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Revista PRODUÇÃO

Forclusão do feminino na organização


do trabalho: um assédio de gênero
Marie Grenier-Pezé

Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de


sexo. Um itinerário interdisciplinar. 1988-2002
Pascale Molinier

Subjetividade, trabalho e ação


Christophe Dejours

“Você liga demais para os sentimentos”


“Bem-estar animal”, repressão da
afetividade, sofrimento dos pecuaristas
Jocelyne Porcher

Análise do trabalho e serviço de limpeza


hospitalar: contribuições da ergonomia
e da psicodinâmica do trabalho
Laerte Idal Sznelwar; Selma Lancman;
Márcio Johlben Wu; Erica Alvarinho; Maria dos Santos

Desenho do trabalho e patologia organizacional:


um estudo de caso no serviço público
José Marçal Jackson Filho

Entre a organização do trabalho e o


sofrimento: o papel de mediação da atividade
Júlia Issy Abrahão; Camila Costa Torres

Psicodinâmica do trabalho: o método


clínico de intervenção e investigação
Roberto Heloani; Selma Lancman
Vol. 14

Ser Auxiliar de enfermagem: um


no 3

olhar da psicodinâmica do trabalho


ano 2004

Laerte Sznelwar; Seiji Uchida

Vol.14 no 3 Set./Dez. 2004 ISSN 0103-6513

001 capa1B.p65 1 4/2/2005, 15:55


Revista Produção
Revista Produção é um veículo quadrimestral de divulgação de trabalhos acadêmicos na
área de engenharia de produção, publicado pela Associação Brasileira de Engenharia de
Produção – ABEPRO, com distribuição gratuita a todos os seus associados.

Corpo Editorial:

Editora
Marly Monteiro de Carvalho (POLI-USP)

Conselho Consultivo:
Gabriel Bitran (Massachusetts Institute of Technology - MIT)
José Luis Duarte Ribeiro (UFRGS)
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Piercarlo Maggiolini (Politecnico di Milano)
Ricardo Manfredi Naveiro (COPPE-UFRJ)
Tamio Shimizu (POLI-USP)
Targino de Araújo Filho (UFSCar) ISSN 0103-6513

Editor do Número Especial:


Laerte Idal Sznelvar (POLI-USP)

Conselho Científico do Número Especial:


João Alberto Camarotto (UFSCAR) Paulo Bento (UFSCar)
Francisco A. P. Lima (UFMG) Laerte Idal Sznelvar (POLI-USP)
Leda Leal Ferreira (FUNDACENTRO) Débora Raab Glina (FVC)
Seiji Uchida (FGV) Júlia Issy Abrahão (UNB)
Roberto Marx (POLI-USP) Marçal Jackson (FUNDACENTRO)
Lys Esther Rocha (Medicina-USP) Selma Lancman (Medicina-USP)

Apoio Administrativo Diagramação


Fernando José Barbin Laurindo (POLI-USP-FCAV)) Cristiane Tassi
Maria Aparecida da Silva Cotta (FCAV)
Gabriela Maria Cabel Barbaran (POLI/ABEPRO) Impressão
Flávia Gutierrez Motta (POLI/ABEPRO) Gráfica Bandeirantes

002 exped capa 2.p65 2 10/2/2005, 16:26


Revista Produção
volume 14
número 3
ano 2004

EDITORIAL

Este número da Revista Produção tem o propósito de trazer para discussão um tema que tem
crescido em importância no mundo da produção. A relação entre a organização do trabalho e o
psiquismo humano é cada vez mais debatida entre as disciplinas que se ocupam do trabalho,
principalmente entre as que tem uma inserção mais clínica, isto é, aquelas que tem como foco a
questão do trabalhar. Em especial, a psicodinâmica do trabalho se ocupa dessas questões, como
as pessoas vivem o seu trabalho, como aí se constrói uma relação entre sofrimento e prazer.
Resultados de pesquisas têm mostrado a importância do trabalho como um dos mais significativos
agentes para a construção da saúde, em todos sentidos, inclusive no que concerne à saúde mental.
O trabalho é um dos pilares do processo de realização de si. Por meio dele, as pessoas podem
encontrar um lugar digno na sociedade e dar vazão a parte de seus sonhos e desejos. Portanto o
trabalho tem um lugar fundamental na construção e no reforço da identidade individual e coletiva.
Por outro lado, o trabalho, dependendo como ele é organizado, é um agente de desestabilização,
de sofrimento patogênico. Constata-se este fato, a partir de um sem numero de pessoas que são
impedidas de se realizar pela via do trabalho. A elas resta o caminho da doença, seja ela expressa
no corpo, na mente ou em ambos. Em muitas situações de trabalho, felizmente não em todas, nos
defrontamos com um processo de intensificação dos constrangimentos e de banalização de certas
práticas, que põem em risco não somente a saúde dos indivíduos, mas no médio ou longo prazo,
as próprias empresas e instituições. Um desafio para todos nós é diagnosticar precocemente essa
tendência para poder agir no sentido transformar as organizações. Essa tarefa transformadora é,
em muitos sentidos, hercúlea e ainda fadada a muitos insucessos, visto que estamos vivendo uma
época onde, em nome da competitividade, são aceitas práticas contestáveis no seu sentido ético
e moral. Neste número da revista Produção foram publicados artigos que nos levam a uma reflexão
sobre questões que, muitas vezes, evitamos enfrentar. Esses artigos são fruto de pesquisas e de
ações em psicodinâmica do trabalho, assim como de reflexões mais teóricas, desenvolvidas por
colegas franceses e brasileiros. Vale a pena correr o risco!

Laerte Idal Sznelwar

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CONTENTS
Revista Produção, vol. 14, nº 3, ano 2004

Female foreclusion in the workforce


organization: gender harassment
Marie Grenier-Pezé 06
Psychodynamics of work and sex social relationships.
An interdisciplinary itinerary. 1988-2002
Pascale Molinier 14
Subjectivity, work and action
Christophe Dejours 27
“You care too much for feelings” “Animal well-being”,
repression of affectivity, cattle raisers’ distress
Jocelyne Porcher 35
Work analysis in a higiene service of a hospital:
contributions from ergonomics and work psychodynamics
Laerte Idal Sznelwar; Selma Lancman; Márcio Johlben Wu; Erica Alvarinho; Maria dos Santos 45
Work design and “sick workplace syndrome”:
a case study in a public institution
José Marçal Jackson Filho 58
Between work organization and suffering:
the mediation role of the activity
Júlia Issy Abrahão; Camila Costa Torres 67
Psychodinamic of the work: the clinical method
of the intervention and investigation of the work
Roberto Heloani; Selma Lancman 77
To be nurse auxiliary: the point of
view of work psychodynamics
Laerte Sznelwar; Seiji Uchida 87

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SUMÁRIO
Revista Produção, vol. 14, nº 3, ano 2004

Forclusão do feminino na organização


do trabalho: um assédio de gênero
Marie Grenier-Pezé 06
Psicodinâmica do trabalho e relações sociais
de sexo. Um itinerário interdisciplinar. 1988-2002
Pascale Molinier 14
Subjetividade, trabalho e ação
Christophe Dejours 27
“Você liga demais para os sentimentos” “Bem-estar animal”,
repressão da afetividade, sofrimento dos pecuaristas
Jocelyne Porcher 35
Análise do trabalho e serviço de limpeza hospitalar:
contribuições da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho
Laerte Idal Sznelwar; Selma Lancman; Márcio Johlben Wu; Erica Alvarinho; Maria dos Santos 45

Desenho do trabalho e patologia organizacional:


um estudo de caso no serviço público
José Marçal Jackson Filho 58
Entre a organização do trabalho e o sofrimento:
o papel de mediação da atividade
Júlia Issy Abrahão; Camila Costa Torres 67
Psicodinâmica do trabalho: o método
clínico de intervenção e investigação
Roberto Heloani; Selma Lancman 77

Ser Auxiliar de enfermagem: um


olhar da psicodinâmica do trabalho
Laerte Sznelwar; Seiji Uchida 87

003-005.p65 5 4/2/2005, 15:57


Marie
INVITED
Grenier-Pezé
PAPER

Forclusão do feminino na organização


do trabalho: um assédio de gênero
MARIE-GRENIER PEZÉ, DRA.
Hôpital Max Forestier
303, Av. De la République
92200 Nanterre França
E-mail: mariepeze@free.fr

Resumo
Neste artigo é proposta uma discussão para ajudar a compreender a temível eficácia do assédio moral no trabalho.
Para tanto é discutida a questão da construção “identitária”, que depende do reconhecimento que se dirige sobre
o fazer, a identidade é inseparável dos gestos técnicos efetuados pelo sujeito. Esta também é uma questão de
gênero de pertencimento a um sexo. Em psicodinâmica do trabalho, uma atenção particular é dada à construção
dos coletivos de trabalho que soldam um grupo em torno de regras da profissão. A cooperação necessita um
ajustamento dos procedimentos singulares de execução da tarefa, mas também uma confrontação de posições
éticas de cada um, sobre a base de uma confiança partilhada e, portanto, de uma cooperação possível. Entretanto
o assédio moral se tornou uma verdadeira estratégia de gerenciamento, baseada na radicalização das novas formas
de organização do trabalho que favorecem a virilidade defensiva, que parecem ter transformado profundamente as
relações nos grupos de trabalho e radicalizado os sistemas de defesa construídos para resistir.

Palavras-chave
Psicodinâmica do trabalho, organização do trabalho, assédio moral, gênero, construção “identitária”

Female foreclusion in work organization:


gender harassment
Abstract
This paper proposes a discussion to help understand the fierce efficacy of moral harassment in the workplace. For
this, the issue discussed is that of identitary construction, which depends on the acknowledgement directed on
doing, since identity is inseparable of the technical gestures conducted by the subject. This is also a gender issue,
of belonging to a sex. In work psychodynamics, a special attention is given to the construction of work collectives
which weld a team to professional rules. Cooperation needs an adjustment of particular procedures for carrying out
a task, but it is also a confrontation of each individual’s ethical positions, based on shared trust and, therefore, of
possible cooperation. Nevertheless, moral harassment became a real management strategy, based on the
radicalization of the new forms of work organization which favor defensive virility, which seem to have deeply
transformed the relationships within the work teams and radicalized the defense systems built to resist it.

Key words
Workplace psychodynamics, work organization, moral harassment, gender, identitary construction.

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Forclusão do feminino na organização do trabalho: um assédio de gênero

É habitualmente a construção de um corpo erótico no O ASSÉDIO MORAL, UMA ESTRATÉGIA


entrelaçado das identificações que apaixona o psicana- DE GERENCIAMENTO SEXUADO
lista. Mas limitar seu olhar terapêutico à construção do
corpo erótico através dos acasos da história infantil en- “Enquanto você não parar de escalar, os degraus
quanto que o trabalho (sua regulamentação, seu custo, não cessarão de subir ao mesmo tempo que seus
seus efeitos psíquicos e orgânicos) penetra fortemente o passos avançam” Kafka, O processo
material clínico é manter uma postura ilusória.
Uma psicanalista durante uma consulta «Sofrimento e Os gestos de uma profissão são a fonte fundamental de
trabalho» pode esperar ver o assédio moral evocado na estabilização da economia psicossomática, oferecendo à
prática clínica. A presença na mídia desta nova denomi- excitação pulsional uma saída socialmente positiva ao
nação deu uma forte força às queixas das vítimas, a valor da sublimação. Tornar sua execução aleatória, pa-
criação de uma rede especializada de escuta e de cuida- radoxal, humilhante, dia após dia, tem efeitos traumáti-
dos, lhes deu doravante uma legitimidade social. Do que cos sobre a psique. A subordinação própria à definição
se trata essa legitimidade psicopatológica? É necessário jurídica de contrato de trabalho prende o assalariado
lembrar-se que o assédio moral (HIRIGOYEN, 1998) é numa toxicidade contextual experimental. Com efeito, o
um procedimento técnico de destruição e não uma aparelho psíquico só pode se afrontar a uma situação
síndrome clínica. excessiva fonte de excitação graças a duas grandes vias
Nós privilegiaremos aqui a definição de Michèle de expressão: o pensamento, que permite trabalhar o
Drida : “O assédio é um sofrimento infligido no local de “excesso” intrapsíquico, o movimento, que descarrega o
trabalho de maneira durável, repetitiva e/ou sistemática corpo do excesso de tensão. Numa situação de assédio, a
por uma ou várias pessoas a uma outra pessoa, por todos repetição das humilhações aos novatos, os vexames e as
os meios relativos às relações, à organização, aos con- injunções paradoxais têm valor de destruição psíquica e
teúdos ou às condições de trabalho, mudando a sua suspendem todo trabalho do pensamento. A impossibili-
finalidade, manifestando assim uma intenção de prejudi- dade de demitir-se sob pena de perder seus direitos sociais
car ou mesmo de destruir.” (DRIDA, et al. 1999). barra a descarga sensório-motora. O impasse criado nestas
Como compreender a temível eficácia do assédio moral duas grandes vias de escoamento das excitações traumáti-
sem compreender o jogo identitário ligado à situação de cas convoca fatalmente a ruína depressiva e a via somática
trabalho? O que confere ao trabalho sua dimensão pro- mais ou menos a longo termo. Nós veremos mais adiante
priamente dramática é sua ligação com a construção como, tocando os gestos da profissão, nós ferimos fatal-
“identitária”. Quando a escolha da profissão está de mente as pessoas na sua identidade.
acordo às necessidades
psicossomáticas de um
uma situação de assédio, a repetição das
sujeito, quando as moda-
lidades do seu exercício
permitem o livre jogo de
funcionamento mental e
N humilhações aos novatos, os vexames e as
injunções paradoxais têm valor de destruição psíquica
da construção pulsional
individual, o trabalho e suspendem todo trabalho do pensamento.
ocupa um lugar central na
manutenção de uma eco-
nomia psicossomática durável (DAVEZIES 1993). Por- A situação do assédio, quando interrompida a tempo,
que o reconhecimento do trabalho se dirige sobre o fazer, pode manter um parêntese obscuro na vida do sujeito.
a identidade é inseparável dos gestos técnicos efetuados Quando ocorre por um tempo excessivo, as seqüelas
pelo sujeito. Atos de expressão da postura psíquica e psíquicas (neurose traumática, ruína ansio-depressiva,
social do sujeito dirigido ao próximo (DEJOURS, acessos delirantes), acometimentos orgânicos (amenor-
DESSORS, MOLINIER, 1994), eles se ancoram na nossa réias, câncer de seio, de ovário entre as mulheres) podem
infância pela cópia, pois a identificação aos modelos ama- ser definitivos e constituem um problema de sobrevivên-
dos e admirados, na tradição das profissões transmitidas cia individual e de saúde pública maior.
pelo aprendizado, entrelaçando as ligações estreitas entre Em psicodinâmica do trabalho, uma atenção particular
atividade do corpo e o pertencimento a um coletivo de trabalho. é dada à construção dos coletivos de trabalho que soldam
Enfim, eles traduzem nossa identidade de gênero, nosso um grupo em torno de regras da profissão. A cooperação
pertencimento a um sexo. necessita um ajustamento dos procedimentos singulares

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Marie Grenier-Pezé

de execução da tarefa, mas também uma confrontação de ologias defensivas da profissão. Um homem, um verda-
posições éticas de cada um, sobre a base de uma confian- deiro homem, deve para ter sucesso chegar a ignorar o
ça partilhada e, portanto, de uma cooperação possível. medo e o sofrimento, o seu e o do outro. A virilidade social
Uma análise aprofundada da situação de impasse descrita se mede pela capacidade de exercer sobre os outros
pelos pacientes assediados coloca em evidência o isola- violências anunciadas como necessárias, num sistema de
mento do sujeito. Isolamento de fato num posto sem construção social do masculino que desperta o medo de
equipe, isolamento subjetivo num posto onde o coletivo ser castrado, submetido, passivo, afastado, privado de
de trabalho não existe verdadeiramente, onde falta coo- seus atributos. Quanto mais as condições de trabalho se
peração, e mais ainda a solidariedade. Suportar o traba- endurecem, mais as defesas se enrijecem, chegando a
lho deixa o sujeito sozinho com seus mecanismos de haver uma exacerbação das atitudes viris.
defesa individuais, privando-o do recurso das estratégias O machismo induzido pela organização do trabalho
coletivas de defesa. Estas últimas, destinadas a fazer não fica no vestiário quando se deixa o local de trabalho.
frente ao sofrimento no trabalho, são específicas a cada Para mantê-lo a postos é necessário, por vezes, colocar
local profissional, produzidas, estabilizadas e construí- um impasse sobre sua vida afetiva. A organização do
das coletivamente. Se o sujeito isolado não pode benefi- trabalho, quando ela exige defesas adaptativas, pode
ciar-se delas, ele pode ser atingido, ou servir, pelo seu afetar a organização mental do sujeito até mesmo na sua
estado, de bode expiatório dos outros. construção erótica, nas suas relações afetivas. A falta de
A precariedade tende a neutralizar a mobilização cole- reciprocidade nas relações intersubjetivas entre os ho-
tiva, a produzir o silêncio e o “cada um por si”. O medo mens e as mulheres no trabalho é levada para a vida no
de perder seu emprego induz as condutas de dominação e lar. O “fora do trabalho” traz também marcas de defor-
de submissão. É necessário constatar que a manipulação mações de comportamentos sexuais no trabalho. “(...)
deliberada da ameaça, da chantagem, do assédio tem sido pelas suas observações, suas condutas, as mulheres
utilizada como um método de gerenciamento para fragilizam a negação do medo colocando em perigo sua
desestabilizar, incitar o erro e permitir o afastamento por base principal :o prestígio viril” (MOLINIER, 1997).
uma falta ou incitar a demissão. Alguns se queixam do
assédio que alguns meses antes eles viram ser exercido DELPHES OU « A CONFUSÃO ORGANIZADA » :
sobre outro sem intervir ou, muito pior, para guardar seu
lugar e contribuindo para que isso acontecesse. O primeiro encontro com o sujeito assediado é carre-
Nestas situações, o sofrimento ético resulta, de um gado de olhares múltiplos: encontro com o sujeito, sua
lado, da pulverização da auto-estima, e ainda da estrutura psíquica, sua organização do trabalho, sua for-
culpabilização às avessas do outro sem que ele tenha ma de descompensação. Estes níveis de escuta
sido defendido. intrincados exigem concentração, formação especifica
sobre a organização psí-
quica individual e a or-
necessário constatar que a manipulação
É deliberada da ameaça, da chantagem, do assédio
tem sido utilizada como um método de gerenciamento
ganização do trabalho.
Esta investigação psi-
codinâmica é um mo-
mento privilegiado, po-
dendo conduzir o sujei-
para desestabilizar, incitar o erro e permitir o to à compreensão dos
mecanismos específicos
afastamento por uma falta ou incitar a demissão. utilizados contra ele, ao
descolamento da histó-
ria do trabalho e da his-
Para conjurar o risco de descompensação psíquica, a tória singular, à verbalização e à perlaboração dos afetos
maior parte dos sujeitos constrói defesas específicas. A reprimidos. O paciente passa por uma provação porque a
vergonha é superada pela interiorização dos valores pro- entrevista é longa, o retorno a uma cronologia de aconte-
postos, pela banalização do mal no seu exercício dos atos cimentos laborais, a catarses dolorosas.
civis comuns (DEJOURS 1999). O cinismo no mundo do Delphes cai sobre ela mesma, hesitante, conta sua
trabalho é então considerado equivalente à coragem, à historia sem cronologia, sem lógica ao ponto que eu
força de caráter. A tolerância à injustiça e ao sofrimento mesma me perco pouco a pouco. Um grande sofrimento
infligido ao outro é construída em valores viris, em ide- surdo do corpo e a palavra aleatória desta mulher, mas eu

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Forclusão do feminino na organização do trabalho: um assédio de gênero

não chego a nada com o material que ela traz. Eu tento sobre papel vegetal, com lápis HB, caneta Rotring®; em
algumas questões para inserir alguns pontos de sinaliza- 1999, ela trabalha diretamente com o computador, olhar
ção precisos sobre este itinerário profissional. Eu custo sobre a tela, com o mouse. Cada contrato demanda uma
a acreditar que o funcionamento intelectual e imaginário reflexão, sobre evolução, a utilização e a proteção do
desta jovem mulher engenheira poderia estar tão altera- material vendido. Os tempos de realização só diminuem.
do. A descompensação ansioso-depressiva é grave. Há Trabalhar rápido com as pessoas que nem sempre tem a
alguma coisa a mais, da ordem do verdadeiro e do falso, competência necessária se torna uma ilusão.
do real e do irreal, do justo e do injusto que ela não sabe Ela nunca teve a escolha da tarefa que deveria realizar.
mais situar. Ela está no limite da perda da realidade, O trabalho era aquele que os homens não haviam escolhi-
desorganizada psiquicamente. O tempo passa e o senti- do. Delphes deve conceber um sistema automático em seis
mento de visco psíquico persiste ao ponto que eu decido meses. O sistema a ser realizado é aquele que ninguém
terminar a entrevista que durou duas horas. Duas horas! quis fazer, previam, conforme lhe disseram, que seriam
Nos dias que se seguem, chega uma primeira carta, necessárias no máximo, 600 linhas de cálculo. Ela fez
depois outras. Começa então uma correspondência unila- uma avaliação e totalizou de fato 1.400 linhas de cálculo.
teral, uma vez que eu não respondo. Eu recebo páginas Isto significa encomendar o material para dois sistemas e
numeradas que se acumulam. Eu me torno a depositária de não para um só, 12 meses de trabalho. Ela coloca em
um espaço psíquico onde se anuncia uma reconstrução questão a prescrição da hierarquia, sua tarefa de trabalho
identitária. Da massa disforme inicial emergem pouco a parece sempre mais importante que a dos homens porque
pouco os contornos de uma vida de mulher. Delphes se ela não esconde as dificuldades reais. Ela tem que se virar.
extrai, diz ela, da “confusão organizada” onde ela estava
perdida. Observando o fio condutor das cartas desde o RADICALIZAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DO
início, o desaparecimento das faltas de acordo, de gênero, TRABALHO E A VIRILIDADE DEFENSIVA
a aparição de espaço entre palavras onde elas estavam
coladas, o retorno de uma cronologia dos acontecimentos. Delphes assume há muito tempo as funções de um
No fundo, Delphes descreve o trabalho com a minúcia de cargo superior, mas com um salário inferior, ela precisou
uma verdadeira profissional e a impecável representação esperar cerca de seis anos para receber a promoção. Ela
de mulher que lhe é imposta. Esta correspondência de não tem o diploma universitário de engenheira plena e
vários meses permitirá a elaboração multidisciplinar2 de enquanto mulher não tinha apoio da hierarquia. Os outros
um atestado argumentando o assédio de gênero e suas que não tem o mesmo cargo à sua volta lhe dizem “é
conseqüências psicopatológicas, apoiando o médico do porque você dorme com o chefe que você passou para
trabalho na sua diligência de colocar restrições à paciente este cargo!”.
“todas as tarefas na empresa que podem trazer perigo ime- A partir da promoção, ela precisa se afirmar, ter um
diato” (artigo R 241-51-1 do código do trabalho francês). perfil de autoridade. “Na empresa, eles consideram o
Contratada numa grande empresa com um diploma estresse como um estimulante. O estresse é então viva-
universitário técnico em engenharia elétrica e informáti- mente estimulado para que cada executivo o provoque
ca, a paciente descreve um percurso profissional satisfa- afim de obter melhores resultados.” Os executivos mas-
tório no seio da empresa antes de 1990. Ela é autônoma culinos lhe transmitem esta filosofia que ela deve
na gestão da sua tarefa, sua hierarquia direta confia nela. doravante aplicar: “Você está lá para incitá-lo. Quando
Ela gosta muito de aprender. No contrato, seu chefe de nós estamos na casta superior, é para obedecer”. Seu
serviço lhe precisou, entretanto, que como era uma mu- chefe direto a incita a práticas gerenciais: “Nós iremos
lher, e portanto uma mãe em potencial, ela não teria o dar alguém para você treinar diretamente. Você tem a
mesmo salário que os homens. proteção da hierarquia”. Se afirmar em cima de qual-
Desde 1990, as ameaças de afastamento foram fre- quer um consiste em “fazer pressão” sobre alguém que
qüentes. A organização do trabalho se radicaliza. De ocupa um nível hierárquico inferior, lhe dar metas
“nós trabalhamos para a pátria-mãe” passaram a “nos irrealizáveis, sem meios e com pouco tempo para realizá-
iremos trabalhar como os japoneses”. O ambiente de tra- las e lhe dizer que é uma competição. Fazer também a
balho foi ficando mais duro. As horas de trabalho aumen- pressão quando as pessoas entram em férias. Afirmar sua
taram, ela precisava freqüentemente se mudar. Ela era, autoridade sobre os outros passa por este tipo de relações
entretanto, a única que possuía um antigo contrato trata- “viris” enquanto que “meu conceito de autoridade en-
do diretamente. Cedo ela deve gerir dois tipos de contrato quanto mulher passa pela relação”, afirma a paciente,
de trabalho ao mesmo tempo. A necessidade de adapta- “pela cooperação, por considerar o outro e suas compe-
ção ao trabalho é constante. Em 1983, ela trabalha à mão, tências profissionais”.

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Marie Grenier-Pezé

A nova organização do trabalho parece ter transforma- 1997). O perigo é projetado fora do grupo sobre um bode
do profundamente as relações nos grupos de trabalho e expiatório, no ataque exterior da diferença: “o
radicalizado os sistemas de defesa construídos para re- deficiente”, “o negro”, “a mulher”. Sendo a única mu-
sistir. Os homens encontram certamente as mesmas difi- lher na equipe, o assédio de Delphes se torna
culdades que Delphes em termos de constrangimento de inexoravelmente sexista.
tempo, de trabalho feito sem os meios adequados. No
entanto, eles parecem suportar “esta confusão organiza- A REPRESÃO DE SI
da” pela interiorização massiva dos novos valores da
empresa e a adesão a uma ideologia defensiva da profis- Pede-se a Delphes que se ocupe dos clientes estrangei-
são baseada sobre o cinismo. Sabemos que “são as ideo- ros que têm reconhecidamente posições machistas diante
logias defensivas da profissão que produzem a expressão das mulheres. Sua percepção do trabalho é fina : “Trata-
especifica da virilidade no trabalho, no inicio essencial- se de contratos feitos pelo pessoal de venda, é traduzi-los
mente voltadas à defesa contra o sofrimento, se mostra- em trabalho real, para os técnicos onde a técnica evolui
ram num segundo tempo utilizáveis para aumentar a sem parar, para satisfazer os clientes de raízes e de
produtividade.” (DEJOURS 1988). Podemos então fazer expressões socioculturais diferentes”. É então a ela que
a hipótese que a oscilação da estratégia defensiva em são confiadas as mediações difíceis porque ela se desdo-
ideologia, passe por um programa de ação coletiva espe- bra nas suas qualidades relacionais de antecipação, de
cífica. Além disso, uma técnica de interrogatório pesado mediação, de empatia. Em resumo, suas qualidades “fe-
sobre o assalariado é introduzida como método específi- mininas” inerentes à condição de mulher. Um dos chefes
co de gerenciamento. Praticada a dois, ela responde aos lhe afirma sarcasticamente que ela foi escolhida para
métodos de desestabilização do interrogatório policial: colocá-la em situações delicadas com os homens que
nível verbal elevado e ameaças, chuva de questões sem vêm de países onde as mulheres são maltratadas. De fato,
possibilidade de serem respondidas, clima de acusação os clientes indianos, paquistaneses, indonésios, egípcios,
sistemática, falsas saídas, duração prolongada da entre- chineses se dizem todos honrados de trabalhar com uma
vista, porta deixada aberta para todos ouvirem. Isso é mulher ocidental. Os homens estrangeiros em situação
feito para se obter o rebaixamento emocional do assala- de aprendizado se preocupam, sobretudo em não
riado e de todos aqueles que escutaram. decepcioná-la. Desde o início, as competências de for-
madora que ela utiliza são in-
visíveis porque são ligadas à
s homens encontram certamente as mesmas
O
“natureza feminina” e não ori-
ginadas de seu trabalho e de
dificuldades que Delphes em termos de suas competências pessoais.

constrangimento de tempo, de trabalho feito A ideologia defensiva da


profissão enaltece diante das
sem os meios adequados. No entanto, eles mulheres uma posição de po-
parecem suportar “esta confusão organizada” der e de conhecimento. “(...) o
desprezo das mulheres, o
para a interiorização massiva dos novos valores machismo, encontram assim
uma potente alavanca na con-
da empresa e a adesão a uma ideologia defensiva tribuição que traz à negação
da vulnerabilidade dos ho-
da profissão baseada sobre o cinismo. mens” (MOLINIER 1997). A
mulher é por natureza inferior,
Estas técnicas pesadas são valorizadas pelos homens. psicologicamente e intelectualmente. Esta afirmação é
O exercício autorizado da agressividade é um sistema de confirmada por afirmações picantes, que Delphes escuta
governo dos homens que solda o coletivo de trabalho em dia após dia: “Somente uma mulher perguntaria estas
torno de uma radicalização defensiva. “A defesa trans- coisas!”, “Se isso acontece, é por culpa da mulher”, “para
formada em um fim em si, a luta contra o sofrimento se uma mulher você é muito bem paga !”, “Corte seus
transforma em alienação, impedindo todas as possibili- cabelos, é como se fazia com as há sistematicamente
dades de expressão individual, em proveito de uma problemas...”, “De todas as maneiras, não é necessário
indiferenciação dos membros do coletivo” (MOLINIER procurar, tem somente uma mulher na parada...”. Ela

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Forclusão do feminino na organização do trabalho: um assédio de gênero

está esgotada, não pesa mais do que 45 kg. Uma tempo parcial porque a sobrecarga crônica de trabalho
tecnóloga em plena atividade, a menos adaptada, uma deixou marcas na sua vida privada. Seus dois filhos têm
demanda incessante para assumir horas extras são ainda dificuldades. Ela faz também um pedido de utilização de
fatores agravantes do seu esgotamento. Não é mais infor- bônus, previsto no contrato. Ela é convocada pelo seu
mada das reuniões: reunião de lançamento, reunião sobre diretor de recursos humanos que lhe assinala que ela é a
o desenvolvimento dos negócios, reunião com os mecâni- primeira a reclamar seus bônus, mesmo que isto esteja
cos. Contrariamente aos outros chefes, ela não tem um previsto no contrato, que isto não deveria ser sabido, que
computador exclusivo, ela trabalha no de qualquer outro ele “não tem que gerenciar ainda mais os dias para
colega. Ela é colocada como invisível, excluída pelo boi- recuperação dos bônus destas damas”. A não convergên-
cote subterrâneo presente. cia na prática social dos homens e das mulheres sobre o
A solidão fica maior sobre os planos intelectual e tempo fora do trabalho fica caricatural diante do pedido
intersubjetivo. O mecanismo de defesa que ela desenvol- de tempo parcial e de utilização dos bônus. O pedido é
ve para resistir é a repressão. Ao contrário do recalque incompreensível para seu chefe, que lhe faz doravante
que permite, num processo inconsciente, não considerar críticas cotidianas.
nossos desejos e os conflitos que eles suscitam em nós, a A partir desta data, seu trabalho é desqualificado. Ela
repressão é um trabalho consciente e constante do ego, faz os trabalhos que ninguém quer fazer. A descompen-
um esforço voluntário e deliberado para deixar de lado as sação está presente sob a forma do esgotamento profis-
representações conflituosas e os afetos correspondentes. sional, mas combatida sem trégua para manter o traba-
A repressão educativa é um exemplo perfeito: pelo gesto, lho e não desabar. O estado geral se agrava. Os sintomas
palavra, olhar, trata-se de pesar sobre as expressões físicos começam sempre pelas vertigens: “Tudo gira em
motoras e verbais de uma criança, de indagar sua espon- torno de mim, eu me torno transparente, eu não escuto
taneidade e seus ímpetos pulsionais. Ainda mais longe, mais nada de fora, eu não sinto mais minhas pernas e a
de pesar sobre o pensamento e as fantasias desenvolven- vontade de chorar está lá. Eu vejo grandes buracos
do então as limitações funcionais do ego (PARAT, negros diante de mim. Eu tenho a forte sensação de estar
1991). Delphes tenta se fazer pequenina, se apagar. A em perigo, eu não tenho mais forças, mais vontade de
única mulher num coletivo de homens, ela não pode comer e às vezes tenho idéias suicidas”.
partilhar sua feminilidade. Ela só usa calças, ela suprime Quando voltou de férias, em setembro, ela tinha seu
as bijuterias, seu cabelo é neutro. Os bloqueios à forma- novo contrato, mas ela não aparecia mais no organogra-
ção, a falta de estabilidade dos cargos propostos, a ma. O chefe não era um executivo e lhe exprime além
desqualificação constante de seu trabalho a impedem de disso seu incômodo diante dela. Os membros da equipe
encontrar uma saída que valorize seu funcionamento se dirigem, no entanto, a ela quando surge alguma difi-
pessoal. culdade. O mau funcionamento do coletivo de homens
Em paralelo, as regras da empresa estipulam que não deve ser suportado pelas mulheres. “30 homens diante de
se pratique nenhuma discriminação em relação aos em- uma mulher deve ser uma situação muito tranqüilizadora
pregados em razão da sua raça, sua religião, suas opiniões para escapar do conflito” diz Delphes, que deve gerir
políticas ou de seu sexo, que todos se engajem e tratem psiquicamente esta contradição: suportar as imagens de
os outros com dignidade, respeitando plenamente a vida vaginas de mulheres peladas em destaque na tela de
privada dos colegas. descanso dos computadores de seus colegas e permane-
Pela falta de referencias para pensar o que vem do cer como mediadora compreensiva.
exterior, do campo social, Delphes acredita que a causa Ela é sem trégua o centro das atenções diante da
de seu sofrimento seja intrapsíquica e se responsabiliza, equipe. O chefe vem lhe falar se encostando nela e lhe
portanto. Ela começa uma psicoterapia e encontra um dizendo a 25 cm de sua boca. “Este homem que se encosta
espaço para pensar suas dificuldades. Passado um certo quando fala, é o horror tanto que cheira mal. Isto ocorre
tempo, ela encontra um esquema explicativo. Eles, os diversas vezes, quanto mais eu me afasto mais ele se
homens, têm uma lógica que ela não compreende. Ela aproxima de novo. Ele cheira mal, ele é grosseiro, ele
fica então enfraquecida, não confiável, insuficiente, im- não escuta. Eu lhe digo que não sou surda, que desejo
potente. Por esta posição feminina defeituosa, confron- mais distância entre nós.” Seu chefe de serviço, a quem
tando a hipótese de um masoquismo inconsciente, ela se ela se queixa das telas pornográficas e do gestual fora de
convence da legitimidade do poder dos homens. Esta lugar do chefe direto, lhe responde: “Isto é sempre assim
aceitação da interiorização de uma posição enfraquecida e eu não posso mudar nada”.
tem efeitos positivos em termos de benefícios secundários Ela se concentra sobre a tarefa que lhe é prescrita. Ela
pois ela autoriza um “deixa disso”. Ela decide pedir começa a avaliar o volume de trabalho, o cronograma de

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Marie Grenier-Pezé

tarefas, o programa de computador necessário, os cole- neutralização de sua identidade sexuada até no nível
gas que podem ajudá-la. O colega ocupado de estudos se somático.
recusa a lhe comunicar as informações. A ela é imposto
um novo prazo muito curto. O planejamento e a gestão Na perspectiva psicossomática, a descompensação
deveriam ser assumidos pelo chefe direto. Nada foi feito. testemunha geralmente a fragilidades das possibilidades
Uma vez mais, lhe é confiada uma tarefa que ela não pode de representação, do transbordamento das capacidades
executar, lhe é fixado um objetivo impossível de atingir. de ligação da psique, de uma situação de impasse para o
O assédio é manifesto: desqualificação do cargo, sobre- sujeito. “A somatização é um processo pelo qual o confli-
carga de trabalho, injunções paradoxais, fracassos pelos to que não pode encontrar saída mental vai desencadear
objetivos irrealizáveis. As conseqüências da alteração de no corpo desordens endócrino-metabólicas, ponto de
sua relação com o real do trabalho são maiores sobre seu partida de uma doença orgânica” (DEJOURS 1993).
equilíbrio psicossomático. No dia seguinte, as dificulda- Sabemos que as relações das crianças com seus pais
des graves fazem seu médico decidir afastá-la por tempo vão, numa interação incessante, ao coração dos gozos e
prolongado. das mágoas, inscrever a trama da nossa historia emocio-
nal sobre o corpo biológico, edificar assim nosso segun-
FORCLUSÃO DO FEMININO do corpo, o corpo erótico. Certas zonas e/ou funções
E ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO: corporais podem no entanto permanecer sobre o primado
do psicológico fruto de terem sido subvertidos em pro-
Vários meses se passaram. Novamente ela vem me ver veito da economia do desejo. A “forclusão”3 (DEJOURS
porque eu devo lhe dar um certificado de apoio à ação do 1995) destas zonas ou funções fora da edificação do
médico do trabalho atestando sua incapacidade devido ao corpo erótico assinalam o fracasso da subversão
perigo imediato. Ela diz que se sente melhor desde que libidinal de uma função biológica. Estas zonas brancas
está em licença médica, que seus transtornos desaparece- são os lugares de eleição de uma desorganização psi-
ram, que seu corpo se recuperou: “até minha menstrua- cossomática, desde que na relação com o outro, na
ção voltou!”. Eu lhe pergunto: “Você não tinha mais esfera privada, como no trabalho, elas sejam solicitadas.
menstruação?”.– Sim. “Desde quando?”. Ela fica pertur- A “escolha do órgão ou da função”, traz então a marca do
bada, precisa refletir longamente para lembrar o começo impasse do trabalho psíquico, estrutural ou conjuntural.
da amenorréia, suas interrogações para sua ginecologista Entre numerosas mulheres em situação de assédio, a
que lhe repetia “isto pode voltar” . Ela encontra a data no anamnese permite reencontrar problemas na esfera gine-
seu prontuário médico: 1989. Nós nos remetemos ao cológica: amenorréia, metrorragias, ou ainda mais gra-
período da radicalização na organização do trabalho, a ves, como câncer do colo, do ovário e do útero. Para
acentuação das ideologias defensivas viris tinham come- Delphes, ao tornar invisível sua identidade feminina, o
çado com a designação de um bode expiatório, sobre o ataque cotidiano a suas características psíquicas, psico-
ataque sistemático ao feminino. lógicas, a suas competências profissionais, acarretou
Para ter uma chance de encontrar as condições propi- uma lenta e inexorável desconstrução da complexidade
cias ao reconhecimento de suas qualidades profissionais pulsional. O processo de construção da identidade sexual
e à realização de si no trabalho, Delphes deveria compor parte do corpo, se apaga.
com a economia erótica de seus colegas homens. Muitas Quais espaços as exigências de identidade social no
mulheres fracassam nesta luta que as dilacera interior- trabalho deixam para a construção do masculino e do
mente entre sua identidade de mulher e sua identidade no feminino? O mundo do trabalho é atravessado pelas rela-
campo social. O problema é quando isto faz perder sua ções sociais de sexo, definindo as condutas e as represen-
feminilidade. A descompensação depressiva e somática tações de mundo que não são sexuais no sentido psicana-
de Delphes resulta deste conflito. Ela recusou endossar o lítico do termo; o sistema consciente que se constrói lá,
arsenal machista, não demonstrou sua capacidade de se edifica em detrimento do sistema pré-consciente como
trazer uma contribuição entusiasta ao funcionamento da alças restritas de determinismos, deixando geralmente
estratégia viril e se viu excluída. O desaparecimento da pouco lugar aos rearranjos psíquicos individuais. O en-
sua menstruação assinala o assédio de gênero ao nível contro entre a organização psíquica individual e a orga-
somático, pontuando a função erótica reprimida. À viri- nização do trabalho não é uma imagem. As relações de
lidade anexada pelo vocabulário agressivo e sumoso, o trabalho têm uma lógica, modos de funcionamento pre-
gestual invasivo, os comportamentos agressivos, as telas cisos, uma duração que exige um engajamento total,
pornô que solicitam a economia erótica masculina nas implicando na renúncia de todo o resto. Este resto
suas pulsões parciais, Delphes parece responder pela poderia ser a finalização da construção do corpo eróti-

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Forclusão do feminino na organização do trabalho: um assédio de gênero

co. O trabalho de bissexualização psíquica, o encontro sua eficácia simbólica no sistema de representações que
com o outro podem ser colocados num impasse em estrutura um imaginário social associando a supremacia
proveito de uma identidade sexual de superfície, social- dos homens ao domínio infalível do real. Em permitindo
mente construída, jamais definitivamente adquirida, a integração no coletivo do trabalho, a virilidade social
visto que imposta do exterior no lugar de identificações se capitaliza no registro da identidade sexual e confere
internas (PEZÉ, 1998). No entanto, a construção segurança, prestígio, esperança de sucesso com as mu-
identitária social não tem a mesma equivalência para os lheres àquele que é reconhecido pelos outros homens
homens e para as mulheres. como um deles” (MOLINIER, 1997)
Em período de “guerra econômica”, quanto mais as Pelo simples fato da sua presença, as mulheres podem
condições de trabalho se endurecem, mais as defesas se constituir um perigo maior visto que a virilidade se
enrijecem empurrando as atitudes viris à caricatura, edifica por contraste sobre a inferioridade da mulher. A
contaminando as relações com as mulheres com estereó- única mulher no coletivo de homens, Delphes, pelo fato
tipos que servem a se manter no trabalho. A exacerbação de não ser um chefe como deveria, de não poder se tornar
do sentimento de força e de poder exercidos entre os a mãe ou a mascote, vertentes femininas aceitáveis, se
homens, se exerce então contra as mulheres. “A luta tornou assexuada. A transparência de Delphes não foi
contra o medo e o sofrimento encontra, para os homens, um máscara, mas uma figura do vazio.

Tradução: Selma Lancman

 Notas
1. Doutora em psicologia, psicana- 2. Eu agradeço a Danièle Kergoat psicossomático de Christophe Dejours. 4. Definição jurídica da forclusão: si-
lista., atendimento clínico “sofri- e Pascale Molinier o tempo que Sabemos que para J. Lacan, é um me- tuação de alguém que se encontra
mento e trabalho”, policlínica, De- elas dedicaram a esta paciente. canismo psíquico consistente na rejei- privado do exercício de um direito
partamento de clínica e saúde pú- ção primordial de um significado fun- por não o ter exercido em um prazo
blica do professor HERVE. CASH de 3. O conceito de forclusão utilizado damental fora do universo simbólico fixado.
Nanterre. aqui se reporta ao corpus teórico do sujeito, ligado à psicose.

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Pascale
INVITED Molinier
PAPER

Psicodinâmica do trabalho e relações sociais


de sexo. Um itinerário interdisciplinar. 1988-2002
PASCALE MOLINIER, PROFA
Laboratoire de Psychologie du Travail et de l’Action
Conservatoire National des Arts et Métiers
41, rue Gay-Lussac
75005 Paris França
E-mail: molinier@cnam.fr

Resumo
A psicodinâmica do trabalho se define como a análise dos processos psíquicos mobilizados pelo encontro entre um
sujeito e os constrangimentos da organização do trabalho. Nos anos 1980, as pesquisas realizadas nos meios de
trabalho masculino permitiram descobrir a existência de estratégias coletivas de defesa contra o sofrimento no
trabalho. A partir de 1988 iniciou-se um importante trabalho interdisciplinar com as sociologias do trabalho. Trata
-se de saber se a psicodinâmica do trabalho era heurística para analisar igualmente as situações das mulheres no
mundo do trabalho e de reexaminar os conhecimentos preexistente, sobre o sofrimento dos homens no quadro de
uma problemática sexuada. O artigo relata os principais determinantes que conduziram a criar as relações sociais
de sexo e de seu desafio, a divisão sexual do trabalho, uma dimensão central da pesquisa clínica, a teoria e a
metodologia em psicodinâmica do trabalho. Um ponto importante do artigo é a situação das enfermeiras a partir
da qual são constituídos os principais conhecimentos sobre as relações entre saúde e trabalho do lado das
mulheres.

Palavras-chave
Psicodinâmica do trabalho, relações sociais de sexo, sofrimento no trabalho, estratégias coletivas de defesa.

Psychodynamics of work and sex social relationships.


An interdisciplinary itinerary. 1988-2002
Abstract
The psychodynamics of work is defined as the analysis of psychic processes mobilized by the gathering of a subject
and the work organization constraints. In the 80s, the researches conducted in male workplace environments
allowed to uncover the existence of collective defense strategies against suffering at the work. As from 1988, an
important interdisciplinary work with work sociologies was launched. It is concerned with knowing whether the
psychodynamics work was heuristic to equally analyze the situations of women at work and to reexamine the
preexisting knowledge on men suffering in a sexualized problematic framework. The paper reports the main
determinants which led to the establishment of sex social relationships and its challenge, the sexual division of work,
a central dimension of the clinic research, the theory and methodology in workplace psychodynamics. An important
issue in the paper is the situation of nurses, from which is constituted the main knowledge on the relations between
health and work on the women’s side.

Key words
Work psychodynamics, sex social relationships, suffering at work, collective defense strategies.

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Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo. Um itinerário interdisciplinar. 1988-2002

INTRODUÇÃO ções vividas pelas mulheres. A descoberta das diferenças


homem/mulher não são feitas no campo, a despeito das
A psicodinâmica do trabalho foi iniciada por primeiras investigações realizadas junto às pessoas que
Christophe Dejours no fim dos anos 1970. Seu tema é a trabalham com cuidados à saúde, na maioria mulheres
análise da relação entre saúde mental e trabalho. Depois como as enfermeiras, auxiliares, atendentes. Fomos leva-
nos interessamos mais particularmente pela dinâmica do das a constatar que não encontrávamos, neste coletivo de
sofrimento e do prazer na situação de trabalho. O modelo trabalhadores, estratégias coletivas de defesa semelhan-
de homem provém da antropologia freudiana, a partir da tes àquelas descritas na petroquímica ou na construção.
qual se considera que o sujeito aborda o mundo do Deduzimos, na época, a ausência de cooperação defensi-
trabalho com o conjunto daquilo que ele é e daquilo que va entre estes profissionais, prova que não se encontra
procura alcançar. A consciência que ele tem destes fatos sempre aquilo que se procura.
é confusa e parcial. Quando esta busca pessoal pode ser Em 1988, na época do seminário interdisciplinar
atingida em situação de trabalho, então o trabalho tem “Plaisir et souffrance dans le travail”, Danièle
um papel importante na realização de si. Quando a orga- Kergoat e Helena Hirata lançaram uma verdadeira
nização do trabalho faz obstáculo à elaboração do sofri- “bomba”, colocando a questão se a psicodinâmica do
mento e a sua transformação em prazer, então o trabalho trabalho podia “tratar das relações sociais de sexo”
pode ser prejudicial para a saúde mental. Não há neutra- (HIRATA, KERGOAT, 1988), demonstrando que a pro-
lidade do trabalho defronte à saúde mental. blemática das relações sociais de sexo era transversal ao
Durante os anos 1980, a relação saúde mental–traba- conjunto do campo social, portanto ao conjunto dos cam-
lho foi conceitualizada principalmente por homens, a pos disciplinares, relativo aos homens assim como às
partir de investigações clínicas realizadas junto aos mulheres e, ao trabalho assalariado como ao trabalho
trabalhadores masculinos que exerciam atividades peri- doméstico. Elas estão na origem de remanejamentos teó-
gosas (pilotos de caça, operadores e engenheiros da ricos e, conseqüentemente metodológicos, de enverga-
indústria de processo contínuo, operários da construção dura que tinham, e continuam a ter, um impacto decisivo
civil) (DEJOURS, 1980). O corpo teórico da psicodinâ- sobre o conjunto do programa científico em psicodinâmi-
mica do trabalho desenvolveu-se a partir da descoberta, ca do trabalho.
nestes meios de trabalho,
de estratégias coletivas
uando a organização do trabalho faz obstáculo à
de defesa, isto é, de for-
mas de cooperação para
lutar contra o sofrimento
no trabalho, mais preci-
Q elaboração do sofrimento e a sua transformação
em prazer, então o trabalho pode ser prejudicial
samente contra o medo
gerado pelos riscos da
atividade. Pode-se mos-
para a saúde mental. Não há neutralidade do
trar que estas estratégias trabalho defronte à saúde mental.
coletivas de defesa eram
mais eficazes para pre-
servar a saúde mental que as estratégias individuais, mas Psicanálise e divisão sexual
elas traziam distorções de comunicação, impedindo que do trabalho: uma teoria implícita
fosse pensado e discutido aquilo que, no trabalho, seria Do ponto de vista psicanalítico, consideramos que as
difícil suportar psiquicamente. Aparecia uma nova forma diferenças psíquicas entre os homens e as mulheres
de racionalidade da ação, a racionalidade subjetiva ou encontram sua origem na idade precoce da psicosexua-
racionalidade pática da ação, orientada para a sobrevi- lidade, portanto bem antes do encontro com o trabalho.
vência e a saúde, que permitia interpretar de outra manei- Desta perspectiva, o status teórico da divisão sexual do
ra “condutas insólitas” ou de “resistência à mudança” trabalho é de pouca importância. É subentendido que este
julgadas até como irresponsáveis ou contraprodutivas. é, pode-se dizer, o prolongamento social destas diferen-
Os fundamentos teóricos da disciplina e suas primei- ças e se justifica pelo fato destas diferenças. Esta concep-
ras descobertas empíricas foram também estabelecidos ção naturalista e harmoniosa da divisão sexual do traba-
num quadro de referência ao masculino-neutro, onde a lho existe, aliás, em sociologia (cf. o funcionalismo de
questão era saber se a teoria em psicodinâmica do traba- Parsons). Sem dúvida as injustiças sociais deverão ser
lho seria adequada para compreender também as situa- corrigidas, mas a divisão sexual do trabalho não será

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Pascale Molinier

abolida, pois ao oferecer tarefas diferentes aos homens e Esta forma de divisão social tem dois princípios
às mulheres, ela estará em ressonância simbólica com organizadores:
suas orientações diferenciadas em matéria de realização • o princípio da separação (tem trabalhos de ho-
de si. Para explicar por que certas pessoas fazem uma mens e trabalhos de mulheres);
escolha profissional atípica, sem colocar em questão a • o princípio hierárquico (um trabalho de homem
complementaridade entre os sexos, a noção de bisse- “vale” mais que um trabalho de mulher)”
xualidade psíquica pode ser utilizada como uma variável (KERGOAT, 2001, p. 89)
de ajuste afim de dar conta das situações de exceção.
Cada um(a) teria em si uma parte feminina e uma parte Segundo a autora, se os dois princípios organizadores
masculina, com uma dosagem diferente segundo os indi- se encontram em todas as sociedades estudadas, por outro
víduos. Uma solução teórica aparentemente menos estig- lado, um aspecto fundamental é que constatamos uma
matizada para as mulheres que a interpretação de suas grande variabilidade das modalidades da divisão sexual do
ambições profissionais em termos de “reivindicação trabalho, no espaço e no tempo. Nesta perspectiva, as
fálica” ou de “complexo de masculinidade”. Seria tam- diferenças constatadas entre as práticas dos homens e das
bém menos imediatamente homofóbica face aos homens mulheres são devidas a construções sociais, e não relevam
que exercem tarefas femininas. Todo este arcabouço, em uma casualidade biológica. Esta construção social, tem
grande parte implícito, foi colocado em questão pelos uma base ideológica (o naturalismo) mas também e antes
sociólogos do trabalho através de sua categorização de de tudo material – “ quer dizer, a ‘mudança de mentalida-
classe e de sexo. de’ não se fará jamais espontaneamente se ela ficar
desconectada da divisão do tra-
balho concreta. “(KERGOAT,
s fundamentos teóricos da disciplina e
O suas primeiras descobertas empíricas
foram também estabelecidos num quadro de
2000, p. 40). Isto implica uma
conceituação rigorosa do traba-
lho que “desconstrói” a clivagem
trabalho-fora do trabalho e não
desassocia a relação de produção
referência ao masculino-neutro, onde a questão da relação de reprodução. Por
outro lado, e se trata de um im-
era saber se a teoria em psicodinâmica do portante aspecto, a relação social
do sexo é um conceito analítico.
trabalho seria adequada para compreender Daniele Kergoat insiste sempre
sobre o caráter de abstração, isto
também as situações vividas pelas mulheres. para ficar atento contra uma aná-
lise solipsista da complexidade
A divisão sexual do trabalho: o das práticas sociais. Se a relação social de sexo é heurística
desafio das relações sociais de sexo para pensar as práticas sociais, os desafios e suas evolu-
Segundo Danièle Kergoat, a relação social do sexo é ções, não pode ser isolada das outras relações sociais.
uma tensão que estrutura e atravessa o conjunto do campo Imbricação e recobrimento parcial das relações de classe e
social e desafia certos fenômenos sociais entorno dos de sexo são conceituadas não só em termos de hierarquia
quais se constituem grupos de interesses antagônicos. A mas de co-extensividade.
relação social do sexo se fundamenta primeiramente e
antes de tudo em uma relação hierárquica entre o grupo Trabalho, subjetividade e determinismos sociais
social dos homens e o grupo social das mulheres. Estes A partir dos fundamentos epistemológicos aparente-
grupos estão em tensão permanente em torno de um desa- mente também distantes, como explicar que o encontro
fio central, o trabalho e suas divisões. entre a psicodinâmica do trabalho e os sociólogos do
trabalho poderia apesar de tudo acontecer?
“A divisão sexual do trabalho tem por característica As relações sociais de sexo representavam o nó cego
a afetação prioritária dos homens à esfera produtiva da psicodinâmica do trabalho. Mas a problemática do
e das mulheres à esfera reprodutiva como que si- prazer e do sofrimento no trabalho foi sendo construída
multaneamente a captação pelos homens das fun- recusando a “tentação“ psicossociológica, isto é, a tese
ções com um forte valor agregado (políticas, religi- da articulação entre o indivíduo e o social, em proveito
osas, militares, etc.) de uma concepção dinâmica das relações entre sujeito e

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Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo. Um itinerário interdisciplinar. 1988-2002

sociedade. Entre a cena do fantasma e a experiência do outros femininos. Eles não são similares, porque as
trabalho (tendo como exemplo o sonho da ausência de situações de trabalho que os produzem não são as mes-
gravidade e a profissão do piloto de caça), havia a mas” (HIRATA, KERGOAT, 1988, p.167)
materialidade dos constrangimentos da organização do A primeira etapa reconsiderou o sofrimento no traba-
trabalho (DEJOURS, 1980). Isto não se inscrevia na lho dos homens. Danièle Kergoat possibilitou uma nova
continuidade da história pessoal, mas se impunha in- leitura, uma leitura sexuada, das estratégias coletivas
dependentemente da vontade do sujeito. A experiência descobertas entre os homens, salientando a importância
do trabalho não repetia a história infantil. Também, da virilidade social nas suas estratégias. É o que ela
problematizar as relações dinâmicas entre o sujeito e o indica sobre os caminhoneiros da fábrica Bulledor, onde
trabalho implicava em evitar um duplo obstáculo: o responsável de recursos humanos os comparava a “uma
• Por um lado, não fazer o impasse sobre o peso dos horda de cavalos selvagens” (HIRATA, KERGOAT,
determinismos sociais e seu heteronômio com relação 1988, p. 153). O que a sensibiliza é de um lado um
à psicologia individual. Em suma, deve-se adotar uma julgamento positivo proferido pela hierarquia sobre um
verdadeira teoria social. grupo percebido pela chefia como rebelde. Por outro
• Por outro, não ceder a uma outra “tentação”, aquela de lado, os motoristas julgavam positivamente seu trabalho,
uma ciência do homem sem subjetividade, de acordo ainda que a duração e as condições sejam duras. A
com estes determinismos um peso tão esmagador que o exaltação viril não tem função de “compensar” a explora-
sujeito é reduzido a ser um simples reflexo social, uma ção sofrida devido às relações de classe? Esta questão
marionete sem espessura psíquica e portanto sem li- terá forte incidência sobre a conceituação das estratégias
berdade. De qualquer forma, a análise das relações domi- coletivas de defesas.
nante–dominado(as)
se reduzirá pura e sim-
m essencial, um homem, um “verdadeiro“, deve
plesmente a uma teo-
ria de alienação, inap-
ta a pensar os proces-
sos de emancipação.
E multiplicar as demonstrações de coragem para
conseguir convencer seus companheiros e compartilhar
A sociologia das rela- os mesmos riscos, que ele domina e despreza o medo.
ções sociais de sexo dá
um estatuto privilegiado
ao antagonismo, ao conflito. “As relações sociais não são A dimensão coletiva destas estratégias apareceu de
para mim o determinismo, escreve Danièle Kergoat, mas ao maneira típica na profissão da construção civil. É, princi-
contrário são uma maneira de pensar e de trabalhar a palmente, a de lutar contra o medo gerado pelo trabalho
liberdade” (HIRATA, KERGOAT, 1988, p. 140). Além opondo coletivamente uma recusa de sua percepção. Na
disso, estreitamente ligado à questão da liberdade, o traba- construção desta recusa, a virilidade social tem um papel
lho representa um desafio central nas duas disciplinas. preponderante. Em essencial, um homem, um “verdadei-
Parece, retrospectivamente, que foi esta doutrina comum ro”, deve multiplicar as demonstrações de coragem para
das relações entre determinismos e liberdade que tornou conseguir convencer seus companheiros e compartilhar os
possível um trabalho interdisciplinar, fecundo para as duas mesmos riscos, que ele domina e despreza o medo. A
partes. Kergoat e Hirata integraram no seu próprio trabalho exaltação viril não oferece somente uma “compensação”
teórico que os desafios em termos de emancipação não narcísica à exploração, ela se constitui em uma verdadeira
podem ser desvinculados dos desafios em termos de saúde ideologia defensiva que, logo que ela é compartilhada por
mental, e que “não podemos pensar o trabalho, inclusive todos os membros de um coletivo de trabalho, interdita a
sociologicamente, sem considerar a subjetividade” expressão de medo e mais amplamente a de sofrimento no
(KERGOAT, 2001, p. 89). trabalho. Aquele que sofre deve se calar e/ou partir, senão
ele passa por um fraco, um “afeminado”, uma “mulher”.
Uma primeira etapa: reconsiderar Entre os assalariados, como no espaço privado, as ativida-
o sofrimento dos homens des suscetíveis de fragilizar a posição viril, por que elas
No seminário “ Plaisir et souffrance dans le travail ” confrontam a vulnerabilidade humana, são ocupadas pe-
Christophe Dejours contribui escrevendo: “ Cada sofri- las mulheres, de preferência sem falar com os homens,
mento será, seguindo as teses sociológicas aqui expos- sob pena de se expor a seu mau humor, ou ainda pior
tas, sexuado (...). Certos sofrimentos são masculinos, (MOLINIER, 1996). A recusa do sofrimento dos homens

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aparece também como um apoio psicológico fundamental 2- eu, eu não sou invejosa;
na análise combinada das relações sociais de produção e
de reprodução, e como um dos princípios organizadores As premissas colocam em visibilidade a recusa do
das práticas sociais, notadamente das lutas sindicais. indivíduo-operário de se identificar pertencente a um
Em 1998, C. Dejours dará um passo suplementar ao grupo de “mulheres” julgado pejorativamente segundo
mostrar que a virilidade “não anestesia” somente a per- os estereótipos sexistas da ideologia dominante. A idéia
cepção do medo, mas também o sentido moral forte é que formalmente a conclusão deveria ser:
(DEJOURS, 1998). A análise do “cinismo viril” na orga-
nização contemporânea coloca as formas de racionaliza- 3- então eu não sou uma mulher.
ção defensiva, em particular do lado dos executivos, para
justificar a sua própria participação na injustiça social. Na medida em que “eu não sou uma mulher” não é nem
Todos os termos que são associados à virilidade se esta- dizível nem mesmo pensável, “a constituição sexual do
belecem na hierarquia dos valores e são suscetíveis de sujeito se encontra assim bloqueada ao nível de suas
adquirir uma grandeza, mesmo se infligir um castigo ao representações” e parece ser um impasse (KERGOAT,
sofrimento ou à injustiça para com outros. Um homem, 1988, p. 110) .
um “verdadeiro”, não terá crises. Em nome da coragem As operárias não podem, como mulheres, se constituir
viril, o mal feito pelos homens é mais facilmente justifi- em um “sujeito social”. Quais são as conseqüências de
cado que aquele cometido pelas mulheres e o bem que uma falta de identidade social sobre a identidade indivi-
elas fazem alcança o mesmo valor daquele dos homens. dual? Como será para as mulheres qualificadas? O este-
reótipo da “inveja”, ao inverso dos
“valores” viris mobilizados pelos ho-
s operárias não podem, como mulheres,
A
mens, é pejorativo. Admitindo que
existem, em outros meios de trabalho
se constituir em um “sujeito social”. não só das operárias, estratégias cole-
tivas de mulheres, a partir de quais
Quais são as conseqüências de uma falta de outras fontes ideológicas elas são
construídas? E estas estratégias con-
identidade social sobre a identidade individual? seguem reduzir, talvez superar, a
descontinuidade entre o sujeito se-
Como será para as mulheres qualificadas? xual de um lado, o grupo sexual e o
universo de trabalho de outro lado?
As operárias e o silogismo
do sujeito sexuado feminino Para trabalho diferente, sofrimento
Existem coletivos de profissões femininas? Das for- diferente: a compaixão das enfermeiras
mas de cooperação específicas e das formas de coopera- Para tentar responder a estas questões, é preciso
ção defensiva feminina? Segundo Danièle Kergoat, o encontrar uma situação que autorize a comparação com
coletivo das operárias existe apenas em período de luta e as situações de trabalho masculinas que permitiram
o grupo de operárias aparece no cotidiano inteiramente construir os conhecimentos em psicodinâmica do traba-
fragmentado, definido pela representação dada pelas lho. Prescrita por homens (médicos e administradores),
operárias, “como um agregado atravessado por uma in- a profissão de enfermeira foi inventada, exercida e
tensa concorrência interindividual (a solidariedade será estabelecida por uma maioria de mulheres, em todos os
a condição exclusiva do grupo de homens ou ao menos níveis hierárquicos. Ainda que implique em formas de
do grupo misto)”. O problema da “inveja” volta como um comando e cooperação, técnica é uma dimensão impor-
leitmotiv em quase a totalidade das entrevistas. tantes trata-se de um trabalho que confronta o medo
Em termos de reprodução dos esteriótipos sexuais, (contaminação, erro, violência...). Mesmo que compor-
como nos discursos sobre a “inveja”, Kergoat decida te similitudes com situações masculinas, o trabalho de
dar importância ao que “as prórpias operárias reconhe- enfermagem é também bem diferente: explicitamente
cem”, formalizando-os por um silogismo (KERGOAT, orientado para atender aos outros e aliviar o sofrimento
1988): psíquico, ele aparece, por estas razões, fortemente
indexado à identidade feminina.
1- todas as mulheres são invejosas (têm medo do chefe, Para investigar as situações do trabalho de enferma-
são fofoqueiras, etc.); gem, a solução foi privilegiar um construtivismo metodo-

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Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo. Um itinerário interdisciplinar. 1988-2002

lógico. Suspendemos deliberadamente a questão do sa- recobrem completamente, e a confusão entre as duas será
ber se os homens e as mulheres eram, por natureza, fonte de sofrimento.
diferentes. Fiéis às opções metodológicas da psicodinâ-
mica do trabalho, escolhemos como eixo de análise o “No começo, como enfermeira, eu interpretava mal
conflito entre o sujeito e os constrangimentos da organi- as falas que vinham dos homens, tipo: você tem a
zação do trabalho. Mas este conflito foi redefinido no mão doce (...). Eu quero ser reconhecida, como
contexto de uma problemática integrando a divisão sexual enfermeira, não só como mulher. (...) Você sabe,
do trabalho como uma dimensão estrutural e central na quando você é uma garota, você tem sempre medo
relação subjetividade–trabalho. dos contatos porque podem ser vistos como uma
A confrontação com o sofrimento de outro é a fonte de agressão física: não pode me tocar porque tem a
um sofrimento específico que é a compaixão (sofrer com). intenção de mexer no meu corpo, isto eu não supor-
Quais são as principais descobertas sobre este sofrimento? to. Aí é o momento aonde eu ainda preciso me
A experiência dos alunos de enfermagem se instaura sob afirmar tanto como profissional como mulher.”
a influência do medo e do desgosto, combinado com a (KERGOAT, 2001, p. 95).
tentação de demolir os muros e evitar a confrontação com os
doentes. Não é a compaixão que está em primeiro plano, “Todas as mulheres são fofoqueiras”: esteriótipo
mas os comportamentos de recusa. A compaixão é um sexual ou estratégia coletiva de defesa?
processo psíquico desencadeado pela obrigação determina- As enfermeiras dissociam com insistência o “ser-mu-
da pelo confronto com os doentes, mesmo quando não se lher” de seu profissionalismo, insistência sem equivalên-
tem vontade, e que só se elabora graças a um grande esforço cia do lado dos homens. Os valores da compaixão jamais
coletivo. A compaixão é fruto de uma construção social. são por elas considerados como valores especificamente
De um lado, a relação subjetiva com o outro é forte- femininos (vs os valores viris)1. Suas estratégias coleti-
mente impregnada de ambivalência; estamos ocupadas vas de defesa são também opostas às estratégias viris:
com pessoas cujo estado de degeneração física e mental elas não podiam ser entendidas num modelo teórico
suscita angústia, desgosto e medo. De outro, a organiza- “androcentrado”. É a tonalidade particular das discus-
ção do trabalho hospitalar, notadamente através de seus sões entre o pessoal que se ocupa dos cuidados à saúde
constrangimentos temporais, tende a passar a humani- que faz aparecer as especificidades da cooperação defen-
zação dos cuidados para um segundo plano com relação siva, sob condição de manter uma distância dos estereó-
às dimensões técnicas do trabalho. Mas a instrumentali- tipos sexuados, a fim de escutar outra coisa que não
zação da atividade é vivida como insatisfatória do ponto fofoca da «mulherada» ou «das descerebradas».
de vista dos valores, do sentido
da profissão. Trabalhar bem é
s enfermeiras dissociam com insistência
A
construir o melhor compromisso
entre eficácia técnica e compai-
xão. Tal compromisso é neces- o “ser-mulher” de seu profissionalismo,
sariamente imperfeito, mas ele
pode ser julgado aceitável. A insistência sem equivalência do lado dos homens.
qualidade das arbitragens coleti-
vas é decisiva, tanto para evitar a
desumanização dos cuidados como os riscos de trans- A negação de sua própria vulnerabilidade deixava as
gressões individuais (por exemplo, não colocar luvas de enfermeiras insensíveis ao sofrimento, colocando em
proteção por compaixão aos pacientes em estado termi- xeque a eficácia e mesmo o sentido do trabalho. As
nal da AIDS. CARPENTIER-ROY, 1991). As dimensões discussões entre elas visa elaborar o sofrimento gerado
ambíguas da afetividade estão na realidade sempre pre- pelo trabalho hospitalar sem contrapor uma negação.
sentes numa atividade aonde as relações podem alcançar Mas esta elaboração coletiva é tão ambígua quanto a
uma real intensidade. Por um processo de deliberação, o realidade que ela tenta subverter . As enfermeiras consa-
pessoal de enfermagem estabeleceu uma fronteira coleti- gram um tempo significativo para discutir entre elas, de
va entre, como elas dizem, “a mulher” e a “profissional”, preferência tomando um cafezinho. Estes momentos de
para não “misturar tudo”. A importância que as enfer- convívio são necessários para a coesão da equipe e a
meiras conferem a esta fronteira, como garantia de sua qualidade do trabalho, como para a boa saúde mental,
saúde mental, sugere que, em suas representações, a mas tendem a desaparecer à medida que o trabalho se
identidade feminina e a identidade profissional não se intensifica. Durante essas discussões informais, as mu-

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lheres trocam informações preciosas para acompanhar o sas doenças somáticas para outros. Nossos estudos suge-
trabalho, e também expressar seus diversos sentimentos, rem que entre o drama da doença e a subversão coletiva
as dúvidas, a inquietação, a impotência, a atração ou a do sofrimento, uma alternativa muito utilizada é a das
aversão. O tom de suas conversas pode parecer insólito, estratégias individuais de defesa.
às vezes chocante para pessoas de fora. As situações
descritas são geralmente patéticas, portanto é o bom Duas estratégias individuais típicas:
humor que rege. Cada uma se esforça em “desdramati- a mudança e o ativismo
zar” as situações vividas, empregando façanhas inventi- Em um estudo realizado com chefes de enfermagem
vas e fantasias para deixar o cotidiano mais agradável e que sofriam de fadiga2 por excesso de trabalho, na medi-
divertido. Para dizer de uma outra forma, trata-se de da em que elas estimam que não podem trabalhar confor-
inventar um conjunto de recursos simbólicos que per- me seus valores, Seria mais sábio pedir rapidamente uma
mita deixar o mundo mais vivível sem portanto eliminar mudança de cargo ou de setor do que se desgastar em
o sofrimento. Para tanto, elas zombam dos doentes, dos conflitos estéreis e inúteis com os chefes de serviço e
chefes e dos médicos, mas sobretudo elas zombam de si com a administração (MOLINIER, 2001). De fato, parti-
mesmas, “frágeis-mulheres”. A dimensão da auto ironia das e mudanças intervêm logo que as pessoas compreen-
frente à própria vulnerabilidade é a componente essenci- deram que não tinham poder para modificar a situação3.
al das defesas “femininas”. O sentimento de Em suma, as estratégias de mudança (às vezes demissão)
vulnerabilidade é congruente com a feminilidade. Ao intervêm depois de tentativas abortadas de resistência ou
contrário, zombar de suas próprias fraquezas, de suas de rebelião, tentativas freqüentemente custosas no plano
próprias perdas, é inconcebível na perspectiva viril. pessoal e cujo insucesso é doloroso de elaborar. Partir
Existe uma “sexuação” das defesas. Evidentemente isto significa a recusa de se tornar cúmplice do sistema e a
não se dá porque as mulheres são dotadas, desde o nasci- vontade, como dizem as chefes de enfermagem, de “sal-
mento, da capacidade de reconhecer em si suas próprias var sua pele” 4. O pedido de mudança (ou a demissão)
fraquezas e de tolerá-las nos outros. ocorre freqüentemente após uma fase de ativismo. O
Estas estratégias de “domesticação” do real são con- ativismo é uma estratégia, clássica no meio hospitalar,
tingentes e só se elaboram porque existe um coletivo de que consiste em querer concluir sua tarefa integralmente,
regras de enfermagem. Ora, a perenidade do coletivo é notadamente a não sacrificar a humanidade dos cuida-
contribuinte do desejo de dividir sua experiência do dos, sem contar suas horas de trabalho. O ativismo privi-
trabalho com os colegas. Isto implica em estar de acordo legia então o sentido do trabalho. Mas é uma estratégia a
com o que se faz. A dificuldade do trabalho compassivo curto prazo que ocorre sobre a diminuição da vida pesso-
assinala a entrada do sofrimento ético. É o caso, para al e sobre o esgotamento profissional, o qual numerosos
dar um exemplo, quando os trabalhadores do hospital trabalhadores que cuidam de outras pessoas tentam ame-
têm o sentimento de ser antes de qualquer coisa avaliados nizar usando automedicação.
não pela qualidade de seu cuidado, mas por sua prontidão Se o ativismo é explorado pela organização do traba-
em “ esvaziar as camas” ou as “rentabilizar”. Eis, tipica- lho, ele não é reconhecido nem recompensado. Quando
mente, o tipo de situação suscetível para quebrar a pala- as pessoas que cuidam de outras são usadas, consumidas
vra no seio do coletivo e provocar “descompensações” e se tornam, portanto, em parte inaptas para sua função,
psicopatológicas. Estas interferem logo que o sujeito não elas são estigmatizadas por seus colegas, que as enqua-
consegue mais trabalhar conforme seus valores; logo que dram como “braços quebrados”. O ativismo é raramente
ele tem o sentimento de desenvolver um trabalho indig- uma estratégia coletiva5, ele é fonte de conflito e de
no, nefasto para o outro. Uma tarefa que ele tem vergo- divisão no seio das equipes, entre aquelas que não con-
nha e que ele não quer, portanto, colocar em deliberação tam suas horas, aceitam fazer substituições nos seus dias
com seus colegas. Não é a compaixão que é patogênica de descanso, e aquelas que tentam proteger sua vida
mas a impossibilidade crônica de lhe dar uma saída privada, fazendo respeitar seus direitos. Estas devem
criativa no cuidar. compor com os constrangimentos (mono)parentais, ou
Quais são as formas de compensação das pessoas que simplesmente vivem em “sobrecarga” por excesso de
trabalham com cuidados aos outros? Qual é a sua fre- trabalho. Na medida em que as equipes das pessoas que
qüência? Os médicos do trabalho que atuam em hospitais cuidam sejam formadas por mulheres da classe média
serão os melhores para responder a estas questões, saben- sujeitas a dupla tarefa, tem uma função primordial.
do que as relações entre sofrimento no trabalho e doença Pela diferença com o sofrimento gerado pelo trabalho
não mantém relações causais: depressões, suicídios, pas- de enfermagem, o sofrimento gerado por sua “concilia-
sagens ao ato violento para uns, aparecimento de diver- ção” com o trabalho reprodutivo é visto como um proble-

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Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo. Um itinerário interdisciplinar. 1988-2002

ma individual e não como uma dificuldade que poderia Volta sobre a continuidade sujeito sexuado–sociedade
ser socializada e superada coletivamente. Isto aparece As descobertas realizadas junto às enfermeiras, de um
claramente nos estudos realizados com chefes enfermei- lado, e o estatuto da negação do real nas estratégias
ras, quando elas não conseguem “conciliar” o papel ma- defensivas viris, de outro lado, confrontam a tese da
ternal e conjugal com o seu trabalho, o que pode sob a continuidade entre a identidade sexual e a divisão sexual
ótica dos constrangimentos da organização do trabalho do trabalho? Segundo Roiphe e Galenson (1981), as
parecer, ao menos para nós pesquisadores, como uma observações sistemáticas feitas de crianças dos dois se-
missão impossível. Portanto não é a organização do tra- xos, entre quinze e vinte e quatro meses, sugerem que a
balho que elas remetem em questão, mas a elas mesmas negação será uma postura física enraizada bem cedo no
(ou àquelas que não conseguem). “Más profissionais” e desenvolvimento infantil do menino, enquanto que as
“más mães” é “sua culpa”: elas erraram em querer fazer meninas serão “preparadas” ao reconhecimento do real
carreira. Esta personalização de suas dificuldades as do corpo e sua vulnerabilidade6. É numa idade não muito
conduz a ficarem sozinhas, no silêncio e na culpa, com precoce que os teóricos da ética do cuidar (ethics of care)
inteira responsabilidade. Enfim, quando as enfermeiras instituem a diferença entre o “eu relacional” das meninas
esgotadas tentam levar as suas dificuldades para aqueles e o eu abstrato dos meninos (CHODOROW, 1978,
que decidem, elas estão num estado de excitação, esgota- GILLIGIAN, 1982). Sem dúvida, a transmissão das iden-
mento emocional, confusas. Seu estado é, em geral, jul- tidades e dos “papéis do sexo” se enraízam nas interações
gado como patológico pelo interlocutor. Nelas estaria precoces, antes do trabalho, entretanto, como sabemos,
todo o problema, na sua atividade, na sua “ devoção” ou com importantes variações entre os indivíduos. Mas, nos
na sua fragilidade (MOLINIER, 2000). exemplos, parece que aquilo que se esboça na infância é
Abordamos, aqui, um dos principais problemas. Quem em seguida profundamente modificado pelo encontro com
compadece? A “mulher”? ou a “profissional”? A com- o real do trabalho e muito pouco compreendemos sobre as
paixão não está incluída como um trabalho, ela é natura- vicissitudes da identidade (pedestal da saúde mental) na
lizada, confundida com a feminilidade. À medida dos idade adulta sem referência à materialidade do trabalho.
interesses defensivos dos que de-
cidem, a compaixão é idealizada
ela diferença com o sofrimento gerado
no registro da sensibilidade femi-
nina (“as mulheres são formidá-
veis”), ou racionalizada pejorati-
vamente como pieguice (as mu-
P pelo trabalho de enfermagem, o sofrimento
gerado por sua “conciliação” com o trabalho
lheres têm “crises”). Em seguida,
nós vimos que é sobre um modo
aonde a compaixão não é jamais
reprodutivo é visto como um problema individual
desassociada do humor e da auto- e não como uma dificuldade que poderia ser
gozação que as enfermeiras con-
tam sua vivência do trabalho atra- socializada e superada coletivamente.
vés do que é uma arte de viver o
sofrimento. Compreendemos que
este modo de narração tão particular seja difícil de Assim, a negação da realidade não é única (e a me-
socializar fora do coletivo delas: é inaudível a partir da lhor) forma de se defender contra o sofrimento gerado
posição de negação viril. Todavia, o déficit de visibilida- pelas atividades exercidas por uma maioria de homens.
de do trabalho compassivo não é unicamente devido à Estas atividades não precisam ser efetuadas de maneira
negação de realidade dos que decidem. Para ser eficaz, viril para serem bem-sucedidas. Parece, com efeito, que
o trabalho compassivo deve se tornar invisível anteci- uma minoria entre as mulheres não mobiliza sempre
pando com relação às necessidades do outro, em termos exatamente as mesmas fontes psíquicas que os homens,
de conforto, de escuta, de segurança, de presença, etc. como Lívia Scheller mostrou sobre as condutoras de
Como reconhecer o trabalho, aonde esperam a autenticida- ônibus (SCHELLER, 1996).
de de um gesto de simpatia? Os saber fazer compassivos Além do mais, mesmo que nas atividades “masculi-
são discretos (MOLINIER, 2000). Para as enfermeiras, nas” as mulheres trabalhem em parte diferentemente dos
uma vez estabelecida, a compaixão se experimenta espon- homens, não é sempre a primeira intenção. Mas sobretu-
taneamente, como um sofrimento ...., ela torna-se uma do porque as mulheres tentam empregar os métodos
relação com o mundo, uma postura, vivida como natural. viris, aqueles que funcionam para os homens, são

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freqüentemente a seu prejuízo e insucesso. Isto aparece ça que resulta de uma estratégia kaporalista não beneficia a
nitidamente num estudo de Joan Cassell sobre as “ascensão viril”, pois retorna num “valor”, uma vez que
cirurgiãs (CASSELL, 2000). Estas devem enfrentar ex- atinge o registro da identidade. Se for para renovar a refle-
pectativas específicas, para a maioria implícitas, da xão moral apoiando-se sobre a experiência concreta das
parte de suas hierarquias, colegas e subordinados. Em mulheres, assim como a censura ética da solidão, é necessá-
particular, se espera das mulheres no posto de comando rio ter-se em conta a base material desta experiência, isto
que elas façam prova de firmeza como os homens, mas que é, a divisão sexual do trabalho, as relações sociais de
elas também estejam mais à escuta dos outros, mais “hu- classe e de sexo, assim como os conhecimentos sobre as
manas”, diriam trivialmente. Isto, as cirurgiãs não apren- estratégias coletivas de defesa. À revelia, as auxiliares
dem nem na faculdade, nem observando os mestres, elas de enfermagem que se defendem da fadiga e da humilha-
descobrem em situação de trabalho. É então, em seu corpo, ção pelo kaporalismo vivem o risco de ser duplamente
sem ter antecipado primeiro, que elas são conduzidas a estigmatizadas, julgadas “malvadas” tanto como profissio-
experimentar defensivamente formas de relações profis- nais como mulheres (a indiferença ao outro e a violência são
sionais, de autoridade e de gestão (mais “compreensível”) antinômicos com a definição da feminilidade “relacional”).
diferentes das dos homens, assim como outras defesas
(MOLINIER, 2003). A dupla centralidade do trabalho e da sexualidade
A identidade sexual se es-
boça durante a infância. Este
m particular, espera-se das mulheres no posto
E de comando que elas façam prova de firmeza
como os homens, mas que elas também estejam
primeiro pilar é colocado em
questão não somente pelas
primeiras experiências amo-
rosas mas também, de uma
maneira decisiva, pela expe-
mais à escuta dos outros, mais “humanas” riência do trabalho. É no mo-
mento da adolescência, perío-
do chave do desenvolvimen-
Enfim, as mulheres que exercem atividades “femini- to, que entram em conflito os dois problemas, o da esco-
nas” não estão sempre na medida de reconhecer o real. lha profissional (vetorização inconsciente → sujeito) e as
É o caso quando elas se defendem de perceber seu trabalho incidências da situação de trabalho sobre a vida psíquica
como degradante para a sua própria dignidade, em particu- e afetiva do adulto (vetorização sociedade → sujeito
lar quando ele consiste em limpeza sem descanso (e sem (DEJOURS, 1996). Isto leva a postular uma “dupla
reconhecimento) dos dejetos corporais e porcarias dos centralidade”, a da sexualidade e a do trabalho, no funcio-
outros. Assim, podemos identificar, em certos coletivos de namento psíquico e na construção da saúde. Esta discussão
atendentes de enfermagem ideologias defensivas da pro- se iniciou desde 1988 em um artigo consagrado essencial-
fissão7 chamadas de Kaporalisme (ou ideologia da ordem mente, como indica seu título, ao “masculino entre socie-
ao mérito) que consiste em fazer uma triagem entre: dade e sexualidade” (DEJOURS, 1988).
• os (alguns) pacientes que merecem a compaixão e serão É raro que o sujeito, quando entra no mundo do traba-
tratados como pessoas sem restrições (aqueles que coo- lho, seja suficientemente maduro e seguro de sua identida-
peram ativamente e manifestam a gratidão); de sexual para pretender ser aceito pelos outros como
• e aqueles que serão tratados como subprodutos da amável enquanto homem (ou enquanto mulher) 8. É por
espécie humana, como “coisas”, porque eles diminuem isso que nos encontros entre o sujeito masculino e os
o trabalho e contribuem com a penosa tarefa sem constrangimentos deletérios das situações de trabalho, o
manifestar gratidão: tipicamente os doentes mentais, risco de captura da identidade masculina pela virilidade
que “não têm mais sua cabeça” os drogados e os defensiva é real. O homem virilizado escora seu funciona-
alcoólatras, que “terão aquilo que eles merecem”, ou mento mental e social a partir de representações estereo-
as mulheres no dia seguinte da tentativa de suicídio, tipadas e imagens prontas, também é pouco acessível aos
que “fazem drama” (MOLINIER, 1966). remanejamentos psíquicos, fragilizado não somente por
abordar o reencontro erótico com uma mulher alter ego,
Assinalemos que tal manobra coletiva contra a perda da mas também por elaborar ao longo da vida as situações de
auto-estima, devastadora para os doentes que são o alvo, ruptura, em particular as demissões ou a aposentadoria.
modifica muito superficialmente o sentimento de se deterio- Do outro lado da relação social de sexo, para designar
rar numa tarefa indigna. O maltrato, ou a mínima indiferen- a posição feminina encravada, isto é alienada na submis-

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Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo. Um itinerário interdisciplinar. 1988-2002

são, Dejours cria o neologismo de “mulheridade”. Entre que defendia a feminilidade como fruto da iniciação sexu-
virilidade e “mulheridade”, a identidade sexual das mu- al pelo homem (HABIB, 1998). Portanto, quando as mu-
lheres que trabalham em profissões tradicionalmente lheres dissociam a “mulher” da “profissional”, esta parte
masculinas se dá sob grande tensão. É o caso de Mulvir, delas mesmas que elas designam como a “mulher” é antes
uma jovem analisada em psicoterapia por Dejours de mais nada a que deseja que seu corpo lhe pertença.
(1996). Ela, recusando repetir o destino maternal frustra- Livre de se “ocupar dela mesma” como as esposas dos
do (mulheridade), deseja entrar num trabalho interessan- homens que trabalham em turnos dos quais falaremos mais
te e qualificado, o de técnica-eletricista. Mas, no seu tarde, livre de recusar ser tocada contra sua vontade, como
meio social, não há mulher que represente um modelo de a jovem enfermeira citada, livre para não se embrutecer nas
emancipação profissional e sexual. E no seu meio de respostas repetitivas às necessidades dos outros, como tes-
trabalho exclusivamente masculino, ela deve consentir temunham amplamente as auxiliares de puericultura e as
em aceitar as estratégias coletivas de defesa e os trotes assistentes maternais (CHAPLAIN, CUSTOS-LUCIDI,
construídos pelos homens, com o risco de uma conse- 2001). No discurso das mulheres, é a inalienabilidade do
qüente virilização – “uma crise da identidade sexual corpo que aparece como o vetor principal da identidade
com os problemas do uso do corpo erótico e a uma hesita- sexual. Inalienabilidade a ser conquistada antes de toda
ção sobre a orientação sexual (homo ou heterossexual)” maneira de reciprocidade sexual e que implica a subversão
(DEJOURS, 1996, p. 25). Dejours mostra que, numa das relações sociais de sexo.
abordagem psicanalítica convencional, a sua própria an- As duplas virilidade–masculinidade, mulheridade-fe-
tes da discussão com Kergoat e Hirata, a luta trágica da minilidade não são então simétricas e não reenviam a
jovem contra a “mulheridade” será interpretada como uma tipologia das identidades sexuadas, mas formam
uma reivindicação fálica e uma recusa típica da castra- uma rede conceitual topológica para pensar a complexi-
ção. Mulvir não é “um homem castrado”, mas uma jovem dade dos destinos de identidades, entre sexualidade e
mulher em busca da realização de si. A tomada de cons- trabalho, sem fixar ou definir a essência dos conteúdos da
ciência das relações sociais da produção e da reprodução masculinidade ou da feminilidade.
tem incidentes pesados em termos da orientação terapêuti-
ca. Em princípio, a terapia pode reforçar a “mulheridade”, A saúde dos homens: uma
antes de tudo uma defesa que consiste em “fazer a mulher” construção do trabalho conjugal?
para ser aceita e amar (Ver GRENIER-PEZÉ, 2000 e Discursos e práticas da maioria das mulheres apare-
MOLINIER, 2003). cem fortemente marcados, não porque será uma adesão
“Através da feminilidade a subjetividade se descolaria pura e simples a seu estatuto de dominada, mas pela luta
do esteriótipo social de dona de casa submissa a seu homem, contra a mulheridade. Isto autoriza retomar a controver-
como a masculinidade será a testemunha do caminho feito tida questão do “consentimento” das mulheres, a sua
pelo sujeito para não se deixar reduzir ao machismo con- dominação, ao menos aonde elas não são constrangidas
vencional (identidade de empréstimo).” (DEJOURS, 1966, pela violência.
p. 20). As vicissitudes deste “descolamento”
não são interpretáveis sem referência ao traba-
s relações de produção não podem
lho. Isto é adquirido. Mas as aspas que são
colocadas na “feminilidade” sugerem que se
avança num terreno conceitual incerto. A dis-
cussão com os sociólogos tem um papel impor-
A ser analisadas independentemente
das relações de reprodução
tante nesta indefinição conceitual. Esta posi-
ção teórica prudente me parece ser sempre
devida, especialmente porque há um verdadeiro hiato entre “Por que (a despeito das mudanças da atividade femi-
as definições sociais (androcentradas) da feminilidade e a nina) o trabalho doméstico é e continua a ser realizado
maneira como esta se apresenta no discurso feminino. Já no meio da família e do casal gratuitamente e “volunta-
explicamos longamente sobre a naturalização do trabalho riamente” pelas mulheres? Por que mesmo aquelas que
compassivo na feminilidade social. Acrescentamos que em têm uma “consciência de gênero” “consentem” em re-
psicodinâmica do trabalho, a identidade sexual foi proble- produzir esta relação assimétrica?”, pergunta Helena
matizada por Dejours em termos de reciprocidade entre os Hirata (2002, p. 14). Abre-se aqui um novo programa de
sexos (como aquilo que escapa a toda relação social). Desta pesquisa interdisciplinar, apenas esboçado, que repre-
maneira, a masculinidade se construiria no encontro erótico senta um desafio teórico (DEJOURS, 2001) e metodo-
com as mulheres, ao contrário da tese romântica de Rousseau lógico.

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Pascale Molinier

Eu evocarei brevemente uma recente pesquisa feita fissionalmente, o trabalho doméstico só é suportável
com mulheres de homens que trabalham em turnos numa quando realizado perfeitamente. O zelo doméstico é um
indústria de processo contínuo (MOLINIER et al., 2001). meio de lutar contra “o endurecimento”, dizem elas,
Permitindo confirmar que as relações de produção não para não dizer a depressão silenciosa, a preguiça em
podem ser analisadas independentemente das relações de frente à televisão à tarde ou as voltas intermináveis nos
reprodução, e portanto que as investigações sobre o so- supermercados. Para as mulheres dos engenheiros, elas
frimento no trabalho não podem ser desligadas dos desa- mesmas super qualificadas, a parada da atividade pro-
fios em termos de transformações das situações de traba- fissional é transitória (os jovens engenheiros não ficam
lho, esta pesquisa poderia inaugurar uma nova era para os mais de 5 anos no trabalho). Todavia, para os operado-
dispositivos metodológicos em psicodinâmica do traba- res de base, parece que a sua saúde conta em grande
lho. Com efeito, a contribuição das mulheres de homens parte sobre a escolha de uma mulher sem ambições de
que trabalham em turnos não se limita à execução das carreira pessoal. Portanto, sabemos que nas sociedades
faxinas domésticas, se acrescentamos um trabalho psico- atuais, e nas classes sociais, poucas mulheres se reconhe-
lógico onde o papel é fundamental na construção e na cem no modelo da “dona de casa” , incluindo, como vimos,
preservação da saúde do esposo. Guardiãs do sono de entre as mais “zelosas”. Resta, por enquanto, que os proje-
seus esposos, da regularidade das referências temporais tistas das organizações do trabalho masculino não integra-
da família, guardiã do seu par, a cooperação das mulheres ram as evoluções das aspirações femininas.
no espaço doméstico é necessária ao desempenho dos
trabalhadores em turnos. Aliás, estes dizem que um ho- Conclusão
mem solteiro não teria muito tempo disponível. O modo As questões levantadas neste artigo provam que o
de produção doméstico toma tanto tempo que a maioria campo aberto pela discussão entre a psicodinâmica do
das esposas renunciaram a um trabalho assalariado ou trabalho e a sociologia das relações sociais de sexo não é
desejam parar de trabalhar. A suspensão, provisória ou homogêneo do ponto de vista teórico, que é cruzado pelas
definitiva, da atividade é o preço a pagar para a sua tensões e controvérsias entre as duas disciplinas e entre
própria saúde e a estabilidade do casal, pensam elas. os pesquisadores de cada disciplina. Além destas ten-
sões, os conhecimentos construídos
ao longo destes quinze anos levantam
onhecimentos construídos ao longo
C destes quinze anos levantam
argumentos substanciais à tese que a
argumentos substanciais à tese se-
gundo a qual a saúde não é um dom da
natureza, mas uma construção inter-
subjetiva. Parece que nesta constru-
ção, o trabalho de cuidar realizado pe-
las mulheres, neste espaço produtivo
saúde é uma construção intersubjetiva. como no espaço reprodutivo, tem um
papel preponderante, hoje subestima-
As mulheres de homens que trabalham em turnos são do. Também não se pode subestimar que este trabalho de
“compreensivas”. “Compreensiva, mesmo se isto me cuidar de outros é freqüentemente questionado pelas
irrita”, dirá uma delas. Constatamos, entre as mais ve- organizações do trabalho que o desconhecem.
lhas, um cansaço e uma irritação em relação à vida Fortalecida pelas contribuições da sociologia das
assim organizada e uma irritação contida frente a um relações sociais de sexo, a análise das situações do
marido que se guarda mais e mais e que se recupera trabalho do pessoal de enfermagem permitiu mostrar
durante o tempo de descanso. Um marido com quem que as modalidades da subjetividade, como a paciência,
precisa se preocupar mais e mais. Segundo as mulheres, a receptividade, a sensibilidade à vulnerabilidade do
seus esposos, em particular os jovens engenheiros, não outro, classicamente consideradas pela psicologia clí-
são particularmente “machos”. Eles não impõem a para- nica como pertencentes à constelação psíquica da femi-
da da atividade profissional a suas esposas. Eles se nilidade e do “eu relacional” das mulheres, são, em sua
propõem a executar as tarefas domésticas, como vestir maioria, diferenciações contingentes e secundárias à
as crianças para levá-las à escola. “ Mas eu prefiro fazer experiência do trabalho. Não considerando as teorias do
eu mesma”, dirá a esposa, pois ele não combinará as trabalho, as teses convencionais da psicologia partici-
meias com os elásticos das roupas! Para esta mulher pam da ocultação do trabalho das mulheres, desfiguram
super- qualificada, que provisoriamente renunciou ao sua experiência e acentuam o déficit crônico de reco-
trabalho, como para as mulheres não qualificadas pro- nhecimento que elas sofrem. A psicodinâmica do traba-

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Psicodinâmica do trabalho e relações sociais de sexo. Um itinerário interdisciplinar. 1988-2002

lho, e mais particularmente meus próprios trabalhos se da psicodinâmica do trabalho e das relações sociais de
inscrevem numa perspectiva crítica frente à corrente sexo. Seu principal resultado é sem dúvida que ela foi
anglo-saxônica da ética do cuidar (ethics of care). A realizada graças à vontade dos trabalhadores que traba-
compaixão não tem saída sem mediação da infantil lham em turnos. Por uma vez, os homens não se opuse-
feminina, ela não é a virtude natural das mulheres ou de ram ao “trabalho doméstico da saúde” realizado por suas
certas dentre elas, mas o sofrimento gerado pelo traba- esposas9. Isto é um sinal de que alguma coisa na posição
lho de cuidar. A não motivação ou o esgotamento pro- dos homens está mudando nas relações sociais de sexo?
fissional (as duas vertentes do “burn out syndrom”) não Gostaríamos de concluir sob um ângulo otimista. Infe-
são fatalidades. Ao contrário. Quando seu destino pato- lizmente, se a virilidade parece se corroer, não há indi-
gênico é conjurado pelo coletivo enfermeiro, a compai- cações de um progresso em matéria da saúde (a virilida-
xão, criadora de sentido, participa da realização de si. de é uma defesa). A mesma pesquisa mostrou um inten-
Quais lições podem-se tirar com relação à saúde das so sentimento de vulnerabilidade do lado dos homens,
equipes que trabalham com cuidados aos outros, depen- através de “descompensação” pelas doenças graves ou
de principalmente da qualidade das arbitragens sobre as por suicídios. Esta desagregação progressiva do univer-
contradições da organização do trabalho. O hospital so do trabalho masculino é o que faria o fundamento da
chega a inventar compromissos organizacionais sufi- saúde de identidade masculina: autoridade, prestígio,
cientes para salvar sua utilidade social e seu valor conhecimento, orgulho do trabalho bem feito, solida-
civilizador: além da cura dos corpos a um menor custo, riedade dos chefes com suas equipes. E se as mulheres
a criação de um mundo comum onde o sofrimento não fossem o último baluarte? A saúde daqueles que vivem
foi eliminado? Das respostas que serão dadas, depende próximos às fábricas? Qualquer que seja a evolução
nossa saúde. nestes casos precisos, vemos que as questões levantadas
A pesquisa realizada com as mulheres de homens que pela análise do trabalho das mulheres não são questões
trabalham em turnos representa um desenvolvimento a “específicas”, elas concernem ao futuro do conjunto da
mais na relação saúde–trabalho sob o ângulo combinado sociedade.

Tradução: Márcia Waks Rosenfeld Sznelwar

 Notas
1 4 8
As enfermeiras compartilham os Para dar um exemplo, uma mulher, para os meninos, reações agressi- Eu distingo aqui a identidade se-
mesmos valores. Nos coletivos de en- diretora de enfermagem, pediu sua vas enquanto reações depressivas xual da identidade nuclear do gê-
fermeiras, a virilidade não chega nun- saída depois de meses de conflito serão associadas ao reconhecimen- nero que é o sentido de si mesmo
ca ao mesmo status valorizado como com o médico chefe do serviço. Ele to pelas meninas da diferença dos feminino ou masculino (STOLLER,
nas atividades masculinas. Quando os recusava fechar as camas durante um sexos. Segundo outros autores, es- 1968). A identidade nuclear do
enfermeiros da psiquiatria são cons- período de reforma, pois estas pos- tas mudanças de humor não serão gênero se fixa durante o segun-
trangidos a utilizar a força física para suíam problemas de segurança para sistemáticas e deverão ser inter- do ano de vida e representa “uma
controlar a violência dos doentes os pacientes e mesmo para os traba- pre t a d a s e m f u n ç ã o d a re l a ç ã o parte da identidade tão sólida
mentais, sua virilidade é “sem glória”: lhadores. Cansada, exausta, ela, mãe–filho e da relação dos pais que quase nenhuma das vicissitu-
utilizar a força ou a intimidação para numa noite, voltando no carro sozi- para com sua própria identidade des da vida a pode destruir ”»
controlar um paciente é explicitamen- nha do hospital, conduzia na estra- sexual (ver capítulo 16, in TYSON, (STOLLER, citado por TYSON et
te considerado como “um trabalho da com os faróis apagados e na con- TYSON, 1996.) TYSON, pág. 333). A identidade
sujo” (MOLINIER, GUIJUZZA, 1997). tra-mão. sexual devolve a dimensão do cor-
po erótico (“fantasmatização” do
2 corpo anatômico). A identidade
Umas trinta participantes tinham
5 sexual é instável, os bens trazidos
entre 30 e 55 anos, a maioria com Salvo em certos serviços específicos 7
As ideologias defensivas de pro- e as modificações podem interfe-
crianças. (urgências, cuidados intensivos).
fissão são estratégias coletivas de rir ao longo da vida, e a deixar
defesa radicalizadas. Elas corres- mais segura/garantida ou em crise.
3
Eu me restrinjo às profissões da saú- pondem a situações aonde as pes-
6
de aonde esta estratégia é favorecida As meninas teriam tendência a re- soas não podem construir mais
pelo mercado de trabalho. Pelas mes- conhecer a diferença anatômica dos compromissos satisfatórios com a
mas razões, o ativismo está aqui rela- sexos enquanto os meninos lhe opo- organização do trabalho. A luta
9
cionado com o sofrimento ético e não riam uma negação. Eu deixo fora a contra o sofrimento no trabalho Para o conceito de “trabalho do-
com o medo de perder o emprego, discussão que, segundo Roiphe e corrói o sentido e mesmo a eficá- méstico da saúde”, cf. Cresson,
como é freqüente em outros casos. Galenson, a negação acompanhará, cia do trabalho. 2000.

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Subjetividade,
INVITEDtrabalho
PAPER e ação

Subjetividade, trabalho e ação

CHRISTOPHE DEJOURS, DIRETOR


Laboratoire de Psychologie du Travail et de l’Action
Conservatoire National des Arts et Métiers
41, rue Gay-Lussac
75005 Paris França
E-mail: dejours@cnam.fr

Resumo
Este artigo traz algumas questões para o debate sobre as relações entre trabalho e subjetividade. Nessa
perspectiva o trabalho é aquilo que implica, do ponto de vista humano, o fato de trabalhar: gestos, saber-fazer, um
engajamento do corpo, a mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de interpretar e de reagir às
situações; é o poder de sentir, de pensar e de inventar. O real do trabalho sempre se manifesta afetivamente para
o sujeito, aí se estabelece uma relação primordial de sofrimento, experimentada pelo sujeito, corporificada.
Trabalhar é preencher a lacuna entre o prescrito e o real. Por isto é que uma parte importante do trabalho efetivo
permanece na sombra, não podendo, então, ser avaliado. Outra questão abordada é sobre os acordos firmados
entre os trabalhadores no seio do coletivo, de uma equipe ou de um ofício, que têm sempre uma vetorização dupla:
de uma parte, um objetivo de eficácia e de qualidade do trabalho; de outra parte, um objetivo social. É proposta
também uma discussão entre a teoria psicodinâmica do trabalhar, onde a centralidade do trabalho é um dos seus
alicerces e a teoria psicanalítica onde esta questão não é abordada diretamente.

Palavras-chave
Subjetividade e trabalho, sofrimento, prescrito e real, centralidade do trabalho

Subjectivity, work and action


Abstract
This paper produces some issues for debate on the relationships between work and subjectivity. Under this
perspective, work implies, from a human point of view, the fact of working: gestures, know-how, a commitment of
the body, the mobilization of intelligence, the ability to reflect, to interpret and to react to situations; it is the power
of feeling, of thinking and of inventing. Actual work is always affectively manifested to the subject, whereby a
primordial distress relationship is established, experienced by the subject, embodied. To work is to fill the gap
between the prescribed and the real. This is why an important part of the effective work remains in the shade, and
cannot, therefore, be assessed. Another question concerns the agreements built by workers within the collective
of a team or of a job, which always present a double vectorization: from the one hand, a work efficacy and quality
goal; on the other hand, a social goal. A discussion of the psychodynamics of work theory is also proposed, where
the work centrality is one of their pillars as well as the psychoanalytical theory, where this issue is not directly
approached.

Key words
Subjectivity and work, suffering, prescribed and real, work centrality.

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Christophe Dejours

INTRODUÇÃO entre tarefa e atividade (Daniellou e col., 1989) ou ainda


entre a organização formal e organização informal (J. D.
Gostaria, neste texto, de tentar expor a contribuição que Reynaud, 1989) do trabalho. Trabalhar é preencher a lacuna
a psicodinâmica do trabalho pode dar à análise das relações entre o prescrito e o real. Ora, o que é preciso fazer para
entre trabalho e subjetividade. As implicações desta aná- preencher esta lacuna não tem como ser previsto antecipa-
lise são de duas ordens: de uma parte, compreender as damente. O caminho a ser percorrido entre o prescrito e o
conseqüências humanas da virada neoliberal; de outra, enri- real deve ser, a cada momento, inventado ou descoberto
quecer a concepção da ação no campo político. Sustentarei pelo sujeito que trabalha. Assim, para o clínico, o trabalho
a idéia de que o caminho que permite associar a subjetivida- se define como sendo aquilo que o sujeito deve acrescentar
de à teoria da ação passa por uma análise precisa das às prescrições para poder atingir os objetivos que lhe são
relações entre o trabalho e a vida. designados; ou ainda aquilo que ele deve acrescentar de si
Para começar, a psicodinâmica do trabalho é uma disci- mesmo para enfrentar o que não funciona quando ele se
plina clínica que se apóia na descrição e no conhecimento atém escrupulosamente à execução das prescrições.
das relações entre trabalho e saúde mental; a seguir, é uma
disciplina teórica que se esforça para inscrever os resulta- O real do trabalho
dos da investigação clínica da relação com o trabalho numa Como, então, o sujeito que trabalha reconhece esta dis-
teoria do sujeito que engloba, ao mesmo tempo, a psicaná- tância irredutível entre a realidade, de um lado, e de outro as
lise e a teoria social. previsões, as prescrições e os procedimentos? Sempre sob a
forma de fracasso: o real se revela ao sujeito pela sua
O QUE É O TRABALHO ? resistência aos procedimentos, ao saber-fazer, à técnica, ao
conhecimento, isto é, pelo fracasso da mestria. O mundo
As controvérsias entre as disciplinas – sociologia, econo- real resiste. Ele confronta o sujeito ao fracasso, de onde
mia, ergonomia, psicologia, engenharia – circunscrevem-se surge um sentimento de impotência, até mesmo de irritação,
a concepções muito diferentes a respeito do trabalho. Para cólera ou ainda de decepção ou de esmorecimento. O real se
alguns, trata-se antes de tudo de uma relação social (do tipo: apresenta ao sujeito por meio de um efeito surpresa desagra-
relação salarial); para outros, trata-se, sobretudo, do empre- dável, ou seja, de um modo afetivo. É sempre afetivamente
go; e para outros ainda, trata-se de uma atividade de produ- que o real do mundo se manifesta para o sujeito. Mas ao
ção social, etc. mesmo momento que o sujeito experimenta afetivamente a
Para nós, a partir do olhar clínico, o trabalho é aquilo que resistência do mundo, é a afetividade que se manifesta em
implica, do ponto de vista humano, o fato de trabalhar: si. Assim, é numa relação primordial de sofrimento no
gestos, saber-fazer, um engajamento do corpo, a trabalho que o corpo faz, simultaneamente, a experiência do
mobilização da inteligência, a capacidade de refletir, de mundo e de si mesmo.
interpretar e de reagir às situações; é o poder de sentir, de
pensar e de inventar, etc. Em outros termos, para o clínico, Sofrimento e inteligência
o trabalho não é em primeira instância a relação salarial ou Mas o “trabalhar” não se reduz à experiência “pática” do
o emprego; é o «trabalhar», isto é, um certo modo de mundo. O sofrimento afetivo, absolutamente passivo, resul-
engajamento da personalidade para responder a uma tarefa tado do encontro com o real ao mesmo tempo que marca
delimitada por pressões (materiais e sociais). O que ainda uma ruptura da ação, ele não é apenas o resultado ou o fim
aparece para o clínico como a característica maior do «tra- de um processo que une a subjetividade ao trabalho. O
balhar», é que, mesmo que o trabalho seja bem concebido, sofrimento é, também, um ponto de partida. Nesta experiên-
a organização do trabalho seja rigorosa, as instruções e os cia se concentra a subjetividade. O sofrimento se torna um
procedimentos sejam claros, é impossível atingir a qualida- ponto de origem na medida em que a condensação da
de se as prescrições forem respeitadas escrupulosamente. subjetividade sobre si mesma anuncia um tempo de dilata-
De fato, as situações comuns de trabalho são permeadas por ção, de ampliação, de uma nova expansão sucessiva a ele. O
acontecimentos inesperados, panes, incidentes, anomalias sofrimento não é apenas uma conseqüência última da rela-
de funcionamento, incoerência organizacional, imprevistos ção com o real; ele é ao mesmo tempo proteção da subjeti-
provenientes tanto da matéria, das ferramentas e das máqui- vidade com relação ao mundo, na busca de meios para agir
nas, quanto dos outros trabalhadores, colegas, chefes, su- sobre o mundo, visando transformar este sofrimento e en-
bordinados, equipe, hierarquia, clientes, ... contrar a via que permita superar a resistência do real.
De fato, existe sempre uma discrepância entre o prescrito Assim, o sofrimento é, ao mesmo tempo, impressão subje-
e a realidade concreta da situação. Esta discrepância entre tiva do mundo e origem do movimento de conquista do
o prescrito e o real se encontra em todos os níveis de análise mundo. O sofrimento, enquanto afetividade absoluta, é a

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Subjetividade, trabalho e ação

origem desta inteligência que parte em busca do mundo para supõe previamente a toda performance, um processo de
se colocar à prova, se transformar e se engrandecer. subjetivação da matéria e dos objetos, o qual passa por um
Neste movimento que parte do real do mundo como diálogo físico com as reações da matéria e dos objetos, que
resistência à vontade e ao desejo, para se concretizar em se pode descrever pelo detalhe, assim como propuseram
inteligência e em poder de transformar o mundo – neste Böhle e Mikau (1991) na teoria da «atividade subjetivante»
movimento então – a própria subjetividade se transforma, se – Subjektivierendes Handeln – que busca empréstimos con-
engrandece e se revela a si mesma. ceituais na fenomenologia, em particular em Merleau-
Ponty (1947). Os gregos, por sua vez, também tinham uma
Subjetividade, corpo e sujeito concepção desta inteligência do corpo, denominada mètis, a
Desde a origem da experiência de resistência ao mundo inteligência astuciosa (Detienne e Vernant, 1974).
até à intuição da solução prático-técnica e a experimentação Convém insistir: o corpo em questão aqui, este cor-
de respostas ao real, é sempre o corpo que é envolvido em po apropriado pelo mundo segundo um processo cuja
primeiro lugar. Contrariamente ao que supõe o senso co- análise que Michel Henry propõe sob o conceito de
mum, o próprio trabalho intelectual não se reduz a uma pura «corpopropriação» do mundo, não é o mesmo corpo dos
cognição. Ao contrário, trabalhar passa, primeiro, pela ex- biólogos: é um segundo corpo, o corpo que a gente habita, o
periência afetiva do sofrimento, do pático. Não existe so- corpo que se experimenta afetivamente, o corpo que tam-
frimento sem um corpo para experimentá-lo. De fato, a bém está engajado na relação com o outro: gestual, mímica,
inteligência no trabalho nunca é redutível a uma subjetivida- de sedução, de agressividade, muitas teclas de um repertó-
de que sobrepuja o sujeito. A subjetividade só se experimenta rio de técnicas do corpo – no sentido que Marcel Mauss
na singularidade irredutível de uma encarnação, de um corpo (1934) dá a este termo – colocadas a serviço da expressão do
particular e de uma corporeidade absolutamente única. sentido e da vontade de agir sobre a sensibilidade do outro.
Entre a subjetividade e o sujeito, a diferença consiste na Ao segundo corpo, a este corpo subjetivo que se constitui
insistência sobre a singularidade não somente no plano de a partir do corpo biológico, dá-se, em psicanálise, o nome de
uma afetividade, mas, também, no de um vir-a-ser ou até corpo erógeno. E é exatamente este corpo resultante da
mesmo de um destino, com implicações no registro da experiência mais íntima de si e da relação com o outro que
saúde e da patologia mental, fundamentalmente interrompi- é convocado no trabalhar.
das neste corpo e no seu porvir na
experiência do trabalhar.
trabalho é aquilo que implica, do ponto de
A inteligência e o corpo
Uma longa discussão seria ne-
cessária para expor as relações entre
O vista humano, o fato de trabalhar: gestos,
saberfazer, um engajamento do corpo, a
a inteligência no trabalho e o corpo.
A habilidade, a destreza, a virtuosi- mobilização da inteligência, a capacidade de
dade e a sensibilidade técnica pas-
sam pelo corpo, se capitalizam e se refletir, de interpretar e de reagir às situações;
memorizam no corpo e se desenvol-
vem a partir do corpo. O corpo intei- é o poder de sentir, de pensar e de inventar,
ro – e não apenas o cérebro – cons-
titui a sede da inteligência e da habi-
lidade no trabalho. O trabalho revela que é no próprio corpo Ainda é preciso insistir sobre uma particularidade deste
que reside a inteligência do mundo e que é, antes de tudo, é processo de apropriação ou de “corpopropriação” do mun-
antes de tudo pelo seu corpo que o sujeito investe no mundo do e dos objetos técnicos. Este processo implica a subjetivi-
para fazê-lo seu, para habitá-lo. dade por inteiro, porque a subjetividade é una e infrangível.
No entanto, não se deveria ver, nesta inteligência do Assim que ela se dissociar, anuncia-se o espectro da doença
corpo, um recurso natural. A própria inteligência do corpo mental. A “corpopropriação” supõe que se mantenha um
se forma no e pelo trabalho; ela não é inata, mas adquirida comércio prolongado e obstinado com a experiência do
no exercício da atividade. A formação desta inteligência fracasso, dos caminhos sem saída, das tentativas vãs, dos
passa por uma relação prolongada e perseverante do corpo ensaios desgostosos, da impotência (Y. Clot, 1995). A
com a tarefa. Ela passa por uma série de procedimentos sutis “corpopropriação” supõe que o sujeito seja habitado pelo
de familiarização com a matéria, com as ferramentas e com sofrimento do trabalhar, da resistência e das esquivas do
os objetos técnicos. A habilidade técnica, o sentido técnico, mundo ao seu poder e ao seu domínio. Para que se forme

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Christophe Dejours

essa intimidade com a matéria e com os objetos técnicos, é colocar em ação sua inteligência, embora nem sempre con-
preciso que o sujeito aceite ser habitado pelo trabalhar até siga se dar conta disto. Ele não dispõe de todas as palavras
nas suas insônias e nos seus sonhos. É a este preço que ele necessárias para descrever este trabalho efetivo e é até
acaba por adquirir esta familiaridade com o objeto do mesmo provável que o léxico, a própria língua, seja funda-
trabalhar, o qual confere à inteligência seu caráter genial, mentalmente deficitário em comparação com esta experiên-
isto é, seu poder de engenhosidade. cia do corpo (déficit semiótico): (J. Boutet, 1995). A inteli-
Devido a esse fato teremos compreendido que o trabalho gência está, por esta razão, sempre avançada em relação à
não é, como se acredita freqüentemente, limitado ao tempo consciência ou ao conhecimento que o próprio sujeito tem
físico efetivamente passado na oficina ou no escritório. O de si mesmo. Tudo que no trabalho efetivo não for simboli-
trabalho ultrapassa qualquer limite dispensado ao tempo de zado, não pode, a fortiori, ser objetivado.
trabalho; ele mobiliza a personalidade por completo. Somos então obrigados a concluir, no estágio em que nos
encontramos a respeito do conhecimento sobre o trabalho,
Trabalho e visibilidade que nós não sabemos e não podemos avaliar o trabalho.
Resumindo, o que acaba de ser descrito a respeito de
trabalho é da alçada da subjetividade. Significa dizer que o QUAL SUBJETIVIDADE?
trabalho, naquilo que ele tem de essencial, não pertence ao
mundo visível. Como tudo o que é afetivo, o sofrimento que A subjetividade entre trabalho e sexualidade
é a origem da inteligência e que constitui a própria substân- A análise da relação entre subjetividade e trabalho suge-
cia do trabalhar – por razões transcendentais, é inacessível à re, de acordo com a psicodinâmica do trabalho, que o
quantificação. O trabalho não pode ser avaliado, porque só trabalho de ofício engaja toda a subjetividade. Resta exami-
aquilo que pertence ao mundo visível é acessível à experi- nar a relação inversa: o que a subjetividade deve ao traba-
mentação científica, podendo ser objeto de uma avaliação lho? O trabalho é uma prova contingente, entre outras, para
objetiva. De maneira que, o que se avalia, corresponde so- a subjetividade? Ou então o trabalho é uma condição neces-
mente àquilo que é visível (a parte materializada da produ- sária para a manifestação da subjetividade? Não é possível
ção), e que não tem nenhuma proporcionalidade passível de responder a esta questão apoiando-se unicamente na psi-
comparação com o trabalho efetivo. codinâmica do trabalho. É preciso retornar à própria teoria
Outras características das situações de trabalho agravam, da subjetividade. Tratando-se de clínica, de saúde e de
ainda, a invisibilidade do trabalhar. Como se pode ver, ser patologia, é preciso considerar, aqui, a teoria psicanalítica
inteligente no trabalho implica, sempre, em manter uma do sujeito. Ora, sabe-se que, em psicanálise, o que está no
certa distância dos procedimentos e das prescrições. Traba- centro da subjetividade não é o trabalho, mas o sexual (ou a
lhar bem implica infringir as recomendações, os regulamen- sexualidade). Todavia, já mencionamos a importância do
tos, os processos, os códigos, as ordens de serviço, a organi- encontro entre o corpo e o real do mundo, assim como ele se
zação prescrita. Ora, em numerosas situações de trabalho, o concretiza na experiência do trabalho, diante do desenvol-
controle e a vigilância dos gestos, dos movimentos, dos vimento da subjetividade. A psicodinâmica do trabalho
modos operatórios e dos procedimentos, são rigorosos, se defende a hipótese segundo a qual o trabalho não é redutível
não severos. De sorte que a inteligência no trabalho está, a uma atividade de produção no mundo objetivo. O trabalho
constantemente, condenada à discrição, até mesmo à clan- sempre coloca à prova a subjetividade, da qual esta última
destinidade, particularmente quando se trata de tarefas que sai acrescentada, enaltecida, ou ao contrário, diminuída,
envolvam a segurança das pessoas, das instalações ou riscos mortificada. Trabalhar constitui, para a subjetividade, uma
para o meio ambiente e para as populações. Por isto é que provação que a transforma. Trabalhar não é somente produ-
uma parte importante do trabalho efetivo permanece na zir; é, também, transformar a si mesmo e, no melhor dos
sombra, não podendo, então, ser avaliado. casos, é uma ocasião oferecida à subjetividade para se
A dificuldade pode ser mostrada facilmente, e se agrava, testar, até mesmo para se realizar.
ainda, no momento em que as atividades de trabalho Precisaríamos de mais tempo para desenvolver o exame
evoluem na direção das tarefas imateriais, isto é, quando das relações entre engrandecimento da subjetividade por
não há mais produção de objetos materiais, tais como auto- meio da intermediação da experiência do trabalho e a
móveis ou máquinas de lavar, em particular no caso das exaltação da subjetividade intermediada pela sexualidade,
atividades ditas de serviço, onde a parte mais importante do pelo desejo e pelo amor. Nós não podemos examinar esta
trabalho efetivo é invisível. relação no contexto deste artigo. Nos ateremos, então, a
A inteligência no trabalho, como vimos antes, é essencial- assinalar os diferentes caminhos teóricos que deveriam ser
mente a inteligência do corpo, depositada no corpo. De perpassados para se chegar a uma síntese dos dados. A
forma que o trabalhador hábil sabe, com freqüência, como contradição entre centralidade do trabalho e centralidade da

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Subjetividade, trabalho e ação

sexualidade, sob o ponto de vista do acontecimento e do É em razão deste estatuto do trabalhar em relação à vida
desenvolvimento da subjetividade, constitui a dificuldade que a questão dos laços entre trabalho e subjetividade (e da
teórica maior. Na teoria psicodinâmica do trabalhar, o de- experiência afetiva fundamental do sofrimento na qual ela
senvolvimento da subjetividade passa pela relação entre o se manifesta) deveria encontrar um lugar a sua altura na
sofrimento e o real. Na teoria psicanalítica do sujeito, o teoria da ação e no registro do político. Com a evolução do
desenvolvimento da subjetividade passa, antes de tudo, trabalhar, sob o império das novas formas de organização
pelas pulsões e seus destinos. Encontrar uma resposta teóri- do trabalho, de gestão e de administração específicos do
ca para o paradoxo da dupla centralidade suporia zerar as neoliberalismo é, nolens volens, o futuro do homem que está
relações entre sofrimento e pulsão, de uma parte, e de outra, comprometido. Colocar a questão da subjetividade na teoria
entre o real do mundo e o inconsciente. política é levantar a questão do lugar que se dá à vida na
Pode ser – mas isto ainda precisa ser demonstrado – que própria concepção de ação.
as relações entre sofrimento e pulsão
sejam bem mais estreitas do que se acre-
trabalho não é, como se acredita
dita de imediato. Sofrimento e pulsão
poderiam, precisamente, encontrar um
denominador comum no trabalho, de
uma parte, e de outra, no corpo. Freud,
O freqüentemente, limitado ao tempo
físico efetivamente passado na oficina ou no
com efeito, definiu a pulsão como «a
quantidade de exigência de trabalho escritório. O trabalho ultrapassa qualquer
imposta ao psiquismo devido as suas
relações com o corpo» (Freud, 1915). limite dispensado ao tempo de trabalho; ele
Esta analogia, nos termos utilizados
tanto em psicodinâmica do trabalho mobiliza a personalidade por completo.
quanto em psicanálise, só pode ser
heurística mediante o paradoxo da dupla centralidade, e II – A SUBJETIVIDADE ENTRE EXPERIÊNCIA
após uma arqueologia exaustiva da noção de trabalho na SINGULAR E AÇÃO COLETIVA
metapsicologia freudiana. Tratar-se-ia, mais especifica-
mente, de precisar os elos semânticos entre o Arbeit Inteligência no singular e inteligência no plural
freudiano, assim como ele se dá por meio das noções de Até aqui simplificamos o problema posto pelo trabalhar,
Traumarbeit (trabalho do sonho), Trauerarbeit (trabalho de ao analisá-lo, essencialmente, como uma experiência
luto), Durcharbeiten (perlaboração), Verdrängungsarbeit solipsista da relação de si para si. Mas o trabalho usual não se
(trabalho de recalque), Arbeitsanforderung (exigência de apresenta somente desta maneira. No contexto contemporâ-
trabalho), Verdichtungsarbeit (trabalho da condensação), neo – e talvez já desde há muito tempo – as situações
etc., e o trabalho no sentido clássico de produção – poièsis. ordinárias de trabalho não podem ser descritas como a justa-
Na falta de desenvolvimento suficiente, pediremos ao posição de experiências e de inteligências singulares. Porque,
leitor o benefício da dúvida. Não lhe pedimos para admitir via de regra, trabalha-se para alguém: para um patrão, para
como verdadeiro, mas somente como possível, o que é um chefe ou um superior hierárquico, para seus subordina-
comum nos conceitos de Arbeit e o trabalhar (e não o dos, para seus colegas, para um cliente, etc. O trabalho não é
trabalho). Se for o caso, o paradoxo da dupla centralidade se apenas uma atividade; ele é, também, uma forma de relação
resolveria com uma exegese do conceito de pulsão a partir social, o que significa que ele se desdobra em um mundo
da definição dada por Freud em 1915, à luz das contribui- humano caracterizado por relações de desigualdade, de poder
ções da teoria do trabalhar originadas na clínica. e de dominação. Trabalhar é engajar sua subjetividade num
mundo hierarquizado, ordenado e coercitivo, perpassado
Subjetividade, trabalho e ação pela luta para a dominação. Assim o real do trabalho não é
Por conseqüência, falar de centralidade do trabalho no somente o real da tarefa, isto é, aquilo que, pela experiência
funcionamento psíquico implicaria restabelecer uma re- do corpo a corpo com a matéria e com os objetos técnicos, se
lação de consubstancialidade entre trabalho e subjetivi- dá a conhecer ao sujeito pela sua resistência a ser dominado.
dade. O trabalho adquiriria, então, um estatuto psíquico- Trabalhar é, também, fazer a experiência da resistência do
antropológico por inteiro. Qual estatuto? Aquele de prova mundo social; e, mais precisamente, das relações sociais, no
eletiva da revelação da subjetividade a ela mesma. O que se refere ao desenvolvimento da inteligência e da subje-
trabalhar seria uma condição transcendental de manifesta- tividade. O real do trabalho, não é somente o real do mundo
ção absoluta da vida. objetivo; ele é, também, o real do mundo social.

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Lendo os parágrafos precedentes, talvez tenhamos ante- dades de trabalho singulares são objeto de uma confronta-
cipado alguns dos desafios para aquele que se preocupa com ção, de uma comparação, de uma discussão coletiva que
a organização do trabalho devido ao ressurgimento da inte- permite escolher quais são as aceitáveis e quais devem ser
ligência do trabalho. Aquilo que, do trabalhar, não pertence proscritas. Às vezes, é necessário recorrer a arbitragens. No
ao mundo visível, pois provém da subjetividade, aquilo que, fim das contas, toda esta atividade de confrontação supõe a
tendo sido acrescentado, seja, talvez, voluntariamente dissi- troca de argumentos fundamentados não somente em consi-
mulado ao olhar do outro pelo sujeito que trabalha (em vista derações técnicas, mas, também, na referência às preferên-
de se proteger das sanções que podem ameaçar a sua inteli- cias, aos gostos, à idade, ao sexo, à saúde e aos antecedentes
gência, uma vez que ela leva a cometer infrações relaciona- médicos, aos valores, enfim: que seja uma confrontação de
das às prescrições e aos procedimentos), pode engendrar argumentos tanto técnicos quanto éticos.
sérios problemas de gestão técnica. O que aconteceria se Os acordos firmados entre os trabalhadores no seio do
cada um, por sua vez, trabalhasse inteligentemente, a sua coletivo, de uma equipe ou de um ofício, que se estabelecem
maneira, de acordo com seus próprios gostos, seu talento sob a forma de acordos normativos e, no máximo, sob a
inventivo ou sua engenhosidade? De fato, as inteligências forma de regras de trabalho, têm sempre uma vetorização
singulares podem franquear vias fortemente diferenciadas dupla: de uma parte, um objetivo de eficácia e de qualidade
em saber-fazer, habilidades e técnicas individuais, apre- do trabalho; de outra parte, um objetivo social. A coopera-
sentando, em contrapartida, um poder de divergência entre ção supõe, de fato, um compromisso que é ao mesmo tempo
os estilos de trabalho, com forte risco de desestabilizar a sempre técnico e social. Isto tem a ver com o fato de que
coesão do coletivo de trabalho. Para corrigir os temidos trabalhar não é unicamente produzir: é, também, e sempre,
riscos de contradição e de conflito entre as inteligências, se viver junto. E o viver junto não é algo evidente; ele supõe a
é forçado a compensar o poder de desorganização dos mobilização da vontade dos trabalhadores visando conjurar
estilos muito singularizados de trabalho, pela coordenação a violência nos litígios ou os conflitos que podem nascer de
das inteligências. desacordos entre as partes sobre as maneiras de trabalhar.
Esta atividade complexa é conhecida sob o nome de «ativi-
Coordenação e cooperação dade deôntica». É graças a esta última que a organização
Mas a coordenação, por sua vez, suscita novas dificulda- real do trabalho evolui e se adapta, em função da composi-
des. Desde a tradição taylorista, as organizações do trabalho ção do coletivo e da transformação material do processo de
são essencialmente consagradas à divisão social e técnica trabalho.
do trabalho, definindo a cada um tarefas, atribuições e Do ponto de vista do engajamento da subjetividade no
prerrogativas limitadas. Mas, ainda assim, se os trabalhado- trabalhar, a cooperação supõe, numa certa medida, uma
res respeitassem escrupulosamente estas diretivas dos en- limitação consentida (ou imposta?) à experiência da inteli-
genheiros de métodos e dos gestores, nenhuma produção gência e ao desdobramento da vida singular na atividade.
seria possível. Para que o processo de trabalho funcione, é Dar sua contribuição e seu consentimento aos acordos
preciso reajustar as prescrições e afinar a organização efeti- normativos num coletivo implica, então, seguidamente, a
va do trabalho, diferente da organização prescrita. À coor- renúncia a uma parte do potencial subjetivo individual, em
denação (prescrita), os trabalhadores respondem com a favor do viver junto e da cooperação.
cooperação (efetiva). Entre as duas se interpõe uma série
complexa de iniciativas que, quando é eficiente, resulta na A formação da vontade coletiva
formação de «regras de ofício», elaboradas pelos trabalha- Consentir em cooperar supõe, pelo menos em parte,
dores, as quais consistem no estabelecimento de acordos reprimir sua inteligência e sua própria subjetividade.
entre os membros do coletivo a respeito das maneiras de Numerosos conflitos surgem no interior dos coletivos de
trabalhar. Trata-se aqui de compromisso entre os estilos de trabalho, demonstrando que nem sempre a renúncia é facil-
trabalho, entre as preferências de cada trabalhador, de for- mente consentida por todos. Alguns recusam estas limita-
ma a torná-los compatíveis. Chegar a este resultado supõe ções que ocasionam um sofrimento intolerável ao seu dese-
que cada trabalhador, individualmente, se envolva no deba- jo de se colocar à prova sem nenhum outro entrave que os
te coletivo para nele dar testemunho de sua experiência, seus próprios limites. O individualismo triunfa, então, com
esforçando-se para tornar visíveis e inteligíveis suas contri- risco de arruinar o coletivo e a cooperação.
buições, seu saber-fazer, suas habilidades, seus modos ope- Por que se consente participar da cooperação quando se
ratórios. Não basta que ele dê testemunho de sua atividade conhece o risco do engajamento na discussão coletiva (ati-
efetiva; o que é preciso, ainda, é que ele a torne compreen- vidade deôntica) e da autolimitação da subjetividade?
sível e que justifique os distanciamentos que se autoriza em Na origem do consentimento encontra-se, geralmente,
relação aos procedimentos. No melhor dos casos as modali- um das duas variáveis abaixo:

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Subjetividade, trabalho e ação

• Na falta de construção de acordos normativos e de regras subjetividade não é necessariamente nociva à formação da
de trabalho, o individualismo leva a reiterados conflitos e, vontade coletiva e à ação. Bem pelo contrário. Compromis-
às vezes, à violência, de maneira que, no fim das contas, sos racionais entre subjetividade singular e ações coletivas
as condições sociais e éticas propícias à prova individual são possíveis. O ponto de vista fundamental trazido pela
da vida no trabalho são, elas próprias, arruinadas. O psicodinâmica do trabalho à concepção da ação, é que uma
trabalho gera, então, sofrimento, frustração, sentimento ação só é racional se ela considerar o destino da subjetivida-
de injustiça e, eventualmente, patologia. Ele se torna de no trabalho e se ela se alimentar, ao mesmo tempo,
deletério e contribui para destruir a subjetividade, junta- daquilo que, em toda atividade de trabalho, provém da
mente com as bases da saúde mental. É para conjurar este subjetividade. Ou, em outras palavras, a ação coletiva é
processo mortífero que se aceitam as renúncias individuais racional se ela se der como objetivo não somente a luta
exigidas pela cooperação. contra a injustiça, mas explicitamente também, e em pri-
• Ao contrário, a segunda variável está associada aos recur- meiro lugar, a celebração da vida. Ainda é preciso sublinhar
sos específicos que o coletivo, às vezes, pode colocar ao que é na ação voltada para a melhoria da organização do
serviço do aprimoramento das subjetividades singulares. trabalho que reside, principalmente, se não exclusivamen-
Testemunhar sua experiência do trabalhar, tornar visíveis te, a possibilidade de se estabelecer uma continuidade entre
as descobertas de sua inteligência e seu saber-fazer é o a vida, de uma parte, e, de outra, a cultura e até mesmo a
meio de se obter o reconhecimento dos outros. Pois, para própria civilização. Com certeza, é uma outra maneira de
esperar o reconhecimento, é preciso, antes, vencer o reencontrar a centralidade do trabalho abordada no início
obstáculo primordial sobre o qual já falamos longamente, deste texto: se o intuito da ação política é, de fato, a
a saber: a invisibilidade do trabalho. Assim que o trabalho celebração da vida e não o culto do poder, ou melhor, se a
efetivo acede à visibilidade, então, aí, o reconhecimento luta contra a dominação tem, de fato, como finalidade a
se torna possível. Reconhecimento que passa por julga- celebração da vida e não o gozo do poder ou a promoção do
mentos sobre o fazer, sobre o trabalhar, e não sobre a individualismo consumista, então a ação e a luta deverão se
pessoa daquele que trabalha. dar como meta fazer da organização do trabalho um objeti-
vo prioritário da deliberação política.
Este ponto é essencial para a psico-
dinâmica do reconhecimento. É graças
om a evolução do trabalhar, sob o império
a este reconhecimento sobre o fazer
que se pode respeitar e manter, apesar
disso, relações de cooperação com pes-
soas com as quais não se simpatiza ou
C das novas formas de organização do
trabalho, de gestão e de administração
pelas quais se sente até mesmo uma
certa aversão. O reconhecimento da específicos do neoliberalismo é, nolens volens,
qualidade das contribuições singulares
no registro do fazer desempenha um o futuro do homem que está comprometido
papel essencial na conjuração da vio-
lência entre os seres humanos. O reco-
nhecimento do fazer confere, como acréscimo àquele que «MAL-ESTAR NA CULTURA»
dele se beneficia, um pertencimento: pertencimento a um
coletivo, a uma equipe ou a um ofício. Assim, a cooperação é A análise aqui proposta visa reconstituir os elos intermedi-
um meio poderoso para conjurar a solidão social temida por ários dos processos, autorizando sustentar a idéia de que é
muitos homens e mulheres. É neste sentido que a cooperação possível manter juntas a subjetividade singular e a ação
é, também, uma modalidade essencial para a socialização e a coletiva na sociedade. No centro destes processos, a relação
integração a uma comunidade de pertencimento. com o trabalho aparece como decisiva e insubstituível. Bus-
Se considerarmos a contribuição que a cooperação pode quei mostrar que trabalhar pode ser a prova eletiva da revela-
dar no registro individual e no registro social, poderemos ção da vida a ela mesma. Mas a relação com o trabalho só
compreender por que é possível constituir-se uma solidarie- oferece esta possibilidade se aquela parte que, no trabalho,
dade fundamental entre a experiência subjetiva que se pro- vem da subjetividade for reconhecida e respeitada.
cura e a implicação coletiva na vontade de dar uma contri- A evolução contemporânea das formas de organização
buição às condições éticas do viver junto. do trabalho, de gestão e de administração, depois da virada
Contrariamente a preconceitos que muito pesaram sobre neoliberal, repousa sobre princípios que sugerem, precisa-
as concepções da ação sindical e política, a referência à mente, sacrificar a subjetividade em nome da rentabilidade

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Christophe Dejours

e da competitividade. Entre estes princípios extrairei apenas melhor ainda, a desolação no sentido que Hannah Arendt
dois (pois uma análise exaustiva da evolução da organiza- dá a este termo (1951), isto é, o desabamento do solo, e que
ção do trabalho seria impossível neste artigo), a título de constitui a razão pela qual os homens reconhecem entre si
ilustração. aquilo que eles têm em comum, aquilo que compartilham
O primeiro princípio é o recurso sistemático à avaliação e que se encontra no próprio alicerce da confiança dos
quantitativa e objetiva do trabalho. Se, por vezes, criti- homens uns nos outros.
cam-se os métodos de avaliação, a maior parte de nossos As conseqüências desses princípios da organização do
contemporâneos admite a legitimidade desta última, por- trabalho são, de um lado, o crescimento extraordinário da
que, vencidos pela dominação simbólica das ciências expe- produtividade e da riqueza, mas, de outro, a erosão do lugar
rimentais, pensam que tudo, neste mundo, é avaliável. Se, acordado à subjetividade e à vida no trabalho. Disto resulta
como vimos, o essencial do trabalhar releva da subjetivida- um agravamento das patologias mentais decorrentes do
de, o que é avaliado não corresponde ao trabalho. Numero- trabalho em crescimento em todo o mundo ocidental, o
sas avaliações, por vezes bastante sofisticadas, se compara- surgimento de novas patologias, em particular os suicídios
das à contribuição real daqueles que trabalham, conduzem nos próprios locais de trabalho – o que não acontecia jamais
ao absurdo e a injustiças intoleráveis. Na verdade, não se antes da virada neoliberal – e o desenvolvimento da violên-
sabe bem o que se avalia; mas, com certeza, não é o trabalho. cia no trabalho, a agravação das patologias da sobrecarga, a
Assim, a avaliação funciona, sobretudo, como um meio de explosão de patologias do assédio.
intimidação e de dominação. Mas sua vocação primordial é Mas, é preciso repetir, nenhuma organização, nenhuma
afastar a subjetividade dos debates sobre a economia e o empresa, nenhum sistema funciona por si mesmo, automa-
trabalho. ticamente, por meio de uma lógica interna qualquer. Para
O segundo princípio das novas formas de organização do funcionar, todo sistema tem necessidade não somente da
trabalho, de gestão e de direção das empresas é a individua- obediência dos homens e das mulheres, mas do zelo destes,
lização e o apelo à concorrência generalizada entre as isto é, da sua inteligência. A evolução contemporânea da
pessoas, entre as equipes e entre os serviços. Os contratos de organização do trabalho não é uma fatalidade. Ela releva da
objetivos, a avaliação individualizada do desempenho, a vontade – e do zelo – dos homens e das mulheres que a
concorrência entre os agentes e a precarização das formas fazem funcionar. Se o trabalho pode gerar o pior, como
de emprego, conduzem ao desenvolvimento de condutas hoje, no mundo humano, ele pode, também, gerar o melhor.
desleais entre pares e à ruína das solidariedades. O resulta- Isto depende de nós e de nossa capacidade de pensar as
do destas práticas gerenciais é o isolamento de cada indi- relações entre subjetividade, trabalho e ação, graças a uma
víduo, a solidão e a desagregação do viver junto ou, renovação conceitual.

Tradução: Heliete Karam, doutora em Psicologia Clínica; e Júlia Abrahão, doutora em Ergonomia

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34 Revista Produção, v. 14, n. 3, p. 027-034, Set./Dez. 2004

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Subjetividade,
INVITEDtrabalho
PAPER e ação

“Você liga demais para os sentimentos”


“Bem-estar animal”, repressão da afetividade,
sofrimento dos pecuaristas
JOCELYNE PORCHER, DRA.
Laboratoire de Psychologie du Travail et de l’Action
Conservatoire National des Arts et Métiers
41, rue Gay-Lussac
75005 Paris França
E-mail: jocelyne.porcher@cnam.br

Resumo
A legitimidade moral e econômica dos sistemas industriais e intensivos de produção animal implantados na França
a partir da década de 1960 é hoje contestada, por várias razões. As críticas são principalmente formalizadas na
questão do “bem-estar animal”. Mas os pecuaristas também têm sido afetados pela violência dos sistemas e por
uma organização do trabalho reificada que os obriga a reprimir a parte afetiva e relacional de seu trabalho. O
sofrimento gerado por esses sistemas questiona o próprio sentido das atividades da pecuária e a perenidade do laço
social construído por dez mil anos de história compartilhada com os animais domésticos.

Palavras-chave
Produção de animais, psicodinâmica do trabalho, organização do trabalho, laço

“You care too much for feelings”


“Animal well-being”, repression of affectivity,
cattle raisers’ distress
Abstract
The moral and economic legitimacy of the industrialized animal production intensive systems implemented in France
from the 1960s is now contested for different reasons. The criticisms are mainly formalized on the “animal well-
being” issue. However, the cattle raisers have also been affected by the violence of the systems and by a reified work
organization which forces them to repress the affective and relational side of their work. The suffering generated
by these systems challenges the very meaning of cattle raising activities and the endurance of the social bond
constructed by ten thousand years of history shared with domestic animals.

Key words
Animal production, work psychodynamics, work organization, social bond.

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Jocelyne Porcher

INTRODUÇÃO raram com o animal de criação uma relação unilateral cujo


objetivo essencial passou a ser o lucro. As fábricas e as
O desenvolvimento dos sistemas industriais e intensivos, siderúrgicas cuspiam suas mercadorias numa velocidade
principalmente desde a década de 1960 na França, levou a cada vez mais acelerada enquanto evoluíam e se racionali-
profundas transformações das representações do animal de zavam os sistemas de pecuária. A zootecnia, ciência da
pecuária e do ofício de pecuarista. Entre criação de animais exploração racionalizada dos animais domésticos, contri-
e “produção animal”, o trabalho da pecuária foi quase buiria para fazer de uma grande parte das atividades de
reduzido exclusivamente a sua racionalidade econômica. pecuária um processo industrial especializado e rentável, e
Os conteúdos relacionais do ofício, majoritariamente consi- dos pecuaristas ligados a essa indústria operários ativos e
derados como “improdutivos” pelo gerenciamento técnico- aparentemente insensíveis a uma produção maciça de maté-
econômico dos pecuaristas, foram relegados a meras velha- ria animal2 . Apartados de sua história e da de seus animais,
rias tão obsoletas quanto inadequadas no contexto da guerra trabalhando cada vez mais em “confinamento”, ou seja,
econômica na qual estariam engajadas as cadeias de produ- separados do meio natural, esses “produtores” deviam tra-
ção animal e os pecuaristas. balhar num tempo otimizado e permanecer exclusivamente
Quando os pecuaristas conseguem equilibrar os termos de nos limites de sua cadeia de produção.
suas trocas com os animais, o ofício de pecuarista integra A vontade de industrializar a pecuária participa de um
enormes potencialidades de prazer no trabalho e de felicida- projeto nitidamente declarado e reivindicado pelos zoo-
de. Em situações de crise, e mais amplamente no quadro da técnicos franceses do fim do século XIX, fundadores da
intensificação e da industrialização do trabalho, estarão os disciplina. Industrializar é explorar industrialmente, ou
pecuaristas em condição de trabalhar com seus animais como seja, pelos meios e métodos da indústria, que é definida
acham que deveriam? Não estará a organização do trabalho como o conjunto das atividades econômicas tendo por obje-
produzindo afetos negativos (culpa, vergonha, remorsos, to a exploração das matérias-primas e a sua transformação
sentimentos de traição, de incompetência, de insuficiência...) em bens de produção ou de consumo. O que se pretende é,
que constituem uma carga mental dolorosa para se carregar? com a emergência da sociedade industrial na França, fazer a
Após recapitular brevemente a implantação da “produ- pecuária participar desse movimento e transformá-la, com o
ção animal” na França, mostrarei sucintamente que a apoio da ciência, num conjunto de atividades coordenadas e
temática científica do “bem-estar animal” se construiu, no rentáveis para a Nação. Esse processo, e as inovações
contexto de uma intensificação constante do trabalho, com técnicas que progressivamente estiveram a seu serviço, já
base na negação do sofrimento no trabalho dos homens e havia se iniciado na Inglaterra e representava um modelo
dos animais. Mostrarei em seguida, a partir de resultados de para muitos zootécnicos franceses. Notemos que esse obje-
pesquisas de campo1, que, apesar das profundas transforma- tivo industrial não parece ter obtido a adesão imediata dos
ções do trabalho no setor da pecuária, os pecuaristas conser- pecuaristas, agrônomos e veterinários da época, como o
varam um laço afetivo com seus animais, laço que na confirma o próprio A. Sanson: “será difícil acreditar, no
maioria dos casos consideram como parte integrante de seu futuro, que essa maneira de colocar o problema zootécnico
trabalho e construtor de sua identidade. No entanto, a pere- tenha podido ser considerada como revolucionária, e que
nidade da relação entre homens e animais no contexto atual tantos esforços foram necessários para que fosse admitida
das atividades de pecuária é causa de sofrimento, pois (...), não se terá como explicar que a produção animal tenha
perdura em oposição às injunções contrárias e cada vez mais sido, há tanto tempo, encarada de outro modo do que como
paradoxais do gerenciamento técnico, econômico e científi- uma indústria obedecendo antes de tudo às leis econômicas,
co dos pecuaristas, e a uma organização do trabalho fundada igual a todas as outras” (Sanson, 1907, p. 8). A crítica moral
na divisão do trabalho e no distanciamento do outro, huma- ao tratamento dos animais nesses sistemas industriais apa-
no ou animal. rece conjuntamente a seu desenvolvimento, como o mos-
tram, por exemplo, os comentários de L. de Lavergne sobre
A PRODUÇÃO ANIMAL, UMA a “nova escola” da pecuária inglesa3 e o romance de Upton
INDÚSTRIA COMO OUTRA QUALQUER Sinclair dedicado ao trabalho na cadeia de produção de
carne americana do início do século XX (Sinclair, 1906), e
Nas sociedades ocidentais, o desenvolvimento do cristia- como a emergência na França das primeiras instituições de
nismo, a primazia do cartesianismo e, por fim, o desenvol- defesa dos animais deixa evidente4 .
vimento do capitalismo promoveram uma mudança radical A “máquina animal zootécnica” é, portanto, o meio para
na relação dos homens com a natureza e os animais. A se alcançar um fim que é a industrialização da pecuária e o
Inglaterra no século XVIII e a França e os Estados Unidos aumento da produtividade dessa atividade: “a pecuária deve
no século XIX, em nome do Progresso e da Ciência, instau- intensificar sua produção para terminar de preencher o

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Subjetividade, trabalho e ação

déficit do pós-guerra, aumentar as unidades fornecidas pelo aumentou em 41% desde 1984, 75% dentre elas encontram-
rebanho e conquistar, para os reprodutores de nossas melho- se em rebanhos de mais de 30 vacas. Graças à redução dos
res raças, o lugar no mercado mundial ao qual sua qualidade “tempos improdutivos” o número de leitões produzidos
lhes dá direito. Para tanto a pecuária deve trabalhar tendo anualmente por uma porca é hoje de 24,6. Era de 20 em 1980
em vista o aumento do rendimento individual a fim de e de 16,7 em 1971. A renovação dos animais também se
assegurar uma maior produtividade: pode-se até afirmar acelerou. Uma porca parte hoje para a reforma após dar cria
que o aumento do rendimento individual é um fator de menos de 5 vezes (2,5 anos).
produção mais eficaz que o aumento bruto do efetivo glo-
bal. É portanto necessário orientar nessa direção todos os O “BEM-ESTAR ANIMAL”: UMA
esforços dos pecuaristas” (Dechambre, 1928). O animal PROBLEMÁTICA CIENTÍFICA CONSTRUÍDA
sendo uma máquina e a zootecnia a ciência da exploração COM BASE NA NEGAÇÃO DO SOFRIMENTO
racionalizada dessas máquinas, fica claro que “a perfeição
para a organização da produção zootécnica consiste, como A temática do “bem-estar” na pecuária emergiu há cerca
para a organização de toda a produção industrial, na divisão de vinte anos na França como um questionamento crítico
do trabalho, quer dizer na especialização dos animais” das condições de vida dos animais em sistemas industriali-
(Charnacé, 1869, p. 55). zados e das condições de trabalho das pessoas. A influência
Esse projeto industrial certamente não era perceptível negativa desses sistemas do ponto de vista da saúde dos
para a massa atomizada dos pecuaristas que eram convo- animais, e portanto de seu desempenho, é enfatizada por
cados ao “desenvolvimento” e que, principalmente na veterinários mas também por economistas, sociólogos e
Bretanha, foram rapidamente “enquadrados” e orientados psico-sociólogos, estes últimos evidenciando os limites
na direção desejada. O objetivo declarado no quadro econômicos do processo de industrialização e os estragos
institucional do desenvolvimento agrícola na França após a que este provoca na saúde mental dos pecuaristas8 . Entra-se
Segunda Guerra Mundial não era, com efeito, a industriali- desse modo num terreno crítico que diz respeito tanto aos
zação da pecuária, mas a sua racionalização ou sua moder- homens quanto aos animais.
nização, modernização essa que respondia para muitos A partir da década de 1980, no entanto, o processo de
agricultores a um desejo de melhoria de suas condições de industrialização é acelerado. De um ponto de vista científi-
vida e à perspectiva de uma “equiparação” de seu modo de co, a questão do tratamento dos animais de criação em
vida com o dos habitantes das cidades: “Em 1956, os jovens sistemas industriais é transformada, pelos especialistas, em
agricultores, pela voz de Michel Debatisse, apoiaram essa problemática do “bem-estar animal”, ou seja, em problema
nova orientação declarando-se, contra os mais velhos, favo- de pesquisa sobre a adaptação biológica e comportamental
ráveis ao êxodo, à reforma das estruturas, à modernização” dos animais a esses sistemas. A questão das condições de
(Mendras, 1995, p 302). trabalho dos pecuaristas e dos assalariados é, por sua vez,
O número de propriedades agrícolas na França, que era completamente minimizada, apesar das resistências de mui-
de 2,5 milhões em 1950, e de 1,3 milhão em 1979, é hoje de tos pecuaristas ao processo de industrialização. Nas empre-
664 0005. Dentre elas 400 000, consideradas “profissio- sas de pecuária, a pressão produtiva se intensifica, ao mes-
nais”, totalizam 95% do potencial agrícola6 . As empresas mo tempo sobre os animais e sobre os homens, e normas de
de abate, 767 em 1980, são hoje 339, das quais a metade é “bem-estar animal” vêm aparecendo como resultado, em
constituída por abatedouros industriais privados que reali- pequena parte, dos trabalhos dos cientistas, que formulam
zam 80% da produção. Cerca de 20 abatedouros essencial- suas perguntas em termos de estresse, de “preço a pagar”9 ,
mente privados concentram 47% da produção (Fraysse et e de patamar de aceitabilidade social dos sistemas indus-
al., 2001). O processo de concentração das propriedades triais e, em grande parte, do lobby europeu da proteção aos
agrícolas e de intensificação do trabalho prossegue. As animais que desenvolve posições cada vez mais radicais
estruturas industriais atualmente implantadas visam reduzir contra a pecuária industrial e, às vezes, até contra a pecuária
a quantidade de trabalhadores e aumentar o nível de auto- como um todo.
mação dos sistemas. Essa orientação é acompanhada de Passou-se portanto, no prazo de vinte anos, de uma
uma estratégia de deslocamento de uma parte da produção crítica dos sistemas industrializados que era compartilhada
animal – sobretudo da engorda – para certos países da por uma parte dos cidadãos, fossem eles pecuaristas, prote-
América do Sul7 . No sistema industrial, o número de porcas tores dos animais ou pesquisadores, a uma situação cada vez
que um casal* de pecuaristas precisa criar para ter rentabi- mais conflituosa que opõe, em primeira análise, por um lado
lidade é hoje de cerca de 300. No mesmo quadro, o esforço os pecuaristas e, por outro lado, os protetores dos animais,
que o animal deve fazer para (se) produzir foi consideravel- aos quais se junta, através da mídia, uma parte da sociedade,
mente aumentado. A produção média das vacas leiteiras enquanto os cientistas se colocam como produtores de fatos

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Jocelyne Porcher

objetivos. Essa evolução normativa que se realiza de modo Os sistemas industriais de produção são concebidos
pontual e sem coerência global do ponto de vista dos como se o pecuarista ou o assalariado fosse um ser inteira-
sistemas, não produziu de fato nada de positivo para a mente conduzido por uma racionalidade unicamente eco-
maioria dos animais, nem tampouco para os pecuaristas ou nômica, e como se o animal fosse um objeto sem vida,
os cidadãos protetores dos animais. Ao contrário, ela tende inexistente, mesmo sendo com toda evidência um ser
a intensificar o trabalho e a alargar o fosso entre os biológico, já que tem necessidades fisiológicas. O geren-
pecuaristas e seus animais, pela organização coletiva do ciamento técnico-econômico dos pecuaristas funciona na
trabalho em sistemas industriais e intensificados. Ao nor- base dessa racionalidade, enquanto do ponto de vista dos
malizar o trabalho a partir de critérios de adaptação, de pecuaristas, no entanto, a parte afetiva na criação de ani-
aceitabilidade e de visibilidade social, contribui sobretudo mais é descrita como um elemento central do trabalho.
para transformar dores visíveis em sofrimentos invisíveis, Para os pecuaristas, entre os quais uma grande maioria
tanto para os homens quanto para os animais. (86%) percebe hoje a si mesmo como sendo “um elo de
Para as cadeias de “produção animal”, o “bem-estar uma corrente”, a diferença entre o trabalho prescrito pela
animal” se inscreve no processo das indústrias da carne10 organização do trabalho nas cadeias de produção e o
em termos de resposta de marketing à sensibilidade dos trabalho real, tal como é vivido no cotidiano com os
consumidores. O animal é, de seu nascimento à sua morte, animais, é imensa. A companhia cotidiana dos animais, os
considerado como matéria animal in fine transformada em cuidados, a atenção e, para uma grande parte dos
produto de consumo. As condições de trabalho nos sistemas pecuaristas, a afeição que estes têm pelos animais se
industriais são questionadas no âmbito das cadeias de pro- coloca em completa contradição com os procedimentos de
dução apenas do ponto de vista dos limites de rentabilidade “produção animal”. Para os pecuaristas, o trabalho real é
que podem causar (Porcher, 2001). A brutalidade costumei- desenvolvido com os animais e uma grande maioria deles
ra com os animais tende a ser depreciada a favor de condutas não confunde o animal e a carne, pois “a arte do açougueiro
“suaves” por ser um fator de estresse e porque o estresse é não define a arte do pastor”13 .
um fator de degradação da qualidade da carne. Assim vê-se
um centro de formação propor aos técnicos do gerencia- A RELAÇÃO DE TRABALHO ENTRE
mento de criações de porcos um “pacote de formação ‘com- PECUARISTAS E ANIMAIS: UMA
portamento e produtividade’ “permitindo aplicar junto aos INEVITÁVEL PRESENÇA DA AFETIVIDADE
pecuaristas uma “lista de verificação de auditoria do
estresse” e implantar “estratégias de melhoria”. Essa contra- Meus resultados de pesquisa evidenciam um forte inves-
dição entre a violência intrínseca do sistema à qual estão timento afetivo dos pecuaristas em relação a seus animais.
submetidos homens e animais – acrescida pelo aumento das Esse investimento se expressa, de modo coerente, pelo viés
cadências e a intensificação do trabalho – e as injunções de das representações que os pecuaristas fazem de seus ani-
“suavidade” e de assunção do “bem-estar animal” é igual- mais e de seu ofício, e pela maneira como descrevem os
mente perceptível na organização do trabalho nos elementos relacionais ligados ao trabalho. Meu trabalho
abatedouros: “é verdade que quando tem um carregamento permitiu ressaltar dois grandes tipos de atitudes dos
de porcas de reforma, se por acaso o motorista já chegou, pecuaristas em relação a seus animais: uma atitude descriti-
bom, ele não vai ficar duas horas esperando, porque ele va de relações de amizade que reúne representações positi-
também tem o seu horário, então, certamente tem que andar, vas do status do animal, a expressão de um laço afetivo
têm sempre os mesmos parâmetros para a gente respeitar, entre homens e animais, e de condutas de negociação no
porque ele não vai prestar contas falando que uma porca não trabalho; uma atitude descritiva de uma relação de poder
queria andar, precisei de 3 horas para carregar ela porque reunindo representações reificadas do animal de criação,
os patrões não vão falar para ele sinto muito, não vai ficar uma denegação do laço afetivo e da comunicação com os
por isso, então é isso a gente bate em cima, tem que andar11”; animais ligada à afirmação de um primado da racionalidade
“...porque de todo jeito quando a gente tem um animal num econômica sobre os sentimentos, e a expressão de uma
corredor e ela não quer andar, bom, a gente é obrigado a dominação no trabalho sobre os animais. As representações
fazer alguma coisa porque a gente tá aí pra isso, são 30 do animal e de si mesmo e o investimento afetivo no
animais12 por hora que a gente tem que pôr lá dentro, para relacionamento com os animais têm uma influência prepon-
matar então de algum jeito tem que fazer elas andarem”; “é derante sobre as condutas das pessoas e, em conseqüência,
bem verdade que às vezes acontece, mas tem vez que a gente sobre o comportamento14 dos animais. No entanto, o real
não tem escolha, se a gente levar 15 minutos para empurrar vivido no trabalho construído pelo sistema de produção e
um porco, depois a gente leva bronca lá na linha, porque pela organização coletiva do trabalho, conforme permita,
depois ficam buracos”. ou não, ao pecuarista trabalhar em coerência com suas

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Subjetividade, trabalho e ação

representações e sua afetividade, promove uma ação cons- De maneira majoritária nos resultados de minhas pesquisas,
trutiva ou destrutiva de primeiro plano. a posição do pecuarista em relação a seus animais remete
muito mais a representações ligadas ao sentimento de ter
• ”... em vez de duas patas, tem quatro” responsabilidades e deveres com os animais do que a repre-
Os resultados das pesquisas mostram que a característica sentações de dominação e poder. O sentimento majoritário
primeira dos animais de criação, perceptível principalmente que os pecuaristas têm de estar a serviço de seus animais17
quando se trata de mamíferos, é ser vivo, e ser vivo funda- é, aliás, coerente com a idéia de que estes são indivíduos
mentalmente da mesma maneira que os seres humanos. A sensíveis do mesmo modo que seres humanos; seu estatuto
capacidade dos animais em sentir prazer e sofrimento e em de animais de criação torna-os dependentes, mais ou menos
expressá-lo sem ambigüidade funda essa percepção que se segundo o sistema de criação, o investimento dos
encontra formulada nas numerosas analogias presentes no pecuaristas em relação a eles. A deontologia do ofício
discurso dos pecuaristas: “para mim, um animal, tem que baseia-se então sobre o compromisso dos pecuaristas com
cuidar dele quando está doente, é preciso cuidar dele, tem seus animais e sobre a percepção de uma relação de troca,
que ter comida suficiente, tem que, tem que cuidar dele que pode ser analisada, a meu ver, em referência à teoria do
como de um ser humano, é a mesma coisa”15 . Esse status de dom: “Vou ficar... para manter meus compromissos de
ser vivo sensível permite que sejam instauradas relações de criador, para não largar os animais”; “é a vida de um
comunicação individualizadas e diferenciadas, vivenciadas homem com seus animais, quem sabe a vida de um homem
como muito similares àquelas que podem existir entre os a serviço dos seus animais, quem sabe seja mais isso”;
seres humanos: “Tenho Boulben (um porco reprodutor), em “estão plantados aí, se a gente não cuida deles ao máximo,
bretão quer dizer: cabeça dura, carrancudo, pronto para para que então ter um animal. Porque um ser humano, ele,
atacar, e combina muito bem com ele; Lutune, ele, o duende sofre e ele conta, não é?, mas um animal não só ele dá o
das montanhas, é o cara, digo: o cara, tenho impressão que nosso sustento mas ainda a gente tem que respeitar ele pelo
a gente meio que quer ter um relacionamento quase huma- sustento que ele nos dá”.
no com os seus animais...”; “Têm uns relacionamentos que Um pecuarista que representa seus animais como seres
se instalam, é meio como com as pessoas, quando se con- vivos, sensíveis, em relação a quem está moralmente com-
versa com as pessoas... é meio a mesma coisa, em vez de prometido e com quem está em relação de comunicação,
duas patas, tem quatro”; “a gente sente o animal na defen- demonstra igualmente um forte investimento afetivo em
siva que sempre vai deixar a gente do lado de fora ou um relação a eles. Essa base afetiva enraíza-se provavelmente
animal com quem a gente está em acordo, é como com as na infância (Salmona, 1994: Soriano, 1985), como confirma
pessoas... tem pessoas com quem a gente está bem, a gente uma maioria de pecuaristas nas minhas pesquisas 18 :
pode simpatizar, ou até a gente pode passar a vida inteira “(quando voltava da escola) antes de ir beijar a minha mãe,
com elas, e outras não”; “A gente tem a Dauphine, mas a eu ia ao estábulo para ver as vacas”. A presença dos
gente tem a Marguerite; uma das nossas filhas tirou uma animais na vida das pessoas é descrita como constitutiva de
foto com o vestido de noiva com a vaca atrás. É que é uma sua identidade. Participa de seu bem-estar físico e psíquico
vaca muito bonita, tem personalidade, é uma bela vaca”. e do sentimento de estar presente no mundo, ou seja, de estar
Inversamente, e de maneira minoritária nas pesquisas vivo, de uma maneira essencial e autêntica. As expressões
que realizei, o estatuto do animal pode ser percebido como “ter nascido em”, “ter se banhado em”, “ter sido criado em”
essencialmente diferente daquele do ser humano, ou seja, mostram o quanto a relação com o animal é percebida como
do pecuarista enquanto ser humano: “não, a gente não um evento íntimo e interiorizado. “O animal, ele faz parte de
respeita os porcos como os humanos dos quais a gente faz você” é de fato claramente expresso e explicitado pela metá-
parte, não me ponho no lugar dos porcos... não faço parte fora genética: “a gente tem nos genes alguma coisa colada,
dessa categoria”. O animal é então descrito, não como um um tanto de DNA a mais, e esse DNA quer dizer que a gente
parceiro, mas como uma ferramenta de trabalho16 : “a vaca é criador”. O DNA a mais, é a parte animal que os pecuaristas
leiteira é uma máquina de produzir leite”; “uma galinha é receberam e que explica que eles são pecuaristas; “aquilo
uma máquina de fazer ovos”; “é uma ferramenta de trabalho aguardava dentro de mim”. Essa impressão, que está inscrita
como outra qualquer”. dentro do corpo, explica o apego que os pecuaristas podem
ter por seus animais: “Vai ser duro (a reforma) porque, bom,
• “...a vida de um homem a serviço a gente se apega a seus animais no fundo”. O apego ao
dos seus animais” animal não provém de uma escolha, mas de uma necessidade
O pecuarista constrói representações de si enquanto ser interior e do trabalho com os animais.
humano e enquanto pecuarista de acordo com suas repre- O apego se constrói na reciprocidade: “o contato, ele é
sentações do animal e em função do sistema de produção. recíproco”. Essa parte animal dentro do pecuarista, o ani-

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Jocelyne Porcher

mal a reconhece. A relação pode então ser descrita como Os pecuaristas se colocam, para (se) autorizar a morte do
uma osmose: “é preciso que haja uma certa osmose” ou, animal, um conjunto de justificativas que voltam em parte a
como escreve Erwin Straus 19 , uma compreensão aparecer entre as pessoas trabalhando nos abatedouros: cole-
simbiótica. Para Straus, a relação com o animal provém tivamente, a gente cria animais para comê-los, antes de comê-
efetivamente do “sentir” e não da representação: “é no los é preciso matá-los, mas “se não houvesse sua morte, não
mundo do sentir que encontramos os animais, pois o mundo haveria sua vida”. A morte do animal aparece para certos
é compartilhado pelo homem e o animal. É no âmbito desse pecuaristas como o preço a pagar pela relação, pois, em nível
mundo que compreendemos o animal, e fato mais significa- individual, criam-se animais para criar animais, não se cria
tivo ainda, que o animal nos compreende” (Straus, 1935, p. animais para matá-los. O que remete, do ponto de vista das
234). A compreensão simbiótica, escreve Straus, só pode se relações entre homens e animais de criação, a uma primazia
desenvolver se, na relação com o animal, uma dupla possi- do laço afetivo sobre o interesse econômico, e a um fim em si
bilidade – fugir ou seguir – lhe é oferecida. Esse “fugir ou dos procedimentos de criação, do ponto de vista do próprio
seguir” remete igualmente à noção de apego (Bowlby, pecuarista, e mais amplamente provavelmente do ponto de
1978). A busca de proximidade, de contato, o following vista da sociedade, como o comprova o status do animal “de
(acompanhamento) são elementos de comportamento que estimação” nas sociedades ocidentais.
mediam o apego e que revelam uma relação de confiança Muitos pecuaristas instauram então estratégias visando
entre pecuarista e animais. A afetividade – e isto fica claro minimizar o mais possível as situações de sofrimento para
nas citações acima, onde não se pode deixar de perceber os seus animais: “quando posso, eu mesmo os levo ao
uma profunda ternura pelos animais – modelou esses abatedouro. Dou um jeito com o pessoal do abatedouro
pecuaristas e constrói sua relação com o mundo animal. para entrar pelo que chamo a porta dos fundos, quer dizer
Entende-se portanto como a morte dos animais destinados para não passar pelo estábulo, esse lugar de espera onde os
ao abate, ou aquela por reforma ou por razões sanitárias, animais permanecem às vezes por um ou dois dias, onde tem
nunca é algo simples. esse horrível cheiro de morte que paira, onde a gente vê
certas vacas com um olhar que parece cheio de sabedoria...
• “... levar os animais ao abatedouro, é um lugar que eu não gosto e não quero que os meus
para mim, é o pior” animais permaneçam lá”.
Meus resultados de pesquisa mostram que para um em
cada dois pecuaristas o abate dos animais é um momento “A GENTE NÃO PODE MAIS LIGAR PARA OS
difícil, e não algo óbvio20 . Com efeito, a morte dos animais é SENTIMENTOS AGORA, O LADO ECONÔMICO
muitas vezes vivida como o último contra-dom ao qual o TEM DE MANDAR DE QUALQUER JEITO”
animal é forçado, a contraparte do prazer vivido juntos, o lado
ruim da moeda: “tem que tentar não pensar... a gente se A repressão da afetividade e a desconstrução das rela-
obriga a não pensar, tem porcas que a gente guarda um ções entre homens e animais no trabalho apoiaram-se em
pouco às vezes por sentimento, porque é difícil, então a gente mudanças radicais de modelos de representações dos ani-
tenta ficar com elas mais um pouco, algumas porcas deixar mais e do ofício de pecuarista, e em transformações profun-
elas irem, é duro, é o lado ruim, é a contraparte...”; “(os das dos sistemas de produção e da organização coletiva do
porcos para embutidos) é a parte que dá mais dinheiro, a trabalho. Essa repressão, que perdura hoje sob formas me-
parte que paga o resto, de todo jeito não dá para ter ilusão, nos visíveis, é a causa de um sofrimento no trabalho ainda
os animais a gente não pode criar eles para ficar com eles”; mais forte por ser negado pelas estruturas profissionais e
“o abatedouro é fora das minhas capacidades... bom, vai ter ter-se tornado inexprimível para os pecuaristas.
que matá-lo é o jeito, tem que sangrá-lo, mas deixo o lugar Vou me deter aqui sobre os elementos preponderantes da
para outros”; “o abatedouro, tem um lado um pouco sórdi- organização coletiva do trabalho e do funcionamento dos
do, é bem claro, tem um fim que não é sempre o que muitos sistemas de produção industriais e intensificados que são
animais mereceriam”: “o pior de ser criador, é levar os causas de sofrimento por repressão da afetividade e ruptura
animais ao abatedouro, para mim, é o pior”. de comunicação, por perda dos comportamentos livres no
Ao contrário, para um em cada dois pecuaristas, o abate trabalho, mas também por falta de reconhecimento social e
dos animais faz parte do ofício ou da rotina do trabalho: “a por incertezas morais.
gente liga para o abatedouro, a gente tem tantas porcas
para reformar, é programado, para os embutidos a cada • Desqualificação da afetividade
quinze dias, a gente está acostumado, tem que telefonar, e degradação da comunicação
tem tantos porcos que têm que ir embora, é uma rotina que O investimento afetivo dos pecuaristas em relação aos
a gente já tem”. seus animais, que constituía historicamente um freio à

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Subjetividade, trabalho e ação

intensificação e à industrialização da pecuária, foi represen- os planos do vizinho. Quer a gente esteja na turma do mais
tado aos pecuaristas como uma sensibilidade fora de propó- forte ou do mais fraco, a gente não se sente a vontade em
sito e arcaica, uma “fraqueza” de sua parte, um handicap ao relação ao outro, a gente não sabe como é o outro... o
desempenho técnico-econômico penalizando a rentabilida- vizinho (pecuarista) a partir do momento que ele existe, ele
de da indústria e a competitividade das cadeias de produção. extrapola”. Esse estado de espírito, que requer o esmaga-
A ideologia utilitária e os valores técnico-econômicos do mento dos valores morais mais elementares, estende seus
modelo liberal são assumidos pelos sistemas de gerencia- efeitos ao conjunto das relações profissionais dos
mento dos pecuaristas como as únicas referências coletiva- pecuaristas, como o demonstram por exemplo os transpor-
mente validadas capazes de garantir a renda do pecuarista e tadores de animais: “o mais difícil, é agüentar os fazendei-
a perenidade da empresa. Sentimentos e rentabilidade são ros, maior o tamanho, mais idiotas são (...) no fim das
descritos como antinômicos, sendo que o lugar dos senti- contas, isso é o mais difícil, e tem que ficar quieto (...) a
mentos no trabalho é vivenciado como legítimo pela maio- gente acostuma, e também eles gostam de fazer a gente de
ria dos pecuaristas21 . “Ligar para os sentimentos” é perce- besta, a gente não pode ligar para isso, faz parte do ofício
bido por muitos deles como um defeito pessoal, um distan- (...) pelo menos dizer bom dia, boa tarde, é difícil para eles
ciamento em relação aos outros pecuaristas ou aos dizer bom dia, boa tarde, só isso... além de tudo, entre eles,
gestores do sistema, uma emoção da qual é preciso des- eles se pegam também. Entre eles, é maluco, se podem
confiar, pois é inadequada ao atual contexto do trabalho na acabar com um outro, eles fazem... são todos estressados,
pecuária. O mundo humano do dinheiro e do interesse pode todos nervosos”. Essa situação é tanto mais dolorosa para
desse modo se opor ao mundo animal dos sentimentos e das certos transportadores, principalmente de bovinos, que es-
emoções com o qual muitos pecuaristas tendem preferencial- colheram esse ofício porque eles “gostam de contatos”.
mente a se identificar: “algumas vezes, bom, enfim eu nem O sofrimento dos animais na pecuária e, no mínimo, a
sempre raciocino como homem de negócio, sendo que hoje “insatisfação” que expressam os pecuaristas e os assalaria-
em dia todo mundo raciocina como homem de negócio, mas dos não provêm de falhas individuais, mesmo sendo esse
têm vezes que a gente liga para os sentimentos, as pessoas sofrimento subjetivo, mas do sistema produtivo. Não é o
me falam, você liga demais para os sentimentos, é isso, indivíduo que está louco, doente ou afetivamente inapto,
porque você ficou com isso, porque. É isso aí. A esse nível, mas de fato a situação na qual ele se encontra23 . O sentimen-
acho que eu me diferencio, e meu irmão é a mesma coisa, a to de incompetência que pode experimentar um assalariado
gente se diferencia, porque a gente liga para os sentimen- porque “não consegue” estar em sintonia com a violência do
tos, é isso aí”; “então pode ser que a gente ligue para os sistema, por exemplo, batendo nos animais, mostra que este
sentimentos com as porcas mas enfim enquanto elas estão impõe práticas em contradição com os comportamentos
bem então a gente fica com elas, e também a gente gosta espontâneos não-violentos da maioria das pessoas: “nunca
delas... não se pode sacrificar todo mundo sob pretexto de consegui perder a calma com um animal, uma vez perdi a
rentabilidade”; “É a grana, os relacionamentos, os sentimen- calma, e pronto, mas na hora de bater nela, nem consegui,
tos, muitas vezes isso fica para trás, tem isso tudo que é difícil nem pude bater nela, no entanto fiquei brava, fiquei nervo-
de agüentar enquanto que ao nível animal é muito mais sadio, sa, gritei tudo que podia, mas não consegui bater nela (...)
muito mais limpo é claro, não sei como dizer, é natural”. Mas aí, não é minha fazenda, portanto não sou eu que
A desqualificação da afetividade conduz a uma degra- mando, portanto é verdade que se querem bater, eles batem,
dação da comunicação entre pecuaristas e animais, e a uma mas eu, na minha fazenda, eu teria deixado ela no corredor
deterioração das relações entre pecuaristas. Os sistemas a noite inteira e no dia seguinte teria tentado de novo. É isso
industriais, valorizando a competição, apresentando os que eu teria feito. Mas é verdade que lá não sou eu que
resultados em termos quantitativos, comparativos e positi- decido, então lá elas têm que entrar, não tem conversa, lá
vos, opondo “os melhores” (“grupo dos vencedores”, gru- eles têm mais o que fazer já que sempre estão correndo,
po “superior”...) aos outros, aos “menos bons”22 , e difun- então lá ela entrou. Foram precisos dois homens, com uns
dindo na imprensa profissional a ideologia da “guerra escudos, dominaram ela, levaram ela até sua manjedoura
econômica” na qual os pecuaristas deveriam estar então no fim empurraram ela, bem, mas eles têm uma força
engajados de corpo e alma para seu próprio bem e o das que eu não tenho.”
exportações do setor agroalimentício francês, constroem
representações do outro pecuarista, do vizinho, não como • Perda dos comportamentos livres no
um colega, um par solidário, mas como um concorrente trabalho e não-reconhecimento social
potencialmente perigoso, até mesmo um inimigo a elimi- Meus resultados de pesquisa evidenciam o profundo
nar: “não se pode confiar mutuamente entre criadores, sentimento de angústia experimentado pela maioria dos
porque num certo momento entramos na dança, copiamos pecuaristas no trabalho e em relação ao seu ofício. Privados

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Jocelyne Porcher

de seu poder de decisão24 , dependentes das orientações da da relação com os animais. A vergonha vivenciada pelas
Comunidade Européia e dos prêmios, criticados pela mídia, pessoas confirma essa perspectiva crítica. A vergonha é um
desacreditados pelos poderes públicos, obrigados a práticas sentimento moral subjetivo, como ressaltam Marx – “a
que o número crescente de animais25 torna cada vez mais vergonha é uma espécie de cólera voltada contra si”30 – e
pesadas26 , a maioria dos pecuaristas se sente engolidos por Gaulejac – “a vergonha revela a intimidade de cada ser, sua
um trabalho cujas regras lhes escapam em grande parte, mas subjetividade profunda... a vergonha é um sentimento social
das quais percebem que não lhes deixam “direito a erro27 “. que concerne à identidade do sujeito, ou seja que o constitui
Para muitos deles, além disso, o laço entre a vida familiar e enquanto membro efetivo de uma sociedade, afirmando ao
a vida profissional se torna difícil. Os relacionamentos da mesmo tempo sua singularidade e seu pertencimento”.
vida privada sofrem da sobrecarga de trabalho e da tensão à Quando 70% dos pecuaristas interrogados se dizem de
qual são submetidos os pecuaristas28 . A situação de pressão acordo com a afirmação “o cúmulo da vergonha para um
produtiva, a necessidade de ir rápido, o sentimento de nunca pecuarista é ter um produto que ele não ousa comer” e 64%
ter terminado, de não ter tempo para fazer tudo... andam com a afirmação “me sinto meio com vergonha das condi-
juntos com o sentimento intimo de fazer um “trabalho sujo”, ções na quais vivem certos animais de criação”, não pode-
do ponto de vista do olhar social, e no entanto de fazer “o mos deixar de notar que ao mesmo tempo em que são a
melhor que pode” de seu próprio ponto de vista. expressão de um sentimento de indignidade coletiva, essas
O sentimento de frustração em relação ao ofício, expres- respostas pedem uma mudança das relações entre homens e
so por uma maioria de pecuaristas, e cuja realidade é abso- animais construídas pelos sistemas “vergonhosos”, pois “a
lutamente visível na organização do trabalho, pelas cadeias vergonha nos faz recair no mundo. Não no mundo efêmero
de produção e na história do desenvolvimento agrícola das imagens virtuais, mas no das relações intersubjetivas e
desde o século passado, é todavia acompanhado pela ex- da comunicação interpessoal. ‘Luz íntima da subjetivida-
pressão de um sentimento inverso de autonomia e de prazer de’, ela nos convida a recusar os faz-de-conta e a procurar
no trabalho. Assim, se 74% dos pecuaristas interrogados na qualidade dos contatos com outrem e desenvolvimento
dizem estar de acordo com a afirmação “não sou eu que da auto-estima”(Gaulejac, 1996, p. 340 e seg.).
decido, é Bruxelas”, 84% afirmam também “sou eu que O sentimento de vergonha é experimentado pelas pessoas
escolhi inteiramente o meu sistema de produção”. Da mes- em função do ofício de pecuarista. Fica-se pessoalmente
ma maneira 68% estão de acordo com “nunca tem nada de envergonhado por criar vitelas aos montes: “a vitela para o
garantido nesse trabalho, isso me angustia”, 73% estão com abate é uma heresia para mim, faço isso porque a gente está
“meu trabalho é principalmente momentos de grande felici- num país onde se faz vitela para o abate”, ou se sente
dade” enquanto que 66% estão em desacordo com “se fosse vergonha pelo outro, e pessoalmente enquanto criador, ao
começar de novo, escolheria um outro ofício”. Na aparente ver outros aceitarem aquilo que razões morais nos impedem
contradição dessas respostas pode-se ler tanto o sentimento de aceitar: “Eu sei que ele tem vergonha daquilo que faz e
de uma frustração quanto a reivindicação defensiva de uma isso me deixa mal”; “Então, ele me dizia, eu faço isso, você
autonomia de decisão29 , e, ao mesmo tempo, a afirmação do sabe é meu trabalho, não é complicado, eu contrato de
apego a um trabalho provedor de “momentos de grande manhã a tal hora, eu demito de noite a tal hora, era só o
felicidade”. Esse trabalho gerador de felicidade não é o transporte... ele vivia disso, ele não vivia mal, mas aí ele
trabalho prescrito pelos procedimentos que é por sua vez parou depois disso, então eu acho que sobre o plano huma-
provedor de incertezas e angústia: “me pergunto se esse no não devia ser muito legal no fundo. Mas ele falava que
trabalho ainda tem algum sentido”; “não faço mais o ofício ele se lixava, fazer isso ou outra coisa, sua mulher era a
que escolhi, agora não sou mais um criador, sigo o pa- mesma coisa, ela se lixava. Mas fiquei impressionada por-
drão”, mas o trabalho autônomo do pecuarista, aquele onde que o Jacques me contou, o que eu posso te dizer é que eu
se expressa sua criatividade, sua afetividade, sua capacida- nunca como vitela. Nunca compro. É maluco. E eu não
de de entrar em relação com os animais e de fazer algo entendia e ele não comia pelas mesmas razões que eu com
único. O sentimento da felicidade, que se refere a elementos as minhas cabras; era porque, bem, ele achava que não
particulares da vida, anda junto com o desejo de que o podia fazer bem. Eu me dizia, os pobres animais, puxa vida.
evento que promove esse sentimento possa durar. É por isso E aí, eu brigava muitas vezes com o meu marido porque eu
que, a meu ver, dois terços dos pecuaristas mantêm ao longo dizia que era inadmissível e meu marido dizia sempre que a
do tempo uma relação positiva com seu ofício. gente era obrigada a chegar nisso. Que as necessidades
A industrialização das atividades de pecuária levou mui- tinham levado a fazer esses sistemas de criação. Mas não,
tos pecuaristas a dirigir um olhar crítico sobre seu ofício, para mim, isso não teria me interessado”.
apoiado de maneira antagônica pelos discursos negativos da Se a industrialização da pecuária modificou profunda-
mídia, principalmente do ponto de vista do meio ambiente e mente as maneiras de “criar” os animais, ela também trans-

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Subjetividade, trabalho e ação

formou completamente as atividades de abate. A diminui- ção pelos pecuaristas ou pelos assalariados das condições
ção drástica do número de abatedouros, seu aumento de de trabalho em sistemas industriais e os efeitos do trabalho
tamanho e seu afastamento da fazenda tornam cada vez sobre a saúde mental das pessoas requerem ser estudados.
mais difícil para o pecuarista um acompanhamento do ani- Com efeito, se o sofrimento dos animais nesse tipo de
mal. A obrigação de delegar o abate às grandes unidades sistema é reconhecido e dá lugar a debates e a certas
industriais é para muitos pecuaristas a causa de um senti- evoluções técnicas dos sistemas, o efeito dos procedimen-
mento de culpa em relação a seus animais, tanto mais forte tos do trabalho industrial sobre a saúde física e psíquica dos
que se sentem impotentes ante essa evolução, e eventualmen- pecuaristas e dos assalariados permanece ainda muito des-
te há aqui também um sentimento de vergonha provocado ao conhecido.
mesmo tempo pela decisão de reforma, principalmente quan- Contrariamente à perversão das relações entre seres
do esta não se baseia na vontade autônoma do pecuarista, e humanos no quadro do trabalho, é quem sabe a
pelo abandono do animal às estruturas de abate. especificidade do trabalho de pecuária, ou seja, a parceria
O sentimento de vergonha acompanha a percepção de um com o animal, que pode permitir, a meu ver, a salvaguarda
isolamento social e a idéia de uma negação de suas dificul- entre a maioria dos pecuaristas do conteúdo relacional do
dades por parte dos “citadinos”, essencialmente representa- trabalho e a persistência de um olhar moral sobre o conteú-
dos pela mídia. O sentimento majoritário que os pecuaristas do do trabalho. Com efeito, e como o ressaltam muitos
experimentam então ante as críticas dos consumidores e dos pecuaristas: “os animais não são falsos; o animal não
cidadãos é o de uma profunda incompreensão. Assim, 80% engana, ele não faz nenhum jogo”; ele é ele próprio
dos pecuaristas estão em desacordo com a afirmação: “as autenticamente. Essa autenticidade é percebida por muitos
críticas da mídia são algo relativamente positivo para a como uma riqueza muito grande da relação com o animal.
pecuária”. O não-reconhecimento de seu trabalho é uma Como observa Erwin Straus: “o animal não pode mentir,
demonstração de sua “inutilidade”. A rejeição de um ofício não pode deixar de ser autêntico. Mas tampouco pode ser
cuja vocação nutridora permanece primordial nas represen- verdadeiro no sentido do homem que, pela generalização
tações é uma causa de sofrimento para os pecuaristas. Como e a repetição, volta a si mesmo” (Straus, 2000, p. 377). A
demonstra a evolução de certas atitudes dos ecologistas na impossibilidade da perversão mental do animal nas rela-
Grã Bretanha, a agricultura pode ser percebida como “algo ções de comunicação, sua não-participação na mentira,
prejudicial do qual deveríamos nos livrar” (Cox, 2001, p. sua força de inércia ante a violência dos sistemas32 são um
19); o trabalho dos agricultores e dos pecuaristas é não apelo constante ao respeito, à simpatia, à empatia. Levan-
somente desvalorizado, mas negado na sua própria essên- tarei a hipótese de que a permanência do real dos senti-
cia. A vocação fundadora de “nutrir os homens” que faz o mentos e das emoções no animal salva os pecuaristas do
orgulho de grande parte dos pecuaristas transforma-se desamor e permite que permaneçam humanos no trabalho,
numa produção destruidora da natureza, da saúde dos ho- ou seja, que permaneçam lúcidos e capazes de sofrer com
mens e dos animais... da qual seria necessário se livrar para as práticas imorais que impõe uma organização do traba-
sobreviver. lho “desencarnada”.
A forte tendência dos sistemas de produção animal que
CONCLUSÃO visa aumentar a distância entre os animais e os homens e
conceber unidades de produção cada vez mais automatiza-
A banalização institucional de condutas contrárias ao das inscreve-se numa perspectiva industrial e biotécnica,
respeito de outrem (incitação à mentira, à delação, à apoiada pelas “ciências da vida”33 , erradicando sofrimento
reificação do outro, às manipulações psicológicas, ao abuso e prazer e desfigurando a vida. Não se pode deixar de
do poder...) é amplamente evidenciada, no quadro das rela- constatar, cada vez mais, o domínio dos bio-poderes sobre
ções humanas no trabalho, pela psicodinâmica do trabalho. nossas existências e a ignorância em que nos encontramos
Não se constata afinal entre os assalariados uma aceitação do que está verdadeiramente em jogo no tratamento cientí-
dessas novas “regras” do trabalho (cuja primeira, e quem fico-econômico-técnico do vivo sob todas as suas formas.
sabe a única, parece definitivamente ser: o fim justifica os As quimeras produzidas no sigilo dos laboratórios partici-
meios) e uma cisão da personalidade, uma clivagem, entre a pam do processo de desumanização e de desnaturação inici-
pessoa no trabalho e a pessoa fora do trabalho, que lhe ado pela implantação de uma agricultura industrial34 . Nesse
permite funcionar mentalmente de maneira totalmente dife- universo produtivo “desnaturado”* *, os “animais” genetica-
rente com seus colegas ou com sua família, e escapar ao mente modificados para serem adaptados aos sistemas in-
sofrimento moral tornando impossível o encarar a si mesmo dustriais (sem olhos, sem patas, sem almas?) não sofrerão
que permitiria reconhecer em nós o canalha banal que mais por não serem, e ninguém mais saberá na verdade
aceitamos ser com certa rapidez31 ? As condições de aceita- quem são; os produtores e gestores desse material animal

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Jocelyne Porcher

privados de relação com os animais tampouco sofrerão, quer que seja que deixe de aparecer, somos admiráveis ou
nem por eles mesmos – ou não mais do que um operador de criminosos em relação a nós mesmos unicamente, se nos
produção de material de informática – nem por fazer sofrer. perdemos, não é nenhum outro vencedor que nos terá ani-
Pois, como escreve Whitman: “nada é criminoso para nós quilado, é por nosso próprio erro que desceremos na noite
senão nós mesmos, o que quer que seja que apareça, o que eterna” (Whitman, 1972, p. 371).

Tradução: Giliane Ingratta

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44 Revista Produção, v. 14, n. 3, p. 035-044, Set./Dez. 2004

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Análise do trabalho e serviço de limpeza hospitalar: contribuições da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho

Análise do trabalho e serviço de limpeza hospitalar:


contribuições da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho
LAERTE IDAL SZNELWAR
Prof. Dr. Departamento de Engenharia de Produção da POLI-USP
E-mail: laertesz@usp.br

SELMA LANCMAN
Profa. Dra. Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina-USP
E-mail: lancman@usp.br

MÁRCIO JOHLBEN WU
Departamento de Engenharia de Produção da POLI-USP

ERICA ALVARINHO
Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina-USP

MARIA DOS SANTOS


Departamento de Fisioterapia, Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina-USP
E-mail: mariato@usp.br

Resumo
Neste artigo são apresentados os resultados de uma parceria envolvendo dois grupos de pesquisa que estudaram
uma situação concreta de trabalho geradora de elevado índice de absenteísmo, afastamentos por doença e por
acidentes de trabalho: o Serviço de Limpeza Hospitalar. O objetivo do trabalho é responder a uma demanda
específica dos responsáveis por um hospital público. O intuito é entender a problemática referida e buscar soluções
através de transformações na organização do trabalho destes profissionais. Para tanto, a equipe de pesquisa
envolvida propôs que a mesma situação fosse abordada através de duas metodologias distintas: a da ergonomia
e a da psicodinâmica do trabalho. O diálogo que se busca a partir da utilização dessas duas abordagens é útil para
a construção de melhorias no trabalho e para analisar as relações de complementaridade, confluência e/ou
divergência entre estas duas disciplinas que abordam o trabalhar sobre ópticas distintas.

Palavras-chave
Serviço de higiene; trabalho em hospitais; ergonomia; psicodinâmica do trabalho; saúde do trabalhador

Work analysis in a higiene service of a hospital:


contributions from ergonomics and work psychodynamics
Abstract
This paper contains the results of a study made in partnership between two research groups. The work situation
in a hygiene service of a hospital is the object of the study. The request made by the health and safety services was
due to high levels of absenteeism, work diseases and accidents and the direction of the hospital was preoccupied
with this scenario and would like to improve the work situation. The study was performed with two different
approaches from ergonomics and from work psychodynamics. The results of the study and the dialogue between two
different areas can be useful to build work improvements as well as to analyze the relationship between these two
disciplines that approaches work with distinct points of view. This discussion concerns complementarities,
confluence, and divergence

Key words
Hygiene services, work in hospitals, ergonomics, work psychodynamics, workers health

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Laerte Idal Sznelwar; Selma Lancman; Márcio Johlben Wu; Erica Alvarinho; Maria dos Santos

INTRODUÇÃO lação, estaria comprometendo a saúde de um contingente


significativo de trabalhadores?
Apesar das crescentes modificações introduzidas no tra- Um outro desafio se coloca. De que forma podem ser
balho e na produção nas últimas décadas, através da intro- buscadas novas maneiras de trabalhar que, ao invés de
dução de novas tecnologias, de mudanças na organização comprometer a saúde dos trabalhadores, promovam o seu
do trabalho, no aparecimento de novas profissões, constata- desenvolvimento enquanto profissional e ser humano? No-
se que algumas questões continuam desafiando a todos, tais vos compromissos deveriam ser buscados no trabalhar,
como o sofrimento, as doenças, os acidentes. Estas ques- através da concepção de tarefas e novas situações de traba-
tões, além de terem conseqüências para as próprias pessoas, lho que aliassem as necessidades da produção dos serviços,
acarretam prejuízos para as instituições e para a sociedade. em termos de qualidade e produtividade, com a promoção
Com as mudanças no cenário político, econômico e produ- da saúde dos trabalhadores.
tivo, um dos setores que mais cresceu foi o de serviços nos Entre os setores de prestação de serviços, destacamos o
seus mais variados tipos, que vem trazendo novos desafios no de serviços de saúde em ambiente hospitalar, foco do estudo
que tange à produção e ao trabalho. Contingentes crescentes aqui proposto.
de trabalhadores estão envolvidos nestas tarefas, sejam elas
voltadas para o grande público, sejam elas restritas a prestar A PRODUÇÃO DE SERVIÇOS DE
serviços dentro de uma mesma estrutura de produção. SAÚDE EM AMBIENTE HOSPITALAR
Até recentemente o mundo do trabalho era hegemoni-
camente dominado por paradigmas considerados como O sistema de produção de serviços em ambiente hospita-
clássicos na produção industrial, como a Organização lar reveste-se de uma complexidade ímpar, principalmente
Científica do Trabalho proposta por Taylor e seus segui- quando estes serviços incluem desde atendimentos ambula-
dores. Parte significativa dos projetos de produção e do toriais até cirurgias de alta complexidade. Ao analisarmos a
trabalho no setor de serviços, principalmente aquele co- estrutura organizacional, os processos de produção e de
nhecido como “serviços de massa”, foi baseada na impor- trabalho, a diversidade de insumos e materiais, fica patente
tação dos mesmos paradigmas utilizados na produção que os desafios para que este sistema produza serviços de
industrial clássica, tais como a fragmentação dos proces- qualidade e garanta a promoção da saúde de seus trabalha-
sos e a simplificação das tarefas. Resultados significativos dores são de alta monta. Questões ligadas aos trabalhadores,
foram obtidos: a racionalização de processos, a busca da à logística, à organização do trabalho, à infra-estrutura
homogeneidade dos serviços prestados, aumentos signifi- básica (utilidades, insumos…), entre outras, revelam as
cativos de produtividade e o controle sobre a qualidade imensas dificuldades para que se garanta um bom funciona-
podem ser encontrados nas mais diversas empresas e ins- mento do sistema.
tituições. Aliado à questão da qualidade dos serviços e à questão da
Todavia, ao desconsiderar as especificidades das ativida- eficiência e eficácia do sistema, há desafios significativos
des deste setor, como a complexidade da relação com o no que concerne à saúde das pessoas que trabalham neste
cliente e a variação constante da demanda de serviços, obser- ambiente. Acidentes de trabalho, doenças profissionais e
vamos a existência de certas incompatibilidades na realiza- sinais significativos de sofrimento são resultados
ção do trabalho apesar dos resultados positivos obtidos na freqüentemente encontrados nos hospitais (Tonneau et al.,
prestação de serviços e para as instituições. Este fato seria 1996; Estryn-Behar et al. 1992).
responsável por um aumento significativo do sofrimento e do Para amenizar, ou mesmo resolver, o problema dos riscos
adoecimento de trabalhadores. Doenças ligadas ao trabalho, à saúde em ambiente hospitalar, é necessário aceitar o desafio
antes afeitas basicamente ao mundo industrial e agrícola, de melhor compreender os processos de produção existentes
tornaram-se parte do panorama em serviços, atingindo sobre- e adequar o conteúdo das tarefas para que os trabalhadores
tudo trabalhadores jovens. envolvidos nas diferentes áreas destes locais de trabalho
Esta questão paradoxal tornou-se foco de inúmeros estu- possam desenvolver seu trabalho de forma mais saudável.
dos (Tonneau et al., 1996 ; Molinier, 1995), na medida em É preciso considerar um aspecto fundamental do trabalho
que traz um problema de alta relevância. A expansão do desenvolvido num hospital, a sua característica básica: o
setor de serviços, de importância significativa na sociedade cuidado. Esta atividade é constituída por um encontro entre
atual, estaria acontecendo em detrimento da saúde de uma uma pessoa doente, que sofre, e uma outra encarregada de lhe
parcela importante da população? Se esta hipótese estiver propiciar ajuda e conforto físico e psíquico.
correta, cria-se um paradoxo: Não estaria sendo comprome- O conjunto dos trabalhadores do hospital, mesmo aque-
tido o futuro do próprio serviço, na medida em que este, de les não envolvidos diretamente com o cuidado, é obrigado
importância significativa para a qualidade de vida da popu- a lidar com o sofrimento, a doença, a morte. O trabalho

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Análise do trabalho e serviço de limpeza hospitalar: contribuições da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho

apresenta diferentes tipos de constrangimento: esforço físi- cias são acessíveis somente na visibilidade dos sintomas
co e exigência de posturas inadequadas, equipamentos por expressos nas mentes e nos corpos dos trabalhadores. Ainda
vezes insuficientes ou mal conservados, arquitetura hospi- é pouco o que se conhece sobre o “trabalhar” e, sobretudo,
talar que exige grandes deslocamentos, escassez de pessoal, aquilo que concerne ao que é necessário para que as tarefas
risco de acidentes e de contágio, trabalho em turnos e sejam cumpridas a contento e para que a produção seja feita
noturno, ritmos de trabalho excessivos, tarefas concorren- com a qualidade e a produtividade definidas pelas empresas
tes, etc. (Molinier, 1995; Pitta, 1990), além daqueles relacio- e instituições. Ainda não são muitas as disciplinas que, ao
nados ao convívio com a pessoa doente. estudarem as questões do trabalho, se preocupam com o seu
Uma das conseqüências deste estado de coisas é o núme- conteúdo e as suas conseqüências para a saúde e para a vida
ro expressivo de afastamentos de trabalhadores em vários da população trabalhadora e para a produção. Dentre elas,
setores tanto por problemas físicos quanto decorrentes de destacamos a ergonomia e a psicodinâmica do trabalho.
sofrimento psíquico. Uma outra conseqüência que se obser- Nos últimos 50 anos, inúmeros trabalhos em ergonomia e,
va, dadas as pressões e constrangimentos organizacionais, mais recentemente, em psicodinâmica do trabalho, têm
se expressa na qualidade do atendimento prestado, que tem revelado, ao meio científico e à sociedade, aspectos até
conseqüência imediata na melhora da saúde ou mesmo da então desconhecidos sobre o ato de trabalhar (Daniellou,
sobrevida do cliente/paciente. 1996; Dejours, 1993, 1994, 1997; Wisner, 1993; Guerin et
O desenvolvimento de conhecimento mais aprofundado al., 2001).
sobre os hospitais e sobre o trabalho desenvolvido nestas Apesar da proximidade das duas disciplinas ao tratarem de
instituições é estratégico, uma vez que as melhorias nos aspectos ligados ao mesmo fenômeno, há diferenças signifi-
processos de produção poderão ter reflexos significativos cativas com relação às metodologias empregadas em função
em termos de qualidade de atendimento à população e, do recorte teórico/epistemológico que cada uma delas faz do
também, com relação à diminuição de custos para o sistema objeto de estudo, o trabalhar. Em princípio, a ergonomia se
público de saúde. Esta economia pode ser não apenas direta, volta para aspectos que se enquadram em uma perspectiva
com redução de custos operacionais, mas também indireta, baseada na fisiologia e na psicologia cognitiva. As questões
na medida em que poderá haver reflexos positivos para a tratadas têm então como ponto de partida aquilo que pode
saúde da população trabalhadora, reduzindo doenças e aci- ser explicado por estudos que privilegiam aspectos antropo-
dentes ligados ao trabalho. métricos, biomecânicos, consumo de energia, órgãos senso-
É importante considerar que no processo de produção de riais, neurofisiologia, entre outros. Mais recentemente, com o
serviços em hospitais há trabalhadores que têm contato desenvolvimento de conhecimentos oriundos da psicologia
direto com os pacientes e são considerados como integran- cognitiva, assim como a sua aplicação nos mais variados
tes de profissões ligadas aos cuidados à saúde e outros que projetos, o campo da ergonomia tem-se transformado signifi-
não têm este contato, mas que garantem a existência do cativamente. Na tentativa de buscar uma síntese entre os
serviço através do provimento de uma série de insumos diversos aspectos humanos com relação ao trabalhar, a ergo-
necessários à produção. Há ainda, uma outra categoria de nomia estuda o ser humano em situação de trabalho, utilizan-
trabalhadores, que embora tenham contato direto com os do metodologias e teorias voltadas para a compreensão da
pacientes, com as famílias e com diferentes colegas, por não ação, do fazer. Este fato a aproxima significativamente das
serem responsáveis pelo atendimento clínico, este contato é ciências humanas, mais especificamente da antropologia e da
pouco ou nada relevado. É o caso dos trabalhadores da sociologia. Mesmo assim, como o seu objetivo é o de trans-
limpeza e da higiene hospitalar, que estão presentes em formar o trabalho, adaptando-o às características humanas,
todos os lugares do hospital, mas que, apesar da sua atuação ela se situa na esfera da tecnologia, fazendo parte, segundo
envolver tarefas relativamente conhecidas, desempenham Wisner, da arte do engenheiro. Devido ao recorte
uma série de outras ações, não previstas, como por exemplo epistemológico adotado, a ergonomia não incorpora na sua
ajudar direta ou indiretamente no cuidado. abordagem questões subjetivas que dizem respeito aos senti-
mentos, à identidade, ao sofrimento e ao prazer, que são do
ERGONOMIA E A PSICODINÂMICA âmbito do psíquico (ver Guerin et al., 2001).
DO TRABALHO Esta lacuna tem sido preenchida por estudos baseados
na psicodinâmica do trabalho, linha de pesquisa e de
A discussão relativa à compreensão do trabalho conti- atuação voltada mais especificamente para a questão psí-
nua sendo um grande desafio para os diversos pesquisado- quica do trabalhar. Os estudos nesta área do conhecimento
res. Aquilo que é realizado efetivamente por milhões de têm mostrado a relevância da questão e têm colocado
pessoas no seu dia-a-dia segue desconhecido e relegado aos novos desafios para quem atua como pesquisador ou como
bastidores da produção e, nesse sentido, as suas conseqüên- profissional.

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Laerte Idal Sznelwar; Selma Lancman; Márcio Johlben Wu; Erica Alvarinho; Maria dos Santos

Uma questão interessante surge quanto aos lugares que a adoecimentos e acidentes de trabalho dos funcionários do
ergonomia e a psicodinâmica ocupam no âmbito das áreas hospital, procuraram pesquisadores da mesma universi-
que estudam o trabalho. Se por um lado o ato de trabalhar é dade ligados às áreas de engenharia de produção e terapia
um ato síntese, onde o ser humano desenvolve suas ações ocupacional. O intuito foi estabelecer parcerias que pu-
por inteiro, não podendo ser separado em físico, cognitivo e dessem contribuir com estudos e intervenções visando à
psíquico, por outro, as abordagens propostas fragmentam o melhoria das condições de trabalho e a diminuição das
ato de trabalhar. A análise ergonômica não prioriza o problemáticas relatadas (Wu & Alvarinho, 2002;
estudo da subjetividade no trabalho, enquanto que a aborda- Sznelwar et al., 2003).
gem psicodinâmica do trabalho, ao privilegiar o sentir, não Os objetivos deste projeto, de acordo com os princípios
foca as condições objetivas em que ocorre o trabalho, não das abordagens da ergonomia e da psicodinâmica do traba-
incorpora a questão do fazer. lho, visavam de um lado colaborar para a melhoria das
Pode-se perguntar então se esta questão deve-se a tarefas nesse hospital, considerando o seu conteúdo, a divi-
incompletude característica das diferentes ciências. Se as- são do trabalho, além de outros aspectos organizacionais
sim o fosse, bastaria juntar as duas abordagens para que como os tempos, os ritmos, a relação com outros setores e
fosse possível reconstruir o humano no trabalho na sua com os clientes. Dessa forma, buscou-se estabelecer as
globalidade. Esta seria, a nosso ver, uma solução simplista relações entre a organização do trabalho, as atividades
que desconsideraria todo o debate existente entre estas duas realizadas e as conseqüências para a saúde do trabalhador.
áreas do conhecimento. Buscou-se, ainda, compreender os aspectos subjetivos do
A ergonomia está voltada para a transformação efetiva das trabalho, tais como: visibilidade, cooperação, reconheci-
tarefas e das condições de trabalho, enquanto que a psicodi- mento, estratégias defensivas, processos de comunicação,
nâmica do trabalho busca uma reapropriação, por parte dos entre outros.
trabalhadores, do sentido do trabalhar, favorecendo o seu Numa primeira etapa, as duas equipes realizaram, em
papel como agentes de transformação do trabalho. No dizer conjunto, um levantamento de demanda junto ao hospital.
de Molinier (2001), a ergonomia visa então desvendar o Os principais problemas relatados pela direção, pelo servi-
trabalho, enquanto que a psicodinâmica, o trabalhar. ço de medicina e segurança do trabalho e pela CIPA esta-
A partir dessas considerações, julgamos importante fazer vam ligados ao alto índice de absenteísmo, relacionado, na
avançar os estudos empíricos e os conceitos que possam sua maior parte, a problemas de saúde. Ao mapearem estes
ajudar a compreender o trabalho em seus vários aspectos. índices para escolher dentre vários setores do hospital, foi
Nesse sentido, é fundamental promover um diálogo entre os verificado que o setor de Higiene e Desinfecção Hospitalar
diversos campos de investigação, em especial a ergonomia era um dos mais preocupantes, devido às elevadas taxas de
e a psicodinâmica do trabalho, buscando apreender possí- absenteísmo, ao crescente número de adoecimentos, ao
veis complementaridades, confluências e/ou divergências e envelhecimento da população e à importância desse setor
incompatibilidades. No nosso entender, isto permitirá não para o hospital (Felli, 1999, Torres, 1999).
só estudar situações específicas, mas também subsidiar a Em 2001 havia 84 funcionários no setor, sendo 83 mu-
ampliação do campo de pesquisa teórico, que por sua vez lheres, distribuídas em quatro turnos de trabalho (manhã -
possibilitará novas práticas e formas de ação na realidade 27; tarde - 17, noite - 8 e especial - 2). Os demais estavam em
da produção. folga, férias ou afastados. A jornada era de 6 horas, com
Além de buscar este diálogo, outro objetivo das pesqui- exceção do turno da noite (regime de 12 h de trabalho por 36
sas é também ajudar no avanço do conhecimento no setor horas de descanso). Metade deles tinha mais de 45 anos de
de serviços, em especial, de uma instituição pública de idade – a idade variava entre 32 anos e 64 anos. Metade da
prestação de atendimento à saúde. Os resultados podem população trabalhava no hospital há mais de 12 anos. O
ser úteis para a compreensão dos determinantes da orga- nível de escolaridade exigido no setor era nível fundamental
nização do trabalho e do conteúdo das tarefas, das conse- (5 anos de estudo).
qüências para a saúde dos trabalhadores e, sobretudo, Com relação ao absenteísmo, houve uma redução na
para facilitar o processo de transformações e melhorias. quantidade de afastamentos entre 1999 e 2001, de 50 para
30. Houve também uma redução da quantidade de ausências
DESENVOLVIMENTO DO por motivos médicos, de 117 para 78. Por outro lado, os dias
ESTUDO E RESULTADOS perdidos com afastamento médico aumentaram, de 985 para
1.170 dias. Com relação aos dias perdidos em licenças por
Em 2001, representantes da Comissão Interna de Pre- acidente de trabalho houve um aumento significativo, de
venção e Acidentes de Trabalho de um hospital universitá- 425 para 1.145 dias. O maior número de afastamentos entre
rio, preocupados com o elevado índice de absenteísmo, estes trabalhadores ocorreu na faixa de 40 a 49 anos entre

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Análise do trabalho e serviço de limpeza hospitalar: contribuições da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho

aqueles que estavam trabalhando entre 6 e 10 anos no ção do trabalho e as relações de poder influenciavam os
hospital. Concluiu-se que, na verdade, a diminuição dos processos de comunicação, a cooperação e o reconhecimen-
afastamentos era devida à diminuição das licenças de curta to, além de identificar algumas estratégias desenvolvidas
duração, em contrapartida a um aumento de afastamentos pelos trabalhadores para realizar suas tarefas. Foi proposta
de média e longa duração. Estes indicadores mostraram que a criação de um espaço de discussão onde os integrantes do
havia uma tendência ao agravamento do quadro, principal- grupo pudessem se expressar dentro de um coletivo de
mente porque indicavam o risco de uma redução gradativa pares. Para a constituição do grupo, os objetivos da ação
de trabalhadores disponíveis no setor. foram apresentados aos trabalhadores de todos os turnos,
Em seguida, outras etapas foram desenvolvidas, tais dos quais 22 funcionários se dispuseram a participar como
como: conhecimento do setor, levantamento de dados voluntários. Devido a problemas com a escala, somente dez
sobre a produção, estudo do conteúdo das tarefas e obser- deles puderam participar e foram escolhidos por sorteio.
vações livres. Para entendimento do funcionamento do Ocorreram oito encontros semanais com a duração de uma
setor e levantamento das tarefas e seus determinantes, hora. Ao final, foi apresentado aos trabalhadores para vali-
foram estudados documentos relativos aos fluxos (materiais, dação um relatório sobre os aspectos discutidos (Dejours,
informações, documentos), procedimentos de limpeza, 1995).
escalas, insumos, critérios de qualidade, volume de produ-
ção. Esta etapa foi complementada com entrevistas com as RESULTADOS DA ANÁLISE ERGONÔMICA
chefias.
Após esta etapa, como parte do método proposto, as Tipos de limpeza – Existem no hospital diversos tipos de
duas equipes desenvolveram trabalhos paralelos, utili- limpeza, de acordo com o processo utilizado e o local a
zando abordagens distintas. Uma equipe deu prossegui- ser higienizado: a limpeza concorrente (limpeza diária e
mento à Análise Ergonômica do Trabalho (AET). A reposição de materiais, tais como: papel toalha e papel
partir da elaboração de hipóteses com relação aos princi- higiênico); a limpeza de pisos e corredores; a limpeza
pais constrangimentos e inadequações da tarefa, foram terminal, que envolve a limpeza de pisos, tetos, paredes e
realizadas observações sistemáticas e recomendações de anexos (portas, vidros, janelas, luminárias etc.); a limpe-
melhorias. Para respaldar esta análise, foi proposto o za das salas cirúrgicas, que envolve também a limpeza
envolvimento dos trabalhadores no processo. Foi então operatória (descontaminação imediata após o derrama-
constituído um grupo, intitulado grupo de diagnóstico e mento de líquidos e secreções orgânicas); limpeza diária
melhorias, composto por trabalhadores voluntários dos das copas; e a lavagem semanal do carro funcional.
três turnos de serviço (Guérin, 2001). As dinâmicas de Qualquer outra intercorrência, deve ser prontamente
grupo foram realizadas em paralelo às observações, fato atendida.
que possibilitou um melhor entendimento do trabalho e Critérios de Qualidade – A avaliação dos trabalhadores
discussões de aspectos técnicos. O grupo permitiu que os quanto à qualidade do trabalho realizado, feita pela chefia,
trabalhadores validassem os resultados, construíssem envolve a limpeza do quarto, do banheiro, o abastecimento
sugestões de melhoria, expressassem seus pontos de de materiais, a prontidão no atendimento, a educação e as
vista com relação à qualidade percebida, às margens de informações prestadas quanto a problemas de manutenção.
manobra, às dificuldades operacionais, às formas de co- A avaliação do usuário, coletada a partir de um questioná-
municação e aos problemas gerados no trabalho. Além rio, indicava que havia, na maioria dos casos, satisfação
de anotações e planilhas preenchidas pelo pesquisador e com relação à limpeza geral do hospital. No que tange à
pelos próprios trabalhadores, foram utilizadas fotografias limpeza dos quartos, a maioria dos usuários considerava a
e gravações em vídeo. Finalmente foram construídas qualidade como regular ou ruim. A limpeza dos vidros foi a
sugestões de melhoria e, em seguida foi feita uma discus- que obteve as piores avaliações. A assistência prestada e a
são onde os resultados da AET foram confrontados com educação dos funcionários eram consideradas como de
os resultados do grupo de reflexão realizado sob a óptica muito boa qualidade.
da psicodinâmica do trabalho. Tempo – O tempo para execução de uma determinada
O grupo de expressão, formado por outros trabalhadores limpeza variava significativamente, segundo alguns fato-
do setor, foi criado baseado nos princípios da psicodinâmi- res, tais como: a interferência do cliente, diferenças de
ca do trabalho (Dejours, 1995, 2000). A sua finalidade foi arquitetura e do arranjo físico, diferença no grau de sujidade
a de compreender e dar visibilidade a aspectos subjetivos (alguns locais precisam de mais atenção em relação a ou-
ligados ao trabalhar, tais como: o conteúdo simbólico, as tros), além de vários tipos de intercorrências. O tempo para
relações de prazer e sofrimento que os trabalhadores expe- a realização de um mesmo tipo de limpeza, como a terminal,
rimentavam com relação à sua atividade, como a organiza- podia variar em mais de 400%.

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Laerte Idal Sznelwar; Selma Lancman; Márcio Johlben Wu; Erica Alvarinho; Maria dos Santos

Estes resultados mostram a variabilidade existente com hábitos de trabalhar são transmitidos aos mais novos,
relação ao trabalho de limpeza. Este fato gerava um pro- mesmo que estejam em desacordo com os procedimentos.
blema de organização que merecia um tratamento mais
aprofundado, o balanceamento do trabalho e as dificulda- Ausência de valorização do trabalho
des existentes devido a uma organização do trabalho que Os trabalhadores se ressentem da falta de cuidado de
não privilegiava o trabalho em equipe, mas sim a reparti- outros colegas e de usuários do hospital com a limpeza.
ção dos trabalhadores em diferentes áreas do hospital. Reclamam da existência de lixo descartado fora das lixeiras
Além deste aspecto, os resultados mostram que havia e do descarte de material clínico e cirúrgico de maneira
muito esforço físico a ser realizado, em parte relacionado inadequada. Isso é considerado por eles como desprezo
com problemas da arquitetura do hospital, os tipos de pelo seu trabalho e falta de respeito à preservação do bem
mobiliário existentes (deslocamento de camas, armários, comum. Uma das situações que reforçam o que foi dito
entre outros), com a inadequação das ferramentas e o anteriormente é o descarte errado do “bico de papagaio” no
descontrole com relação ao ritmo e às demandas de produ- vaso sanitário, em algumas clínicas, espalhando a urina pelo
ção, uma vez que era impossível saber o quanto se traba- assoalho do banheiro. Também foi possível encontrar lixo
lharia numa determinada jornada. em hampers do ambulatório no fim da tarde, estes deveriam
Existe um problema de balanceamento da carga entre conter apenas roupas, lençóis e cobertores. Além destes
setores e períodos do ano. Mas isto não é considerado de fatos mais diretamente ligados à limpeza propriamente dita,
maneira adequada na organização do trabalho, sobrecarre- há uma série de atividades que eles exercem mas não são
gando alguns trabalhadores. As limpezas terminais são reconhecidas, pois não fazem parte do trabalho prescrito e
parte integrante do dia-a-dia dos trabalhadores, mas não são reconhecido pela instituição. Neste caso, destacamos as in-
devidamente consideradas na organização e na divisão do formações que fornecem constantemente aos usuários do
trabalho. Apesar do conhecimento da existência das limpe- hospital e a vigilância que mantêm para evitar problemas,
zas terminais, o trabalhador nem sempre tem a possibilidade como por exemplo a preocupação para evitar que crianças se
de programar adequadamente o seu tempo para realizá-las. percam.
Os resultados das discussões desenvolvidas pelos traba-
lhadores no grupo de diagnóstico e melhoria estavam rela- Conhecimento da tarefa e rotatividade de setor
cionados a estas e outras questões. A seguir será apresenta- Alguns trabalhadores circulam por vários setores do hos-
do o ponto de vista destes trabalhadores, conforme a reda- pital, enquanto outros ficam fixos. Apesar de todos conhece-
ção de relatório validado por eles: rem os vários tipos de limpeza, existem diferenças de setor
para setor, ou seja, em alguns setores algumas tarefas
Incompatibilidade entre o real e o prescrito podem ser mais freqüentes que outras e a sua distribuição
A instituição não conhece a realidade do serviço dos acaba sendo diferenciada nos vários setores e turnos. Estas
funcionários do setor. Existe uma tendência de simplifica- mudanças trazem dificuldades relacionadas ao conhecimento
ção da dinâmica do trabalho, procura-se adotar soluções da dinâmica de funcionamento do novo local. Além disso, a
simplistas para os problemas existentes, muitas vezes pelo população deste setor está em processo de envelhecimento.
fato de não conhecê-los suficientemente bem. No planeja- Em breve, muitos funcionários estarão se aposentando. Ao
mento e gestão do setor, algumas tarefas são consideradas partirem, levam consigo uma experiência acumulada durante
simples, não se leva em conta os diferentes eventos que anos de trabalho que não será compartilhada com colegas que
podem afetar o trabalho. Alguns procedimentos são in- porventura serão contratados no futuro.
compatíveis com aquilo que os trabalhadores consideram
correto, há pouca explicação do motivo ou da necessidade Os critérios de qualidade da limpeza são subjetivos
que levou a sua adoção. Um exemplo disso está ligado ao A avaliação da qualidade do serviço realizado é diferente
fato de que apesar de água e sabão serem suficientes para segundo critérios pessoais. Inicialmente a limpeza é avalia-
a limpeza, em muitas situações, vários trabalhadores não da visualmente, através da existência de partículas de lixo
confiam na sua eficácia, o que os leva a usar outros produ- ou manchas de líquidos secos no chão. O olhar é o primeiro
tos, em maior quantidade, misturando-os, por acreditarem julgamento. Alguns consideram satisfatório aquilo que foi
que assim atingirão melhores resultados. Há questiona- feito, enquanto outros acreditam que o serviço deva ser
mentos também com relação aos procedimentos para ga- refeito. O julgamento ocorre entre pares, pelos chefes, por
rantir a qualidade da limpeza, por exemplo, há um certo outros trabalhadores do hospital e pelos usuários. O proble-
desconforto quando limpam os banheiros e usam a mesma ma é saber qual critério seguir! Ocorrem problemas quando
ferramenta para limpar a pia e o vaso sanitário. O treina- um trabalhador considera sujo um local que acabou de ser
mento é, em boa parte, feito pelos colegas. Portanto, certos limpo por outro colega. Isto fica acentuado nas passagens de

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Análise do trabalho e serviço de limpeza hospitalar: contribuições da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho

plantão ou entre funcionários que trabalham em um mesmo za para compensar a falta de trabalhadores. De qualquer
local, pois por vezes alguns funcionários acreditam que um maneira, não há tecnologia que substitua as pessoas, pois o
trabalhador está deixando trabalho para o outro com intuito uso de rodo e “mop” é fundamental, devido sobretudo à
de prejudicá-lo. O conflito aumenta quando a questão é flexibilidade que permitem para limpar. Os equipamentos
delatada para a chefia que, muitas vezes, arbitra sem conhe- modernos, mecanizados a automatizados, além de não terem
cer o que se passou. sido adquiridos pelo hospital por limitações orçamentárias,
não são adequados para todos os tipos de limpeza.
Falta de equipamentos de limpeza
e precariedade da manutenção O projeto do hospital não facilita a limpeza
As enceradeiras utilizadas nas lavações são escassas, são Vários problemas foram listados pelos participantes do
poucas as que estão em perfeitas condições de funciona- grupo que estão relacionados ao projeto arquitetônico do
mento. Não existe uma manutenção preventiva, nem mes- hospital. Os exemplo mais significativo foi o das janelas.
mo a corretiva é imediata. Alguns funcionários se apropriam Aparentemente o projeto foi elaborado sem que fossem
das melhores enceradeiras, eles as escondem para poder consideradas as dificuldades para limpá-las, estas são pou-
utilizá-las quando precisarem. Se por um lado prejudicam co acessíveis e uma limpeza mais completa só é possível se
os colegas, por outro não estarão sujeitos aos transtornos houver uma equipe que faça a limpeza a partir da face
causados pela procura e disputa com outros para o uso da externa do edifício. Os trabalhadores tentam alcançar os
enceradeira. A falta de enceradeira pode impossibilitar a pontos mais distantes das janelas, mas as dificuldades exis-
conclusão do trabalho de um funcionário naquele turno, tentes impedem que o façam, além de obrigá-los a manter
sobrecarregando um outro colega. O funcionário sobrecar- posturas de trabalho desconfortáveis. Atualmente, muitas
regado irá se desgastar mais e acusações podem começar a janelas estão quebradas e não podem ser reparadas pela
partir disso. Ainda, alguns preferem o uso de ferramentas inexistência de peças de reposição. Este problema vem
mais antigas, pois acreditam que proporcionam uma me- sendo resolvido nas alas reformadas, onde as janelas antigas
lhor qualidade de limpeza. Muitas vezes, uma limpeza estão sendo substituídas gradativamente. Além das janelas,
terminal pode ser substituída por uma limpeza mais simples a ausência de ralos em certos locais dificulta o trabalho. A
devido à ausência do equipamento, que afeta a qualidade do água é recolhida através do rodo e pano ou através do “mop”
trabalho. molhado. Outro aspecto que dificulta o trabalho da limpeza
é a inadequação do mobiliário e o atulhamento de equipa-
Integração entre colegas mentos em certas áreas. A mobilização do mobiliário e do
Existe pouca integração entre os funcionários. Isso está equipamento para limpar adequadamente é dificultada pelo
relacionado à organização do trabalho, que impõe a ele um peso e pela ausência de espaço em certos setores. Além
caráter mais solitário e facilita a ocorrência de fofocas ou disso, a própria limpeza de equipamentos mais sensíveis
intrigas. O trabalho em grupo muitas vezes não é visto como exige que o trabalhador mude seu modo operatório para
sinônimo de união, mas de corpo mole. As relações de evitar danos ao seu funcionamento. Além do esforço exigi-
trabalho ficam enfraquecidas, deixando os funcionários do, as posturas para limpar são desconfortáveis e contribuem
pouco à vontade para falar do trabalho com os seus pares. A para o aparecimento de problemas osteomusculares.
pouca integração dificulta ainda mais a passagem entre
turnos, acentuando o processo de isolamento, levando-os a Variáveis fora de controle que
ficar mais vulneráveis frente às variações de demanda exis- interferem com a rotina da limpeza
tentes ao longo dos turnos. Nos grupos ainda surgiram outras questões relevantes:
forte interferência do cliente no processo; carga de trabalho
Número reduzido de funcionários diferenciada ao longo do turno e do ano; esforço físico
para as necessidades atuais constante, dores no corpo e falta de equipamentos adequa-
O quadro atual é inferior ao existente 20 anos atrás. Com dos para reduzir o esforço; problemas de projeto que difi-
o passar dos anos, houve uma diminuição da população, cultam o trabalho (arquitetura das janelas e mobiliário
devido a aposentadorias e à falta de contratação de novos pesado); pouca valorização do “saber-fazer”; número redu-
trabalhadores. Além disso, há uma forte pressão sobre os zido de funcionários para as necessidades atuais; excesso de
trabalhadores, pois os afastamentos por motivos de doença movimentação devido à falta de locais de armazenamento
têm sido de longa duração e não há substitutos para eles. intermediário e pouco conhecimento sobre a toxicidade e a
Houve também, segundo os participantes do grupo, uma utilidade real dos produtos.
ampliação na ocupação e no número de leitos e nos atendi- Dentre os principais acontecimentos que interferem na
mentos. Não houve incorporação de novas técnicas na limpe- rotina estão: terminais, vômitos, secreções, “alagamentos”

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Laerte Idal Sznelwar; Selma Lancman; Márcio Johlben Wu; Erica Alvarinho; Maria dos Santos

pós-banho de paciente ou outra limpeza que é pedida pela àquilo que está sendo realizado. A limpeza não pode
enfermagem. É possível também encontrar saboneteiras influenciar a rotina, mas sim, ela deve ser feita na medida
quebradas, toalheiros sem papel, bebedores com pequenos em que as operações avançam no setor. O ritmo e a
vazamentos – quando isto acontece, o funcionário pode quantidade de trabalho a ser fornecido são assim modula-
optar por tentar resolver o problema ou emitir uma solici- dos. Por exemplo, o trabalhador precisa, muitas vezes,
tação para a manutenção. Esses acontecimentos obrigam a ficar em prontidão para agir, sem que possa desenvolver
parada do serviço e tomam um certo tempo para serem outra atividade.
solucionados. Uma hora em média para uma limpeza
terminal de quarto e cinco minutos para um vômito. As As causas para o aumento dos afastamentos
infiltrações são comuns em períodos de muita chuva. A por problemas osteomusculares são múltiplas
água acaba entrando pelas janelas ou na forma de goteiras. Várias questões abordadas nas reuniões do grupo foram
Comentou-se que existe uma variação de demanda no por eles relacionadas ao esforço físico, à fadiga e ao risco
transcorrer do ano. Ou seja, são comuns algumas áreas do de adoecimento. Dentre estes aspectos já foram citados os
hospital lotarem mais que outras em certos períodos do problemas ligados a problemas de balanceamento da carga
ano. Por exemplo, no inverno é muito comum os proble- de trabalho, devido tanto à imprevisibilidade existente
mas respiratórios, já nos finais de semana o hospital rece- neste sistema de produção de serviços, como à própria
be uma quantidade maior de acidentados. Tratando-se das dificuldade de dimensionar o trabalho frente às diferenças
limpezas terminais, o trabalhador sabe através das enfer- existentes entre as áreas do hospital, à inadequação dos
meiras ou dos pacientes, o número aproximado de termi- equipamentos, aos problemas de projeto e aos mais varia-
nais fora de rotina para aquele dia. O grande problema é dos eventos que podem ocorrer e que interferem no curso
que não se pode prever o horário em que se dará a liberação da ação dos trabalhadores. Um agravante para esta questão
do leito. A liberação está condicionada principalmente à é o fato de os trabalhadores desenvolverem as suas ações
disponibilidade de algum familiar ou conhecido em vir isoladamente – há pouca ou quase nenhuma cooperação
buscar o paciente. É comum, por exemplo, termos duas entre colegas prevista pela maneira como o trabalho é
altas num dia, uma após a outra no fim do turno; caso estas organizado e dividido.
mesmas altas tivessem ocorrido no começo do turno, o Como exemplo das dificuldades existentes com relação
trabalhador não precisaria aumentar o seu ritmo para finali- aos móveis e aos equipamentos hospitalares com relação às
zar o seu serviço. No final de ano e carnaval há mais baleados, ferramentas existentes para a limpeza é a utilização fre-
esfaqueados e bêbados; já no inverno lota o pronto atendi- qüente das pernas para mover os mais variados objetos e
mento da pediatria de crianças com problemas respiratórios. possibilitar a limpeza. Isto ocorre para a movimentação de
equipamentos e mobílias, não é possível utilizar as mãos
Forte interferência do cliente e de pois o trabalhador teria que retirar e colocar as luvas diver-
colegas de outros setores no processo sas vezes ao longo do dia. A movimentação é dificultada
O cliente participa ativamente durante a prestação do pela ausência de rodízios nos móveis e equipamentos.
serviço. Exceto nos casos das limpezas terminais, o paci- Outra questão está ligada à utilização constante dos
ente está presente durante a limpeza e a sua interferência membros superiores, pois todo trabalho depende das mãos e
ocorre das maneiras as mais diversas. É muito comum que o esforço exigido também é modulado pela qualidade e pelo
haja conversas entre o trabalhador e o paciente, este pode tipo de equipamento. Os trabalhadores referem que o rodo,
pedir explicações sobre um determinado procedimento de os panos e o “mop” são responsáveis por dores nos mem-
limpeza, dar palpites com relação à qualidade do serviço, bros superiores. Por exemplo, o pano é torcido em torno de
questionar sobre a toxicidade de um determinado produto, 3 a 4 vezes durante a limpeza de uma enfermaria. A força
reclamar dos odores, entre outros. Além disso, há uma empregada na torção deve ser elevada para deixar o pano
relação que se estabelece em que o trabalhador procura úmido e não encharcado.
apoiar a pessoa internada. Apesar de não fazer parte de seu Também relacionam a sua fadiga ao fato de que os
trabalho prescrito, ele observa o paciente, mostra interesse produtos nem sempre estão no local e no momento em que
pelo problema e busca consolá-lo. Em outras situações, se precisa. Os produtos de limpeza estão armazenados no
procura ficar o menos possível, pois também sofre com a armazém central. Esta política visa ao melhor controle do
situação. Todo este trabalho não é reconhecido pelos cole- consumo pela chefia, mas pode causar a ausência do produ-
gas e quase nunca é explicitado. Há também influência dos to adequado, no momento certo. Muitas vezes o funcionário
colegas de outro setor, estes interrompem o trabalho, para desperdiça tempo buscando os produtos, pois não há esto-
pedir que algo seja limpo. A própria dinâmica do trabalho que suficiente para atender às necessidades imediatas que
nas áreas influencia a limpeza, pois esta deve se adequar esteja nas proximidades.

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Análise do trabalho e serviço de limpeza hospitalar: contribuições da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho

EXEMPLOS DAS VARIAÇÕES aquilo que estão fazendo para atender a um chamado que,
NAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS no caso, deve ser respondido o mais rapidamente possí-
vel. Além da interrupção da atividade em curso, que por si
1. Os gráficos a seguir mostram a divisão das tarefas ao só já é um transtorno, a retomada da atividade interrompi-
longo dos turnos. A partir destes dados fica mais evidente da é uma dificuldade suplementar, uma vez que na maio-
que o trabalho é muito diferente de um turno a outro. Esta ria das vezes é necessário refazer parte da limpeza que já
variabilidade dificulta a gestão da área e traz diferenças havia sido feita.
significativas com relação ao trabalho desenvolvido pe-
los trabalhadores. Ressalte-se que ainda é comum haver Recomendações de melhoria
problemas entre as equipes, pois há tarefas que são deixa- Após a AET, foram feitas várias recomendações de melho-
das de um turno a outro, porque há principalmente falta ria, focadas em aspectos ligados a equipamentos e materiais,
de tempo (vide intercorrências). treinamento, organização dos horários considerando as peculia-
ridades dos setores, sugestão de maior flexibilidade e autono-
2. Os gráficos dos fluxos de atividades mostram o tempo mia criando equipes de trabalho, realização de programas com
utilizado para o desenvolvimento de diferentes ações em outros funcionários e usuários para aumentar os cuidados com
limpezas terminais. Cada quarto, cada situação, conforme a limpeza, melhoria da qualidade do mobiliário, instalação de
os exemplos mostrados, difere e os motivos são os mais rodízios para reduzir o esforço e consideração das necessida-
variados. Dentre os motivos, destacamos a quantidade de des de limpeza em futuras reformas a serem realizadas no
sujeira e as dificuldades com relação à limpeza das janelas. hospital. Ficou acordada com a direção do hospital a realização
de uma reformulação da área onde seriam considerados os
3. Outro fator importante que interfere de maneira significa- aspectos apontados neste estudo. Para tanto foi definido que
tiva com o curso das atividades são as chamadas fora de seria realizado um novo projeto, baseado em metodologias
rotina. Neste caso, as trabalhadoras precisam interromper derivadas da ergonomia de concepção.

Distribuição das tarefas ao longo do Três Principais Turnos do serviço de Desinfecção Hospitalar

Turno da Manhã Turno Tarde - 2o andar

Turno Noturno Turno da Tarde - 4o ao 6o andar

Limpeza concorrente
Limpeza terminal
Coleta e reposição de materiais

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Laerte Idal Sznelwar; Selma Lancman; Márcio Johlben Wu; Erica Alvarinho; Maria dos Santos

Task Name 15:48 15:55 16:02 16:09 16:16 16:23 16:30 16:37 16:44 16:51 16:58 17:05
Tirar o móvel do quarto
Limpeza de janela
Limpeza de parede
Limpeza de banheiro
Lavação e impermeabilização

Task Name 15:48 15:55 16:02 16:09 16:16 16:23 16:30 16:37 16:44 16:51 16:58
Tirar o móvel do quarto
Limpeza de janela
Limpeza de parede
Limpeza de banheiro
Lavação e impermeabilização

Task Name 15:48 15:55 16:02 16:09 16:16 16:23 16:30 16:37 16:44 16:51 16:58
Tirar o móvel do quarto
Limpeza de janela
Limpeza de parede
Limpeza de banheiro
Lavação e impermeabilização

Número de chamadas fora de rotina


SETOR 30/09/02 01/10/02 02/10/02 03/10/02
MANHÃ TARDE MANHÃ TARDE MANHÃ TARDE MANHÃ TARDE
Amb. 2
Berçário e Camb. 1
Biblioteca, Coletas, Anfiteatro 1 1
Clínica Cirúrgica 1 1 1 5
Clínica Médica 1 2 1 1
Lab., RX 1 1
Obstetrícia 1 2 1 2
Pa.s/Pronto Socorro 4 7 5 4
Pediatria 4 3
Pessoal, Refeitório, Banheiro 2
UTI e Semi 1
UTI-Ped. 1

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Análise do trabalho e serviço de limpeza hospitalar: contribuições da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho

Resultados do GRUPO DE REFLEXÃO tipo de preconceito é expresso ainda em comentários como:


Várias questões relevantes foram elaboradas no grupo de “Você está pensando que vai sair, entrou na limpeza, vai
reflexão. A seguir serão apresentadas e comentadas aquelas ficar na limpeza”. Alguns incorporam este preconceito e
que foram consideradas mais relevantes pelo próprio grupo. sentem vergonha de seu trabalho, chegam a mentir para seus
Ao longo de vários anos, foram construídas maneiras familiares e amigos sobre aquilo que fazem e se escondem
diversas de realizar as tarefas, a adoção de um estilo próprio quando algum conhecido chega ao hospital.
de limpar, de acordo com o que cada um entende como
“local limpo”. Isto se faz em detrimento dos procedimentos “(...) Aqui no trabalho, me sinto como um patinho
prescritos e, como exemplo, pode ser mostrada a maneira de feio: sozinha, deslocada, sem amigos, estranha”;
usar os produtos químicos. Alguns tendem a associar a “boa “(...) é difícil trabalhar cada dia com uma pessoa,
limpeza” ao cheiro exalado pelos produtos, até porque não falta companheirismo, conhecimento do outro...
há critérios objetivos para definir o que está ou não limpo. (...)”. “Não há conversa entre a gente, as reclama-
Alguns misturam vários produtos e água fervendo para criar ções são passadas diretamente para a chefia, em tom
uma “mistura limpa tudo” “poção mágica” e “coquetel”. de fofoca. Muitas vezes, são assuntos que nós mes-
Acreditam que assim, garantem uma melhor limpeza. mos podíamos resolver.”
O uso diferenciado, por vezes, até excessivo destes
produtos e os possíveis agravos à saúde por risco de A falta de comunicação fica evidente na passagem de
intoxicação pelo contato direto com a pele e/ou pela inala- plantão, quando o funcionário do turno anterior deve comu-
ção não os desencoraja a mudar estes procedimentos. Rela- nicar para quem vai substituí-lo quaisquer intercorrências,
tam inclusive que aqueles que adoecem são discriminados, atrasos ou falhas no serviço (áreas que ficaram sem ser
como nos relata uma trabalhadora: “... o funcionário que limpas). É comum ocorrerem situações de emergência que
não usar hipoclorito sofre discriminação” (...) “eu tenho impedem o funcionário de realizar o trabalho previsto,
tóxico no sangue” (...) “eu não posso, e aí me mandaram obrigando-o a limpar alguma área extra. Quem assume o
trabalhar em escritório” (...) “eu gostava dessa mistura, aí posto deve compensar eventuais “lacunas” que tenham
parei quando o médico me disse que eu ia ter uma parada ficado do turno anterior. Quando “sobra” algum trabalho
cardio-respiratória”. para o turno seguinte, o funcionário que assume a limpeza
Os critérios de qualidade de avaliação que são dirigidos comunica à chefia a falha como sendo do colega e não
aos trabalhadores não são claros, o que os leva a entender devida a eventos que ocorreram durante o trabalho. Essas
esses critérios como arbitrários. Isso acaba gerando diver- situações são comuns e estão relacionadas com intercorrên-
sas situações de disputa entre trabalhadores e processos de cias próprias de um hospital, mas a falta de comunicação
delação, quando julgam “um trabalho malfeito”. faz com que os trabalhadores se sintam pessoalmente pre-
A delação e a busca de uma aproximação e colaboração judicados. É importante ressaltar que a organização do
com a chefia acaba sendo uma forma de se obter pequenos trabalho não prevê horários para as passagens de plantão
privilégios, tais como organizar a escala de plantão. A onde os que estão saindo do trabalho possam informar aos
falta de reconhecimento do grupo e da chefia pelo esforço que chegam dos eventos e intercorrências do turno anterior.
em realizar um trabalho “bem feito” compromete a relação À noite, sem a chefia presente, os trabalhadores se orga-
de cooperação entre eles e propicia uma perda de motiva- nizam com mais autonomia, todos são responsáveis por
ção diante da impossibilidade de verem seus esforços todos os locais. Isso termina por melhorar as relações entre
reconhecidos. Este reconhecimento vem, por vezes, de eles neste turno.
outros grupos, como dos pacientes internados e da equipe Para eles, o reconhecimento mais importante pelo seu
de enfermagem. trabalho está justamente no fato de trabalharem num hospital
Referem também uma desvalorização social do seu traba- e a importância da limpeza para o bom funcionamento deste..
lho, o que os leva a preferirem fazer parte de outras equipes “(...) se não houvesse a limpeza na sala cirúrgica não havia
a se reconhecerem como integrantes do grupo da limpeza. meios do médico entrar”; “(...) dá para sentir um certo
Por vezes, relatam fazer parte da equipe cirúrgica, da pedia- orgulho, pois se não fosse a limpeza como seria a infecção no
tria etc. É com estas outras equipes que eles tentam estabele- hospital? Acho que contribuo para a saúde”. Afirmam tam-
cer um coletivo de trabalho, relações de identidade como bém que trabalhar numa instituição de saúde, responsável
grupo, mecanismos de cooperação e convivência. pela cura, já lhes traz satisfação, mesmo quando sabem que
Relatam que esta desvalorização é patente em relação aquilo que fazem na limpeza é pouco ou nada reconhecido.
aos próprios colegas da limpeza. Por exemplo, quando Por outro lado, referem, a exemplo de outros estudos
alguém demonstra surpresa ao vê-los lendo jornal, ou estu- realizados com pessoal de enfermagem, um elevado nível
dando, como se “fôssemos analfabetos, ignorantes”. Esse de sofrimento, pelo convívio e confronto com o sofrimento

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Laerte Idal Sznelwar; Selma Lancman; Márcio Johlben Wu; Erica Alvarinho; Maria dos Santos

dos pacientes com os quais acabam se envolvendo. Relatam e da desvalorização social da profissão. Nos parece que a
que, ao longo dos anos “ficaram mais frias”, e que “apren- necessidade de se confundir, ou mesmo de se esconder,
deram a não olhar muito para o leito da UTI”, mas isso não como sendo integrante de outras equipes é uma estratégia
impede que saiam do serviço “com o coração apertado”. defensiva. Por outro lado, a verificação de que o pessoal do
Há, também, outras funções não prescritas, imprevis- turno da noite, sem a interferência de chefias, se organiza
tas e invisíveis que os motivam durante o trabalho, tais como equipe, torna evidente que a questão da organização
como: ajudar crianças e pacientes perdidos a encontra- do trabalho é central. Estes exemplos mostram a importân-
rem seus parentes ou o local do atendimento, informar cia de se trabalhar simultaneamente os aspectos relevados
locais mal sinalizados, conhecer todos os problemas de na AET e na ação baseada na abordagem psicodinâmica
manutenção do hospital. Referem também que, muitas para aprimorar o processo de transformação.
vezes, escutam os pacientes, conversam com eles, tentam As escolhas que serão feitas para a concepção das mu-
a sua maneira confortá-los. Em algumas situações são os danças dependerão de vários aspectos ligados à capacidade
primeiros a presenciar uma crise, acodem a pessoa e de investimento da instituição, dos resultados de negocia-
tratam de chamar socorro rapidamente. Se sentem como ções internas e ressalte-se que o envolvimento dos trabalha-
“parte do corpo clínico”. O fato de também ajudarem o dores será determinante nas escolhas. Acreditamos que é
público lhes traz satisfação, pois favorece o reconheci- importante criar condições para que se possam aumentar as
mento daquilo que fazem, é comum receberem elogios possibilidades de colaboração, com o fortalecimento das
dos usuários. Nada disso é reconhecido formalmente, equipes e das condições materiais de trabalho. Todavia é
inclusive porque não recebem instruções e treinamento a importante que seja considerado que os processos de mu-
respeito destes assuntos. dança têm melhores resultados se forem respeitadas a histó-
Estes resultados mostram que a dificuldade de se consti- ria da instituição e a trajetória do grupo.
tuírem como um grupo termina por dificultar também a Estes resultados nos mostram que aplicar uma racionalida-
solidariedade que diante do convívio com o sofrimento do de oriunda de apenas um método de análise pode ser uma
paciente. Outros trabalhos feitos junto a trabalhadores de aposta fadada a um sucesso parcial, uma vez que a construção
enfermagem mostraram como a solidariedade e a convivên- de soluções seria baseada em uma distorção, em uma escuta
cia são importantes mecanismos defensivos diante do parcial. A desconsideração de aspectos defensivos que pode-
sofrimento gerado pelo cuidado a enfermos (Molinier, riam ser superados através de um novo desenho do conteúdo
1995). da tarefa, da organização do trabalho e do reconhecimento da
profissão poderá comprometer os resultados.
DISCUSSÃO E CONCLUSÃO Os resultados dessas duas ações, uma baseada na ergono-
mia e outra baseada na abordagem da psicodinâmica do
A utilização de duas metodologias para estudar o traba- trabalho, se confundem no caso aqui apresentado. Apesar
lhar de um mesmo setor, no caso o da limpeza de um de haver uma proposta inicial para tentar separar a utiliza-
hospital universitário, trouxe uma série de resultados inte- ção das duas disciplinas, visto que cada uma delas enfoca
ressantes e desafios quanto à interpretação dos resultados e aspectos diferentes do trabalhar, há momentos em que esta
à possibilidade de ação. A separação do que pode ser separação fica comprometida. Explicamos este fato, pois a
objetivado em um processo de análise, resultado da aborda- equipe de pesquisadores trabalhou em conjunto durante
gem proposta pela Análise Ergonômica do Trabalho (AET), uma boa parte do processo e isto pode ter influenciado tanto
e questões subjetivas, reveladas por outros métodos clínicos o ponto de vista dos integrantes quanto o dos próprios
de análise do trabalhar, como o proposto pela Psicodinâmi- trabalhadores envolvidos com as análises. Apesar dessa
ca do Trabalho, é um recorte epistemológico que permite intersecção, há resultados que são claramente distintos. Por
analisar o mesmo fenômeno sob óticas diversas. A decom- exemplo, a AET trouxe dados significativos sobre as dife-
posição de um ato único e singular em aspectos diferentes renças com relação ao tempo, a interferências no trabalho, à
nos traz resultados diversos, aparentemente contraditórios. utilização dos produtos, a seqüência de ações, entre outros.
Isto fica evidente quando a AET mostra a importância de se Porém, as discussões em grupo trouxeram à discussão uma
criar grupos de limpeza, baseados em conceitos oriundos da série de aspectos ligados à subjetividade do trabalho. Este
sociotécnica (grupos semi-autônomos), e os resultados do fato pode reforçar um dos dilemas da AET, que seria o
grupo de expressão mostram a tentativa dos funcionários da recorte entre o que é objetivável e aspectos psíquicos que
limpeza de se identificarem com outras áreas do hospital podem desestabilizar as pessoas envolvidas, interferindo
onde eles estão prestando serviços (por exemplo: cirurgia, inclusive no próprio andamento do trabalho. Neste caso,
pediatria). Em parte, este fato ocorre por questões ligadas ao está em questão o próprio conceito do que seria a técnica,
não-reconhecimento da importância do trabalho da limpeza uma vez que o estilo no trabalhar depende do conhecimento

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Análise do trabalho e serviço de limpeza hospitalar: contribuições da ergonomia e da psicodinâmica do trabalho

técnico, mas é modulado por quem executa, detentor de uma de gênero profissional. É também um sinal claro que o
vivência única (Clot, 1999). pessoal de limpeza faz parte, mesmo que isto não seja
No que tange ao dilema da abordagem da psicodinâmica reconhecido, da equipe de atenção ao paciente.
do trabalho, espera-se que o processo de reflexão possa Este trabalho nos mostrou que há interesse em se utilizar
desencadear melhorias concretas na tarefa, mas o fato de o de maneira complementar as duas abordagens pois, além de
grupo não ter em mãos um relatório que especifique ques- enriquecer os resultados, o tipo de envolvimento dos traba-
tões ligadas à tarefa e às propostas de melhoria, que serviriam lhadores e da hierarquia pode facilitar as futuras transfor-
para negociações futuras, pode ser uma limitação para a mações. Isto não significa que estamos propondo uma mis-
negociação das transformações. tura, ou a somatória delas. É fundamental que se mantenha
Uma outra questão é o risco mostrado neste trabalho de a diferença entre elas, pois a miscigenação das duas pode-
que uma mudança que não considere o ponto de vista dos ria trazer vieses conceituais e metodológicos que desca-
trabalhadores com relação a sua própria identificação com o racterizariam as disciplinas e não trariam resultados signi-
trabalho possa ser um entrave, pois criaria as conhecidas ficativos.
“resistências às mudanças”. O processo de transformação é Um tipo de ação que busque trazer à tona aspectos do
sempre de duas vias, a transformação da organização do trabalho que, no mais das vezes, ficam restritos à intimidade
trabalho em um determinado setor traz uma mudança no dos trabalhadores, invisíveis aos outros atores da produção
conteúdo das tarefas e poderá desencadear um processo de e também aos próprios clientes, permite talvez pela primeira
melhor identificação com o trabalho. No caso em questão, o vez que se reconheça o trabalhar deles. Isto pode ter conse-
fato de haver uma maior identificação dos trabalhadores qüências positivas, pois colocará no espaço público ques-
com a equipe das clínicas é, em parte, resultante de um tões relativas às dificuldades que eles encontram, sejam elas
trabalho cuja organização coloca em cheque a própria exis- relativas à atividade executada ou ainda com relação ao
tência do coletivo, que favoreceria o que Clot (1999) chama sofrimento psíquico.

Artigo recebido em 10/05/2004


Aprovado para publicação em 21/12/2004

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José Marçal Jackson Filho

Desenho do trabalho e patologia organizacional:


um estudo de caso no serviço público

JOSÉ MARÇAL JACKSON FILHO


FUNDACENTRO/SC
E-mail: marcal@fundacentro.sc.gov.br

Resumo
A noção “patologia organizacional” parece propícia para descrever a precariedade do funcionamento do setor
público e explicar o adoecimento dos servidores. Neste trabalho, baseado em estudo de caso em uma instituição
pública, o funcionamento organizacional, suas conseqüências e o processo social de desenho do trabalho são
descritos. Mostra-se que: o serviço apresenta características nítidas de “organização patológica”, isto é, alta
prevalência de problemas músculo-esqueléticos, funcionamento precário e pouca margem de ação da direção local;
os problemas de funcionamento estão associados à fragilidade do processo de desenho do trabalho, caracterizado
pela falta de competências em gestão da produção, inexistência de serviços de apoio (organização e métodos,
arquitetura, etc.), pouca margem para contratações. Como muitas instituições apresentam problemas semelhan-
tes, conclui-se que, caso o governo brasileiro pretenda se contrapor ao processo histórico de precarização dos
serviços prestados aos cidadãos, ele deve re-conceber o desenho do trabalho e as estruturas disponíveis nas
instituições públicas.

Palavras-chave
Organização, serviço público, patologia organizacional, desenho do trabalho, adoecimento.

Work design and “sick workplace syndrome”:


a case study in a public institution
Abstract
The notion of “sick workplace syndrome” is appropriate to describe the poor working conditions of many public
organizations and to explain the health problems of public workers. In this paper, a case study in a public institution
was carried out; its organization and its work design process were described. The results show that: this Public
Institution “suffers from” a “sick workplace syndrome”, i.e., there are a high prevalence of musculo-skeletal
disorders, many organizational failings and lack of control by local managers; the organizational problems are
associated to the limitations of the work design process due to the lack of knowledge in industrial engineering and
public administration, lack of support by specific design services and small latitude to hire new workers.

Key words
Organization, public sector, “sick workplace syndrome”, work design, occupational illness.

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Desenho do trabalho e patologia organizacional: um estudo de caso no serviço público

INTRODUÇÃO cidadãos, baseados nos princípios que lhe são próprios –


eqüidade, justiça –, é objetivo deste artigo, a partir da
Para abordar a problemática das relações entre Organiza- reflexão sobre o estudo de um caso, descrever os proble-
ção do Trabalho e Psiquismo Humano, trataremos neste mas de funcionamento de uma instituição e o processo
artigo da influência dos modos de organização sobre o social de desenho organizacional (e do trabalho), para
adoecimento dos trabalhadores do setor público. discutir sobre a necessidade de re-conceber tal processo de
Os efeitos das formas de organização do trabalho sobre o forma ampla (sua estrutura, atores e referencial teórico-
funcionamento psíquico dos trabalhadores de vários setores metodológico).
são objeto de vários estudos no campo da Psicodinâmica do
Trabalho (DEJOURS, 2000). Diversos estudos de natureza PREVALÊNCIA DE LER/DORT, PATOLOGIA
epidemiológica têm mostrado associações entre fatores de ORGANIZACIONAL NOS SERVIÇOS PÚBLICOS
risco organizacionais (ou psicosociais) e o adoecimento E PROCESSO SOCIAL DE DESENHO
mental (MUNTANDER e EATON, 1998), músculo- ORGANIZACIONAL
esquelético (LIM, SAUTER e SWANSON, 1998) e até
cardiovascular (THEOREL e JOHNSON, 1998) dos traba- O governo federal admite a relação entre adoecimento
lhadores de vários setores. dos servidores públicos e suas condições de trabalho, ao
Além disso, assiste-se, atualmente, a processo de inten- afirmar publicamente que 24,7% das aposentadorias de
sificação do trabalho e à introdução de diferentes formas servidores se devem a problemas de saúde decorrentes do
de racionalização, que decorrem da re-estruturação produ- trabalho1.
tiva e da economia (WINKEL e WESTGARD, 2001). A A precariedade das condições de trabalho, caracteriza-
maior intensidade do trabalho, que se materializa atra- da por meios e equipamentos insuficientes e inadequados,
vés de maior ritmo imposto de trabalho, menos tempo espaços mal desenhados, práticas gerenciais distantes da
para pausas, maior pressão das chefias e diferentes realidade, dentre outros, tem sido descrita em vários estu-
formas de intimidação, está associada ao aumento da dos [por exemplo, ASSUNÇÃO (1998), JACKSON e
prevalência dos problemas de saúde dos trabalhadores BARCELOS (1999) e SOUZA e MINAYO (2003)], inte-
(HAMON-CHOLET e ROUGERIE, 2000; DAUBAS- ressados pelo desempenho dos trabalhadores que atendem
LETOURNEUX e THÉBAUD-MONY, 2002). os cidadãos nos órgãos públicos.
No entanto, a reflexão sobre situações de trabalho com Além disso, o setor público submete-se, assim como o
alta prevalência de trabalhadores doentes mostra que o setor privado, a processo de intensificação do trabalho e a
próprio serviço ou setor também sofre de certa “patologia diferentes formas de racionalização. Dentro desse contexto
organizacional” (DANIELLOU, 1999). Nesses casos, po- difícil, atuam os servidores públicos, pressionados, tam-
dem ser encontradas fontes de perda de produtividade não bém, por cidadãos mais conscientes de seus direitos
detectadas pela empresa e que agravam a situação dos (CHAUVIÈRE e GODBOUT, 1992) e impacientes com a
trabalhadores. “ineficiência” do funcionamento dos serviços (saúde, segu-
A noção “patologia organizacional” parece, de um rança pública, justiça).
lado, bem propícia para descrever o funcionamento dos Assiste-se, por isso, à introdução, na tentativa de
serviços do setor público. De certa forma, o serviço “reforma da gestão pública” (SKALEN, 2004), de méto-
público no Brasil tem sofrido desse “mal” de forma dos e de ferramentas de gestão utilizados no setor priva-
crônica e a “desmotivação” do servidor público pode ser do, visando aumentar a eficácia da prestação dos serviços
outra forma de expressão (“sintoma”) de patologia orga- públicos. No entanto, eles nem sempre estão adequa-
nizacional. Por outro lado, toda organização resulta do dos à realidade de funcionamento (RAVEYERE e
trabalho de determinados atores internos ou externos ao UGHETO, 2002) e não atingem, necessariamente, os
conjunto da empresa (CARBALLEDA, 2002), distribuí- resultados esperados (SKALEN, 2004).
dos em determinados setores dos órgãos públicos ou das Deve-se ressaltar que, no caso brasileiro, a adoção de
empresas (organização e métodos, engenharia, qualida- tais medidas pelo governo anterior, guiadas pela raciona-
de, etc.), ou ocupando cargos de chefia. Assim, a descri- lidade econômica predominante, não visava necessaria-
ção do processo social de desenho do trabalho e da mente melhorar a prestação de serviços, mas, ao contrá-
organização é fase fundamental para a compreensão das rio, seu móbile principal era reduzir o papel do Estado
formas “patológicas” e de suas “fontes geradoras”, e para (OLIVEIRA, 1999).
transformar o próprio processo de desenho do trabalho. Nesse quadro, não haveria forte associação entre o
Partindo do pressuposto que o atual governo pretende adoecimento dos servidores e a degradação do funciona-
melhorar o funcionamento da prestação dos serviços aos mento dos serviços públicos? Ou em outras palavras, a

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José Marçal Jackson Filho

prevalência de LER/DORT não seria sintoma de “patologia Como sair desse impasse? O autor argumenta a impor-
organizacional”, como propõe Daniellou (1999)? tância de incluir a dimensão “política”, isto é, a vontade
relativa ao futuro, no processo de transformação da situa-
Patologia Organizacional ção. Assim, para enfrentar a prevalência de LER/DORT
Daniellou (1999) propõe a expressão “patologia orga- na empresa, é preciso considerá-la como questão estraté-
nizacional” ao refletir sobre intervenções de natureza gica, isto é, como desafio para a sobrevivência da empre-
ergonômica no enfrentamento de situações de trabalho sa (ou da fábrica) e não apenas tratá-la do ponto de vista
contendo alta prevalência de problemas músculo- estritamente técnico ou médico.
esqueléticos2. Embora Daniellou tenha feito referência ao setor pri-
Afirma que, nessas situações, não somente os trabalha- vado (em especial, industrial), suas considerações sobre
dores sofrem, mas, também, os funcionários da hierarquia a caracterização de situações de “patologia organizacio-
intermediária e os membros da administração do estabeleci- nal” e sobre seu enfrentamento merecem ser considera-
mento. das para o entendimento e transformação do funciona-
De um lado, os trabalhadores da hierarquia inter- mento dos serviços públicos.
mediária sofrem, pois são submetidos pela empresa a
injunções implícitas do tipo “tendo ou não vassoura, Relação entre o adoecimento e as
varra de qualquer jeito”; “isto quer dizer que são leva- características do desenho organizacional
dos a difundir, no sentido descendente, as mensagens e do trabalho no serviço público
vindas da direção, sem possibilidade de transmitir, no A alta prevalência de problemas músculo-esqueléticos
sentido ascendente, as dificuldades encontradas no co- compromete o funcionamento dos serviços públicos. Ela
tidiano, para que soluções sejam estudadas no médio indica, em primeiro lugar, certa crise no desenho e desen-
prazo” (p. 34). De outro lado, os membros da adminis- volvimento de políticas públicas. Em segundo, aponta
tração sentem-se impotentes para mudar a situação, para a insuficiência do processo social institucionalizado
pois têm pouca margem de manobra para enfrentá-la. de desenho organizacional e do trabalho.
Nota-se, nelas, funcionamento paradoxal caracteriza- Sabe-se que as instituições públicas não possuem nem
do por: estruturas formais de desenho da organização e do traba-
1) “Fonte de perda de produtividade não detectada pela lho nem setores de apoio à “produção de serviço”, como
empresa”; “qualidade, marketing, engenharia de processo, organi-
2) Tentativa de compensação dessa perda de produtividade zação e métodos, dentre outros”.
através de pressão direta sobre os ritmos de trabalho ou Por outro lado, o referencial teórico-metodológico
sobre os efetivos; utilizado é insuficiente: o desenho das organizações e
3) Agravação da perda de produtividade devida aos efeitos das tarefas necessárias é feito, em muitos casos, sem
secundários dessa pressão” (p.36). várias informações e conhecimentos fundamentais e
por profissionais sem qualificação em administração
Além dos “sintomas” enunciados acima, seja a alta pública ou engenharia de produção. Na maioria das
prevalência de problemas músculo-esqueléticos, seja o fun- vezes, os “projetistas” (chefias, em geral) desconhecem
cionamento precário e pouco eficiente, a deterioração das as atividades efetivamente realizadas pelos servidores e
relações no trabalho [formas de estresse relacional acabam por desconsiderar elementos essenciais para o
(WELLER, 2002)] surge como outro sintoma de “organiza- projeto da nova organização (GUERIN et al., 2001).
ções doentes”. São deixados de lado aspectos importantes, também,
Enfim, “pode-se associar as situações geradoras de pro- pois não são empregados métodos participativos na
blemas músculo-esqueléticos a uma síndrome geral de condução de projetos técnico-organizacionais
sentimento de impotência”. (p. 34; em negrito pelo autor) (DUARTE, 2002).
Daniellou destaca a situação dos dirigentes de fábrica Para suprir essa insuficiência, assiste-se à importação
que enfrentam problemas de LER/DORT nas suas depen- de modelos e técnicas usadas no setor privado, sem a
dências. Segundo ele, os dirigentes possuem pouca mar- devida reflexão sobre sua aplicabilidade no funciona-
gem de ação, pois sua fábrica depende de um cliente mento dos serviços públicos (RAVEYRE e UGHETO,
principal ou único, ou pertence à empresa multinacional 2002). A organização que resulta desse processo social
(cujo processo decisório encontra-se distante) e ou atua não é, na maioria dos casos, suporte conveniente para as
em setor de forte concorrência mundial. Pode-se inferir atividades dos servidores (RAVEYRE e UGHETO,
que a capacidade de re-desenho organizacional, em senti- 2002), mas acaba impedindo ou dificultando a realização
do amplo, está comprometida. dos serviços para os cidadãos. Embora o objetivo do

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Desenho do trabalho e patologia organizacional: um estudo de caso no serviço público

processo social não seja explicitamente o de impedir as organização da agência.


atividades dos trabalhadores, como no caso das ativida- Nesta unidade da AGPC, um AE assume a direção
des de teleatendimento (SZNELWAR e ARBIX, 2003), geral, através de processo de votação interna, tendo
o impedimento ao trabalho devido à falta de meios como atribuição a gestão administrativa. Nela, os AEs
materiais e de estrutura (por exemplo, JACKSON e atuavam nas várias divisões, pertencendo a cada divisão
BARCELOS, 1999), isto é, devido à existência de exi- por período determinado e, em seguida, passando a fazer
gências contraditórias entre objetivos e meios disponí- parte da equipe das demais. A DDD é a divisão responsá-
veis, provoca a perda de sentido do “trabalhar” e o vel por assegurar os direitos dos cidadãos.
sofrimento físico, psíquico e moral (HAMON-CHOLET Dezesseis AEs compõem a equipe da DDD, divididos
e ROUGERIE, 2000). em quatro áreas específicas de atuação. A equipe elege
anualmente um grupo de coordenação (um coordenador e
ESTUDO DE CASO dois vice-coordenadores), cujo papel é administrar o
funcionamento do Setor de Apoio.
A descrição apresentada adiante resulta de parte de
estudo ergonômico realizado em instituição pública que, O paradoxo da alta prevalência
por motivos confidenciais, será denominada de Agência de LER/DORT entre os servidores
Governamental de Proteção aos Cidadãos (AGPC). Pre- A alta prevalência de LER/DORT na Agência, em
tende-se, nesta parte do texto, analisar e descrever a especial na DDD, que deu origem ao estudo ergonômico
organização de uma divisão dessa Agência e o processo realizado, provocou grande desconforto na direção e em
social do desenho do trabalho e da organização. muitos AEs.
Em primeiro lugar, o problema das LER/DORT reme-
Métodos tia à dimensão simbólica, ou seja, à própria imagem da
Análise Ergonômica do Trabalho (AET) (GUERIN Instituição. Não parecia aceitável para vários AEs saber
et al., 2001) foi realizada para compreender a que, para proteger os cidadãos, o funcionamento da
prevalência de casos de problemas músculo- Agência estava associado ao adoecimento de outros cida-
esqueléticos no Setor de Apoio da Divisão de Defesa dãos, isto é, seus servidores.
dos Direitos (DDD).
Não serão apresentados, nes-
entro desse contexto difícil, atuam os
te texto, os resultados comple-
tos da AET, mas somente a aná-
lise realizada do funcionamento
da organização da DDD e do
D servidores públicos, pressionados, também,
por cidadãos mais conscientes de seus direitos
processo social de desenho do
trabalho e da organização.
Os métodos utilizados foram: entrevistas com servi- Em segundo lugar, o adoecimento importante de ser-
dores e agentes do Estado, análise de documentos e vidores, que era, ao mesmo tempo, resultante do modo de
observações no local de trabalho. organização e de funcionamento da divisão, era fator
determinante para o funcionamento precário, comprome-
Do papel e das características da AGPC tendo a prestação de serviços à sociedade e limitando a
A AGPC é instituição de papel relevante na proteção capacidade de atuação da Agência.
aos cidadãos e a seus direitos. Ela possui direção central em
Brasília e várias unidades nos diferentes Estados. Todas Evolução das demandas e da produção de serviços
as unidades são compostas de algumas divisões, dentre A Agência produzia “estatísticas” das demandas rece-
elas, a Divisão de Defesa dos Direitos (DDD). bidas e da produção de serviços realizados. O principal
Os Agentes de Estado (AE) têm atribuições regidas objetivo era disponibilizar dados da atuação da Agência
por lei específica distinta da dos servidores administra- ao público e à direção em Brasília para “prestar contas” à
tivos das várias divisões e setores. São autoridades que sociedade.
representam o Estado Brasileiro e, para tal, desenvol- Pode-se observar, na Tabela 1, que houve crescimento da
vem uma gama de atividades, sustentadas pelo poder de produção, observado através do número de acordos e de
envolver outras instituições governamentais em suas audiências realizadas, entre 1997 a 2002, com pequena
ações. Possuem total liberdade de ação, não são sujeitos redução em 2001. Com relação à demanda, houve cresci-
a hierarquia, o que torna muito complexa e particular a mento entre 1997 e 2000 e redução entre 2000 e 2002.

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José Marçal Jackson Filho

Não havia, todavia, instrumento de gestão disponível perdurou até 2003. O modo de organização baseou-se
para coordenar ações e para avaliar medidas visando na divisão dos servidores em 4 setores especializa-
melhorar o desempenho da Agência: a análise dessas dos: coordenação, contando com 2 servidores; con-
“estatísticas” não era feita para re-interrogar o funciona- trole/protocolo, com 3; atendimento, com 4; e execu-
mento dos serviços, mas, como dito acima, para justificar ção, 12. Segundo um AE, essa organização “tayloris-
o papel da instituição. ta”, pois foi baseada na divisão de tarefas, foi o único
modo possível encontrado para responder à demanda
Atribuições do Setor de Apoio à DDD por serviços. Na implantação dessa organização, o
O setor tem três funções principais: a primeira função setor foi posicionado em espaço único em outro an-
é “secretariar” as atividades dos dezesseis agentes de dar da Agência.
estado, isto é, atendê-los, encaminhar-lhes os documen-
tos, juntar documentos aos processos em curso, redigir e Características e problemas do funcionamento
enviar ofícios, requerimentos e convocações, secretariar por grupos especializados
reuniões; a segunda consiste em “proteger” os processos
em andamento e em acompanhamento, controlando sua Princípio de funcionamento e capacidade do setor
localização no espaço da AGPC; a terceira função é Toda demanda apresentada, dentro do campo de atua-
atender os cidadãos ou seus representantes que buscam ção da AGPC, era analisada pela DDD; a necessidade de
informações sobre processos. assegurar os direitos dos cidadãos se constitui no princípio
fundador do seu funcionamento. Contudo, apesar de não
A evolução das formas de serem conhecidos os limites do Setor de Apoio, sua capa-
organização do Setor de Apoio cidade de atendimento mostrou-se próxima do limite.
O grande aumento da demanda da atuação na DDD Como resultado da grande demanda social, os servido-
nos últimos cinco anos (considerando de 1997 a 2002) foi res passaram a conviver com grande quantidade de traba-
acompanhado pelo crescimento do número de servidores lho. Cada falta, período de férias ou licença prolongada
e de AEs: o número de AEs aumentou de 6 em 1997, para eram problemáticos para a chefia e colegas. Formaram-
10 em 1998 e16 em 2000 (número atual de AEs) e o se freqüentes mutirões para evitar o acúmulo de trabalho
número de servidores passou de 9 em 1997 para 21 em no setor, como os ocorridos em junho de 2002 ou em
2003 (2 deles encontravam-se em licença médica). É novembro de 2002.
importante notar que o aumento de servidores não ocor- Outro problema residia na dificuldade de distribuir de
reu na mesma proporção que o aumento de AEs! forma balanceada as tarefas para cada servidor, pois cada
Vários modos de organização foram introduzidos, visan- um, dentro de sua especialidade, atendia um grupo de
do maior efetividade do serviço3. AEs e cada AE possuía estilo próprio de trabalho, exigin-
Desde 1997, três modos de organização foram adotados: do mais ou menos dos servidores. Além disso, as mudan-
a) Um servidor secretariando de forma exclusiva a um AE, ças de AEs implicavam para os servidores aprender no-
modo que vigorou até o ano de 2000. vas formas de trabalho, com isso variando suas cargas de
b) A partir de 2000, foi instituído o modo cartorial, com trabalho.
a criação de três ofícios; os dezesseis servidores divi-
diram-se nos três ofícios, além de três servidores na Natureza do trabalho e qualificação requerida
secretaria. Cada ofício passou a ocupar espaço distin- Dos 21 servidores da DDD, 10 possuíam cargo de nível
to. Segundo alguns servidores, esse modo de organi- superior (2 deles estavam em licença médica) e 11 eram de
zação foi considerado o mais “duro”, sob o ponto de nível técnico. Não havia no serviço, no entanto, tarefas que
vista das condições de trabalho, pois as faltas de um exigissem necessariamente qualificação de nível superior.
colega sobrecarregavam os demais. As tarefas realizadas pelos servidores, embora envol-
c) Em 2001, novo modo de organização foi implantado, que vessem muita responsabilidade, eram na sua maioria

Tabela 1: Evolução da demanda e do número de audiências e acordos firmados.


1997 1998 1999 2000 2001 2002
Demandas recebidas 555 1.456 1.892 2.598 1.883 1.838
Audiências realizadas na Agência 443 967 1.364 1.571 1.264 1.908
Acordos firmados 53 283 465 507 479 596

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Desenho do trabalho e patologia organizacional: um estudo de caso no serviço público

monótonas e repetitivas – juntar documentos, numerar Entretanto, embora realizasse grandes esforços, seu
processos, redigir ofícios e convocações ou marcar reu- trabalho refletia o tipo de organização do Setor de Apoio:
niões, etc. Uma servidora do atendimento, ao descrever organização voltada ao curto prazo. Sua afirmação, “apa-
suas atividades, disse: “quando preciso conferir linha a gando fogo”, mostrava suas dificuldades em elaborar
linha deste formulário, sinto-me como uma ‘caixa’ de planejamento organizacional capaz de tornar mais efeti-
supermercados”. vo o funcionamento da secretaria.
De outro lado, eram obrigados a considerar vários Além disso, a servidora-chefe estava submetida, por
pormenores relativos a datas, pessoas, endereços, nos vezes, a injunções contraditórias. Em algumas situa-
documentos a serem juntados ou nas ordens recebidas. ções precisava tentar convencer o grupo de AEs e a
Além disso, trabalhavam sob pressão, pois qualquer erro administração da Agência que determinada medida, na
poderia significar advertência, e até processo adminis- iminência de ser tomada, poderia dificultar ainda mais o
trativo. Por exemplo, uma servidora fora repreendida por funcionamento da secretaria. Sua dificuldade maior re-
cometer erro na numeração das páginas de um processo. sidia no desconhecimento, por parte de alguns AEs, da
Outra servidora se expressou, com relação à situação realidade do funcionamento do serviço e, sobretudo, de
vivida por sua colega: “tudo isso é uma fobia”! seus problemas.
Segundo alguns servidores, os de
nível superior ingressaram no setor
s próprias atividades dos AEs estavam
para melhorar o atendimento aos
AEs, na época em que cada servidor
atendia a um AE. Com o aumento da
demanda por serviços, coube a eles
A se reduzindo às possibilidades e à
capacidade de atendimento do setor
realizar apenas tarefas básicas de
apoio aos AEs, o que aumentou sobre-
maneira o “custo (de produção)” dos serviços presta- Por exemplo, em dada ocasião, a Agência dispunha de
dos e causou grande desmotivação entre eles. orçamento para comprar novos mobiliários. A coordena-
dora (AE) da DDD pretendia comprar células de trabalho
Lógica de eficácia individual com divisórias elevadas para impedir as conversas entre
Diante da limitação da capacidade de atendimento do os servidores e sua desatenção. A servidora-chefe, no
Setor de Apoio, para poder cumprir seu papel e obter entanto, tinha receio quanto às conseqüências possíveis
melhores resultados em seus procedimentos, cada AE se dessa escolha, pois, de um lado, as conversas eram inte-
empenhava, a sua maneira, em influenciar o funciona- rações necessárias ao trabalho, sendo fundamentais para
mento do setor. De certa forma, cada AE baseava-se em dirimir dúvidas relativas aos processos e procedimentos
lógica de eficácia individual, contrariando, em determi- e, por outro lado, eram meio para amenizar o “clima
nadas situações, algumas regras e modos de funciona- pesado” no setor.
mento estabelecidos no serviço para atender de forma Nesses períodos de “negociação”, percebia-se que a
eqüitativa a todos os AEs. servidora-chefe sofria devido ao isolamento em que se
Algumas situações recorrentes ilustram esta contradição: encontrava (muitas informações eram consideradas confi-
• Embora houvesse modelos de documentos disponí- denciais) e devido ao “temor” ante as dificuldades futuras,
veis, no sistema de informática, alguns AEs exigiam caso as ditas medidas fossem tomadas. Sua posição era
dos servidores redação própria para seus documentos. extremamente frágil.
• A despeito do sistema de escala de servidores para
secretariar reuniões, alguns AEs solicitavam junto à As conseqüências desse funcionamento:
chefia do serviço os préstimos de servidores preferidos. os sintomas da patologia organizacional

O trabalho da chefia do Setor de Apoio Problemas de saúde e desmotivação dos servidores


O trabalho da chefia do setor era fundamental para A ocorrência de casos de problemas músculo-
tentar dividir melhor a quantidade de trabalho entre os esqueléticos é bastante importante no serviço: nos anos
servidores e para mobilizá-los ante a necessidade de reali- de 2001 e 2002 houve 7 no total de 13 casos na Agência,
zar mutirões. Tinha também papel fundamental no geren- sendo que os servidores do setor representavam um quar-
ciamento de conflitos entre servidores, e entre servidores to (25%) do total de servidores. Além disso, havia
e AEs. Sua carga de trabalho era enorme, pois, além das prevalência importante de casos de distúrbios do com-
tarefas supracitadas, realizava séries de tarefas “técnicas”. portamento (relatados informalmente).

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José Marçal Jackson Filho

Os problemas de funcionamento do setor refletiam sua a eficácia de determinadas ações da DDD. Constituía-se,
“má fama”; muitos servidores expressaram sua intenção assim, como gargalo para certos procedimentos.
de deixar o setor ou a Agência. Alguns indicadores, Embora estudos visando conhecer os fluxos existen-
relativos às características do grupo de servidores, con- tes, os volumes, os gargalos, as durações médias, entre
firmavam a situação: os servidores possuíam média de operações e procedimentos completos, não tivessem sido
idade, 33,9 anos, bem inferior à dos demais da AGPC, realizados, suspeitava-se que a duração entre operações e
38,5 anos, e menor média de tempo de serviço, 4 anos procedimentos era muito longa.
contra 6,3 anos do total de servidores. A organização vigente à época podia ser considerada
A rotatividade dos servidores também foi importante como impeditiva ao desenvolvimento intelectual dos ser-
no período. A título de exemplo, no ano de 2001, do total vidores. Por outro lado, era um modo que aumentava a
de 19 servidores, três servidores deixaram a Agência e rigidez de funcionamento do sistema e, nesse sentido, as
dois se transferiram para outros setores. próprias atividades dos AEs estavam se reduzindo às
possibilidades e à capacidade de atendimento do setor.
Retrabalho e erros freqüentes
A grande contradição do funcionamento – o retrabalho Do processo social de desenho
existente – era visível durante curtos períodos de obser- do trabalho e da organização
vação: reuniões eram marcadas, canceladas e remarca- Antes de descrever o processo social, apresentaremos
das, documentos eram refeitos freqüentemente, dentre de forma sumária algumas características da evolução
outros problemas. dos modos de organização de 1997 a 2003.
As causas do retrabalho eram variadas: a falta de comu-
nicação entre AEs, as trocas de AEs na DDD, dificuldade As características da evolução da organização
de relação entre AEs e servidores, falta de entendimento A evolução dos modos de organização foi “puxada”
das ordens escritas, “erros”, e, sobretudo, a inexistência de pelo aumento da demanda social. No entanto, diante do
formas preventivas de “controle da qualidade”. processo social de desenho do trabalho existente, ela teve
Os erros dos servidores eram objeto da preocupação as seguintes características:
dos AEs nas reuniões do colegiado. Eram, de certa forma, • Houve a realocação dos “recursos humanos” disponí-
conseqüência natural do sistema de funcionamento, de- veis, isto é, servidores com cargo de nível superior passa-
vido à grande quantidade de tarefas a realizar, à natureza ram a executar tarefas que normalmente seriam atribuídas
das tarefas e à inexistência de meios para conferi-las, à a apenas servidores com cargo de nível médio, para
“pressão” de alguns AEs, ao espaço insuficiente e à falta atender e tratar da demanda imediata.
de equipamentos. • A organização da DDD passou de modo de grande flexi-
bilidade – atendimento personalizado aos AEs – para
Crise de relações modo rígido, no qual a liberdade de ação dos AEs deveria
As relações no setor eram difíceis, devido, em parte, à conformar-se às regras de funcionamento do setor.
postura coercitiva de determinados AEs e à busca de • Não foram utilizados parâmetros de funcionamento do siste-
responsabilização pelos “erros” e pelos problemas de ma (volumes, fluxos, gargalos, tempos, etc.) como determi-
funcionamento. nantes para o redesenho organizacional. A reorganização
Grave crise ocorreu entre servidores que ocupavam reduzia-se praticamente a nova redistribuição de tarefas.
cargo de nível superior e os demais servidores, quando os • O processo de mudança organizacional não foi partici-
primeiros se mobilizaram para influenciar a criação de pativo, tendo sido conduzido pela equipe de coordena-
nova estrutura organizacional que lhes reservasse apenas ção dos AEs com a colaboração eventual da servidora-
tarefas de nível superior. chefe do Setor de Apoio.
Paralelamente, as relações entre os próprios AEs eram
tensas em determinadas situações. A divisão da grande Legitimidade e competência
quantidade de trabalho e os problemas de funcionamento para desenhar a organização
do Setor de Apoio, por serem temas de difícil solução de Os redesenhos do trabalho e da organização foram
consenso, tornavam as reuniões de coordenação em espa- feitos por coordenações distintas, que se sucederam na
ços de muitos conflitos. DDD. Tais mudanças tiveram como objetivo central ade-
quar a capacidade de atendimento à demanda da socieda-
Limitações do funcionamento de. Mas, diante da insuficiência dos modos de organização
Não havia servidores disponíveis para acompanhar os adotados, as mudanças não permitiram no longo prazo
AEs nas inspeções de campo, atividade fundamental para atender às necessidades da divisão: erros proliferaram,

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Desenho do trabalho e patologia organizacional: um estudo de caso no serviço público

retrabalho não pôde ser controlado e evitado, e algumas decisão central” e a dificuldade para influenciar os dire-
atividades tornaram-se gargalos para o sistema. tores da Agência Central, quanto ao ingresso de novos
Os AEs tinham competência requerida na “tecnologia servidores ou para obter meios mais adequados de traba-
jurídica”. No entanto, não possuíam competências em lho (equipamentos, espaço, etc.), também, determinaram
gestão da produção ou administração. Não possuíam, o modo de organização adotado.
também, suporte institucional (de serviço de organização Esses diferentes aspectos – a distância da instância
e métodos, por exemplo) para auxiliá-los no processo de central de tomada de decisões, a falta de serviços de
mudança organizacional. O “saber-fazer” dos servido- desenho do trabalho e da organização, a fragilidade (ou
res, também, não foi colocado a serviço das mudanças até inexistência) de instrumentos de gestão adequados, a
organizacionais. pequena margem de ação da gestão no nível local –
O centro de decisão, quanto a concursos (e à distribui- podem ser analogamente encontrados em outras institui-
ção de novos servidores) e orçamento, se encontrava em ções públicas do país (JACKSON e BARCELOS, 1999),
Brasília. De forma sistemática, os pedidos de novos o que explicaria, em parte, a precariedade de funciona-
servidores feitos pela Agência não foram aceitos na mento no setor público.
quantidade necessária e na qualificação
profissional (nível médio) solicitada.
ncontraram-se, como Daniellou (2000)
Dessa forma, os AEs tiveram pouca
margem de ação para influenciar o
desempenho do funcionamento da Di-
visão por meio das mudanças da or-
E afirmara, isto é, impotentes para
reverter a situação precária do atendimento
g a ni zação. Encontraram-se, como
Daniellou (2000) afirmara, isto é, im- do Setor de Apoio.
potentes para reverter a situação precá-
ria do atendimento do Setor de Apoio.
Pode-se fazer a hipótese de que alguns deles também De modo geral, a noção de patologia organizacional
sofreram com a situação. indica crise no desenho do trabalho e da organização que,
embora não seja exclusiva ao setor público, reflete, neste
DISCUSSÃO setor, o desinteresse histórico dos governantes pela pres-
tação de serviços para a comunidade.
A Agência analisada, neste texto, apresenta característi- Para agir e transformar tais situações, é preciso influen-
cas nítidas de organização patológica, isto é, alta ciar os modos de desenho do trabalho, da produção ou do
prevalência de problemas músculo-esqueléticos, relações serviço e de sua organização. Essa ação pode e deve ser
interpessoais tensas, funcionamento precário e pouca mar- guiada pelos referenciais teórico-metodológicos da En-
gem de ação da direção local. Viveu-se, efetivamente, uma genharia de Produção para gerir os sistemas de produção
“síndrome geral de sentimento de impotência”. de serviços, para projetar o trabalho e a organização e
Ao contrário de outros sistemas de produção ou serviço, para gerir os projetos de sistemas técnico-organizacio-
cuja organização é projetada explicitamente para restrin- nais (SLACK et al., 1996).
gir e impedir as atividades das pessoas (SZNELWAR e Contudo, para a Engenharia de Produção, os serviços
ARBIX, 2003), o modo de organização existente foi dese- públicos constituem-se em campo, pouco conhecido, de
nhado a fim de adequar a capacidade de atendimento do pesquisa e intervenção. A contribuição da Engenharia de
Setor de Apoio ao crescimento da demanda, por meio da produção deve se fundamentar na apreensão do “objeto
redistribuição das tarefas entre os servidores. da prática” (LIMA, 1994), isto é, a produção de serviços
Todavia, devido à indisponibilidade de informações públicos, para evitar a “utilização de modelos e princípios
(qualitativas e quantitativas) a respeito da produção e dos reducionistas, que visam antes, pragmaticamente, con-
fluxos de processos e documentos, das demandas para formar a realidade da produção e menos compreendê-la
atuação da Agência, as “cargas de trabalho” para as dife- em suas múltiplas determinações e em sua lógica
rentes tarefas não foram consideradas. A organização foi imanente”. (p. 74)
implantada restringindo as atividades dos servidores, em A Engenharia de Produção pode auxiliar, seguindo a via
particular dos que tinham cargo de nível superior, limi- proposta por Lima (1994), as Instituições Públicas a romper
tando a atuação dos próprios AEs e da Agência. com as práticas gerenciais, ainda fortemente influenciadas
A pouca margem de ação necessária para tomar deci- pelo taylorismo, permitindo, por que não, as condições para
sões essenciais no nível local, a distância do “centro de a participação plena dos servidores nos processos de mu-

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José Marçal Jackson Filho

dança técnico-organizacionais e até na gestão dos serviços. para a contratação de novos servidores deve ser acompa-
Deve ajudar, também, as Instituições Públicas a cumprir nhada de medidas concretas visando conhecer o trabalho,
seu papel social, favorecendo o desenho de serviços e de o funcionamento existente dos serviços públicos, a de-
sistemas de gestão que considerem em primeiro plano os manda social e repensar e reestruturar o processo social de
critérios de atendimento e respeito aos direitos dos cida- desenho e de gestão do trabalho nas instituições públicas.
dãos em detrimento da racionalidade econômica. Está lançado o desafio para o atual governo brasileiro,
Enfim, para o governo atual, torna-se fundamental ado- caso o mesmo se proponha de fato a realizar os programas
tar postura mais “agressiva” para enfrentar o adoecimento sociais previstos na última campanha eleitoral, e a se
dos servidores e a degradação do funcionamento dos ser- contrapor ao processo histórico de precarização dos servi-
viços prestados aos cidadãos. A realização de concursos ços e de desvalorização dos seus servidores.

Artigo recebido em 10/05/2004


Aprovado para publicação em 18/12/2004

 Notas
1. CONTATO, boletim eletrônico para emocionais ou psíquicos [por exem- 3. Após o estudo ergonômico, no- saúde dos servidores. Nota-se, des-
servidores do governo federal, n. 4, plo, DOUILLET E SCHWEITZER vas modificações foram introduzi- sa forma, o engajamento da dire-
15 de julho de 2003. (2002)]. O próprio Daniellou (1999) das na organização do setor. É im- ção da Agência para a resolução
refere-se freqüentemente ao sofri- portante ressaltar que, em tais mu- desses problemas, malgrado sua
mento dos vários atores da empresa danças (algumas ainda em curso), margem limitada de ação.
2. Alguns estudos mostram a associa- ao vivenciar situações com alta o móbile principal não foi a melho -
ção entre prevalência de problemas prevalência de problemas músculo- ria do funcionamento, mas o
músculo-esqueléticos e distúrbios esqueléticos. enfrentamento dos problemas de

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Entre a organização do trabalho e o sofrimento: o papel de mediação da atividade

Entre a organização do trabalho e o sofrimento:


o papel de mediação da atividade
JÚLIA ISSY ABRAHÃO
Universidade de Brasília
E-mail: abrahao@unb.br

CAMILA COSTA TORRES


Universidade de Brasília
E-mail: torres@unb.br

Resumo
Os modelos de organização do trabalho, em geral, não contemplam a flexibilidade necessária para lidar com as
situações variadas e complexas. Os trabalhadores, nesse contexto, desenvolvem estratégias, que muitas vezes
burlam as normas, mas propiciam melhores resultados na execução da atividade e na economia psíquica dos
sujeitos. Este estudo pretende ilustrar como elementos da organização do trabalho contribuem ou dificultam a
execução de tarefas nas quais o trabalhador é confrontado a situações críticas, sendo solicitado durante a jornada
a responder demandas, solucionar problemas e tomar decisões sob pressão temporal. O artigo é desenvolvido
tendo como suporte empírico um estudo de caso realizado numa central de atendimento.

Palavras-chave
Ergonomia, psicodinâmica do trabalho, organização do trabalho, central de atendimento.

Between work organization and suffering:


the mediation role of the activity
Abstract
Models of work organization do not usually consider the necessary flexibility in dealing with complex and varied job
situations. Within this context, strategies that sometimes cheat rules or norms are developed by employees. These
strategies may produce better task results and cognitive economy for them. This study aims to discuss how work
organization elements may either to make difficult or help employees under critical working conditions. That is,
situations in which workers are required to respond to demands, take decisions and problem solving under time
pressure. This paper is supported by empirics data from the results of the study realized in the call-center.

Key words
Ergonomics, work psychodinamics, work organization, call-center.

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Júlia Issy Abrahão; Camila Costa Torres

INTRODUÇÃO ções entre as distintas lógicas atuantes na situação de


trabalho, que demandam estratégias de regulação frente às
No processo de evolução do trabalho mudaram-se os normatizações, regras impostas e cobranças rígidas
conceitos, os parâmetros, as metas, os objetivos, as formas (ABRAHÃO e SANTOS, 2004).
de ver e de fazer. O trabalho foi se moldando às novas Contudo, esta modalidade de gestão é incongruente
configurações da realidade e da sociedade, se adaptando às com a natureza do trabalho de teleatendimento, marcado
tarefas e às suas exigências. O trabalhador deixou de ser o pela complexidade das tarefas, pela necessidade de coope-
executor e passou a assumir o controle das máquinas, plane- ração atendente-cliente e pelas ações mediadas por artefa-
jadas para minimizar o custo do trabalho e maximizar a tos tecnológicos (TORRES, 2001; GUBERT, 2001; SAN-
produtividade. TOS, 2002).
Nesse contexto, as mudanças são mais profundas e nem Assim pode-se dizer que nas centrais de atendimento
sempre podem ser observadas diretamente; não são apenas ainda vigoram os princípios tayloristas, principalmente, o
desenvolvidas novas tarefas ou novas funções, são novas controle rigoroso, a divisão de tarefas e a pressão temporal
competências, outras formas de executar e de organizar o para produção, sendo uma das conseqüências deste modelo
trabalho que se configuram. Esses ambientes primam por de gestão, amplamente utilizado nas centrais de atendimen-
atividades que requerem habilidades de processamento rá- to, os danos à saúde dos trabalhadores, que apresentam
pido e eficaz das informações, capacidade de antecipar queixas de sobrecarga, que se manifestam sob a forma de
momentos críticos e solucionar problemas. dores, tensões, lesões e até síncopes nervosas (ABRAHÃO
Nas situações em que a natureza da atividade implica e SANTOS, 2004).
resolução de problemas e tomada de decisões, a organização Este artigo pretende ilustrar como elementos da organi-
do trabalho, responsável pelas regulamentações, assume um zação do trabalho, em uma central de atendimento, contri-
papel determinante. Ela pode contribuir para a melhoria dos buem ou dificultam a execução de tarefas nas quais o
espaços de resolução de problema ou, ao contrário, restringir trabalhador é confrontado a situações críticas, sendo solici-
as possibilidades definindo regras que inviabilizam a mani- tado a responder às demandas, solucionar problemas e
festação dos saberes acumulados ou da criatividade resultan- tomar decisões sob pressão temporal. Os resultados apre-
te da articulação de outras competências. sentados ao longo deste artigo têm sua origem em um estudo
A organização do trabalho influencia o planejamento, a de caso, realizado por Torres (2001), em uma central de
execução e a avaliação, permeando todas as etapas do atendimento em que a natureza do trabalho e o modelo de
processo produtivo. Ela prescreve normas e parâmetros que gestão, sobretudo a questão do controle exercido exempli-
determinam quem vai fazer, o que vai ser feito, como, ficam a problemática levantada. Os dados foram reorgani-
quando e com que equipamentos/instrumentos; em que zados e recortados com o intuito de ilustrar outra face da
tempo, com que prazos, em que quantidade, com que quali- problemática estudada pela autora.
dade, enfim, a organização do trabalho constitui a “viga Adotam-se, como suporte teórico, os pressupostos da
central” da produção. Ergonomia articulados aos construtos da Psicodinâmica do
Considerando as tantas transformações ocorridas é nor- Trabalho. Nesse percurso, busca-se examinar a natureza do
mal também esperar que a organização do trabalho tenha se trabalho e as formas de controle da organização, bem como
transformado. Afinal, desde a Organização Científica do seus efeitos sobre os operadores, a partir da diferenciação
Trabalho – OCT, de Taylor, muitas outras escolas despon- entre o prescrito e a atividade, evidenciando: a natureza do
taram. No entanto, quase todas elas guardam, nos seus controle da organização sobre os operadores; as estratégias
princípios, resquícios da OCT. O que se questiona hoje é se por eles elaboradas como forma de minimizar as exigências
os modelos vigentes são compatíveis com as exigências das afetivas e cognitivas da atividade; a rotatividade e o
novas configurações do mundo do trabalho. absenteísmo como manifestações de mal-estar no trabalho.
O novo taylorismo é o modelo de organização do traba- É importante salientar que trabalhar na perspectiva da
lho adotado nas centrais de atendimento, a cadência é dinâmica psíquica ou da dinâmica da atividade implica em
determinada por ritmos elevados e pelo controle permanen- pressupostos diferentes. No entanto, o que se pretende ao
te das ações. O sistema de controle é contraditório em propor uma articulação é apontar a complementaridade
tarefas que solicitam cooperação nas interações de trabalho entre as abordagens.
com possíveis reflexos na saúde dos trabalhadores. A pre- Wisner (1990), ao cotejar as duas disciplinas, apontou
sença de padrões rigorosos de execução e de pressão tempo- para esta possibilidade ao identificar os limites da análise
ral restringe as complexas inter-relações que se estabelecem ergonômica – AET. Ele cita como exemplo a dificuldade da
na atividade para cumprir sua função. Dores e tensões AET em mostrar a ansiedade que emerge nas situações
podem refletir uma sobrecarga proveniente das confronta- críticas. E ainda, de explicar como os operadores fazem

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Entre a organização do trabalho e o sofrimento: o papel de mediação da atividade

para manter seu comportamento e atitudes habituais e res- aplicabilidade a partir de dados empíricos.
ponder satisfatoriamente ao modelo de excelência vigente. Nesse sentido, por exemplo, o conceito de representa-
Nesse sentido, a Psicodinâmica agrega conhecimentos à ção assume um sentido para a Ergonomia quando associa-
Ergonomia e sua contribuição se dá, sobretudo, na compre- do a uma ação. Essas representações, segundo Weill-
ensão da repercussão do trabalho na vida psíquica do Fassina e Cols. (1993), podem ser caracterizadas como
sujeito e na forma como ele administra esta vivência. produto e como processo. No primeiro caso, refere-se às
Onde encontrar explicação para tais fenômenos e in- redes de propriedades, de conceitos, de saberes, de habili-
dagar sobre o sustentáculo da normalidade? Quais as dades, de crenças e de experiências construídas no decor-
conseqüências da sua manutenção? E, por fim, como se rer da história do indivíduo, a partir da sua relação com o
materializa a ruptura da mesma na perspectiva do sujeito trabalho. Como processo, as representações para a ação
e da organização? tratam da elaboração individual e finalística pela qual são
O pressuposto aqui defendido é que uma das formas de construídos e estruturados os conteúdos do sujeito frente
se construir a resposta para essas questões, possivelmen- ao contexto de trabalho.
te, se encontra na articulação
da ergonomia com a psicodi-
operador reconstrói o problema com base
nâmica do trabalho, malgrado
as especificidades pleiteadas,
a justo título, por ambas as
disciplinas. Busca-se de certa
O nas suas representações para a ação que
incorporam novas informações sobre o contexto
forma, identificar como o su-
jeito articula suas diferentes
competências, tanto na dimensão psíquica quanto na Ao buscar compreender as representações para a ação
cognitiva, frente à imprevisibilidade da realidade, consi- utilizadas e desenvolvidas pelos sujeitos, em função das
derando a articulação da variabilidade inter e intra-indi- exigências do processo de trabalho, a ergonomia busca
vidual e a decorrente do contexto de trabalho apreender uma parte da realidade do trabalho que se mani-
(ABRAHÃO, 2000). festa nos sujeitos e é estruturada individualmente ou pelo
coletivo de trabalhadores.
A Ergonomia e sua contribuição A compreensão do componente cognitivo do trabalho se
O fato de a automação e a informatização no mundo do apóia na relação entre os conhecimentos constituídos e
trabalho trazer consigo tarefas cujas exigências são de armazenados pelos sujeitos e os traços de memória referen-
natureza predominantemente cognitiva solicita da ergono- tes à situação, formulados ou reformulados para a ação e
mia o desenvolvimento de novas abordagens teórico-me- pela a ação. É esta relação que subsidia a noção de represen-
todológicas para apreender o funcionamento do homem de tações para a ação (WEILL-FASSINA e COLS, 1993).
forma situada (RASMUSSEM, 2000; MARMARAS & Na memória de trabalho são articuladas as construções
KONTOGIANS, 2001; MARMARAS & PAVARD, 1999). dos significados das situações que levam à ação, por meio
O trabalho constitui para a ergonomia seu objeto central de discriminações perceptivas, buscas de associação causal,
de análise. Ele é compreendido como uma atividade avaliações, controles de conduta, antecipação de novas
finalística, ou seja, destinada a atingir um objetivo, de propriedades da situação, construção de estratégias e táti-
caráter individual ou coletivo, organizado segundo pres- cas, conduzindo a esquemas de ação (CANÃS &
crições, por vezes lacunar e realizada em um contexto WAERNS, 2001).
particular (TEIGER, 1992; DEJOURS & MOLINER, No entanto, em diferentes situações, os operadores nem
1994; TERSSAC, 1995). O trabalho revela características sempre dispõem, no momento desejado e na forma adequa-
especificamente humanas, como a capacidade de criação e da, de informações claras e pertinentes necessárias para a
produção de bens específicos, bem como permite a inserção tomada de decisão mais apropriada. Situação esta agravada
do sujeito em um contexto social, em função de uma ativi- quando eles não dispõem dos meios necessários para acom-
dade a ser executada. panhar de forma permanente as decisões políticas e as novas
A compreensão da cognição nas situações laborais para a regras que delas decorrem.
ergonomia implica em apreender a forma pela qual os Todo esse processo acaba por gerar nos trabalhadores
processos cognitivos são solicitados e como eles se ma- angústia, ansiedade, toda uma gama de sentimentos, para os
nifestam na ação de trabalho. Nesse processo, ela se quais a ergonomia não possui ferramentas que permitam
apóia em conceitos da psicologia cognitiva, às vezes explicá-los. Esta lacuna é justamente o espaço de articula-
reformulando-os e, quando possível, conferindo-lhes ção entre a ergonomia e a psicodinâmica do trabalho.

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Júlia Issy Abrahão; Camila Costa Torres

A Psicodinâmica do Trabalho te do desejo do sujeito. Desse confronto, emergem as estraté-


A Psicodinâmica do Trabalho dedica-se à análise dinâ- gias defensivas responsáveis, em parte, pela manutenção do
mica dos processos psíquicos envolvidos na confrontação equilíbrio do sujeito ou do coletivo de trabalhadores.
do sujeito com a realidade de trabalho. O seu interesse é
voltado para as vivências subjetivas dos sujeitos, a O método
intersubjetividade que permeia o trabalho e o lugar ocupado Este estudo adotou os procedimentos propostos pela
pelo trabalho nos processos de regulação psíquica Análise Ergonômica do Trabalho – AET, seguindo o mode-
(DEJOURS, ABDOUCHELI & JAYET, 1994). lo de intervenção de Guérin e Cols (1991). Os dados de
O trabalho constitui um elemento fundamental da exis- natureza quantitativa, os referentes à organização estudada
tência humana, podendo contribuir para o bem-estar ou, e as verbalizações foram obtidos via análise da atividade,
para a manifestação de sintomas que afetam a saúde. A por meio de observações sistemáticas, consultas à docu-
organização do trabalho é considerada como mediadora mentação da empresa e entrevistas. As falas dos operadores
desse processo. Ela é compreendida como a divisão do que ilustram o artigo foram extraídas das reuniões coletivas,
trabalho, incluindo a divisão das tarefas, a repartição, a realizadas junto com as operadoras da central, nos moldes
definição das cadências, o modo operatório prescrito; e a propostos pela abordagem da Psicodinâmica do Trabalho
divisão de homens, repartição de responsabilidades, hierar- (DEJOURS, ABDOUCHELI & JAYET, 1994).
quia, comando, controle. A demanda inicial teve sua origem em um projeto de
consultoria, que sofreu des-
dobramentos, resultando
prescrição não permite alteração dos
A procedimentos. Hipotetiza-se que a transgressão
configura uma maneira de dar sentido ao trabalho.
em uma demanda específi-
ca para a central de atendi-
mento, por parte da direção
e dos atendentes. Ao proce-
der o recorte do objeto de
estudo buscou-se entre os
Quando o trabalho é escolhido e organizado livremente, a resultados aqueles que permitiam explicitar as questões le-
vivência do conflito é minimizada, e torna-se um espaço para vantadas na introdução deste artigo. Eles visam ilustrar ele-
a descarga psíquica e alívio da tensão. Entretanto, quando mentos da organização do trabalho que podem contribuir ou
esse processo é cerceado propicia um acúmulo de tensão, que dificultar a execução de tarefas em um contexto no qual o
pode ter repercussões sobre o corpo, são as chamadas reações trabalhador é confrontado a situações críticas, solicitado a
somáticas (DEJOURS, ABDOUCHELI & JAYET, 1994). responder às demandas, solucionar problemas e tomar deci-
As vivências de prazer são identificadas a partir de sões sob pressão temporal. Parafraseando Vilela e Assunção
manifestações de realização, satisfação ou gratificação das (2004), a análise do trabalho permite apreender as regras da
pulsões, remetendo ao conceito de sublimação da psicanáli- organização, pela via da objetivação dos dados que as funda-
se (KUPFER, 2000; RAPPAPORT e COLS, 1981), defini- mentam.
do como a derivação de uma pulsão para um alvo não- A pesquisa foi realizada na central de atendimento de um
sexual, tornando possível que o indivíduo se volte para departamento de trânsito, sendo sua função principal prestar
atividades como a produção científica ou artística e todas informações sobre a situação dos veículos e orientar a popula-
aquelas que visam um aumento do bem-estar e da qualidade ção a respeito dos procedimentos usuais da organização. Os
de vida. Em contrapartida, as vivências de sofrimento resul- serviços de atendimento são prestados por uma empresa
tam dos conflitos, não resolvidos, decorrentes da relação terceirizada e controlados por uma estatal.
estabelecida com os preceitos da organização do trabalho. A central de atendimento, à época do estudo, contava
Pode-se afirmar que para a Psicodinâmica, o trabalho em com um efetivo de 50 atendentes, a maioria do sexo femini-
si não constitui o objeto de análise. Mesmo tendo sido no (68%), e quatro supervisores, sendo três do sexo mascu-
livremente escolhido pelo sujeito e tendo afinidade com seu lino e um do feminino. A faixa etária situava-se no intervalo
desejo, ele não é livremente organizado, estando o sujeito compreendido entre 18 e 35 anos.
limitado e impossibilitado de obter integralmente a satisfa-
ção do seu desejo. Natureza das tarefas e o conteúdo
Assim, ao trabalhador cabe agir sobre o imprevisto, o da atividade na central de atendimento
inesperado. Logo, nesta condição, o trabalho constitui a Os resultados da análise do trabalho identificaram as
gestão de imprevistos, que provavelmente, configurar-se-ão exigências e a natureza das solicitações implícitas na ativi-
como problemas a serem resolvidos. Realidade muito distan- dade dos operadores, entre elas:

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Entre a organização do trabalho e o sofrimento: o papel de mediação da atividade

1. memória: para armazenar dados, códigos, senhas, infor- Tá, tá beleza, então.
mações mais freqüentes, modo de funcionamento do Bom dia, a (empresa) agradece a sua ligação.”
sistema, regras, normas;
2. capacidade de detectar, discriminar e interpretar o con- As frases do operador refletem os momentos em que ele
teúdo das demandas dos usuários, com o intuito de trans- identifica falhas na demanda e recorre a sua experiência
mitir-lhes uma resposta satisfatória. para constituir corretamente o problema. A estratégia ope-
ratória adotada é a de antecipação, pois o operador evoca na
A análise da atividade destes operadores mostra que na memória outras situações já vivenciadas para, então, inda-
operacionalização da tarefa, aparentemente de natureza gar ao usuário sobre a pertinência dessas novas possibilida-
cognitiva, ela é de fato permeada por atividades que des. Ao investigar juntamente com o usuário o erro contido
impactam no aparelho psíquico. Os resultados de 26 horas na demanda, ele busca possíveis soluções que permitam
de observação sistemática apontam que 19% dos atendi- identificar o problema, criando um outro espaço de resolu-
mentos (Atendimentos críticos) fugiam ao prescrito pela ção do problema. Assim procedendo, a estratégia operatória
organização, exigindo a adoção de estratégias operatórias elaborada constitui, também, um mecanismo de regulação
na tentativa de resolver as demandas dos usuários. A apre- que contribui para a manutenção de seu equilíbrio psíquico.
sentação de um destes atendimentos revela as tentativas do Na primeira frase, o operador detecta a falha na demanda
operador de suprir lacunas no desempenho do trabalho que a partir da resposta do sistema. Ao processar a resposta do
são essenciais para a concretização do mesmo. sistema, ele aciona um outro repertório constituído por seu
savoir-faire e suas representações para a ação. Neste mo-
“....... ...... bom dia. mento ele reinterpreta o problema e se antecipa, questionan-
Eu queria saber de um veículo? do a localidade da placa para encontrar uma solução, ao
Qual é a placa invés de informar ao usuário que o argumento não havia
JEK 6368, ano 82, modelo 83. sido encontrado. Tal estratégia permite conduzir o diálogo
com o usuário e obter as informações necessárias, ao
Operador Digita a placa, recebe informação mesmo tempo, evita expor sua dificuldade em obter o dado
do sistema – argumento não encontrado. desejado. Assim fazendo, ele adia as possíveis manifesta-
ções negativas por parte do interlocutor.
Sr. esta placa é de.........? Na segunda frase, o operador reconstrói o problema
............, JEK6368. apoiado nas suas representações para a ação que incorpo-
Argumento não encontrado, veículo não cadastrado. ram novas informações sobre o contexto. Ele tenta sanar o
Não tá cadastrado não, é? Quando tá assim é o quê? problema, buscando compreender a natureza do erro, verifi-
Ou o veículo não é de ............, ou tem alguma letra ou cando os dados fornecidos pelo usuário. A estratégia falha,
número errado pois o usuário confirma a placa e ela continua como argu-
É de ......., deixa eu confirmar... é JEK 6368. mento não encontrado, ou seja, o operador busca identificar
a falha na demanda juntamente com o usuário e não conse-
Operador digita novamente a placa e recebe novamente gue. O que elimina uma das possíveis causas do erro.
a mensagem do sistema – argumento não encontrado A terceira frase revela uma nova tentativa do operador
em diagnosticar e interpretar o problema. Ele verifica se a
Não consta. Sr. vou tentar em outros estados, só um placa não é de outro estado, situação de retrabalho, pois no
momento. início do diálogo ele já havia questionado a localidade da
Tá bom. placa e o usuário manteve a informação, esta estratégia
também falha e o resultado é um atendimento inconcluso e
Muda de tela, sai da tela de placas local e entra na tela possivelmente frustrante.
de consulta nacional, digita a placa, recebe informa- A verbalização abaixo ilustra como ocorre a interação
ção do sistema – argumento não encontrado. entre o operador e o usuário e confirma a problemática
levantada em torno da imprecisão da demanda.
Veículo não cadastrado, realmente algum número ou
letra está incorreto, o sr. verifica a placa e retorna a “A maior dificuldade é lidar com o usuário, porque a
ligação, está bem?!. gente pega todo tipo de gente, muito educada e aque-
Pôxa, tá beleza, então. les que descontam tudo na gente. Tem que saber
Nosso atendimento é de 07:00 às 21:00, a partir das separar porque quando chego em casa, às vezes,
18:00 fica mais fácil. ainda estou estressada.”

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Júlia Issy Abrahão; Camila Costa Torres

Este não é um exemplo pontual, pois situações idênticas Convém ressaltar que esta situação pode ser agravada
ou similares foram encontradas em 13 das 14 observações quando o suporte técnico-organizacional disponibilizado
sistemáticas realizadas sem escuta e nas 12 observações dificulta a atividade ao invés de apoiá-la. O sistema com-
sistemáticas realizadas com escuta (60 min. cada). putacional, os subsídios instrumentais e o treinamento
Tal resultado revela que os operadores não se dão conta seriam outros exemplos que quando analisada sua
de que uma parte da sua carga de trabalho, que não é pertinência revelam também a distância entre as prescri-
residual, resulta justamente da operacionalização das pres- ções e a atividade.
crições subjacentes às normas e regras determinadas pela Este tipo de atendimento, portanto, comum nesta central,
organização do trabalho. É neste espaço de diferença que pode ser considerado como um fator que aumenta a carga de
emergem as situações críticas e problemáticas, nas quais trabalho, pois exige dos operadores maior habilidade na
eles utilizam recursos de natureza cognitiva, psíquica e comunicação, manutenção da paciência e da cordialidade
física e investem na tentativa de atingir os objetivos do em situações críticas, bem como a elaboração de estratégias
trabalho, tentando minimizar a frustração e o sofrimento de para evitar o fracasso e a frustração resultante de um atendi-
se sentirem incompetentes ou mesmo cerceados pelas nor- mento inconcluso. A resolução de problemas permeia de
mas, na execução de sua atividade. forma significativa a atividade dos operadores, no entanto,
o espaço de resolução é restringido
pelo script, acrescido do fato de saber
estratégia adotada é atribuir a origem do
A sofrimento à relação que estabelecem
com seus supervisores, ex-colegas de trabalho
que está transgredindo as normas – a
prescrição não permite alteração dos
procedimentos. Hipotetiza-se que a
transgressão configura uma maneira
de dar sentido ao trabalho.

A análise ergonômica mostrou com clareza as diferenças Natureza do controle do trabalho


entre as prescrições e a atividade. Muitas vezes, os operadores A empresa não determina uma quantidade específica de
deparam-se com demandas mal formuladas, incompletas ou ligações a ser atendida, no entanto, ela é remunerada por
incorretas, levando-os a reformulá-la, juntamente com o usuá- chamadas atendidas. Evidentemente, sua meta é quanto
rio, na expectativa de obter êxito no atendimento. Um atendi- maior a quantidade de atendimentos melhor seu rendimen-
mento com estas características foge completamente ao estipu- to, principalmente considerando a grande quantidade de
lado pela prescrição, que prevê que o operador apenas transmi- demanda da população estimada em 600.000 potenciais
tirá a informação solicitada e que a mesma se encontra facil- usuários do serviço.
mente disponível no sistema. Com o intuito de assegurar a produtividade e a qualidade
dos atendimentos, o controle é exercido por duas instâncias
“O usuário que não sabe o que quer dificulta o nosso que coabitam na central de atendimentos: a prestadora de
serviço, temos que ficar questionando, tentando adi- serviços e a empresa estatal.
vinhar o que ele quer, esperando ele pegar o número A empresa prestadora do serviço é responsável pelo
da placa, a caneta para anotar...” controle da qualidade do serviço de telemarketing (utiliza-
ção correta da fraseologia, amabilidade com os usuários,
A configuração da demanda do usuário influencia a objetividade) e pela qualidade dessas informações; executa
qualidade do atendimento e, geralmente, também é um também a observação dos atendentes na central, o recebi-
componente que aumenta o grau de complexidade da mento e o encaminhamento dos formulários de pesquisa de
atividade. Ao expressar a sua demanda o usuário ativa uma informações à funcionária responsável da estatal e a avalia-
série de processos cognitivos do operador. É a partir da sua ção dos operadores em dois quesitos:
demanda que ele desencadeia as seqüências de ações e 1. acompanhamento pessoal, que inclui integração com a
funções mentais que resultarão na realização da atividade. empresa, apresentação pessoal, interesse, liderança, hi-
giene, organização do ambiente de trabalho, assiduidade,
“Às vezes a gente erra por conta do jeito que vem a pontualidade;
pergunta.” 2. desenvolvimento do operador, que considera presteza no
“Às vezes o usuário é muito leigo e aí a gente tem que atendimento, cordialidade com as pessoas, domínio do
passar para ele até ele entender, afinal de contas o conteúdo, dicção e vocabulário, clareza e organização nas
nosso serviço é passar informações, tem gente que informações, habilidade de lidar com objeções, vícios de
fica até 10 min.” linguagem e finalização do atendimento.

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Entre a organização do trabalho e o sofrimento: o papel de mediação da atividade

A empresa estatal é responsável pelo controle da qualida- “Fico mal com o controle, se não for como eles (gerentes)
de do conteúdo das informações transmitidas, checando a sua mandam leva advertência ou é demitido...”
fidedignidade junto à fonte.
As duas empresas exercem o controle por meio da “Uma das coisas que é ruim aqui é a padronização,
monitoração informatizada dos operadores, durante os atendi- porque você tem usuário de todo tipo e às vezes eles
mentos. O sistema informatizado permite monitorar: 1) o não entendem o que a gente diz, se é padronizado é
status dos atendentes (atendente em pré-ligação, em espera, ruim. Eu queria ter mais liberdade para explicar.”
em operação e em pós-ligação); 2) o status das linhas (linhas
usadas, linhas em URA, linhas em operação); 3) o status dos O trabalho se torna ameaçador para o aparelho psíquico,
operadores (em operação, em suspensão, em espera, pré- na medida em que se opõe à sua livre atividade. “/.../ em
ligação, pós-ligação e logados). termos econômicos, o prazer do trabalhador resulta da
Desta forma é instaurado na empresa um exacerbado descarga de energia psíquica que a tarefa autoriza, o que
sistema de controle, convergindo com os resultados corresponde a diminuição da carga psíquica do trabalho”
apontados por Wisner (1987), Dejours (1987), Abrahão e (DEJOURS, ABDOUCHELI & JAYET, 1994).
Santos (2004) quando afirmam que o serviço de presta-
ção de informações via telefone tem, geralmente, suas “A pressão aqui é muito grande, não pode isso, não
bases estruturadas em uma organização do trabalho rígi- pode aquilo.”
da, influenciada pelos padrões tayloristas, na qual os
horários, o ritmo e as pausas são determinados e contro- Assim, o sofrimento emerge e nem a atividade, nem a
lados e as regras não são flexíveis ou adaptáveis. relação hierárquica permitem a descarga de energia psí-
A impossibilidade de transformar ou adaptar as deter- quica. Na impossibilidade de se desvincular do trabalho,
minações da organização do trabalho tais como o controle os atendentes reinterpretam a situação, justificando para
excessivo, o ritmo imposto pela fila de espera virtual poder aceitá-la (TAJFEL, 1982). Neste caso específico, a
constitui fonte de insatisfação ou de sofrimento a partir do estratégia adotada é atribuir a origem do sofrimento à
momento em que os trabalhadores sentem esgotados seus relação que estabelecem com seus supervisores, ex-cole-
recursos para transformação. Dejours (1985) aponta como gas de trabalho, ao invés de se reportarem diretamente à
um dos principais pontos de conflito e, por conseqüência, própria natureza do trabalho e aos constrangimentos dela
provocadores de sofrimento psíquico, as relações, muitas decorrentes. Eles transferem aos supervisores a insatisfa-
vezes rígidas, entre o trabalhador e a organização. Esta ção conseqüente do sistema de controle, abstraindo o fato
relação pode ser considerada como conflituosa por ter, de de que os supervisores também estão submetidos às nor-
um lado, a expectativa do trabalhador e, do outro, a rigidez mas e prescrições da função.
sobre o modo de funcionamento e produção da organiza-
ção, impedindo o trabalhador de atribuir um sentido parti- “Eu mudaria os supervisores, assim, a forma de
cular ao seu trabalho. tratamento dos supervisores.”
O uso do constrangimento, da intimidação e do medo
como ferramentas gerenciais, obriga os trabalhadores a “Se fosse possível eu mudava a supervisão; os
investirem suas inteligências na busca permanente de um supervisores são distantes dos operadores, parece
estado de equilíbrio entre a realização das atividades e a que se esqueceram de quando eram operadores.”
impossibilidade de elaboração do sofrimento psíquico
(KARAM, 2003). “Ah, eu colocaria supervisores mais qualificados,
As falas dos operadores ilustram o sentimento de mais humanos.”
chateação e irritação diante das cobranças e do controle
ostensivo. Contudo, justificam a necessidade do mesmo Atenuar o sofrimento, como afirma Dejours (2003),
para o funcionamento do serviço, desde que permita um passa freqüentemente por uma tentativa de negação da
espaço de autonomia, no qual seria possível a manifesta- percepção de sua causa. Por esta razão, os trabalhadores
ção da criatividade, em face da variabilidade de situações- nunca falam diretamente de suas defesas e tentam
problemas a que são confrontados. As falas abaixo refle- dissimulá-las para poderem resguardar suas identidades e
tem esta situação: mantê-las positivadas.

“Sabe, eu acho que o trabalho aqui seria bem melhor As estratégias operatórias
se não fosse tão rígido. Toda hora, tudo é motivo para e o processo de regulação
controle. Até o tempo de ir ao banheiro é contado.” Dentre as estratégias operatórias identificadas, a anteci-

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Júlia Issy Abrahão; Camila Costa Torres

pação do conteúdo da demanda dos usuários e a substituição cultavam a compreensão dos usuários ao invés de facilitar a
do alfabeto fonético internacional por palavras mais próxi- comunicação.
mas do cotidiano dos usuários são exemplos que refletem as Considerando que a clientela abrange diferentes segmen-
dificuldades de funcionamento segundo as prescrições. tos da sociedade e atende pessoas com níveis variados de
A antecipação foi observada, sobretudo diante da impre- escolaridade e formação, os operadores adotam vocábulos
cisão dos usuários em relação às suas demandas. Os opera- familiares aos usuários. Este procedimento acabou sendo
dores evocam em sua memória possibilidades que permitam generalizado para todas as letras do alfabeto.
agilizar a comunicação com o usuário. O diálogo abaixo Tanto a antecipação quanto a substituição do alfabeto
ilustra uma dessas situações: fonético internacional são estratégias fundamentais para
minimizar o custo da inadequação da prescrição no desem-
“Eu quero saber como está o meu carro”. penho da atividade.
“O senhor deseja saber sobre multas, licenciamento, A primeira estratégia citada é considerada pela hierar-
IPVA......” quia como um processo criativo que demonstra iniciativa,
“Isso, eu quero saber se tenho multas” pois sua ação agiliza o atendimento. Enquanto que a segun-
da, passa por caminhos que se distanciam das prescrições e
O operador, ao resignificar a demanda, é compelido a constitui uma transgressão. Como, em geral, essas prescri-
modificar seu modo operatório, independente dos cons- ções têm um caráter normativo, “bem trabalhar implica
trangimentos e das suas conseqüências, como, por exem- sempre, de uma maneira ou de outra, cometer infrações”
plo, burlar as especificações da organização do trabalho, (DEJOURS, 2003). O que é paradoxal nesta situação é o
com o intuito de atingir os objetivos determinados. Ao julgamento da hierarquia que não confere valor semelhante
realizar tais operações ele está, também, recorrendo às a ambas as estratégias, malgrado o fato de que os operadores
suas competências, a ponto de se tornar capaz de “prever” ao recorrem a elas dêem inteligibilidade à comunicação.
as possibilidades de atendimento que respondam a deman- A elaboração dessas estratégias revela lacunas na orga-
da do usuário. nização do trabalho, que ao prescrever, não considera as
características dos usuários do serviço,
portanto as normas se mostram incapazes
operador, ao resignificar a
O demanda, é compelido a modificar
seu modo operatório, independente dos
de contemplar a variabilidade das situa-
ções reais, com as quais os operadores são
confrontados cotidianamente.
Além de interagirem, os diferentes fa-
tores que se articulam na composição da
constrangimentos e das suas conseqüências atividade variam ao longo do tempo, pro-
piciando uma constante atualização desta
interação. Segundo Guérin e Cols (1991),
No início do processo de consulta, os operadores devem visando atingir os objetivos definidos, o operador utiliza
indagar ao usuário a placa do veículo, em seguida soletrar os meios de que dispõe, levando em conta seu estado
as letras associando-as a vocábulos predeterminados e só interno, seus conhecimentos, desenvolvendo assim um
após a confirmação eles iniciam o procedimento de inser- modo próprio e original de operar naquela situação. Entre-
ção de dados no sistema. Caso ela seja, por exemplo, JFB tanto, este modo operatório passará por constantes reajus-
0550 o operador, seguindo as determinações, deveria con- tes e novas orientações, em virtude da variabilidade das
firmar os dados da seguinte forma: J deJuliete, F de Fox e situações.
B de Bravo; vocábulos difíceis de serem compreendidos Nos exemplos apresentados observa-se que se os opera-
devido a pouca familiaridade entre a maioria dos usuários dores não transgredissem e se limitassem às prescrições eles
do serviço. Os operadores substituíram Juliete por Jogo, não atingiriam os objetivos do trabalho, além de segura-
Fox por Faca e Bravo por Bola. Pode-se inferir que este mente contribuir para aumentar o número de chamadas, e
procedimento constitui um mecanismo de regulação e nesse caso, ser confrontados a usuários ainda mais nervosos.
resulta em uma forma de economia psíquica. A sobrecarga de trabalho, o excesso de pressão, a neces-
A norma da empresa determina que nesse processo seja sidade de transgredir para poder atingir os objetivos do
utilizado como código associativo o alfabeto fonético inter- trabalho, dentre outros, aliados ao rigoroso controle adota-
nacional, baseado no idioma inglês e no alfabeto grego. Os do pela empresa, desencadeia nos operadores uma insatis-
operadores identificaram que as correspondências propos- fação, a qual pode explicar os conflitos entre o projeto
tas pelo alfabeto fonético internacional muitas vezes difi- espontâneo do trabalhador e a organização do trabalho. Na

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Entre a organização do trabalho e o sofrimento: o papel de mediação da atividade

medida em que ela limita a sua realização enquanto sujei- mediadoras socialmente aceitáveis, como o absenteísmo
to, ao prescrever um modo operatório preciso, divide o justificado.
trabalho e os trabalhadores, recortando de uma vez só o A freqüência de atestados médicos e seus respectivos dias
conteúdo das tarefas e as relações humanas no trabalho. de licença constitui-se em um indicador da adoção de tais
Assim, “o trabalhador é, de certa maneira, despossuído de estratégias. O efetivo de trabalhadores na central de atendi-
seu corpo físico e nervoso, domesticado e forçado a agir mento é de 50 funcionários, na listagem disponibilizada pela
conforme a vontade de outro” (DEJOURS, ABDOUCHELI empresa constam 91, pois dela fazem parte todos os que
& JAYET, 1994). trabalharam na central, inclusive aqueles que já tinham pedi-
do demissão. A leitura desses dados mostra que dos 91
Indicadores de saúde funcionários que passaram pela central nos seus três anos de
Resgatando estudos do início do século XX é possível funcionamento, apenas 1 nunca solicitou licença. Dos 90
constatar que, muitas das queixas hoje relatadas, repetem ou restantes, 45 solicitaram licença uma vez, variando entre 1 e
reformulam queixas do passado, dentre elas: as pressões 10 dias. Os outros 45 solicitaram licença mais de uma vez,
temporal e de produção, a organização do trabalho rigorosa variando entre 2 e 8 vezes, e de 1 a 19 dias.
e inflexível, o controle ostensivo, as peculiaridades do Esses dados refletem, de certa forma, o que Dejours e
atendimento ao público, o ambiente e os equipamentos de Abdoucheli (1990) denominam sofrimentos patogênicos,
trabalho precários. responsáveis pela instauração de um circuito repetitivo de
Uma parte das queixas relatadas neste estudo refere-se às adoecimentos de toda ordem. O trabalhador torna-se inca-
características da própria atividade, outras, correspondem paz de transformar criativamente o sofrimento patogênico,
ao modelo de organização do trabalho adotado. Elas com- antes que ele se transforme em patológico e passe então a se
põem um conjunto de características que faz com que esta manifestar pela linguagem da dor.
atividade continue desgastante, fonte do que muitos cha- Quando as margens de negociação, as possibilidades de
mam de “estresse”, cansaço, fadiga e até sofrimento no adaptação se esgotam, o trabalho se torna uma fonte perma-
trabalho. Todavia, foi possível constatar que determinadas nente de conflito entre o sujeito e a organização do trabalho,
questões do setor não evoluíram tanto quanto as tecnologias emergindo sentimentos de insatisfação, tédio e ansiedade,
de informação, ponto de vista sustentado também por outros até que o sofrimento comece a manifestar seu caráter
estudos na área (ECHTERNACHT, 1998; SANTOS, 1999). patogênico. O sujeito, confrontado a essa situação e sem
O índice de rotatividade no serviço impressiona. Para espaço para a descarga psíquica, opta por abandonar o
constituir uma equipe de 50 funcionários, foram contratados emprego, o que certamente pode ser considerado como uma
e formados aproximadamente o dobro de operadores previs- estratégia de autopreservação, acionando mecanismos de
tos, que, com o passar do tempo, foram saindo ou sendo defesa para evitar sua descompensação. Possivelmente, esta
substituídos. Quando indagados a respeito, os atendentes são seja uma das explicações para o alto índice de rotatividade
claros quanto aos motivos que levaram os colegas a se encontrado nas centrais de atendimento.
retirarem: baixos salários, condições precárias de trabalho, Os atestados de saúde, associados à alta rotatividade,
falta de um plano de saúde e outros benefícios, serviço apontam o quanto a atividade, tal como está desenhada,
“estressante” (muita informação, muita pressão e responsabi- permanece desgastante para os operadores. Quando circuns-
lidade, contato com o público), insatisfação com relação ao critos isoladamente, estes dados são reduzidos em seu grau de
excesso de controle, falta de perspectiva de desenvolvimen- importância e desviados do seu curso, o de oportunizar
to, desvalorização dos funcionários por parte da empresa. juntamente com os demais indicadores, a compreensão do
Associadas a estas queixas estão ainda outras exigências da quadro das sinalizações do sofrimento humano no trabalho.
atividade, como manter uma mesma postura por muito tem-
po, realizar esforços repetitivos e manter constantemente a À guisa de conclusão
atenção na tela do computador e nos sinais auditivos. Este estudo foi desenvolvido em uma organização em
Parafraseando Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994), o que a natureza do trabalho – central de atendimento telefô-
homem é um sujeito que reage e se organiza mentalmente, nico – exige dos operadores habilidade de comunicação;
afetivamente e fisicamente, em função de suas interpreta- manutenção de um alto nível de concentração; paciência e
ções e significação de si no mundo. Trata-se de um sujeito cordialidade com o usuário; manejo adequado de situações
que age sobre o processo de trabalho, contribuindo para a críticas; elaboração de estratégias para evitar o fracasso e
construção e evolução das relações sociais existentes. Pode- resistência à frustração resultante de um atendimento
se derivar daí, a partir dos resultados encontrados neste inconcluso. A resolução de problemas permeia de forma
estudo, que quando essa possibilidade é restrita, instaura-se significativa a atividade desses operadores. No entanto, um
o sofrimento. Inicialmente, este sujeito adota estratégias rígido código de conduta limita a elaboração de respostas

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Júlia Issy Abrahão; Camila Costa Torres

criativas pelos operadores. Diante da necessidade de levar a lho é colocada como uma última alternativa. Diante da
cabo suas atividades de forma efetiva, cria-se, paradoxal- percepção da impossibilidade de se desvincular do trabalho,
mente, uma contradição: o sucesso do trabalho assenta-se os atendentes desenvolvem estratégias para justificar sua
na transgressão. Possivelmente, uma das formas de dar permanência no emprego e “resolver” os conflitos socio-
sentido ao trabalho e resolver os problemas que são coloca- cognitivos e afetivos a que são submetidos. Após lançar mão
dos é a transgressão do código de condutas. das ações contidas nas prescrições, de transgredir o prescrito,
A sobrecarga de trabalho, a pressão da demanda, a os operadores, na busca de evitar o fracasso na realização da
necessidade de transgredir para poder atingir os objetivos tarefa, reinterpretam a situação, justificando-a.
do trabalho, dentre outros, aliados ao rigoroso controle da Finalmente, a possibilidade de abandono do emprego se
organização gera um alto grau de insatisfação entre os apresenta, uma vez que as margens de negociação e as
operadores. O sofrimento que resultada do contexto do possibilidades de adaptação se esgotaram. Sem condições
trabalho não pode ser evitado nem pela via da atividade – já de resolver os constrangimentos impostos pelo trabalho e
que todas suas ações são rigorosamente prescritas a priori – tentando resguardar sua saúde, o operador opta por demitir-
nem pela via da relação hierárquica, considerando o papel se, em uma clara estratégia de autopreservação. Esta é,
de controle atribuído aos supervisores. certamente, uma das explicações para a constante renova-
No quadro geral da economia brasileira, em que o desem- ção do quadro de operadores, o que implica em um elevado
prego tornou-se uma ameaça efetiva, a demissão do traba- custo humano e financeiro.

Artigo recebido em 07/07/2004


Aprovado para publicação em 22/11/2004

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76 Revista Produção, v. 14, n. 3, p. 067-076, Set./Dez. 2004

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Psicodinâmica do trabalho: o método clínico de intervenção e investigação

Psicodinâmica do trabalho: o método clínico


de intervenção e investigação

ROBERTO HELOANI
Doutor em Psicologia Social (PUC-SP); Livre-docente em Teoria Organizacional pela UNICAMP;
Professor da Faculdade de Educação da UNICAMP; da FGV/SP e da UNIMARCO.
E-mail: jheloani@fgvsp.br

SELMA LANCMAN
Doutora em Saúde Mental (UNICAMP), Pós-doutora em Psicologia do Trabalho (CNAM);
Docente do Curso de Terapia Ocupacional da FMUSP.
E-mail: lancman@usp.br.

Resumo
Este artigo pretende contribuir na discussão acerca dos métodos de investigação qualitativos utilizados no estudo
e na intervenção em situações de trabalho. Partindo de uma discussão sobre as contribuições destes métodos
apresentamos e discutimos uma teoria e um método particular bastante utilizado nesse campo, a Psicodinâmica
do Trabalho. Pretendemos, ainda, demonstrar como os critérios de avaliação e a busca de cientificidade usualmente
utilizados nos métodos quantitativos ganham novas perspectivas neste tipo de investigação.

Palavras-chave
Psicodinâmica do Trabalho; métodos de investigação; clínica do trabalho; trabalho e subjetividade.

Work psychodinamics: the clinical method


of the intervention and investigation of the work
Abstract
This paper intends to contribute with the discussion concerning the qualitative methods of investigation used on
the study and on the intervention of workplace. Starting from a discussion about the contributions of this methods
we present and discuss the theory and a particular method largely used in this field, the Work Psychodinamics. We
purpose to demonstrate how the assessments rules and the search of the scientificity usually used by the
qualitative methods gain new perspectives with this kind of investigation.

Key words
Work psychodinamics; methods of investigation; Clinical of the Work; Work and Subjetivity.

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Roberto Heloani; Selma Lancman

INTRODUÇÃO discutir o processo social de desfiliação, o autor observa


a relação direta que se estabelece entre o processo de
Entender as organizações do trabalho e seus reflexos na precarização das relações de trabalho e a conseqüente
qualidade de vida, na saúde e no modo de adoecimento dos vulnerabilidade social a que o indivíduo está exposto.
trabalhadores é de fundamental importância na compreen- (CASTEL, 1998).
são e na intervenção em situações de trabalho que estejam As mudanças atuais no mundo do trabalho provocam um
gerando sofrimento e agravos à saúde e sofrimento. Essas impacto na vida de indivíduos que são obrigados a conviver
organizações e os sistemas de produção que as influenciam, com lógicas de mercado extremamente mutantes, criando
a combinação deles, as brechas e fragilidades desses siste- uma situação de constante instabilidade e de ameaça que é
mas adaptam modelos organizacionais e tecnológicos, mui- vivenciada como um mal inevitável dos tempos modernos,
tas vezes de forma incompleta, provisória e cumulativa. e cuja causalidade é atribuída ao destino, à economia ou
Segundo dados da OIT, 270 milhões de trabalhadores ainda às relações sistêmicas (DEJOURS, 1999).
assalariados são vítimas de acidentes de trabalho, dos quais Espera-se que o operário outrora altamente especializa-
2 milhões resultam em acidentes fatais. Nos países mais do ceda lugar a um profissional mais polivalente, capaz de
industrializados, ocorreu uma diminuição significativa do realizar uma multiplicidade maior de tarefas. No entanto,
número de lesões graves devido às mudanças no trabalho a rapidez dos avanços tecnológicos e organizacionais
industrial. No entanto, a natureza das novas organizações impossibilita, por vezes, o acompanhamento cognitivo des-
aumenta outras formas de adoecimentos tais como: sas mudanças, criando um processo de desqualificação
afecções músculo-esqueléticas, estresse, problemas psíqui- permanente do trabalhador, do seu saber-fazer e da sua
cos, problemas respiratórios e fonoaudiológicos, reações experiência acumulada.
alérgicas, problemas decorrentes da exposição de agentes Acreditamos que o trabalho assume um papel central na
tóxicos e cancerígenos etc. A OIT estima que 160 milhões constituição da identidade individual e possui implicação
de trabalhadores contraem doenças ligadas ao trabalho to- direta nas diversas formas de inserção social dos indivíduos.
dos os anos. Embora não seja possível avaliar o custo de Nesse sentido o trabalho pode ser visto como fundamental
uma vida humana, a OIT calcula que 4% do PIB mundial é na constituição de redes de relações sociais e de trocas
gasto com doenças profissionais, absenteísmo, tratamentos, afetivas e econômicas, base da vida cotidiana das pessoas.
incapacidade e pensões (OIT, 2002). O trabalho permite o confronto entre mundo externo e
A reestruturação produtiva no nosso país, a incorporação mundo interno do trabalhador. O mundo objetivo (com suas
de novas tecnologias, a precarização das relações de traba- lógicas, desafios, regras e valores) vai entrar em conflito
lho, a intensificação do ritmo, a diminuição de postos de com a singularidade de cada trabalhador, fazendo com que
trabalho, a sobrecarga e a exigência de polivalência dos que o confronto entre relações e organização do trabalho e
permanecem trabalhando têm ampliado e agravado o qua- mundo interno e subjetivo do trabalhador seja gerador de
dro de doenças e riscos de acidentes, causando afastamentos sofrimento psíquico. Há uma contradição central entre a
no trabalho e aposentadorias precoces com forte impacto lógica das empresas, voltada para o lucro e para a produtivi-
nas contas do sistema previdenciário. dade, e a lógica do indivíduo, que é contraditório, tem
Muitos autores discutem a centralidade do trabalho no angústias, desejos, medos e que busca manter sua saúde
mundo social, sua importância nas relações indivíduo-socie- mental em meio a essa complexidade de relações.
dade e na constituição do próprio indivíduo. O trabalho é Assim, se por um lado o mundo do trabalho será gerador
mais do que o ato de trabalhar ou de vender sua força de de sofrimento, na medida em que confronta as pessoas
trabalho em busca de remuneração. Há também uma remu- com desafios externos, por outro lado, é também a oportu-
neração social pelo trabalho, ou seja, o trabalho enquanto nidade central de crescimento e de desenvolvimento
fator de pertinência a grupos e a certos direitos sociais. O psicossocial do adulto. Se o trabalho leva ao sofrimento e
trabalho possui, ainda, uma função psíquica, enquanto um ao adoecimento, esse mesmo trabalho pode se constituir em
dos grandes alicerces da constituição do sujeito e da sua uma fonte de prazer e de desenvolvimento humano do
rede de significados. Processos como reconhecimento, gra- indivíduo. Dessa forma, fica evidente que o trabalho e as
tificação, mobilização da inteligência, além de estarem relações que nele se originam nunca podem ser tomadas
relacionados à realização do trabalho, estão ligados à cons- como um espaço de neutralidade subjetiva ou social.
tituição da identidade e da subjetividade (Lancman & Inúmeras pesquisas e intervenções têm sido realizadas
GHIRARDI, 2002). visando tanto à melhoria da produtividade, quanto às condi-
Segundo Castel, o trabalho é a matriz da integração ções e à organização do trabalho, mas ainda é necessário
social. Para o autor, há uma correlação forte entre as formas avançar nas pesquisas que objetivem melhor compreender o
de inserção no trabalho e as formas de integração social. Ao conteúdo simbólico do trabalho, as relações subjetivas do

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Psicodinâmica do trabalho: o método clínico de intervenção e investigação

trabalhador com a sua atividade, o sofrimento e o desgaste sos, múltiplos. Ou seja, a unidade implica necessariamente
gerado pelo trabalho e seus efeitos sobre a saúde física e diversidade e vice-versa.
mental dos indivíduos. Ademais, o saber é resultado de uma construção histórica
Se de um lado, o mundo do trabalho se modifica e e, assim, pode-se averiguar que a interdisciplinaridade do
transforma a realidade dos que nele estão envolvidos, de saber é a face subjetiva da coletividade dos sujeitos consti-
outro, diversas profissões e teorias se ocupam de estudá-lo tuintes. É, portanto, um processo tal como a própria vida,
e de propor alternativas organizacionais que possam melho- onde o singular, o particular e o universal não se excluem.
rar a qualidade de vida, humanizar as relações de trabalho, Ao contrário, no âmbito do pensamento hegeliano, o singu-
repensar o fator humano nos processos tecnológicos em lar não nega o universal, possui traços comuns e contradi-
seus diferentes aspectos e, sobretudo, estudar os efeitos ções na busca de uma conciliação ou superação.
dessas organizações na qualidade de vida, saúde e trabalho Na dialética hegeliana, o real existe como dinâmica
dos envolvidos. contraditória e processual, o quantitativo gerando o qualita-
Acreditamos que o incremento de pesquisas na área de tivo, de modo tal que ambos possam conhecer-se e reconhe-
Saúde e Trabalho só pode se dar a partir da congregação de cer-se simultaneamente. No nosso entender, não há quanti-
esforços e da combinação de diferentes teorias e dade que não implique qualidade, nem tão pouco qualidade
metodologias. Essa busca é um desafio interdisciplinar, que destituída da possibilidade de quantificação, pois tudo o que
requer esforços múltiplos para entender a nova realidade, existe “vem a ser” a partir do que está sendo, gerando uma
propor abordagens inovadoras que possam contemplá-la correlação tensional benéfica entre abordagens distintas e
em sua complexidade, além de contribuir no desenvolvi- complementares. Essa é a nossa posição.
mento de propostas de intervenção e transformação do Assim sendo, a metodologia de pesquisa qualitativa é
trabalho. (DANIELLOU, F. 2004; CLOT, Y. 1999). uma alternativa de pesquisa possível, com foco
multimetodológico e que envolve uma abordagem
O FALSO DILEMA ENTRE O interpretativista (compreensiva) do objeto de estudo. Dessa
QUANTITATIVO E O QUALITATIVO forma, a pesquisa qualitativa é uma designação ampla que
congrega várias correntes de pensamento, que têm como
Diferentes saberes do campo científico, concernentes à denominador comum o enfrentamento ao modelo positivis-
temática da pesquisa em psicologia do trabalho vêm paula- ta enquanto padrão único de ciência.
tinamente considerando a questão da compreensão, inter- Não pretendemos desmerecer a metodologia da pesquisa
pretação e empatia (esfera da linguagem, portanto) como quantitativa, até porque discordamos daqueles que
crucial para um melhor entendimento de um campo que indiscriminadamente a criticam. A nossa experiência como
hoje se fragmenta em diferentes abordagens, paradigmas e, pesquisadores sinaliza para situações nas quais existirão
mesmo por que não dizer, epistemologias. acontecimentos em que a apreensão do objeto exige ou
A compreensão da dialética entre a dimensão quantitati- recomenda a utilização de ambas as abordagens – quantita-
va e qualitativa configura fundamento vital para a interpre- tiva e qualitativa – e permite trazer à luz dimensões verifi-
tação e a análise das interações complexas dos fenômenos cadas nas pesquisas quantitativas que perderiam sua rique-
que ocorrem nessa área. za e contribuição se fossem reduzidas unicamente à dimen-
É, em síntese, o convite para pensar uma realidade que são quantitativa. Como quantificar determinadas caracterís-
não é mais aquela compartimentada das ciências contidas ticas observáveis nas investigações que privilegiam a escuta
em câmaras separadas, mas a ciência transdisciplinar, ou dos participantes sem empobrecê-las e esvaziá-las do con-
melhor, a “ciência com consciência”, como tem advogado teúdo singular que trazem?
Edgar Morin em sua obra. O “a priori”, em uma concepção quantitativa, vem escol-
Não é nossa intenção discutir aqui, com maior amplitude, tado por variáveis definidas e hipóteses claramente
o tema da interdisciplinaridade, o que exigiria um ensaio à especificadas. A descrição e a observação – que pode che-
parte, mas apenas indicar por que motivos a efetiva ocor- gar à explicação – almejam a precisão dos resultados. Sob o
rência dessa condição, expressa no vasto campo epistemo- abrigo do termo “pesquisa qualitativa”, coabitam alguns
lógico da “psicodinâmica do trabalho”, não nos esmorece tipos de investigação fundamentados em distintas concep-
na busca de novas veredas e formas de relação entre as ções teóricas, prevalecendo entre elas as orientações filosó-
diferentes áreas do saber – mesmo porque partimos do ficas da dialética e da fenomenologia e os enfoques metodo-
pressuposto de que a cisão entre a unidade e o múltiplo não lógicos da etnometodologia e mesmo do interacionismo
é verdadeira senão na aparência, pois a palavra universal, simbólico.
etimologicamente falando, abarca o conceito de unidade e Na contramão do que alguns pesquisadores, por vezes
de multiplicidade. “Unis” significa um e “diversitas”, diver- pouco experientes no uso destas metodologias, pensam,

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Roberto Heloani; Selma Lancman

embora a pesquisa qualitativa busque a compreensão (esfe- factuais em documentos, principiando pelo levantamento
ra da linguagem) e implique certa “empatia” (capacidade de de pressupostos e questões relativas ao objeto de pesquisa.
colocar-se no lugar do outro) em relação aos fenômenos Isso a um custo geralmente baixo, que requer tão somente
humanos e sociais que pretende interpretar (hermenêutica), tempo e atenção do pesquisador. Além disso, permite a
essa abordagem de investigação exige por parte do pesqui- obtenção de dados mesmo quando já não é possível o acesso
sador rigor metodológico e certa experiência no trato dos ao sujeito (por exemplo, por falecimento) e como técnica
documentos, entrevistas, e mesmo observações pessoais. exploratória, abre caminho para a pesquisa por meio da
Portanto, à luz da hermenêutica e das mentalidades o abordagem de outros métodos.
pesquisador busca compreender o significado que as pessoas Um outro modo de se estudar um problema pela aborda-
dão às suas vidas. Sobretudo pela lógica relacional, nessa gem qualitativa é a etnografia. Esta requer um longo e
perspectiva, o investigador preocupa-se mais com o processo efetivo contato com a comunidade ou grupo que se deseja
do que com os resultados, tendo como base questões amplas, descrever. Não é à toa que até hoje – embora na atualidade a
que vão se tornando mais focadas a partir dos dados, da etnografia seja utilizada em quase todas as áreas das denomi-
definição do objeto e da compreensão do quadro referencial. nadas ciências humanas – relacionamos antropologia com
este tipo de pesquisa, talvez pelo fato de que
no trabalho de campo (neste caso essencial
Psicodinâmica do Trabalho busca
A compreender os aspectos psíquicos
e subjetivos que são mobilizados a partir
em termos de observação, decifração e inter-
pretação dos fenômenos culturais envolvi-
dos) é que esse método de investigação social
se revela, ou melhor, ilumina a organização
dos significados culturais.
das relações e da organização do trabalho. O trabalho etnográfico começa com a
seleção e a formulação de um problema de
pesquisa e, como em qualquer projeto deste
Por conseguinte, acreditamos que a estratégia e os proce- tipo, demanda um referencial teórico útil e compatível a um
dimentos metodológicos utilizados no processo de constru- conjunto de pressupostos assumidos pelo pesquisador. O
ção de um trabalho científico dependem da natureza do etnógrafo, ao organizar os fatos, explicando-os, estabelece
problema que se deseja estudar. Quando necessitamos ex- relações e tenta interpretá-los sob o ponto de vista de sua
plorar o objeto de estudo na fase inicial ou quando a compreensão dos sentidos que o grupo ou comunidade
quantificação não faz sentido, devido à exigüidade do uni- atribui a eles, não está, no nosso entender, negando teorias
verso de pesquisa, a pesquisa qualitativa se impõe. Mas não prévias. Ao contrário, poderá fazer uso de uma teoria “bas-
é só. Quando a pesquisa tem por objetivo descortinar os tante testada” ou simplesmente tentar criar um modelo
sentidos e significados que as pessoas utilizam ao se depa- próprio menos formalizado.
rarem com o mundo e o que se procura é a compreensão do Daremos ênfase ao estudo de caso pelo fato desse tipo de
fenômeno em sua totalidade, a opção pela abordagem qua- pesquisa ser cada vez mais utilizado na área da psicologia
litativa parece-nos a mais adequada. social em geral e também, de forma mais específica, no
Segundo Godoy (1995), “ (...) a abordagem qualitativa âmbito da psicodinâmica do trabalho.
oferece três diferentes possibilidades de se realizar pesqui-
sa: a pesquisa documental, o estudo de caso e a etnografia” ESTUDO DE CASO
(p. 21). Para esta autora, a análise de materiais que ainda não
tenham recebido um tratamento analítico, ou que possam A compreensão singular de eventos, sejam eles quais forem,
ser reexaminados, pode ser a base de uma pesquisa docu- é o princípio básico do estudo de caso. Nessa forma de pesquisa
mental. “ ‘Primários’ quando produzidos por pessoas que qualitativa, o objeto estudado é tratado como único, como
vivenciaram diretamente o evento que está sendo estudado, representação particular da realidade. Assim, cada caso,
ou ‘secundários’, quando coletados por pessoas que não destarte sua similitude com outros, é, concomitantemente,
estavam presentes por ocasião de sua ocorrência.” (p. 22) diferente, devendo ser “desvelado” e estudado com e pelas
A pesquisa documental é baseada em materiais escritos suas idiossincrasias, em uma situação ou em determinado
que incluem leis, regulamentos, livros, jornais, revistas, problema. O intuito desse tipo de pesquisa é estudar profun-
discursos, roteiros de televisão e rádio, estatísticas, arqui- damente uma organização (seja ela qual for), um grupo de
vos em geral e elementos iconográficos (sinais, fotografias, pessoas, uma família ou simplesmente uma única pessoa.
filmes, imagens, grafismos). Segundo Caulley (1981), tal Esse relevante tipo de pesquisa qualitativa vez por outra
tipo de pesquisa tem por escopo sinalizar informações é identificado erroneamente com o denominado método do

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Psicodinâmica do trabalho: o método clínico de intervenção e investigação

caso, recurso didático já bastante antigo que nasceu nos ticipante. Para esse autor, trata-se de pesquisa coletiva que
Estados Unidos (Harvard University) e tem por escopo “participa organicamente de momentos do trabalho de clas-
trazer para o âmbito acadêmico problemas, situações, en- se”. Ademais, para o mesmo autor, quando o pesquisador
fim, casos do mundo real reproduzidos. convive com o cotidiano do outro (grupos, comunidades
Parece-nos relevante colocar aqui algumas palavras de um etc.), a observação participante, a entrevista livre e a história
especialista nesse tipo de estudo como método de pesquisa e de vida se impõem.
que descreve o estudo de caso como “(...) um conjunto de Na pesquisa-ação, por seu turno, o agir ou intervir é
dados que descrevem uma fase ou a totalidade do processo mais nítido do que na pesquisa participante, embora esta
social de uma unidade, em suas várias relações internas e nas última, devido ao seu caráter orgânico, estimule
suas fixações culturais, quer seja essa unidade uma pessoa, vinculações entre atividades educativas e ações sócio-
uma família, um profissional, uma instituição social, uma econômicas comunitárias. Isto, em tese, levaria à melho-
comunidade ou uma nação” (YOUNG, 1960, p. 269). ria nas condições gerais de vida e propiciaria uma maior
conscientização política por parte daqueles que dela par-
HISTÓRIA DE VIDA ticipam.
Thiollent (1986, p. 14) assim define a pesquisa-ação:
É comum a utilização da técnica da entrevista com “(...) um tipo de pesquisa com base empírica que é conce-
roteiro semi-estruturado para se investigar o procedimen- bida e realizada em estreita associação com uma ação ou
to empregado na coleta de dados, que é denominada histó- com a resolução de um problema coletivo e no qual os
ria de vida. pesquisadores e participantes representativos da situação
A história de vida pode ser definida como a narrativa de ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou
alguém a respeito de sua experiência pessoal. Poder-se-ia participativo”.
dizer, sem muita hesitação, que toda a história de vida pode A pesquisa-ação é orientada em função de uma compo-
ser identificada como uma categoria particular de estudo de sição de objetivos de descrição e intervenção. De um
caso; entretanto, nem todo estudo de caso deve ser conside- modo mais detalhado, esta composição remete, entre ou-
rado uma história de vida. tros, aos seguintes passos: “(a) as situações sociais são
Não obstante a história de vida ser constituída por vários descritas, não de um único ponto de observação, mas com
depoimentos, alguns autores, como Queiroz (1987, 1988), a base em verbalizações dos diferentes atores em suas lin-
distinguem de depoimento. Neste último, em nossa opinião, guagens próprias (...); b) nas discussões de trabalho entre
o pesquisador é o timoneiro em um mar que conhece bem, pesquisadores e participantes (e também em sessões de
pois presenciou, foi testemunha, experimentou. Assim, in- análise entre pesquisadores) são geradas diversas tentati-
terfere, interrompe, faz perguntas e julga a oportunidade ou vas de interpretação, com características de inferência
não do que está sendo dito. Já na história de vida, é o generalizante ou particularizante, com base nas interações
narrador que assume a personagem – timoneiro, pois o que entre descrições e conceitos; c) em sessões coletivas, os
interessa é a experiência do informante. É ele quem conduz conhecimentos derivados das inferências são inseridos na
o barco, ou melhor, a narrativa. É ele quem possui o mapa e, elaboração de estratégias ou ações. Esta aplicação dá
portanto, embora detenha a informação, como o depoente, lugar a procedimentos deliberativos ou argumentativos
determina como navegar e o que visitar, se vale a pena (...); d) as informações coletadas e os itens discutidos em
enfrentar a tempestade que se prenuncia ou é prudente todos os precedentes passos, uma vez passados no crível
desviar dela.... As interferências do pesquisador, nesse de relevância em função da problemática adotada, são
caso, são mínimas, como as de um co-piloto, e mais corre- estruturados em conhecimentos comunicáveis”
tivas, pois é o narrador que sabe aonde quer chegar. (THIOLLENT, M. 1997, p. 34).
A questão da observação também requer algumas refle- Este tipo de produção científica, também chamada na
xões neste trabalho e é crucial no estudo de caso. Pode ser área de saúde e trabalho de pesquisa ascendente, entende
participante ou não-participante. Consoante Godoy (1995, p. que a produção do conhecimento e a intervenção são
27), “Quando o pesquisador atua apenas como espectador indissociáveis e que determinadas compreensões e constru-
atento, temos o que se convencionou chamar de observação ções teóricas só podem ser realizadas a partir de interven-
não-participante. (...) Na observação participante, o observa- ções concretas em situações de trabalho específicas. “Na
dor deixa de ser o observador do fato que está sendo estudado. pesquisa-ação os atores deixam de ser simplesmente objeto
Nesse caso, ele se coloca na posição dos outros elementos de observação, de explicação ou de interpretação. Eles
envolvidos no fenômeno em questão.” tornam-se sujeitos e parte integrante da pesquisa, de sua
Brandão (1981, 1984) define a pesquisa participante concepção, de seu desenrolar, de sua redação e de seu
como uma conseqüência do pioneirismo da observação par- acompanhamento” (THIOLLENT, M. 1997, p. 36).

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Roberto Heloani; Selma Lancman

Os métodos ascendentes têm sido usados por diversas clínica, implica que a fonte de inspiração é o trabalho de
abordagens na área de saúde e trabalho; entre elas, destaca- campo, e que toda a teoria é alinhavada a partir deste
mos a ergonomia (GUERIN et . al. 2001) e a psicodinâmica campo” (DEJOURS, 1993, p. 137; LANCMAN &
do trabalho (DEJOURS, 2000) que se diferenciam pelo UCHIDA, 2003).
objeto de estudo, pelas formas de observação e/ou escuta A Psicodinâmica do Trabalho “não busca transformar o
das situações estudadas e pela compreensão dos objetivos e trabalho, mas modificar as relações subjetivas no trabalho.
metas esperadas com a intervenção, entre outros aspectos. Ou, para dizer de uma outra forma: o que uma enquête
modifica, não é o trabalho, mas o trabalhar.
Modifica, não o trabalho, mas o trabalhador
Psicodinâmia do Trabalho é
“A
(MOLINIER, 2001, p. 134)
Apreender e compreender as relações de tra-
antes de tudo uma clínica” balho exige mais do que a simples observação,
mas, sobretudo, exige uma escuta voltada a
quem executa o trabalho, pois este implica rela-
A ergonomia tem se transformado significativamente ções subjetivas menos evidentes que precisam ser desven-
nos últimos anos com o desenvolvimento da psicologia dadas. Para apreender o trabalho em sua complexidade é
cognitiva e outras teorias correlatas. Entretanto, dado o necessário entendê-lo e explicá-lo para além do que pode
recorte epistemológico adotado, ela acaba não abordando ser visível e mensurável. É necessário que se considere a
questões subjetivas, que dizem respeito ao sentir, à identi- qualidade das relações que ele propicia.
dade, e que são significativas do ponto de vista humano. A escuta proposta pela Psicodinâmica do Trabalho é
Esta lacuna tem sido preenchida pela psicodinâmica do realizada de forma coletiva e desenvolvida a partir de
trabalho (DANIELLOU, 2004). um processo de reflexão, realizado com o conjunto de
trabalhadores. Diferentemente da ergonomia, essa
PSICODINÂMICA DO TRABALHO abordagem não busca formular recomendações e modi-
ficações a serem implantadas nos postos de trabalho
A Psicodinâmica do Trabalho busca compreender os estudados e sim favorecer processos de reflexão e de
aspectos psíquicos e subjetivos que são mobilizados a partir elaboração, que criem uma mobilização entre os traba-
das relações e da organização do trabalho. Busca estudar os lhadores, de forma que estes possam alavancar mudan-
aspectos menos visíveis que são vivenciados pelos trabalha- ças no trabalho ou em suas relações laborais. É somente
dores ao longo do processo produtivo, tais como: mecanis- a partir desse processo reflexivo sobre o próprio traba-
mos de cooperação, reconhecimento, sofrimento, lho que o indivíduo se torna capaz de se reapropriar da
mobilização da inteligência, vontade e motivação e estraté- realidade de seu trabalho, e é essa reapropriação que
gias defensivas que se desenvolvem e se estabelecem a pode permitir aos trabalhadores a mobilização que vai
partir das situações de trabalho. Compreende que o trabalho impulsionar as mudanças necessárias para tornar esse
é um elemento central na construção da saúde e identidade trabalho mais saudável. Essa escuta se dá em grupos,
dos indivíduos e que sua influência transcende o tempo da entendidos como uma ampliação do espaço público de
jornada de trabalho propriamente dita e se estende para toda discussão, o que possibilita a transformação de compre-
a vida familiar e tempo do não-trabalho (DEJOURS, 1992, ensões individuais em reflexões coletivas (DEJOURS,
1993, 1994; BANDT et. al, 1995). 1995).
Para tanto, a Psicodinâmica do Trabalho utiliza um mé-
todo específico que liga a intervenção à pesquisa, e é ANÁLISE PSICODINÂMICA DO TRABALHO
pautado nos princípios da pesquisa-ação, mas devido às
suas características específicas é intitulada clínica do tra- O método preconizado em Psicodinâmica do Trabalho é
balho. A clínica do trabalho busca desenvolver o campo da construído a partir de uma série de etapas que servem de
saúde mental e trabalho, partindo do trabalho de campo e se norteadores para o trabalho de campo (DEJOURS, 1992,
deslocando e retornando constantemente a ele. Visa inter- 2000). Apesar dessas etapas serem fundamentais para o
vir em situações concretas de trabalho, compreender os alcance dos objetivos propostos por essa vertente, enten-
processos psíquicos envolvidos e formular avanços teóricos demos que cada enquête e cada situação de trabalho é
e metodológicos reproduzíveis a outros contextos. Segundo peculiar e envolverá algumas adaptações, que, no entanto,
Dejours, “a Psicodinâmia do Trabalho é antes de tudo uma não devem comprometer a integridade do método. Descre-
clínica. Ela se desdobra sobre um trabalho de campo radi- vemos a seguir um resumo das principais etapas previstas
calmente diferente do lugar da cura. Afirmar que ela é uma nesse método que já foi exaustivamente descrito em portu-

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Psicodinâmica do trabalho: o método clínico de intervenção e investigação

guês no anexo constante do livro a Loucura do Trabalho b) Análise do material da enquête


(DEJOURS, 1987): O material da enquête é o resultado das vivências subje-
tivas expressas pelo grupo de trabalhadores durante os
1) A construção do estudo: a pré-enquête encontros. Esse material é apreendido a partir das palavras
Para a construção do estudo, parte-se de dois pressupos- e do contexto no qual elas são ditas, das hipóteses sobre os
tos essenciais: o voluntariado dos participantes e a concor- porquês, de como estabelecem as relações com o trabalho,
dância da instituição para a realização da enquête. Uma vez enfim, da formulação que os trabalhadores fazem da sua
isso acordado, constitui-se um grupo denominado grupo de própria situação de trabalho.
pilotagem ou grupo gestor, composto pela equipe de pes-
quisadores, por trabalhadores e por funcionários ligados à c) A observação clínica
direção da instituição estudada, que se encarregará de orga- Nessa fase, os pesquisadores buscam registrar o movi-
nizar a enquête, reunindo-se periodicamente, visando o mento que ocorre entre o grupo de trabalhadores e o de
entrosamento dos envolvidos, conhecer melhor o setor- pesquisadores. Trata-se não somente de resgatar os comen-
alvo, estabelecer estratégias para a intervenção etc. tários dos trabalhadores ditos em cada sessão, mas também
Essa fase caracteriza-se por criar condições objetivas de articulá-los e ilustrá-los, para facilitar a compreensão
para a realização da pesquisa, apresentar e difundir os destes quanto à dinâmica específica da pesquisa. Não se
princípios da Psicodinâmica do Trabalho e da enquête entre trata de resumo do conteúdo das sessões, mas de fazer
os trabalhadores, identificando voluntários interessados em aparecer idéias e comentários, interpretações, mesmo que
participar das demais etapas, e organizar os grupos. provisoriamente formuladas. É um trabalho, então, que
consiste em evidenciar e explicitar a trajetória do pensa-
2) A enquête mento dos pesquisadores que conduzem os grupos.
A enquête constitui-se das discussões grupais propria-
mente ditas que ocorrerão em intervalos que dependerão d) A interpretação
das possibilidades do serviço em disponibilizar o conjunto Nessa fase, tendo como base e como pano de fundo a
dos trabalhadores durante o período de trabalho. análise da demanda, do material da enquête e a observação
O propósito dos grupos é o de desencadear uma reflexão clínica, os pesquisadores formularão e identificarão os ele-
e uma ação transformadora. Esta começa assim que a pes- mentos subjetivos surgidos durante as sessões, buscando
quisa é iniciada, isto porque entendemos que a demanda já dar um sentido a estes. Conceitos teóricos, como sofrimen-
é uma ação. Nessa fase, procura-se criar um espaço coletivo to e prazer no trabalho, mecanismos de reconhecimento e
de discussão que favoreça a verbalização dos trabalhadores. cooperação e estratégias coletivas de defesa, são ferramen-
Os pesquisadores estarão atentos ao conteúdo das falas, ao tas que permitem dar sentido e explicação ao material
que é objeto de consenso, às discussões contraditórias, produzido durante os grupos.
àquilo que emerge espontaneamente ou não, ao que é dito ou
omitido em relação a certos temas e às características da 3) Validação e refutação
organização do trabalho. Buscar-se-á, também, detectar Ao longo das sessões, buscar-se-á, a partir das elabora-
relações e expressões de sofrimento e/ou de prazer no ções, interpretações, hipóteses, temas e comentários
trabalho. Essa fase é subdividida em quatro etapas: análise registrados durante cada encontro, formar um relatório, que
da demanda, análise do material da enquête, observação será discutido com os trabalhadores. Seu conteúdo será, ao
clínica e interpretação. longo das discussões, validado, refutado ou retomado. So-
mente após essa fase, será constituído o relatório final, que
a) Análise da demanda será apresentado à instituição e aos demais trabalhadores.
A Psicodinâmica do Trabalho parte de uma demanda Os demais participantes não terão conhecimento do conteú-
expressa. No entanto, a demanda que gera a intervenção, do deste material até o final da enquête, quando será forne-
por vezes proposta pela direção das empresas ou chefias, cido o relatório definitivo.
nem sempre é a mesma expressa pelos trabalhadores. Nessa O relatório também visa favorecer a reapropriação do
etapa, busca-se compreender a demanda do grupo que par- material da pesquisa (produzido em conjunto, a partir da
ticipa do estudo, tendo como base alguns princípios: enten- reflexão dos participantes não-pesquisadores), reelaboração
der quem formula a demanda; o que se solicita e a quem a do saber frente às situações de trabalho e sua modificação.
demanda é dirigida. Essa reconfiguração da demanda Nesse sentido, trata-se de um processo interativo de apresen-
norteará toda a construção de hipóteses e interpretações a tação das interpretações dos pesquisadores, validação da
serem formuladas pelos pesquisadores durante o desenvol- análise, dos resultados e das conclusões da intervenção entre
vimento dos grupos. pesquisadores e participantes da pesquisa/intervenção.

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Roberto Heloani; Selma Lancman

4) Validação ampliada constatações observadas neste tipo de investigação, desta-


Este relatório final será discutido com o conjunto dos camos as estratégias defensivas que nos ajudam a refletir
trabalhadores que não participaram diretamente da pesquisa acerca da “irracionalidade” das condutas de trabalhadores
e com a direção da instituição, para difundir as interpreta- segundo a óptica dos gestores.
ções elaboradas no relatório de cada grupo. A grande questão dos psicodinamistas do trabalho é
compreender por que indivíduos submetidos a situações de
ANÁLISE DOS RESULTADOS trabalho extremamente penosas e reconhecidamente
favorecedoras de adoecimento, ao contrário do esperado,
Com relação à análise do material empírico, gostaríamos simplesmente não “adoecem”...
de esclarecer que o plano de análise concernente a este tipo de Na busca de responder a essa questão e aplicando o
pesquisa não é entendido do mesmo ponto de vista da pesqui- referido método a diversas situações de trabalho, esses
sa quantitativa, para a qual a construção de hipóteses, a coleta pesquisadores verificaram, ao intervir em diversas situa-
e a análise dos dados é vista de forma dissociada e como ções laborais, que os trabalhadores desenvolvem, entre
etapas distintas de uma pesquisa, cronologicamente demar- outros processos, estratégias defensivas individuais e co-
cadas. Em pesquisas dessa natureza, a delimitação dos obje- letivas para se proteger do elevado nível de sofrimento
tivos específicos, o detalhamento das estratégias metodológi- nestas organizações e poderem continuar a trabalhar
cas, o trabalho de campo, a análise do material, a avaliação, a (LANCMAN & SZNELWAR, 2004).
validação e a coleta de dados e sua análise ocorrem, simulta- Dentre as estratégias coletivas, destacamos aquelas de-
neamente, ao longo da intervenção. senvolvidas em situações de periculosidade, a saber:
banalização do risco, exaltação e ne-
gação do perigo, exaltação da virilida-
valiar uma ação supõe não somente se
A levar em conta os seus efeitos materiais
visíveis em situações objetivas, mas voltar-se
de, entre outras. Essas defesas psíqui-
cas explicam, em parte, condutas apa-
rentemente irracionais, quando traba-
lhadores submetidos a condições de
trabalho altamente perigosas, apesar
à qualidade das reflexões e às mudanças de orientados, por vezes, não usam ou
negligenciam medidas de proteção.
qualitativas nas relações que ela desencadeou Dentre as estratégias de defesa indi-
viduais exemplificamos aquelas cria-
das pelos trabalhadores submetidos a
Diferentemente das pesquisas quantitativas, em que a situações de trabalho repetitivas e fragmentadas. Entre elas,
legitimidade científica e a objetividade são dadas a partir da destacamos a aceleração da produção, a hiperatividade, a
quantificação da problemática estudada ou da possibilidade limitação da capacidade de pensar e fantasiar e os pensamen-
de reprodução dos resultados em outras situações, nas pes- tos recorrentes no que concerne à própria tarefa.
quisas qualitativas “o ideal de cientificidade e objetividade” Realçamos que a eficácia destas estratégias só é possível
é visto como busca da imparcialidade para retratar as visões se elas ocorrerem de forma permanente e contínua, de tal
de todos os atores da situação. Há também um esforço na forma que garantam que o indivíduo mantenha mesmo
busca de consenso entre pesquisadores para evitar os exces- durante o seu repouso a excitação psíquica necessária para
sos de subjetividade. Os princípios de explicação são assu- retomar a produção no dia seguinte.
midos no processo de argumentação (ou deliberação) para Mesmo que tais estratégias não sejam quantificáveis,
que os pesquisadores e os demais participantes cheguem a vale a pena destacar que as mesmas têm sido observadas em
aceitar como resultados as informações que se revelam mais várias intervenções realizadas em diversos setores produti-
adequadas, tanto do ponto de vista teórico como do prático. vos, em diferentes organizações independentemente da si-
(THIOLLENT, M. 1997, p.30). tuação socioeconômica e cultural estudada.

AS ESTRATÉGIAS DEFENSIVAS COLETIVAS AVALIAÇÃO DE RESULTADOS EM


E INDIVIDUAIS: COMPREENDENDO A PSICODINÂMICA DO TRABALHO
I(RACIONALIDADE) FUNCIONAL
Uma das grandes questões em uma pesquisa dessa natu-
Para exemplificarmos a indissociabilidade entre a pes- reza é a de como avaliar o impacto de uma ação/intervenção
quisa e a intervenção e a possibilidade de generalização de em uma situação de trabalho. Se considerarmos os aspectos

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Psicodinâmica do trabalho: o método clínico de intervenção e investigação

subjetivos, um dos alvos principais da nossa intervenção e a mentos teóricos e metodológicos, nessa posição sobre a
impossibilidade de avaliá-los segundo parâmetros quantita- pesquisa enquanto práxis, na teoria da ação comunicacional
tivos, enfrentaremos um processo de avaliação difícil, lon- de Habermas (DEJOURS, 1997).
go, pleno de dificuldades que, mesmo que seja feito de Laudrière e Gruson, ao apresentarem a teoria de
forma rigorosa, será incompleto, aproximativo e provisó- Habermas, ressaltam como este avança em relação às
rio (DEJOURS, 2003). teorias da ação desenvolvidas por Aristóteles e Weber
Os indicadores objetivos tradicionalmente utilizados nos (LAUDRIÈRE e GRUSON 1992), acrescentando a elas a
estudos que avaliam o impacto do trabalho na saúde dos idéia de que há também uma racionalidade subjetiva que
trabalhadores, tais como redução dos adoecimentos, dimi- norteia a ação. Para Habermas (DEJOURS, 1997, p. 67-69)
nuição do absenteísmo, mudanças organizacionais e existem três racionalidades para se entender a problemática
relacionais, não refletem em curto prazo a eficácia ou não de sociológica da ação e, no nosso caso, a ação no mundo do
uma intervenção. Processos de adoecimentos mórbidos trabalho: a teleológica, voltada ao mundo objetivo, ao agir
contraídos antes da intervenção podem continuar se mani- cognitivo e instrumental e ao agir estratégico, que, embora
festando tardiamente, trabalha-
dores já acometidos de patolo-
ação para a Psicodinâmica do Trabalho é
gias podem continuar se afas-
tando, mudanças organizacio-
nais podem gerar novas situa-
ções de trabalho e, por vezes,
A ligada à idéia de que a organização do trabalho,
muitas vezes, não leva em conta a racionalidade
novas formas de sofrimento.
A ação no mundo do traba- subjetiva ou violenta essa racionalidade
lho não pode ser avaliada so-
mente sobre as bases dos efei-
tos materiais dessa ação. As modificações materiais e ins- leve as pessoas em consideração, estas são entendidas como
trumentais conduzem a uma transformação da tarefa e a instrumentos; a axiológica, voltada ao mundo social, à
uma mudança significativa da atividade que melhoram a legitimidade de uma ação, ao agir moral e ético; e, finalmen-
eficácia do sistema, mas trazem consigo novos impasses. te, a racionalidade subjetiva, voltada ao mundo pessoal,
As instalações mudam, os recursos tecnológicos mudam, as ligada ao agir dramatúrgico, à autenticidade, à veracidade e
demandas mudam, as relações de trabalho mudam e trans- à coerência expressiva do indivíduo (LAUDRIÈRE P.
formam a qualidade do trabalho. A organização do trabalho 1992; DEJOURS, 1999b.).
é uma relação social, é um compromisso entre objetivos e A ação para a Psicodinâmica do Trabalho é ligada à idéia
prescrições (procedimentos, maneira de organizar o traba- de que a organização do trabalho, muitas vezes, não leva em
lho, método), as dificuldades reais para a realização do conta a racionalidade subjetiva ou violenta essa racionali-
trabalho e as relações entre os trabalhadores que dela decor- dade. O trabalho é também uma ação, mas dependendo de
rem. Ao mudarmos um destes aspectos o sistema inteiro se como está organizado, ele impede o indivíduo de pensar a
modifica. racionalidade dessa ação, o que gera, ao mesmo tempo, uma
Avaliar uma ação supõe não somente se levar em conta limitação na capacidade de se pensar.
os seus efeitos materiais visíveis em situações objetivas, Dejours propõe então o exercício da reflexão coletiva,
mas voltar-se à qualidade das reflexões e às mudanças que supõe, mais que uma discussão em conjunto, uma ação
qualitativas nas relações que ela desencadeou. A ação em que visa a apropriação de uma inteligibilidade comum,
Psicodinâmica do Trabalho é ligada à idéia da ampliação regida pela inter-compreensão de acordos e normas, produ-
do espaço público de deliberação e a uma maior ção de novas regras do trabalho e do metier. Nesse sentido,
mobilização dos trabalhadores para que eles mesmos pos- é necessária a criação de um espaço público de deliberação,
sam operacionalizar mudanças. Ou seja, a intervenção onde as pessoas possam falar e se escutar para que a
permite ampliar a participação dos trabalhadores em transformação da organização do trabalho ocorra. A con-
ações deliberativas, nas decisões sobre situações de tra- frontação de opiniões sobre o trabalho vai ter então o
balho, em uma maior capacidade dos trabalhadores pode- sentido de desenvolver a capacidade das pessoas pensarem
rem colaborar com sua inteligência e utilizarem o saber- individual e/ou coletivamente.
fazer nos processos de trabalho e na diminuição da defa- A organização do trabalho é um compromisso negocia-
sagem existente entre a planificação e a execução do do entre quem o organiza e quem o faz. Ela evolui e se
trabalho (DEJOURS, 2003). transforma. Ela é freqüentemente pensada, por cada um
A Psicodinâmica do Trabalho se apóia, buscando funda- dos níveis hierárquicos, a partir da compreensão que os

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Roberto Heloani; Selma Lancman

trabalhadores têm do seu próprio trabalho, sem que um mar e de fazer a organização do trabalho evoluir.
consiga entender as dificuldades e a racionalidade que
regem a prática dos outros. O agir comunicacional busca, CONSIDERAÇÕES FINAIS
por meio da intercompreensão, tornar visíveis as razões, a
racionalidade, o sentido do trabalho, a problemática vivi- Procuramos neste texto desenvolver algumas idéias con-
da pelos trabalhadores para realizar sua atividade e o cernentes ao falso dilema existente na utilização de aborda-
porquê (ou o pelo quê) eles buscam respostas para si gens quantitativas e qualitativas, ou ainda, nos estudos que
próprios e para os outros trabalhadores e demais níveis contrapõem a dimensão objetiva e a subjetiva nas análises
hierárquicos. de situações de trabalho.
Se o trabalhador é capaz de pensar o trabalho, de elaborar Assim, procuramos demonstrar que a “propriedade cien-
essa experiência ao falar, de simbolizar o pensamento e de tífica” não está no registro da mensuração ou objetivação,
chegar a uma interpretação, ele tem a possibilidade de mas sim na busca de métodos que respondam às solicitações
negociar, de buscar um novo sentido partilhado, de transfor- daquilo que se está investigando.

Artigo recebido em 10/05/2004


Aprovado para publicação em 16/01/2005

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Ser Auxiliar de enfermagem: um olhar da psicodinâmica do trabalho

Ser Auxiliar de enfermagem: um olhar


da psicodinâmica do trabalho

LAERTE SZNELWAR
Universidade de São Paulo, Escola Politécnica, Departamento de Engenharia de Produção
E-mail: laertesz@usp.br

SEIJI UCHIDA
Escola de Administração de Empresa de São Paulo – Fundação Getúlio Vargas – FSJ
E-mail: suchida@fgvsp.br

Resumo
No presente artigo, são apresentados os resultados de uma ação desenvolvida sob o ponto de vista da
psicodinâmica do trabalho com auxiliares de enfermagem em um hospital universitário. Através da criação de um
grupo de expressão, foram abordadas questões ligadas às vivências e experiências destes trabalhadores. Os
resultados evidenciam uma série de questões relacionadas à questão do sofrimento no trabalho, principalmente no
que tange à maneira como este é organizado e às tarefas concebidas. Apesar da predominância no discurso dos
trabalhadores do tema do sofrimento, questões relacionadas com o prazer no trabalho, ligadas à constituição do
saber, da identificação com o trabalho, da importância do que fazem, pois seriam uma espécie de guardiães, o último
elo na cadeia de assistência ao paciente, também foram evidenciadas.

Palavras-chave
Auxiliares de enfermagem, trabalho em hospitais, psicodinâmica do trabalho, sofrimento, prazer, identidade

To be nurse auxiliary: the point of


view of work psychodynamics
Abstract
This paper presents the results of a study made with nurse auxiliaries in a hospital using the work psychodynamics
approach. An expression group was created to discuss workers’ experiences about their work. The results put in
evidence questions linked to suffering due to work organisation and task content. Otherwise, even if suffering was
the main theme, aspects related to pleasure in performing their work, due to the constitution of knowledge,
identification with the work, to the consciousness of the importance of their acts were also discussed. Somehow
they represent themselves as guardians, the last link in the chain of assistance.

Key words
Nursing, work in hospitals, work psychodynamics, suffering, pleasure, identity.

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Laerte Sznelwar; Seiji Uchida

INTRODUÇÃO Nesse sentido, dadas estas condições, ele esperava encon-


trar afecções psicopatológicas como efeito resultante da
O presente artigo é resultado de uma ação baseada em confrontação dos trabalhadores com a organização do tra-
preceitos da psicodinâmica do trabalho, desenvolvida num balho. Contudo, como psicanalista, o autor intuía que os
hospital universitário de uma cidade de médio porte situada indivíduos não eram passivos diante das injunções organi-
em um dos estados do sul do Brasil. Este tipo de ação é zacionais: estes buscariam se proteger dos efeitos nocivos
baseado na premissa de que, para transformar o trabalho, é sobre a psique e, conseqüentemente, evitar cair no adoeci-
importante que seja realizada uma atividade de elaboração mento mental. Sofriam, mas criavam estratégias defensivas
coletiva, através da criação de um espaço público dentro das individuais ou coletivas, que pudessem preservá-los do
organizações, onde seja possível para os integrantes se sofrimento. Só que, na concepção dominante na maneira de
expressarem a partir do vivido. A tensão criada entre as organizar o trabalho, os indivíduos tinham um espaço limi-
expectativas e sonhos dos trabalhadores e a organização do tado para se desenvolver: restava somente o espaço da
trabalho e o conteúdo das tarefas pode vir a ser a fonte do invenção de modalidades de adaptação às situações concre-
sofrimento no trabalho. Sofrimento este que pode desenca- tas. Por mais engenhosa e inteligente que a invenção fosse,
dear ações criativas, mudanças, melhorias, como uma espé- não evitava e nem afastava o risco da alienação mental
cie de efeito catalisador. Entretanto, em muitas situações de (DEJOURS, 2000, p. 206).
trabalho, como no caso deste estudo, a maneira como o Com o desenvolvimento dos estudos em situações con-
trabalho é organizado e são definidas as tarefas, cria-se cretas de trabalho em empresas e instituições feitos por ele
uma verdadeira barreira a este processo. O trabalho reali- e sua equipe, foi sendo constatado que, apesar da violenta
zado não é reconhecido, o sofrimento não é reconhecido, a deterioração de muitas situações do trabalho, freqüente-
fala das pessoas não é estimulada, pelo contrário, é fre- mente os trabalhadores conseguiam evitar o adoecimento.
qüentemente combatida. O cenário para que este sofri- Destaca este “estranho silêncio”, ou seja, não encontrava
mento se torne patogênico está então criado. No caso deste os “ruídos” da loucura e da afecção psicopatológica. Em
trabalho, a demanda partiu da direção de enfermagem do seu lugar, observava um estado de “normalidade”.
hospital. Sua preocupação era a de entender o impacto de Este ponto surge agora como o enigma central de inves-
mudanças institucionais instituídas recentemente e abrir tigação e análise: o foco de pesquisa se desloca para este
um espaço para tomar conhecimento dos possíveis efeitos novo fenômeno. Aquilo que, aparentemente, é natural e
negativos e permitir uma elaboração que ajudasse a trans- óbvio para as pessoas passa a ser um problema a ser expli-
formar a situação. cado, um enigma. Ao passar da psicopatologia para a nor-
malidade, Dejours passa a chamar o seu novo campo de
Aspectos conceituais pesquisa e as teorias que passa a formular de psicodinâmica
Em seu percurso teórico, Dejours (2000) situa-se ini- do trabalho ou Análise Psicodinâmica do Trabalho.
cialmente dentro de uma tradição francesa conhecida Deve-se alertar que esta “normalidade” é fruto de um
como psicopatologia do trabalho. Este foi o nome dado equilíbrio instável, essencialmente precário, entre o sofri-
pelos psiquiatras sociais Sivadon, Guillant e Bègoin mento psíquico e as defesas utilizadas contra ele. Nesse
(BILLIARD, 1996) a uma disciplina iniciada nos anos sentido, esta situação mascara um estado de sofrimento
1950 e 1960. Esta escola, a exemplo das teorias formula- patogênico. Mas, ter a normalidade enquanto objeto de
das pela medicina do trabalho, tinha como finalidade estudo abre um enorme campo que vai incluir o prazer, o
buscar a relação entre determinadas maneiras de organi- trabalho, a identidade, a dinâmica interna da situação do
zar, as condições e o conteúdo de trabalho com adoeci- trabalho, a questão do reconhecimento (de beleza e utilida-
mento psíquico. Dejours, influenciado por esta corrente, de), criatividade, eficácia, e assim por diante.
procura compreender o sofrimento psíquico no trabalho, e No nosso entender, o que o autor defende a partir deste
todo o seu esforço passa a ser estabelecer relações entre os momento é que não se deve confundir estado de normalida-
constrangimentos organizacionais e possíveis descom- de com estado saudável. Se, de um lado, a normalidade pode
pensações psicológicas dos indivíduos. ser o signo de equilíbrio saudável entre as pessoas, pode, de
Neste momento, compreendia a organização do trabalho, outro, ser o do mascaramento de um sofrimento atroz, ou
conceito central dentro de sua obra, “como um dado pré- seja, o estabelecimento de um precário equilíbrio entre as
existente ao encontro entre o homem e o trabalho, como um forças desestabilizadoras dos sujeitos e o esforço destes e
conjunto de constrangimentos massivos, monolíticos, ina- dos grupos no sentido de se manterem produtivos e atuantes
baláveis, até inexoráveis, tendo o peso e a rigidez da matéria à custa de muito sofrimento.
mineral” (DEJOURS, 2000, p.205). Esta realidade produzi- Este sofrimento não se manifesta na forma de afecção
ria um impacto violento e opressivo sobre o trabalhador. psicopatológica porque os sujeitos buscam ativamente se

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Ser Auxiliar de enfermagem: um olhar da psicodinâmica do trabalho

proteger e defender. Lançam mão ou de mecanismos de ção, e esta pode ser adotada pelo grupo, podendo fazer parte
defesa, quando trabalham sós e isolados, ou de estratégias do que Clot (1995, 1999) considera como fazendo parte do
de defesa coletiva, quando o trabalho é em grupo. A patolo- gênero profissional. Do contrário, o indivíduo que não
gia surge quando se rompe o equilíbrio e o sofrimento não é recebe um julgamento favorável irá sofrer pela transgressão
mais contornável. Em outros termos, esta surge quando os e a não solução do problema. Pode ser levado, no limite, a
recursos intelectuais e psicoafetivos dos trabalhadores re- viver intensamente um sofrimento que pode se tornar pato-
quisitados para dar conta da tarefa e das demandas impostas gênico, com conseqüências graves para a sua saúde.
pela organização não são suficientes e fica patente que nada Esta mesma solução pode também ser reconhecida pela
podem fazer para transformar o trabalho. chefia e, quando estiverem envolvidos, pelos clientes. Nes-
Note-se que em muitas situações do trabalho vários te caso trata-se do reconhecimento de utilidade. Entretanto,
sinais de sofrimento serão considerados como “normais” na maioria das vezes as mudanças nas regras do trabalhar se
pelos próprios indivíduos: cefaléias, insônias, alergias, que- dão sob silêncio, ficam invisíveis. Em certas situações
da de cabelos, irritação contínua, etc. No máximo dirão que podem ser estabelecidos acordos tácitos. A hierarquia ime-
vivem “estressados” e que isto se deve às pressões naturais diata sabe que é impossível cumprir o prescrito, mas tam-
da situação do trabalho. bém não tem como modificá-lo. Estes acordos são frágeis e
Um outro aspecto importante deste processo de desen- podem ser rompidos pelos mais variados motivos.
volvimento teórico-conceitual foi o encontro com a ergono- Gostaríamos também de ressaltar que em muitos destes
mia francesa. A distinção realizada entre trabalho prescrito processos de trabalho pode ser evidenciado o que Dejours
e trabalho real (GUÉRIN 2001), foi uma contribuição im- (1993, 1995) chama inteligência astuciosa. É uma inteligên-
portante para se questionar a dimensão monolítica da orga- cia prática “essencialmente engajada nas atividades técni-
nização do trabalho. Os trabalhadores seguem, dentro do cas, em particular nas atividades de fabricação (poïèsis)”.
possível, prescrições e normas de procedimentos para Caracteriza-se por um certo número de traços: “é mobiliza-
executar as suas tarefas. Freqüentemente uma parte da da frente a situações inéditas, ao imprevisto, frente a situa-
realidade se destaca na forma de resistência às prescrições, ções móveis e cambiantes; ilustra-se particularmente na
ou seja, trata-se sempre de uma situação desconhecida, atividade do caçador, na arte do navegador ou do médico;
imprevista, imprevisível que as coloca em cheque. O traba- sua competência é a astúcia; ela está fundamentalmente
lhador neste momento se encontra diante de um dilema: de enraizada no engajamento do corpo, poupa esforços e privi-
um lado, a organização “espera” que ele cumpra o previsto legia a habilidade em detrimento do emprego da força; é
e de outro, se seguir a prescrição não dará conta da nova inventiva e criativa” (1995, p. 46).
situação. A saída é lançar mão da
trapaça1 , ou seja, “trapacear as re-
tensão criada entre as expectativas e
gras” para desenvolver o trabalho.
Abre-se assim o campo para pensar a
possibilidade do indivíduo agir sobre
a situação do trabalho. Ele não é so-
A sonhos dos trabalhadores e a organização
do trabalho e o conteúdo das tarefas pode
mente um sujeito que deve se adaptar
à organização e às condições do tra- vir a ser a fonte do sofrimento no trabalho.
balho. Mas, deve recriar a tarefa, que
implica a possibilidade da transfor-
mação do trabalho, dentro de determinados limites. O resul- Um outro aspecto importante está ligado à questão do
tado deste processo onde são buscadas novas soluções a corpo, a psique existe corporificada, não existe como uma
despeito das prescrições é nomeado de trabalho real. Só que entidade abstrata, baseada no que poderíamos definir como
isto não ocorre sem riscos. O fato de transgredir as regras, e domínio do afetivo e da inteligência. A psique, assim como
o sujeito o faz conscientemente, suscita necessariamente a cognição, estão enraizadas no corpo: “esta dimensão
preocupação e angústia: ele não tem certeza da justeza da corporal da inteligência prática é importante a ser consi-
solução. derada na medida em que implica um funcionamento que se
É necessário submeter ao julgamento dos pares a solução distingue fundamentalmente de um raciocínio lógico. É a
dada. Segundo Dejours, é o mais temível julgamento a que se desestabilização do corpo em sua relação à situação que
submete, pois são os que verdadeiramente têm condições, mobiliza, inicia e acompanha o jogo desta inteligência práti-
experiências, conhecimentos, habilidades e competências ca” (1995, p. 50). Vai ser através da detecção e tratamento dos
para julgar o que foi feito. Caso o “veredicto” seja favorável, dados relativos à operação que um trabalhador irá esboçar
o trabalhador recebe o reconhecimento pela beleza da solu- rapidamente um diagnóstico ou uma medida corretiva.

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Laerte Sznelwar; Seiji Uchida

Podemos observar, através do que foi exposto até o subjetivo. Submeter-se ao julgamento do outro significa
presente momento, como os novos elementos abertos pela correr este risco, e este só pode ser assumido quando existe
normalidade, vão sendo articulados e como novos temas uma relação interpessoal de confiança. Esta só ocorre
vão surgindo. Por exemplo, para a prática da trapaça são quando se constrói um clima de respeito e justiça com
necessárias criatividade e inteligência, mas não basta ser relação às ações das pessoas. Se existe transparência no
criativo e inteligente, é necessário que a solução seja eficaz. julgamento do fazer e que não seja distorcido por ambi-
Ora, como desenvolvemos anteriormente, da mesma forma ções outras que contaminem este julgamento, tais como
como a trapaça é julgada pelos pares, a criatividade, inteli- desejo de poder e dominação, pode-se criar um clima de
gência e a eficácia da solução também estão sendo julgadas cooperação. Por outro lado, a invisibilidade impossibilita
ao mesmo tempo. Isto permite transformar o sofrimento o reconhecimento. O sujeito corre um outro tipo de risco,
potencialmente patogênico em sofrimento criativo. Isto o do anonimato e perda de identidade, que no limite ameaça
pode produzir satisfação no trabalho, ou seja, há vivência de sua saúde psíquica.
um intenso prazer quanto maior for o desafio enfrentado. O A construção da confiança, essencial para a saúde,
processo criativo e seu reconhecimento levam-nos a discu- depende também da criação de um coletivo de trabalho
tir também um outro conceito fundamental para a promoção que, segundo Dejours (1999) não é apenas um grupo, mas
da saúde do trabalhador: a identidade. o resultado da construção comum de regras e do ofício.
Identidade é o conceito que permite entender a nossa Faz parte deste processo, a atividade deôntica, a ativida-
necessidade de sermos únicos, singulares, diferentes do de de construir acordos, normas e valores que se estabi-
outro. É distinto do conceito de personalidade. Como recor- lizam sob a forma de regras. Logo, a construção de um
da Dejours (1995), espaço para a livre circulação da palavra coletiva é es-
sencial para a saúde que passa pela construção de uma
“(...) uma parte importante da tradição psicanalítica identidade sólida que requer relações de confiança que só
confere um lugar essencial à análise da personalida- poderão ser produzidas quando há normas e valores éti-
de ou do caráter, isto é, às invariantes que resultam cos que norteiem as relações dentro de uma determinada
da sedimentação do drama da infância e conferem à organização.
pessoa uma estabilidade que tem freqüentemente Neste momento é fundamental distinguir a experiência
sido considerada como uma estrutura. Portanto, a coletiva da experiência compartilhada. Não existe uma
personalidade, o caráter ou a estrutura não afastam experiência coletiva vivida por todos igualmente. O sofri-
os riscos da crise psíquica e da descompensação. O mento, por exemplo, não é coletivo, ele é individual. A
recurso à noção de identidade permite precisamente experiência que os trabalhadores têm da mesma situação
problematizar esta tensão entre o que vem do passado que produz sofrimento não é a mesma para cada um deles,
que confere a estabilidade e o que na atualidade, cria não é comum a eles. O que é comum é o fato de muitos
o risco de desestabilizar o sujeito ou de provocar as dentre eles sofrerem. Podemos compartilhar então como
crises de mudança. A identidade nesta perspectiva cada um sofre, ou seja, sua inteligibilidade, o seu sentido.
conserva sempre uma certa precariedade e jamais é No coletivo, o que se constrói é o sentido comum dos
definitivamente adquirida” (p. 189) sofrimentos vividos. Vai ser através dos atos de linguagem
ou, como diria Habermas (1987), ações comunicativas que
podemos compartilhar o sofrimento. Para que isso ocorra é
A identidade é algo que se constrói na relação com o necessária a construção de um espaço comum, público, ou
outro (VÉZINA, 2000), ou seja, passa pelo julgamento e no dizer de Arendt (1981) esfera pública, de livre circulação
reconhecimento do outro. Isto significa que na situação do da palavra para que se possa criar uma linguagem comum
trabalho, passa inicialmente pelo fazer. É a ação que irá que leve a uma nova inteligibilidade, uma nova interpreta-
primeiramente ser julgada. Mas esta é fruto da experiência, ção e um novo sentido ao trabalho.
desenvolvimento das habilidades, competências e saberes As regras do métier (CRU, 1987) são um elo intermedi-
práticos e teóricos. A ação atual é fruto de um longo ário nesta construção. É uma condição necessária, mas não
percurso de vida do sujeito, logo, quando o seu fazer é suficiente entre o reconhecimento de pares e a negociação
julgado, o seu ser indiretamente também o é. Por isso, o da organização real do trabalho. As regras são atravessadas
reconhecimento (de beleza e de utilidade) terá uma grande pelas relações sociais do trabalho, fundamentais para a
repercussão no processo de identificação com o trabalho, criação do espaço de cooperação, pois este repousa sobre a
conseqüentemente de fortalecimento da singularidade do construção e transformação das regras de trabalho. E isto
sujeito, da sua identidade. somente irá ocorrer com um espaço que respeite as diferen-
Mas o fazer requer visibilidade e esta pressupõe risco tes manifestações e discussões entre os sujeitos e que permi-

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Ser Auxiliar de enfermagem: um olhar da psicodinâmica do trabalho

tam, através dos atos de linguagem, a criação das normas A existência do auxiliar de enfermagem é explicada
que vão reger as relações interpessoais. historicamente pela necessidade de preencher um vazio no
Com relação ao método proposto por Dejours (2000), atendimento à saúde. Apesar de na época já existir como
gostaríamos de ressaltar alguns aspectos. A discussão sobre profissão e haver reconhecimento social, a enfermagem de
as possibilidades de ação em psicodinâmica do trabalho em nível superior não era exercida por uma quantidade sufi-
nosso meio é muito recente, uma vez que a prática ainda é ciente de pessoas que pudessem abarcar todas as tarefas
incipiente e as representações que existem quanto ao que de necessárias para o cuidado dos pacientes, principalmente
fato significa uma intervenção neste campo podem variar os internados. Na prática, já havia pessoas leigas trabalhan-
substancialmente. A questão principal seria, o que se espera do em hospitais nas tarefas de auxílio, mas estas não eram
deste tipo de intervenção? A criação de um “espaço públi- consideradas como profissionais da saúde. Foram criados
co”, dentro do ambiente de uma empresa, ou entre profissi- então cursos técnicos para a capacitação destas pessoas, que
onais de uma determinada categoria abre a perspectiva de passariam a ter um estatuto de profissional de nível não
trocas e de questionamentos que não se realizavam antes. A universitário.
perspectiva de se colocar “em pú-
blico” o ponto de vista subjetivo
pesar da violenta deterioração de muitas
de um determinado coletivo exibe
problemas e contradições existen-
tes nas organizações, que podem
ser inclusive geradores de sofri-
A situações do trabalho, freqüentemente os
trabalhadores conseguiam evitar o adoecimento
mento. Estas questões devem ser
situadas. Discutir a prática em psi- Deve-se alertar que esta “normalidade” é
codinâmica do trabalho, em uma
determinada situação deve con- fruto de um equilíbrio instável, essencialmente
siderar a história e a cultura lo-
cais. A prática de uma certa de- precário, entre o sofrimento psíquico
mocracia dentro das empresas,
no Brasil, é pouco difundida,
e as defesas utilizadas contra ele.
uma vez que ainda há poucos
exemplos em que os trabalhadores se organizam no inte- O auxiliar de enfermagem tem a prerrogativa de atuar na
rior destas. Há poucos comitês de empresa onde há grande maioria dos procedimentos técnicos de enfermagem
representação sindical, e os próprios sindicatos não têm sob a supervisão de profissional de nível superior. Atual-
representação formal por empresa, estes se organizam mente, apesar das diferenças significativas existentes nos
fora delas. Portanto, podemos considerar que a proposi- hospitais, o pessoal de enfermagem com nível superior
ção de uma ação em psicodinâmica do trabalho, com a trabalha em tarefas técnicas e gerenciais, chefiando grupos
criação de grupos de trabalhadores para se expressar de auxiliares e, mais recentemente, de técnicos de enferma-
dentro das empresas, pode ser considerada como uma gem, sendo que o técnico tem um nível maior de escolarida-
situação nova em que, muito provavelmente, será a pri- de e de especialização que o auxiliar. Já o cargo de atendente
meira vez em que é possível se expressar efetivamente de enfermagem, para o qual o nível de escolaridade exigido
dentro do coletivo de trabalho. é baixo, está em vias de desaparecimento em nosso país.
Há diferenças significativas determinadas pela região do
Trabalhar como auxiliar de país, pela qualidade dos hospitais e pelas características da
enfermagem2 em hospitais rede de assistência à saúde. No caso dos auxiliares de
O objetivo deste trabalho não é o de analisar em profundi- enfermagem, estes desenvolvem as mais diferentes ativida-
dade o conteúdo e a organização do trabalho de auxiliares de des, o trabalho que lhes é prescrito é vago e amplo, na
enfermagem em hospitais, mas sim discutir sobre a experiên- medida em que engloba desde ações com grau relativamen-
cia vivida por estas pessoas em uma determinada situação de te alto de complexidade técnica até ações consideradas pela
trabalho. Portanto, os resultados devem ser analisados em sua instituição como tecnicamente mais simples, como os cui-
singularidade, como fruto das discussões de um determinado dados com a higiene dos pacientes, entre outros. Na prática,
coletivo, eles são localizados no tempo e no espaço. Qualquer fica muito difícil separar a tarefa por categorias, uma vez
possibilidade de generalização ficaria por conta de novos que o atendimento ao paciente envolve todas as ações
estudos. Nesse sentido, o importante é caracterizar o cenário necessárias e que, muitas vezes, ocorrem simultaneamente.
onde estas atividades profissionais são exercidas. Segundo Molinier (1995), a relação de cuidado não é sim-

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plesmente algo que se justapõe à técnica, como um conforto havido várias discussões sobre o que seria este tipo de
suplementar ou um prêmio de humanidade, tanto o cuidado trabalho, foram explicitadas as diferentes etapas (trabalho
como a técnica são indissociáveis. da demanda, constituição de grupos homogêneos voluntári-
Uma outra característica do trabalho hospitalar é a exis- os, realização de reuniões com a presença apenas dos gru-
tência de eventos de toda natureza. As panes, a falta de pos e dos pesquisadores, redação de um documento, discus-
material, a ausência de um colega, a evolução repentina do são e validação do documento, entrega do documento para
estado de saúde de um paciente, se sobrepõem ao procedi- os solicitantes – empresa e participantes do grupo), pode-
mento e ao planejamento. Como descrito por Tonneau et al. mos afirmar que ainda havia lacunas substanciais. Apesar
(1996), aquela atividade pode ser interrompida naquele de parte da direção do hospital querer conhecer mais pro-
momento, mas como conseqüência, todo o planejamento fundamente as questões que permeavam o trabalho de
das ações da jornada fica comprometido. Cabe aos profissio- auxiliares de enfermagem, havia um receio muito grande
nais de enfermagem, fazer a gestão desta variabilidade e com relação aos resultados. Tanto é que a intervenção foi
garantir o cumprimento dos cuidados. financiada e anunciada pelo hospital como um curso e não
No que tange às relações hierárquicas em um hospital, como uma ação em psicodinâmica do trabalho.
apesar da organização prescrita do trabalho ser clara, a Temos consciência de que, neste início, o interesse dos
realidade é bem mais complexa e há ambigüidades eviden- funcionários foi mediado pela direção. Por exemplo, na
tes. No caso de auxiliares há uma linha direta onde a chefia proposta que foi enviada para a direção, foi colocado que a
é exercida por profissional de enfermagem. Entretanto, a constituição dos grupos deveria ser feita através da livre
relação com outros profissionais da saúde, principalmente adesão dos trabalhadores. O fato é que houve três tipos de
com os médicos, é ambígua. No caso específico do hospital critérios para a escolha dos participantes: os voluntários na
onde foi realizado o trabalho, há outras características im- ausência de outros candidatos, os designados pela chefia e
portantes. Trata-se de um hospital geral e de ensino. Além os escolhidos democraticamente pelos grupos de trabalho
de profissionais de diferentes áreas da saúde há também de diversas clínicas do hospital.
estudantes de várias áreas, tais como medicina, fisioterapia,
terapia ocupacional, psicologia e enfermagem. Dessa for- Os encontros
ma, apesar de não haver reconhecimento explícito, eles No primeiro encontro os objetivos do trabalho foram
exercem, de maneira informal, funções que se aproximam explicados e as regras de funcionamento do grupo explici-
da prática do ensino e da supervisão de estagiários. tadas e negociadas. Destacamos:
• A criação de um espaço público para que houvesse a livre
Metodologia utilizada circulação de palavras.
O propósito agora é o de apresentar e refletir criticamente • A garantia de sigilo total com relação às falas.
o método usado nesta pesquisa com um grupo de auxiliares • Ficou estabelecido o papel dos pesquisadores / facilitadores;
de enfermagem3 no hospital citado. Procuraremos mostrar, durante os encontros eles deveriam ter um papel “de escuta”,
baseados na metodologia proposta por Dejours (2000), evitando um papel diretivo nas discussões, e produzir um
como foi o processo desenvolvido, ou seja, caracterizando e documento parcial a ser apresentado no encontro seguinte
refletindo sobre a demanda, o contrato, os encontros reali- que retratasse da forma mais fiel possível o discurso coletivo.
zados e o final da intervenção. • A produção de um documento final, fruto das discussões
Inicialmente falaremos da demanda. É essencial prestar e que deveria passar por um processo de validação final
atenção não só com relação a quem pede, mas ao modo pelo grupo.
como esta ocorre. Diversamente do que propõe Dejours – • O documento seria entregue aos participantes do grupo, à
“uma solicitação só pode ser considerada se for proveniente direção do hospital e seria objeto de publicações futuras.
dos próprios trabalhadores” –, no presente caso o contato • Ficou também explícito que não havia garantias com
para a realização do trabalho foi feito pela direção do relação aos desdobramentos do trabalho, não havia garan-
hospital, a partir de questões colocadas pela direção da tias por parte do hospital de que haveria mudanças obje-
enfermagem, como uma insatisfação crescente expressa em tivas na organização e no conteúdo do trabalho deles.
conflitos e uma elevada taxa de absenteísmo. É importante • Que os objetivos do grupo não eram terapêuticos.
ressaltar também que houve desde o início, por parte da • Os resultados seriam o retrato o mais fiel possível do que
direção, uma certa ambigüidade quanto aos objetivos, uma aquele coletivo criou como discurso sobre como o traba-
vez que ficou patente que ela tinha receio quanto aos efeitos lho era vivido por eles.
institucionais deste tipo de trabalho, uma vez que estaria
sendo aberto um canal de comunicação sem que fosse Durante a sessão de validação do documento final, pro-
garantido o controle sobre os resultados. Apesar de ter curou-se trabalhar as dúvidas quanto à fidelidade do texto

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Ser Auxiliar de enfermagem: um olhar da psicodinâmica do trabalho

em relação ao exposto durante os vários encontros. Surgi- Este “olhar” adquirido com a experiência, define uma
ram também receios e fantasias persecutórias quanto ao outra postura frente às ações de saúde. Elas se sentem em
impacto que este causaria na hora de sua divulgação. Houve constante atividade de vigilância. Os pacientes devem ser
dúvidas quanto à justeza das colocações feitas principal- protegidos, pois elas seriam o último elo de uma cadeia de
mente em relação à direção e aos outros colegas e profissi- cuidados e assistência. Caso algum erro a montante seja
onais. Discutiu-se qual uso do documento poderia ser feito. cometido, devem ser elas que devem barrá-lo. Para elas é
Chegou-se à conclusão de que ali estava retratada de forma preciso ter certeza que o procedimento clínico está correto,
mais fiel e clara possível a vivência deles no dia a dia do seu que não houve erro, elas aprendem inclusive a interpretar
trabalho, e que através de uma relação intersubjetiva foi uma prescrição, com relação à dosagem e mesmo com
possível construir um relato que ultrapassava o individual, relação ao tipo de medicamento.
pois retratava o resultado de um trabalho coletivo, no espa- Com sua experiência chegam a ensinar os estudantes de
ço criado durante as sessões. Portanto, o documento seria medicina em alguns procedimentos, elas têm prática sufi-
fruto de uma criação coletiva, onde cada um se identificava ciente para mostrar como se faz, mas isto se passa discre-
de maneira diferenciada. tamente, uma vez que não há reconhecimento do seu saber:
Ao todo foram 15 horas de trabalho de grupo, 5 encontros “O aluno de medicina solicita ajuda, eles têm conheci-
de 3 horas. O grupo foi composto por 15 pessoas, das quais, mento, mas não tem prática. Já ensinei a aplicar o soro e ele
14 eram mulheres e um homem. A forte presença feminina ficava perguntando para mim como é que fazia.”
retrata a realidade, uma vez que mais de
90% da população de auxiliares de en-
inteligência astuciosa. Uma inteligência
fermagem do hospital é composto por
mulheres. Os homens trabalham como
auxiliares, exercendo principalmente
atividades onde é exigida mais a força
A prática “essencialmente engajada
nas atividades técnicas, em particular
física. Com relação à idade e ao tempo
de trabalho na profissão e no hospital, nas atividades de fabricação. (poïèsis)
tratava-se de uma população diversifi-
cada, onde a maioria tinha mais de 10
anos de profissão e com idades acima dos 30 anos. Outra vertente deste trabalho que fica completamente
invisível é o apoio psicológico que a auxiliar presta aos
Apresentação dos Resultados pacientes e familiares. Em várias situações elas acabam
A auxiliar de enfermagem vai adquirindo experiência e informando a respeito do que sabem sobre os pacientes,
vai constituindo o que Dejours (1993) chama de sabedoria mesmo que isto não faça parte dos procedimentos no escopo
prática. Tendo como base aquilo que aprendeu nos cursos, da sua tarefa.
no contato diuturno com pacientes e na observação da Não há reconhecimento do seu saber prático, de sua
prática do trabalho das enfermeiras e médicos, assim como capacidade de avaliar o estado do paciente. As auxiliares se
de outros profissionais da saúde, ela vai incorporando expe- sentem impotentes por nada poderem fazer e de se valer de
riências e reforçando a “inteligência astuciosa” que lhes algum médico que legitime o seu “diagnóstico” para ameni-
permite trabalhar e exercer suas funções a contento. zar a angústia de sua “desqualificação” diante do saber
A fronteira que separa, o seu trabalho daquele que seria o médico. É comum, ao oferecerem alguma informação de
das enfermeiras é tênue. Elas fariam “tudo” aquilo que as cunho mais técnico receberem comentários com certa dose
enfermeiras fazem, mas isso não é sabido, o reconhecimen- de ironia: “como você sabe?”.
to dos outros profissionais, principalmente o dos médicos, Outra característica da organização do trabalho no hospi-
não é dirigido a elas. tal é o constrangimento de tempo, tudo é urgente para quem
Há questões levantadas sobre a confiabilidade do siste- demanda atenção. Entretanto, o profissional auxiliar preci-
ma, inclusive quando percebem falhas cometidas durante o sa fazer uma triagem para conseguir atuar. Mas como
processo de tratamento. Neste caso a falta de integração nas definir o que é mais urgente se, em princípio não é de sua
equipes de saúde e a pobreza do diálogo ficam patentes. O alçada fazer diagnóstico clínico?
exemplo a seguir ilustra um caso destes: No momento da pesquisa, o hospital tinha passado por
“...quando o paciente não está bem, a gente sabe. Teve o um processo de diminuição do pessoal e isto se tornou uma
caso de uma criança. O plantonista veio ver várias vezes, não fonte de sofrimento suplementar. Percebiam que por mais
tomava as providências necessárias. Eu pensava se não tomar que se desdobrassem, lutavam contra o tempo para dar
cuidado, vai a óbito. Cheguei a chorar por falha médica”. conta de suas tarefas. Dentre as falas do grupo ficavam

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evidentes questões como a falta de tempo para fazer tudo o se irritarem com as cobranças dos pacientes, acreditam que
que é previsto. Os problemas oriundos da diminuição do estes não devem ter paciência, o problema deles é serem
número de funcionários, ausência de médicos em alguns cuidados e não “serem compreensíveis com as falhas da
momentos de morte em que elas achavam que algo poderia organização”. Em setores onde a margem para o erro é muito
ter sido feito, o tempo gasto quando de um procedimento estreita, estas questões são ainda mais evidentes:
mais complicado, como a punção de uma veia de uma “Em pacientes graves afetados por doenças infecto-
criança, e a simultaneidade de chamadas urgentes de paci- contagiosas, os cuidados complexos exigem tempo e aten-
entes compõem este cenário. ção, e existe muita pressão. Em termos de cuidado dá para
realizar, passamos do nosso ho-
rário, mas na medicação não se
m outro aspecto importante está ligado
U à questão do corpo, a psique existe
corporificada, não existe como uma entidade
pode errar, a dose é precisa, não
se pode errar na quantidade, do-
ses diferentes de paciente para
paciente, tem que respeitar o ho-
rário, o que é humanamente im-
abstrata, baseada no que poderíamos definir como possível”.
Apesar das dificuldades, rela-
domínio do afetivo e da inteligência. A psique, assim tam que buscam zelar pelo que
estão fazendo, há procedimen-
como a cognição, estão enraizadas no corpo. tos que exigem muita atenção e
cuidado, não podem, não querem
perder uma veia puncionada.
Há muita queixa também com relação às condições de São pressionadas pelo tempo e pelos próprios pacientes.
trabalho. Questionam certas prescrições das tarefas utili- Sentem-se constantemente ameaçadas, pois as falhas são
zando o saber adquirido, e apontam contradições que, no perceptíveis facilmente e muitos pacientes “delatam” os
seu entender, colocam em risco a vida dos pacientes. Por problemas para as chefias.
exemplo, elas consideram um absurdo a necessidade de Referem que há falta de entendimento com a hierarquia
passar de uma área contaminada para um setor que exige a e com os médicos, não há espaço para externar suas
mais absoluta higiene sem as devidas condições técnicas e opiniões, discutir os problemas, construir soluções. Seria
organizacionais (tempo) para a uma higienização e uma estrutura organizacional de mando e subordinação,
paramentação adequadas. sem espaço para contestação. As ordens que não podem
As condições materiais são também criticadas. Gostariam ser cumpridas por questões de tempo e de falta de material
que o hospital oferecesse condições para que pudessem são geradoras de ansiedade. A falta de diálogo faz com que
desempenhar suas funções dentro dos padrões que acredi- se sintam como “robôs” cumprindo ordens. Além disso,
tam ser de qualidade. Os equipamentos não são mantidos reclamam da falta de união, pois acreditam que se houves-
adequadamente, faltam equipamentos novos, prejudicando se mais solidariedade teriam maior possibilidade para
a realização de determinados procedimentos. Além da pe- negociar. Sentem-se muito incomodadas quando a chefia
núria com relação a equipamentos com maior tecnologia faz comparações com outros colegas e outros setores.
agregada, elas referem-se aos problemas de falta de roupa, Acham que todos são pressionados e que são o elo mais
fato que constantemente cria problemas na relação com os fraco da cadeia. A submissão é, segundo elas, bem vista
pacientes, inclusive nos casos de preparação destes para pela hierarquia. A contestação é vista como rebeldia,
cirurgias. como falta de vontade de trabalhar. Falam em humilhação
Diante destes problemas, as auxiliares acreditam que o quando broncas são dadas na frente de colegas, de médi-
seu trabalho não é desenvolvido com a qualidade que dese- cos, de pacientes. O mesmo acontece quando plantonistas
jariam. Sentem-se cansadas e freqüentemente acham que reclamam ao serem acordados, a situação ainda piora
trabalham no limite da sua capacidade física e emocional: quando estes acreditam que o caso não seria urgente.
“…quem sai perdendo é o paciente.” Referem que se sentem
impotentes, que parece que fingem que conseguem atender “Como saber, paciente não marca hora para passar mal”
a todos, pois acreditam que, em muitos casos, seria necessá-
rio se dedicar mais, ficar mais ao lado das pessoas. Emocio- O sentimento de inutilidade aparece quando relatam
nam-se quando falam dos erros, quando não dá para “segu- que alguém está mal e que vai morrer, mas ninguém
rar uma morte”, se sentem sozinhas “nesta luta”. Apesar de acredita nelas. Além do mais, os outros podem jogar a

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Ser Auxiliar de enfermagem: um olhar da psicodinâmica do trabalho

responsabilidade nelas, um erro de procedimento, não Ser auxiliar de enfermagem


fez na hora certa, mas elas não teriam em quem descarre- Após a apresentação geral dos resultados, serão apresen-
gar a culpa. tados neste item alguns temas do documento final entregue
Há vários sinais que indicam um grau alto de ansiedade pelos pesquisadores/facilitadores, considerado pelo grupo
devido ao trabalho: As brigas têm se tornado mais freqüen- como uma espécie de síntese do seu trabalhar.
tes, é comum alguém “descarregar em cima do outro”. O ser do(a) auxiliar de enfermagem aparece como profis-
Pacientes costumam falar mal delas e de seus cuidados, se sional do auxílio, da ajuda. Nesse sentido, deveria bastar o
sentem desrespeitadas e sob constante pressão, muitas re- cumprimento de procedimentos consagrados para o desem-
clamações são levadas a sua chefia, se sentem injustiçadas. penho de suas tarefas. No entanto, o dia-a-dia desta profis-
Há casos extremos, como por exemplo, ao tentar salvar a são no hospital mostra a sua complexidade latente.
vida de um paciente, uma delas foi acusada por familiares Este ser se revela como uma espécie de guardião da
de pacientes de ter criado o problema, se sentem desnortea- instituição, pois é o último elo na cadeia de cuidados e
das sobre o que e quando fazer. Elas são a primeira linha de atendimento dos pacientes. Qualquer erro que eventual-
contato, é com elas que as “coisas” acontecem. mente venha a ocorrer dentro desta cadeia – professores,
Referem ainda que, além de todas estas fontes de sofri- residentes, internos, enfermeiras e outros auxiliares –
mento, as relações com os pares são muito problemáticas. pode vir a ter conseqüências graves se não for detectado
Consideram-se pouco unidas, que uma não colabora com o por ele.
trabalho da outra, que muitas buscam vantagens e privilé- Este ser é um guardião alerta e zeloso e, ao mesmo
gios ao fazerem favores para a chefia. Relatam casos de tempo, dar conta das múltiplas tarefas que lhe são exigidas
crise de choro por causa do comportamento de um colega. é difícil, senão contraditório. A demanda é enorme e
Por outro lado, mostram que há espaço e sinais claros de variável. Isto significa, por exemplo, nunca saber quanto
solidariedade, como trocas de plantão, cobertura de faltas e vai se trabalhar naquele dia ou naquela noite, não saber se
cooperação em situações mais críticas. Relatam, entretanto, vai enfrentar problemas com equipamentos, se vai haver
que isto tem diminuído, que todas estão sobrecarregadas. O interferências de superiores hierárquicos e médicos que
isolamento e a falta de espaço e tempo definido para discutir dificultem os atendimentos dos pacientes. Como ser atento
os problemas são considerados como uma ameaça crescen- e vigilante e, ao mesmo tempo, cuidadoso neste contexto?
te. Não há onde e com quem desabafar, debater, aprender Exige-se uma grande capacidade de adaptação e criação de
mais. Relatam que não há nem tempo hábil para as passa- estratégias operacionais para responder constantemente a
gens de plantão. Um exemplo ilustrativo está nesta fala: este duplo desafio.
“Temos que fazer o debate
interno, há paciente que não
criação de um espaço público, no sentido de
A
está sendo atendido. Se não
falarmos vão sempre achar
que estamos dando conta, Arendt (1981), dentro do ambiente de uma
que tudo está andando bem”
Esta ameaça crescente, se empresa, ou entre profissionais de uma determinada
expressa no afastamento de
colegas e amigas por adoeci-
categoria abre a perspectiva de trocas e de
mento. Pouco se fala a respei- questionamentos que não se realizavam antes.
to, há um silêncio, uma espé-
cie de defesa coletiva. Há ca-
sos de afastamento por descompensação psiquiátrica, mas O que se observa então é um constante desvio, “derra-
um véu de silêncio encobre o debate. Todas têm que estar pagem”, deriva do eixo de sua tarefa. O seu papel se
em condições de dar conta do recado. restringiria à aplicação dos procedimentos técnicos, mas
Apesar de todos os problemas apontados, há muitos uma escuta mais acurada traz à tona uma série de exigên-
aspectos que relatam serem positivos, principalmente por- cias implícitas no seu “que-fazer” de auxiliar: por exem-
que gostam do que fazem, pois no fundo, considerando-se plo, a produção de um saber em função da necessidade de
todas as adversidades e a aparente contradição do discurso, compreender o que se passa com o paciente ao manipular
sentem-se úteis e fazendo o melhor que podem, mesmo não seu corpo. É necessário aprender a escutá-lo, entendê-lo e
havendo sinais claros de reconhecimento, sabem que estão compreendê-lo em sua singularidade e em seu sofrimento,
fazendo um trabalho importante e que isso ajuda a viver os não se esquecendo que este outro pode ser desde um bebê
percalços da profissão. até uma pessoa idosa.

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Laerte Sznelwar; Seiji Uchida

Pergunta-se então: como lidar com esta variedade? atendidos como acreditam que deveriam ser, e o que é pior,
Como lidar com esta diversidade de corpos, doenças e no limite, vivenciar o morrer de vários pacientes que no
emoções? Não basta a aplicação fria das técnicas de entender deles não deveriam morrer.
assistência. Trata-se de um trabalho em que o contato Uma outra dimensão do ser auxiliar é estar sempre
humano é essencial e requer psicologia, sensibilidade, disponível. Uma disponibilidade que não tem limite é uma
desprendimento tanto com relação a uma pessoa que está disponibilidade que desfigura a identidade.
melhorando e se recuperando como àquela que está pio- Estar disponível é também não ter limites. Precisa dar
rando e morrendo. Vive-se, neste último caso, as limita- conta, tapar buraco, fingir que dá conta, trabalhar quando se
ções de seu saber técnico que não possibilita traduzir sente ou está doente, fazer horas extraordinárias, cobrir
cientificamente o seu saber prático, o seu saber que vem diferentes setores do hospital. O que é possível fazer? Será
desse contato que mostra, por exemplo, que tal paciente que não há limite? Ser auxiliar é se sentir estrangulada pelo
vai morrer contra todas as previsões dos supervisores e trabalho.
médicos. Ser auxiliar é se sentir dentro de um coletivo de trabalho
Infelizmente, não se reconhece a sua real competência reduzido, onde há poucos para realizar tanto trabalho.
profissional, pois isso implicaria que os outros agentes Resistir é também aceitar, é se submeter. O papel da
profissionais deveriam percebessem a existência deste sa- aceitação, da submissão ainda é valorizado, é como se
ber prático construído através da experiência. Que o seu sempre tivessem aprendido este papel, a ficarem o tempo
saber não se limita à aprendizagem formal das técnicas, mas todo caladas, não dizerem e fazerem. A submissão é vista
que englobaria este outro conhecimento. como um complemento do medo, da ameaça de punição, do
medo de ser excluída e de um senti-
mento que as coisas nunca vão mu-
ma outra característica do trabalho
U
dar, pois a experiência do ser auxi-
liar mostra que a corda arrebenta do
hospitalar é a existência de eventos de lado mais fraco. Cada um exige de
um jeito, os supervisores, os médi-
toda natureza. As panes, a falta de material, cos, os pacientes, cada um quer de
um jeito e no seu tempo.
a ausência de um colega, a evolução repentina Ser auxiliar é tentar atender a to-
do estado de saúde de um paciente se das essas exigências técnicas e hu-
manas. Todos querem e precisam re-
sobrepõem ao procedimento e ao planejamento. solver suas questões. Os pacientes e
seus familiares mostram-se muito
ansiosos em determinadas situa-
A sensação que se tem então é a de que a(o) auxiliar é um ções. Às vezes, o convívio com os pacientes e seus familia-
não-ser. Um ser vazio de identidade dada a falta de reconhe- res chega à ameaça ou à violência franca, caso mais comum
cimento daquilo que o constitui como auxiliar. Neste hospi- entre os pacientes presidiários.
tal, em particular, corre-se o risco de, ao passar dos anos, se Ser auxiliar de enfermagem é navegar em toda essa
transformar numa “mobília” ou “fazer parte do acervo” da realidade, formada de múltiplas facetas e modelada por
universidade. Peça desprovida de qualquer valor próprio. atores diversos. Buscar respeito e identidade, evitar o erro,
A saída é fingir: fingir para não mostrar a sua real lutar contra a discriminação, estão sempre presentes, exi-
vivência, o seu real sofrimento. Trata-se claramente de gem estratégias de regulação e têm conseqüências.
estratégias defensivas. Tudo se passa como se os aconteci- Ser auxiliar é transgredir às vezes regras para atender a
mentos fossem naturais, normais. Alguns escutam, mas não algum desejo legítimo de um paciente moribundo.
falam, outros vêem, mas não “enxergam” e, num terceiro Ser auxiliar de enfermagem é criar estratégias para se
grupo, não falam sobre o que vêem. Todo esforço é no defender do sofrimento: tentar esquecer o que acontece
sentido de dar conta das tarefas, ou pelo menos fazer de quando sai do trabalho, fazer de conta que não é com ele,
conta que dão. que não faz parte da sua alçada, se convencer que o estado
Neste jogo institucional tem-se a impressão que todos do paciente não é grave, se virar – fazer sua parte e fechar os
perdem. No caso dos(as) auxiliares, aqueles que resistem e olhos para o resto. Interessante é que cada um cria as suas
lutam contra esta situação são os que mais expressam o estratégias, são individuais, não coletivas.
sofrimento. Sofrem por não conseguirem atingir os seus Ser auxiliar de enfermagem é garantir a segurança do
objetivos e verem que os pacientes acabam não sendo sistema de atendimento, é ser testemunha.

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Ser Auxiliar de enfermagem: um olhar da psicodinâmica do trabalho

Discussão à guisa de conclusão tipo de trabalho não tem um fim, não pode ter um proce-
Os trabalhos foram desenvolvidos dentro da perspectiva dimento padrão. Já entre colegas podem ser criadas rela-
proposta por Dejours, em que se busca uma escuta clínica ções de solidariedade, de cumplicidade. Entretanto, o
do trabalho das pessoas envolvidas visando tornar consci- que é muito relatado, são os problemas de competição, de
entes as várias nuances da situação, os sentimentos, os disputa, potencializados por uma organização de traba-
receios, as estratégias utilizadas para fazer frente ao sofri- lho que não favorece a cooperação. No mais das vezes,
mento vivido no trabalho. cada um tem que dar conta do recado, pois o absenteísmo
A atividade de trabalho das auxiliares de enfermagem tem impacto sobre a quantidade de pessoas disponíveis e
do grupo é permeada pela compaixão. Em primeiro lugar, o quadro de funcionários não é suficiente para dar conta.
a palavra emoção está sempre presente, permeia o discurso A sensação de que o trabalho, o serviço prestado poderia
dos componentes do grupo. Não é possível ficar imune ao ser melhor é um outro fantasma que paira. Apesar de não
contato com o sofrimento do outro, com o corpo do outro, ser responsabilidade deles, a presença constante da mor-
com os apelos e pedidos de ajuda. Há uma constante te, não apenas como uma possibilidade, mas como um
relação dialética entre a construção de defesas individuais fato, aumenta esta sensação de que algo mais poderia ser
e coletivas (Dejours,1997) e a mobilização psíquica em feito.
direção à compaixão. Ser au-
xiliar de enfermagem exige
er auxiliar de enfermagem, revela-se como
S
um constante trabalho de per-
laboração 4 , um esforço para
transformar o tema de sofri- uma espécie de guardião da instituição, pois
mento seu e dos outros em
um substrato para a elabora- é o último elo na cadeia de cuidados e atendimento
ção de uma identificação
com o trabalho, um caminho
dos pacientes; é garantir a segurança do
para a realização de si. sistema de atendimento, é ser testemunha.
Entretanto, a questão
afetiva que permeia o traba-
lho das auxiliares é cheia de ambigüidades, pois a entre- Os resultados nos mostram que, neste caso, o tra-
ga necessária para o outro se faz em detrimento da sua balho de auxiliar de enfermagem também é, como
própria saúde. Os equipamentos disponíveis, o ritmo, os define Molinier (1995), um trabalho no feminino,
horários de trabalho e o próprio estado dos pacientes são apesar de haver alguns profissionais homens. Dentre
fatores de constrangimento de tal ordem que a doença as características mostradas pela autora do trabalhar
profissional torna-se presente. Muitas vezes, estes pro- no feminino, com relação ao saber-fazer “discreto”, a
blemas físicos são mantidos invisíveis, até que cheguem certas competências, e certas estratégias defensivas,
a um nível insuportável. Já o sofrimento psíquico é visto ressaltamos: o agir com compaixão, a inteligência
como uma espécie de tabu e, mesmo os processos de conciliadora, os desvios de função, a regra de ouro da
descompensação sendo escondidos ao máximo, paira no reciprocidade, o desdém às transgressões devido à
ar um certo fantasma, uma necessidade de se manter compaixão, a presença coletiva, uma certa tolerância
dentro da normalidade. à vaidade.
Outro problema evidente está ligado à violência. Vários Ao final paira no ar a questão de como se pode definir a
são os relatos de casos de pacientes, acompanhantes, que profissão. Trata-se de um trabalho complexo com fronteiras
partiram para a agressão. No caso específico há ainda os mal estabelecidas, um trabalho invisível, um trabalho
casos de pacientes internados que estão sob custódia da integrativo. O trabalho desenvolvido nesta pesquisa, apesar
justiça ou da polícia que, em muitos casos, servem para de não estar voltado para o estudo das atividades, como o de
aumentar ainda mais o risco. uma análise ergonômica, nos permitiu evidenciar a impor-
Este trabalho espremido entre os mais diferentes tipos tância do saber-fazer, do saber-prático, do saber do corpo,
de pacientes, sob a égide de profissionais de nível supe- do saber-ser para poder dar conta. Mas ainda não consegui-
rior, sob constante demanda técnica e afetiva, é quase mos resolver o enigma:
invisível, não tem uma identidade profissional própria, Qual a identidade desta profissão tão importante para
desaparece no meio do processo de atendimento. O reco- dar coerência, amálgama para os sistemas de atendimento à
nhecimento de utilidade feito pelos níveis hierárquicos saúde?
superiores pauta-se pela ambigüidade, uma vez que este Entretanto, os resultados desta enquete permitem que

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Laerte Sznelwar; Seiji Uchida

façamos uma afirmação: A construção da identidade, no último elo de uma cadeia de assistência ao paciente. Se
caso estudado, passa pela percepção que elas /eles têm de alguma falha ou erro passar por aí, o resultado pode ser
ser uma espécie de guardiões, isto é, eles/elas seriam o catastrófico.

Artigo recebido em 27/05/2004


Aprovado para publicação em 02/02/2005

 Notas

1. Dejours usa o termo tricherie no 2. Na exposição do trabalho em 3. A partir deste momento falare- 4. Trata-se de um conceito psicanalí-
original. Gostaríamos de alertar que geral do auxiliar de enfermagem, mos no feminino, ou seja, as auxi- tico: É uma espécie de trabalho psí-
ele utiliza-o num sentido positivo, utilizaremos o substantivo mas- liares de enfermagem. Trabalhamos quico que permite ao indivíduo acei-
não há um uso com uma conotação culino. com 14 auxiliares mulheres e so - tar certos elementos reprimidos (in-
pejorativa e assim deve ser enten- mente um auxiliar e dada esta pre- conscientes) e se libertar da influên-
dido pelo leitor. dominância optamos por falar no cia dos mecanismos repetitivos.
feminino. (LAPLANCHE e PONTALIS, 1976).

 Bibliografia

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98 Revista Produção, v. 14, n. 3, p. 087-098, Set./Dez. 2004

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http://www.abepro.org.br

INTRODUÇÃO
A Associação Brasileira de Engenharia de Produção – ABEPRO foi fundada em 1986 e tem como objetivo
principal promover o desenvolvimento da Engenharia de Produção no Brasil. Este objetivo pretende ser
alcançado através da ampliação do intercâmbio de informações e idéias da área e pelo fomento do
intercâmbio dos profissionais que nela atuam.
A ABEPRO vem dando continuidade aos Encontros Anuais de Engenharia de Produção – ENEGEP –, realizados
anualmente desde 1981; edita um boletim Informativo e a Revista Produção, veículo oficial da área no país,
além de manter contato com entidades congêneres no país e no exterior.
A ABEPRO pretende agregar os profissionais, docentes, pesquisadores, estudantes e demais interessados no
progresso da Engenharia de Produção no país. Ela está voltada não somente aos aspectos de ensino e
pesquisa na área, mas também ao exercício profissional e às questões institucionais e políticas mais amplas.
A ABEPRO está aberta não apenas aos engenheiros de produção, mas também aos de outras habilitações,
economistas, administradores, desenhistas industriais, sociólogos, psicólogos, estudantes e a todos os que
tenham interesse na Engenharia de Produção.
Desta forma, com a união dos esforços de todos os que se relacionam com a área, a ABEPRO pretende
contribuir para melhorar o ensino e a pesquisa em Engenharia de Produção, incentivar as publicações, a
difusão de informações e as aplicações no setor produtivo.

OBJETIVOS DA ABEPRO
O objetivo da ABEPRO é estimular o desenvolvimento, o aprimoramento e a difusão dos conhecimentos no
campo de Engenharia de Produção, mediante:
• incentivo à pesquisa e realização de estudos;
• promoção de eventos para a difusão de conhecimentos;
• realização de publicações;
• promoção de intercâmbio entre pessoas e instituições;
• assessoria a órgãos governamentais e privados;
• contatos com entidades do setor produtivo;
• análise e apreciação de matérias que se relacionem, direta ou indiretamente, com a pesquisa e o
exercício profissional;
• incentivo à discussão do ensino de Engenharia de Produção;
• contatos com entidades congêneres no país e no exterior;
• quaisquer outras atividades que contribuam para a consecução do seu objetivo.

FILIAÇÃO À ABEPRO
O quadro social da ABEPRO é constituído de sócios individuais, sócios estudantes, sócios institucionais e
sócios honorários.
• Sócios individuais são profissionais de qualquer tipo de formação que comunguem do mesmo objetivo
da ABEPRO.
• Sócios estudantes são aqueles que estejam matriculados em cursos de graduação ligados à Engenharia
de Produção.
• Sócios institucionais são entidades de ensino e/ou pesquisa, órgãos públicos ou privados, ou empresas
que pretendam contribuir para os objetivos da ABEPRO.
• Sócios honorários são personalidades brasileiras ou estrangeiras que tenham prestado relevantes
serviços à Engenharia de Produção.

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ANUIDADES
Os valores referentes a anuidade dos sócios individuais (profissionais e estudantes) e dos institucionais
podem ser obtidos diretamente na ABEPRO.

PARA CONTATO
Telefone: (0xx19) 3454-2238
Fax: (0xx19) 3455-1361
Endereço postal: Universidade Metodista de Piracicaba
Faculdade de Engenharia Mecânica e de Produção
Programa de Pós-Graduação em Engenharia de Produção
Rod. Santa Bárbara – Iracemápolis km 1 – CEP 13450-000 – Santa Bárbara D´Oeste - SP
Correio eletrônico informações gerais: abepro@unimep.br
Administrador de Web: abepro@unimep.br

DIRETORIA DA ABEPRO
Presidente:
Nivaldo Lemos Coppini (UNIMEP/SP)
Primeiro Vice-Presidente:
Paulo Mauricio Selig (UFSC/SC)
Segundo Vice-Presidente:
Maria Rita Pontes Assumpção Alves (UfSCar/SP)
Diretor Financeiro:
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Diretor Administrativo:
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Diretor Técnico:
Gilberto Dias da Cunha (PUCRS/RS)

Suplentes da Diretoria:
Marly Monteiro de Carvalho (USP/SP)
Luiz Gonzaga Mariano de Souza (UNIFEI/MG)
Sérgio Eduardo Gouvêa

Conselho Fiscal
Titulares:
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Ricardo Manfredi Naveiro (UFRJ/RJ)
Patrícia Alcântara Cardoso (UVV/ES)

Diretor Discente:
Jair Toledo de Souza (UFJF/MG)

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REVISTA PRODUÇÃO ASSINATURAS
A Revista Produção é distribuída gratuitamente aos sócios em dia com a anuidade.
Para filiar-se acesse o site da ABEPRO conforme abaixo.

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A Revista Produção agradece a todo o grupo de consultores ad hoc pela valiosa colaboração, emprestando-nos
sua significativa experiência em periódicos acadêmicos. Consideramos o diálogo profícuo entre avaliador
(conselheiro ou ad hoc) e autor peça fundamental para a qualidade técnica-científica da revista.
Alceu Alves (UFSCar)
Alessandra Rachid (UFSCar)
Alexandre Augusto Massote (FEI)
Aline França de Abreu (UFSC)
Ana Paula Cabral (UFPE)
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Antonio Fernando Branco Costa (UNESP/SP)
Antonio Freitas Rentes (USP)
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Celma de Oliveira Ribeiro (USP)
Davi Noboru Nakano (USP)
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Francisco de Souza Ramos (UFPE)
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João Batista Turrioni (UNIFEI)
João Mário Csillag (FGV)
José Joaquim do Amaral Ferreira (USP)
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José Marçal Jackson Filho (Fundacentro)
Marcel Andreotti Musetti (USP)
Marcelo Pinho (UFSCar)
Marcelo S. de P. Pessôa (USP)
Marcelo Seido Nagano (USP)
Marcia Terra da Silva (USP)
Marco Aurélio de Mesquita (USP)
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María Emilia Kamargo (UFSM)
Maria Rita Pontes Alves (UFSCar)
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Mario Salerno (USP)
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Mauro de Mesquita Spinola (USP)
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Osiris Turnes (UnB)
Oswaldo Truzzi (UFSCar)
Paulino Francischini (USP)
Paulo Augusto Cauchick Miguel (UNIMEP)
Paulo Bento (UFSCar)
Pedro Luis Neto (USP)
Pedro Paulo Balestrassi (UNIFEI)
Reinaldo Castro Souza (PUC/RJ)
Reinaldo Pacheco da Costa (USP)
Renato de Castro Garcia (USP)
Renato de Mello (UFSC)
Renato de Oliveira Moraes (Universidade Cidade de São Paulo - UNICID)
Robert Wayne Samohyl (UFSC)
Roberto Antonio Martins (UFSCar)
Roberto Gilioli Rotondaro (USP)
Roberto Grun (UFSCar)
Roberto Marx (USP)
Roque Rabechini Junior (FCAV-FIA)
Sandra Aparecida Sandri (INPE/SP)
Seiji Uchida (FGV)
Selma Lancman (USP)
Thomas Patrick Dwyer (UNICAMP)

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Política Editorial
A Revista Produção, criada em 1990, tem como objetivo fomentar a geração e a disseminação de conhecimento em Engenharia
de Produção, como um veículo de divulgação dos trabalhos acadêmicos nesta área e em áreas afins, buscando atender a um
espectro amplo de domínios, setores industriais e de serviços. Destaca-se contudo que as áreas temáticas centrais são:

• Estratégia e Organizações • Ergonomia e Segurança do Trabalho


• Qualidade • Pesquisa Operacional
• Tecnologia da Informação • Gestão da Tecnologia
• Engenharia do Produto • Gestão Ambiental
• Gerência de Produção • Ensino de Engenharia de Produção
• Gestão Econômica

Não obstante, outros temas poderão ser avaliados pela editora para publicação, caso o assunto seja considerado de interesse
para o público da Revista Produção.
O público-alvo da Revista Produção é composto por professores, alunos de pós-graduação e graduação, além de empresários e
profissionais.
A Revista Produção tem interesse na publicação de artigos inéditos que representem uma contribuição efetiva, tanto sob a
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Os artigos submetidos à Revista Produção devem respeitar os seguintes aspectos:
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e e-mail), e cinco frases do artigo escolhidas para serem 4. Dúvidas quanto à política editorial podem ser encaminha-
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cada). e-mail: editoria.producao@vanzolini.org.br

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ESCOLA POLITÉCNICA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Departamento de Engenharia de Produção

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