. Em seu lugar,
afirma a fragmentação como modo de ser do real, fazendo da ideia de
diferença o núcleo provedor de sentido da realidade; preza a superfície
do aparecer social ou as imagens e sua velocidade espaçotemporal; recusa
que a linguagem tenha sentido e interioridade.32
Disso, em primeiro lugar, decorre que quaisquer alternativas que
advenham para a atual condição pós-moderna só podem provir da
diversidade de identidades produzidas pela fragmentação. O posiciona-
mento político pós-moderno que advoga a possibilidade/necessidade
de construir outro mundo o faz negando as totalidades, as normas
centralizadas – seja pelo partido ou sindicato – e afirmando a diversi-
dade de contestações, o despedaçamento e, nos casos mais radicais,
a anarquia. Outro mundo é possível, desde que não seja construído a
partir de uma identidade unificadora e totalizante.
Mas essa não é a única postura política possível a partir da de-
fesa da condição pós-moderna. Além dessa postura radical – ainda
que desprezando, também radicalmente, qualquer projeto emanci-
patório mais geral, como o socialismo –, é possível também uma
postura conservadora. Em que sentido? Ao negar qualquer forma
de alternativa totalizante, assim como a primeira postura, e já que
a realidade pós-moderna significa a fragmentação, o máximo que

31
“Na expressão de suas próprias energias criativas, o trabalho imaterial parece, dessa forma,
S

fornecer o potencial de um tipo de comunismo espontâneo e elementar.” Cf. Michael Hardt e


O

Antonio Negri, Império, cit. p. 315. Os autores conseguem, com isso, pensar a possibilidade de
G

um comunismo elementar (quase lógico), espontâneo, natural, isto é, a-histórico! Isso sim é uma
I

interpretação mecanicista e determinística da história!


T

32
Marilena Chaui, Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas sob o signo do neo-
R

liberalismo (São Paulo, Cortez, 2005), p. 327.


A

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podemos fazer é resignar-nos, conformar-nos a essa condição.
Essa postura política do pós-modernismo é extremamente con-
servadora, pois equivale a aceitar que a evolução do capitalismo
produziu uma situação tal que é impossível construir qualquer tipo
de alternativa(s); é como se o capitalismo tivesse produzido o fim
da história33!
A negação do sujeito revolucionário unificado produz uma segunda
consequência. Kohan a resume da seguinte forma:
Si fuese verdad que ya no hay sujetos34, entonces desaparecerían como
por arte de magia toda alienación, todo aislamiento obligado, toda soledad
impuesta, todo sufrimiento inducido, toda manipulación mediática, todo
aplastamiento de las experiencias de rebeldía radical, toda represión de
la cultura y la sexualidad, toda prohibición de la cooperación social, toda
explotación y, por supuesto, todo fetichismo.
¿Qué resta entonces? Pues tan sólo [...] esquizofrenia, desorden lingüís-
tico, descentramiento de la conciencia otorgadora de sentido y ruptura

Grasiela Cristina da Cunha Baruco


de la cadena significante, predominio del espacio aplanado de la imagen
por sobre el tiempo profundo de la historia sobre la cual se estructura la
memoria y la identidad (individual y colectiva).35
Ou seja, segundo a forma pós-moderna de pensar, quando não
há sujeito enquanto classe, não pode existir a consciência de classe,
justamente porque esta última não faz mais sentido. Assim também, a
luta de classes perde todo o sentido, pois é impossível uma luta entre
algo que não existe mais, ou melhor, que perdeu qualquer unidade,

33
Essa dupla possibilidade de postura política a partir do pós-modernismo relaciona-se a “aquilo
que Habermas denomina pós-modernismo anárquico (desconstrucionismo e relativismo em des-
taque) e aquilo que ele chama de pós-modernismo conservador, a saber, que ambos despedem-se
E

dos fundamentos autoconscientes da razão que caracterizam o espírito moderno em sua origem,
MARCELO DIAS CARCANHOLO

o primeiro lamentando e o segundo aplaudindo a autonomia conseguida pela objetivação social


desse espírito.” Cf. Leda Maria Paulani, Modernidade e discurso econômico (São Paulo, Boitempo,
2005), p. 137. Sobre a tese neoliberal do “fim da história” (globaritária, nos termos de Milton
Santos), ver Deise Mancebo, “Indivíduo e psicologia: gênese e desenvolvimentos atuais”, cit.
34
O autor deveria especificar que não haveria dentro do pós-modernismo sujeitos do ponto de
vista do marxismo tradicional, mas uma pulverização das diferentes possibilidades de contradições,
ou seja, nesse sentido, não há sujeito, mas uma miríade de sujeitos específicos e heterogêneos.
35
Nestor Kohan, “Desafíos actuales de la teoría critica”, em Anais do II Encontro Nacional de
Política Social – IV Seminário de Práticas em Serviço Social (Vitória, Universidade Federal do
Espírito Santo, 2007), p. 4-5, disponível na internet em <http://www.lahaine.org/amauta/
b2-img/nestor_desa.pdf>.

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esvaecida no processo de fragmentação e construção de microidenti-
dades relacionadas a qualquer referente entendido como comum pelos
sujeitos que delas fazem parte. Se é assim, que sentido pode ter uma
proposta de classe, como o socialismo, se o seu sujeito não existe mais,
ou está diluído nas mais diferentes formas de identificação dos sujeitos?
A única postura política, em um mundo como esse, só pode ser a afir-
mação dessas novas identidades. A conclusão é que o pós-modernismo,
pensando dessa forma, é contraditório com qualquer postulação e
ação socialista. Renegar qualquer possibilidade de uma sociedade pós-
capitalista, quando se nega a luta revolucionária pelo socialismo, por
sua vez, é justamente uma forma de afirmar o capitalismo. E isso por
mais radical que seja o primeiro tipo de postura política, o que afirma
a construção de alternativas com base na diversidade de identidades.
Outro mundo é possível, desde que não seja o socialismo36!

Pós-modernismo, capitalismo e socialismo: notas para uma conclusão


A negação pós-moderna da alternativa socialista – por mais que
alguns dos seus defensores procurem encobrir essa conclusão – leva
ao tratamento da relação entre o pós-modernismo e a revolução,
especificamente a socialista. Por um lado, como visto, o pensamento
pós-moderno rechaça qualquer tipo de revolução socialista. Por
outro, o fracasso do “socialismo real” contribuiu para a ascensão
e a hegemonia do pensamento pós-moderno. Isso porque esse
fracasso atestaria o fato de que a proposta socialista não passaria
de uma construção de outras formas de poder opressor e, o que é
pior, uma repressão totalitária por forçar um igualitarismo entre os
indivíduos, o que negaria as multiplicidades de identidades37.

36
Desconsidera-se, obviamente, qualquer validade alternativa para aquilo que Hardt e Negri
chamaram de “comunismo espontâneo e elementar”.
37
O que é indevido aqui é justamente a associação direta e linear que se faz das experiências do
“socialismo real” com o socialismo enquanto projeto emancipatório. Que as experiências históricas
tenham construído formas de opressão – distintas das formas do Ocidente capitalista – não se
pode concluir que isso seja inerente a uma sociabilidade socialista. Esta última se caracterizaria,
S
O

entre outras coisas, pelo fato de que as relações sociais seriam diretas e não intermediadas, seja
pela troca de mercadorias (nas economias capitalistas), seja pela imposição de um Estado bu-
G

rocratizado (experiências do “socialismo real”). Tal discussão, inclusive, leva ao questionamento


I

do caráter socialista dessas experiências. As referências aqui são muitas, mas pode-se consultar,
T

a título de ilustração, István Mészáros, Para além do capital: rumo a uma teoria da transição (São
R

Paulo, Boitempo, 2002).


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De qualquer forma, note-se que não se trata de incluir o socialismo
como uma das alternativas possíveis à (e em razão da) condição pós-
moderna. Como visto, trata-se de negá-lo como uma das alternativas.
Isso produz consequências importantes.
La negación del proyecto emancipatorio es, en definitiva, una cuestión
central no solo teórica sino práctica, política, ya que descalifica la acción,
y condena a la impotencia o al callejón sin salida de la desesperación al
fundar – ahora sí – la inutilidad de todo intento de transformar radicalmen-
te la sociedad presente. Y con este motivo el pensamiento posmoderno
echa mano de otras negaciones como las de superación, historia, sujeto,
progreso, novedad etc.38
O pós-modernismo nega o projeto emancipatório, o socialismo,
justamente porque nega, além de qualquer interpretação (proposta) to-
talizante, uma perspectiva verdadeiramente histórica para o ser humano,
como se este não fosse o responsável pela criação das condições objeti-
vas nas quais vive, inclusive a pós-moderna! No final das contas, trata-se

Grasiela Cristina da Cunha Baruco


da afirmação/defesa do presente, isto é, do capitalismo, já que
es, pues, propio del pensamiento posmoderno esta exaltación del presente
y negación del futuro que, en verdad, es la conciliación con un presente, el
nuestro, conciliación que es siempre la marca del conservadurismo39.
O pós-modernismo é, nesse sentido, uma expressão do pensamento
conservador atual.
Negar tal impostura é negar a validade e legitimidade dos distintos
movimentos sociais contestatórios? Não necessariamente. Esses con-
testam distintas formas de opressão e exploração que dizem respeito
também à lógica opressiva do capital. O que não se pode é confundir as
distintas formas de manifestação dessa lógica com o seu conteúdo, este
sim mais geral, totalizador e globalizante. Como afirma Antunes, ainda
E

que tratando especificamente da questão do desemprego, o argumento


MARCELO DIAS CARCANHOLO

pode ser facilmente extrapolado para outros campos de luta:


atribuir a elas [associações ou empresas solidárias] a possibilidade de, em
se expandindo, substituir, alterar e, no limite, transformar o sistema global
de capital parece-nos um equívoco enorme. Como mecanismo minimi-

38
Adolfo Sánchez Vázquez, “Posmodernidad, posmodernismo y socialismo”, Trabajo y Capital,
Montevideo, n. 3, 1992, p. 86.
39
Ibidem, p. 87.

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zador da barbárie do desemprego estrutural, elas cumprem uma efetiva
(ainda que limitadíssima) parcela de ação. Porém, quando concebidas
como um momento efetivo de transformação social em profundidade,
elas acabam por converter-se em uma nova forma de mistificação que
pretende, na hipótese mais generosa, “substituir” as formas de transfor-
mação radical, profunda e totalizante da lógica societal por mecanismos
mais palatáveis e parciais, de algum modo assimiláveis pelo capital. E,
na sua versão mais branda e adequada à ordem pretendem em realidade
evitar as transformações capazes de eliminar o capital.40
Dessa forma, os distintos movimentos sociais que se confron-
tam, em maior ou menor grau, com a lógica do capital, em suas
diferentes formas de manifestação, teriam dupla validade. Uma em
si, definida pela luta nos seus próprios marcos específicos (movi-
mento ecológico, agrário, racial etc.), e outra para além de suas
respectivas especificidades, dentro de uma luta mais geral contra
o conteúdo da lógica do capital. O que o pós-modernismo faz é
afirmar e hipostasiar a primeira validade, como se as formas fossem
distintos conteúdos em si. O que uma perspectiva verdadeiramente
emancipatória e socialista requer é a aceitação dialética das duas
validades. Existe uma autonomia relativa entre ambas, ainda que
meramente, pois elas não fazem sentido isoladas, mas dentro de
uma perspectiva que procure confrontar o capital em todos seus
âmbitos, em sua lógica mais geral, e nas distintas formas em que
esta se manifesta. O próprio Foucault, de quem a ideologia pós-
moderna parece ter retirado muito de sua fundamentação, reco-
nhece que as lutas fragmentadas, enquanto lutas contra o poder,
fazem parte do processo revolucionário,
[...] evidentemente como aliado do proletariado, pois, se o poder se exerce
como ele se exerce, é para manter a exploração capitalista [...] as mulheres,
os prisioneiros, os soldados, os doentes nos hospitais, os homossexuais
iniciaram uma luta específica contra a forma particular de poder, de
coerção, de controle que se exerce sobre eles. Essas lutas fazem parte
atualmente do movimento revolucionário, com a condição de que sejam
radicais, sem compromisso nem reformismo, sem tentativa de reorganizar
S

o mesmo poder apenas com uma mudança de titular.41


O
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T

40
Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, cit., p. 113-4.
R

41
Michel Foucault, Microfísica do poder, cit., p. 77-8.
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Mesmo rejeitando o marxismo – ou o que ele parece inferir como tal,
a partir de um tipo específico de marxismo vulgar – por ser uma fonte
outra de poder totalizante, Foucault também conclui que as distintas
formas de lutas fragmentadas não parecem ter sentido se consideradas
apenas enquanto fragmentos, mas unicamente enquanto elementos de
um processo revolucionário maior. Foucault parece, aqui, ser muito
menos pós-moderno do que os seus “discípulos” gostariam.
Existe, porém, um cuidado adicional a ser tomado. Não é porque
se aceita que as lutas dos movimentos sociais apresentam essa dupla
validade que se pode outorgar o mesmo nível de importância, teórica
e política, para os dois. Fazer isso seria pensar que o conteúdo e suas
distintas formas de manifestação possuem idêntico status categorial e/ou
que se encontram em igual nível de abstração. Nem todas as lutas frag-
mentadas têm potencialidade antissistêmica, apesar do fato de que as
diferentes contestações devem fazer parte do projeto emancipatório.
Precisamente por esto, dentro de la alianza hegemónica de fuerzas poten-

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cialmente anticapitalistas, aunque todas las rebeldías contra la opresión
tienen su lugar y su trinchera, el sujeto social colectivo que lucha contra
la dominación de clase debe jugar un papel aglutinador de la única lucha
que posee la propiedad de ser totalmente generalizable.42
A contradição fundamental do capitalismo, qualquer que seja a
sua forma de manifestação histórica, e quaisquer que sejam as con-
tradições adicionais que ele crie, continua sendo aquela expressa
na própria fundação do capital, a distinta posição que existe na
compra da força de trabalho entre os que vendem para comprar e,
portanto, vivem do fruto de seu trabalho, e os que compram para
vender, vivendo do fruto do trabalho alheio.
Dessa forma, por mais que as lutas fragmentadas tenham sua va-
lidade em si, a exploração de classe – configurada pela contradição
E

fundamental do capitalismo – tem uma condição histórica diferente,


MARCELO DIAS CARCANHOLO

tem uma prioridade constitutiva na luta maior contra o capital e na


construção de uma alternativa real, para além da lógica do conteúdo
do capital, para o socialismo.

42
Nestor Kohan, “Desafios actuales de la teoria critica”, cit., p. 25-6.

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