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Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba.

Curitiba, 15 de agosto de 2010


Curso de Relações Internacionais.
6º Período – Economia Política Internacional.
Prof. Dr. Carlos-Magno Vasconcellos.

Texto 1 B

Friedrich List
(1789-1846)

2. O Funcionamento da Economia Capitalista – a perspectiva burguês-


nacionalista.

Entrevista com o economista alemão Friedrich List, autor da obra “Sistema Nacional de
Economia Política”, recentemente publicada na Alemanha.

Jornal “Nação Soberana”


Berlim, 31/05/1841

NS: Senhor List, as idéias que o senhor apresenta em sua obra recentemente publicada têm sido
consideradas como uma verdadeira heresia em termos de ciência econômica. Para muitos de
seus críticos, ao colocar em questão os fundamentos do liberalismo econômico e as teorias de
Adam Smith, o senhor está demonstrando falta de discernimento sobre as leis mais elementares
que governam a economia?
FL: É verdade, as críticas têm sido muito duras e às vezes até agressivas. Mas, já esperava por
isso. Desde a publicação de A Riqueza das Nações de Adam Smith, há cerca de 65 anos, o
liberalismo se tornou uma espécie de dogma sagrado da economia política e ninguém parecia
suficientemente atrevido para afrontá-lo. Acho que sou considerado um grande atrevido pelos
liberais. Paciência.
NS: Mas o que é que tanto lhe desagrada no liberalismo econômico, tal como formulado por
Adam Smith?
FL: Veja bem, penso que existem quatro problemas gerais na base de todo o edifício teórico
construído por Smith para explicar o funcionamento da economia. Ainda que o sistema teórico
de Smith contenha muitos acertos, esses quatro problemas gerais comprometem a estrutura e as
principais conclusões da teoria liberal.
NS: E quais são esses quatro problemas gerais?
FL: Em primeiro lugar, está a questão do método de análise. Smith se baseia na experiência da
Inglaterra e na realidade econômica e social da Inglaterra para formular suas teorias. Ele não
está errado em proceder deste modo. Seu erro está em querer generalizar as teorias construídas à
partir da observação da realidade inglesa para todos os países do mundo, sem perceber que, o
que é válido para a Inglaterra, nem sempre também o é para os demais países do mundo.
NS: O senhor poderia ser mais claro?

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FL: Sim. As idéias e teorias que Smith desenvolve em sua obra foram concebidas à partir da
observação da situação econômica e social em que vive a Inglaterra. Acontece que a Inglaterra
atingiu um estágio de desenvolvimento econômico e social ainda não alcançado por nenhuma
outra nação do mundo. A Inglaterra é hoje uma nação com uma economia muito avançada, com
um poderoso parque industrial. Suas necessidades decorrem deste estágio econômico avançado
em que se encontra. Mas, a Alemanha, por exemplo, ainda não tem uma economia industrial
desenvolvida. Nossas necessidades são diferentes daquelas da Inglaterra. E Smith não
conseguiu, ou não quis enxergar a diversidade do mundo contemporâneo. Ele fez tábua rasa das
diferenças econômicas, sociais, políticas e até culturais que separam as nações do mundo umas
das outras, e pretendeu tornar válido para todas elas as teorias que somente para a Inglaterra são
apropriadas. Além disso, ele concebeu sua teoria tendo como pano de fundo o pressuposto de
um permanente estado de paz entre as nações. E isso foi um grande equívoco. Como fiz constar
em meus escritos, a humanidade ainda encontra-se “separada em nacionalidades distintas,
sendo cada uma delas mantida coesa por poderes comuns e interesses comuns, sendo diferente
de outras sociedades da mesma espécie, as quais, no exercício de sua liberdade natural, se
opõem entre si”1. (p. 90) Smith e seus discípulos cometeram o “erro de considerar como já
existente um estado de coisas que ainda está por vir”. (p. 90) Suas teorias foram construídas à
base de pressupostos equivocados. Eles intentaram, em vão, erigir uma teoria econômica
cosmopolítica, isto é, uma “ciência que ensina como a humanidade inteira pode atingir a
prosperidade”. ( p. 89) Suas proposições podem ser válidas para a Inglaterra, mas não o são
para a Alemanha.
NS: Ok, Smith e os liberais partem de pressupostos equivocados. Mas isso compromete todo o
pensamento econômico dos liberais?
FL: Não, há considerações muito interessantes no pensamento liberal como, por exemplo, a
idéia da harmonia de classes no interior das nações. Também considero que empresários e
trabalhadores podem conciliar seus interesses de classe e conviver em uma relação de harmonia.
Mas, o erro no método de análise dos liberais – por mim acima explicitado – os levou a
conclusões equivocadas.
NS: Como assim? Que conclusões?
FL: Em primeiro lugar, a proposição do livre-comércio internacional. Como já disse em outra
parte dessa entrevista, o mundo em seu estado atual é caracterizado pela coexistência de nações
cujos estágios de desenvolvimento econômico são os mais diversos. Há uma nação como a
Inglaterra, rica e com um poderoso parque industrial, coexistindo com uma nação como a
Alemanha, em vias de desenvolvimento, ainda não industrializada. Se estas duas nações forem
colocadas para competir no mercado internacional em regime de total liberdade, a situação de
relativo atraso econômico da Alemanha se perpetuará. Teremos nossa economia relegada à
condição de economia não-industrial, pois jamais teremos condições de competir com os
ingleses. Foi isso que tentei explicar em minha obra, quando disse que: “Para permitir à
liberdade de comércio operar naturalmente, as nações menos adiantadas devem primeiro, por
medidas artificiais, ser levadas ao estado de cultura ao qual foi levada artificialmente a nação
inglesa”. (p. 96) Caso contrário, “... nas atuais condições do mundo, o resultado da liberdade
geral de comércio não seria uma república universal (harmonia universal), mas, pelo
contrário, uma sujeição total das nações menos adiantadas à supremacia da potência
industrial, comercial e naval atualmente dominante.” (p. 93)
NS: É esse o motivo de sua crítica ao livre-comércio internacional?
FL: Claro. O fato da Inglaterra ter alcançado um nível de desenvolvimento econômico mais
elevado que outros países não dá aos ingleses o direito de monopolizar a riqueza do mundo.

1
Todas as citações de List estão grafadas em itálico; todas foram retiradas de sua obra Sistema Nacional de
Economia Política (Ed. Nova Cultural, São Paulo, 2ª edição, 1986).

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Todos os países têm o direito à prosperidade econômica e social, tanto quanto a Inglaterra. E
penso que: “O sistema protecionista, na medida em que constitui a maneira de colocar as
nações ainda atrasadas em pé de igualdade com a nação predominante (a qual, aliás, nunca
recebeu da Natureza um direito perpétuo ao monopólio industrial, senão que apenas conseguiu
adiantar-se às demais em termos de tempo), esse sistema protecionista, considerando sob este
ponto de vista, apresenta-se como o meio mais eficaz para fomentar a união final das nações, e,
portanto, também para promover a verdadeira liberdade de comércio”. (p. 93)
NS: Certo. Mas no início da entrevista o senhor disse que havia quatro problemas gerais com o
pensamento liberal clássico. Quais são os outros três?
FL: Vamos abordá-los, mas vamos por partes. Não tenha pressa, o assunto é importante e
precisa ser bem entendido. O segundo problema com o pensamento liberal é que A. Smith e
seus discípulos confundiram riqueza com força produtiva de riqueza. Colocaram o ‘TER’ e o
‘POSSUIR’ riqueza como os objetivos principais das políticas econômicas nacionais, sem
perceber que, mais importante que o ‘TER’ e o ‘POSSUIR’ riquezas em si mesmo, é o
DOMÍNIO SOBRE OS MEIOS DE CRIAR E AUMENTAR A RIQUEZA
CONTINUAMENTE. Aqui, a falha dos economistas liberais parece residir em sua incapacidade
de encarar o desenvolvimento econômico a partir de uma perspectiva de longo prazo. A visão
deles é imediatista, de curto ou curtíssimo prazo. Diante de um país cuja economia é ainda
imatura (pré-industrial, como na Alemanha), mas ambiciona a maturidade (a sua
industrialização), os liberais propunham que o país abandonasse seus anseios de maturidade
econômica, recomendando-lhe que usufruísse dos frutos da maturidade alheia (do país já
industrializado). Diziam a um país de economia atrasada para não perder seu precioso tempo
com a idéia de se desenvolver pelas próprias forças, pois podiam usufruir das forças de uma
nação já desenvolvida. Assim fazendo, converteram-se em arautos do atraso econômico do
mundo em benefício da preservação do poder econômico conquistado pela potência industrial
existente.
NS: Esta é uma acusação séria que o senhor faz aos pensadores liberais.
FL: Sim, tenho consciência disso. Mas, agora, o senhor entende porque venho sendo tratado
como herético pela opinião pública inglesa?
NS: Este segundo erro do pensamento econômico liberal que o senhor acaba de apontar também
conduziu os teóricos do liberalismo a conclusões equivocadas?
FL: Sim. Por confundirem riqueza com força produtiva de riqueza, os liberais negligenciaram a
diferença entre o poder econômico industrial e o poder econômico agrícola. “A escola não se dá
conta de que, entre um Estado dedicado exclusivamente à agricultura e um Estado que possui
tanto agricultura quanto manufaturas, existe uma diferença muito maior do que entre um
Estado dominado pela economia pastoril e um Estado agrícola. Em um Estado de atividade
meramente agrícola, podem existir os caprichos e a escravidão, a superstição e a ignorância, a
carência de meios de cultura, de comércio e de transporte, a pobreza e a fraqueza política. Em
tal Estado, desperta-se e desenvolve-se apenas uma parcela mínima das forças e poderes
mentais e corporais latentes na nação, sendo aproveitada somente a mínima parte das forças e
recursos colocados à disposição pela natureza, sendo pequeno ou nulo o acúmulo de capital”.
(p. 102) Não é verdade, como pensam os economistas liberais, que produzir batata ou produzir
máquinas seja indiferente. Se eles realmente pensassem desta maneira, que recomendassem à
Inglaterra abrir mão de suas fábricas e voltar a plantar batatas. Plantar batatas é muito mais
simples que fabricar máquinas. Os liberais são hipócritas, pelo menos os liberais ingleses, como
Adam Smith, David Ricardo e Thomas Malthus. Eles sabiam o que estavam falando, mas
camuflavam os verdadeiros interesses que existiam por detrás de suas teorias. Queriam
monopolizar na Inglaterra – pelo poder da retórica – os privilégios da industrialização. Por isso
procuraram induzir as nações não industriais do mundo à prática de um comércio internacional
fundado no regime de liberdade máxima e livre concorrência. Na realidade, sua doutrina não é a

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do livre-comércio, como muitos pensam, mas a doutrina do monopólio. Sob a máscara do livre-
comércio queriam conquistar o monopólio da indústria para a Inglaterra. Ou alguém acredita
que países de economia retrógrada poderiam competir com a economia de modernas fábricas
dos ingleses?
Em determinadas circunstâncias pode até ser verdade que produzir batatas e trigo seja mais
conveniente para um país atrasado do que produzir máquinas. Em particular, se essas são as
únicas mercadorias que sabem produzir. Mas, nenhum país deve abrir mão de um projeto de
desenvolvimento de médio e longo prazo que vislumbre a industrialização de sua economia.
Produzir batatas e trigo para importar camisas e máquinas do estrangeiro nunca pode ser uma
alternativa interessante no longo prazo, ainda que esse seja o meio mais fácil do país conseguir
essas mercadorias mais sofisticadas no curto prazo. Mas, a industrialização e o desenvolvimento
econômico e social atrelados a ela exige sacrifícios por parte da nação não-industrial; ninguém
começa a produzir camisas e máquinas de uma hora para outra. “A nação deve sacrificar e
deixar de lado um pouco da prosperidade material para adquirir cultura, habilidade
profissional e forças de produção; deve sacrificar algumas vantagens atuais, se quiser
assegurar para si certas vantagens futuras”. (p. 103) Este sacrifício implica na criação de
barreiras à entrada de produtos manufaturados estrangeiros no país, a fim de estimular a
produção de similares nacionais, ainda que de qualidade inferior e mais caros que os
importados.
NS: Com este raciocínio o senhor está afirmando que as teorias das vantagens absolutas e
comparativas do comércio internacional dos liberais estão erradas?
FL: Exatamente. Trata-se de mais um engodo do liberalismo econômico. A teoria da
especialização econômica internacional como formulada pelos liberais é uma cilada para países
que possuem governos incautos.
NS: O que o senhor quer dizer com isso? Dá para o senhor ser mais explícito?
FL: Claro. Mas, para deixar bem claro esta questão vou precisar abordar o terceiro problema
geral do pensamento econômico liberal, à saber: a confusão no entendimento sobre a divisão
do trabalho.
Aqui não se trata exatamente de um equívoco, mas de uma lacuna na teoria liberal. Ao discorrer
sobre a importância da divisão do trabalho (especialização) para o aumento da produtividade
econômica, Smith se empolgou tanto com o fenômeno da divisão do trabalho que não percebeu
que a principal razão do aumento da produtividade do trabalho é não meramente a sua
especialização, mas essencialmente o caráter cooperativo do trabalho especializado, posto que a
divisão do trabalho sem a cooperação entre os trabalhadores pouco serviria para fomentar a
produção.

Isso significa que, em termos de aumento de produtividade e prosperidade econômica, a divisão


do trabalho produz efeitos muito mais expressivos no âmbito nacional do que no internacional.
Afinal de contas, a cooperação entre os trabalhadores é muito mais fácil, regular e previsível de
se realizar no plano nacional. A divisão do trabalho no plano internacional apresenta inúmeras
limitações, visto que aqui maiores são os riscos de interrupção na colaboração entre os
trabalhadores, seja por razão de guerra, instabilidade política e/ou econômica em outras nações,
pouca sincronia entre produções de setores complementares, etc... Assim sendo, a
especialização no plano internacional, ou seja, uma divisão internacional do trabalho é muito
pouco interessante. Por isso, cada país deve, na medida de suas possibilidades reais de produção
– em função dos recursos humanos, tecnológicos e naturais que dispõe – buscar a maior
diversificação possível para sua economia nacional. Dito de outra maneira: “... é do interesse de
cada grande nação estabelecer como objetivo primordial de seus esforços a união nacional de
suas forças produtivas, e considerar como objetivo secundário sua união internacional”. (p. 114)

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Além disso, é bom não esquecer que o desenvolvimento de um vasto setor industrial nacional é
condição desejável para sustentar a expansão do setor primário da economia, na medida em que
o setor industrial – via de regra urbano – tende a tornar-se uma garantia de mercado de consumo
para o excedente produzido pelo setor primário e vice-versa. Por outro lado, desenvolvimento
simultâneo e harmonioso de uma economia diversificada, com um poderoso setor primário e um
vasto setor industrial é também o fator determinante para o crescimento e a formação de um
setor de serviços e comércio interno muito dinâmico.
Daqui, podemos concluir que da perspectiva da economia nacional “o desenvolvimento de um
poderio manufatureiro próprio é infinitamente mais benéfico à sua agricultura do que o
comércio exterior mais florescente poderia ser sem tais manufaturas; porque dessa forma ela se
assegura contra todas as flutuações às quais pode estar exposta em virtude de guerras, de
restrições externas ao comércio e de crises comerciais; porque dessa forma economiza a maior
parte dos custos de transporte e ônus comerciais inerentes à exportação de seus próprios
produtos e na importação de artigos manufaturados; porque aufere as maiores vantagens das
melhorias de transportes geradas pela sua própria atividade manufatureira, enquanto, pela
mesma causa, será desenvolvida uma série de forças pessoais e naturais até agora não
utilizadas; e sobretudo porque o intercâmbio recíproco entre o poderio manufatureiro e o
poderio agrícola é tanto maior quanto mais perto o agricultor e o manufator estiverem um do
outro, e quanto menos estiverem sujeitos a serem interrompidos por acidentes de toda espécie
no intercâmbio de seus vários produtos”. (p. 111)
NS: Resumindo: a divisão do trabalho eleva, de fato, a produtividade do trabalho e, tal como
pensavam os liberais, cria as condições para o aumento da prosperidade da nação; mas, no plano
internacional, os efeitos da divisão do trabalho são muito questionáveis. Um país que tiver sua
economia especializada em produtos primários certamente não usufruirá os mesmos benefícios
que o país que tiver sua economia especializada em produção industrial. Foi isso que os liberais
não entenderam?
FL: Esse é um dos erros do sistema de economia política de Adam Smith e seus discípulos.
Agora, se realmente não entenderam o problema ou se negligenciaram-no conscienciosamente,
isso não tenho certeza.
NS: Passemos, então, ao quarto problema geral do pensamento econômico liberal. Qual é ele?
FL: Aqui se encontra, muito provavelmente, uma das teses mais perniciosas dos economistas
liberais. Trata-se daquela suposição de Adam Smith, aceita por todos os seus discípulos,
segundo a qual as nações nada mais são do que aglomerados de indivíduos e os indivíduos são
os que melhor conhecem seus interesses pessoais, de onde concluem que ninguém pode, melhor
do que eles (os indivíduos), tomar as iniciativas acertadas para alcançar seus objetivos. Esse
raciocínio absolutamente equivocado levou os liberais a advogar a não intervenção do poder
do Estado na regulação da vida econômica do país, pois “O que constitui prudência na
conduta de cada família privada, dificilmente pode constituir loucura na conduta de um grande
reino”. (Smith, cit. por List, p. 115) Isto é definitivamente um absurdo.
NS: Os indivíduos não são os agentes que melhor conhecem seus interesses privados? Não
podem se ocupar eles mesmos com os meios mais eficazes de alcançar seus objetivos pessoais?
Precisam ser tutelados pelo Estado?
FL: Veja bem: concordo com Smith que os indivíduos são racionais e conhecem melhor do que
ninguém seus próprios interesses; concordo também com Smith quando diz que os indivíduos
são capazes de encontrar, por si só, meios eficazes de alcançar seus objetivos. Mas discordo
totalmente da conclusão que os liberais tiram daí: a tese da superfluidade ou da inutilidade da
ação consciente do Estado. E a questão aqui é muito simples: “Está por ventura na natureza dos
indivíduos levar em consideração as necessidades dos séculos futuros, como acontece com a
nação e o Estado? (...) Pode por ventura o indivíduo, ao promover sua economia privada, levar
em consideração a defesa do país, a segurança pública e os mil outros objetivos que só podem

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ser atingidos com a ajuda de toda a comunidade?” (p. 116) Por mais que os indivíduos
conheçam seus interesses e os meios de atingi-los com maior eficácia, os indivíduos jamais
poderão substituir o Estado na promoção do bem-estar coletivo, nacional. Há muitas situações
em que o papel do Estado é insubstituível: “Os assaltantes, os ladrões, os contrabandistas e os
trapaceiros conhecem muito bem suas condições e circunstâncias locais e pessoais,
dispensando a máxima atenção ao seu negócio particular; daqui não se segue, porém, que para
a sociedade como tal seja bom deixar o máximo de liberdade possível às atividades
particulares desses indivíduos. Em um sem-número de casos, o poder do Estado é obrigado a
impor restrições à atividade privada. (...) Na Inglaterra, baixaram-se recentemente certas leis
no tocante à construção naval, pelo fato de se ter descoberto uma união diabólica entre
companhias de seguro e proprietários de navios, pela qual anualmente eram sacrificados à
avareza de algumas pessoas milhares de vidas humanas e milhões de dólares. Na América do
Norte, os donos de moinhos são obrigados, sob pena de multa, a colocar em cada barril não
menos de 198 libras de farinha de boa qualidade, e para todos os artigos de mercado são
nomeados inspetores, embora em nenhum outro país se preze tanto a liberdade individual”. (p.
117)
NS: Ainda que a livre iniciativa e a liberdade individual comportem certos riscos para o
equilíbrio da vida social, não poderia a intervenção do Estado se converter em mal maior?
FL: Mas, em que mal maior o senhor pensa? O senhor poderia ser mais preciso em seu
questionamento?
NS: Sim. Me pergunto se, ao restringir a liberdade individual, a intervenção do Estado não
estará limitando a criatividade dos indivíduos?
FL: Não, amiguinho. Quando o Estado intervém, ele “não orienta os indivíduos sobre como
empregar suas forças produtivas e seu capital ...; não diz a um ‘deves investir teu dinheiro na
construção de um navio, ou na implantação de uma manufatura’, ou ao outro ‘deves ser um
capitão naval ou um engenheiro civil’; o Estado deixa a critério de cada indivíduo como e onde
investir seu capital, ou que profissão deve abraçar. Diz apenas: ‘É vantajoso para nossa nação
que nós mesmos produzamos esses ou aqueles artigos; mas, já que pela livre concorrência com
países estrangeiros jamais poderemos obter essa vantagem, impusemos restrições a tal
concorrência, pois em nosso ponto de vista é necessário proporcionar àqueles nossos
concidadãos que investem seu capital nesses novos setores da indústria e àqueles que
consagram suas forças corporais intelectuais a isso, as necessárias garantias de que não
perderão seu capital e não falharão à sua vocação na vida ...” (p. 117-8) Como o senhor pode
ver, ao intervir na vida econômica da nação, o Estado longe de restringir a criatividade das
pessoas, garante as condições necessárias para que tal criatividade saia de seu estado potencial e
se manifeste na vida cotidiana.
NS: O senhor parece convicto de suas idéias!
FL: É verdade, não tenho dúvidas sobre a superioridade do interesse nacional em relação ao
interesse individual. Por isso gosto sempre de afirmar que “Assim como a liberdade individual é
boa até onde começa a contrariar os interesses da sociedade, da mesma forma é razoável
sustentar que a atividade privada só pode exigir o direito de não sofrer restrições na medida
em que não entrar em conflito com o bem-estar da nação. Mas, sempre que a iniciativa e a
atividade dos indivíduos não forem suficientes para atender aos interesses superiores da nação,
ou em todos os casos em que as iniciativas individuais puderem ser nocivas à nação, a
atividade privada exige apoio por parte de todo o poder da nação, devendo então submeter-se
às restrições legais que lhes são impostas, para a salvaguarda inclusive de seus próprios
interesses”. (p. 120)
NS: Dessa maneira o senhor subverte completamente a lógica individualista dos pensadores
liberais.

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FL: Evidentemente. E, penso que, ao subverter um pensamento tão pernicioso, presto um


serviço à humanidade, muito embora desagrade aos intelectuais do outro lado da Mancha. Eles
contavam com mais esse engodo sobre a superioridade dos interesses individuais em relação aos
interesses nacionais para fortalecerem sua tese do livre comércio internacional. Eu os frustrei.
Eles têm motivos para me odiarem.
NS: E o senhor não receia ser acusado de isolacionista, em razão de sua posição irredutível em
relação ao protecionismo?
FL: Não, porque o protecionismo que advogo é flexível. Em primeiro lugar, é temporário: “a
medida é justificável somente até o momento em que a força manufatureira for suficientemente
forte para não mais temer a concorrência estrangeira; e daí em diante, somente até quando ela
for necessária para defender e proteger a força manufatureira interna em suas próprias
raízes”. (p. 125) Em segundo lugar, é seletivo: “Tampouco é necessário que todos os setores da
indústria sejam protegidos no mesmo grau. Somente os setores mais importantes requerem
proteção especial – os que exigem alto capital para implantação e administração, muita
maquinaria, e portanto muito conhecimento técnico, habilidade profissional, experiência, e
muita mão-de-obra, e cujos produtos são artigos de primeira necessidade, sendo portanto da
máxima importância no que tange ao seu valor total e à autonomia nacional ... Se esses setores
forem devidamente protegidos e desenvolvidos, todos os outros setores manufatureiros menos
importantes conseguirão desenvolver-se em torno dos setores mais importantes, bastando para
tais setores um grau de proteção menor”. (p. 126) O protecionismo que proponho é educativo,
prepara o país para participar e ser competitivo na concorrência internacional.
NS: É uma visão interessante. Agradeço pela gentileza da entrevista.
FL: Disponha.

FIM

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