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Graciela Haydée Barbero

Homossexualidade e
Perversão na Psicanálise:
Uma Resposta aos Gay & Lesbian Studies

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~~~
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Casa do Psicólogo® lftJAPESP
© 2005 Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda.
É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, para qualquer
finalidade, sem autoriza~ão por escrito dos editores.

l" edição
2005
Editores
lngo Bernd Gii11tert e Myriam Chi11alli

Editora Assistente
Christiane Gradvohl Colas
Produção Gráfica & Capa
Re11ata Vieira Nunes
Ilustração de Capa
Parle do quadro A Família Real, de Diego Velâzque::.
Editoração Eletrônica
Valquíria Kloss
Revisão
Fátima Alcântara

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Barbero. Graciela Haydéc


Homossexualidade e Perversão na psicanálise: uma resposta aos
Gays wul l.esbian Studie.1· / Gradeia Haydée Barbero - São
Paulo: Casa do Psic,ílogo"', 2005.

Bibliografia.
ISBN 85-7396-468-5

I .Gays e lésbicas - Estudos 2. Homossexualidade


J. Pcrversãncs sexuais 4. Psicanálise 5. Pisicnlogia sexual
6. Sexo 1. Título.

05- 7463 CDD-302


Índices para catálogo sistemático:
1. Homossexualidade e perversão: Psicanálise:
Psicologia social 302

Impresso no Brasil
Pri11ted in Bra::.il

Reservados Lodos os direitos de publicação em língua portuguesa i1

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AGRADECIMENTOS

Este livro é decorrência de uma tese de doutorado defendida


cm 2004 na PUC-SP, no Núcleo de Psicanálise e Sociedade, sob o
título: "Homossexualidade e expressões contemporâneas da sexuali-
dade: perversões ou variações do erotismo?".
Meu sincero agradecimento a esta instituição e a todas as pes-
soas que colaboraram na árdua tarefa da escrita acadêmica, seja
com sua interlocução intelectual ou com seu apoio emocional. Espe-
cial mente agradeço ao orientador da tese, Prof. Dr. Raul Albino
Pacheco Filho, pelo rigor com que encara seu trabalho docente, a
Estela Maldonado, psicanalista argentina que acompanhou meu per-
curso com sua leitura crítica e sugestões, aos colegas do Núcleo pe-
las discussões enriquecedoras e a todos os outros, professores da
banca, colegas, amigos e familiares, que me ajudaram a prosse!!uir
nesta senda e que seria muito longo nomear. Agradeço tarnh0111 ()
apoio financeiro do CNPQ no doutorado e da FAPESP na puhlica~:;11,
do livro.
SUMÁRIO

Prefácio, Raul Albino Pacheco Filho .............................................................. 9

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 5
Um caso paradigmático ........................................................ 27

CAPÍTULO 1
Interlocuções e novas referências para a
psicanálise ................................................................ 41
Os Gay & Lesbian Studies e o
Movin1ento Queer ................................................................ 41
Lacan, Foucault, Allouch e a Psicanálise
co1no Erotologia .................................................................... 53

CAPÍTULO li
Concepções que sobrepõem homossexualidade e
perversão ................................................................. 6 9
Alguns autores do campo psicanalítico ................................ 69
Sidonie Csillag, "a jovem homossexual" ............................. 102

CAPÍTULO Ili
Homossexualidade e perversão na obra de Freud ..... 1 li !,
A homossexualidade na obra de Freud:
um percurso crítico ................................................... _ 1 1·,
A renegação e o fetichismo generalizado .. ... .. .. ... .. . 1r ,r,
8 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

CAPÍTULO IV
Lacan e a perversão: um percurso .......................... 1 7 9
Algumas precisões conceituais: a invenção do objeto a ........ 223

CAPÍTULO V
Conclusões e perspectivas ...................................... 229

Referências bibliográficas ....................................... 2 3 9

Anexos ................................................................... 249


PREFÁCIO

Há os que concordam que a Psicanálise não se restringe a uma


teoria ou ahordagern dos fenômenos clínicos. Ter a exala medida da
imp01tância do trahalho de Graciela exige um passo a rnais: irnplica ern
reconhecer que a Psicanálise tamhém não se limita a uma abordagem
da cultura, constituindo, ela própria, parte da cultura. Parte relevante,
diga-se, além disso, dadas a força de sua presença e a extensão de sua
disseminação na sociedade ocidental contemporânea.
Sabemos que nenhum corpo de conhecimento científico pode
ser conceitualizado como um campo neutro em relação aos demais
campos sociais. Todo conhecimento sofre as limitações de sua época
histórica e não é o caso de imaginar-se que a Psicanálise constituiria
exceção. Conseqüentemente, isso deve ser considerado na reflexão
sobre as contribuições teóricas de cada um dos autores que, já faz
mais de um século, tem participado da consolidação e evolução do
campo inaugurado pela subversão freudiana do conhecimento sobre
o humano.
Os conflitos que opõem as classes e grupos da sociedade fa-
zem-se representar também (e com força) no campo das disciplinas
científicas. E, no caso das ciências humanas, isso é especialmente
intensificado, já que é por meio delas que são elaborados os sistemas
10 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

de pensamento e as visões de mundo interessadas, destinadas a dar


consistência às estruturas materiais e simbólicas de poder. Como nos
lembra Slavoj Zizek 1, as fantasias ideológicas não podem ser entendi-
das simplesmente como modos distorcidos de apreensão de uma
pretensa realidade absoluta e independente (das elaborações ideoló-
gicas): elas estão no cerne da própria construção da realidade em
que vivemos. E esta funçüo ideológica das ciências humanas res-
ponde por uma parcela nada desprezível de arbitrário social desti-
nado a preservar e consolidar a distribuição desigual de poder entre
as classes e grupos sociais, que se insere nos campos de saber dissi-
mulando-se sob a frnma de conhecimento cientifico desinteressado.
No caso das teorizações e conhecimentos que de algum modo
mantêm associações com as categorias sexuais - sejam elas as dife-
renças relativas à polarização, conceituai, social ou política masculi-
no-feminino, sejam as que se referem a distinções nas praticas eróti-
cas e sexuais - as contribuições a esse "arbitrário social desinteres-
sado" têm sempre se mostrado inequívocas. Nesses casos, ainda que
nem sempre suficientemente reconhecidos e admitidos (como é obvio
esperar-se), os embates, os conflitos e as lutas pelo poder nunca se
omitem do cenário. Afinal, o poder político e econômico nas diferen-
tes sociedades sempre se fizeram distribuir desigualmente nas cate-
gorias indicativas das diferenças sexuais. E homens e mulheres têm
ocupado posições ordinais diferentes nas escalas de poder político,
de participação nas decisões sociais e de posse e administração dos
bens (patrimônio, cuja origem etimológica em patrimonium, pater
-já mostra a validade do que aqui se argumenta), como o revelam as
estatísticas que indicam essas prerrogativas: acesso a postos de tra-
balho elevados, medias salariais, presença no corpo político do Esta-
do e assim por diante. Da obrigatoriedade obscena das burkas e da
mutilação compulsória dos órgãos genitais femininos (extirpação do
cJitóris, ainda existente em alguns países onde a subjugação feminina

' Veja-se por exemplo Zizek, Slavoj (org.). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1999.
Prefácio 11

é mais radical), aos salários distintos para homens e mulheres nas


mesmas funções, nas sociedades capitalistas em geral, a evidência
que se levanta é uma só: o poder circula por meio de significantes
articulados às diferenças sexuais. E essa associação entre poder e
sexo (ou gênero, como prefeririam, ou exigiriam, certos autores) atin-
ge também o âmbito das diferenças nas praticas eróticas e sexuais,
como se pode depreender dos diferentes graus de resistência e opo-
sição às praticas não heterossexuais: desde a simples ridicularização
e menosprezo, até a criminalização e punição mais violenta.
Essa associação entre sexo, sexualidade e poder: tratar-se-ia,
ela, de um fato estrutural e transistórico, que independe do modo pelo
qual estiveram e estão historicamente estruturadas as diferentes so-
ciedades? Ou decorre de circunstancias conjunturais, podendo consi-
derar-se transitória? É esse tipo de interrogação que esta subjacente
ao tema a que o trabalho de Graciela Haydée Barbero se dedica. Até
que ponto o arbitrário social inseriu-se também em algumas regiões
dos domínios da Psicanálise, conseguindo dissimular-se como
teorização cientifica? E até que ponto não se faz necessária uma
reflexão que lance luz sobre novas possibilidades de teorização de
certos temas, que permitam ultrapassagem desses véus ideológicos
(caso existam)?
A constatação da autora é inequívoca:

à medida pesquisava a literatura sobre homossexualidade na


psicanálise atual, u idéia de algum tipo de desvio persistia f. .. J em
todos os autores percorridos, um pouco ao acaso dos encontros, a
perversâo mostrava-se intrincadu de tal modo com as questr}es
homossexuais, que não se podia procurar uma sem encontrar a outra.

Daí veio o objetivo que norteou seu trabalho, de revisar as obras


freudianas e lacanianas a respeito do fenômeno da homossexualida-
de, buscando verificar se existem e, neste caso, quais são as articula-
ções entre ele e o conceito estrutural de perversão. Também veio daí
a sua expectativa de poder contribuir com alguns elementos para se
12 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

pensar numa teorização psicanalítica preconceituosa do fenômeno


homossexual e de outras expressões sexuais contemporâneas da se-
xualidade. Isso se torna evidente nas perguntas lançadas logo ao ini-
cio da sua investigação:
• Deveria a psicanálise continuar considerando o lesbianismo
e o resto dos "homossexuais" como um sintoma, uma doença,
uma perversão, um desvio?
• Tem a psicanálise algo a dizer sobre a homossexualidade
como um todo, para além dos preconceitos ou das ideologias
da cultura onde surgiu?
• Teriam, pelo contrário, esses fcnômenos de visibilidade
coletiva dos homossexuais e indentidades "alternativas" algo
a dizer ou a fazer pensar a psicanálise?

Entendo que, ao buscar pôr em evidência articulações espúrias


e ilegítimas enlrc perversão e homossexualismo, Graciela Barbem
aponla para a importância de se despir progressivamente a teoria de
adereços historicamente datados, de modo a se promover a sustenta-
ção da "posição do analista". E isto, na medida exata em que esses
adereços são o que possibilita que o ideológico e o circunstancial de
uma cultura particular (a moral de uma época, ou de uma sociedade
ou de um grupo) inscrevam-se na teoria disfarçados como ciência,
encobrindo sua condição de prescrição social arbitrária. Seu trabalho
age pela via de levare, e não pela via de porre, no sentido da estra-
tégia de atuação da psicanálise, lembrada por Freud.
Acredito que a busca de instrumentos da Matemática e princi-
palmente da Topologia, por Lacan, também visava encontrar um modo
de se escapar da confusão entre os aspectos estruturais do sujeito e
os modos particulares de subjetivação em culturas específicas. Are-
presentação do estrutural do sujeito, em uma ciência que não teme
nem evita a singularidade do sujeito, mas que também não se esquiva
à questão da estrutura, deve dispor de instrumentos adequados para
tratar da descrição dos aspectos universais trans-históricos.
Prefácio 1:J

O certo é que o mundo está fazendo novas experiências enitirn.,· c


inventando novas formas de relacionamento e vínculos, cnítims.
qfetivos e até familiares: está-se criando uma nova ordem qu,· 11
psicanálise tem que levar em conta.para não continuar a pensar
conservadoramente numa desordem na sociedade /zeteronormada.
Devemos voltar à psicanâlise tal como Freud a projetara, sem
normas ou modelos de horn comporwmento, sem dogmas e, dentro
do possível. cmzsciente das ideologias que pode C'arregar: uma
psirnnâlise cient(jlca, dentro também do novo modelo cientifico
que a psicmuílise inaugura por si 111e.1·111a (uma cib1cia do singu-
lar) . .Jacques Lacan, durante todos os anos que se dediC'ara a ela,
procurou achar modelos teóricos tais como os maternas e os nós
horromeanos que pudes.1·em sustentar esta pcr.1pcl'tiva, mas nem
todos os seus discípulos conseguiram aco1111Jcmhar este e.1f<Jrço.

De acon.Io com o trabalho aqui prefaciado, o que a Psicanálise


pode oferecer no combate ao preconceito, à discriminação e à vio-
lência contra os homossexuais é rejeitar a patologização moral de
suas práticas sexuais, enfocando-as soh o mesmo plano das práticas
heterossexuais. Alternativas diversas têm sido buscadas por outros
autores, alguns dos quais reivindicam algum tipo de superioridade da
alternativa homossexual. Porém, percorrer esta via incorreria no que
a Psicanálise entenderia sob o estatuto mctapsicológico de "idealiza-
ção", o que seria contraditório com a intenção da autora, em sua
aproximação do problema. Parece-me que a contribuição que se pode
buscar na Psicanálise, no caso de uma militância política engajada de
modo apropriado (não moralista) em defesa dos homossexuais (que
considero necessária e desejável), é exatamente a desconstrução de
uma categorização psicopatológica pretensamente científica do fe-
nômeno (e não estrutura, ou categoria metapsicológica) do rela-
cionamento homossexual. Entendo que isso não elimina a prcrrogat i-
va do conflito na abordagem do tema da sexualidade, mas possibilita
alocar os conflitos relativos às ordenações sociais da sex11alid:ull' 1111
âmbito que lhes é legítimo: o dos conflitos de poder entrl' 11<: dil1·11·11
tes grupos sociais. E isso cobra negociações polítirns!
14 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Aliás, parece-me que o fundamental é exatamente pôr a nu essa


face conflituosa da questão, que se revela a partir da remoção do véu
ideológico que pretende circunscrevê-la a um âmbito exclusivamente
e pretensamente científico. Pois o melhor modo de se exercer o po-
der de forma totalitúria e despótica é dissimular a disputa de poder
que está em jogo. É a isso que se prestam inúmeros psicanalistas
revisitados por Gracie1a Barbcro no capítulo dois do livro, que, dife-
rente de Freud e Lacan, tomam uma posição política decisiva (e la-
mentável) em um conflito de poder, apresentando-se disfarçados
de dentistas neutros e assépticos. Ao revelar-lhes a tática, este livro
põe cm evidência um posicionamento ético (e, por que não, também
político?). Um posicionamento que não é pela defesa de um grupo
particular, mas que é contra a exclusão, discriminação ou segregação
ele qualquer grupo (nomeado e moralmente avaliado a partir de sua
prática sexual). E eu acredito que isso seja absolutamente werente
com o modo de a Psicanálise se apresentar e posicionar perante as
sociedades: como uma abordagem que revela o estrutural, que reco-
nhece os particulares sociais, mas que defende a singularidade do
desejo!

Raul Albino Pacheco Filho


INTRODUÇÃO

Na psicanálise, a homossexualidade, assim como outras manifes-


tações não convencionais da sexualidade e da identidade sexual, ccm-
fu ndem-se permanentemente com a perversão, uma entidade
nosográfica (ou uma estrutura clínica) específica, não conseguindo esta-
belecer a suficiente distância, necessária para o pensamento científi-
co, da opinião social geral, carregada de mitos e idéias preconcebidas
em relação a este tema. Os Gay & Leshian Studies, surgidos nas
universidades norte-americanas no final do século passado, estabele-
ceram já, apesar da sua breve existência, um caminho científico dife-
rente para o estudo destas questões e oferecem a possibilidade de uma
interlocução com a psicanálise que permita uma reflexão crítica.
O próprio mundo social atual está a mostrar-nos, nesta área, o sur-
gimento de novas formas culturais, expressivas e identitárias, que podem
substituir algumas designações existentes no âmbito da patologia.
A explosão de público que a1:.sistiu estes últimos anos à "Parada d, i
Orgulho Gay" na Avenida Paulista, em São Paulo (e em muitas outras
cidades do mundo), evento que cresceu de forma muito rápida nos LÍ lt i1111 ,s
anos, tanto no número de participantes como no destaque na mídia. 11111~.,,; 1
o tamanho do que estava, de alguma maneira, oculto sobª" :ip:111·wu·.
convencionais. Um milhão de pessoas, entre os que se conta111 .1:111·.\. h-·.li1
16 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

cas, transexuais, travestis, bissexuais e simpatizantes (entre outra~ possí-


veis categorias), mostraram-se comemorando um movimento de emanci-
pação social considerável e inquietante. Eles foram vistos ainda com des-
confiança pelo resto da população e com certa surpresa e indecisão pelos
teóticos da psicanálise, já que este fenômeno coletivo não pode deixar de
provocar um questionamento de alguns de seus conceitos básicos. No
mínimo, alguns pronunciamentos parecem pouco claros.
Em 1999, por exemplo, em uma revista argentina de psicanálise,
Eric Laurent publicou um aitigo intitulado "A escolha homossexua1" 1 ,
no qual afama que:

"Desde a inserçüo na cultura, o combate pelo reconhecimento desloca-


se ao terreno político e assiste-se a partir dos anos sessenta a um novo
modo de c{finnaçiio do sintoma social homossexualidade: o gay. ". 2

Por que falar de um "sintoma social homossexualidade'"! A visi-


bilidade dos casais gays e lésbicos no mundo social ccmesponde real-
mente a um novo modo de afirmação de um sintoma social qualquer
(negativo neste caso) ou se trata da colocação cm evidência de no-
vas figuras do erotismo e da identidade social que estão se confor-
mando pouco a pouco e que agora adquirem uma certa estabilidade
como imagem, até para elas mesmas?
Certamente o ser humano sente-se desamparado diante dos peri-
gos externos e internos que ameaçam continuamente sua segurança, seu
conforto e até sua vida. O desenvolvimento da civilização não parece
poder acabar com os impulsos egoístas ou abusivos de uns contra outros
e muito menos com as forças sexuais que, apesar de serem aquelas que
representam as maiores possibilidades de proporcionar prazer e energias
positivas, também representam um grande perigo, por parecer (ou ser),

1 Laurent, Eric. "La elección homosexual - Nuevas normas de la homoscxualidad". ln:

Dispa - Revista de Psicoanálisis. Buenos Aires, Editorial Tres Haches, 1999.


2 lbid., p. 49: "Desde la inserción en la cultura, el combate por e/ renmocimiento se

desp/aza ai terreno político y se asiste a partir de/ final de las aiíos sesenta a un nuevo
modo de afirmación dei sfntoma social homosexualidad: e/ gay.".
Gradeia Haydée Barbero 17

its vezes, impossíveis de controlar e dominar voluntariamente. A educa-


<;ão tenta modelar, encaminhar e disciplinar essas pulsões, assim como
oferecer caminhos de sublimação criativa. Mas sobram sempre impul-
sos que produzem resultados inesperados e indesejáveis. Uma das for-
mas mais comuns de negar que estes conflitos pe1tencem a cada um de
nós, e que devemos resolver os mesmos internamente, é colocá-los para
fora de si, projetando imagimrriamente o problema em sujeitos e grupos
de populações que servem como bodes expiatórios, alvos de preconcei-
tos, tais como o foram algumas raças ou religiões ao longo da história. No
mundo moderno, a sexualidade viu-se reduzida cada vez mais a compor-
tamentos concebidos como "naturais" ou "normais", ligados à reprodu-
ção, à genitalidade, e ao amor monogâmico heterossexual, ou relegada a
detenninadas instituições sociais como a prostituição, para satisfazer al-
gumas necessidades consideradas "excessivas" e inevitáveis nos homens
e negando este direito às mulheres que, com esses excessos, criaram
misticismos e histerias.
Na medida cm que o mundo virava menos hierárquico e mais
democrático, muitos comportamentos e práticas eróticas que esta-
vam escondidos iam aparecendo e mostrando quanto eram numero-
sos e quanto não se restringiam a condutas criminosas ou doentias.
Mas essa ampliação das possibilidades eróticas do ser humano des-
pertou, por outra parte, fantasias terríveis e certo pânico geral. As
últimas tentativas das ciências, incluindo uma parte da psicanálise,
apoiando as atitudes defensivas dos seres humanos que não aceitam
mudanças, se dirigem a continuar classificando como desvios todos
estes comportamentos diferentes da suposta "normalidade heteros-
sexual", como se esta fosse a única conduta "natural" (reprodutiva)
e por isso não precisasse de explicações ou direções. Porém, nada
disso impediu que o mundo evoluísse. Não há conduta natural neste
âmbito, e, cada vez mais abertamente, vemos casais de pessoas do
mesmo sexo mostrando-se felizes à sociedade e muitas formas de
sexualidade e identidades "alternativas" exigindo ser reconhecidas
como respeitáveis e coerentes com as normas do convívio civilizado
de nosso mundo liberal. Entre todas as formas novas do erotismo
18 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

contemporâneo, "os homossexuais" estão a exigir os seus direitos de


existência legalizada a partir da criação de uma comunidade que os
protege e lhes outorga sentido. Mas quem são eles realmente?
Eve Kosofsky Sedgwick 3 afirma que as pessoas cultas deste
século parecem compartilhar uma definição de homossexualidade,
independentemente de se elas mesmas são gay ou straight4 ,
homofóbicas ou anti-homofóbicas. Uma concepção que gira ao redor
de uma contradição fundamental, uma radical incoerência.

"Dita concepção sustenta a visão minorizante de que haveria um


certo número de pessoas que são 'verdadeiramente gays' e sustenta,
ao mesmo tempo, a visão universafü.adora de que o desejo sexual
é um dissolvente poderoso das identidades estáveis; que as pessoas
aparentemente heterossexuais e suas eleições de objeto estão
intensamente marcadas por influências e desejos do mesmo sexo e
vice-versa, pelas aparentemente homossexuais... " 5

Segundo a autora, apesar das tentativas freqüentes dos teóricos


de encontrar uma saída, csla visão contraditória nos acompanha há
quase três quartos de século e às vezes tomou a forma de um enfren-
tamento entre política e teoria. Isto nos levou, diz, a um mapa com-
plexo e contraditório de definições que exige uma observação dos
elementos de conjunto onde cada uma destas se apóia, para entender
seu caráter histórico e contingencial. Estamos, assim, diante de um
nó crucial em nossa organização social, prenhe de incoerências cada
vez mais desconcertantes na medida em que o campo oferece obstá-

! Kosofsky Scdgwick, E. "Epistemologia dei closct". ln: Grafías de Eros - Historia,

génem e identidades sexuales. Buenos Aires, Edelp, julho de 2000, pp. 53-86.
·1 Termo que se utiliza em contraposição ao "queer" (raro, torto, não heterossexual).

Straight seria: direito, "quadrado", heterossexual.


' lhid., p. 77: "Dicha concepciôn sostiene la visiôn minorizante de que hay una poblaciôn
iclentijirnble ele personas que 'verdacleramente son' gays; sostiene, a la vez, la visión
zmiversali::.adora de que el deseo sexual es un disolvente poderoso de las identidades
estables; que las personas aparentemente heterosexuales y sus e/eccio11es de objeto
están fuertemente marcadas por influencias y deseos de[ mimw sexo y viceversa, por las
aparentemente lwmosexuales ... ",
Gradeia Haydée Barbero 19

culos de todo tipo para uma tomada de posição teórico-política con-


dusi va. Estes comentários de Kosofsky, com os quais não posso dei-
xar de concordar, em especial a afirmação contraditória de que todos
estes aspectos, agora visíveis, da sexualidade e das identidades
sexuadas, correspondem a desejos pertencentes a toda humanidade
e o mesmo tempo permitem a identificação de um grupo particular de
pessoas como "homossexuais" (ou mesmo, marcando as diferenças
internas, como: gays, lésbicas, transexuais, bissexuais, bofes, bichas,
sapatões, sandalinhas, etc.), acentuam o problema (popular e teórico)
de saber por que algumas pessoas atuariam no que a maioria recalca
ou satisfaz de forma sublimada (amizade, laços sociais) em nossa
sociedade. A sexualidade, mesmo sendo o resultado de condições
sócio-culturais concretas, evidencia diferenças individuais. Significa
isto que essas diferentes posições implicam necessariamente uma
perversão? Não deveríamos nos perguntar, por exemplo, como inter-
vém em cada um a compulsividade? Não há escolha na homosse-
xualidade? Há outros elementos que indiquem a existência de uma
estrutura clínica perversa independente da escolha sexual? Trata-se
simplesmente de uma preferência, de uma "opção"? As discussões
são intermináveis e parecem não conduzir a acordos.
Poderíamos afirmar, com certo grau de certeza, que os gmpos mili-
tantes de homossexuais, gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis,
etc., aderiram à idéia de uma identidade, entre outros motivos, para comba-
ter o qualificativo de perverso e doentio associado a eles por tanto tempo.
No outro extremo, a partir de um ponto de vista conservador, pode-
ria se pensar que a aceitação e legalização de vínculos homossexuais
seriam formas de favorecer o aumento e divulgação de comportamentos
doentios e perversos6 na sociedade. Mas, acordemos, o fenômeno pode-
ria ser visto como propiciador do contnírio: na medida em que detennina-
das práticas estão deixando de ser consideradas proibidas, como as rela-

·· Neste sentido, é interessante acompanhar as discussões do projeto de Parceria Civil,


apresentado primeiramente pela então deputada Marta Suplicy em 1995, que acontece-
ram na Câmara de Deputados em nosso país (Brasil), em várias oportunidades, sem ainda
d1~gar a um acordo.
20 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

ções amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo, talvez um com-


portamento realmente perverso ou uma estrutura perversa possam ser
melhor compreendidos e definidos cientificamente.
De acordo com algumas considerações freudianas e lacanianas
sobre a perversão, esta corresponderia a uma estrutura clínica com-
parável com a neurose e a psicose; perversão é uma forma de estru-
turação do psiquismo baseada na clivagem do eu e na renegação 7 •
Mas, fora a identificação destes dois mecanismos, a estrutura per-
versa não tem tido estudos definitivos ligando a teoria e a clínica nos
autores consultados. Há uma falta de clareza teórica sobre o que o
perverso estaria renegando (uma percepção, as implicações simbóli-
cas da falta de pênis matemo, o desejo do outro, a lei, a castração?)
e sobre a conexão deste mecanismo e da clivagem do eu com as
variedades das práticas sexuais que se conhecem vulgarmente como
perversões. Talvez o problema se situe exatamente aqui.
Segundo aponta Lacan, o perverso poderia ser reconhecido no
ato: uma recusa em atos da castração do outro. Um ato que ignora a
divisão do sujeito (neurótico) e sua necessidade de manter um desejo
parcialmente insatisfeito. Já nos últimos seminários, a partir da intro-
dução do modelo dos nós borromeanos, Lacan fala cada vez menos
de estruturas, prestando atenção, fundamentalmente, à forma parti-
cular em que se amarram em cada sujeito: Real, Simbólico, Imaginá-
rio e Sintoma. Ele não queria ser confundido com o estruturalismo
que estava agonizando, por ter se ampliado demais, e continuou a
evoluir e adotar novos modelos teóricos. Mas as modalidades da ex-
pressão erótica são o que menos lhe interessa.
Tudo isto carece de mais detalhes e explicações, mas gostaria
de deixar registrado que o campo das perversões não tem sido suficien-
temente pesquisado na psicanálise, não porque os analistas não se
interessem pelo assunto, pelo contrário, mas porque o mesmo se en-
contra coberto de idéias preconcebidas e clichês. Além disso, o con-

7 A"verleugnung" freudiana foi traduzida de várias formas: renegação, recusa, desmentida,

segundo os lugares e preferências do autor.


<iraddc1 Haydée Barbero 21

ccilo de perversão está muito misturado com a noção de homossexua-


lidade e outras expressões do desejo não convencionais, como venho
afirmando. Também é possível que a perversão, desligada de uma
escolha sexual, remeta a uma estrutura muito difícil de ser apreendi-
da na clínica analítica pelo que as pesquisas não são conclusivas e
pouco ou nada contribuem no esclarecimento da questão, apesar da
seriedade de alguns desses trabalhos.
Em um trabalho anterior8 , estudei as relações amorosas entre
mulheres, na época atual, e mostrei que elas estabeleciam laços de
amor muito intensos, às vezes conflituosos, mas que não se tratava
de vínculos perversos e sim de amor genuíno.
Na preparação de um novo projeto de trabalho sobre as expressões
atuais da sexualidade e a psic:málise, não pensei, a princípio, na questão
da perversão, já que me parecia (transferencialmente, a partir de entre-
vistas e observações clínicas e sociais) que não era este o problema
fundamental em relação a esse tema e também achava que a idéia de
desvio não fazia sentido,já que não considero que exista nenhuma forma
preestabelecida "natural" ou "normal" da qual essas "variedatJcs" teriam
se tJesviatJu. Eu pensava simplesmente que homossexualidade e perver-
são eram duas coisas diferentes, não equip:.rráveis sequer como concei-
tos, até porque homossexualidade não é um conceito psicanalítico, mes-
mo que Freud e Lacan tenham usado o termo,já veremos de que manei-
ra. Também pensava que iria encontr<lf desejos e práticas homossexuais
em sujeitos neuróticos, psicóticos ou perversos. Mas à medida que
pesquisava a literatura sobre homossexualidade na psicanálise atual, com-
provei que a idéia de desvio persistia e que a diferença entre homossexu-
alidade e perversão, que me parecia tão óbvia, não se mostrava tão bem
explicada. Em todos os autores percorridos, um pouco ao acaso dos
encontros, no começo, a perversão mostrava-se intrincada de tal modo
com as questões homossexuais que não se podia procurar uma sem
encontrar a outra. Às vezes consideravam-se praticamente sinônimos,

'Na dissertação de mestrado da autora, não publicada, chamada "Outras Mullll'r,·.,". qu,·
se encontra na se~ão correspondente, na biblioteca da PUC-SP.
22 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

ainda depois de Lacan ter desenvolvido a idéia de uma "estrutura perver-


sa", aparentemente (para mim) como uma solução ao desvio moralizante
anterior, que identificava as perversões com condutas primárias,
descontroladas, anteriores ao estabelecimento de qualquer recalque, li-
mite ou dique. Contrariamente ao que eu esperava, este conceito parecia
ligar ainda mais, nos autores pesquisados, homossexualidade e perver-
são, de uma maneira tão surpreendente, que me levou a refletir sobre o
que faz que estes conceitos não possam se separar. Primeiro, porque me
dei conta de que o termo homossexualidade só tem sentido, em alguns
ca'>os, como complemento implícito de uma pressuposição heterosse-
xual. Segundo, porque as ditas "perversões", no sentido de práticas se-
xuais não convencionais, correspondem aos fantasmas recalcados do
neurótico. Mas tudo isto levava a mais questões sem resolver. É mesmo
a perversão o avesso da neurose? Ou, então, a neurose o avesso da
perversão? O que isto realmente significa? E onde se encaixam o meca-
nismo da renegação e a clivagem do eu, que Freud deixam enunciados
ma'> pouco desenvolvidos? Se bem a renegação é mencionada como
uma conduta infantil (do menino que se recusa a ver que as meninas não
têm um pênis no seu corpo) e trabalhada por este autor na psicose e no
fetichismo, e adi vagem do eu é por ele evidenciada no momento em que
constata sua existência como algo completamente diferente da sepa-
ração consciente/inconsciente (o que, segundo alguns autores, aponta
para a possibilidade de uma terceira tópica), não apresenta conclusões
definitivas referida<; à teoria geral.
Por tudo isso, ficou claro para mim que seria indispensável esta-
belecer, antes de qualquer coisa, algumas precisões teóricas.
Por outra paite, ficou evidente que a representação da relação
erótica entre duas mulheres é uma das fantasias presentes no imaginá-
rio erótico da sexualidade moderna (androcentrada), a ponto de ser
inclusa nas propagandas comerciais de forma aberta ou dissimulada, o
que me fez pensar que este apelo, utilizado com fins comerciais, estava
longe de ser na atualidade um verdadeiro tabu. A questão se apresen-
tava cada vez mais complexa. Podemos exemplificar com os persona-
gens da novela Mulheres Apaixonadas, que estava sendo transmitida
Graciela Haydée Barbero 23

no momento em que eu escrevia estas páginas9 • Entre os casais que


aparecem no enredo, há uma dupla de adolescentes, aparentemente
livres de preconceitos e também de qualquer signo de "perversão", que
sustenta um vínculo amoroso homossexual. A imagem da jovem, que
na novela representa uma jovem "namorando" outra mulher, oferece-
se, nos intervalos, como objeto de desejo masculino em uma propagan-
da de telefone celular, em que aparece rodeada de muitos homens
seduzidos por sua presença (e a lembrança da relação "proibida"?).
Reproduzo, no rodapé, um comentário que obtive por meio de
uma lista de "mulheres que anuun mulheres" na Internet, que pode-
ria confirmar estas hipóteses. 10

" Tnmsmitida pela Rede Gloho, no ano de 2(Xl3, durante vá1ios meses, no hnrá1io das 20 horas.
111 Esta "lista" smgida do p·upo de mulheres lésbicas U111as ,. Outra.1·, ,0111 sede na cidade

de Süo Paulo, possui um site que pode ser visitado: hnp://www.grupoumaseoutras.com.br.


Entre outras coisas, veicula freqüentemente informações que pntkm ser de interesse para
sua conmnidade. O texto abaixo citado, segundo esta rel'erêneia, foi extraído da revista
Sexy. E<liçüo n" 2K4 da Ricktec, Süo Paulo, agosto de 2003.
O crnnentário é o seguinle: "A vida como da é... M<'.1·11w que você mio st'.Í" ,w,•eleiro de
cartl'irinlw, sah,• lJII<' ,·.risr,· 11111 ,·a.mi de léshica.1· de.1:ft!a11do de 11/lio.1· dadas ,•111 pleno
horário nohr,• glohal. ,w 1w11,•lll Mulheres Apaixonadas. l.m,.g,· de sC'/" uma Jogada de
l//{/rketi111i do w1tor Mwwel Carlo.1·, a dupla t1pe11t1s rt'J!mdu~ a 1•ida como ela ,r. Basta
11co111pwilwr o cre.1'<'1'11/e 111ímero ,le 111ulhere.1· na !'arada do Or!ittlho Gay 1111,wl em
todo o 1111111(10 para se Sl/car que elas estüo .wi11do cio 11n11ârio, sim, mas com muito
glamour. O lll<'ll'tulo publicirârio, que de bobo 1/(/0 tem nada, rnp/011 a atual te1uh111cia
e o resultlldo é uma ,-11x111-rada de imagens de garotas em po.1·,-.1· .1·e11.1·1utis e por ve~es
011.1·mla.1·, q11<' instigam o ohservador a imaginar cenas de i11ti111idade mais 11írrida, seja
e111 outdoors <' re1•istas. seja em videoclipes, em filmes e programa.,· de TV.
Ser léshirn awm1 ,; fashion. O mercaclo feminino homossexual é o 1101•0 mote ele grifes
11al'ionais e i11temacio11ais. Estú duvidando? Dê uma olhada 11as Ji,tos. Moçoilas em
atitudes .1·11.11,eila.1· (claro, porque mio é nada assim tüo explícito) estampam propagan-
das como as da Bmuma Rcpublic e Swarch em revistas de modll como Vogue, ln Style,
Elle <' até 11m mais populares como Vanity Fair. No Brasil, campa11ha.1· como a da Chi/li
Beans, com a modelo Barbara Koboldt, e da llus, com a top Marcel/e Bittar, são
alguma.1· elas <JII<' aderiram à O/Ufa. Sem Jttlar nos editoriais de moda que trazem
modelos e bonecas i11flâveis em tamanho naturul.
Toda es.1·a ahordllg<'m e.1pecíjica l'isa mexer com II p11tn1cial cm1.mmid11r das mulheres
gays, que trmlicicmalmente süo mais re.rnrvadas que os homens. Uma amostra disso
pocle ser observada nas puradas gays realizadas em várias cidades brasileiras e do
mundo, nas lflWis 80% elos participallles são homens. A{ vem a pergunlll: existe mai.,·
homem gay do que mulher? 'Não, para o homem é mais fácil se expor; as mulherl's s110
sexualmrnte reprimidas', afirma Neusa Maria de Jesus, coordenadora e.l'pffial d,·
lésbicas da A.1·sociaçüo de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transewais (AGLBT). ,\r,' ,.,,,.
il·so, a entidade criou uma coordenadoria só para as mulheres.".
24 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Diante do que estava achando na bibliografia pesquisada, ao


que escutava e escuto no meu trabalho clínico, e aos acontecimentos
sociais que acompanhei na posição de observadora participante, mé-
todo fundamental da Antropologia Social, as minhas questões muda-
ram de foco.
É por isso que resolvi me voltar para os estudos sociológicos,
antropológicos, históricos e literários que se desenvolveram no campo
dos Gay & Lesbian Studies e estabelecer com eles uma interlocução
indispensável para quem se propõe continuar a entender a psicanálise
como uma "erotologia" e não como uma disciplina nonnativa. Estes
trabalhos permitem pensar de maneira crítica a psicanálise, neste ponto
específico, sendo seus precursores os estudos feministas e os estudos
de gênero, que questionaram desde o princípio a essencialização dos
termos "homem" e "mulher" e deixaram à vista o anodamento da se-
xualidade com as relações de poder na sociedade. Eles ampliaram con-
sideravelmente o debate neste campo de pesquisa e teorizações e me-
recem, cada vez mais claramente, a atenção dos psicanalistas como os
interlocutores mais importantes de seu tempo. Todos estes autores, dos
quais falarei em um capítulo específico, tratam as questões da sexuali-
dade e das identidades sexuais de uma forma completamente diferente
da tradicional que as associava com patologias, oferecendo informa-
ções de grande interesse e estabelecendo um diálogo polêmico com a
psicanálise - Freud e Lacan principalmente.
Perguntei-me, então, primeiramente, se as considerações sobre
homossexualidade e perversão, um pouco confusas segundo meu ponto
de vista, que tinha encontrado em diversos autores atuais, teriam sus-
tento na teoria freudiana e lacaniana ou se seriam interpretações das
mesmas que, de alguma forma, as deformavam. Encontrei em Freud
muitas idéias sobre o assunto e verifiquei no seu trabalho alguns
impasses que, no seu tempo, não tinha como solucionar; mesmo as-
sim, em momento algum ele identificou claramente a homossexuali-
dade com uma patologia. Se alguma coisa sustentou durante toda a
vida foi que por ser a libido homossexual parte dos desejos polimorfos
da infância, poderia se falar, nos "homossexuais", de uma "fixação"
( ,raciela Haydée Barbero 25

cm etapas anteriores ao esperado alvo heterossexual, mas que isto


não era um elemento que perturbaria por si mesmo o resto da
estruturação psíquica de um sujeito e descobri que Lacan, lido sob
uma determinada perspectiva, a de seus últimos seminários, nos apon-
tara os caminhos para uma possível solução destas questões.
Decidi então empreender meu trabalho dentro destes lineamen-
tos e assim o fiz. Este livro é o resultado desta procura.
Em um primeiro capítulo apresento alguns autores importantes
dos estudos gays e lésbicos e do movimento queer (um desenvolvi-
mento posterior neste campo) em sua relação com a psicanálise, sem
que exista a pretensão de proceder a uma revisão abrangente da
literatura na área, já que meu objetivo se limita ao tema da homosse-
xualidade (e outras variedades eróticas) na sua relação possível com
a psicanálise. A intenção dessa consulta à literatura externa ao cam-
po da psicanálise foi sondar apenas as questões e discussões que
estão em andamento em campos de conhecimentos relevantes que
se dedicam especificamente (direta ou indiretamente) ao tema, de
modo a trazer para o meu próprio trabalho algumas sugestões de
tópicos e aspectos polêmicos apontados nessas áreas conexas. Cons-
tatei na minha pesquisa dessa literatura a importância saliente do pen-
samento de Michel Foucault como figura inspiradora. Em função dis-
so, a segunda seção do Capítulo I é dedicada a explorar brevemente
alguns pontos de contato entre o pensamento de Foucault e o de
Lacan sobre o tema em pauta. Além disso, inicio nesse capítulo as
primeiras considerações destinadas a explorar o pensamento recente
do psicanalista Jean Allouch sobre o terna da psicanálise como
erotologia, que traz proposições inovadoras e relevantes para se pen-
sar psicanalíticamente o terna da relação amorosa entre pessoas do
mesmo sexo (biológico). Como será visto, esta segunda seção do
Capítulo I é apenas um ponto de partida para a consideração do pen-
samento desse autor, já que a reflexão sobre diferentes aspectos de
sua proposta se estende pelo restante do meu trabalho.
Em um segundo capítulo, faço um rápido percurso por alguns
textos que evidenciam o pensamento de vários autores atuais, que
26 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

ainda consideram a homossexualidade ligada à perversão e à patolo-


gia, afirmando-se como freudianos e lacanianos e apresento, como
exemplo quase paradigmático, o caso da "jovem homossexual", pu-
blicado por Freud, comentando também a análise do mesmo realiza-
da posteriormente por Serge André, dentro desta mesma linha de
pensamento.
No terceiro e quarto capítulos dirijo minha atenção à obra
freudiana e lacaniana no que um e outro contribuíram para refletir
sobre o fenômeno da homossexualidade e sua articulação possível
com a perversão, considerando especialmente a implicação subjetiva
e a perversão como estrutura. Em ambos os casos, faço uma série de
considerações críticas.
A proposta final é de que os conceitos laeanianos, quando lidos
a partir da interpretação de Jean Allouch do Seminário 10 11 como um
momento chave de mudança teórica, a partir da criação do conceito
de objeto a (como função) diferenciado do "outro especular", ofere-
cem os elementos necessários para pensar a homossexualidade em
suas variadas expressões e as outras formas de erotismo, tradicional-
mente chamadas de "perversas", como variações que formariam parte
de uma "normalidade" possível, como ele afirma no Seminário 13 12 •
Nestes seminários, a suposta "normalidade" da heterossexualidade é
completamente deixada de lado. Este seminário (sobre o objeto, jus-
tamente), inédito ainda, é uma espécie de nova versão do Seminário
4 13 (Seminário das Relações de Objeto e as Estruturas Freudianas),
onde seu ponto de vista ainda se confundia com os mais tradicionais.
Se depois disso ele continua chamando a homossexualidade de fenô-
meno perverso, isso deve ser tomado mais como característica do
estilo lacaniano de não pretender fechar as questões de modo absolu-
to e definitivo, do que como uma reversão do seu pensamento. Neste

11 Lacan, J. (1962/62). Seminário 10. A Angústia. Inédito. (na época qm, foi escrito esse

trabalho)
" Lacan, J. (1965/66). Seminário 13. O objeto da psicanálise. lnédirn.
D Lacan, J. (1956/57). O Seminário. Livro 4. A Relação de obje/o. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1995.
Gradeia Haydée Barbero 27

momento teórico Lacan começa a reformular a castração e, final-


mente, faz os desenvolvimentos necessários para que o "falo", como
conceito, não se confunda mais com o órgão peniano.
Nas considerações finais faço algumas conjecturas sobre o fu-
turo da psicanálise, que, "acolhendo os Gay & Lesbian Studies" 14 ,
possa ler Lacan sobre esta outra perspectiva. Jü existem autores
cujas reflexões respondem grandemente às minhas expectativas e
estão abrindo as portas, creio, à psicanálise de nossos tempos.
A metodologia plincipal que utilizei foi a pesquisa bibliográfica de
muitos e diferentes autores, alguns dos quais fui conhecendo na medi-
da cm que a mesma avançava. Por outra parte, como já mencionei,
acompanhei como observadora participante, método principal da
Etnografia, todos os eventos que me foram possíveis neste campo, tais
como as paradas gays e sua preparação, muitos seminários sobre o
tema, alguns dos quais ajudei a coordenar, encontros e reuniões de
diversos grupos de lésbicas, gays e transexuais, lançamentos de livros
e revistas, debates, listas de informação e intercâmbios por meio da
Internet, entrevistas individuais com algumas mulheres declaradamente
lésbicas, etc., sem deixar de lado uma longa experiência clínica que ia
ficando cada vez mais esclarecida e esclarecedora nestes pontos, na
medida cm que eu mesma deixava de lado velhos preconceitos psica-
nalíticos e ia substituindo minhas intuições por conhecimentos. Esse
enorme material surgido do trabalho de campo serve como pano de
fundo das leituras, reflexões e argumentações teóricas desenvolvidas.

Um caso paradigmático

Freud parece ter ficado um pouco perturbado perante urna mu-


lher, a "jovem homossexual" 15 , a quem ele simplesmente pareceu não

14 Ver o artigo de Allouch, J. "Acoger lo~ Gay & Lesbian Srudies". ln: l.ito1,1/. 11 • 'I.
Córdoba, Edelp, abril de 1999, pp. 171-177.
i; Nome dado por Lacan e que logo fora utilizado pelos psicanalistns '""' rn,,1
28 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

compreender: como ela se atreveria a mentir para ele, ainda que em


sonhos, se perguntava, se não fosse para continuar a vingar-se do pai?
As feministas pensariam que esta é uma típica resposta mascu-
lina de quem não aceita ficar de fora, como o terceiro excluído.
Este bem poderia ser o caso de muitos psicanalistas que interpre-
tam o amor da ')ovem homossexual" como um desafio, uma vingança
contra o pai: parece que lhes é difícil pensar em uma relação amorosa
entre mulheres que independa do homem para se constituir. E mesmo
se representasse uma vingança inconsciente, isto não seria um ele-
mento diagnóstico. Freud também falou de outras mulheres (heteros-
sexuais) querendo se vingar inconscientemente da mãe. O que signifi-
ca que esta questão da vingança inconsciente não implica uma qualida-
de moral. De toda forma não depender de um homem não significa
dizer não depender do falo. Mas, como pensar o conceito de falo sem
este estar ligado de forma direta ao órgão sexual masculino, o falo
como representante do desejo, como semblante, como objeto parcia1,
como "brilho" do objeto que seduz, como "objeto a"? Como interpretar
o funcionamento do falo (simbólico, imaginário, real) entre duas mulhe-
res, sem cairmos na armadilha de pensar que uma ocuparia a posição
masculina e a outra a feminina, simplesmente? Qual é o estatuto do
falo, na última parte da obra de Lacan, depois da criação do conceito
de objeto pequeno a, um objeto que não tem imagem nem represen-
tação, uma função? Como se aplicaria neste caso? Qual a relação do
falo com o "véu", o fetiche, o fantasma?
Pensar que o amor e o desejo entre as mulheres são sentimen-
tos (pulsionais) ligados à resolução do complexo de Édipo como o faz
Freud, a partir das identificações sexuais e da escolha de objeto, nos
parece, a princípio, insuficiente para dar conta das numerosas e
variadas situações que a observação e a clínica nos mostram. Tería-
mos de explicar porque o Édipo é geralmente considerado sob o pon-
to de vista de uma normalidade heterossexual, porque aparecem como
explicações fixações e regressões que marcam uma interpretação
evolucionista da sexualidade e do erotismo, porque, quando não en-
contra outra explicação, Freud volta a se apoiar nos fatores constitu-
eiraciela Haydée Barbero 29

cionais, e, finalmente, porque não contempla adequadamente a gran-


de quantidade de mulheres que "mudam" de opção sexual, ou do
sexo do parceiro ou simplesmente do homem para a mulher, depois
de terem tido uma experiência heterossexual, às vezes longa, às ve-
zes boa e satisfatória, se bem que ele tenha comentado que a
bissexualidade era mais evidente nas mulheres.
Segundo Freud, para que uma mulher se interesse por outra mu-
lher como objeto amoroso, deve ter tido uma fixação primária à mãe e
logo desenvolver uma regressão a esse ponto por causa de uma decep-
<;ão, vinda do pai (o que vem do caso da 'jovem homossexual" tomado
como paradigmático). E é paradigmático, talvez, de uma forma de se-
xualidade feminina diferente da histérica, mas não por isso perversa.
Na realidade, não sabemos qual: segundo Freud, ela não é neurótica e
manifesta uma inversüo. A jovem sofria, segundo este autor, de um
complexo de masculinidade, o que explicarei no Capítulo II.
Este nome descritivo elevou-se também à altura de um concei-
to, como pode ler-se em algumas histórias clínicas publicadas, geral-
mente em artigos de revistas de psicanálise, mas sem adquirir uma
forma positiva clara. Freud o descreve como o resultado da inveja do
pênis na mulher e nurn:a fica claro se uma mulher, neste caso a 'jo-
vem homossexual", ao se estruturar desta maneira, estaria renegan-
do a castração e, se assim o for, como. O fato de uma mulher amar
alguém que também não tem pênis constitui um mecanismo de defe-
sa? Uma recusa de quê? Desejar uma mulher implica no desconheci-
mento da diferença dos sexos? A não aceitação da diferença dos
sexos como critério para o desejo é em si mesmo algo perverso, de-
fensivo ou sintomático?
Algo que não se toma em consideração é que as mulheres "lés-
bicas" costumam se apaixonar por outras "lésbicas", e não necessa-
riamente pelos estereótipos femininos culturais ou pelo mistério d' A
Mulher, apontando com isto urna circulação diferente dos desejos,
uma outra erótica verdadeiramente.
Para Freud, a renegação se produz no ato da percepção, já que
ele descrevia este mecanismo como urna defesa perante a percep-
30 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

ção da falta de pênis na mãe. Este mecanismo fica claro na explica-


ção do fetichismo. Mas, podemos ver isto em algum lugar da história
clínica da "jovem homossexual?" E a clivagem do eu, onde estaria?
Este autor estuda numerosos casos de homens cuja sexualidade
poderia ser descrita como homossexual e identifica diversos cami-
nhos e questões que poderiam determinar este resultado. Com rela-
ção às mulheres, porém, fora o caso da "jovem homossexual" e al-
guns comentários breves em outros artigos (no caso de "Dora", cita-
do no Capítulo II, por exemplo), não faz o mesmo. Penso que sua
hipótese principal, a de que a homossexualidade (masculina) seria
uma forma de evitar a angústia de castração, não faz muito sentido
quando se trata de uma mulher; por isso aqui ele falaria de inveja do
pênis e não de angústia de castração. Em síntese, como veremos
mais adiante, quando Freud identifica a homossexualidade com a per-
versão, o faz pensando em um tipo de sexualidade que não tem como
fim a reprodução, e com relação à homossexualidade, ele desenvolve
numerosas idéias, em paite contraditórias, o que mostra, segundo nosso
ponto de vista, que ele não pode chegar a nenhuma conclusão defini-
tiva, se bem que suas intuições básicas sempre se confirmaram: ho-
mossexualidade não é um problema que a psicanálise deva pretender
"curar" e tem tantas razões e trajetórias como a heterossexualidade,
se esta fosse ser explicada.
Com relação à "jovem", como, aliás, às mulheres em geral, Freud
teve certas dificuldades transferenciais, compreensíveis, talvez, mas
que não precisamos repetir. O próprio Lacan fez um giro surpreen-
dente na interpretação deste caso entre o Seminário 4 16 e o Seminá-
rio 10 17 , depois das especificações que deixaram claro o conceito de
objeto a. Nem todos os autores lacanianos, como veremos, acompa-
nharam esta mudança.
Na atualidade, as 'jovens homossexuais" continuam a criar per-
turbações. Vou reproduzir, como continuação, alguns trechos de um

16 Lacan, J. (1956/57). Op. Cit.


17 Lacan, J. (1962/63). Op. Cit.
' ,1,u Ida Haydée Barbero 31

, , 1111l·11tário escrito por duas jovens que participaram, no Brasil, da pri-


llh·ira c.:erimônia de "casamento" público entre duas mulheres, que me
p;irL·cc revelar muitos aspectos do que está acontecendo atualmente.

Cenas de um casamento lésbico no Recije 18• Lua- de- mel virou


lua de fel
"Somos naturais de Rec(f'e e estávamos para completar um ano de
relacionamento quando resolvemos colocar as alianças em um
lugar mais moderno: no supercílio.
Maria do Céu, promoter da Metrúpole, onde também trabalhamos
como promoters e Relaçiies Públicas, nos ofereceu a boate pura
fazer a cerimônia religiosa. Daí, decidimos casar publicamente e
começ'Wnos a organizar tudo com muito carinho.
Bacana rnmo a comunidade GLS local se engajou ,w ca.1·lmu•nto.
Estilistas, maquiadores, .figuras da noite... amigos e todo o pessoal
gay, das antif?(I.\' e de hoje, quiseram participar do.fúto histôrirn e
contribuíram para que tudo desse certo.
!\ Notícia: de repente, a cidade estava toda sabendo desse
ca.,·amento. Era até gente que nos conhecia, mas mio sahia que as
"rachas" que se casariam éramos nús. Antes mesmo de mandarmos
o convite 1!f'iâal muita gente jcí estava por dentro da história do
rnsumento gay que rolaria. (... )
O acontecimento fói televisionado primeiro pela TV Jornal - o
rnnal 2 Local - e. depois da repercussão, até a Rede Gloho queria
a gente nu Fantástico. Ficamos muito assustadas com tudo isso,
pois veio também o lado ruim. Percebemos que mio era importante
para a mídia a causa GLS e sim duas mulheres dando beijo de
boca. (... ) A jornalista que pediu a cobertura, antes de grava,;
começou dizendo que era para um trabalho de faculdade sobre
homossexuais assumidos e depois disse que a TV gostou ela pauta
e aí jâ sabe o que aconteceu ... A sociedade .fkou clwcadíssima.

18 ''Adriana Pax, 22, e l!arntrina, 34, contaram para o Mixbrasi/ rnmo .f<,i a cerimônia

de casamento que elas protagonizaram em Recife, no último final de semana.". Esta


citação foi obtida também por meio da lista de Umas e Outras na Internet. A referência
que ela oferece é: Fonte Mixbrasil - Coluna Cio, 18/06/2003. Do site da Internet: http:/
/www.mixbrasil.uol.com.br.
32 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Não pelo casamento em si, mas pela forma como nosso beijo de
língua foi explorado. Parecia que nós queríamos chocar a
sociedade, quando, na realidade, só estávamos sendo naturais.
O "GLS" existe, se casa, se divorcia e isso não tem nada de
fantâstico. Fantástico e espantoso é a situaçüo precária em que o
nosso país se encontra (. .. )
Para /tacatrina, a barra.foi pior do que quando ela saiu na Época:
perdeu o emprego quando a reportagem ainda estava no ar e nós
recebemos ameaças por tele.fone. Na casa da minha miie o tele.fone
não parava: eram os .familiares tomando satis.fàção. Tive parente
enfartando ao ver a matéria na TV e o tal beijo que chocou. Estamos
agüentando a maior barra e nossa lua-de-mel está sendo uma lua
de fel. (. .. ) Nós não fizemos nada de errado! Apenas estamos
seguindo o curso de nossas vidas. (. .. ) Isso é natural, sempre existiu,
só que ninguém o havia mostrado por aqui. Houve quem me dissesse
que .foi o primeiro rnsamento de duas mulheres do Brasil. Eu não
sei!( ... )
O importante é que estamosfirmes e fortes. O nosso amor e o nosso
orgulho é maior do que tudo isso. O casamento.foi lindo. Estamos
gratas a todos que nos apoiaram e que estão apoiando. Nüo nos
arrependemos nem um pouquinho e estamos aí para o que vie,: As
pessoas pliquenas podem ameaçar ou enfartar porque nós vamos
continuar beijando muuiiito!!! !! ! ! "

Estas duas moças, fazendo de conta que tudo é tão normal quanto
elas o sentem, representam aquela parcela da população lésbica que
luta para ser aceita e pensa que está lutando por uma mera questão
de direitos humanos, de defesa de uma minoria.
Sem intenções de diagnosticar as pessoas, eu diria que se trata de
um discurso histérico, do tipo "eu não tenho nada a ver com isso" (com
isso sexual que desperto no outro). O que está em jogo aqui, na realidade,
é a dialética entre o desejo e o gozo, entre o permitido e o proibido, entre
o velho e o novo. O problema não é somente o de uma minoria discrimi-
nada e sim o que a visibilidade destas imagens, até há pouco tempo inad-
missíveis, escancarada na imprensa, pode significar para a maioria.
Gradeia Haydée Barbero 33

Em síntese, creio que a psicanálise tem de olhar e escutar o


fenômeno social que este discurso veicula de forma similar à escuta
do paciente na situação clínica: não pode se negar a ver e ouvir, den-
tro dos lineamentos da sua metodologia e teoria, aquilo que aparece -
no consciente e no inconsciente. De quem fala, e deve saber que seu
olhar e sua escuta não são neutros, implicam sempre algum tipo de
transferência. Às vezes, isto implicará uma mudança teórica ou a
criação de novos conceitos.
Pelo hem da sociedade e pelo bem da própria teoria psicanalíti-
ca, que carece de uma transformação permanente para apagar seus
núcleos ideológicos e moralizadores, a psicanálise tem de enfrentar a
tarefa de olhar para os fenômenos que estão ocorrendo no campo da
sexualidade (uma nova erótica) e transformar sua teoria. Não se deve
tentar encaixar tudo que é novo e parcialmente desconhecido em
categorias antigas, usando a psicanálise como se fosse um sistema
fechado, algo que Freud nunca teve por objetivo criar. Muito pelo
contrário, ele sempre estava aberto às modificações que a experiên-
cia clínica, sua e dos outros psicanalistas, traria como novidade. Por
que não à experiência social?
Existem novos atores sociais. Estes gays, léshicas, bissexuais,
travestis e transexuais, sadomasoquistas, fetichistas por opção e de-
mais "perversos" não compulsivos e autoproclamados não eram visí-
veis até pouco tempo atrás. Alguns não existiam ou não existiam
como tais (como os transgêneros, por exemplo). Antes das descri-
ções e categorizações psiquiátricas do século XIX, considerava-se,
em geral, que os atos homossexuais podiam ser realizados por qual-
quer tipo de pessoa; os transexuais, por outra parte, não tinham ajuda
dos avanços tecnológicos e científicos, pelo que não se submetiam a
cirurgias transformadoras, etc. Ainda hoje, a visibilidade destes gru-
pos sociais na sociedade ocidental, mesmo nas grandes cidades, é
relativa: o "sair do armário" 19 é feito por partes, em diferentes âmbi-

'" "Sair do armârio" é uma expressão utilizada no meio GLS que significa se mostrar,
abrir sua orientação sexual ao conhecimento püblico, pari:ial ou totalmente.
34 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

tos: uma coisa é falar de suas preferências sexuais e amorosas den-


tro da família, no núcleo de amigos íntimos ou na "noite gay", outra
no trabalho, na televisão ou na imprensa.
Acho importante destacar que a questão da homossexualidade
dos analistas foi sempre um fantasma que acompanhou a instituição
analítica, uma questão polêmica e ainda sem solução tal como a
pedofilia na igreja católica, se bem que a comparação seja relativa e
algo irônica. Padres e analistas deveriam saber se privar de um gozo
que não conhece limites. E um analista que tem preferências sexuais
homo-orientadas não é, no seu lugar de analista, diferente de alguém
com preferências heterossexuais. Falamos de um fenômeno parado-
xal: neste momento, ninguém mais pretende curar a homossexualida-
de (na psicanálise atual), o Conselho de Psicólogos o proíbe, mas,
mesmo assim, quando um analista pertence à comunidade homosse-
xual, tem dificuldades em "aparecer" puhlicamente, especialmente
se não deseja ter problemas na instituição à que pertença. E não
estou fazendo diferenças entre instituições, até porque não possuo
dados fidedignos.
"Aparecer ou não aparecer" é um dilema que tem uma série
de conseqüências que não são evidentes. É isso que o trabalho já
citado de Eve Kosofsky analisa em detalhes 20 • Se os homossexuais
aparecem como grupo, ligados a uma identidade sócio-cultural, esta
identidade é questionada porque é a mesma que os condena ou con-
denou por tanto tempo em um lugar de marginalidade social e porque
parece reiterar a procura da verdade de si, em uma forma particular
de gozo, ou melhor, em um tipo de figuração particular das relações
eróticas, já que não sabemos exatamente de que forma de gozo
estamos falando em cada caso. Porém, os militantes, orgulhosamen-
te, transformaram esta identidade (social ou cultural) desvalorizada
em uma marca de mútuo reconhecimento, em uma bandeira de luta,
e, sobretudo, em um caminho para uma visibilidade social com a ex-
pectativa de que lhes seja devolvida uma imagem social positiva. A

20 Ver nota 3 deste mesmo capítulo introdutório.


Graciela Haydée Barbero

maioria dos sujeitos que amam e desejam "contra a corrente" (hete-


rossexual) não sentem que este seja o resultado de uma escolha to-
talmente livre, aliás, como todo mundo. É por isso que a reivindicaçfío
de que se trata é a de uma orientaçiio e não a de uma opçiío.
Porém, alguns grupos feministas já reivindicaram o reconhecimento
de uma escolha lésbica de origem política, ou seja, consciente. O
campo é complexo e não vale a pena uma simplificação superficial.
Estas categorias servem principalmente como uma referência, mar-
cando a existência de uma nova erótica que está se desenvolvendo e
que oferecerá, entre outras coisas, novas e diferentes formas de
subjetivação social possível. Assim, o sujeito que se define como gay,
lésbica, transexual, etc., estaria se conformando a uma identidade
posicional, como expressam alguns dos teóricos do movimento
"queer". 21 Ou seja, são identidades que surgem em uma comunida-
de eletiva e têm um sentido político.
Poderia se pensar que o objetivo mais hem logrado desta popu-
lação é sua própria desaparição como categoria, no sentido de um
estigma que desaparece. Mas muito tem se vivido, feito, criado, nes-
tes últimos anos, a partir de uma comunidade sem margens definidas,
antes inexistente, de pessoas que se identificam com uma forma de
viver diferente, ligada a uma "escolha" sexual e identitária não con-
formada pelo mundo heterossexual e androcentrado. Os filmes e
documentários do Festival Mixbrasil2 2 , que acontece anualmente, há
algum tempo, em nosso país (e em outros), revelam, parcialmente,
estas experiências para um público geral.
Penso que é importante conservar o termo homossexualidade,
pelo menos por um tempo, enquanto registro de uma história e senti-
do complementar, mas lembrando-se sempre de que este não é um
conceito psicanalítico. Muitos são os caminhos na história infantil - e

'' O movimento 11ueer será explicado mais adiante.


1·1Este evento, Festival Mixhrasil da Diversidade Sexual, iniciado em 1993. cnm " """w
Festim! de Maniji,.1·1açi5es das Sexualidades, reúne uma amostra de filmes c d1Jrn11w111a, i11,,
de temática homossexual e se realiza anualmente em várias cidadl's dn l\ra:cil ,. d11
exterior. Entre elas: São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Buenos Aires.
36 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

adulta - que podem levar às configurações do desejo que estão incluí-


das sob o rótulo de "homossexualidade", assim como acontece com a
"heterossexualidade" e é evidente que em cada um desses termos se
encontram localizados vários tipos de experiências sociais diferentes,
assim como de histórias de vida e organizações do psiquismo. As
novas experiências eróticas têm em comum a não aceitação do ca-
minho social proposto para o desejo pelo mundo moderno ocidental,
nas trilhas do desejo heterossexual. A tarefa que se impõe à ciência,
me parece, não é fazer urna listagem das diversidades existentes den-
tro desta categoria social, mas refletir, entre outras coisas, nas rela-
ções entre desejo e gozo, entre necessidades e possibilidades de sa-
tisfação pessoal e realização social que se revelam de uma maneira
diferente nas novas figurações da sexualidade e da identidade social.
Os vínculos entre as pessoas estão também se redefinindo e estas
novas possibilidades estão se fazendo visíveis a partir de um protesto
social que já não pôde ser sufocado. O mundo, orientado pela signifi-
cação fálica ligada ao patriarcado, não é mais o mesmo. Depois do
desenvolvimento das novas tecnologias reprodutivas, não faz nenhum
sentido o argumento de naturalidade da complementaridade dos se-
xos "opostos". Como se homem e mulher fossem "naturalmente"
predeterminados a estar sexualmente atraídos por uma sorte de ins-
tinto de reprodução que existe, talvez, nos animais.
Existem grupos que reivindicam a aceitação e até a legalização
de certos tipos de erotismos e identidades que tradicionalmente se
entendiam como perversos: os fetichistas, os grupos SIM (sadomaso-
quistas), os travestistas, os "amantes de travestis", e muitos mais,
alguns dos quais desenvolveram formas de sexualidade bastante so-
fisticadas como a dos sadomasoquistas, onde os jogos de dominação,
por exemplo, são jogos eróticos de mútuo consentimento e não situa-
ções em que alguém é vitimado. Mas seria demasiado extenso entrar
em pormenores neste campo.
O certo é que o mundo está fazendo novas experiências eróti-
cas e inventando novas formas de relacionamentos e vínculos,
eróticos, afetivos e até familiares: está se criando uma nova ordem
Gradeia Haydée Barbero 37

(social, sexual) que a psicanálise tem de levar em conta para não


continuar a pensar conservadoramente só na "desordem" presente
na sociedade heteronormada23 • Devemos voltar à psicanálise tal como
Freud a projetara, sem normas ou modelos de bom comportamento,
sem dogmas e, dentro do possível, consciente das ideologias que pode
carregar: uma psicanálise científica, dentro também do novo modelo
científico que a psicanálise inaugura por si mesma (uma ciência do
singular). Jacques Lacan, durante todos os anos que se dedicara a
ela, procurou achar modelos teóricos tais como os maternas e os nós
borromeanos (após um primeiro momento "estruturalista") que pu-
dessem sustentar esta perspectiva, mas nem todos seus discípulos
conseguiram acompanhar este esforço. Portanto, para acompanhar
os tempos, devemos nos perguntar: qual psicanálise? E mesmo que
nossos mestres sejam Freud e Lacan, que leitura faremos deles? Como
contextualizar seus conceitos, modelos e afirmações?
Apesar das mudanças sociais ocorridas, a psicanálise continua a
confundir a perversão como uma organização subjetiva específica (e
patológica em muitos casos), com uma orientação homossexual <los
desejos e com certas variedades do erotismo. Quase todos os psicana-
listas contemporâneos continuam a acreditar, apesar das transforma-
ções ocorridas, que Freud e Lacan nunca desistiram de considerar as
relações homossexuais no contexto da perversão, o que não deixa de
ser o caso, se bem que não de uma maneira simples e direta.
Homossexualidade, por outra parte, não é um conceito psicana-
lítico, já que Freud (e também Lacan) negou-se a considerar a possi-
bilidade de uma estrutura psíquica particular que desse conta deste
fenômeno plural. Por esse motivo é que fiz um retorno à obra destes
autores buscando apreender o modo pelo qual eles articulam a "lei do
desejo" (que se estabelece a partir da proibição do incesto) e a fun-
ção simbólica, de um lado, e, de outro, a orientação da libido sexual
para pessoas do "mesmo sexo" ou do "sexo oposto".

15 Existe um livro de Elizabeth Roudinesco, chamado A família em desordl'm. tJuc mostra

as contradições atuais relacionadas a este complexo problema.


38 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Considerando que Freud teria mostrado desde o começo o ca-


minho da separação entre o biológico e o subjetivo nas escolhas se-
xuais e/ou identitárias dos seres humanos e que ele também abrira o
passo para afirmar a inexistência de uma naturalidade desejante que
correspondesse à anatomia diferencial dos c01pos, e que, por este e
outros motivos apagara a separação entre o normal e o patológico,
mostrando a ligação e não a descontinuidade entre os comportamen-
tos normais, neuróticos e os assim chamados perversos, minha pes-
quisa procurou responder ao que aparece como um nó teórico quan-
do se pensa nas relações amorosas e sexuais entre pessoas do mes-
mo sexo (biológico) na psicanálise.
Meu objetivo foi revisar a obra freudiana e lacaniana no que diz
respeito ao fenômeno da homossexualidade e verificar se existem, e,
neste caso, quais são, as articulações do mesmo com o conceito de
perversão e de estrutura perversa. Parto do princípio de que possa
inexistir, inclusive, uma sustentação teórica relevante para associar
ambos os termos que ainda estariam ligados como uma herança da
sexologia, anterior ao próprio discurso da psicanálise, da qual Freud
partira, mas dela se desprendera. A associação entre estes dois ele-
mentos, encontrada fartamente na literatura analítica passada e pre-
sente, encontra ou não sustentação teórica na obra de Freud e Lacan?
E, neste caso, qual é seu estatuto na teoria como um todo?
Se cm Freud parece haver ainda uma tensão entre pênis e falo,
uma oscilação que não se resolve, acontece o mesmo em Lacan?
Está clara a diferença ou se encontra ainda dissimulada sob expres-
são do "real da diferença dos sexos"? Há outras conexões metapsi-
cológicas possíveis?
Alguns autores provenientes da teoria do Gênero e dos Gay &
Lesbian Studies, teóricos contemporâneos ligados aos movimentos
de reivindicação dos direitos minoritários, criticam a suposição implí-
cita, segundo eles, na psicanálise, de uma heterossexualidade
androcentrada. Eles têm alguma razão? Para responder a estaques-
tão, diretamente ligada a meu problema principal, sondei a literatura
de alguns autores importantes nessa área, de modo a identificar e
Graciela Haydée Barbero 39

caracterizar algumas questões e discussões sobre o tema do meu


trabalho que impliquem articulações relevantes para a psicanálise.
Considero que eles representam os interlocutores contemporâneos
de que estava carecendo a psicanálise, já que seu campo de interesse
- a sexualidade humana e suas diversas manifestações - é comum, e
as referências sociológicas que a psicanálise originalmente incorpo-
rou já não respondem às suas necessidades atuais.
Parto, então, de uma síntese feita como resultado dessa sonda-
gem de alguns dos autores deste movimento, para poder responder
às suas críticas, na medida do possível.
Por fim, ainda que não seja objetivo formal do trabalho, espero
que ele ofereça alguns elementos para pensar em uma teorização
psicanalítica científica e não ideológica (ou preconceituosa) do fenô-
meno homossexual e de outras expressões sexuais contemporâneas
da sexualidade. Interessa-me a possibilidade de deixar clara a dife-
rença entre comportamentos prazerosos, que não respondem às nor-
mas tradicionais e que estão sendo lentamente legitimados no social,
e certas formações patológicas que, pelo contrário, produzem um
enorme caudal de sofrimentos para o próprio sujeito, ou para outros,
como talvez seja o caso da perversão (desta vez sem aspas).
CAPÍTULO I

INTERLOCUÇÕES E NOVAS
REFERÊNCIAS PARA A PSICANÁLISE

Os Gay & Lesbian Studies e o


Movimento Queer

"Ali onde hal'eria dominado a adaptativa psicanálise do ego,


1,io duramente criticada por lacan antes que terminara por reduzir a
psicwuílise a quase nada 110s mesmos lugares onde se pretendia
exercê-lo, (... ) ali mesmo apareceu este campo.

(... ) Como acolher esses Gay & Lesbian Studies? Não há


mais que uma resposta no estilo, na
maneira de Lac:<111: c1111trilmiml11 com isso! ·•u

Os textos produzidos no campo dos Gay & Lesbia11 Studies


tiveram origem cm um movimento surgido nas universidades dos Es-
tados Unidos, na década de oitenta, e posteriormente foram sendo
traduzidos e conhecidos em outros países. Trata-se de trabalhos de
diversas áreas: letras, história, antropologia, etc., que questionam a
tradicional divisão entre hetero e homossexualidade, as identidades e
categorias sexuais, as relações entre sexo e poder, os gêneros como
criações culturais e muitas outras coisas mais, pondo em dúvida anti-
gas "verdades" em relação à identidade sexual, à sexualidade em
geral e à história que deles fora realizada até então.

"'Allouch, J. "Acogcr los Gay anti leshicm Sttulies". Revista litoral, nº 27. pp. 171 e
174: "Allí donde habrâ dominado e/ adaptatil'o psicoanâlisis dei yo, tan dummente
criticado por Lacun wues de que terminara por reducir el psicoanálisis u ca.1·i nada e11
los lugares mismos donde se pretendía ejercer/o ( ... ), al/í mi.m10 apareciô este nuevo
campo. (... ) Cômo acoger esos gay and lesbian stlldies? No hay 111ús que u11u respuesta
c1ue esté, digamos, en e/ estilo, e11 la m,meru de Lacan: contribuir a eso! ".
42 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

São textos polêmicos, contextualizados sempre em um momento


histórico, que dialogam entre si e com outras ciências, especialmente
com a filosofia e a psicanálise - Freud e Lacan principalmente - discu-
tindo o desejo, a identidade, os gêneros e as modalidades de gozo, colo-
cando em xeque qualquer idéia de naturalidade ou essencialidade nesta
área. Por esse motivo, estes autores são classificados dentro do
construcionismo, sem se prestar atenção às várias linhas que existem
na psicologia social e outras disciplinas que podem ser chamadas de
construcionistas. O que elas têm em comum é a idéia de que tudo o que
é relacionado aos sexos, gêneros e identidades, depende do contexto
histórico, social e cultural em que se desenvolvem. Não adiro à idéia,
quando aparece nesses textos, de negar a existência de um registro
real na sexualidade, mas este é um conceito lacaniano que levou mui-
tos anos para ser desenvolvido e não deve ser usado de fo1ma banal ou
superficial. E se nesses textos falta, não por isso tudo fica sendo
descartável, como alguns críticos parecem supor.
Existem muitos arligos, livros e publicações diversas que deram
margem a um enorme campo de estudos e discussões, colóquios,
debates, congressos e seminários que não podem mais ser ignorados
pela psicanálise. Suas críticas podem ser discutidas, o campo não é
homogêneo, mas elas são sempre inteligentes e valiosas. Esta
interlocução é, neste momento, indispensável para a psicanálise que
parecia ter se desviado do campo da sexualidade, ou da erótica, como
Jean Allouch, que trabalha na articulação da psicanálise com estes
pensadores, prefere denominá-lo. Um campo sem o qual a psicanáli-
se perde todo o seu sentido. Freud ampliou o conceito de sexualidade
de uma forma tal que mudou as concepções e referências da época,
mas ele não se livrou, apesar de tudo, de uma pressuposição de "nor-
malidade" sexual ligada à genitalidade heterossexual, como resultado
de um percurso evolutivo socialmente esperado, algo que todos estes
trabalhos conseguiram.
Muito tempo se passou e muitos psicanalistas, em vez de superar
esse obstáculo, quase inevitável na época, voltaram atrás nos descobri-
mentos freudianos fazendo com que a psicanálise virasse, em muitos
Gradeia Haydée Barbero 43

lugares, uma ciência normativa e adaptativa, o que nunca tinha sido o


objetivo original. Por este motivo é indispensável que possamos acom-
panhar essas discussões e fazer bom uso delas. Acredito, comoAllouch,
que Lacan deu o primeiro grande passo nesse sentido (ainda que não
chegara a conhecer, ou a citar, estes autores) com sua afirmação
fundamental, à qual aludirei em outro capítulo, de que "não hâ relação
sexuaf'. Esta afirmação, um tanto enigmática, assim descontextualizada,
sugere, no mínimo, que as categorias de homem e mulher ou de femini-
no e masculino, que poderiam entrar "em relação" não são realmente
complemcntárias. Assim, a famosa "lei da diferença dos sexos" passa
a ser somente uma significação cultural. Sobre isto irei me deter no
capítulo correspondente. Surpreendentemente este mesmo critério da
não existência da relação sexual é usado por outros autores (Jorge
Alcmán, por exemplo) para contestar estes discursos, em um texto
dirigido a refletir sobre Foucault e o construcionismo.25

Os estudos gays e lésbicos, ou Gay & Lesbian Studies, têm


também uma trajetória que fez história. Eles procedem dos estudos
de Gênero, que, por sua vez, se desenvolveram a partir dos estudos
feministas e dos estudos da Mulher. Olhando na direção contrária,
vemos, com posterioridade, surgir, nas universidades norte-america-
nas, e na sociedade26 , o "movimento queer", que alguns transforma-
ram em teoria queer. Este último movimento propõe-se a superar o
impasse a que teriam levado os estudos e movimentos gay e lésbico,
que, segundo eles, haviam-se transformado, por sua vez, em
normativos, a partir, sobretudo, da suposição da existência de identi-
dades gays ou lésbicas mais ou menos fixas e involuntárias e da
procura de legalização da cidadania e dos direitos destas categorias

" Alemán, J. "Lacan, Foucault: el debate sobre cl constrnccionismo". /11: Colofón, nº 21,
Boletín de la Federaciún Internacional de Bibliotecas dcl Campo Freudiano. Madri, ELI',
2002.
~0Não estou diferenciando aqui as diferentes facetas do movimento quel'r. j:í qut· isso
implicaria uma pesquisa mais aprofundada e não me pareceu neccss:írio para os rins
atuais.
44 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

sociais. O movimento queer, como seu nome indica (queer significa


torto, estranho), propõe-se sempre contra. É um movimento de re-
sistência às normas e determinações sociais que pretendem discipli-
nar o erotismo com regras rígidas e preestabelecidas. Encontra-se
neste ponto com o pensador Michel Foucault, que não conheceu toda
a extensão do movimento queer, mas que propunha uma política de
resistência libertadora dentro do que ele considerava uma sociedade
disciplinária, chegando a prevenir o movimento de liberação sexual
da época a não cair nas armadilhas repressivas que estariam contes-
tando. Na sua origem, o movimento queer surgiu como uma insurrei-
ção, na sociedade norte-americana, contra todas as exclusões que
esta teria provocado e reuniu feministas, não-brancos, desocupados,
sem documentos, gays, lésbicas, transgêneros, chicanas e outros.
Michel Foucault e Jacques Lacan se conheceram e, apesar de
algumas divergências, se respeitaram. Porém, pelo menos à primeira
vista, suas teorias e linguagens seguiram caminhos diferentes. Nos
dias de hoje, grupos lacanianos tomam partido a favor ou contra uma
aiticulação possível e desejável entre ambos, que pessoalmente me
parece se revelar bastante frutífera se não ficarmos em compara-
ções superficiais ou jogo de palavras que, em cada um, eram usadas
de forma diferente. Tratarei disso na segunda parte deste capítulo.
A pmtir daqui pretendo abrir algumas questões que surgiram
neste campo teórico e enumerar alguns dos diversos assuntos que se
desprendem destes trabalhos, sem querer chegar a conclusões apres-
sadas. Creio ser importante assinalar que eles incluem relatos de ex-
periências vividas (que poderíamos considerar algo assim como sua
"clínica") e também que estamos falando de uma área de conheci-
mentos, teorizações e pesquisas que tem vários anos de história e
muito caminho pela frente em diversas direções. Não pretendo, por-
tanto, abarcar todas as polêmicas que recobre, limitando-me princi-
palmente àquilo que me parece importante para a psicanálise. ciência
que, segundo meu ponto de vista, encontra-se em um momento deli-
cado, tendo de escolher para que lado se inclina seus pressupostos e
referências, ponto no qual gostaria de contrihuír corn meu trabalho.
Gradeia Haydée Barbero 45

Uma das figuras que se destaca neste campo pelas suas impor-
tantes e profusas contribuições, Judith Butler, parte da afirmação
aparentemente contraditória de que não quer ser identificada como
uma teórica lésbica nem queer já que isto a colocaria contra suas
próprias idéias antinormativas, mas ao mesmo tempo, politicamente,
afirma não poder deixar de nomear-se lesbiana, já que é um signo
que define a posição desde a qual fala.
Em um texto que discute a "insubordinaçüo de gênero" 27 ela
desenvolve esta aporia, mostrando quanto este campo é complexo e
difícil de generalizar ou sintetizar. Começa especificando que não se
sente urna teórica lésbica ou gay, já que qualquer categoria de identi-
dade, segundo ela, tende a ser um instrumento normativo, a favor ou
contra alguma opressão, mas, ao mesmo tempo, estaria identificada
com este ''signo'' referente a uma posição política. Para ela, as ca-
tegorias identitárias são sítios de conflito necessários. Também ques-
tiona a própria palavra teoria, que ocultaria o sentido político que
inevitavelmente carrega. Ela mostra, entre outras coisas, como fora
construída a identidade lésbica na teoria e na ideologia de forma a
parecer uma cópia errada, uma cópia ruim de alguma identidade que
seria a verdadeira, a original, a certa (a heterossexual), mas, para ela,
todas as categorias sexuais identitárias são sempre cópias, quer dizer,
não há original e derivação, somos todos "transexuais".

"Nilo hcí um gc1l1ero práprio, um gênero próprio de um sexo mais


q11e de outro(. .. )". 28

Não podemos pensar o gênero ou o sexo como expressões de


uma realidade psíquica que os precede. O que não implica negar o
sujeito, diz. Em outro texto, que comentarei mais adiante, ela entra

27 Butlcr, J. "Imitação e insubordinação de gênero", ln: Grajías de Ero.1 - Historia,

género e identidwles sexuales. Buenos Aires, Edelp, julho de 2000, pp. 87-113.
08Il>id., p. 98: "No hay un género propio, un género propio de un sexo más que de
otro ... ··.
46 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

em diálogo com Lacan, especialmente com relação à questão do su-


jeito, tão controvertida. Veremos como, apesar das diferenças, o que
ela, seguindo Foucault e Lacan, chama de sujeito tem algo em co-
mum com eles, trata-se de uma categoria que não se origina a si
mesma, que é um efeito de discurso. Também discute a possibilidade
de que "identificação" e "escolha de objeto" não sejam operações
excludentes, o que também poderia se provar na psicanálise, mesmo
que ela não saiba como, já que seu diálogo com Lacan se baseia nos
primeiros seminários, anteriores a uma especificação mais clara do
objeto em Lacan. O aitigo termina reafirmando a existência, no nos-
so mundo, de uma heterossexualidade coercitiva que se exerce por
meio da criação das próprias categorias de sexo, identidade sexual e
gênero, efeitos que, segundo a autora, são nomeados como causas ou
origens e alienados da norma que os produziu.
Não pretendi chegar a conclusões definitivas sobre Judith Butler
e sim mostrar alguns dos assuntos que trabalha neste e outros de
seus numerosos textos, nem todos traduzidos para o português, para
reafirmar que não é possível reduzir as discussões aqui apontadas
sobre sexo, gênero e identidades, demasiado rapidamente. O que fica
claro é o reducionismo da idéia preconcebida de que existem dois
sexos e dois gêneros correspondentes e que o resto das possibilida-
des entra na categoria de um desvio. Tampouco é suficiente dizer
que as categorias sócio-culturais de gays, lésbicas, bissexuais,
transexuais, etc., podem levar a repetir a idéia de essencialização que
elas criticam, porque ainda que este argumento seja parcialmente
verdadeiro, não resolve a questão. O problema aponta para um cam-
po complexo, onde se sobrepõem experiências pessoais, ideologias
políticas, teorias e lutas concretas entre diversos setores da socieda-
de. Mesmo os autores que trabalham, academicamente, no campo
dos Gay & Lesbian Studies, polemizam entre si. Suas polêmicas
levaram, como vimos, ao desenvolvimento do movimento queer, mo-
vimento em que convergem discussões teóricas e pníticas sociais.
Essas práticas que, no mundo contemporâneo, se adiantaram à reno-
vação das doutrinas filosóficas e sociais e tamMm de uma parte da
Graciela Haydée Barbero 47

psicanálise. Práticas que começaram com os movimentos


emancipatórios das mulheres, que aconteceram em diferentes perío-
dos históricos.
A literatura sobre o gênero que acompanhou o último movimen-
to feminista ocupa espaços universitários importantes no mundo e
também no Brasil. Ela marcou definitivamente a ligação existente
entre sexualidade, cultura, gênero e poder. No Brasil, este campo
destacou-se no final dos anos oitenta, com numerosos trabalhos e
teses acadêmicas, livros, artigos e revistas sérias e amplamente
divulgadas 29, além de cursos, congressos e seminários.
A relação dos estudos feministas e dos estudos de gênero com a
psicanálise não tem sido fácil, marcada que esteve, desde o começo,
com as críticas de muitas feministas a Freud em relação à sexualida-
de feminina, mas não podemos nos esquecer de que, ao mesmo tem-
po, estas autoras nunca deixaram de se referir à psicanálise, sendo
que muitas feministas eram e são, elas mesmas, psicanalistas.
Segundo o apresentador da revista Optu:idades:10 , os estudos
de gênero, que "luu:en legiôn" (fazem legião, ou seja, formam gru-
pos enormes) na Academia americana, longe de reforçar o dualismo
natureza-cultura, se propõem a articular as marcas do corpo, de for-
ma tal que, questionando o binarismo homem-mulher, ahrem a possi-
bilidade de pensar "em um leque de posições sexuais". Nesta apre-
sentação o editor aponta para o trabalho de Judith Butler "O falo
lésbico e o imaginário morfológico" 31 como uma obra exemplar que
recorre e ao mesmo tempo objeta a psicanálise (lacaniana).

' 9 No dél:imo primeiro número do Cadernos Pagu, cm 1998, seu quinto uno de existên-

cia, propõe-se um debate sobre a forma que a cotegoria de gênero tem influenciado as
pesquisas acadêmicas, depois de mais de dez anos sendo utilizado em nosso meio. Este
número, denominado "Trnjetórias de gênero, masculinidades ... " e publicado pelo Núcleo
de Estudos de Gênero da Unicamp (Campinas, SP) é representativo das inúmeras contri-
buições que existiram e continuam a ser desenvolvidas sob esta perspectiva nas ciências
sociais.
"' Opacidades - Revista de psicanálise, nº 1: Erotvlôgica .. Edigraf, Buenos Aires, agosto
de 2001. Apresentação: pp. 7-11.
11 Butler, J. "E! falo lesbiano y e! imaginario morfológico··. ln: Sexualidad, género y

roles sexua/es. Buenos Aires, FCE, 1999.


48 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Por outra parte chama a atenção ao fato de que o trabalho de


Michel Foucault sobre a história da sexualidade, cujo primeiro volu-
me apareceu em 1976, preencheu um certo vazio com relação à teo-
ria da sexualidade, que fora ocupado posteriormente pelos estudos
que estamos apresentando. Ele comenta que todos esses trabalhos
não são meramente resultado de debates ideológicos: eles são sem-
pre, total ou parcialmente, testemunhais e pretendem "dar a saber".
Nesta mesma publicação há uma seleção bibliográfica de textos de
interesse para este campo de convergência dos Gay & I.esbian Studies
com a psicanálise, muitos dos quais tivemos oportunidade de ler12 • Os
textos carecem de uma tradução e divulgação urgentes em nossa língua,
já que, se os estudos de gênero têm feito tradição no Brasil, os Gay &
Lesbian Studies e o movimento queer são pouco conhecidos e, muito
menos, na sua possível convergência com a psicanálise.
Existe uma obra -A escrita de Adé33 , publicada em São Paulo
em 2002, que tenta preencher este vazio. Trata-se da reunião de uma
série de ensaios produzidos nos últimos anos nas universidades brasi-
leiras, ligando, sobretudo, homoerotismo, literatura e cultura, e que
demonstra como, pelo menos individualmente, o interesse existe e
está se desenvolvendo também no Brasil. Segundo o apresentador,
Rick Santos, ele mesmo ministrou o primeiro curso de mestrado no
Brasil exclusivamente dedicado à Teoria Queer, como professor con-
vidado da Universidade Federal do Espírito Santo, em 1997. Espero
que esta tendência continue e amplie seu caminho.
Nos Estados Unidos, dois teóricos provenientes do campo das
letras, Leo Bersani e David Halperin, destacam-se pelas suas comple-
xas e interessantes teorizações e questionamentos. Ambos têm partici-
pado de encontros e discussões com psicanalistas lacanianos, em diá-
logos publicados ou colóquios e seminários e, se nem sempre defen-

.,, Estarei incluindo estas referências, quando não façam parte da bibliogr.if'ia geral, cm um
anexo bibliográfico.
33 Santos, R. e Garcia W. (organizadores). A Escrita de Adé - 1'1•r.,1}(·cti1•as 11',íricas dos

Estudos Gays e Lésbicos no Brasil. Vários autores. São Paulo. Xam;i Edi1ora. julho de
2002.
Gradeia Haydée Barbero 49

dem a idéia de que é possível manter uma interlocução frutífera entre


estes campos de conhecimento, é o que concretamente têm realizado
na prática, provocando o surgimento de muitos outros textos, aitigos,
debates e discussões que podemos considerar dos mais interessantes
da atualidade psicanalítica, no sentido que estamos apontando.
Leo Bersani opõe-se fortemente à utilização de identidades gay,
que, segundo ele, não fariam mais do que repetir a problemática ante-
rior que entendia a homossexualidade como um desvio da norma he-
terossexual. Suas propostas podem ser lidas como uma procura de
novas formas de sociabilidade, que trabalha a partir de um conceito
por ele criado: a "homicidade". Os seus livros e artigos mais impor-
tantes, traduzidos para o francês e para o castelhano, propõem idéias
muito originais, como a de que a sexualidade seria, em última instân-
cia, sempre masoquista e se desenvolvem em um diálogo polêmico
com Freud e Lacan, no campo da estética. 34
Com relação a Halperin, entre os trabalhos a que tive acesso,
está o livro San Foucault 35 , uma série de ensaios irônicos e litigan-
tes, em função de o autor se achar objeto de críticas mal-intenciona-
das, fato que o faz sentir-se identificado politkamcnlc, ou, como ele o
enuncia, de forma posicional, com o próprio Foucault.

"Minha ident(f'icação com ele é puramente posicional. Se mio


tenho mais nada em comum com Foucault, compartilho o problema
de como posso, sendo gay, acadêmico e intelectual público,
adquirir e manter a legitimidade para falar, ser oul'ido e tomado a
sério. sem negar ou colocar entre parênteses minlw 'gayness'. " 36

·'" Ver l'undamcntalmentc a esse respeito: Bersani, L Homo.1·, E/ recto es 1111a tumba e dois
artigos publicados na revista Liwral: "Sociabilidad y Levante", e "Sociabilidad y
sexualidad". As referências respectivas aparecem na bibliografia final.
3~ Halperin, D. ( 1995). San Fo11cau/t - Para una hagiografia gay. Córdoba, Cuadernos

de Litoral, Edelp, 2000.


";Jbid., p. 27: "Mi identijicaciôn con él es puramente posic:io11al. Si 110 tengo 11ada m<Ís
('I! comlÍn cem Foucault, comparto e/ problema de cômo puedo, siendo gay, arndé111ico

e intelectual púhlico, adquirir y mantener la legitimidad para hab/ar, ser esrnchwlo y


1omado en serio sin negar o poner entre paréntesis mi 'gaycidad' (gayness). ".
50 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

O capítulo II da mesma obra, intitulado: "A política queer de


Michel Foucault", assinala como a posição deste autor com respeito
à homossexualidade fez dele um precursor do movimento queer sem
pretendê-lo. Segundo a visão foucaultiana de um gai savoir, esta (a
dos homossexuais) é uma posição "excêntrica" na sociedade e como
ta] deve ser explorada; é um sítio privilegiado para analisar os discur-
sos culturais. O sujeito homossexual, segundo este ponto de vista,
pode assim proclamar uma identidade sem essência que se constitui
como uma oposição, pelo lugar que ocupa - deliberadamente margi-
nal - e pelo modo cm que opera. A diferença de uma identidade gay,
a identidade queer, que é esta, não tem positividade. É aquilo que
está em desacordo com o dominante, o legítimo, o normativo.
Posso imagimu- como esta posição desperta reservas e oposições.
É a isso mesmo que se propõe. Quem tinha uma aceitação morna e
moralista do mundo gay, que está buscando legitimidade e aceitação a
partir de uma dcs-responsabilização ("eu sou assim"), volta a ser em-
purrado para fora, não há acordo com o normal, a posição queer pre-
tende uma reestruturação das relações e das práticas sociais.
Não por isso Halpcrin deixa de ver os sérios inconvenientes que
esta posição apresenta sob o ponto de vista de estratégia política,
segundo ele diz·17 • Entre outras coisas porque tira a especificidade
sexual do conflito ao mesmo tempo em que, por esse motivo, resolve
outros inconvenientes. Enfim, Foucault parece ter antecipado, pensa
Halpcrin, a mais nova identidade e a política dos gays e lésbicas, uma
política que não equivale à procura de uma libertação sexual, que o
filósofo entendia que teria ajudado na instalação do dispositivo da
sexualidade 38 moderna. A política queer vai mais de acordo com
uma "estilística da existência", segundo seus próprios termos, atitu-
de que toma dos antigos textos éticos gregos, que desenvolvem um

37lbid., p. 87.
38Tal e qual o explica no primeiro volume da História da Sexualidade (ver referências na
nota número 29 deste mesmo capítulo). Remeto, entre muitos coml'lllários existentes
sobre este termo, ao capítulo respectivo da minha dissertação de mestrado (PUC, SP,
1997).
<iraciela Haydée Barbero 51

estilo de vida, de autotransformação e domínio de si, muito contrária


ü idéia de desvario e falta total de normas e valores que são atribuí-
das, imaginariamente, a todos os sujeitos queer pela ideologia domi-
nante. Assim entende-se melhor, talvez, esta sua defesa dos prazeres
e dos corpos em oposição ao desejo, à identidade e à sexualidade,
mas creio que é perigoso concluir rapidamente, como o fazem alguns
psicanalistas, que Foucault lutaria por uma sociedade anárquica,
robótica, sem leis, sem diferenças (sem sexo?). 39
Para Jean Allouch queer é um sign(ficante no sentido lacaniano,
um acontecimento, ele teria um sentido pontual e finalmente sem sen-
tido, o que ajudaria, como diz Allouch, a resistir à psicanálise como
pastoral (ou seja, aquilo que Foucault nomeava como confessional e
aqui estou chamando de normativa e moralista).
Os estudos queer (Queer Studies) também nasceram nos Es-
tados Unidos, mas estão se estendendo a outros países. Como exem-
plo mencionarei o "Manifesto contra-sexual" de Beatriz Preciado 40 •
Ela é filósofa e ativista queer. Nascida na Espanha, atualmen-
te é membro de um grupo chamado le Zoo, cm Paris. Em um texto
que pode ser encontrado na Internet41 ela relata para o entrevistador
o que considera a origem deste movimento. Segundo Preciado, os
movimentos que lutam por direitos civis (feminista e gay) teriam
gerado suas próprias exclusões e, assim, em 1990, algumas lésbicas
"chicanas'', negras, bissexuais, transexuais e outros/as não classifi-
cados/as, da Universidade de Santa Cruz, começaram a dizer que
elas/eles não eram "gays", nem feministas, principalmente, e se
identificaram como queer, que é justamente esse "torto" que não
cabe em nenhuma categoria.42 A "contra-sexualidade" surgiria pe-

39 Slavov Zizec faz uma afirmação rápida sobre isto na revista Clique, 11º 2, de agosto
2003, p. 37, no artigo chamado "Nada de sexo, por favor, somos pós-humanos''.
40 Atualmente publicado em espanhol: Preciado. B. M1111ijiesto Contra-sexual. Madri,

Editora Opera Prima, 2003 (original em francês, ano 2000).


41 Pode ler-se uma entrevista com a autora, concedida a "Naciongay" por meio da

Internet, datada de 21 de março de 2002 (http:www//naciongay.com).


·" Mais adiante começaram a existir departamentos de Estudos Queer em outras Univer-
sidades norte-americanas.
52 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

rante essa máquina que fala do natural e do antinatural, marcando o


caráter de artifício de qualquer sexualidade ou identidade sexuada
e chama a atenção ao "boom gay" dos anos noventa, que teria
impedido o desenvolvimento de um pensamento mais elaborado so-
bre estes assuntos e se tornado um fenômeno a mais na sociedade
de consumo. Este man(festo contra-sexual avança na descrição
de tecnologias do sexo, artifícios e práticas muito variadas, instru-
mentos que servem para quebrar imposições familiares herdadas,
segundo a autora, e que dão lugar às múltiplas práticas eróticas
contemporâneas, ao redor das quais se unem e organizam as novas
comunidades.
Gostaria de mencionar também a socióloga Marie Hélene
Bourcier, autora de Queer zone 43 , que apresenta a identidade sexual
de uma forma performática. Nem identidade "natural" (biológica)
nem determinada completamente pela cultura, ela sublinha o ato pelo
qual um sujeito pode apropriar-se dos signos que até então o definem
passivamente ou o discriminam. Esta questão da "escolha" faz com
que muitos psicanalistas discutam esses argumentos, que a autora
compartilha com muitos outros "construcionistas" do movimento
queer, fazendo valer a determinação inconsciente das mesmas. Mas
eu creio que é possível uma articulação de ambos os aspectos, se
considerarmos que a identidade faria parte, desta maneira, de uma
escolha política mais geral. Lembremo-nos de que "identidade
posicional" remete a um lugar desde o qual se fala. E que Lacan
sublinhou o valor do ato.
Haveria muitos outros autores para citar dentro do movimento
queer, mas acho que isto basta como amostra.
Por este e por outros motivos é que mencionei, um tanto rapida-
mente, Jean Allouch que chega a proferir a seguinte sentença, um
pouco vaga mas bastante sugestiva:

43Bourcier, M. H. Queer zune, politiques des identités sexuel/es, lies représentations et


des savoirs. Paris, Balland, 2000.
Gradeia Haydée Barbero 53

"Tenlw uma declaração a fazer: a posiçc7o da psicanálise, eu digo. s<'rCÍ


foucaultiana, ou nc7o será mais. E veremos que esse.fói sempre o caso. ". 1·1

Lacan, Foucault, Allouch e a Psicanálise como


Erotologia

Comentando a afirmação de Allouch com a qual terminamos a


primeira parte deste capítulo, Marcelo Pasternac, um psicanalista
argentino que mora no México e tem numerosos artigos publicados,
confirma que a referência a Foucault e àqueles que produzem na
mesma linha (os Gay & Lesbian Stuclies):

"(. .. ) é indispensável para a Psicunálise, ameaçada de desaparecer


da especificidade da sua prática, como conseqüência do deslize
para uma nonnatização moralizante". 45

Mas ele especifica que a referência a Foucault não é homogênea.


Devemos evitar cair em uma outra prática de etificação, aderindo a ou-
tros ideais, o que deixaria de lado novamente o principal da psicanálise,
que se centra na importância da singularidade do sujeito e não cm consi-
deraçôes gerais de qualquer tipo sobre o que setia certo ou errado.
Ele crê que também devemos ler Allouch com olhos críticos,
prolongando seu pensamento e não o repetindo, como ele faz com
relação a Lacan e Freud. Por que Pasternac coloca estas condições?
Porque Allouch afirma que na retomada lacaniana do Édipo e da
castração, da significação do falo e da metáfora paterna, poderia

"' Ele diz exatamente, em E/ Psicomuílisis, una eroto/ogía de pasqje, Córdoba, Cuadernos
de Litoral, Edelp, 1998, p. 169: "Te11go una dec/araciôn 1111e hacerl<!.~: la posición dei
psicowuílisis, digo, será Jóucaulliana o <!l psicoanúlisis no será más. Ade11uís, reremos
que ese fue siempre e/ caso.".
"' Pasternac, M. "Hcterogeneidad de las referencias a Foucault". ln: Revista Litoral, n"
28. La opc1cidml .l'<'.rnal li. Lacem - Fouccllllt. Córdoba, Edelp, 1999, p. 166. " ... -:,
indispensable para el Psicoanálisis, arnenazado de desaparecer de la especificidad d,, la
prática corno consequencia dei desliz para una normatización moralizunt~ ...
54 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

haver um descuido da psicanálise como erotologia. E isto poderia se


entender como um convite para abandoná-los simplesmente, o que
não é o caso. E porque Foucault é um autor heterogêneo e de múlti-
plas facetas, impossível de se julgar como um bloco, diz.
Segundo Pastemac, a psicanálise está realmente ameaçada pela
esclerose de suas formulações e a ideologização que arrastam a') pala-
vras da linguagem coloquial, usadas na psicanálise, em conceitos tais
como os de nome do pai, castração, inveja do pênis, etc. E ele tem razão.
A álgebra lacaniana, pelo contrário, perturba esta ideologização. Seriam
os lugares comuns e fórmulas transformadas em clichês que poderiam
lcvm à extinção da psicanálise como prática da singularidade.

"Aflouch encontrou nos textos dos estudiosos que dão testemunho


de sua cmifi"ontação vivida e reflexiva das questões da erótica e
do gênero. os chamados Gay & Lesbian Studies, um grande estímulo
pora /o('(l/iz.ar como, pelo lado da ignoréincia de suas contribuiçi,es
pertinentes, apresenta-se o risco maior da recuperação da
psirnnúlise para uma técnica normatizadora. " 46

Estes autores abordariam a questão da identidade como um ele-


mento que permite a governabilidade da sociedade (porque estabelece
padrões) e pensam, segundo Pasternac, que a metodologia
"confessional" da psicanálise levaria os sujeitos a inserir-se nessas nor-
mas sob os efeitos da dominação. Mas quais práticas da psicanálise
são confessionais?, pergunta-se. Quais as que deveriam ser criticadas?
E quais críticas de Foucault, ou de seus discípulos (Bersani, por exem-
plo), continua, poderiam ser entendidas, também, como um impulso a
outro tipo de moralização da prática que pretendem criticar? A rejeição
de um uso essencialista da identidade e a consideração da necessidade

lhid., p. 166: "Allouch, enronces, ha encontrado en los textos dl' lo., ,·.rtudiosos que
·16

testimonian ele .,·u conjronraciôn vivida y reflexiva de las cuestiones d<' la aôtica y dei
género, los /lamados Gay &Lesbian Studies, un gran estímulo pura /ornlbir cómo por
e! lado de la ignorcmcia de sus aportes pertinentes se prese111a l'Í riesgo 111uyor de la
recuperación dei psicoanálisis para una técnica normurizadom. ".
Graciela Haydée Barbero 55

de manter relações criativas e inovadoras consigo mesmo (a estilística


da existência que Foucault menciona) não se dirigiria mais que a um
tipo de prática psicanalítica, afinna Pasternac, uma prática normaliza-
dora, repressora, moralista em última instância.
Foucault confunde recalque e repressão (policial, por exem-
plo), afirma, são coisas articuláveis mais não superponíveis. A lingua-
gem de Foucault, então, deve ser usada com cuidado. Ele afirma que
realmente devemos fazer-nos, como psicanalistas, mais suscetíveis
ao prazer, superando as fórmulas do puro encontro sexual ou da fu-
são amorosa das identidades, como pensava o mencionado autor. Aqui
sim estaríamos interpelando a psicanálise em seu campo. Mas isto
não significa, como às vezes fora interpretado, uma política que esti-
mule todo tipo de gozo sem limite. Esta é a lógica da sociedade de
consumo e não da psicanálise. Allouch, por exemplo, articula a inten-
sificação dos prazeres, citada por Foucault, com o conceito lacaniano
de plus de gozo 47 • Veremos como, mais adiante.
Pasternac pensa que a coagulação das fórmulas convencionais
da identidade deveria ser procurada inclusive nas conhecidas "fór-
mulas da sexuação" lacanianas (lado homem e lado mulher), desen-
volvidas no Seminário 20 (Mais Abzda)48 , que coexistem com as afir-
mações do Seminário IO (A Angústia)49 , onde fica claro que esta refe-
rêm:ia é meramente de ordem significante, como a oposição o-a do
Fort-da freudiano. Nele pode observar-se também como o conceito
de falo, com suas diversas funções, deve ser cuidadosamente estuda-
do em sua evolução (em Lacan) e utilizado de forma específica.
A proposta de Pasternac teria como objetivo, entre outras coisas, a
não aplicação leviana do qualificativo de perverso às pessoas homosse-
xuais. Este qualificativo não é sem conseqüências. Lembremos, por exem-

" Há um artigo de J. Allouch que mostra como podem ser articulados alguns conceitos ,h-
Lacan e Foucault, para além das aparências: "A intensificação do prazer é um pl11, d,·
gozo". (Fonte, revista virtual Acheronta, nº IOJ. Título em espanhol em 1101:i <, 1.
" Lacan, J. (1970-7 l ). O Seminário, livro 20. Mais Ainda. São Paulo. Jorge /aliar.
1985.
'" Lacan, J. (1962-63). A Angústia. Seminário 10. Inédito.
56 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

plo, de que durante trinta anos (de 1930 aos anos sessenta, quando Lacan
abriu as portas da Psicanálise para as pessoas homossexuais, segundo
afirmam Roudinesco e Plon no seu dicionário 50 ) tinha sido barrado o
acesso delas às instituições psicanalíticas. Um fato que faz com que
ainda precisemos falar de homossexuais, sem que isto signifique tomar
partido pela existência de identidades petrificadas ou essenciais.
Lembremo-nos de que o próprio Lacan afirmara claramente (em
resposta às reflexões de Foucault sobre a perversão, segundo afirma
Mayette Viltard em artigo mencionado em nota de rodapé nº 55) que:

"Esses trl.1· ensaios sobre uma teoria sexual! Bem, é que a perversão
é normal. Temos que voltar a partir daí, de uma vez por todas,
então, o problema da construção clínica seria saber porque há
perversos anormais( ... )". 51

Esta é uma frase que diz muito para quem pode ouvir. Qual
seria a diferença entre uma homossexualidade normal e uma perver-
sa, por exemplo? Talvez ele esteja indicando, com este comentário,
justamente a diferença que pretendemos remarcar entre um sujeito
que "sofre" de uma perversão e as variedades atuais do erotismo.
Tratarei disto no Capítulo IV.
Esta frase, apesar das diferenças de perspectiva, não entra em
desacordo com as postulações de Foucault. Como vimos anterior-
mente, ele pensava que o projeto ético mais urgente dos homossexuais
era o de definir novos modos relacionais, um novo modo de vida com
uma cultura e uma ética distintas, algo um pouco difícil de entender
se não considerássemos que, para Foucault, a homossexualidade não

'º Roudinesco, E. e Plon, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. Ver
verbete: homossexualidade (p. 350).
51 Lacan, J. (1965-66). O obje10 da Psicwzâlise. Inédito. Apud Beatriz Aguad, in: "Qué

es la sexualidad?", da revista Me cayô el veinte. México, outono de. 2001, Editorial


Psicanalítica de la Letra, p. 114: "Estas tres ensayos sobre una teoría Sr'.rna/! Bien, es
que la perversiôn es normal. Hay que volver a partir de ah[, de 111111 1·1·z por todas,
entonces, e/ problema de la co11s1rucciô11 clínica seria saber pon1ué hay perversos
anormales."
<iraciela Haydée Barbero 57

na um desejo, senão algo desejável. E porque ele pensava que a


homossexualidade seria uma ocasião histórica para reabrir virtuali-
dades afetivas e relacionais, não pelas suas qualidades intrínsecas,
mas pela sua posição na sociedade, que permitiria que fossem visí-
veis certos elementos que teriam estado invisíveis.
Penso que estas idéias foram comprovadas parcialmente pela
história recente, mas também aconteceu o contrário: a capacidade de
adaptação à mesmice, que tem o mundo social, também permitiu uma
repetição (versão homo) de toda a problemática conhecida nos ca-
sais heterossexuais. O que os grupos de ativistas comprometidos com
as idéias deste pensador pretendiam fundamentalmente (fora a "in-
tensificação do prazer"), que era a construção de vínculos onde não
houvesse uma hierarquia implícita preestabelecida, não foi realizado
facilmente na prática. Se bem que existe, na comunidade homosse-
xual, essa tentativa de estabelecer relações igualitárias e alguns/algu-
mas fazem disto uma questão quase de ordem (especialmente as
feministas), a realidade é que ninguém resolveu ainda as questões
que surgem entre o poder e o desejo e, muito menos, as rivalidades
entre grupos. Talvez essa paridade possa acontecer somente no exer-
cício das novas práticas eróticas onde as questões de poder se trans-
formam em jogos (será esta a perversão normal?). Lembremos de
que as práticas diversificadas que apareceram não se reduzem, como
alguns pensam, ao sexo com parceiros múltiplos e anônimos, que a
AIDS veio parcialmente a desalojar. A questão do possível matrimô-
nio legalizado de gays e lésbicas veio a tornar complexa esta situação
a partir do momento em que o, que é uma conquista de direitos para
alguns é lido por outros (do movimento queer, por exemplo) como um
convite à ingerência do Estado nas relações pessoais e íntimas.
O que, então, a nova visibilidade das figuras sexuais nos mos-
tra? Simplesmente, e de formas variadas, uma nova erótica se desen-
volvendo, certas comunidades eletivas surgidas por este motivo sem
que o sexual, como sempre, deixe de estar associado ao mistério, ao
inconsciente. Novos vínculos, novas práticas, novas famílias, novas
formas de conflito também?
58 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

A própria definição do sexual continua ainda mal esclarecida,


nos lembra Beatriz Aguad 52 , citando Lacan, quando enunciava:

"(... ) o que se trata de articular é o fundamento do desejo e -


enquanto não se chega até aí - não está sequer assegurado o
campo da sexualidade. O mito do Édipo não nos ensina nada em
absoluto sobre o que é ser homem ou mulher". 53

Para fechar esta questão, dez anos depois, em um de seus últi-


mos seminários com a famosa sentença:

"Tudo deve ser retomado desde o começo a partir da opacidade


sexual". 54

A convergência Lacan-Foucault não é um acordo entre os au-


tores, dentro ou fora da psicanálise. Alguns assinalam os pontos de
articulação possíveis, outros as oposições. Sob o ponto de vista que
apresentamos, é uma convergência necessária.
Mayette Viltard, em um texto de 199955 , estuda esta conexão a
partir de alguns pontos fundamentais: o estruturalismo (pondo em ques-
tão qual), a questão do sujeito (qual?) e seus breves, mas significativos,
encontros pessoais. Ela afinna que sua influência recíproca foi "discreta
e importante"56• Também acredita que não se trata de um diálogo real-
mente, já que cada um seguiu seu próprio caminho. Mas suas obras têm
pontos de concordância, diz. O peso que teve a conferência do Foucault

"Aguad, Beatriz. "Qué cs la Scxualidad ". ln: Me cayô el veillle, op. cit., pp. 105-123.
~3 Lacan, J. O Ohjeto da Psicanálise. Op.Cil. Apud Aguad, B. Op. Cit.: "( ... ) lo que se trata
de articular cs e! fundamento dei deseo y - cn tanto que no se llega hasta ahí - ni siquiera
se ha asegurado el campo de la sexualidad. El mito de Edipo no nos ensefía nada en
absoluto sobre lo que es ser hombre o mujer.".
54 Lacan, J. (1975-76). O sintoma. Inédito. Apud Aguad, B. Op. Ci1.: ·Todo debe ser

retomado desde e! principio a partir de la opacidad sexual.".


55 Viltard, M. "Foucau/t - Lacan: La lecci611 de las Meninas". ln: Rel'i.rta Litoral, nº 28,

op. cit., pp. 115-161. (Original publicado em L'Unbévue, 11º 12. Paris, 1999.)
56 lbid., p. 115.
<iraciela Haydée Barbero 59

..Que é um autor"57 , em Lacan, foi grande, afirma. Ela aparece mencio-


nada em uma aula do Seminário do Objeto58 • Fora este, a autora escolhe
outros três momentos que poderiam ser considerados "encontros" entre
ambos: uma sessão do seminário mencionado na qual Lacan fala direta-
mente de Foucault e reclama sua presença; uma carta dirigida a ele59 , e
uma fala de Foucault pernnte um grupo de psicanalistas, em 1976, na
ocasião da aparição do primeiro volume da História da Sexualidade<.,.
Não aprofundarei estes pontos, já que para os fins que me propus no
presente capítulo é suficiente marcar este diálogo indireto, onde também
estão em jogo a relação do saber e da verdade com o sexo, a sexualidade
na história e a discussão sobre a representação inconsciente. Creio que
este trnbalho está meramente começando.
Jean Allouch, psicanalista francês contemporâneo, que afirma
que a psicanálise deverá ser foucaultiana para sobreviver, tem traba-
lhado de forma minuciosa alguns pontos de encontro entre estes dois
autores. O artigo que me pareceu mais instigante é nomeado justa-
mente a partir da relação entre dois conceitos respectivos que pode-
riam entender-se como contraditórios: "A intens(ficaçüo do prazer
(Foucault) é um plus de gozo" 61 (Lacan).
Neste artigo, o autor parte da explicitação de que amhos auto-
res souberam se negar a fazer sistema com seu trabalho, o que signi-
fica aceitar a possibilidade de produzirem "restos" na teoria e de
mudar, coisa que, por exemplo, não acontece na obra de um filósofo
como Hegel. E é isto que permite, apesar de seus diferentes pontos
de vista e caminhos percorridos, a possibilidade de seus "encontros".

·' Esta conferênda !'oi publicada, em espanhol na revista Litoral, nº 25/26. La jimâôn
11·crewrio. Córdoba, Edelp, 1998.
Lacan, J. O Ohjero da Psicwuí/i.1·(', op. cit.
··• Ver nos Anexos.
"' Foucault, M. (1976). Histâria da sexualidade. Vol. 1. A vontade de saber. 2ª ed. em
l"'1·tuguês. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
'·' /\Jlouch, J. "La inlensificación dei placer es un plus de gozo". Artigo encontrado na
,,·vista virtual Acheronta, nº 10, 29/06/2000. A tradução deste "plus de gozar" em
i'''rtuguês costuma ser "mais gozar". Eu preferi deixar o termo da forma como Allouch
·.,· utiliza em espanhol.
60 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Assinala também, falando de Foucault, que durante seus últi-


mos anos ele trabalhou questões referidas à sexualidade moderna e
que em numerosas entrevistas, e não somente nos seus livros, po-
deremos ler a atualização de seu pensamento. Para ele, tal e qual
um psicanalista faria, Foucault utilizou a história como uma forma
de fazer diagnósticos da atualidade, ou seja, seu trabalho de história
da sexualidade estaria fazendo um diagnóstico, ou permitiria fazê-
lo, da sexualidade de nossos tempos. E marca que, também para
ele, isso serviria para dissipar a questão da identidade (as identida-
des sexuais atuais), como Lacan, que considera o sintoma como
portador de identidade.
Para melhor compreender estes "encontros", Allouch vai ana-
lisar um ponto específico, um "traço distinto" (distinct), ainda que
não apareça totalmente claro, diz. Esse traço seria justamente a
"intens(ficação do prazer", que para Allouch seria a intensifica-
ção do que, na psicanálise lacaniana, chama-se gozo. Ou seja, que
neste sentido, para ele, ambos autores teriam produzido ao redor de
um mesmo objeto (o "plus de gozar" seria um dos nomes do obje-
to a cm Lacan).
Aqui nos lembra de que Lacan acompanhou de perto e afim1a-
ti vamente as primeiras obras de Foucault (O nascimento da clínica,
História da loucura na idade clássica, As palavras e as coisas e
outras obras conhecidas) e que também dialogou com ele em um de
seus seminários, como já Viltard relatara, por meio de comentários
sobre As Meninas, uma famosa obra pictórica de Velázquez. Por
meio desta referência, e por causa de alguns detalhes do quadro (o
espelho e a imagem do pintor pintando a obra), Lacan estaria falando
a Foucault sobre a diferença entre a imagem que o espelho reflete e
o ponto de perspectiva não geométrico que seria, para ele, o ponto de
entrada (de chamada) do sujeito em uma obra pictórica. Ambos con-
cordavam que o sujeito não é originário (Lacan usou muito a confe-
rência de Foucault onde isso fica esclarecido, chamada "Que é um
autor'',já citada neste trabalho). Ambos falam do fim do humanismo
e colocam o sujeito em questão. Isto se evidencia no texto de Lacan,
Gradeia Haydée Barbero 61

"Do sujeito por fim em questão"62 , cujo mesmo título sugere que o
sujeito é tomado como pergunta e não como ponto de partida.
Depois deste momento, porém, ambos parecem ter desviado sua
atenção. Foucault deixa de se interessar nos seminários de Lacan de-
pois da invenção do objeto a, talvez pelo seu hermetismo. Mas, segun-
do Allouch, foi justamente este o ponto de encontro fundamental: a
invenção maior de Lacan, o objeto a, é justamente aquilo que está em
jogo na erotologia contemporânea, e aquilo que Foucault procura com
sua "intensificação do prazer". Adi vergência entre eles, pensa Allouch,
tem a ver com seus diferentes pontos de vista sobre o discurso. Lacan
desenvolve, no Seminário 17, O avesso da psicanálise63 , urna teoria
dos discursos, e Foucault pensa que isto não é possível.
Mas eles estariam criando ao redor de um mesmo problema: a
erótica do objeto a, que em Foucault se escreve como relação do
intenso com o verdadeiro.
Outro ponto que pareceria diferenciá-los é aquele do prazer:
Foucault faz valer o prazer perante o desejo, mas, diz Allouch, con-
vém não endurecer esta oposição, já que em última instância Foucault
quer "fazer seguir" o desejo ao prazer ("Nôs devemos criar praze-
res novos, entao, talvez o desejo siga."). 64
Por isso, ele conclui que não é uma oposição que exclua os ter-
mos. A paitir daí, ele faz uma relação afirmando que se trataria pelo
menos de três termos e não de dois: prazer, desejo e ato, que jogariam
de forma diferente em diferentes culturas e momentos históricos. As-
sim fica mais claro que o prazer de Foucault, não é o freudiano, de
diminuição das tensões, e sim o que corresponde ao conceito lacaniano
de gozo. A crítica de Foucault sobre a relação do desejo com o sujeito
na psicanálise, é superada quando Lacan, ulu·apassando sua própria

6' Lacan, J. (1966). "Dei sujetn por fin cuestionado". ln: Escritos /, 15° edição em

espanhol. .México, Siglo Veintiuno, 1989, pp. 219-227.


6 ·1 Lacan, J. ( 1991 ). O Seminário. Livro 17 - O avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro,

Jorge Zahar, 1992.


''" Citado por Allouch no texto que estamos discutindo, p. 7: "( ... ) ,w.rntros dehe111os
(Tear placeres nuevos, entonces quizâs el deseo siga.".
62 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

concepção de desejo como desejo do Outro (Hegel), inventa o objeto


pequeno a, onde explicita que o que produz o desejo é um pedaço de
corpo perdido, "O pacote de gozo que faz o sujeito desejante (o que
sobra da sua identificação ao traço unário), enquanto perdido."65
Aqui pode parecer que Foucault apontaria de forma obscura a
uma tentativa de sair do sexo, em uma declaração um tanto ambígua
que se oferece às críticas de Zizec, por exemplo, no citado artigo da
revista Clique, nº 2 66 . Mas para Allouch é precisamente neste ponto
que se encontra com Lacan e seu conceito de plus de gozar. Allouch
trabalha cuidadosamente a questão do gozo, em Lacan, relacionada à
perda. O plus de gozar, ordenado em relação ao seio, excremento,
olhar, voz e falo, teria um duplo fundo. A repetição se relaciona com
a tentativa de recuperar o que se perdeu. E o gozo seria, assim, ma-
soquista, corno o coloca, sob um outro ângulo, Leo Bersani. Neste
sentido, a intensificação do prazer foucaultiana encontra-se com o
plus de gozar. O gozo nunca é total, é isso que representa a proibição
do incesto, há sempre nele algo impossível, algo excluído. A intensifi-
cação do prazer tem uma função de suplência, de suplemento do
proibido do gozo fálico. O texto termina sugerindo que a relação que
Lacan estabelece entre gozo e saber permitiria pensar a proposta de
Foucault de um erotismo distante da sexualidade (que seria equiva-
lente a seu "dispositivo sexual" em uma sociedade disciplinária) e
que favorecesse mudanças na cultura.
Mais além deste ponto específico e interessado pelas questões
que as novas figuras do erotismo - ligadas a esta provável influência
do erotismo na cultura - criaram para a psicanálise, Allouch expres-
sou em uma reportagem, que pode ser lida no seu site na Internet, 67
que, se bem Freud teve uma posição historicamente determinada com
relação a suas teorias sexuais (ligadas parcialmente ainda à reprodu-

6' lbid., p. 9: "El paquete de gozo que hace al sujeto deseante, em ranto perdido."
ln: Nota 38, p. 32.
'' 6

67 Resposta à reportagem veiculada na Internet, no site: hrtp/HYPERLINK http://

www.jeanallouch.com.
Gradeia Haydée Barbero 63

ção ), se absteve de prescrever normas, coisa que seus alunos nem


sempre sustentaram: muitas invenções freudianas se utilizam para
dar normas à sociedade, ou expressar opiniões sobre estes assuntos
sem qualquer fundamentação que não seja ideológica e moralizante.

"É alio produzido por um grupo oficial e muito importante de


lacanianos. A nova norma é o que eles chamam a ordem simbólica.
Acreditam que na ordem simbô/ica haveria algo chamado
rnmplcxo de É'dipo que .fúncimw para normalizar o .w1jeito. Nüo
deram ainda o passo que deu Lacan 11uwulo reduziu o simbólico à
relaçüo entre dois sign(ficantes, acreditam que no simbólico tem
formaç6es como o complexo de Édipo e na realidade sú hâ
sign!f'icantes. Rcferem-.\'C ao que Lacan disse nos anos cinqüenta
sem levar c,n conta suas mudanças de posição. " 68

Em "Dialogar com Lacan" 69 , Allouch faz um comentário que


considero importante para os conceitos que estamos trabalhando:

"lf<~je é evidente que a leitura de Laca// estâ liprnas iniciada; l/Ul'


quando se pretende dizer o que ele disse, ji·eqiientemente o único
que se faz é isolar arbitrariamente tal ou qual fase de seu caminho.
Em particular, hâ um impasse quase geral sobre seus últimos passos.
Será que poderiam ser prescindíveis? Não haveria ali um efeito de
'aprés coup' suscetível de esclarecer o conjunto de seu percurso'!
(. .. ) Nosso diálogo com Lacan é agora assunto de leitura. (. .. )
possuímos um princípio de experiência, algumas muletas para
esta leitura (... ) é mais cômodo abordar Lacem a partir de seus

68 lbid.. p. 10: ''E.I· ali;o producido por w1 grupo oficial y muy imporflmle de larnnianos.
La nueva norma es lo que el/os /laman el orden simbólico. Creen que en el orden
simbólico habría algo //amado complejo de Edipo que .fimciona para normalizar el
sujeto. No dieron todavía e/ paso que diô Lacan cuwulo redujo d simbólico a la
rdación entre dos significantes, creen que e11 el simbólico hay formaciones como el
complejo de Edipo y e11 realidad só/o hay signijirnntes. Se rejieren a lo que Lacan d(io
en los anos cincuema sin tomar en cuenta sus cambias de posición. ··
"º Allouch, J. "Dialogar com Lacan". ln: Litoral. Lacan cmz Freud, nº 14. Córdoba,
Edelp, fevereiro de 1993.
64 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

seminários. E sabemos que só uma leitura dos seminários permite


decifrar numerosos textos escritos. ( ... ) Há conferências e
intervenções que não.foram ainda publicadas, muitas transcrições
dos seminários contêm erros enormes de transcrição.". 70

E, falando das novas formas da sexualidade (concordando com


o ponto de vista que desejo afirmar), diz que há novas formas de
organização da sexualidade e que isto é inegável; práticas novas, in-
clusive, como ofist~fuckinf? (uso do braço e do punho na masturbação
mútua, que tem sido chamada pelos praticantes de yoga anal), ou o
sexo S/M (sadomasoquista) em geral, que dariam lugar a toda uma
subcultura7 1, segundo seu ponto de vista. A psicanálise tem de olhar e
estudar tudo isso, afirma. São fenômenos novos que merecem que
mudemos o que L:ríamos saber:

"(. .. ) os conceitos de homossexualidade e de perversão foram uma


inw'nríio c:ultural e não existem mais como tais.". 72

Isto deveria entender-se, creio, de acordo com o que estou pos-


tulando, no sentido de que não são sinônimos nem deveriam ser car-
regados, a priori, de uma ideologia negativa.

"' /hid., p. 129: "Hoy es evidente que la lectura de Lacan estú apenas iniciada; que
cuando se pretende decir lo que é/ dijo, a menudo lo único que se hace es ais/ar
arbitrariamente tal o cual }ltse de su camino. En particulm; el impasse es casi general
sobre sus últimos pasos. Acaso serían prescindibles? No habría a partir de allí un efecto
de apres coup susceptible de esclarecer el conjunto de su recorrido? 'Nuestro diálogo
com Lacan es ahora un a.1·u11to de lectura. (... ) poseemo.1· l/11 principio de experiencia,
algunas muleta.\' para esta lel.'tura (... ) 110 ig11ora1110.1· que es más cómodo abordar a
Lacan a partir de SII.I' seminarios. Y además .l'abemos que solo la lectura de los seminarios
permite el desciframiento de numerosos textos escritos. (... ) hay, corre/ativamente, un
cierro número de conferencias o intervenciones que no Jueron jamá.l' publicadas. (... )
tales transcripciones s011 ampliamente erróneas... '".
71 Há numerosos artigos sobre esses erotismos novos e "perigosos''; ver, por exemplo, o

último número dos Cademos Pagu - Eroti.vmo, Prazer, Perigo. Rcvisla do "Núcleo de
Estudos de Gênero Pagu", da Universidade Estadual de Campinas, n" 20. Campinas, São
Paulo, primeiro semestre de 2003.
72 "( ... ) los conceptos de homosexualidad y de perversicín ji11•1w1 111w i11venció11 cultural

y no existen más como tales." (Da mesma reportagem que estamos citando.)
Gradeia Haydée Barbero 65

Lacan teria percebido, segundo Allouch, que não dava mais


para definir as identidades sexuais (todas) a partir do falo, em duas
vertentes: "os que têm" e "os que não têm", como categorias bem
diferenciadas, até porque, no momento do orgasmo, onde poderia
funcionar como tal, o falo (como pênis ereto) se desvanece, diz ele,
ou seja, o pênis que o representava, ao satisfazer-se, "cai", em suma,
deixa de ser falo. O falo interviria no ato sexual como objeto perdível,
como oNeto a, como objeto parcial. E, a partir do momento em que
o falo não poderia explicar toda a questão da diferença sexual, para
Allouch, deixa de funcionar o conceito de heterossexualidade tal
como se conhece.
Aqui, e em outros escritos, este autor considera muito valiosos
para a psicanálise os Gay & Lesbian Studies. Os mesmos, como
vimos, questionam a divisão da sexualidade entre hetero e homo, as
categorias e as identidades sexuais, o sexo enquanto gênero, o víncu-
lo entre sexualidade e poder, a cumplicidade entre sexo e verdade
(Foucault) e até a função do desejo e a natureza do gozo. É um
campo polêmico que traz de volta a sexualidade ao foco das preocu-
pações teóricas, um erotismo que a psicanálise parecia ter deixado
um pouco de lado para pensar na patologia e no desvio da norma
social, afirma. Allouch nos lembra de que foram realizados muitos
estudos sobre sexualidade que não existiam na época de Freud e
Lacan, mostrando a origem e função de alguns conceitos que já não
podem ser usados sem reconhecer que foram estremecidos por uma
nova realidade social e discursiva. Mas para ele, Lacan já teria ante-
cipado estes desenvolvimentos em suas últimas teorizações.
Comentando sua afirmação, feita em um seminário, em Paris,
em janeiro de 1998, que a psicanálise serâ j(mccwltüma ou não
serâ, Allouch fala da relação que o pensador Foucault teria com a
verdade, relação que o fez proferir "algo que equivaleria a uma
espécie de oração fúnebre da psicanálise". A menos, diz ele, que
a psicanálise esteja localizada no mesmo lugar que Foucault focaliza-
va a verdade. A psicanálise não seria uma técnica de confissão e sim
uma erotologia.
66 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

O próprio Foucault reconhecia que Lacan foi o único depois de


Freud que tentou voltar a centrar a questão da psicanálise na relação
do sujeito com a verdade e nos seus livros sobre o amor antigo che-
gou a ir bem longe, diz Allouch.

"Eu não digo outra coisa. Sobre o estatuto da psicanálise como


erotologia, além de ter sido precedido por Lacan em 1962-63,
Foucault nos prccedeu, e não podemos fazer nada rnellwr, com
Lacan, do que o alcança,: É simples assim. "73

Ele afüma que Freud construiu sua teoria contra a normalização so-
cial (campo sensivelmente mais amplo do que o da lei, diz Foucault) que já
teria sido estabelecida de um modo particular (ética do puritanismo), mas
não conseguiu desprendê-la totalmente da teoria da degeneração (elemen-
tos "constitucionais"). É por isso, segundo Allouch, que precisamos de Lacan
e de outros pi.mt continuar neste caminho. Por outra parte sublinha a forma
abcrw. da ternia, que teria permitido mudanças fundamentais, em ambos
autores, à medida que se desenvolveu. Não deveriamos ignorá-las.

"l..1.wtm nüo é uma tese, nüo é um 'sistema de pensamento', é um caminho


aberto, um movimento, um percurso. Assim, quando abandona como
uma vellw pele a intersubjetividade ou a palavra ple,w, o desejo defb1i.do
hegelianamente como o desejo do Outro, ou o estatuto paradigmático
do RSI, vêmo-lo separar-se dele mesmo, pensar contra ele mesmo, e com
um determinado Freud, o da resistência à norma (segundo o uso
foucaultiano do temw). Porém, ele estava desta maneira, gostando ou
niio. contribuindo para criar uma nova norma. "74

7-' lbid., p. 178: "fo no digo otra cosa. Sobre el estatlllo dei psicoan.álisis como erotología,

Iras haber sido sin duda precedido por l1.1ca11 en 1962-63, Foucault nos ha precedido; y
1w podemos hacer nada mejor, rnn Lacem. tie que alcanzarlo. Es tan tonto como eso. ".
1• lbid., pp. 180/ l 8 I: "Lacan no es una tesis, 110 es w1 'sistema de pen.samie,uo ·• es un camino

abierto, es un movimiento, es un recorrido. Así, cuando abandona como una 1•ieja pie[ la
inter.mbjetividad o la palabra plena, el deseo definido hegelianamellle wmo de.1·eo dei Otro,
o el estatuto paradig11uítico de RS/, lo vemos en efecto separarse él mi.1·1110 d,• él mismo, pensar
contra él mi~mo, y con un detenninado Freud, el de la resistencia a la 110111w. Sin embargo
él estaba, de esta fomza, gustándole o no, contribuyendo para <T<'t/1" 11110 1111e1•a norma.".
<iraciela Haydée Barbero 67

Lacan, pensa Allouch, é um caminho pelo qual devemos passar e


atravessar e ir além, na liberação da psicanálise com re1ação à bionorma
(idéia<; ligada,;; ao evolucionismo), sempre em relação ao sexo, e resistindo:

"Dizer que a psicanálise é uma erotologia, em que o é, em que essa


erotologia ncio é boa para qualquer um, é, muito precisamente,
resistir a essa normalizaçcio, resistir a esse 'arcaísmo aôtico' que
Foucault (sem dúFicfa mais livre que Freud a esse respeito)
apontava em Freud. " 75

Para Allouch, é no Seminário l O que Lacan recoloca a psicanáli-


se como erotologia. Por isso, voltarei minha atenção para ele na última
parte da tese. É um seminário em que se fala de afetos e parece que
foi, de algum modo, censurado pela IPA, na época que o ministrava, já
que foi justamente a partir desse ano que Lacan fora praticamente
expulso da instituição. Nele, Lacan reconheceu que sua conhecida fra-
se "11üo hâ relaçüo sexual", tantas vezes repetida e nem sempre
compreendida, implicava que não há dois termos - homem e mulher -
que levariam cada um a uma significação e a um referente. P<ml ele,
assim como para Foucault, abordar a questão erotológica sob uma con-
cepção da identidade, com uma oposição masculino-feminino que se
dá como constituída (afirmando-se que há duas identidades e dois gê-
neros), significa fechar, de saída, o problema que se queria tratar.

"Posso indicar algo que fez lacan em 1963, uma operaçlio


estranha e ainda desatendida amplamente, cujas conseqiil?ncias
niio acabaram de ser medidas: a destruiçlio, de fato, da
heterossexualidade. " 71'

" lbicl., p. 182: Texlualmenle Allouch diz: "Decir que el psicowuílisi.1· e.1· una autvlogía,
en q11é lo es, en qué esa erotología 110 es lmena para cualquieru, es muy precisamente
resistir a e.m norma/izaciô11, a esse 'arcaí.mw erótico' que Foucault (sin dud11 más librt•
que Lanm a esse respecto) se1ialaba en Freud.".
' 6 Allouch, J. "Cuando e! falo fa!La". bi: GrajTas de Eros, op. cit., pp. 199-210: "Pueclo

indicar algo que hizo Lacan en /963, una operaciôn extrana y todavía desatendida
ampliamenle, cuyas conseq11e11cias 110 se lum acabado de medir: la destrucci<Í11, tle
hecho, de la heterosexualidacl. ".
68 Homossexualidade e Petversão na Psicanálise

O que diferencia o campo dos Gay & Lesbian Studies em rela-


ção ao campo freudiano é que eles consideram a questão da não
relação sexual fora do âmbito do sintoma, da patologia, "como se
essa (não) relação nc7o tivesse nada a ver com a loucura" 77 (e
sim com a criação cultural).
Estes trabalhos apareceram ali onde a psicanálise teria virado
adaptativa (Estados Unidos) e egosintônica, e isto não aconteceu por
acaso. Eles ocupam, afirma Allouch, o lugar que a psicanálise tinha
deixado vago como erotologia, ou seja, eles se preocupam com a
erótica presente nas sociedades humanas contemporâneas. Os Gay
& Lesbian Studies, conclui, conseguiram demolir concepções consi-
deradas inabaláveis e agiram como um revelador fotográfico sobre o
texto de Lacan. Acaha o texto, lembrando-nos que:

"(. .. ) (Existe) a sexualidade 'Navire-night' (repetindo Marguerite


Duras)(. .. ) a dos anúncios, as saunas, os clubes, os jardins (como
na antiga Grécia), as traquinagens, aquilo que fazia Lacan dizer
que, do lado da homossexualidade, isso 'ereta' (de ereção) mais
forte e mais amiúde, a mesma que condena e luta contra a
propagação da AIDS, a da 1·iolência SIM, a de um sexo amplamente
anônimo, múltiplo, divers(f"icado; (que é o que faz?) que desta
sexualidade fora da família, fora da fidelidade, fora do amor; que
tem seus lugares, seus códigos, seus ritos, seus limites também; que
dessa sexualidade não se trate praticamente nunca no campo
freudiano ... (:)". 78

77 Allouch, J. "Acoger los Gay & Lesbian S1udies". Op. Ci1., p. 176: "( ... ) como si esa

(no-) relación sexual no tuviera nada que ver con la locura.".


'" Ibid., pp. 175/ 176: "( ... ) la sexualidad Navire-night, la de los mumcios, los saunas,
los clubes, los jardine.1· (como en la Grecia antigua), las travesuras, aquella que hacía
decir a Lacan que dei lado de la lumwsexua/idad eso erecta más ji,erte y más a
menudo, la misma que condena la lucha contra la propagación dei Sida, la de la
violencia SIM, la de un sexo ampliamente anónimo, múlliple, dil'asijirndo; ( ... ) (qué
es lo que huce) yue ele esta sexualülad jiteru de la familia, fuera d1: la .fideliclad, fuera
dei amor, que tiene sus lugares, sus códigos, sus rilos, sus /ímites también, que de esa
sexualidad no se rrare prácticamente nunca en el campo ji'e11diano? ".
CAPÍTULO li

CONCEPÇÕES QUE SOBREPÕEM


HOMOSSEXUALIDADE E PERVERSÃO

Alguns autores do campo


psicanalítico

... Ga11ha .fi>r("ll a idéia de lnt~er à ce11a as bruxas, e penso que ela vai direto ao alvo.
Começam a l/volumar-se os detalhes. O se11 "vôo" estâ explicado; o cabo de
,·assoura c•m que montam é provavelmente o grande Senhor Pê11is. Suas reuni<ies
sc•,.,-e1e1s, cum danças e owros dil'ertimelllos. pudem ser vistas, 1odos os dias,
nas ruas onde há crianças .
... Em minha mente está-se ji1rmando a idéia de que, nas perl'er.1·<1es, das quais a
histeria ,; 11 11eglltivo, podemos ter diante de nós um remanescente de um culto sexual
primel'o que, no Oriente semítico (Moloch, Astarte), em certll época, ji>i,
e wlvez. ainda seja, wna re/igitio ...
... As ll\'(JC',\' pervertidas, além disso, süo sempre as 111es11111.1· --- 1h11 um sig11Uh:mlo e
.wio executadas segundo um pacirtio q11e hâ de ser possí1•el co111pree11cie1:
l'orlcmlo, 1·e11ho .rnnlumdo com 11111a religiiio demoníllc·a pri111e1·a, c11jos ritos sc7o
e.rec·utado.\· se<'reta111e11/c 1, e ,·0111prC'n1elo o lrala111e1110 se1 ero prescrito pelos j11í;:,es (Is
1

l>ru.rns. Os elos ele ligaccio seio lll>1111da111e.1·.

Sigmund Freud'"

Na psicanálise atual, como vimos nos capítulos anteriores, os


comportamentos entendidos dentro da categoria descritiva de homos-
sexualidade e a suspeita de uma perversão como base subjetiva dos
mesmos são associados de forma quase permanente, apesar de tudo
que foi proposto e teorizado para não confundir as categorias psíqui-
cas e psicopatológicas com critérios diretamente tirados de prescri-

'° Freud, S. ( 1892-1899) (primeira publicação: 1950). Carta nº 57. ln: AE, vol. I:
"Extrato dos documentos dirigidos a Fliess", pp. 211-322. Daqui cm diante estarei
citando os textos freudianos, tais como aparecem nas Obras Completas de Sigm1111d
Freud (AE), publicadas entre 1978 e 1985 por Amorrortu Editores, em Buenos Aires e
cuja tradução para o português fora realizada por mim.
70 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

ções morais. Homossexualidade e perversão, na teoria, se misturam,


se confundem, se atrapalham. E o qualificativo de perverso está liga-
do a imagens demoníacas, como Freud especifica nesta carta que
acabo de citar. Como fazer para separar uma coisa da outra?
Como especificar uma organização perversa ou uma estrutura
perversa sem a confundir com a homossexualidade manifesta, que
inclui desejos e práticas que podem aparecer em qualquer estruturação
psíquica, tanto como a heterossexualidade, já que são as formas em
que a sexualidade humana se manifesta?
Dizer que a homossexualidade depende da forma de resolução
do complexo edípico não é suficiente, já que há várias formas em que
isto pode acontecer, assim como há várias formas em que a
heterossexualidade fica organizada a partir do complexo de Édipo.
Por outra parte, o que realmente resulta deste anodamento in-
consciente que é o complexo de Édipo, pode ser melhor classificado
dentro de uma das três estruturas básicas que Lacan especifica, se-
guindo á Freud: neurótica, psicótica ou perversa. Mesmo consideran-
do os assim chamados "novos sintomas", dos quais a toxicomania
seria um paradigma, ligados às transformações contemporâneas dos
limites e modalidades do gozo, não há na psicanálise freudiana pro-
postas claras para pensar as formas homo ou heterossexuais do de-
sejo como patologias "per se". Dentro de cada uma das estruturas
considerei também a normalidade possível como um "saber fazer com
o sintoma", seguindo os ensinamentos de Lacan; ou com Freud, como
caráter ou como capacidades criativas (que implicariam o mecanis-
mo da sublimação).
Para ajudar a clarificar estas confusões teóricas, fiz primeira-
mente uma pequena revisão de artigos e textos que falam da perver-
são, sob o ponto de vista da teoria freudiana e lacaniana, e, por outra
parte, no final do capítulo, urna análise um pouco mais detalhada do
conhecido caso freudiano da 'jovem homossexual" classificada, por
um autor lacaniano atual, Serge André, como um caso de perversão.
Em relação à homossexualidade masculina, Freud descobriu di-
versos caminhos possíveis e foi desenvolvendo os mesmos ao longo
<iraciela Haydée Barbero 71

da sua obra. Sobre homossexualidade feminina, falou em poucos lu-


gares, sem identificar esta orientação libidinal com uma patologia, se
hem que em alguns momentos falasse dela como "inversão" e ten-
tasse explicar sua "psicogênese".
A questão da perversão é outra e não deveria ser confundida
ainda com as variedades eróticas, acompanhadas ainda dos precon-
ceitos morais, que, como aqueles de Ernest Jones, tanto influencia-
ram de forma negativa a psicanálise e os psicanalistas. Ele (e outros)
caracterizou a homossexualidade como "um crime repugnante" e baniu
os homossexuais da Associação Psicanalítica, com uma convicção
tal que o próprio Freud teve de aceitar o fato, apesar de suas convic-
ções contrárias, segundo afirma Elisabeth Roudinesco no seu Dicio-
nário de Psicanálise80 • Este é um episódio pouco comentado. Ela
agrega, a título de contribuição para uma interpretação possível, que
fones fora acusado de abuso sexual no Canadá e que Anna Freud,
que o apoiava contra o pensamento de seu pai, nunca se relacionou
sentimental e eroticamente com um homem e tamhém fora "acusa-
da" de ter uma relação amorosa importante com outra mulher, Dorothy,
de quem não se separou durante quase toda sua vida. Seria ela lésbi-
ca?, perversa?, criminosa? Não deixa de parecer significativo, para
qualquer psicanalista, que tais atitudes discriminatórias contra os que
não se adaptam às normas e padrões vigentes da ''normalidade'' se-
xual sejam encontradas exatamente entre os que foram acusados de
transgressão a essas mesmas normas e padrões. O que sim parece
possível é que o próprio Freud, sabendo das inclinações da sua filha,
por tê-la ouvido em análise, sentira-se um pouco perturbado com a
questão.
Jacques Lacan foi o primeiro psicanalista que se atreveu a rom-
per com esta conduta repressiva e moralizante aceitando a escolha
homossexual (única ou principal)como uma variante da sexualidade
humana. E se, em muitos momentos, referiu-se à homossexualidade
como perversão, segundo o mesmo texto de E. Roudinesco, ele o

"' Roudinesco, E. e Plon, M. (1998). Op. Cit.


72 Homossexualidade e Petversão na Psicanálise

teria feito, um pouco ironicamente, a partir de um lugar de aceitação


das perversões no sentido de alternativas à ógida concepção sexual
moralizante burguesa e não como uma anormalidade a ser corrigida.
Mas, de qualquer maneira, não propôs soluções para resolver este
problema que hoje vemos mais claramente como teórico-político.
O que sim devemos lembrar é de que, sendo os comportamentos
e relações homossexuais socialmente proibidos ou desprezados na so-
ciedade, isto deve produzir efeitos na suhjetividadc de quem os desen-
volve, seja porque os assume como uma atitude politicamente
questionadora (como alguns grupos de feministas lésbicas) ou porque
assim se sente determinado (por seu inconsciente) e sem escolha pos-
sível, fora a de exercer ou não seus desejos em uma prática concreta.
Como vimos na Introdução, a polêmica que acompanha a consi-
deração das relações homoeróticas tem avançado rapidamente nestes
últimos anos no mundo ocidental, acompanhando uma mudança nos
costumes ptu-a uma maior permissividade, bastante evidente na área
dos relacionamentos humanos, especialmente nas grandes cidades.
Acompanhamos também o surgimento de uma área de conheci-
mentos, pesquisas e teorizações na Literatura, Ciências Sociais, His-
tória, e Antropologia que leva o nome de "Gay & Lesbian Studies"
que, sobretudo a partir dos Estados Unidos, está oferecendo uma
referência importantíssima para a psicanálise repensar seus funda-
mentos.
Assim também poderão ser melhor pesquisadas outras caracte-
ósticas que possam ser de interesse, como por exemplo, as diferen-
ças existentes entre os relacionamentos homoeróticos masculinos
(autodenominados gay) e os relacionamentos lésbicos. Poderia-se
ainda investigar se as primeiras gerações que decidiram assumir pu-
blicamente seus desejos homossexuais apresentam características
diferentes das atuais, no que diz respeito às formas de aparentar o
gênero das parceiras, à relação com os filhos, e muitas outras coisas
mais. As diferenças encontradas desta maneira permitirão aumentar
o conhecimento sobre os processos de transformação social e as
novas formas de subjetivação social que estão acontecendo.
Gradeia Haydée Barbero 73

A partir do reconhecimento e da proteção do Estado às parceri-


as homoeróticas, haveria também uma legitimação da mudança havida
nas formas de aliança, parcerias e simbologias que se desenvolvem
neste campo. Mas as mudanças nos costumes são muito difíceis de
se firmar e produzem resistências de todo tipo. Parece mais fácil
rejeitar o diferente do que aprender com ele.
Em um futuro próximo, tal vez, as práticas e experiências; homoeróticas,
e/ou as novas; formas de relacionamento que delas surgem, assim corno as
novas identidades sócio-culturais, poderão se abrir como uma possibilidade
a mais para qualquer sujeito das novas gemções.
Em síntese, considero basicamente a idéia de que a perversão é
uma forma de estruturação psíquica apoiada no mecanismo da recusa e
de uma profunda fenda no eu, uma forma de saída da situação cdípica
infantil que resolve (desmentindo) a operação da castração simbólica de
uma forma específica, diferente da llL'lllÜtica. 1~ necessário diferenciar
entre a perversão polimorfa infantil, hasL' sohrc a que se apóia qualquer
sexualidade humana, segundo Freud. e a perversão como possível pato-
logia (como entidade nosográfica ou mesmo como estrutura psíquica).
As variedades atuais do erotismo, carecem de uma outra explica-
ção. A homossexualidade feminina "normal", por exemplo, que seria
simplesmente a que define uma mulher que se interessa, se fascina, se
apaixona por mulheres e, às vezes, não quer nem se imagina oulro tipo
de amor, como a 'jovem homossexual"' freudiana, poderia ser explicada
simplesmente se o "complexo de masculinidade", tal corno Freud o
descrevia (crença na possessão aluai ou futura de um falo), pudesse
ser lido de outra maneira, talvez, corno o resultado de um conhecimen-
to (consciente ou inconsciente) de que o pênis não é o falo e sim uma
figuração possível do mesmo e, portanto, não é necessário ser "ho-
mem" para representá-lo (como o tendo, como o sendo) para um ou-
tro. Isto implicaria em uma outra forma de falar do "complexo de mas-
culinidade" sem que o termo implicasse uma imitação equivocada. 81

81 Em um livro muito interessante e abrangente, Marie-Jo Bonnet (Les relations an11mre.1·e.1·

e1llre les ji:mmes, Paris, Editions Odile Jacob, 1995) também faz esse comentário.
74 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Parti da identificação, na obra lacaniana, do conceito de signifi-


cação fálica. A significação fálica, derivada do significante fálico,
pressupõe que exista um significante princeps (principal) do desejo e
que este, que está ligado sempre a uma falta constituinte, derivada da
incompletude original do ser humano, chama-se, na teoria (na nossa
cultura'?), "falo". Lacan supera assim o obstáculo epistemológico
derivado da consideração da anatomia como critério para a classifi-
cação básica identificatória dos seres humanos, e da necessária iden-
tificação psicológica de cada sexo com seus órgãos de reprodução,
que levaria à divisão conhecida e considerada natural, de homens e
mulheres, sendo que quem estivesse de alguma forma fora destas
categorias seria considerado mais ou menos "anormal". A divisão
estrita em duas classes simbólicas, que devessem corresponder a
elementos corporais que se possuem ou não, baseia-se em uma no-
ção quase racista, posto que a anatomia não se "escolhe" e a posição
subjetiva sim (quase sempre inconscientemente). O atual desenvolvi-
mento da ciência e da tecnologia que permite mudanças no corpo por
meio de cirurgias ou terapia hormonal desequilibra a fixidez destas
categorias.
A contribuição lacaniana permite pensar masculino e feminino
como posições subjetivas no discurso e como diferentes formas de
gozo possível, sem fazê-los coincidir necessariamente com a anatomia
concreta dos corpos. Sua classificação divide os seres humanos em:
aqueles que são completamente determinados pela significação fálica
(que são designados "homens") e aqueles/aquelas "não todos/todas"
determinadas por esta significação (as "mulheres", o "Outro Sexo").
Os "homens" estariam ligados totalmente a um gozo fálico; as
mulheres poderiam desfrutar um gozo suplementar, gozo do corpo ou
gozo Outro (e não gozo do Outro, privilégio do superego). A existên-
cia de um gozo fálico provém, primeiramente, segundo esta teoria, da
subtração do gozo do corpo e da sua limitação ao objeto a, objeto-
causa do desejo, conceito lacaniano de difícil compreensão cujas
espl'l' ifie ações deixarei para o último capítulo. A sexualidade fica assim
oq•:11iilada pela significação fálica mencionada e o gozo sexual limi-
Graciela Haydée Barbero 75

tado pela linguagem e pela sociedade. Longe de suas supostas ori-


gens animalescas, o ser humano só pode gozar, e parcialmente, se
leva em conta seu desejo assim configurado, que, em última instân-
cia, seria um desejo de completude fálica. Para alguns, isto implica
que devemos basear-nos no critério da diferença de sexos para dese-
jar, uma forma clássica de conceber as relações entre os sexos. As-
sim, identifica-se a falta com aquilo que uns têm para oferecer (ho-
mens) e outros/outras para receber (mulheres). Mas eu penso que
isto pode ser entendido de outra maneira. Esta falta, que pode ver-se
como a nostalgia de alguma coisa que se perdeu no processo de
humanização (entrada na linguagem), pode não estar ligada necessa-
riamente à diferença dos sexos. Está representada pela lei de proibi-
ção do incesto que, como diz Lévi-Strauss 82 , marca a passagem da
natureza à cultura. Cada grupo social terá a sua própria maneira de
entender a proibição do incesto, mas cm última instância significa
sempre o mesmo: somente pode ser sujeito, membro de uma cultura,
aquele que respeite a "proibição do incesto", aquele que satisfaça
seus desejos sempre parcialmente, limitadamente, dentro de urna Lei
socialmente imposta e veiculada pela linguagem.
A proibição do incesto transformou-se em nossa cultura em signi-
ficação fálica em uma Ordem sexual que impõe a heterossexualidade
como norma ideal, mas nada impede que isso mude e a própria signifi-
cação fálica, seja desligada da questão da diferença sexual. Podemos
pensar a diferença significante com outras figurações. Na medida em
que as relações sociais mudam e se transformam, o contrato social
baseado na heterossexualidade normativa está mostrando ser uma en-
tre outras possibilidades. Podemos pensar em outras normas que não a
"nonna macho" (nonna male = normale) para legislar sobre os ideais
de normalidade, cmTespondentes a uma época, como já sugeria Lacan
com esse jogo de palavras. É importante que tenhamos em considera-
ção que atualmente há uma grande comunidade pedindo legalização e

"' Lévi-Strauss, C. Las es1ruc111ras e/eme111ares dei pare111esco. Buenos Aires, Editorial
Paidos, 1969.
76 Homossexualidade e Petversão na Psicanálise

aceitação de sua forma de viver, baseada em outras organizações do


erotismo que a tradicional, em muitos lugares do mundo ocidental.
Portanto, devemos ter cuidado em não considerar a perversão
simplesmente como aquela estrutura psíquica que estaria "perverten-
do" (transgredindo) aquela velha ordem, aquela "norma male", por-
que isto nos levaria a considerar perversas todas as formas de se-
xualidade e erotismo não aceitas por ela, como aconteceu durante
muito tempo. Se estas práticas se coletivizaram, se existem em todas
partes grupos de sujeitos reivindicando a aceitação de uma possibili-
dade mais ampla de expressão dos afetos e pulsões, se estamos ven-
do que muitas pessoas são mais felizes incluindo comportamentos
antes rejeitados, e mostrando que estas práticas podem ser coerentes
com os princípios ético-políticos que nos comandam no mundo demo-
crático ocidental, devemos parar de colocar obstáculos neste desen-
volvi mcnto por uma insistência em categorias clínicas ultrapassadas.
Ou a perversão é realmente um tipo específico de organização
subjetiva, independente de critérios morais, e continua-se a pesquisar
sua especificidade clínica (se é que existe), ou estar-se-ia fazendo
ideologia cm vez de ciência psicanalítica. Penso, a partir de minha
experiência clínica, e segundo a literatura consultada, que a perver-
são existe, mas é muito difícil de se observar na clínica e merece uma
pesquisa aprofundada. Este tema é cada vez mais do interesse dos
psicanalistas, mas existem alguns obstáculos epistemológicos que,
segundo entendo, somente serão superados quando a questão ho-
mossexual e a de outras práticas sexuais reivindicadas por grupos
sociais deles se tornem independentes. E mais, o problema da per-
versão transforma-se em um fantasma assustador quando o pensa-
mos como perversão do laço social, como alguns autores afirmam,
pensamento que também desenvolverei, brevemente, mais adiante.
Contardo Calligaris, em um artigo sobre as diferenças sexuais83 ,
desenvolve a conhecida idéia de que, se bem toda a sexualidade tem

83 Calligaris, C. "As diferenças sexuais". ln: Pulsional. Boletim ,Je Novidades, nº 86,

junho de 1996, pp. 5-15.


Gradeia Haydée Barbero 77

a ver com uma fantasia, o sexo, ou melhor, a identidade de gênero do


parceiro importa porque nos constituímos como sujeitos masculinos
ou femininos na dependência de uma relação com a castração do
Outro materno e paterno. A diferença sexual enquanto simbólica im-
plica, comporta com seu corolário, diz, uma determinada relação ao
outro e sua castração. São decisivas, segundo este artigo, as relações
com a instância paterna (lei) e com a falta materna. Estas afirma-
ções são coerentes com a psicanálise lacaniana mais clássica, mas
creio poder afirmar que o Lacan dos últimos tempos não aceitaria
afirmações tão taxativas, e disto trataremos no último capítulo. Ele
adiciona o comentário de que o reconhecimento de seu próprio sexo
e o do outro seria indiferente somente nos sujeitos que se entendem
como queer e que estariam subjetivados por uma diferença da
ordem do imaginário. Acho difícil considerar esta questão de forma
tão simples já que a "Teoria Queer" (ou movimento queer) é um dos
últimos desenvolvimentos dos "Estudos Gays e Lésbicos" que apre-
senta sofisticações teóricas e ideológicas bastante complexas e vari-
adas, como já mencionei no Capítulo 1, e a subjetivação que eles
consideram deriva de uma posição política e não é (só) uma questão
de estruturas primárias que pudessem ser diagnosticadas, sem mais,
como imaginárias.
Em um outro texto, produzido a partir de conferências em Sal-
vador (Bahia), que comentarei no final desta seção e que me parece
bem mais instigante, Calligaris mostra como podemos pensar a per-
versão no vínculo social.
Neste capítulo farei uma breve referência a vários autores que
trabalharam o tema da perversão e mostram diferentes aspectos e
posturas em relação ao mesmo, mas que, segundo minha maneira de
ver, não conseguem resolver totalmente estas questões. Pelo contrá-
rio confundem, superpõem, de uma ou outra maneira, homossexuali-
dade e perversão.
Começarei por alguns textos extraídos do Boletim de Novida-
des - Pulsional, uma revista de psicanálise conhecida e respeitada
no meio psicanalítico e acadêmico de São Paulo. Escolhi-os por se-
78 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

rem mais ou menos representativos das posturas de psicanalistas atuais,


principalmente lacanianos.
O primeiro, um texto de Durval Checcinatos,.1, parece ser uma
tentativa de entender a perversão como estrutura, e não parte de uma
afirmação expJícita de que a homossexualidade seria necessariamente
um quadro perverso. Ele afirma que a pulsão (na teoria psicanalítica)
tem três mecanismos de defesa mediante os quais estruturalmente se
ordena: o recalque, a forclusão e a recusa ou renegação. O perverso
se estruturaria em função do mecanismo da recusa o que o coloca, diz,
como Freud pensava, com um pé na neurose e outro na psicose.
O gozo específico do perverso, diz-nos Checcinato, consiste no
fato de, em conhecendo a lei, poder arranhá-la, driblá-la na sua rela-
ção com um outro, perante um terceiro, feito testemunha, sobretudo
se este estiver preso por um segredo que não se pode revelar. Isto é
somente uma descrição, extraída provavelmente da experiência clíni-
ca. Para ele, seria melhor falar em perversões e não em perversão
porque as pessoas não se enquadram de forma absoluta em uma
estrutura só. Haveria perversos, traços perversos nos neuróticos e
uma perversão em sujeitos estruturados segundo a renegação; as
perversões seriam infinitas, afirma, de uma forma que nos parece
pouco esclarecedora. Refere-se, talvez, às enumerações realmente
infinitas da sexologia e da psiquiatria do tempo de Freud.
Este autor diz que há certas características ou manifestações
que acompanham a estrutura perversa, às quais teriam sido observa-
das por muitos psicanalistas, seguidores de Freud, Lacan ou Klein, no
seu trabalho clínico: a ambivalência, uma dialética desejante da arnbi-
güidade, a recusa. Mas afirma também que este seria um traço
recessivo em qualquer mulher, pela própria condição feminina que a
"faz fetiche", que a faz oferecer-se ao gozo sexual do homem (isto
apagaria, então, parece-me, a especificidade perversa).
Perverso também seria o desafio, afirma, agregando um co-
mentário com explicações:

84Checcinato, D. "Perversão". ln: Pulsional. Boletim de Novidades, nº 93, janeiro de


1997, pp. 5-15.
! iraciela Haydée Barbero 79

"O desafio estn1tural do pen•erso o coloca sempre em uma posição de


defensor da Lei, de 'singular defensor de Deus' (Lacan), deferrabrâs
das grandes causas, sobretudo das minorias. como a dos homossexuais,
a dasfeministas ou mesmo a dos injustiçatlo.1· da sociedade. ''85

Enumera, a seguir, uma série de qualidades da relação que este


\Ujeito estabeleceria: o outro sabe mas não pode falar, a transgres-
são, seu desejo, é a única lei, a realização de sua fantasia, em detri-
mento do fantasma. Ele escamoteia o objeto a, diz, já que restitui o A
sem barra. Há o desafio da lei da falta, a manipulação, a fuga de
responsabilidades, a colocação da culpa no outro. O perverso abdica-
ria do desejo, tendo horror dele; só tem vontade de gozo, diz. A von-
tade de gozo colocaria o perverso na rota direta do desvio da pulsão
(a normalidade seria razão direta da castração, porque há renúncia
ao gozo). Este sujeito também pode manipular, abrindo mão de com-
promissos em proveito próprio, pensa o autor, ele abre mão de seu
desejo e fica assim distante de sua subjetividade.
Até aqui, podemos acompanhá-lo, com algumas dúvidas, já que
por exemplo, segundo Lacan, não é possível "escamotear o objeto
a" e não fica claro o que seria a reali:z.açüo da fàntasia em detri-
mento do fêmtasma. Também, à medida que começa a dar exem-
plos, acode as conhecidas referências aos homossexuais. O autor,
por exemplo, diz que os perversos procuram análise, mas que na
medida em que esta cria obstáculos à sua satisfação, eles:
a) batem em retirada. "É o que pode acontecer sobretudo
(com) os homossexuais e transexuais" 86 ;
b) em uma passagem ao ato, podem se tornar analistas;
c) sublimam. Esta rara possibilidade é exemplificada também
com um de nossos grandes poetas, Fernando Pessoa, que,
segundo Ceccinato, teria conseguido sublimar "esse traço
perverso" (da sua homossexualidade).
,, lbid., p. 8.
. ,, lbid., p. li.
80 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Fala também da:

"violência tão característica dos homossexuais que se agridem


ou que se matam: bater, perfuraçüo e espedaçamento do corpo ... A
meu ver, isso ocorre porque se procura pôr em açüo o impossível
fantasma da ident~ficação ambivalente do homossexual. Sobretudo
a perfuração, tão caraterística nos homicídios de homossexuais,
parece-me ser a procura paranóica de uma vagina que não existe
e que cruelmente se acaba fabricando, mas para mergulhar 110
real da morte, o único que pode conter o fantasma da
ambivalência.". 87

Chega à conclusão de que:

"a /Jerversidade ( O seria uma patologia especifica, um pathos,


w11u 111wieiru de .wdi·er diferente das outras que podemos observar
na clínica, que implica em uma clivagem ativa do ego, diferente
da c/il'(lgem passiva do neurótico, à qual estamos submetidos por
scrmosfál-entes, s1ijeitos. ". 88

A estrutura perversa existe, insiste, não é um simples exagero


dos traços perversos de um neurótico, e estaríamos desconhecendo o
lrahalho de muitos de nossos "maiores", afirma, se desconhecermos
esta diferença. Haveria diferenças também entre pervertidos (anti-
gamente classificados como psicopatas) e perversos.
É importante não esquecer o aspecto destrutivo destas relações,
agrega. Os viciados seriam pervertidos e não perversos, os perverti-
dos ideológicos submetidos a um líder também. Minorias de fanáticos
tendem a atos pervertidos porque têm a idealização radicalizada como
ideal de ego. Os atos contra a ética, a delinqüência, etc., seriam tam-
bém pervertidos.

" lbid., p. 13.


"" lbid., p. 13.
Gradeia Haydée Barbero 81

Acho este um típico exemplo de um psicanalista atual, lacaniano


e aparentemente sem preconceitos, mas que acaba confundindo e
embaralhando o campo, de várias maneiras, e acaba equiparando a
perversão à homossexualidade, o que parece uma idéia propriamente
justificada por uma ideologia, plena de fantasias que, pelo menos a
mim, parecem muito estranhas: "( ... ) a perfúrarüo, tão caracterís-
tica nos homicídios de homossexuais, (... ) a procura paranóica
de uma vagina que niio existe e que cruelmente se acaba fabri-
cando", etc.
Este é um exemplo da mistura de elementos descritivos, ideoló-
gicos, clínicos e teóricos com que este campo se enfrenta e não acla-
ra nem resolve nada completamente, já que coloca em um mesmo
nível mulheres, poetas e assassinos, contradizendo-se e voltando a
identificar homossexualidade e perversão, sem utilizar os critérios que
ele mesmo propõe, se bem que um pouco desordenadamente. Vere-
mos que este caso não é uma exceção, pelo contrário, representa
uma perspectiva lacaniana atual derivada talvez da retorcida comple-
xidade própria do terreno que estamos abordando e de uma idéia
prévia de que todos os homossexuais entrariam na categoria de per-
versos, sem mais necessidade de explicações.
O segundo artigo que comentaremos brevemente representa um
exemplo de como podem ser utilizados os conceitos psicanalíticos
kleinianos para defender a hipótese de que os sujeitos homossexuais
"alucinam o sexo do parceiro" (o que, de alguma forma, identifica a
homossexualidade com sintomas de tipo psicótico). Assim, não have-
ria, segundo este ponto de vista, propriamente uma homossexualida-
de. Ryad Simon, psicanalista brasileiro, apresenta uma posição mais
clara que a anterior mas igualmente ideológica, segundo meu ponto
de vista. Ele propõe que a posição feminina do menino e a posição
masculina da menina caracterizariam qualquer forma latente ou ma-
nifesta da homossexualidade, inerentes ao desenvolvimento, porque
cmTespondem às fases do Édipo invertido. A partir da afirmação de
que a identidade sexual da pessoa é determinada pelo sexo real (?)
do objeto desejado, baseando-se nos conceitos de Melanie Klein, chega
82 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

à conclusão de que no par homossexual resultaria óbvio, segundo


ele, que ambos parceiros alucinam a identidade anatômica do sexo
oposto, pelo que psicologicamente não existiria homossexualidade, o
que é uma conclusão um tanto estranha se pensarmos, entre outras
coisas, nas comunidades que se autodenominam homossexuais por-
que assim se sentem (psicologicamente então). Também postula que
haveria um aspecto destrutivo sempre presente nestas relações, idéia
básica dos psicanalistas de fa]a inglesa que parece corresponder com
muitas manifestações fenoménicas (da perversão, não das pessoas
homossexuais). A inversão sexual implicaria, segundo Simon, des-
vio e detenção da evolução da personalidade. Nisto coincide com
Freud. Mas sua conclusão é outra: o artigo defende a idéia de que
esta orientação da sexualidade e dos afetos interferiria no desempe-
nho de um psicanalista de maneira negativa, pela falsificação da
identidade e seu desenvolvimento evolutivo precário.
Não comentarei mais sobre os diferentes aspectos que o texto
desenvolve já que vão todos na mesma direção: homossexualidade é
doença, e muito grave, e mesmo que fale de inversão sexual e desvio
e não de perversão, parece utilizar estes termos como sinônimos.
Elisabeth Roudinesco, em uma entrevista realizada por François
Pommier, reproduzida nessa mesma publicação 89 , referindo-se ao tra-
tamento dado pela escola inglesa aos homossexuais, diz assim:

"Quanto à escola inglesa, a que foi de inspiraçiio kleiniana ou


anna~freudiana, sua atitude em relação aos homossexuais foi
terrível. Entre os kleinianos, a homossexualidade foi assimilada,
como acabo de assinalar, a uma perturbação esquizóide, a um
'meio' de fazer face à paranóia e, portanto, de qualquer forma, a
uma perversiio de tipo sádico ou masoquista. No limite, a
homossexualidade não existe para os kleinianos. Ela é uma
variante de um estado psicótico mortífero e destrutivo.". 90

89 Roudinesco, E. Entrevista ln: Pulsional. Revista de Psicanálise, nº 161, pp. 40-63.

(Antiga revista Pulsionul. Boletim de Novidades, que mudou de nome.)


• 0 lbid., p. 48.
( iraciela Haydée Barbero 83

Uma outra contribuição91 , que examinaremos resumidamente,


L' cujo autor é o psicanalista brasileiro Geraldino Alves Ferreira, par-

le da afirmação explícita de que homossexualidade não é sinônimo de


perversão, mas quando nos apresenta um exemplo, o caso da "jovem
homossexual", da clínica freudiana, chega à conclusão de que esta
jovem seria uma perversa, não por ser homossexual, mas por ter
desafiado o pai e o analista. Penso que este diagnóstico é apressado:
''desafiante, transgressivo, manipula<lor, mentiroso, ambivalente ... ",
são adjetivos qualificativos e não bastam por si mesmos para fazer
um diagnóstico clínico qualquer. Eles se prestam a afirmações ideoló-
gicas, mas, apesar disso, deixam-nos um pouco perplexos perante
este difícil quadro, que parece escapar permanentemente de nossas
categorias científicas. Mesmo considerando que um diagnóstico es-
trutural se faz cm situação de transferência, como transmitir uma
experiência se os conceitos ou modelos teóricos parecem insuficien-
tes e escorregadiços e se pensarmos que a perversão é o limite da
análise, como alguns autores, que afirmam justamente que a perver-
são de um sujeito é o limite da intervenção possível de um analista?
O autor deste texto, cujo título, "Perversão ou Perversões", apon-
ta para a diferença entre uma estrutura psíquica e uma listagem des-
critiva, começa afirmando uma idéia com a qual coincido: homosse-
xualidade não pode ser, por si só, uma estrutura clínica.
Lembra-nos de qul! o uso de "perversões", no plural, teria surgi-
do na sexologia, designando uma série de práticas sexuais desviantes
com relação à norma social ou moral, em um sentido pejorativo ou
até positivamente valorizadas. A homossexualidade, diz, nos manuais
de psiquiatria, ficava ao lado do voyerismo, de mutilações sexuais,
pedofilia, necrofilia, coprofilia, exibicionismo, etc. Para Freud, Alves
recorda, a neurose é o negativo da perversão. Entendia com isso que
tudo o que o neurótico recalca é justamente onde o perverso acentua
o caráter polimorfo, bárbaro e pulsional de uma sexualidade infantil

''' Alves Ferreira Neto, Geraldino. "Perversão ou Perversões". ln: Espaços da Clínica,
vol. IV, nº 6, São Paulo, julho de 1999.
84 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

em estado bruto que não respeita nem a interdição do incesto, nem o


recalque, nem a sublimação.
Também a palavra "perversão" fora utilizada por Freud como
desvio em relação a uma norma, sem intenção valorativa. O conceito
de perversão propriamente dito, neste autor, pensa Alves, surgiu de-
pois do desenvolvimento da teoria das pulsões como desvios do ins-
tinto, quando se define como uma postura perante a castração e a lei.
Fazendo uma breve síntese do percurso freudiano, o autor afir-
ma que em 1905 (Três Ensaios92 ), Freud considera realmente que
nenhuma prática sexual é intrinsecamente perversa, somente o seria
se excluísse outras. O importante, então, é a limitação, mas aí tam-
bém a heterossexualidade seria limitante. Em 1915 o recém-criado
conceito de clivagem do ego ajudou-o a definir melhor a perversão
como um certo paradigma na organização do ego, diz. De 1923 a
1927, esteve ativamente à procura de um mecanismo que desse con-
ta da perversão e da psicose. Surge o conceito de Verleugnung, ou
desmentido, que desenvolve em relação ao fetichismo e à psicose.
Na neurose recalca-se a pulsão; na psicose, rejeita-se a realidade; na
perversão, uma percepção é recusada. Mas estas considerações
freudianas não foram suficientes para que o problema parasse de
suscitar questões.
Entre 1930 e 1960, seus discípulos teriam voltado a colocar a
homossexualidade no âmbito da patologia, segundo a visão deste au-
tor, que coincide com outras. Já em 1970, com outra perspectiva,
Lacan teria se referido à perversão como uma versão do pai (pere-
version, em francês, equivale a pai-versão ou versão do pai) na qual
marca-se que a função paterna é assumida por um pai sexualizado.
Na perversão, continua Alves, haveria sempre um jogo de tapea-
ção, um falso pacto, um instrumento e o saber sobre o uso deste
instrumento. Aqui, ele adiciona algumas idéias novas. Ele diz que, na
perversão, o sujeito:

92 Freud, S. (1905). Tres ensayos de teoria sexual. ln: op. cit., vol. VII, pp. 109-224.
Gradeia Haydée Barbero 85

"(... ) finge utilizar o simbólico dentro dos códigos convencionais


da linguagem, mas introduz um sentido todo seu, criwzdo uma
ambigüidade da qual vai se beneficiar, em detrimento do outro,
com ou sem seu consentimento. A perversiio, assim, é um fenômeno
de linguagem. O principal é que o mal entendido a que dâ lugar o
próprio exercício da linguagem é substituído por 11111 mal-
intencionado, um equívoco provocado". 93

Seria recomendável, creio, continuar a aprofundar a pesquisa


(teórica e clínica) nesse sentido.
Alves cita também as propostas de Joyce McDougall neste cam-
po, que representam uma forma possível de solucionar as classifica-
ções nosológicas anteriores, tão carregadas de preconceitos morais.
Ela teria proposto novas categorias, as "neo-sexualidades" e a "se-
xualidade aditiva", sob o ponto de vista de "autocura", mas suas ca-
tegorias não recobrem totalmente os fenômenos dos quais estou fa-
lando. Refere-se a certas manifestações específicas de sexualidades
ritualísticas, em personalidades compulsivas e narcisistas, se bem que
diferencia claramente a homossexualidade destas manifesta~:ões "neo-
sexuais".
Joyce McDougall tem uma concepção própria e baseada em
fatos clínicos, bastante interessante, a meu ver, do que seriam as neo-
sexualidades, mas está tratando justamente de patologia e não de
formas de expressão do erotismo. Em uma obra de 1997, As múlti-
plas.faces de Eros94 , ela desenvolve outras considerações sobre estes
fenômenos, diferenciando homossexualidades e sexualidades
"desviantes" nas múltiplas formas em que elas se apresentam, salien-
tando que essas sexualidades "desviantes" (do que na sociedade se-
ria comum, diz), como aquelas ligadas a rituais, as fetichistas,
autoeróticas, voyeuristas, etc., são, em geral, heterossexuais, e, às
vezes, a única forma de se conseguir a sobrevivência psíquica. Por

93 Alves F. N., Geraldino. Op. Cit.

,,., McDougall, J. As múltiplas júces de F,ro.1·. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
86 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

outro lado, destaca o fato sócio-político de que a psicanálise, mesmo


não julgando os indivíduos, não deveria nem incentivar teoricamente
os "desvios", nem ir contra os mesmos, já que sem desvios nunca
haveria uma mudança social. Portanto tenta estabelecer diferencia-
ções significativas entre os sujeitos segundo a forma em que eles
vivem suas sexualidades e afirma que:

"Talvez, em última análise, só os relacionamentos possam ser


adequadamente intitulados perversos... ". 95

Este pensamento me parece valioso, mesmo considerando que


num relacionamento amoroso/erótico onde um sujeito, segundo a últi-
ma perspectiva lacaniana, estaria sempre tentando "positivar" a falta
do outro. O importante seria diferenciar uma fantasia lúdica de uma
imposição angustiante. Na patologia perversa há uma instrumentali-
zação da relação.
Vontando ao artigo de Alves, ele salienta que o DSM-IV-TM96 ,
depois de J995, passou a falar de parafilias, apagando de sua
categorização os conceitos ou noções tão controvertidas de homos-
sexualidade e perversão, neste mesmo sentido de não determinar um
juízo de valor, mas não se tornou um termo muito aceito.
O autor termina com um comentário sugestivo: a homossexuali-
dade, do mesrno modo que a heterossexualidade ou qualquer outra
prática sexual exclusiva, poderia se entender como um sintoma,
localizável em qualquer uma das estruturas clínicas, se limitante e
pouco flexível, mas não pode ser confundida por si mesma com uma
perversão ou anormalidade.
O chamativo é que, mesmo havendo muitos psicanalistas que
aceitariam esta conclusão, os termos homossexualidade e perversão
continuam a ser utilizados na clínica psicanalítica de forma interliga-
da. Diversos autores acham formas de "demonstrar'' quão perversos

95 McDougall, J. Apud Geraldino Alves F. N., /11: op.c it.


% Ver referências mais adiante neste mesmo capítulo.
<,raciela Haydée Barbero 87

ou anormais seriam certos sujeitos com condutas homossexuais que


l~xemplificam com casos da sua clínica ou do mundo social. Por quê?
Será que a própria teoria psicanalítica não permite desfazer este nó?
Ou há uma limitação cultural que nos impede de ver as diferentes
riguras do erotismo como simples variações no campo sexual?
Janine Chasseguet-Smirgel, uma autora que tem um trabalho
extenso sobre este tema, sublinha, sobretudo, o caráter de atração e
fascínio, ao mesmo tempo de repulsão e rejeição, que a perversão
exerceu e exerce entre homens, autores e sociedade.
Resumiremos algumas de suas muitas idéias a respeito, segundo
aparecem em um livro publicado em nosso meio em 1991, denominado
Ética e estética da perversüo97 , no qual tem a originalidade de pensar
o possível desenvolvimento das perversões fora do campo exclusiva-
menlc clínico. Ela se propõe, segundo suas próprias palavras:

" ... abrir as portas do universo perverso, feito de tecido lacunar -


lacunar mas mutável-, de magia e crueldade. Desmontar e depois
reagrupar os fragmentos deste mundo de horror e encantamento,
buscar a especificidade da perda de realidade que ele promete,
l'ercur a ética e a estétirn que lhe são prâprias, tal é o prop<Ísito
essencial de nossa empresa. "98•

Nos primeiros capítulos deste livro que trabalha o tema de for-


ma minuciosa, a autora faz uma revisão do conceito de perversão em
Freud e de sua evolução, que ela considera que pode ser diferenciada
em três momentos, que correspondem: 1) à afirmação da neurose
como negativo da perversão; 2) à descrição do complexo de Édipo
como não sendo unicamente o complexo nuclear das neuroses, senão
também das perversões; e 3) ao estudo dos mecanismos específicos
da perversão.

"7 Chasseguct-Smirgel, J. Ética e Estética da Perversiio. Porto Alegre, Artes Médicas,


1991.
•>& lbid., p. 18.
88 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Com relação ao primeiro momento, o mais importante seria, para


esta autora, o lugar detenninante dado por Freud às perversões, tanto
que os Três Ensaios99 começam por um capítulo: "As aberrações
sexuais", dedicado às mesmas. Na época em que Freud começa seu
trabalho psicanalítico, o mundo médico estava dedicado ao estudo
das ditas "perversões", sendo esta a primeira vez que se fazia uma
ligação tão importante entre patologia mental e sexualidade. Anterior-
mente, havia um tabu quanto ao próprio estudo da sexualidade huma-
na. Segundo Chasseguet-Smirgel Freud teria realizado uma generali-
zação desta tese, uma extensão da perversão para a sexualidade hu-
mana total, quer ela se manifeste na criança, no perverso ou no neu-
rótico. Neste caso, Freud estaria considerando que a sexualidade seria
por si mesma perversa, já que parte, na criança, de zonas erógenas
independentes e é levada por pulsões diversas. Mais tarde estabele-
cer-se-iam os diques que adequariam a sexualidade à sociabilidade
nascente por meio de sentimentos negativos e recalcamentos. Freud
está falando, simplesmente, sobre a sexualidade humana.
A autora pensa que as fronteiras entre sexualidade e perversão
deveriam delimit,.u--se melhor. Assim, diz que a formação dos sinto-
mas (neuróticos) é o resultado de um trabalho psíquico rico e compli-
cado que parece não ser levado em conta quando se fala que a neu-
rose é o negativo da perversão. Falar da universalidade das fantasias
perversas na perversão, na neurose e na normalidade, não permitiria
ver as diferenças entre elas. A disposição seria sempre perversa, e
tornar-se-ia normal por intermédio de inibições ao longo do desenvol-
vimento. Corresponderiam, assim, sexualidade infantil e perversa. Mas,
desta maneira, perderia-se a complexidade e particularidade de uma
organização perversa patológica específica.
Em um segundo momento, a partir do artigo "Uma criança é
espancada" 100, introduz mais claramente o complexo de Édipo, neste
campo Freud teria dado um passo além. As fantasias de fustigação
99Freud, S. (1905). ln: AE. (citado na nota 172)
'ºº Freud, S.(19 l 9). Pegan a um niíio. Co11tribució11 al conocimiellto de la génesis de las
perversiones sexua/es. Op. Cit., vol. XVU, pp. 173-200.
Gradeia Haydée Barbero 89

seriam marcas deixadas depois da superação do complexo, cicatrizes


de um processo concluído. Mas, segundo Chasseguet-Smirgel, falta
neste estudo, que trata das fantasias de fustigação em meninas e
meninos, uma especificação de qual seria a diferença apresentada
entre o complexo de Édipo de neuróticos e perversos, especialmente
em se falando de fantasias ou fantasmas. Ela acredita que o estudo
de caso que Freud apresenta em "A psicogênese de um caso de
homossexualidade feminina" 1º1 não ajuda a resolver este ponto espe-
cífico e que no "Homem dos Lobos"w2 , a perversão (a homossexua-
lidade'?) apareceria mais claramente como uma defesa, uma barrei-
ra contra a psicose.
Por isso a especificidade deste quadro clínico surgiria só em um
terceiro momento da obra do mestre, quando estuda alguns mecanis-
mos diferenciais que mostram como há realmente no perverso um modo
específico de relação com a realidade, indispensável para distinguir um
ou outro quadro. É no Fetichismo 103 que isto vai ficar claro quando, em
uma dimensão metapsicológica, fale de "recusa da realidade" e afirme
que, neste caso, o fetiche adquire uma forma fixa e substitui a finalida-
de sexual normal ou é o único objeto da sexualidade. O fetiche aparece
quando há somente um recalque parcial das pulsões, diz, uma pmte do
complexo edípico (e de castração) é recalcada, a outra idealizada na
construção de um objeto-fetiche (um ídolo).
No que se segue, a autora parece usar homossexualidade e per-
versão como sinônimos. No estudo sobre Leonardo 104, apareceria
marcada a importância teórica do complexo de castração, as rela-
ções da perversão (por que Leonardo seria perverso?, onde estão a
recusa, a clivagem do eu, o fetiche?; até onde sabemos, ele somente
apresentara tendências homossexuais) com a sublimação, o sadismo,

"li Freud, S. ( 1920). Op. Cit.


"" heud, S. (1914; 1918). o,, la historia de uma 11eurosis i11fi111til. /11: AE, vol. XXVII,
pp. 1-111.
,oJ Freud, S.(1927). Fetichismo. ln: Op. Cit., vol. XXI, pp. 141-152.
'º4 Freud, S. (19!0). Um recuerdo injamil de Leonardo da Vinci. ln: AE, vol. XI, pp. 53-
128.
90 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

o narcisismo e a importância da constelação familiar. Chasseguet-


Smirgel confirmará estas hipóteses, segundo seu próprio ponto de
vista, que sublinha a importância destes fatores, como fixação em
uma etapa anal-coprofílica, um momento ainda de indiferenciação
sexual, em que não há mãe castrada. Segundo esta teoria, nesta eta-
pa as crianças consideram que todos os seres humanos são iguais, o
que significaria que pensam que todos têm pênis. Esta é uma forma
particular de entender a recusa como um mecanismo correspondente
ao erotismo anal que não é desenvolvida explicitamente por Freud.
Em 1924, em Neurose e Psicose 105 , o estudo comparativo das
mesmas leva-o a desenvolver o mecanismo de clivagem do eu e à
recusa, associada ao mesmo. A existência da perversão corresponderia,
neste caso, a uma loucura parcial. O ego pode despedaçar-se, criar
uma fratura, pam não aceitar uma verdade insuportável, psicotizante.
Estes mecanismos, que correspondem, segundo Freud, a uma mani-
p1tlat'ão astuta e cheia de truques da realidade, teriam deixado à
vista uma entidade clínica específica, diferente tanto da neurose como
da psicose, que é o que esta autora está procurando.
Chasseguet-Smirgel continua nesta linha de trabalho que me
parece interessante mas, nela, homossexualidade e perversão são
usados de forma intercambiável. Certo que às vezes o próprio Freud
permite esta confusão, mas ele mesmo encontrava obstáculos à ex-
pressão inquestionada desta afirmação, como veremos mais
detalhadamente no próximo capítulo.
Por outra parte, Chasseguet-Smirgel e quase todos os autores
que estudei continuam a afirmar a relação da perversão com a subli-.
mação. McDougall afirma que Freud define ambos os conceitos da
mesma maneira em 1930 (Mal-estar na civilização 106 ), por serem
ambos processos ligados à criação. Haveria um contraponto perma-
nente de aceitação e transgressão das normas sociais e sexuais na
perversão, e uma invenção de novas formas de expressão humanas,

'°' Freud, S. (1913; 1924). Neuro.1·is y Psicosis. /11: op. cit., vol. XIX, pp. 151-160.
1"' Freud, S. (1929; 1930). El ma/estar en la cultura. ln: op. cit., vol. XXI, pp. 57-140.
<.raciela Haydée Barbero 91

mas eu acredito que este ponto continua a favorecer uma confusão.


Provavelmente as montagens perversas sejam realmente criativas e
astutas, mas se a perversão é um quadro que beira à psicose, se os
mecanismos utilizados por ela são primários e massivos, como afir-
mar sua colaboração ao desenvolvimento da civilização? Será que
aqui estaríamos falando de formas alternativas da sexualidade ou de
perversão como uma estrutura baseada na denegação e clivagem do
cu, beirando à psicose, etc.? De novo estes dois aspectos não estão
sendo diferenciados claramente.
Chasseguet-Smirgel sublinha a impo1tância da idealização mais
ou menos generalizada nas perversões, que indicaria um modo parti-
cular uc recalque com idealização dos valores anais de indiferenciação
e perseguição. Haveria uma projeção do ideal do ego na pré-
genitalidade, na analidade especialmente, mantida de forma compul-
siva na recusa dos poderes de interdição paternos. São estes objetos
anais idealizados os que, segundo a autora, quando perdem sua con-
formidade com o ego, tornam-se persecutórios. A realidade é
falsificada, a impossibilidade da criança satisfazer sua genitora, abolida.
Diferentemente do psicôtico, o perverso não cria um mundo autocrá-
tico, delirante,já que utiliza elementos que todos possuem (nardsismo,
analidade, idealização). Assim não haveria alucinação nem ruptura
total com a realidade.
Daí ela parte para uma extensão destas reflexões às manifesta-
ções sócio-culturais. Uma maneira bastante especial de observar as
manifestações culturais. A autora pensa que os efeitos perversos se
estendem a diferentes domínios: às leis, arte, religião e literatura e o
exemplifica com as profecias de Leonardo e com a obra de Sade.
Haveria sempre no ser humano um desejo de transgredir, de cometer
o incesto, diz. As grandes convulsões sociais ver-se-iam precedidas
por explosões perversas (como no nazismo, por exemplo). Há um
frágil equilíbrio que se quebra de vez em quando porque o ser huma-
no não se conforma em ter de esperar pela satisfação de seu desejo,
renunciar a seu objeto, ceder ante a civilização. Tudo isto provocaria
ódio. Mas, apesar de muitos outros autores trabalharem hipóteses
92 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

similares em relação ao ódio e ao negativo que o processo civilizatório


deixa como seqüela - tema que não considerarei no presente capítulo
-, creio que esta idéia nos leva novamente a confundir a expressão
de pulsões e afetos homossexuais com uma doença, seja ela fasci-
nante ou repulsiva, e em especial a identificar transgressão e perver-
são. Creio que este trabalho carece de alguns embasamentos mais
consistentes, como, por exemplo, explicitar, na prática, qual é o objeto
a que o homem deve renunciar. Dizer que se trata do objeto incestuo-
so matemo é insuficiente. Devemos esperar a teoria de Lacan para
especificações mais sofisticadas que ajudem a teorizar estas ques-
tões de uma forma menos descritiva.
Em um trabalho interessante, se bem que breve pelos objetivos
a que se propunha - a apresentação em um debate no espaço da
livraria Pulsional - e que o autor denominou "Como trabalhar com a
pcrvcrsão" 1m, Sérgio Telles, psicanalista paulista contemporâneo, parte
também da necessidade de diferenciar perversão e homossexualida-
de. Irei comentá-lo especialmente por este motivo.
Ele procura demonstrar, a partir de diferentes pontos de vista
(citando autores ingleses, franceses e americanos), a existência de
uma estrutura perversa e considera suas manifestações fenomenoló-
gicas de forma crítica, concluindo brevemente que todos os enfoques
parecem apontar para uma proximidade da perversão com a psicose,
pela sua indiscriminação entre o sujeito e o objeto que ficariam fundi-
dos e sem autonomia, pelo forte teor narcísico que apresenta, pelos
sintomas prazerosos e ego-sintônicos e pela angústia e predominân-
cia de impulsos agressivos que levariam a dizer que a perversão seria
o outro lado da psicose e não o positivo da neurose, como Freud
afirmou. A perversão não deveria ser considerada uma patologia da
pulsão e sim uma defesa, diz, que funciona por meio dos mecanismos
de recusa da realidade, cisão do ego, agressão, regressão e controle
sádico do objeto. Uma defesa contra a angústia de castração deriva-

107 'felles, S. Este trabalho foi publicado na coluna do autor no Psychiatry on tine: Brazil

(http://www.polbr.med.br) e foi encaminhado à autora por meio de e-mail.


Graciela Haydée Barbero 93

da dos desejos incestuosos infantis. Desta maneira, a perversão seria


considerada uma pato]ogia da re1ação, onde o outro é ignorado ou
tratado narcisicamente, assim como Joyce McDougall o caracteriza-
ra. Suas afirmações coincidem com outras que apresentamos e, como
elas, também não fica muito claro o estatuto do objeto.
Perde um pouco em discriminação quando nos recorda que Freud
teria mostrado que a perversão permeia toda a vida sexual (qual per-
versão?) e quando afirma que o mecanismo da recusa também permeia
toda a vida psíquica. Precisaríamos, então, estudar em profundidade
este mecanismo em suas formas normais e patológicas. Isto nos pa-
rece realmente necessário.
Sérgio Telles faz referência às considerações de Horacio Etchegoyen,
psicanalista argentino cujo trabalho sobre a técnica psicanalítica 108 tra-
ta, entre outras coisas, da especificidade e das dificuldades da trans-
ferência analítica com um sujeito que apresente estas características
"perversas". Não entrarei em detalhes sobre este importantíssimo
aspecto já que o mesmo fugiria das considerações gerais que estamos
desenvolvendo, mas dentro da clínica este é um capítulo fundamental
e parece ser a chave para entender de onde surgiram as descrições
de todos os autores que estivemos trabalhando até agora.
Em síntese, tratar-se-ia de um quadro bastante grave, como
podemos ler nas suas afirmações, que coincidiriam com quase todos
os autores consultados:

"Neles constatei uma clara feição compulsiva, com intenso


.wfrimento psíquico... submis.w7o à lei implacável e desumana do
gozar, de um estar preso na cena primária, em uma ciranda de ciúmes
e traições enlouquecedores, levando-o.\· a assumirem
comportamentos de altíssimo risco; ... a importância do trauma, em
alguns casos específicos. (... ) O aspecto patológico da perversão,
sua aproximação com a psicose e estados narcísicos... ". w 9

'"" Etchegoyen, R. H. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre, Artes Médi-


cas, 1987.
'"'' Telles, S. Op. Cit.
94 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Surpreendeu-me, porém, que apesar de ter sido tão claro, o au-


tor finalize o texto se perguntando se a ênfase nestes aspectos não
decorreria de um preconceito nosso, e se:

"... não estaríamos esquecendo a grande quantidade de perversos


que foram e .1·üo grandes artistas... ". 110

Será que Tel1es não está confundindo aqui, novamente, perver-


são e homossexualidade? Como poderia saber, senão da perversão
possível desses artistas'? Esta afirmação parece referir-se ao fato de
que há realmente uma grande quantidade de artistas conhecidamente
homossexuais. Ou talvez, a já mencionada ligação entre perversão e
processos criativos, mas ficamos na dúvida já que não o esclarece,
pelo menos aqui.
Éric Laurent, psicanalista da escola lacaniana, em uma palestra
de 1988, que foi puhlicada posteriormente sob o nome de O uso per-
Vl'rso da .f,mtasia 111 , parte da consideração de que nos Estados
Unidos a comunidade gay conseguiu por meios políticos e negocia-
ções que as categorias de homossexualidade e masoquismo fossem
retiradas do manual de diagnóstico estatístico DSM III e III-R 112 •
Estas mudanças seriam possíveis, segundo ele, por serem classifica-
ções baseadas em representações a-teóricas e portanto mutáveis.
Afirma também, mais adiante, a atualidade no mal-estar na civiliza-
ção do problema suscitado pela perversão (que poderia confundir-se
com um novo estilo de vida, parece).

"Nüo se trata, é claro, de mascarar a perversão sob as cores


Mraciosas do 'alternative life-style' (estilo de vida alternativo). Se
há em toda perversc7o (pere-versc7o) uma arte de gozar, é preciso

110 "l'elles, S. Op. Cit.


111 Laurent, E. "O uso perverso da fantasia". ln: Versr'ies da clínica psicanalítica. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, Campo freudiano no Brasil, 1995, pp. 193-212.
111 Idem nota 18.
Gradeia Haydée Barbero 95

agüentar firme, existe realmente a categoria da perversüo e do


perverso. " 113

Perversão que, para ele, em suas palavras, devemos sustentar


sem aceitar o utilitarismo da anornia ou liberalismo co11temporâ-
11eos. No perverso há uma arte de gozar, afirma, e é bom lembrar de
que o neurótico não está sozinho. Parece-me que suas afirmações
são um pouco confusas ideologicamente. A atualidade da perversão
no campo social a que ele faz referência é o mesmo que a homosse-
xualidade e o masoquismo que a comunidade gay conseguiram reti-
rar e.los manuais de diagnóstico médico? A partir de que critérios os
chama de perversos? Da primeira concepção "darwinista" freudiana
que ele mesmo cita? Das últimas considerações lacanianas sobre a
páe-version (pai-versão)?
Mais adiante, afirma que a questão da perversão se localiza
propriamente no uso da fantasia. Não é uma questão de impulsão ou
de agressão, de transgressão ou de falta de limites, diz, <levemos
centrar a categoria da perversão na fantasia. Não sabemos, pelo me-
nos neste ponto, o que isto implicaria exatamente. Como veremos, o
próprio Freud se deu conta de que é insuficiente dizer que o perverso
atuaria nas fantasias que o neurótico guarda para si.
Enuncia, a seguir, que haveria três grandes linhas de pesquisa
no texto de Lacan, no que concerne às perversões: a do falo imaginá-
rio (a dependência deste lugar de amor materno), a relação do ho-
mem com as cartas (a escritura, o contrato escrito no sadomaso-
quismo) e aquilo que miicula e distingue pulsão, fantasia e desejo.
Para haver um desejo perverso, deve-se estabelecer primeiro a fan-
tasia, afirma Laurent. A fantasia (ou fantasma), que no neurótico é
privada, oculta, recalcada parcialmente, no perverso é pública, diz,
e necessita ser assim porque precisa da confirmação do outro para
sua própria existência. O perverso nos mostraria a verdade a-moral
do desejo sexual. Assim, o perverso faria um uso "inverso" da fanta-

'" Ibid., p. 212.


96 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

sia com relação ao neurótico. Ele encontra no campo da realidade


um objeto que coincide com sua fantasia, segundo este autor. Mas de
que realidade estaríamos falando? E quem não encontra, no caso de
se tratar da realidade social, o objeto de sua fantasia nela? O que
seria uma fantasia pública? Não fica claro.
Laurent comenta que nos anos 70 houve uma reviravolta em
Lacan com relação a esta questão. Do amor da mãe (o que seria
para ele a identificação com o falo imaginário) a perversão passa a
se definir segundo a referência a um pai. Sendo um "sant-hom/em"
(um synthome nas últimas elaborações lacanianas), a perversão se-
ria uma outra versão do pai, como o são também a neurose e a psico-
se, as três formas de estruturação psíquica que também têm seu lu-
gar de desenvolvimento na cultura, como outros autores destacaram.
Mais adiante falaremos mais sobre este ponto em particular. Mas
posso dizer a partir daqui, que Lacan não articula esta nova forma de
entender a perversão com as anteriores, o que implica, me parece,
que esta questão não está ainda totalmente resolvida.
Finalmente, citarei um texto de Enrique Torres, autor argentino
de escola lacaniana, chamado (parafraseando o conhecido drama de
Tenessc Williams): "Uma perversão chamada desejo" 114, no qual
sublinha, com este título insinuante, que o caráter transgressor da
conduta perversa é atribuível ao desejo mesmo. Ele afirma que há
sempre, no fundo, um ideal de plenitude fálica, apesar da castração
ser necessária para um funcionamento "normal". Os neuróticos-
normais confiariam nesta figura de fundo, paradigma da completude,
que o perverso, por falta de outros recursos, precisaria confirmar
cotidianamente, afastando qualquer dúvida, em um ato de
presentificação do qual obtém seu único prazer possível, pois sem
isto desaparece seu próprio lugar de sujeito desejante.
Ele está pressupondo aqui a identidade entre normalidade e neu-
rose e creio que isto não é necessário. Por outra parte, a idéia de que

114 Torres, E. •·uma perversão chamada desejo". /11: Interpretação: sobre o método da

psicanálise. Organizador: Figueira, S. A. Rio de Janeiro, Imago Editora, I 989.


Gradeia Haydée Barbero 97

o perverso precisaria confirmar cotidianamente um ideal em que o


neurótico confia é interessante mas insuficiente para dar conta do
problema que estamos tratando.
A perversão é definitivamente um fenômeno intrincado, contra-
ditório e paradoxal. A rejeição e o fascínio que parece provocar po-
dem ser melhor analisados no campo social. É isso que o psicanalista
Contardo Calligaris trabalha quando dirige sua pesquisa para a per-
versão como laço social. Assim, ele pmte da ce1teza de que:

"(. ..) para falar de perversiio é preciso limpar o terreno(... ) Niio se


pode diagnosticar a partir de uma lista de .fúu]menos agrupados
a partir de uma reprovação de ordem moral. (... ) o direito
napoleônico cessou de se interessar pela vida privada das pessoas,
portanto devemos estabelecer um.fenômeno a partir da clínica". 115

Esta clínica, como ele a vê, é uma clínica estrutural, pmtanto o


diagnóstico se faria na transferência, ou seja, de acordo com a forma
em que a transferência se amarra. Seria impossível fazer um diag-
nóstico a partir de uma conduta sexual derivada de um objeto parcial,
já que lhe parece óbvio, a pmtir de Freud, que toda sexualidade se
desenvolve em relw;ão a um objeto parcial e que, portanto, não há
amor genital totalizador. O neurótico não deseja saber do objeto de
seu fantasma, que em última instância, é ele mesmo. Coloca-o nas
costas de seu parceiro, diz Calligaris, e se pergunta: o que faria, en-
tão, a especificidade da perversão?
Sua hipótese é a de que o perverso é capaz de reunir em seu
fantasma (aquela fantasia primária que liga o sujeito à posição de obje-
to, quando ocupa imaginariamente o lugar faltante à completude ma-
terna) a posição de objeto e a de sujeito ambas do lado do sujeito. Ele é
o objeto, mas por usurpar o suposto saber do pai, diz Calligaris, ele
mesmo controlaria este objeto, que, portanto, viraria um instrumento

115 Calligaris, C. Perversiio - Um laço .wcial? Conferência realizada em 25/07/1986.

Publicada em texto pela cooperativa cultural Jacques Lacan de Salvador, pp. 9-19.
98 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

para fazer o outro gozar. Daí que, na transferência, ele se apresenta no


registro da cumplicidade (coloca o analista em um dos dois lugares de
seu fantasma) ou do desafio, coloca o analista no lugar do outro (Ou-
tro) que ele próprio saberia fazer gozar. Trata-se do lugar em que o
perverso coloca o analista quando fala, a posição que assume no seu
discurso quando cumplicidade ou desafio são a maneira de falar decisi-
va para o sujeito. Para a posição perversa, esse saber precisa ser sem
falhas, sem descontinuidade, afirma o autor.
Mas o que Calligaris persegue, neste texto, como objeto teórico
não é a estrutura perversa, que diz ser pouco comum, e sim a facili-
dade com que o neurótico se prende em formações perversas. A
formação perversa é o núcleo da vida social do neurótico, diz. Justa-
mente porque no fantasma perverso há dois lugares do lado do sujei-
to. Assim, um casal de neuróticos pode se manter junto em um mes-
mo fantasma. Um representaria o instrumento e o outro o saber. Mas
como é que eles vão fazer para ter o mesmo Outro? O neurótico
sonha em ser perverso; ele se defende de sua posição de objeto e
teme não se defender o bastante, afirma o autor. O problema do
neurótico seria o de referir-se a um pai suposto para fundar urna
defesa. Em uma montagem ou artefato perverso, em que se repar-
tem esses dois lugares, o que representa ao Outro é a própria monta-
gem. Fazer o Outro gozar é a mesma coisa que fazer a montagem
funcionar, o gozo decorre do domínio do gozo do Outro, pelo saber
que se tem. Este tipo de montagem funciona como um "semblant"
de saída da neurose, segundo Calligaris. Daí decorreria que o perver-
so encontra sua fenomenologia no campo do social mais cotidiano, da
sua vida associativa, o que é muito diferente de um "desvio sexual".
Ele diz que a vida não seria possível sem a montagem perversa, para
o neurótico; mas haveria montagens inocentes, que duram um mo-
mento pontual, e outras que vão muito além. A montagem perversa é
o que faz com que as pessoas se associem. Mas logo mais, em uma
relação vivida dentro dos limites da lei, um restitui ao outro sua cas-
tração, por mais que esta posição seja atraente para o neurótico já
que o seu fantasma é solitário: na cama, na vida associativa, cada
Gradeia Haydée Barbero 99

qual se encontra ligado a seu próprio Outro privado ou particular.


Não há relação sexual, como diria Lacan.
Um exemplo de um ponto de vista oposto (porque como muitos
outros autores do campo dos Gay & Lesbian Studies usa o adjetivo
perverso de uma forma afirmativa), é o de Teresa de Laurentis, que
tenta recuperar o aspecto positivo da perversão, sem se preocupar
com a psicopatologia. Em seu livro sobre A prática do amor: desejo
perverso e sexualidade lésbica 11 \ contrariando o sentido dado pe-
los teóricos da psicanálise tradicional, ela sustenta a existência de um
desejo perverso positivo. Patte da afirmação de que a teoria freudiana
sobre a sexualidade, por estar baseada nos componentes aberrantes,
desviacionistas e perversos da pulsão, seria uma teoria negativa da
sexualidade: a da sexualidade como perversão. E produz, realmente,
uma inversão de nossas idéias.
Ela pensa que sendo a neurose "o negativo da perversão", não
existiria em Freud um modelo de normalidade real. Assim, seria a
perversão que teria, para ela, um sentido positivo (em Freud), sem ele
o explicitar. Pensar que a perversão é um modelo positivo, coincide
com a idéia Iacaniana que comentaremos mais adiante, de que a per-
versão é normal. Quer dizer, simplesmente, que sob este ponto de
vista, esse termo alude a formas e figurações variadas da sexualida-
de, não sintomáticas (se bem que o recalque sempre esteja parcial-
mente presente) e desligadas do objetivo da reprodução.
Relendo Freud desta forma, ela procura um modelo desse "de-
sejo perverso" que possa dar conta da representação do lesbianismo
cm textos de ficção, cinema, poesia e teatro, assim como nas
interações e conversações de sua experiência de vida. Fá-lo assim,
apesar de outras 117 feministas terem criticado Freud e considerando
que muitas delas reivindicaram, mesmo assim, sua leitura. Este mo-

116 Laurentis, T. de. The prai·tice uf {ove: Lesbia11 sexuality and perva.w' desire. Indiana,

Indiana Univcrsity Press, 1994. Introdução reproduzida in: Deba!e feminista -


Sexualidad: teoria y prâctica. Ano 6, vol. 11, abril de 1995, pp. 34-45.
117 Costuma-se falar cm feministas apesar de haver também alguns autores feministas

masculinos.
100 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

delo seria importante para as lésbicas, que, segundo ela, se


autodefinem e representam sua identidade a partir do sexual, espe-
cialmente da sua diferença sexual com relação às formas da hete-
rossexualidade dominante. Mas, aclara, sem por isto pretender
reduzir a subjetividade lésbica a suas condutas sexuais, isoladas
dos demais aspectos, qualidades e determinações sociais que com-
põem o ser simbólico de cada um, incluindo categorias como raça,
classe, etc.
Mas o que a psicanálise freudiana poderia oferecer a uma teo-
ria da sexualidade lésbica assim entendida?
Em primeiro lugar, ela diz, na perspectiva da teoria freudiana da
sexualidade como perversão, o lesbianismo já não seria explicado
pelo conceito de "complexo de masculinidade", o que pareceria im-
portante à autora para definir a sexualidade feminina de forma autô-
noma em relação ao homem. O complexo, por outra parte, não daria
conta da lésbica não masculinizada, esta figura tão desconcertante
para sexólogos e psicanalistas e que Havelock Ellis denominou: a
"mulher mulheril", o "invertido feminino", comenta. Em segundo lu-
gar, se entendermos com Freud a perversão fora dos marcos mora-
listas, religiosos ou médicos de referência como um desvio da pulsão
do caminho que conduz à reprodução, neste caso a homossexualida-
de seria nada mais que uma outra senda empreendida pela pulsão na
sua eleição ou catexis objetal.
Esta busca de um modelo formal, que poderia estender-se à
homossexualidade masculina ou heterossexualidades não ligadas ao
reprodutivo, não pretende ser universal de forma absoluta, diz. No
seu trabalho procura embasamento no conceito laplanchiano 118 de
fantasia e discute os textos freudianos relacionados ao assunto. Ela
relaciona fantasias públicas e privadas e comenta a dificuldade de
representar as fantasias lésbicas com urna linguagem que é tradicional-
mente heterossexual. A fantasia que acompanha a lésbica, relaciona-

118 Tomado de Jean Laplanche, psicanalista francês, originariamente do campo lacaniano,

que tem algumas teorizações próprias que o separaram deste autor.


Gradeia Haydée Barbero 101

da à relação primeira com a figura materna, seria comum para todas


as mulheres e formaria parte de um padrão fluido de identificações e
relações de objeto, diz a autora, não de um continuum.
Mais adiante, analisa uma fantasia de despossessão corporal
em dois textos, uma fantasia de castração que seria comum nas auto-
representações lésbicas, ligadas a uma perda original do ser.
Não posso, neste momento, desenvolver todos os detalhes e
argumentos elaborados por esta autora na análise dos textos men-
cionados, mas vale assinalar que ela cria um modelo de desejo que
pretende ir, segundo ela afirma, "além do complexo de Édipo" e,
de alguma maneira, resolvê-lo, que é uma idéia possível de ser
pensada.
A autora se estende sobre diversas possibilidades, utilizando
conceitos de Foucault e outros autores, ressaltando a possibilidade de
desconstrução e reconstrução permanente das fantasias (sociais e
secundárias), citando o exemplo generalizado das mulheres que sem-
pre se sentiram lésbicas e aquelas outras, bastante numerosas, que
antes de escolher ou se apaixonar por uma mulher viveram relações
heterossexuais com diferentes graus de satisfação.
Fica a tarefa de demonstrar se haveria realmente esta possibili-
dade de se pensar em uma outra forma de resolução do complexo
edípico nas mulheres lésbicas (um complexo de masculinidade desig-
nado de outra forma), tão positiva e normal como pode ser a materni-
dade, por exemplo. E, também, quais seriam os alcances desta possi-
bilidade de reconstrução das fantasias que ela postula.
Para terminar, cito novamente a entrevista de Elisabeth
Roudinesco, reali~ada por F. Pommier, na qual relata que Lacan, di-
ferentemente do que acontecera na Instituição Psicanalítica Interna-
cional, nunca rejeitou homossexuais na sua Escola, nem no seu divã,
e nem pretendera "curá-los" disso. Segundo esta autora, Lacan ten-
dia a ver qualquer forma de amor como perversa e é neste sentido
que ele vê os homossexuais como perversos e não como resultado de
uma orientação sexual. Seria, afirma, uma posição similar às de
Foucault e Derrida que valorizam as perversões como forma de con-
102 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

testar radicalmente a ordem sexual burguesa, caracterizada pela fa-


mília edipiana, herdeira de Freud. Porém, diz, diferentemente de
Foucault, Lacan fez da perversão uma estrutura e do homossexual "sua
mais pura encarnação (. .. ) um perverso sublime da civilização''. 119
Segundo Roudinesco, Lacan teria rejeitado as tentativas atuais
de normalização e legalização dos homossexuais que assim escapa-
riam do lugar em que os colocava de perversos sublimes.
As afirmações desta autora me parecem um tanto contraditórias.
Não concordo com a afirmação de que Lacan entendesse toda forma
de amor como perversa, simplesmente. Mas sim me pareceu interes-
sante o paralelismo que Roudinesco estabelece entre as idéias de
Lacan e as de Foucault e Derrida. Concordaria ele também com
Theresa de Laurentis?
Creio que deveríamos entender melhor o sentido e evolução dos
conceitos lacanianos, algo que vai levar ainda um tempo, mas, a iden-
tificação da homossexualidade com a perversão, por mais sublime
que se considere, não a afirma explicitamente como positiva e não
esclarece as confusões em que estamos mergulhados neste campo.

Sidonie Csillag, "a jovem homossexual"

Preocupa-me, como mostrava, a falta de clareza ou de firmeza


que existe em muitos psiquiatras, psicólogos e também psicanalistas
quando se trata de afirmar, a partir de suas respectivas ciências, que as
relações homoeróticas poderiam chegar a ser uma via de satisfação e
de procura de prazer, tanto como um apoio para o estabelecimento de
laços sociais, tão saudáveis quanto as relações heterossexuais.
Os próprios sujeitos desta experiência confundem-se pensando,
às vezes, que seus desejos "diferentes" os transformariam em seres
paiticulares, diferentes do resto dos mortais. Mas a direção dos de-

119 Op. Cit., p. 48.


Gradeia Haydée Barbero 103

sejos para um alvo "hetero" ou "homo" sexual não é suficiente para


definir a qualidade ética de uma pessoa ou de um relacionamento e
nem o grau de saúde ou patologia (nem o tipo de patologia) que o
caracteriza. O mais importante, creio, no processo de conquista da
tolerância e aceitação social das diferentes formas de relacionamen-
to amoroso, é o aumento atual da visibilidade das mesmas, que está
permitindo o aparecimento e a discussão sobre outras diferenças que
interessam verdadeiramente, sob o ponto de vista ético, em relação
às pessoas. Assim poderão emitir-se opiniões justas e realmente crí-
ticas sobre determinados comportamentos, segundo as regras de con-
vivência básica de nossa sociedade, quando ficar claro que
homoerotismo não é sinônimo de pedofilia, de estupro, de promiscui-
dade, de frigidez, de falta de amor ou de critérios estéticos e que
existem diferentes tipos e qualidades de pessoas homossexuais e de
relacionamentos homoeróticos. Imaginamos também que quando for
possível olhar os mesmos sem preconceitos poderão aparecer algu-
mas características positivas que enriqueçam a percepção de novas
identidades culturais e vínculos sociais possíveis.
interessa-me, também, como psicanalista, pensar de que ma-
neira uma escolha homossexual pode chegar a acontecer. Nesta se-
gunda paite do Capítulo [I pensarei na homossexualidade feminina
assumida corno um comportamento manifesto e tomarei o caso da
'jovem homossexual'' 1211 como modelo já que, junto com "Dora'' 121
(modelo freudiana de uma estrutura histérica), são os dois exemplos
paradigmáticos da clínica freudiana que continuam a nos oferecer
elementos para pensar e compreender a sexualidade feminina. Os

'"' Refiro-me à jovem cujo tratamento, realizado por Sigmund Freud, foi publicado sob o
título: "Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina" ( 1920). ln:
Freud, Sigmund.- Op. Cit., vol. XVlll, pp. 1:17-164. Poderei me referir a ela como "a
jovem·· ou "a jovem homossexual" indistintamente, já que seu nome s(Í nos é conhecido
por outras referências que não a freudiana e que explicitarei mais adiante neste mesmo
capítulo.
1~1 Freud, S. ( 1901; 1905). "Fragmento de análise de um caso de histeria''. ln: op .cit., vol.

Vll-1, pp. 1-108. "Dora" é o nome com que Freud denomina a paciente neste comentá-
rio de um caso clínico de histeria.
104 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

mesmos acabaram em um certo fracasso analítico já que foram


suspensos pelas pacientes poucos meses depois de iniciados e sem
ter resolvido realmente as questões em jogo no momento da análise.
Com relação à jovem, Freud pensou que seria melhor que uma mu-
lher continuasse tratando dela no caso de retomar a análise. Podería-
mos dizer que ele a encaminhou por não se sentir capaz, ou com
vontade de continuar a conduzir esta análise, diferentemente de Dora,
de quem teria gostado de continuar tratando.
Partimos da idéia de que o complexo de Édipo, tal como foi
sendo desenvolvido ao longo da ohra freudiana, e o complexo de cas-
tração, ou, pelo menos, a introdução da importância deste elemento
(castração) ligado à fase fálica no Édipo, configuram o núcleo central
a partir do qual se estrutura a subjetividade humana, segundo a psica-
nálise, incluindo o modelo do Édipo "completo" sugerido por Freud,
mas que não fora suficientemente explorado por seu criador, segundo
meu ponto de vista, porque ele pressupunha, apesar de tudo, um es-
perado desenvolvimento "normal", heterossexual, de acordo a sua
época.
Pergunto-me ao longo deste texto, se a "jovem homossexual"
exemplifica um caso de perversão, contraposto à histeria de Dora,
como muitas vezes foi entendido em trabalhos de psicanalistas
lacanianos. A homossexualidade da jovem seria decorrente de uma
organização psíquica ou estrutura perversa, poderia ser considerada
um traço de perversão (como muitas vezes se interpretam o
voyeurismo, a zoofilia, a necrofiJia, o exibicionismo, o sadismo, o ma-
soquismo, e outros), seria senão um sintoma neurótico ligado ao re-
torno do recalcado ou, finalmente, poderia tratar-se de uma escolha
válida e até saudável, simples resultado de uma diferente "orientação
sexual", tal e qual a resolução do Conselho Federal de Psicologia do
Brasil 122 o define, mas que enfrenta um conflito social externo? Em

122 Esta resolução, de 22 de março de 1999 (CFP nº 001/99), "estabelece normas de

atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual". Íntegra em


Anexo.
Gradeia Haydée Barbero 105

todo caso, não discuto a idéia das determinações inconscientes que


existem em qualquer escolha amorosa.
A resolução do Conselho Federal de Psicologia a que me refiro,
estabeleceu, no Brasil, em J999, normas de atuação para os psicólo-
gos, relacionadas ao trato profissional com pessoas que apresentem
comportamentos ou práticas homossexuais. Esta resolução afirma,
entre outras coisas, que:
a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e
nem perversão ( ... )
considerando que há, na sociedade, uma inquietação
em torno de práticas sexuais desviantes da norma
estahelecida socioculturalmente (... )
a Psicologia pode e deve contribuir com seu conhecimento
para o esdarccimento sobre as questões da sexualidade,
permitindo a superação de preconceitos e discriminações( ... )
os psic,>logos nüo exercerüo qualquer açlio que .favoreça
a patologizaçüo de comportamentos ou práticas
homoerôticas, nem adotarüo açüo coercitiva tendente a
orientar homossexuais para tratamentos mio solicitados (... )
os psicâ/ogos ,uio co/aborariio com eventos e serviços
que proponlzam tratamento e cura das homossexualidades
( ... )
os psicólogos não se pronunciarão, nem participarão de pro-
nunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa,
de modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em
relação aos homossexuais como portadores de qualquer
desordem psíquica.

Apes~.U" da resolução, a situação continua confusa entre psicólogos


e também na psicanálise na qual, como vimos, homossexualidade, sinto-
ma, recalque, fixação, escolha, orientação, perversão, genitalidade, es-
trutura, etc., são termos usados sem demasiadas precisões em relação a
106 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

este fenômeno particular e denotam o complicado panorama em que se


debate a questão, que inclui, na realidade, um campo de questões.
Já de saída podemos afirmar que sintoma, sob o ponto de vista
da última clínica de Lacan, não é sempre sinônimo de patologia, e que
o mesmo Freud brincou com a possibilidade contrária quando afir-
mou que a heterossexualidade poderia também ser considerada uma
patologia 123, ou, pelo tlll'.nos, que a heterossexualidade exclusiva re-
pousa também cm uma lirnita~·ão do objeto sexual. Uma heterossexua-
lidade rígida, com sintomas de homofobia, seria o resultado restritivo
de um conflito neurótico.
O Conselho de Psicologia não fez senão ratificar com esta resolu-
ção as mudanças acontecidas 110s manuais descritivos da Psiquiatria 124,
que timram da sua lista de transtornos a homossexualidade há muitos
anos. No Manual Diagnóstico e H,·tatístirn dos Distúrbios Mentais,
editado em 1987, não figura mais o IL~nno lto111ossexualidade, e o termo
paversüo foi substituído nesta lista pelo de /)(lf'C(filias, considerando
justamente os problemas ele longa data que a palavra perversão e, mais
ainda, o 4ualificativo petverso carregam, com a associação dos mesmos
à homossexualidade manifosta e à confusão que existe entre uma coisa
e outra como vimos na primeira parte deste capítulo.
Na sociedade ocidental, podemos dizer que a homossexualidade
deixou de ser vista globalmente como uma doença ou anormalidade,
na segunda metade avançada do século XX, acompanhando, (ou sendo
o suporte no social), os mencionados decretos institucionais. Come-

"' ln: Freud, S. ( 1920). AE (Sobr,• la psicoRérl('.!'ÍS de un caso d,• lwmosexualidad


feme11i11a), pp. 144-145: "Es preciso confcsar que también Ia sexualidad normal descan-
sa en una restricci6n de la elecci6n sexual de objeto, y en general la empresa de mudar a
un homnsexual declarado en un heterosexual no es mucho más prornisoria que la inversa,
solo que esta úllima jamás se la intenta, por buenas razones prácticas." (É preciso
confessar que também a sexualidade normal apôia-se em uma limitação da eleição de
objeto, e que, em geral, a tarefa de converter em heterossexual a um homossexual que
tenha alcançado seu completo desenvolvimento [assumido?], não tem mais probabilida-
des de êxito que a tarefa contrária, sô que esta última jamais é tentada, por bons motivos
práticos.)
,,. Diagnostic anti Statistical Manual of Mental Disorders: Editado por: American
Psyehiatric Association, Washington. As mudanças referidas ocorreram nas versões
DSM Ill-R e DSM IV, em 1987 e 1994, respectivamente.
Gradeia Haydée Barbero 107

çou a pensar-se nela, então, como uma prática sexual distinta, o que
fez com que se falasse de homossexualidades e não mais de homos-
sex uai idade, para deixar claro que não se tratava de uma es-
trutura específica e sim de um componente da sexualidade humana
que incluía numerosos comportamentos que se apresentavam em to-
das as estruturas psíquicas (se bem que com características diferen-
tes) assim como a heterossexualidade, ainda que nunca tenha se fa-
lado de heterossexualidades.
Porém, como acabo de mostrar, muitos psicanalistas utilizam
ainda indistintamente o termo homossexualidade e o de desvio ou
perversão, baseados no qualificativo de inversão (genital) com o qual
Freud se referiu às pessoas homossexuais, ou generalizando, como
veremos, o mecanismo da renegação descoberto por Freud no
fetichismo.
Inverter significa tornar ou voltar em sentido contrário ao natu-
ral, segundo o dicionário, mas não existe nada "natural" no comporta-
mento nem no desejo humano. Portanto, inverter, neste caso, signifi-
cmia tornar do avesso o quê? Simplesmente o esperado, por quem?
Pela cultura, é claro, mas a cultura não é fixa, nem eterna, e contém
sempre elementos de transformação; este é claramente um deles.
Muitas vezes, como vimos, os próprios autores lacanianos utili-
zam ambos os termos como sinônimos. Serge André ( ver mais adian-
te), por exemplo, considera "a jovem" como o paradigma de uma
estrutura perversa, enquanto Dora o seria da histeria, levando a pen-
sar somente em duas possibilidades para a homossexualidade femini-
na: perversão ou histeria. Freud considerou que o caso da "jovem" se
tratava de uma inversão, não neurótica, sem sintomas histéricos e
"amando à maneira de um homem"; ela sofreria, segundo ele, de
um complexo de masculinidade. Mas, será que ela "sofria" de al-
guma doença, neurótica ou perversa, ou sofria pela rejeição paterna,
derivada do fato de ela se apaixonar por mulheres, e pela rejeição
social que provavelmente causara o fato de ela amar uma mulher,
além de tudo considerada uma "cocotte", alguém de cuja moralidade
podia se duvidar?
108 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

A dupla possibilidade de saída do Édipo feminino: a histeria (ou a


maternidade) e a perversão (ou a homossexualidade) é algo que aqui
gostaria de colocar em questão. Para começar, está clara clinica-
mente a existência de neurose obsessiva nas mulheres, e me pergun-
to se, às vezes, o "complexo de masculinidade" não poderia se
relacionar a uma estrutura psíquica de tipo obsessivo, já que esta é a
forma neurótica mais comum do lado masculino, mas não abordarei
aqui esta hipótese já que não parece ser o caso da "jovem homosse-
xual". Quero apontar somente a existência de variedades possíveis
de posições subjetivas e sintomáticas ligadas a estes desejos e/ou
comportamentos manifestos.
Sob o ponto de vista da psicanálise, pelo menos até há pouco
tempo 125 , todas as possíveis identidades sexuadas e escolhas de obje-
to, ou seja, todas as formas de erotismo e de identificação seriam o
resultado de uma ou outra forma de solução do complexo de Édipo
e de uma posição perante a castração e a lei, sendo que os elemen-
tos "constitucionais" não se consideram determinantes, em última ins-
tância, e sim parte das séries complementares 126• Freud nunca dei-

m Cnmn vimos na Introdução, neste momento existem hipóteses psicanalíticas que


<lcscnvolvem a idéia lacaniana <lc que o Édipo tradicional seria um modelo entre outros
do crotisnrn c.;ontcmporânco e cremos que esta é uma linha importante para se pesquisar
e desenvolver.
126 Expressão utilizada por Freud para descrever a influência conjunta dos fatores de

disposição (constituição e acontecimentos infantis) e os atuais na causa de um efeito


psíquic.;o. Neste caso, cm: Freud, S. ( 1916-17). AE, vol. XVI, "Conferencias de
intmcluccüín ai psicoanâli.vis" (conrinuaciôn), parte 3, conferência 23, p. 330, ele diz:
"La ccmstituciô11 sexual hereditaria no.1· brinda una grau dfrersidad de disposiciones,
seglÍ11 que esta o aquella pulsiân parcial, por sí sola o en unión con otras, posea una
fuerza parricular. La constituciôn sexual forma con el vivenciar infantil otra 'serie
complementaria', en u11 todo semejante a la que ya conocimos entre pn>disposición y
vivenciar accidi'lltal en e/ adulto (p. 3/6). Aquí wmo allí hallamos los mismos casos
extremos y las mismas relaciones de subrogación. En este punto no podemos menos
que plantearnos una pregunta: la más /lamativa ele las regresiones lihidinales, la que
vuelve a etapas más tempranas de la organizaciôn sexual, no estâ condicionada predo-
minantemente por el factor com-titucional hereditario? Pero 1e11emo.1· que posponer la
respuesw hasta que hallamos considerado una serie más amplia ele las formas de
contraer la neurosis." ("A constituição sexual hereditária oferece-nos uma grande vari-
edade de disposições, conforme se apresente, com particular intensidade, uma ou outra
Gradeia Haydée Barbero 109

xou de afirmar também a bissexualidade básica de todos os seres


humanos, hipótese que não é idêntica à interpretação de uma posição
sexual determinada pelo critério fálico.
Vejamos, por exemplo, um de seus numerosos comentários a
respeito:

"Portanto, o mistério da homossexualidade, de modo algum. é tão


simples como se costuma imaginar no uso popular: uma alma
feminina, .fórçada por isso a amar o homem, instalada por desdita
num corpo masculino: ou uma alma viril, atraída irresistivelmente
pela mulhet; desterrada para sua desgraça em um corpo feminino.
Trata-se melhor de três séries de características:
I) Caracteres sexuais somáticos. (Hermafroditismo físico.)
2) Caráter sexual psíquico: atitude masculina 011 .féminina.
3) Tipo de eleição de objeto.

Que variam até certo grau com independência umas das outras e
se apresentam em cada indivíduo dentro de múltiplas permutações.
A literatura tendenciosa tem dificultado a compreensão desses
11exos, enquanto por motivos práticos empurrou ao primeiro plano
a única conduta chamati1•a para o leigo, a correspondente ao
terceiro ponto, ou seja. a eleição de ol~jeto, e também exagerou a
fixidez da associação entre este ponto e o primeiro. Além disso,
bloqueia o caminho que permitiria uma visiío mais prc?funda de
tudo que uniformemente se designa como homossexualidade, ao
rejeitar dois fatos fundamentais, revelados pela investigação

tias pulsões parciais, sozinha ou em combinação com as outras. A constituição sexual


forma, portanto, com o fator da experiência infantil, uma 'série complementar' seme-
lhante cm todos os aspectos àquela que já sabemos existir entre disposição e vivência
casual do adulto. Em uma e outra das séries complementares encontramos os mesmos
casos extremos e as mesmas relações de substituição entre os dois fatores considerados.
E aqui, neste ponto, levanta-se a questão de saber se os mais marcantes tipos de regres-
sões libidinais - os que se fazem aos primeiros estádios da organização sexual .. - nú"
seriam predominantemente determinados pelo fator constitucional heredit,írin. C'o11t11··
do, temos de adiar a resposta a essa questão, até havermos sido capazes de up1\·riar 11111a
série mais ampla de formas de contrair a doença neurótica.").
110 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

psicanalítica. O primeiro, que os homens homossexuais


experimentaram uma .fixação particularmente intensa à mãe; o
segundo, que todos os normais, com a sua heterossexualidade
man(festa, deixam ver uma quota elevada de homossexualidade
latente ou inconsciente. E quando se levam em conta estas
descobertas, cai por terra a suposição de um 'terceiro sexo· que a
natureza teria criado por travesso capricho. ". 1 27

A homossexualidade, diz Freud, existe em estado latente em


todos os seres humanos (heterossexuais, senão não seria latente).
Por extensão, poderíamos dizer que a heterossexualidade existe em
estado latente em todos os seres humanos (homossexuais). O que
Freud propunha como objetivo de uma análise seria a possibilidade de
abrir a porta para esses desejos latentes, ou seja, "desobstruir o
caminho que leva ao sexo oposto" (poderíamos dizer também isto

127 Freud, S. (1920). Sobre la psicogé11esis de un caso de homosexualidad femeni11a. ln:

AE, cap. IV, pp. 163/164: "Por tanro, el misterio de la homosexualidad en modo
alguno es um simple como se propende a imaginar/o en el uso popular: 1111 alma
femenina, forzada por t'.l'U a amar ai varôn, instalada para desdicha e11 un cuerpo
masculino; o un alma viril, 111raíd11 irresis1ih/eme11te por la mujer, desterrada para .1·u
desgracia a um cuerpo femenino. Mú.1· hien se /rala de tres series de caracteres:
]) Caracteres sexualcs somálirns.
(Hermafroditismo físiw.)
2) Carácter sexual psíquico:
Actitud masculina o femenina.
3) Tipo de elección de objeto.
Que h11.1·ta cieno grado varían co11 independencia u110.1· til' otro.l' y .w· 1m•senta11 en cada
individuo dentro de múlliples permutaciones. La literatura t,•11cl,·1wios11 ha dificultado
lu intelección de e.ws nexos, en cuwuo por motivos prúclico.1· lw ,·111p11jado al prirner
plano la única conduc/a llamativa para el lego, la correspondiellll' ai tacer punto, el
de la e/ecciôn de objeto, y ademâs ha exagerado la fijeza dei PÍ11c11lo e111re este y el
primer punto. Por aiíadidura, derra e/ camino que lleva a la vi.1·ití11 111ú.1· profunda de
todo cuanto se designa u11ifi1mU'me111e como homosexualidad, ai reclur;.ar dos hechos
fundamentales que la investigadón psicoanalítica ha descubierto. fü primero, que los
hombres homosexuales han experimentado una j,jación particularmenfl' fuerle a la
madre; el segundo, que todos los normales, junto a su heterosexualidad manifieslll,
dejan l'er u11a cuota muy elevada de homosexualidad latente o inco11.1·,·ienle. Y cuando
se ha tomado en cuenta esle descubrimiento, no ha sido sino para abonar el supuesto
de admitir un 'tercer sexo', que la natura/eza habría creado por travieso capricho.".
Gradeia Haydée Barbero 111

com relação aos caminhos que levam às relações com os sujeitos do


mesmo sexo, se isso fosse desejável). 128
Com relação à homossexualidade masculina manifesta, ele des-
cobriu diversos caminhos edípicos possíveis e foi desenvolvendo os
mesmos ao longo da sua obra; sobre a homossexualidade feminina os
revelou no desejo fascinado da histérica de conhecer o segredo da
feminilidade, na paranóia, no "complexo de masculinidade".
No caso da 'jovem", Freud concluiu que se tratava de um com-
portamento derivado de uma.fixação infantil, ao qual regressara por
causa de uma decepção com relação ao pai. Na medida em que ela
havia, na sua adolescência, chegado a se importar muito com crian-
ças (porém nunca com homens ou jovens da sua idade), Freud con-
cluí que havia chegado a desejar (inconscientemente) um filho do pai
cm substituição ao pênis ausente, como acontece em qualquer esco-
1ha feminina dita normal. Mas ao ser a mãe quem realmente
engravidara quando a jovem tinha 16 anos, ela teria ficado decepcio-
nada com o pai e voltado sua escolha para um desejo anterior, para
uma fixação materna primária. O que me parece que seria importan-
te determinar com mais exatidão é a forma em que ela teria passado
pelo pai em seu percurso edípico, e se esta "volta" seria mesmo re-
sultado de uma regressão ou de uma progressão ou superação, o que
levaria a conclusões muito diferentes.
O psicanalista argentino Hugo Bleichmar, em uma obra quase
clássica neste assunto 129 , o do complexo de Édipo, recorda-nos que
complexo é um termo que Freud tomara de Jung e que se refere a
algo que já esta no indivíduo, tal como uma estrutura que determina
os efeitos com relação aos estímulos recebidos. Este é o modelo, ele
afinna: o prévio constitui o posterior em significativo. Bleichmar dis-
tingue três momentos da obra na caracterização freudiana do Édipo.

'" Freud, S. (1920). Sohre la psirngh1~.1i.1· de un caso de homosexua/idad ./<'lll<'!li11,1. O/•.


Cit.
"º Bleichrnar, Hugo. Introdução ao estudo das perversões - Teoria do t\/if'" ,·111 Fn·11,I
e Lacan. Porto Alegre, Artes Médicas, 1984.
112 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Em uma primeira época, que compreende uma caita a Fliess de


outubro de 1897 130 , um capítulo da Inte1pretação dos sonhos (19()()) 131
sobre a morte de seres queridos e Um tipo especial de escolha de
objeto feita pelo homem 132 , de 1910, ele desenvolve o Édipo sob o
ponto de vista do menino e do lado "positivo" ou seja, o amor pelo proge-
nitor do sexo contrário e o ciúme e rivalidade em relação ao do próprio
sexo, que é como geralmente se considera. Freud já utiliza, neste último,
a expressão "complexo de Édipo", o que implica, segundo Bleichmar,
entender o mesmo como um conjunto de sentimentos, aptidões, emoções
e idéias que existem no menino e orientam sua relação com seus pais.
Em um segundo momento, que inclui os artigos Psicologia das
massas e análise do egom (capítulo VII), de 1921 e O ego e o Jd 134
(capítulo III), de 1923, Freud trabalha com a idéia de que os elementos
do complexo se constituem na própria relação e adiciona a idéia de
uma saída deste momento (a "solução" do Édipo) por meio de identifi-
cações. Como conseqüência, nesta etapa, se estabelecem o superego
(o ideal) e a identificação sexual. Já há dois tempos diferenciados.
Em uma última etapa de conceitualização, que começa com o
texto: A organização genital infantil 135 , de 1923, e vai até os últi-
mos escritos sobre a sexualidade feminina, de 1931 e 1932 136, a psi-
canálise freudiana distingue o Édipo masculino do feminino e coloca
a castração no centro do mesmo (como angústia ou inveja), por ter já
identificado a fase fálica da organização psico-sexual infantil.

1.1n 1-'rcud, S. (1892-99; 1950). Fragmentos de la corre.11Jo11de11cie1 nm F/iess. ln: AE, vol.

1, pp. 211-322.
"' 1-'rcud, S. ( 1900). J111erpretación de los sueiíos. ln: Op. Cit., vol. IV. Capítulo "Sueiíos
típicos", pp. 252-284.
1-' 2 Freud, S. Sobre 1m tipo particular de elección de objeto en e/ hombre. ln: AE, vol. XI,

pp. 155-169.
m Freud, S. Op. Cit. (1921). J'.l'ico/o[?ía de las masus y aná/isis dei yo. /11: AE, vol. XVIlJ,
pp. 63-136.
"" Freud, S. Op. Cil. (1923). E/ yo y e/ e/lo. ln: AE, vol. XIX, pp. 1-66.
i), 1-'reud, S. Op. Cit. (1923). La orga11iwció11 genital infantil. /11: AE, vol. XIX, pp. 141-

150.
"º Freud, S. AE. Respectivamente: ( 1931) Sobre la sexualidad femenina, vol. XXI, pp.
223-245 e ( 1932) La feminilidad, vol. XXII, pp. 104-125.
Gradeia Haydée Barbero 113

Bleichmar nos lembra de que o Édipo é também a chave para


conhecer a constituição dos mecanismos de defesa, que dependem
amplamente da linguagem, principal elemento de transmissão cultural
(simbólico), adquirido na família, em meio a todas as vicissitudes
afetivas que estamos analisando.
Lacan, diz, amplia o modelo edípico mediante uma conceitualização
que pode ser considerada mais estrutural, tanto que os psicanalistas
costumam falar, após Lacan, do Édipo do mito e do Édipo da estrutura.
Isto coloca a questão, muito contemporânea, sobre qual seria a relação
entre o Édipo e a cultura, uma estrutura mais ampla na qual está inscri-
to. Bleichmar afirma que talvez seja este o terreno mais inexplorado de
toda a teoria. Com estas considerações ele estava se antecipando, jus-
tamente nos anos sessenta, ao começo dos fenômenos de visibilidade
social e de solicitação de direitos por parte dos homossexuais e de
outros grupos que reivindicam a aceitação social de ce11as formas de
sexualidade e identidades alternativas, antes rejeitadas.
O social está nos mostrando hoje, claramente, que existem mu-
danças necessárias na teoria edípica (e na própria concepção do falo)
já que aparecem fenômenos que devem ser mais bem explicados,
ligados à escolha de objetos amorosos e a novas formas de organiza-
ção da família que não corresponderiam, aparentemente, às identifi-
cações edípicas clássicas. Nelas se entende o falo como significante
principal nesta dialética, representante da diferença entre os sexos
(dois sexos). Assim, sem mais especificações, o falo continuaria liga-
do de uma forma ou outra ao pênis, o que cria sérios problemas.
Podemos pensar neste contexto nas parcerias homossexuais que exi-
gem uma legitimação do estado e decidem criar filhos como uma
família "normal". Onde estaria a normalidade se já não é mais um
resultado esperado (culturalmente) da solução edípica, que se basea-
va na necessidade de construir no psiquismo uma identidade sexual
correspondente ao sexo biológico da pessoa e um vínculo amoroso
heterossexual, no modelo do casal reprodutivo? Será que a teoria do
Édipo carece de novos desenvolvimentos? Parece-me que sim, L' rn111
grande urgência, já que a realidade social ultrapassou o dcsl'nvolvi-
114 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

mento teórico. Assim, inverte-se a relação: os fatos sociais mostram-


nos a necessidade de desenvolver novos caminhos teóricos quando o
esperado seria que a teoria nos mostrasse novas possibilidades ainda
não suspeitadas no âmbito da sociedade. Mas isto é também o que
acontece com novos fatos clínicos. Creio que é hora de nos lembrar-
mos de uma das citações favoritas de Freud: "IA théorie, c'est bon,
mais ça n'empêche pas d'exister". 137
De qualquer modo, a releitura destes conceitos que a teoria
lacaniana permite é um avanço considerável e abre a via para novos
desenvolvimentos, se alguns obstáculos epistemológicos (ideológicos)
forem superados, tema no qual me deterei no capítulo corresponden-
te. Ideais (sociais) são possíveis de serem mudados, mas não esque-
çamos a forte tonalidade inconsciente que carregam.
Voltando a Bleichmar, em uma leitura mais clássica, ele define o
Édipo lacaniano como a descrição de uma estrutura e dos efeitos de
representação que essa estrutura produz nos que a integram. O que
determinaria a posição dos personagens seria a circulação do falo,
conceito baseado em Freud (na sua conceitualização da fase fálica)
e aperfeiçoado por Lacan. Seguindo estas teorizações, Bleichmar
sintetiza-as em algumas linhas. Para Lacan, ele diz:
O Édipo é a descrição de uma estrutura intersubjetiva,
que implica em posiçôes e funções. (Sabemos agora que
Lacan abandonara em determinado momento a idéia de in-
ter-subjetividade.)
As posiçôes que se ocupam nesta estrutura dependem da
circulação de um elemento imaginârio e simbólico que
ele nomeia Falo.
Este falo existe na cultura.

Freud, S. (1893). Charcot. ln: AE, vol. III, p. 15. Esta frase, que traduzida, diria:
1-' 7

"Teoria está bem, mas não impede as coisas de existirem", Freud a ouviu pela primeira
vez de Charcot, perante um comentário que, segundo consta em nota de rodapé da edição
de Amorrortu, teria sido do próprio Freud, no qual a pessoa teria dito para Charcot: "Isso
não pode ser, pois contradiz a teoria de Young-Helmoltz.". Freud ficou impressionado
com a sentença e a repetiu em toda a sua vida.
<iraciela Haydée Barbero 115

O falo é o significante de uma falta.


O falo é o significante do desejo.
-
O sign(ficante escreve algo no lugar de uma ausência.
É porque a falta se inscreve como presença que se produz
uma ilusão. Isto, porque a diferença sexual, base de nosso pen-
samento simbólico, se define como o critério que divide as pes-
soas em aquelas que têm e aquelas que niio têm, daí sur;gindo a
equivalência pênis = falo.
Insisto que este ponto deveria ser relativizado já que a equiva-
lência pênis-falo não é necessária (e cria problemas) para a teoria:
creio que o pênis é uma das figurações possíveis do falo. O conceito
de diferença sexual como base do pensamento simbólico também
deveria ser melhor explicado. Que se reconheça uma diferença não
implica que a mesma seja necessariamente o critério básico no dese-
jo sexual, por exemplo.
- O .fálo imaginário é o que completa a falta produzindo a
expansüo do narcisismo, é, portanto o mesmo que o ego ideal.
O É'dipo freudiano está centrado ao redor da sati.~f'ação
do impulso, o lacaniano, ao redor da satisfaçiio do
1w reis ismo.
Podemos diferenciar três tempos no processo edipiano (do
Seminário As fonnações do inconsciente). No primeiro tempo
a miie tem o falo (o menino é o falo da miie), no segundo o
pai é o falo e no terceitv o falo se reinstala na cultura. O pai
tem o falo (o pênis) e não é o falo; possui um representante
do falo, o pênis é uma representação do falo' 38 •

No primeiro tempo se estabelece um ternário imaginário (mãc-


criança-falo). Nele, o menino é o objeto do desejo materno, idcnlifi-
ca-se com o objeto imaginário desse desejo, já que quer ser aquilo

138 Grifo da autora.


116 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

que faria a felicidade materna, a sua completude narcísica. A mãe


deveria poder simbolizá-lo no falo para que esta relação dual e imagi-
nária não se institua como p1incipal. A mãe neste momento dita a lei,
é a lei. Mas como ela também depende de uma ordem simbólica que
a determina, a permanência em uma situação de completude imagi-
nária, dual (como a da paixão), deve ser sempre relativizada para não
se contrapor ao mundo externo, cultural, regido por leis simbólicas
cujo modelo é a linguagem.
Por isso, o segundo tempo do Édipo abre a via de saída desta
situação dual incluindo nesta triangulação o pai no lugar do falo, mas
esta situação pode ser ainda lida a partir do imaginário, já que o pai
passa por um momento no qual ele é a lei, ele é o falo, ele é (na
subjetividade), quem completa a expansão do narcisismo materno.
Este momento edípico pennite-nos compreender, por exemplo, a psi-
cologia das massas e a submissão a qualquer autoridade totalitária,
ou seja, permite-nos compreender, em parte, o nazismo e o fascismo,
seu horror e seu fascínio.
A perversão, como uma posição perante o desejo, uma escolha
de objeto e um tipo particular de defesa (a recusa ou renegação),
estará, então, marcada pelo (~dipo, afirma Rlcichmar. Os sujeitos as-
sim estruturados continuariam na dinâmica correspondente ao pri-
meiro tempo do Édipo, quando o sujeito está identificado ao falo ma-
terno (ego ideal) e não há uma intervenção adequada da função pa-
terna, aqui prevalecendo a voracidade e outros mecanismos orais ou,
no segundo tempo, ligado a desejos e montagens e/ou vivências
sadomasoquistas, com um imaginário diferente, mas estmturalmente
igual já que o pai aqui ainda não intervém como representante da lei
social e sim como uma figura fálica vencedora. Ele é a Lei onipotente
igual à Mãe fálica do primeiro tempo. Ambos representam um "gran-
de Outro" sem barrar, sem castração. Mas, na perversão, o "Nome
do pai" não é forcluido como o seria em um quadro psicótico.
O terceiro tempo do Édipo conformaria a adequada relação do
sujeito com a Lei Social, anônima e igual para todos (na democracia).
Neste momento psíquico, o falo estaria separado de suas representa-
Gradeia Haydée Barbero 117

ções, sendo que o pai é nada mais do que uma delas, especialmente
porque pai é aqui somente uma função.
A existência desta terceira fase do Édipo nos permite separar
masculino-feminino das funções paterna e materna e pensar com
elementos distantes da empiria e do concreto.
Segundo este esquema, seria a "jovem homossexual" uma per-
versa? Não concordo, para começar, com o comentário de Serge
André, cujo trabalho sobre este tema comentarei a seguir, de que isto
estaria demonstrado porque a "dama" adorada pela jovem, por con-
ter elementos matemos e semelhanças com o irmão (figura paterna
neste caso), seria a representação de uma mãe fálica. A dinâmica
correspondente ao primeiro e segundo tempo do Édipo não se baseia
em considerações tão superficiais. Cremos que estas teorizações sobre
a perversão são insuficientes e deixam alguns pontos sem explica-
ção. O mesmo Lacan vai modificar suas idéias a respeito, entre 1958
e 1963, como veremos mais adiante.
Parece-me interessante introduzir, neste ponto, as idéias do psica-
nalista francês Serge André 139 , com alguns detaJhes, que me permiti-
rão certas reflexões críticas. Vou me centrar nos capítulos 9, 1Oe 11 do
livro citado, onde ele faz um percurso da obra freudiana em relação à
sexualidade feminina, a partir dos seus últimos textos a este respeito,
ou seja, de Unw criança é e.\plmctula 140 em diante. No capítulo ante-
rior, André tinha concluído sua análise do caso Dora (da clínica
freudiana) mostrando que, até aí, Freud tinha se deparado com um
impasse criado pela sua crença de que a mulher teria sempre de subs-
tituir seu desejo de falo (inveja do pênis) pelo desejo de um filho. Dessa
forma fecharia, se bem que não tão conclusivamente, seu complexo de
Édipo. Isto faria, segundo Freud (comentário que despertou a reação
adversa do pensamento feminista), com que o superego feminino não
fosse tão rígido e eficaz como o masculino. André pensa que o que
aconteceu foi que Freud fez uma interpretação errada da gravidez in-

,w André, S. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1987.
'"" Freud, S. (1919). Op. Cit.
118 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

consciente de Dora, que aparece no seu segundo sonho. Ela teria dito
que a interpretação não era grande coisa e, logo a seguir, abandonado
sua análise. Por quê? Dora tinha endereçado este sonho a Freud, se-
gundo André, porque ela apresentava uma demanda de saber, saber
sobre o centro vazio da sua fascinação, o órgão genital feminino, que
não pôde ser simbolizado sob este ponto de vista, porque não haveria
um significante que o representasse. Freud responde a essa demanda
de saber sobre A Mulher, com o desejo (anseio) de receber um filho.
Entre 1919 e 1925, a doutrina freudiana sobre a mulher muda,
nos lembra André. Os textos-chave para a compreensão deste per-
curso, segundo ele, são, justamente: Bate-se numa criança 141 ,
Psico8ênese de um caso de homossexualidade feminina 142 , Algu-
mas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os
sexos 143 e, finalmente, Sexualidade feminina e a Feminilidade, tex-
tos com os quais termina sua elaboração sobre o assunto, em 1931 e
1932, respectivamente.·
Em 1919 (Bate-se numa criança), o ponto de origem da pro-
blemática feminina teria sido colocado por Freud na relação ou fixa-
ção amorosa ao pai e a sua saída numa identificação masculina. A
menina, no terceiro momento da fantasia apareceria identificada com
um menino. Em 1925 (Algumas conseqüências psíquicas da dife-
rença anatômica entre os sexos), o ponto de origem seria a fixação
à mãe e a saída o desvio pelo pai diante do qual se assegura uma
posição feminina. Por um lado, diz André, o complexo de Édipo apa-
rece como fundador da perversão, por outro, ele é garantia da posi-
ção normal da menina, o que seria uma contradição. 144
"'' Freud, S. (1919). Op. Cit.
'" Freud, S. (1920). Op. Cit.
14 :i Freud, S. (1925). Alg1mas nmsernencias psíquicas de la diferencia anatómica entre

los sexos. ln: AE, vol. XIX, pp. 259-276.


144 Neste livro, Serge André faz comentários que ficam um pouco confusos porque usa

indistintamente perversão, escolha homossexual, identificação da mulher (a menina) com


um menino e "complexo de virilidade", mesmo afirmando, em vários outros lugares, que
haveria urna homossexualidade histérica, o que não faz com que mude seu discurso.
* Freud, S. (1931) Sobre a sexualidade feminia ln: AE. vol XXI, p. 223-244.
Freud, S. (1932) Le feminina. ln: AO, vol XXII, conferência nº 33, p 104-125.
Gradeia Haydée Barbero 119

No primeiro caso, analisando a fantasia de em uma criança


sendo espancada, que se apresenta em três fases sucessivas, Freud
conclui, diz André, que nas duas primeiras, nota-se na menina um
desejo amoroso que leva à culpa por conquistar o favor do pai (es-
panca, castiga e ama) ou seja uma 1igação amorosa e culpada com
o pai, enquanto a mãe representa uma rival neste triângulo. Mas na
terceira fase, sendo as crianças espancadas, meninos (em ambos
os sexos), haveria uma identificação masculina na menina, um "com-
plexo de masculinidade". Então, no momento em que o Édipo é
recalcado, a menina abandonaria sua feminilidade e se tornaria um
menino. Em outras palavras, nestas argumentações, a resolução do
Édipo para a menina seria a perversão. Como teriam aparecido
novas contradições, Freud tentara resolvê-las diferenciando per-
versão infantil e perversão adulta. A teoria agora especifica que se
a perversão do adulto (em especial a homossexualidade, diz) pode
ser derivada do complexo de Édipo, sua base se encontra menos no
complexo que nas cicatrizes que este deixa no inconsciente. As
fantasias de espancamento seriam as cicatrizes. A fantasia é per-
versa, não o sujeito. Este só o se1ia se elas fossem atuadas na vida
adulta. Mas, me pergunto, que seria exatamente a atuação de uma
fantasia se a fantasia é sempre o que sustenta qualquer desejo?
Não há clareza conceituai.
A partir daí, André se pergunta como, com esta via de saída, a
menina poderia não se tornar uma homossexual. Para responder a
esta questão, analisa o caso da "jovem homossexual", de 1920.
Aqui Freud resolve esse ponto obscuro, assinala, deixando
claro que a menina não escolhe a identificação masculina para
fugir do incesto com o pai, senão porque haveria uma fixação
primária na mãe. Aparece na teoria a "pré-história do complexo
de Édipo", que dá relevância ao fato de que toda mulher passa
por uma primeira relação afetiva intensa com a mãe, como pas-
sam também os meninos. Esta primeira fase vai corresponder
ao primeiro tempo do Édipo descrito por Bleichmar, a partir de
Lacan.
120 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

André resume o caso da ·~ovem", seguindo Lacan no Seminário


IV 5, que interpreta o comportamento amoroso da moça como o de
14

um cavalheiro que quer venerar e salvar sua dama. Ela era, por outra
parte, uma pessoa que não apresentara nada de anormal na sua in-
fãncia, segundo Freud. Na adolescência teria mostrado sinais de um
Édipo não invertido, mas posteriormente parece ter voltado atrás (no
caminho evolutivo) a partir de uma nova gravidez da mãe, o que lhe
produz uma grande decepção em relação ao pai. Nesta interpreta-
ção, a dama amada aparece como substituta da mãe e do irmão mais
velho, desta forma incluindo os dois lados do complexo. O objeto
correspondia a seu ideal feminino e ao masculino. Mas, por que ela
se volta para a mãe que a tratava como uma rival, se pergunta Freud?
Para responder a esta questão, ele discrimina, na vida amorosa de
um sujeito, entre identificação sexuada e escolha de objeto. A moça,
neste caso, teria na sua mãe o objeto de identificação e também da
sua escolha amorosa. O pai estaria em um lugar de testemunha do
que ocorre entre duas mulheres. Quando ela sofre essa decepção
amorosa, se volta para um substituto da mãe (e do irmão). A menina
troca de identificação sexuada, "torna-se um homem". A relação com
a mãe parece sempre ser ambi valente. André percebe que a questão
da identificação, neste caso pelo menos, não é simples:

"liste amor antigo pela mãe é tanto mais sólido quanto se alimenta
do narcisismo, podendo a que ama identificar-se com seu objeto,
nivelando assim a separação de planos entre a identificação
sexuada e a escolha de objeto.". w,

1-15 Lacan, J. (1956/57) O Seminário. Livro IV. A refarão ele objeto. Rio de Janeiro,

Jorge Zahar, 1995. No seminário I O ( 1962-63; inédito) sua interpretação é bem


diferente. Ali, ele prestara atenção à passagem ao ato (e aos acting outs) de uma pessoa
neurótica.
1·1" /bit/., p. 164. Temos consciênda de que a questão da inter-relação entre identificação

e da escolha de objeto deveria ser mais bem esclarecida, mas no momento não entrare-
mos nela j,í que nos desviaria do assunto que estamos colocando. De qualquer modo, se é
possível que o objeto de amor e de identificação sejam referidos a uma mesma pessoa,
isto não implica necessnriamente na existência de um elemento narcisista patológico
como às vezes se supõe.
Gradeia Haydée Barbero 121

Mas, depois, a jovem passa a identificar-se com um homem.


Haveria um cruzamento, diz André, e o esquematiza assim:

Identificação Objeto Objetivo amoroso

Primeira fase a mãe o pai ser amada

Segunda fase o pai a mãe mnar

E a conclusão é, que devido a uma identificação imaginária eró-


tico-agressiva ambivalente (com quem afinal?), a jovem torna-se ho-
mossexual somente para desafiar o pai, para vingar-se dele.
E a mistura de ideais feminino e masculino no objeto? Como já
mencionei, a interpretação de André é que a mulher amada, a "Dama",
representa uma mãe fetichizada, o que comprovaria, para ele, que a
"jovem homossexual" é perversa. E isso porque, de pequena, teria
se impressionado com o pênis do irmão, diz (como se isto não fosse
uma hipótese freudiana sobre a feminilidade "normal"). E logo, ela
amava como um homem, já que procurava mulheres "depravadas''
para salvar, porque sua mãe, no inconsciente, seria equivalente a uma
prostituta por receber um filho do pai. Não me parece óbvia esta
interpretação, bem freudiana, aliás, e nada específica de uma escolha
homossexual. Por outra parte, a jovem quereria demonstrar, perante
o pai, como pode se amar alguém pelo que nüo tem (Lacan, Seminá-
rio 10). Mas o olhar furioso do pai, coincidentemente com a rejeição
da amada, a teria recolocado no seu lugar. Seu falo não é poderoso,
diz o autor (ela é castrada); ela volta a sua postura de objeto a
(descartável) e realiza, em uma passagem ao ato, esta rejeição. Joga-
se de uma ponte e fica, por causa deste fato, vários meses de caina,
bastante machucada.
Nesta passagem ao ato há também, segundo Freud, um p,anl111:
a satisfação de "dar à luz" ("niederkommen" significa an 111cs1110
tempo deixar cair e parir). E, também, ao mesmo tempo ela n;taria se
punindo. Esta interpretação se baseia na idéia de que u tbl·j11 dl' 11111
122 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

filho não a tinha abandonado por completo no momento da gravidez


da mãe. E de que se punindo, também estaria matando - simbolica-
mente - a mãe, com quem esteve (quando?) identificada.
Mas nada responde por que ela escolheu esta via e não outra.
Creio que não poderíamos responder a isso em caso algum. Qual é a
"causa" da homossexualidade da jovem? Qual a "causa" de qualquer
homossexualidade? A soma de vários fatores, entre eles, o acaso,
afirma Freud.
Freud postula, então, que a homossexualidade desta jovem (que
André chama aqui de sua estrutura perversa), seria: "(... ) a continua-
ção direta, não modificada, de uma fixa,·ão infantil na mãe", apoiada
pela "poderosa" inveja do pênis quL' 111ostra que, desde a infância,
teria escolhido a via do "complexo de masculinidade". O que, a meu
ver, ainda não demonstra perversão ncnhu1ua. Se a perversão se ex-
plica por uma fixação primária, qual seria a diferença com a neuro-
se? Que ela não passaria pelos complexos de r\dipo e castração?
Não é isso o que afirmam Lacan ou Freud.
André agrega no seu esquema um cstügio anterior ao primeiro
em que a jovem teria se identificado com o pai, identificando na mãe
o objeto amoroso, e cujo objetivo seria amar e núo o de ser amada.
Depois deste caso, Freud dedicou-se a pl~nsar l'sta fixação de
toda menina na mãe, o que se transforma, na teoria, na pré-história
do complexo de Édipo. Mas, é fixação ou é pré-histúria?
Ela (a jovem) tinha expressado seu desejo de filhos por meio de
uma atração forte por crianças durante sua adoll'scência e tinha
mostrado sua atração pelas características viris de Sl'll irmão, que
soma às maternas na consideração de seu objeto de amor atual. São
ambigüidades mal resolvidas.
O caso da jovem homossexual, bem diz André, revela uma di-
mensão até então ignorada: a homossexualidade da menina passa a
ser uma possibilidade inscrita na estrutura do complexo de Édipo fe-
minino, em geral, até mesmo um elemento de base. Como poderia a
jovem ter tido este retorno possível à mãe, como objeto amoroso
primevo, impossibilitado, ele se pergunta? Se a relação com o pai é só
Graciela Haydée Barbero 123

um adiamento de sua relação com a mãe, há uma coisa de natural na


homossexualidade feminina e já não se pode falar tão simplesmente
de perversão.
Na análise do autor, em Algumas conseqüências psíquicas da
diferença anatômica 147 , tinha ficado claro que o menino vê o sexo
feminino como falta, ou seja, algo que o lembra de que o pênis pode-
ria ser perdido e nega, recusa, ou duvida para sempre da realidade de
sua percep<s'.ãO (que como vimos, segundo Laplanche, é a percepção
de uma diferença anatômica interpretada como castração a partir de
uma teoria infantil). A menina saberia o que quer porque sabe que
não tem. Isto velaria também sua percepção do sexo feminino, já que
fica com inveja e quer o que ela não tem, sem perceber o que tem. A
menina pode ter a esperança (de algum dia ter... ) ou renegá-la: com-
porta-se como um menino e nega a diferença, ela também tem. Será
que nega a diferença ou percebe que este "ter ou não ter" é realmen-
te metafórico, já que a equivalência pênis= falo também não é mais
do que o resultado de uma generalização?
Para o menino, o Édipo seria uma formação prim{rria. Sob o
primado da angústia de castração, confirmado pela falta feminina, ele
estilhaçaria o seu complexo de Édipo que é substituído pelo superego,
só restando explicar então por onde apareceria futuramente o desejo,
se não for por meio da neurose e do sintoma, diz André. Mas as
coisas são bem mais complexas, a "falta feminina" associada à falta
<le pênis, creio eu, é nada mais que uma interpretação de origem
social (a falta é humana e derivada da imersão na linguagem), e no
Édipo do menino também devemos considerar a fase de apego amo-
roso ao pai.
O complexo de Édipo feminino não só coloca um problema a
mais, como pensam Freud e André, porque é preciso explicar como a
menina é levada a substituir o objeto materno pelo pai. O menino
também passa por esta substituição, para logo retornar ao objeto fe-
minino derivado do modelo materno? Como?

1" 7 Freud, S. ( 1925). Op. Cit.


124 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

O comentário freudiano de que o complexo de castração tende


a fazer com que o menino resolva seu Édipo enquanto faz com que a
menina comece o seu, não leva em conta o complexo "completo" que
o próprio Freud já havia distinguido e continua a falar do Édipo sob o
ponto de vista da heterossexualidade. O modelo do "Édipo completo"
fica totalmente obscurecido, ou quase esquecido, se nos lembrarmos
de que o autor não chegou a pensar no que acontece com ele na fase
final de uma análise.
Segundo André, os analistas não produziram nada de muito con-
sistente depois dos trabalhos de Freud com relação à sexualidade
feminina e ao Édipo. Ele não está considerando aqui as soluções pro-
postas por fones e outras escolas de psicanálise, mas não entrarei no
mérito desta questão já que eu também penso que não são soluções
superadoras por se basear em um certo reducionismo, afirmando as
diferenças biológicas (entre pênis e vagina) como fundamentais para
estabelecer critérios psíquicos diferenciais.
A solução lacaniana é encontrar uma nova possibilidade na mu-
lher: ela, potencialmente, não seria significada em sua totalidade pelo
representante fálico da significação. Ela é sempre não toda. A meni-
na estaria situada na lei e fora da lei. E o menino, ao se ver represen-
tado, acreditaria, mesmo que duvide, na completude do simbólico e
na rigidez <la lei. Não se trata de dizer que a mulher não se sujeita à
metáfora paterna, o que equivaleria a dizer que seria psicótica, mas
em sendo "não toda", a instância paterna não condena ao esqueci-
mento o Outro materno primeiro. O pai acabaria sendo, desta forma,
apenas a metonímia da mãe. Ultimamente pensa-se que o primeiro
grande Outro não seria materno nem paterno, já que é prévio à dife-
renciação dos sexos.
Os argumentos afirmam que a menina sabe do limite da metá-
fora paterna já que não há significante que a represente e o menino
fica abismado na dúvida. A menina pode recusar a metáfora ou
denunciar seu aspecto de mascarada, fica por isso sempre parcial-
mente fora da lei (do significante). Isto a levaria a ficar fora da lei
social? Será que o menino não poderia entender da mesma forma,
Gradeia Haydée Barbero 125

no terceiro tempo do Édipo, que o significante é sempre falho em


alguma coisa? Que a linguagem e as leis humanas são sempre rela-
tivas e "não todas"? Que há mudança cultural, e não anarquia, que
há sublimação, criação permanente de novos significados (metáfo-
ras)? Por exemplo, os homens homossexuais (alguns, os mais
enfeminados) não estariam também do lado "não-todo", revelan-
do, mais que as mulheres, seu aspecto de mascarada, seu estatuto
de "semblante" de um jogo simbólico importante, pedra angular,
durante muito tempo, da civilização ocidental, mas não necessaria-
mente do desejo sexual e das identificações possíveis? Será que
não é esta, quando não amarrada a fixações inexoráveis, a verda-
deira "solução" do complexo de Édipo? Entre outros lugares, no
Seminário 20, Lacan deixa claro que estas são duas posições no
discurso que independem, pelo menos em parte, do sexo biológico
de quem as assume.
No texto intitulado "Sexualidade feminina" 1~8, Freud trabalha
com a idéia de que a mulher tem de atravessar não só uma mudança
de objeto, mas uma mudança de zona erógena, do clitóris à vagina, o
que seria mudar a forma de gozo, pensa André. Também diz que a
filha deve conservar como objeto de identificação aquela a que re-
nuncia como objeto de amor, a mesma que logo se transforma em
rival, o que parece algo contraditório.
Freud volta a colocar aqui o que tinha assinalado em Algumas
conseqüências psíquicas das diferenças anatômicas entre os se-
xos149: que a menina pode, como recursos:
- Renunciar a toda atividade sexual (depressão);
- Entrar no "complexo de masculinidade", mantendo-se na
renegação ou na esperança de ter um pênis; ou
Voltar-se para o pai na esperança de receber o filho substituto
(como falo).

1•• Freud, S. (1931). Op. Cit.


119 Freud, S. (1925). Op. Cit.
126 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

A menina não tem a quem voltar o ódio primeiro (o menino o volta-


ria para o pai) o que marca a ambivalência das relações entre mulheres,
diz, porque para a mulher, a mãe (e a dama para a jovem?) se apresen-
tam ao mesmo tempo como objeto de amor e de identificação.
Neste artigo também propõe uma reconstrução da relação pri-
mária mãe-filha sobre a base da dialética atividade-passividade. A
criança, como todo ser humano, se revolta contra a passividade, ela
então oscila entre ser o objeto da mãe e tomar a mãe como objeto,
fazer por si mesma o que lhe foi feito anteriormente, segundo Freud.
Há aqui uma luta em torno do objeto a partir do qual se distribuem as
posições subjetivas. Esta luta culminaria em um novo impasse, um
novo paradoxo do destino fcminino,já que para ser sujeito, tem de ser
ativa e, portanto, segundo sua concepção, masculina. A primeira brin-
cadeira com bonecas não seria resultado do desejo de ter um filho,
senão desta primeira relação com a mãe. Quer-se devorar a mãe
pela qual foi-se alimentada, pensa Freud: uma relação fortemente
ambivalente. Se esta luta é tão forte, é porque ela (a mulher) deve
conservar um pouco de passividade se quer se oferecer depois como
objeto para o pai.
Serge André pensa que a passagem da situação pré-edipiana à
edipiana na menina, sob qualquer ponto de vista, seja o da troca de
objeto sexual ou da mudança de objeto de identificação, de zona genital
ou de modo de gozo, equivale sempre a simples desdobramentos. Os
caracteres da relação pré-edipiana jamais seriam totalmente elimina-
dos e ficaria diante de uma metáfora impossível ou cm uma luta per-
manente para se elevar do registro da metonímia ao da metáfora. Re-
sumindo, diz André, diante do fracasso da metáfora paterna a menina:
aceita sua falta de identidade e se presta à mascarada fálica
à qual a convida a lei do significante;
recusa o que considera como uma derrota e se obstina em
uma reivindicação de tipo histérico; ou
retorna à fase anterior e se entrincheira em uma posição
toda masculina como a homossexual.
Gradeia Haydée Barbero 127

A feminilidade "norma]" estaria na aceitação da mascarada?


Como sustentar esta expectativa social? Por isso a feminilidade con-
tinua sendo para Freud (sob o ponto de vista masculino), um enigma,
que faz falar aos homens e calar às mulheres. A luta das feministas
radicais em tomo da significação e valorização do feminino como tal
estaria desconhecendo que se trata de um excluído necessário na
cultura, de um lugar ocupado necessariamente por uma máscara que
oculta um vazio.
Em síntese, tanto a menina como o menino tomariam como pon-
to de partida o desejo da mãe. Só existe uma maneira de desejar que
emerge da relação com a mãe, qualquer que seja o sexo da criatura.
As vertentes ativa e a passiva correspondem aos dois sentidos pelos
quais pode ser entendido o desejo da mãe: desejo pela mãe ou de ser
o objeto do desejo da mãe (das Formaçties do inconsciente 15º). A
criança faz nesta fase de sua mãe uma mulher plena. Porém, este
não é um momento de fusão paradisíaca que poderia imaginar-se,
pois já neste primeiro tempo a relação mãe-criança é prenhe de con-
flitos, nem que sejam os conflitos internos à mãe.
A criança deve assumir o lugar de falo materno, o lugar de
objeto a, objeto causa do desejo, e receber as cargas de narcisismo
a que Freud apontara, mas nem sempre a criança real coincide com
as expectativas maternas. Este poderia ser um primeiro apoio para o
movimento de revolta contra a passividade, brecha que permite tam-
bém a entrada de um terceiro (a figura do pai).
Mas aqui André parece pular o segundo tempo do Édipo, onde o
pai é tão imaginário e todo-poderoso como o primeiro grande Outro
materno, e não ajuda a sair da relação imaginária, nem das energias
propriamente pulsionais desta fase.
O menino, que também deve passar por isso, encontraria a facili-
dade de uma identificação viril à mão. Para a menina seria mais com-
plexo, porque a mãe não oferece um traço unário para a identificação

"º Lacan, J. (1957-58). O Seminário, livro V. As formações do i11co11.,·<·ie111,•. Rio de


Janeiro, Jorge Zahar, 2001.
128 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

com o feminino, já que este não existe. Por isso o complexo de castra-
ção da menina está carregado de violenta hostiJidade em relação à
mãe. Por um lado (nos homens), surge a ameaça de perder este impor-
tante traço (o signo de virilidade), por outro (nas mulheres) inveja e
ciúme. Mas o traço unário, que oferece a primeira base identificatória,
não vem da mãe ou do pai, vem simplesmente do Outro.
Voltamos às três vias de saída possíveis para uma mulher:
1) A via da neurose, com abandono parcial da sexualidade, que
Freud diz ser o normal. Renuncia à masturbação; a posição
passiva fica parcialmente dirigida ao pai. Ligada ao desejo
de filho, esta posição identifica mulher com mãe. Posição
difícil de sustentar que dá lugar à segunda via (freqüente,
creio cu).
2) A segunda via seria a do complexo de masculinidade. Agarra-
se à atividade masturbatória e à identificação à mãe fálica
ou ao pai (que não é a mesma coisa). André diz que:

.. ,~·.1-.1·a a/ilude i1{/l11<'111·ia a escolha dl' objeto da menina no sentido


da lw1110.1·.1·,,x1wlidade man(fc!sta, ainda que esta não decorra, a
hc>m diz.c>r. em linha direta, da masculinidade infantil (ela só tem
sentido nu111a11to regressiio, mais tardia, a partir de uma decepção
it!fligida pelo pai) ". 1·' 1

Não me parece necessário que haja uma decepção infligida pelo


pai, os motivos podem ser outros. Talvez, se existe alguma decepção,
esta existe em todos os casos, já que a criança deve abandonar seus
objetos incestuosos primários. De toda forma, creio que esta pode
ser uma saída tão neurótica ou tão normal como a anterior. Neurótica
se produz sintomas como retorno do recalcado. Normal, se permite o
prazer e a criação dentro do socialmente permitido. Mas, eis aqui o
problema, a escolha homossexual, até há muito pouco tempo, não era

151 Jbid .• p. 198.


Graciela Haydée Barbero 129

socialmente permitida ou, pelo menos, bem vista. Confundia-se com


um problema intrapsíquico, aquilo que poderia simplesmente ser con-
siderado como uma questão de direitos humanos, um problema políti-
co. Tanto é assim, que a própria histeria pode ser entendida como
uma forma de protesto contra a inferioridade social da mulher. Um
protesto que, se individual, não produz mudanças sociais e sim sofri-
mento psíquico 152 , neurose, neste caso. Quando se transforma em
um movimento coletivo, a doença pode desaparecer.
Poderíamos entender o "complexo de masculinidade" como uma
via de saída da neurose histérica, uma forma de se procurar uma
solução aos impasses criados pela injustiça social, no sentido de
hierarquizar a diferença homem-mulher. Há algo de rebelde nas mu-
lheres que escolhem outras mulheres como forma de relação emoci-
onal e sexual, um questionamento das normas sociais que fica claro
nas numerosas agrupações lésbico-feministas que existem no mundo
ocidental. A estratégia nem sempre pode ser exitosa, mas deveria ser
reconhecida. O próprio Freud, no caso da jovem sobre a qual estamos
comentando, a chama criticamente de "feminista", como se isto fos-
se um defeito ou algo criticável.

"A análise ensinou, também, que a moça arrasf(IVll desde .l'tt(I


i,~fância, um 'complexo de masculinidade' muito acentuado. De
gênio vivaz. e comba1ivo e nada disposta a se deixar superar pelo
seu irmão imediatamente mais velho, desenvolveu, desde a data
de sua primeira visüo dos genitais do irnu1o, uma intensa 'inveja
do pênis', cujas ramificaçiíes ocuparam cada vez mais seu
pensamento. Ela era na verdadl' uma fenzinista, achava injusto
que as moças não tivessem as mesmas liberdades que os meninos e
se rebelava absolutamente contra o destino da mulher. Na éporn

15 z Ver, por exemplo, o trabalho de Emilce Dio Bleichmar, na sua obra: O .fi'111i11i.,·1110

espontâneo da histeria (Porto Akgn:, Artes Médicas, 1988), articulandn os si111,1111."


histéricos com uma forma de protesto "'feminista'" que só precisaria de 11111 111m·i,11e1110
social consciente e generalizado para transformar-se em um verdadeiro aco111,·,·i1111·1110
político.
130 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

da análise as idéias de gravidez e parto eram-lhe especialmente


desagradáveis, em grande parte, eu creio, também pela
desfiguração física que lhes são concomitantes. Seu narcisismo
Jemenil ', que jâ niío se exteriorizava como orgulho por seus
encanfOs, mostrava-se ainda nesta defesa. Diversos indícios
apontavam para uma antiga tendência para o prazer visual e
exibicionista. Aqueles que não querem ver restritos os fatores
derivados cio adquirido, verão nesta conduta da menina o
resultado ela ação conjunta e determinante da negligência ma-
terna e da compamçüo de seus genitais com os do irmüo, em meio
a uma intensa fixaçüo à mãe. " 153

Complexo de masculinidade e fixação ao pai não são antinômicos.


O complexo de masculinidade é a emergência de uma relação primi-
tiva com a mãe no próprio seio da relação com o pai, pensa André.
Não poderia ser a construção de uma nova relação com a figura
feminina e não com a mãe arcaica? A criança se decepciona, já que
os favores são dedicados à mãe e, renunciando ao filho do pai, se
identifica com ele. Dora e a "jovem" se encontram aqui, na identifi-
cação. A escolha de objeto nem sempre muda para a homossexuali-
dade, mas, mesmo assim, parece que desta forma a mulher não po-
deria escapar ao complexo de masculinidade. Fora isto, podemos pensar

"·' Freud, S. ( 1920). Op.Cil., p. 161. A tradução acima é da autora.


"E/ a11cílisi.1· e11se1i!Í, ademâs, que la muclwcha arrastraba desde sus <11ios de i11jáncia, un
'cmnpl<jo de ma.1·culi11idaJ· 111uy acc,uuado. De genio l'ivo y pendencino, nada gastosa
de que la relq;ase e.1·e hermmw algo mayo1; desde aquella iw,pección de los genitales (p.
141:/) hahía desarrullado una potente envidia dei pene cuyos retofío,1· i11111reg11uron más y
más su pensami<!1llo. Era en verdad una feminisra, hal/aba injusto ,,,,,, lus ninas no
gozaran de las 111is111as liber1ades que los varones, y se rebelaba absol11tw11c'11te contra la
.rnerte de la mujer. En la época dei análisis, el embarazo y e/ parto <'rl/11 para e/la
represe11tacio11e.1· de.1·a/!,radables, .l'l'/!,Úrt yo conjeturo, también a causa d<' la ,f,,sfiguración
dei cuerpo que traC'n consigo. A este defensa se hahía retirado su narci.,i.11110 ji'lllenil, que
ya no .ff exteriorizaba má.1· como orgullo por sus encantos. Diversos indil'ios apuntaban
a 1111 antiguo placer de ver y de exhibición. Quien no quiera ver recortado c11 la etiología
el dereclw de lo adquirido, reparará en que la conducta de la muchac/111 ..W'glÍn la hemos
descripto, era precisamente tal como tenían que determinaria los <'./Í'c/os, unidos, dei
relegamiento por parte de la madre y de la comparación de sus genita/es con los dei
lwnnano; en medi o de una fiterte fijación a la madre ... "
Gradeia Haydée Barbero 131

que existem inúmeros fatores que poderiam provocar uma decepção


na menina, com relação ao pai e não somente a idéia de uma decep-
ção ciumenta. O pai, por exemplo, poderia ser visto como insuficien-
temente atraente, tanto para a filha como para a mãe, ou, em todo
caso, atraente para uma identificação, ou como objeto de uma rela-
ção de amizade (amor sensual sublimado) e não como objeto de amor
e sexualidade.
Em síntese, Freud não conseguiu resolver satisfatoriamente o
problema da feminilidade e continua a sustentar o mistério, o enigma,
o perigo do feminino, que continua, talvez por isso, relacionado obs-
curamente com o real e com a morte. Mas, eu creio que justamente
aqui se encontra o quê da questão: feminino e masculino não têm
necessariamente de corresponder a mulheres e homens biológicos,
coisa que a milenar sabedoria oriental já demarcara há muito tempo,
com seus conceitos de Ying e Yang, e Lacan afirmando que se trata
de posições no discurso. Mas pensar que são posições que podem
ser assumidas por homens ou mulheres indiferentemente é uma sim-
plificação da questão que deixa muitas situações concretas sem ex-
plicação. Por exemplo, que sentido teria cm dizer que não há perver-
são do lado feminino já que "elas" não procurariam substituir com um
fetiche um falo (pênis aqui) que não têm, se estas "elas" fossem
anatomicamente masculinas, e portanto portadoras de pênis? Seria
melhor falar de aspectos femininos e masculinos em qualquer ser
humano? Não há dois sexos claros e diferenciados senão na biologia
e, mesmo assim, existem muitas exceções.
André pensa que Freud não avançou muito na resolução deste
problema, como o mostrariam seus últimos artigos sobre a feminilida-
de, onde reafirma uma bissexualidade última de qualquer mulher (es-
trutural) e a probabilidade freqüente de ressurgir sua masculinidade
originária (pré-edípica). A consideração da divisão entre uma escolha
narcisista e uma anaclítica ofereceria para ele outros elementos de
análise, mas eu acho que, assim mesmo, a questão não fica resolvida.
Por enquanto, podemos afirmar, com André, que Freud estabele-
ce mais um impasse em relação à mulher e, com Lacan, que a teoria da
132 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

castração e seus desenvolvimentos em relação à sexualidade feminina


em Freud representam um semi-dizer (ideologia, no sentido
"bachelardiano" de reconhecimento-desconhecimento da realidade) da
verdade, que tem uma certa função: a teoria da castração e o primado
do falo da qual ela surge, e que situam a feminilidade como um mistério,
seriam reveladoras, mas também mascarariam a verdade da mulher.
Por que continuar a sustentar este mistério? Creio que porque revela,
ao mesmo tempo em que oculta, uma situação social e política funda-
mental, uma luta de poderes transformada em formas de ser obrigató-
rias, "idênticas" a certos modelos predetenninados, ou em fom1as de
amar segundo a nonna. Pensando sob o outro extremo, por que os
homens não poderiam desejar desfrutar os prazeres e privilégios passi-
vos associados à feminilidade sem serem ridiculizados? Não que a lei
não deva ser respeitada mas respeitada, pode ser mudada e o desco-
nhecimento, na ciência, não é a melhor solução para nada.
André se pergunta se deveríamos tentar levantar o véu em cada
análise, ou simplesmente ver como cada um sustenta o véu, a seu
modo. A resposta, creio, não é do analista e sim do analisando. Eu
acho que o que fez a "jovem ho111osscxual'', e a todas as mulheres
que escolheram (mais ou menos co11scic111e111ente e/ou voluntaria-
mente) a homossexualidade tão ameaçadoras e, portanto, tão mal
consideradas, ignoradas ou merecedoras do qualificativo de perver-
sas e/ou doentes (como todos os homoss1.\xuais, ali.ís) foi a ameaça
política de desestabilização do status quo que representam, já que
elas levantam, mesmo sem o saber, o véu que oculta o significado
político deste "poético" enigma social sobre o feminino. Por isso de-
vemos ter muito cuidado e não chegar a conclus,ks apressadas so-
bre um problema tão sério e significativo apesar de que compreendo
que uma mudança como esta realmente implica cm transformações
muito fundamentais. No momento contemporâneo, uma das estraté-
gias para diminuir esta ameaça (aceita por alguns grupos militantes)
tem sido a de minimizar sua importância política sob o rc1tulo de "di-
reito à diferença", confinando assim em um grupo o que representa
uma transformação social generalizada.
Graciela Haydée Barbero 133

Deixamos de fora neste trabalho a teoria lacaniana dos gozos,


tão importante e interessante, porque o que nos interessa aqui é uma
possibilidade da mulher enquanto dentro da lei, da significação fálica:
a via do complexo de masculinidade, interpretada por Freud e outros
psicanalistas como uma possibilidade perversa ou indesejável.
Tampouco a teoria dos gozos está suficientemente estudada, creio,
como para clarear estas questões totalmente.
Faz-se necessária uma urgente precisão dos conceitos: o estatuto
do objeto, a diferença de objeto de amor e objeto pulsional, o objeto falta-
causa do desejo, objeto a, objeto parcial, etc. Eles foram temas de vári-
os seminários de Lacan, assim como o estatuto do falo, a diferença rigo-
rosamente estabelecida entre as diversas funções do falo, etc.
Talvez a possibilidade de encontrar uma saída não neurótica dos
conflitos humanos seria a de abrir para ambos os sexos os caminhos
que estiverem obstruídos, por restrições ou inibições neuróticas, em
relação ao outro (ou ao mesmo) sexo, assim como Freud afirmou em
Psicogênese de um caso de homossexualidade femini11a 15 \ co-
mentário que já mencionei. Mas qualquer solução deste tipo volta a
ser interpretada como perversão.
Serge André, por exemplo, em uma publicação posterior 15', diz
de novo que não é uma mulher o que a mulher homossexual deseja
em sua parceira. Ela quereria, ele pensa, uma mulher falicizada, ou
melhor, fetichizada, o que mostraria sua estrutura perversa.

"Poderíamos pro11or 11111a hipátese, levando em conta o Jato de


que, em 1920, Fr('fu/ 11170 ti11ha ainda desmontado os mecanismos
do .fetichismo; 11t1n'c'c' </Ul' o objeto, simultaneamente homo e
heterossexual, en,·,11·11udo pela dama, revela sua identidade se
distinguirmos nesta uma mãe fetichizada. Lembremo-nos de que o
pênis do irmão tinha impressionado bastante a paciente quando
esta era ainda uma criança pequena. O fato de que a dama

154 Freud, S. ( 1920). p. Cit.


155 André, S. A Impostura Perversa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
134 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

apresente algumas particularidades do irmão só pode nos remeter


a este pênis tão característico. Esta ligação a uma mãe fálica
assinalaria, além disso, a estrutura perversa da jovem". 156

Eu já mostrei outra interpretação possível. Este objeto, ao mes-


mo tempo homo e heterossexual, poderia representar uma simples
flexibilidade na escolha, uma liberdade e uma superação da fase an-
terior e não uma regressão.
A possibilidade que tem muitas mulheres de mudar o sexo de
seu objeto amoroso, uma tendência estatisticamente considerável, tendo
em vista todo tipo de observa,/ks clínicas, sociais e literárias - leva-
nos a propor uma hipótese um tanto ousada: o complexo de Édipo e o
de castração, modelos básicos da psicanálise, levam a escolhas de
identificação e objetais que podem ser relativizadas no percurso da
vida, segundo as experiências na história, o que coincide com o ponto
de vista do "último Lacan", que considera o próprio Édipo como um
sintoma. Consideração cujo verdadeiro alcance deveríamos aprofun-
dar, mas que não por isso devemos ignorar.
Por outra parte, mesmo sem ir tão longe, o desalio ao pai que às
vezes as jovens (ou velhas) homossexuais representam, assim como
os sonhos de tapeação que "a jovem" teria tido durante a análise com
Freud, podem ser perfeitamente explicados dentro de uma estrutura
neurótica. Não podemos pôr no mesmo patamar u111 desejo incons-
ciente - um forte impulso (ou emoção) de origem desconhecida para
o sujeito-, um simples sentimento de raiva ligado à figura paterna, e
um comportamento adolescente de rebeldia. A transgressão social
tem diversas formas, significados e valores, segundo a sua possibili-
dade de propor ou instituir o novo, em lugar de se aproveitar
gozosamente da destruição.
Freud teria errado, segundo este autor, ao não aceitar os sonhos
mentirosos corno manifestação da vontade de tapeação da paciente.
Sim, parece evidente, mas que teria encontrado se aceitasse esse

Hó André, S. Ibid., pp. 165/166.


Gradeia Haydée Barbero 135

lugar transferencial que a jovem lhe propôs'? Não o sabemos. Espe-


remos que os analistas contemporâneos possam aceitar este desafio.
Em uma revista mexicana, muito atualizada nestas questões,
apareceu um artigo bastante interessante, que de alguma maneira
coincide com meus pontos de vista. O autor, Lucien Favard, reflete
sobre esta questão freudiana transferencial com relação à jovem e
faz algumas articulações. O artigo, chamado "O Niederkommen. Fazer
vibrar harmonicamente um sentido mais além" 157 , está escrito de for-
ma literária e cheia de detalhes sutis e sofisticados, comparando a
jovem e bela homossexual de Freud com um toureiro cuja arte era
tão delicada que "deixava cair" (niederkommen) as mãos enquanto
andava sobre a areia, depois de atingir o animal. O autor assinala a
importância estrutural que Lacan dá a esta palavra, que aparece uma
vez só, em nota de rodapé, no relato que Freud faz do caso, marcan-
do um sintoma (niederkommen =deixar cair =parir) pontual. Lacan,
no Seminário 4, As relações de objeto e as estruturas .fi·eudianas 158 ,
em 1957, dá-se ao trabalho de falar durante três aulas deste caso e
desta situação. Mais duas vezes, em 1963 (Seminário da angús-
tia)159 e, em 1967 (O ato analítico) 160, a situação virá à tona. Mas
as coordenadas lacanianas irão mudar, se corrigindo, nos explica
Favard. A questão em jogo está relacionada tanto ao objeto a, como
à identificação com ele da jovem, e também do psicanalista. Para o
autor o que está em jogo nesses desenvolvimentos é uma nova teoria
da transferência.
O estudo do caso da jovem faz aparecer que seu "cair" realiza-
se sob a mirada do pai, que supomos furiosa. A jovem, que passeava
nas ruas com sua amada dama, pensando que seu pai a teria desco-
berto, afasta-se dela, à qual, então, um pouco magoada, a teria rejei-

1.<1 Favarcl Lucicn: "El Niederkommen. Hacer vibrar armónicamente un sentido lll:ís

aliá". /11: Me cayó e/ veinte - Revi.1'1a de psicoanálisis, nº 4. la dimensüín de '" l"'nlit!".


México, École lacanniene de psychanalisc, outono de 200 L, pp. 185-204.
158 Lacan, J. (1957-58; 1995). Op. Cil.

"" Lacan, J. (1962-63), Seminário inédito.


••0 Lacan, J. (1967-68), Seminário inédito.
136 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

tado. Sendo assim, duplamente rejeitada, a jovem se lança em um


túnel ferroviário. Lacan sentencia (com Freud): niederkommen, dei-
xa-se cair. Ela cai fora da cena.
Mas Lacan vai muito além. Ele fala da necessidade de "deixar
cair" o lugar de Suposto Saber cm que o analista é colocado na trans-
ferência, no final de uma análise. Este é um novo conceito que supe-
ra a expectativa anterior de que, em um final de análise, o paciente
deveria se identificar com o eu do analista. Não mais identificação
com analista. E como relacionar uma coisa com a outra como o faz
Allouch, se pergunta Favard? Não é suficiente pensar em uma analo-
gia, esclarece. Em 1957, Lacan fazia parte ainda da família freudiana.
Ainda não tinha acontecido um enfrentamento com a IPA. As críti-
cas a Freud são tangenciais, não diretas. Porém, desde o título
Psicogênese, a coisa não anda, diz. Lacan já não acredita que na
análise exista uma psicogênese. 161
Então, cm 1957, Lacan teria questionado a transferência por
meio da posição freudiana na análise desta jovem. O seu não poder
aceitar as mentiras e a sua identificação com um lugar claramente
paterno de onde "a deixa cair", sugerindo que precisava uma analista
mulher (wmo é isso, analista tem sexo?). Lacan adjetiva estas inter-
venções e comentários de maneira retórica: brilhantes mas perturba-
doras, arcaicas ou antiquadas, instrutivas, pertinentes e "pasmosas",
extraordinárias ... Em resumo, vê Freud ultrapassado pelas suas pró-
prias informações do caso. Atrasado com relação a Dora, teria visto
o que aconteceu por ocupar esse mesmo lugar paterno na transfe-
rência, mas já é tarde. Da 'jovem", não tira todo o partido que pode-
ria, pensa.
Estas críticas eram, na realidade, implacáveis, e as efetivará de
forma clara, aberta e argumentada, depois dos incidentes com a IPA,
quando já não mais se interesse por salvar sua posição nesta institui-
ção. Lacan assume sua diferença, diz o autor.
101 Esta situação está explicitada no Seminário m.

Lacan, J. ( l 955-56). O Seminário - Livro 3, as psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,


1985.
Gradeia Haydée Barbero 137

No Seminário da angústia dá uma reviravolta. Falando de acti11g


out, refere-se a Freud, em relação a esta paciente, e ao "homem dos
miolos frescos", paciente de Kris, como dois casos em que os acting
out dos pacientes dependeram de um manejo errado da transferên-
cia. No caso da "jovem", Freud teria atuado porque Lacan conclui
que todos os acting out dos pacientes em análise são uma resposta
às atitudes erradas dos analistas. E o autor joga até com a possibilida-
de de a jovem ter caído no túnel depois de conhecer Freud. Não há
mais alianças com a parte sadia do eu, não há identificação ao analis-
ta. O analista ocupa o lugar de objeto pequeno a, e deve ser destituído
do suposto saber. Este deve ser "deixado cair" no final da análise, em
um momento de salto do psicoanalisante a psicanalista, segundo este
novo Lacan.
Em 1963, durante o Seminário IO, a IPA estava investigando
Lacan. Não gostavam das sessões curtas que ele tinha inventado, da
presença dos analisandos nos Seminários, da nova doutrina geral e
especialmente da nova teoria da transferência. Não gostavam de um
pensamento livre e autônomo. Parece-me que esta rejeição poderia
ser comparada com a de alguns analistas atuais, que não querem
ouvir folar das novas parcerias amorosas como algo "normal" e fa-
lam de novos sintomas sociais, novas patologias ou novas formas de
gozo. Não discuto que possam existir, mas, se gozo e erotismo signi-
ficassem a mesma coisa, o conceito lacaniano de gozo - tão sofisti-
cado por outra parte - não seria necessário.
Favard nos recorda, voltando à teoria de Lacan, que é conveni-
ente que o analista esteja consciente de seu lugar de objeto a, causa
do desejo, ao qual será reduzido por tê-lo sempre sido. Deixando cair
o seu lugar de suposto saber e não "niederkommen" (deixar cair) os
pacientes que nele confiam, brinca.
Pessoalmente, não acho necessária a hipótese de que o al'Ídc11
te da jovem tenha sido provocado de alguma maneira pela incapaci-
dade freudiana de ocupar um lugar de analista na transfcr011L"ia, 11c111
transformar sua interpretação sintomática de rodapl\ o
niederkommen, em um conceito central para intcrprl·tar qualqun
1:J8 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

1i po de homossexualidade feminina, como alguns fazem. 162 Pensar


que o problema fundamental da bela jovem tenha sido o niederkonunen
paterno, interpretado como falta de amor do pai, lembra-me de forma
suspeita a acusação de mal-amadas que carregaram as feministas
durante muito tempo. Uma afinnação politicamente questionável. Mas
o que sim aconteceu, e ela o confirma no livro que comentaremos
brevemente a seguir, é que Freud tinha lhe proibido de se encontrar
novamente com sua amada. Isto não pode deixar de ter conseqüências,
no mínimo a de provocar uma mentira. Um acting out? De quem?
Poderia ter forças uma jovem de dezoito anos, dependente dos pais e
que, segundo afirma, os amava, apesar de suas diferenças, para
opor-se de outra maneira?
E pensando em que ela se mostrava, será que é válida a inter-
pretação de que e1a gostava de provocar? Isto me fez pensar no
fenômeno atual da visibilidade gay e lésbica. Existem "no ar", muitos
questionamentos. Por que os/as gays se mostram, por que pretendem
ser reconhecidos? Por que não ficam escondidos entre quatro pare-
des sem causar perturbações? Não acho que este caso possa ajudar
a responder a estas perguntas, mas podemos ampliar a reflexão se
pensarmos no fenômeno social que começou a tomar vôo cinqüenta
anos depois, em um acontecimento que foi chamado Stonewall. Uma
ceita noite, em um bar concorrido por uma população "diferente",
que mostrava preferências sexuais e afetivas que não correspondiam
à norma heterossexual, o público resistiu durante quatro dias e quatro
noites à investida dos policiais que pretendiam fechar o estabeleci-
mento e encarcerar quem opusesse resistência. Isto aconteceu em

161 Existe, por exemplo, um texto de Agnes Aflalo chamado Homo-sexualité femi11i11e er

ravag1•, veiculado pela revista digital Omicar (2002) que generaliza este "niederkommen"
(laiser tomber) para mulheres lésbicas, exemplificando com casos da sua clínica. Segundo
ela, elas foram "deixadas cair", antes do momento de uma identificação (massiva, clara)
ao pai. E mais, este deixar cair seria muito sério: "Le sujet a été reduit par l'Outre, /e plus
souvent /e pere, a un pur statut d'objet humilié, maltraité et devalorisé (... ). ". Poderia-
se entender facilmente que aqui se sugere a interpretação de que as lésbicas, em geral,
tiveram de se dirigir às mulheres como objetos de amor, por terem sido anteriormente
humilhadas e desvalorizadas pelos pais, com quem logo se identificariam massivamente,
o que não que pode ser sempre o caso.
Gradeia Haydée Barbero

28 de junho de 1969. Hoje, no Brasil e no mundo, esse dia foi prol"la


mado o Dia do Orgulho Gay. Os psicanalistas estão a contestar esta
evidência? Por que pensar ainda em uma "provocação" perversa e111
vez de focalizar seu aspecto de luta política?
A análise do caso da "jovem homossexual", tão importante para
refletirmos a respeito das proposições psicanalíticas, mais propria-
mente freudianas, a esse respeito, não pode prescindir das novas in-
formações vindas ao conhecimento público recentemente. Na revis-
ta L'Unebévue, nº 19 163 , sob o título de Margarette Cs. et "Lajeune
homosexuelle" de Sigmund Freud, foi publicada a resenha de um
livro, escrito em alemão por Inês Rieder e Diana Voigt no ano 2000,
que acaba de ser traduzido para o francês sob o título de Désir secret
(Desejo secreto)1 64 • Nesta resenha é apresentada ao leitor uma sé-
rie de dados biográficos referentes ao conhecido caso da 'jovem ho-
mossexual", entrevistada por estas autoras durante um longo período
de tempo, completando um total de 60 horas, das quais elas extraem
algumas passagens da sua vida que podem interessar aos psicanalis-
tas, especialmente nesta tarefa de decifração que nos é endereçada.
A ':jovem" aparece com o nome de Sidonie Csillag, mas parece
ter sido Margarette Cs., segundo este comentário, e foi entrevistada
pelas autoras entre 1989 e 1998, um ano antes da sua morte, em Viena,
aos 99 anos de idade. Ela demorou em se reconhecer na antiga pacien-
te de Freud e diz não ter aceitado nunca a interpretação freudiana de
que sua homossexualidade derivasse de um desejo frustrado de ter um
filho do pai (o que, na realidade, não significa que não o fosse, se bem
que inconscientemente). Ela nunca leu o artigo que o mestre lhe dedi-
cara. Ficou realmente magoada com ele. Isto nos fala de uma transfe-
rência negativa, mas, reconheçamos que existiam razões.
As entrevistadoras recompõem uma história de vida, da qual
alguns dados me parecem significativos, se bem que não suricic111,·-;.

"'-' L 'Unebél'ue, Revue de Psychanalyse; número 19: "Follemcn1 ,., 11 . 11 ;ii•.u,1/1,·


psychanaliste, un cas de nymphe". Paris, Epel, março de 2002. ·
16, Ricder, I. e Voigt, D. Sidonie Csil/ag- Homosexuel/e chez Frl'11d f.n-t, 1,. 11 ,1, ,/, 1111 /,
siecle, Paris, Epel, 2003.
IIJO Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

para um maior esclarecimento da subjetividade desta mulher. Ela era


descendente de judeus pobres, situação superada pelos bons negóci-
os do pai antes da gue1Ta, que, por outra parte, tinha decidido batizar
os filhos no catolicismo para evitar qualquer tipo de perseguição.
Podemos reconhecer o amor desta pessoa pela mãe na sua lem-
brança de ter chorado por uma única vez diante de Freud, quando
disse que sua mãe era muito beJa e que ela teria feito tudo por ela
mas, que a mesma, só gostava de seus irmãos homens. Mágoa, pode
ser, mas, existe alguma patologia em desejar o amor da mãe?
Também reconhecemos a atitude imaginária de um cavalheiro
que ela vai repetir em relação a Leonie (sua ''dama") e talvez às outras
mulheres que ela amou durante a vida. Creio que a interpretação de
amor corlês que Lacan oferece é totalmente correta, mas descritiva.
Ela confirma, ainda, que a mãe interferia nas suas relações com seu
pai, a quem ela era muito ligada afetivamente, mesmo desafiando, de
maneira mais ou menos indireta, sua autoridade. Esta autoridade que
se opunha a seu desejo amoroso por outra mulher. (Afeto e não aceita-
ção de alguma proibição não são, de forma alguma, contraditórios.)
Sidonie"'~ afirma que o pai a encaminhou à situação analítica
para ela mudar seu comporlamento e tanto ele como Freud fizeram-
na prometer que não veria mais sua amada. Ela aceitou porque pre-
cisava do amor e da proteção paternas. Sua mãe não se incomodava
demasiado com o fato de sua paixão ser por uma mulher, mas pelo
fato de esta mulher não ter boa reputação, corno Freud já nos relata-
ra, e quando se deu conta de que Sidonie tinha visto novamente sua
"dama", diz-lhe que o pai e o "Professor Freud" não iriam gostar de
saber disto. Por esta razão, e não porque gozava de nenhuma vonta-
de particular de enganar, transgredir ou desafiar, é que ela começou a
relatar a Freud: "une histoire à moitié vraie" 166 (Op. Cit.). Sem
conseguir deixar Leonie fora de seu discurso, mistura a realidade

165 Ficamos sabendo, na apresentação do livro mencionado, que "a jovem" não gostaria de

que seu verdadeiro nome fosse conhecido, pelo que daqui em diante, a chamarei Sidonie.
166 Uma meia verdade.
Gradeia Haydée Barbero 141

com seus desejos e fantasias diurnas em relação a ela e os transfor-


ma em sonhos. É interessante como uma atitude como esta, nesta
situação, é interpretada como um sinal de perversão, já que o próprio
Freud não consegue separar o desejo real e o amor de Sidonie por
uma mulher, de um comportamento diante da figura paterna que "o
Professor" interpretava como uma vingança. Se esta jovem encontra
fechado o caminho que a leva a desejar o amor sexual de um homem
(a mãe interfere na sua relação com o pai), e a condição ou orienta-
ção homossexual é possível de ser explicada (parcialmente?) por meio
das vicissitudes de seu percurso edípico, não é por isso que devemos
definir esta homossexualidade como um sintoma patológico. Inclusi-
ve, no inconsciente pode existir a idéia de vingança ou desafio, como
qualquer mulher poderia ter, nos casos de heterossexualidade mani-
festa, em relação à mãe e isto não representa um traço perverso.
Para ela, amar uma mulher não era problema. Não conseguir
ficar com a amada, ser perseguida por isto, tornava-a infeliz. Beijar
ou abraçar um homem causava-lhe desgosto;já mais idosa, os filmes
com cenas eróticas faziam-na dormir (recalque?).
Creio que, se nisso queremos pensar, o sintoma aparece nas
três tentativas de suicídio que estas entrevistas nos relatam. Três
tentativas, interpretadas por quem escreveu o comentfüio, como de-
safios à autoridade paterna. Sim, desafio sintomático, resistencial, já
que não conseguiu encontrar na sua vida uma outra maneira, mais
sublimada, de coletivizar esta falta de oportunidade social para a ex-
pressão de suas intensas emoções. Ela, lamentavelmente, parece não
ter sido propriamente feminista, como Freud supôs,já que talvez nes-
te caso teria encontrado melhores caminhos na sua vida pessoal por
meio da sublimação ou da pr.ítica política.
Fora as tentativas de suicídio, da viveu situ;u,·i"il·s sociais difí-
ceis, algumas das quais parccc111 ler dependido dos seus conflitos
(neuróticos) sem resolver. Sidonie linha ccrla n·jci1J10 pelos judeus,
não considerava esta sua origem. Seus a111igos L'l';1111 conservadores.
Se esta jovem estava dividida entre o amor que scnlia pelo seu pai,
seu "não querer lhe causar desagrndos" e a raiva poryue este se
142 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

opusera aos seus "desejos secretos", também devia reconhecer que


o pai a protegia da decadência social que nesta época esperava as
mulheres que não tivessem como se sustentar por meio da família ou
do matrimônio. Ela tinha vivido na própria carne muitas situações que
lhe mostravam que era a sociedade da época, e não somente seu pai,
quem se opunha à expressão de seus desejos. Leonie, sua amada
dama, tinha sido deserdada por uma atitude da segunda mulher de
seu pai (ele era divorciado da sua mãe), que conseguiu que um médi-
co emitisse, como um diagnóstico, um "certificado de lesbiandade".
Isto fez com que ela tivesse de encontrar uma outra forma de sobre-
viver que não depender da fortuna do pai, um barão. Leonie aceitou a
ajuda financeira de alguns cavalheiros, em troca de favores sexuais,
de forma discreta e com liberdade de fazer o que quisesse da sua
vida, às vezes, namorar também a esposa. Se esta mulher era ou não
uma "prostituta de luxo", uma "coco(l1•" ou qualquer outro qualifica-
tivo similar, não temos informações suficientes para julgar, especial-
mente porque teríamos que conhecer o significado de seus compor-
tamentos naquela época histórica de, como todas, tem suas normas
de comp01tamento, e, como diz Foucault, suas resistências.
Em algum momento (muito posterior à amílisc) Sidonie acabou
aceitando casar, para ser como as outras, diz, mas não o conseguiu
desta vez, sendo que este foi o motivo da sua terceira tentativa de
suicídio. A segunda fora a ingestão de um veneno, algo que não a
prejudicou demasiado, por ocasião de Leonie deixar a cidade com
outra mulher. Entre idas e voltas a relação continua até 1924. Depois,
ela relata ter se apaixonado por um homem (bissexualidade, fantasias
variadas?, superego frouxo?, fixações menos rígidas cm relação ao
sexo do parceiro?) que morreria logo, e acaba casando com um ex-
capitão das forças aéreas, em 1930. Pouco tempo depois seu pai
morre e Sidonie se desquita. Conhece o grande amor da sua vida,
uma mulher chamada Wjera, mas por alguns motivos (fortes ou trivi-
ais) nunca conseguem ficar juntas. (Ouve só um dia em que puderam
se encontrar livremente.) Sidonie sofre de: "(... ) não se poder doar
inteiramente" (inibição?).
Gradeia Haydée Barbero 143

Quando a fortuna de seu pai acaba, viaja como governanta das


crianças de amigos diplomatas e acaba seus dias em uma casa (resi-
dência para pessoas idosas) que acolhe pessoas de boa família.
Sidonie tem resistências, ela não quer saber das interpretações do
professor Freud, mas ela ama as mulheres porque assim o sente. Tal-
vez, à moda de um cavalheiro. Porém, vale a pena insistir por isto na
existência de uma estrutura perversa? A cena anterior à sua primeira
tentativa de suicídio, o encontro com o pai que a teria olhado furioso, é
descrita por ela como algo que não sabe se aconteceu. Ela teve medo,
mas nunca chegou a saber se o pai a tinha visto de braços dados com
Leonie (este olhar furioso, suposto em tantas interpretações psicanalí-
ticas do acontecido) antes de ela sair correndo para se esconder, coisa
que Leonie não aceitou de bom talante. Diante da possibilidade de se
ver sem seu pai e sem sua dama, ela se joga na barranca do trem.
Depois, não conversa com seu pai sobre o acontecido
O livro, que logo chegará a nossas mãos 167 , nos dará mais da-
dos. Ela sempre parece tão parca, tão breve, tão concisa.
Mas qual é a questão que se desenvolve por lr,ís disso tudo? Para
que nos servem estas informaçf>es, se o que nos interessa é a estrutura
clínica que sustenta esta pessoa quL~ viveu durante quase todo o século
passado em uma Europa permanc11lL:111L'lltL' atravessada por movimen-
tos políticos, guerras, mudarn,:as ll'cnol(ígicas e cientificas? Qual é a
imprntância de saber a hisllíria postl!rior daquela que conhecemos como
"a jovem homossexual", que nunca desejou ler o artigo que Freud lhe
dedicara, que gostava mais de animais que de pessoas, que chegou
mesmo a salvar sua Dama da prisão onde tinha sido colocada por uma
suspeita de tentativa de assassinato do marido? No mínimo, parece-
me, poder relativizar as informações que Freud apresentara.
E que fazer com relação à transferência freudiana, que nessa
mesma época estava analisando sua filha Anna? Esta filha que não
teve relações amorosas conhecidas com homens durante toda sua
vida e que teve uma relação prolongada e algo suspeita, com uma

t(, 7 Edição em português a ser lançada brevemente.


144 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

amiga, Dorothy, cujos filhos ela mesma analisou? Uma filha que, com
outros psicanalistas, conseguiu barrar a entrada de pessoas homos-
sexuais na instituição analítica por muitos anos? Minimamente, co-
nhecer os fatos e as diversas interpretações que deles existem.
O ditame do "Professor" - "demasiada resistência" - não tinha
em conta a si mesmo quando diz que o objetivo de uma análise não
pode ser o de mudar as preferências sexuais e menos ainda proibir
uma conduta como condição de análise. Proibindo Sidonie de ver e
relacionar-se com sua dama, ele não terá colaborado, por abstenção,
para que sua vida fosse uma sucessão de desencontros amorosos
com mulheres e homens de diferentes maneiras?
E, voltando ao começo, poderemos saber se esta jovem era per-
versa? Temos alguma resposta para isto nos seus dados biográficos?
Homocrotismo é sinônimo de perversão na psicanálise?
O qualificativo de perverso saiu do âmbito jurídico e entrou no
campo médico perto de 1890 (dez anos antes do nascimento de
Sidonie), sem deixar por isso de ser um conceito ligado à desvaloriza-
ção, à imoralidade, desvio, psicopatia, etc., além de representar, ou
quem sabe, por representar, algo secretamente desejado por muitos:
as fantasias "perversas" do neurótico.
Posso constatar a existência de certo grau de cinismo, neste
momento, atravessando as relações humanas, o que seria, talvez, um
sintoma social importante, no sentido de mostrar algo que não anda
bem nas relações entre os homens, mas, teria isto alguma relação
com as novas possibilidades de expressão da sexualidade, da identi-
dade e do amor homossexual de fórma socialmente visível? Algo a
ver com a jovem - as jovens ou velhas - homossexuais?
Se de cinismo ou de moral se trata, não é de moral sexual com o
que a psicanálise tem de se preocupar. Ou melhor, tem de se preocu-
par, mas não tomar partido.
Sem entrar aqui na longa reflexão necessária para determinar
qual é, ou deveria ser, a relação da psicanálise com a ética e com a
moral, deixo-a assinalada.
Por enquanto, voltarei na minha pesquisa a focalizar o que Freud
e Lacan, e não mais seus comentadores, disseram sobre o tema.
CAPÍTULO III

HOMOSSEXUALIDADE E
PERVERSÃO NA OBRA DE FREUD

A homossexualidade na obra de Freud:


um percurso crítico

"Na ,l'l'Xlllllidade, o mais suh/il,w 1' 11 mais lllj'ando


aparecem por tmlos lados em ÍIIIÍIIW depe11dí?11âa ".
("Dl'scle o céu, passando pelo mwulo, a/é o Íl(/Í!mo. '') 11' 8

Como acabamos de ver, antes da aparição dos estudos feminis-


tas, gays & lésbicos, queer, etc. e da consideração de que estariam
apontando para a psicanálise o aparecimento de novas formas do
erotismo, que indicariam a necessidade de uma precisão conceptual
mais depurada a este respeito, a homossexualidade, assim como ou-
tras variantes da expressão da sexualidade, eram consideradas pelos
psicanalistas como desvios. Um desvio da norma heterossexual e
reprodutiva que parecia ser a meta necessária a ser alcançada em
um suposto desenvolvimento da sexualidade infantil.
Freud teve idéias revolucionárias e brilhantes que permitiram
desprender a teoria psicanalítica das pressuposições normativas L'
organicistas da psiquiatria da época. Mas, apesar de ter podido a111-
pliar o campo da sexualidade e demonstrado a impossibilidadL· de
desligar os comportamentos considerados "normais" do que 11a ,:p.,

"'' frcud, S. Cartas a Fliess, carta 54. ''En la sexualidad, lo más sublime y lo 111;i·. 11.-1 ..... 1..
aparecen por doquier en íntima dependencia". Na continuação, Freud lr:i, 11111:1 , 11.,,•. 11, d,·
Goethe, Fausto, ªPrólogo en e/ teatro": ªDesde el cielo, pasando por l'i 111111111 ... l1.1·,lo1 .-1
infierno.".
146 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

ca se consideravam aberrações, ele não conseguiu se desprender


totalmente da expectativa de uma evolução heterossexual pelo que,
muitas vezes, se perguntara sobre as causas ou motivos que poderiam
levar a uma escolha diferente desta.
Considerando que Freud teria mostrado, desde o começo, o cami-
nho da separação entre o biológico e o subjetivo nas escolhas sexuais e/
ou identitáiias dos seres humanos e que ele também abrira passo para
afirmar a inexistência de uma naturalidade desejante que corresponda à
anatomia diferencial dos corpos, e que, por este e outros motivos, tenha
apagado a separação entre o normal e o patológico, mostrando a ligação
e não a descontinuidade entre os comportamentos nonnais, neuróticos e
os assim chamados perversos, stuvrccnde um pouco que continue a
haver obstáculos à afinnação de que existem simplesmente outros cami-
nhos que o heterossexual convencional e outras opções que aquela fixa-
da entre duas identidades (homem/mulher) rigidamente preestabelecidas,
e que eles não seriam patológicos por si mesmos.
Os defensores da idéia de "normalidade" oposta às "abem1ções
perversas" representam somente uma herança da sexologia, anterior
ao discurso da psicanálise, ou a teoria freudiana ainda dá lugar a
estes pressupostos? Por que continuam a ser associadas, na literatu-
ra psicanalítica, homossexualidade e perversão? Por que identificar
uma estrutura psíquica com uma preferência erótica tiualquer?
Freud começou sua teoria falando de "perversões" um qualifi-
cativo que se dirigia a todos os comportamentos sexuais que não
tinham por objeto a reprodução. Sua perspectiva muda quando en-
contra um mecanismo: a renegação ou recusa da mstração, ligada
a uma angústia de castração insuportável perante a falta materna (de
pênis), que produziria uma forte clivagem no eu e uma rejeição parci-
al desta percepção. Mas, significou isto um avanço ou um retrocesso
no aspecto que estamos considerando?
Este achado clínico importante (o mecanismo da renegação li-
gado a uma clivagem do eu) é generalizado em uma tentativa de dar
conta de todos os comportamentos ditos perversos com uma explica-
ção universal que, na minha maneira de ver, não corresponde aos
Gradeia Haydée Barbero 147

fatos clínicos ou sociais atuais. Ele teria considerado como fato prin-
cipal o horror frente à falta de pênis na mulher. É isto um fato de
estrutura ligado a todas as "perversões"? Quais os argumentos? No
conceito de "estrutura perversa" de Lacan haveria uma mudança ou
esta sistematização também ajudou a colocar os homossexuais, os
transexuais, os bissexuais, os fetichistas, as mulheres que se apaixo-
naram por mulheres (em qualquer momento da sua vida) e todas as
outras variantes eróticas subjetivas dentro de uma categoria que os
classificasse como um todo, uma categoria nosográfica, patológica?
Parecetia haver em Freud uma tensão entre pênis e falo, uma osci-
lação que não se resolve e ajuda a confundir o campo, mas esta explica-
ção não é suficiente para a determinação de efeitos que até hqje subsis-
tem, mesmo depois de Lacan ter deixado dara esta distinção. De que
sintomas ou efeitos psíquicos estaria dando conta o conceito de estrutura
perversa, se deixarmos de fora a descrição de práticas sexuais que estão
sendo lenta, mas insistentemente, aceitas como legítimas na sociedade
contemporânea? Será que a mesma consegue dar conta de todos os
sujeitos que escolhem, de uma ou outra forma, estas variaçôes eróticas?
Não haveria que se perguntar de que modo está inscrita qualquer prática
sexual no mundo simbólico e imagin{uio de um sujeito?
Se pensarmos que todo sujeito não heterossexual (ou fora dos
padrões convencionais da sexualidade) é perverso, poderíamos ade-
rir à seguinte afirmação de um conceituado psicanalista lacaniano:

"O perverso substrai-se a essa oscílaçüo, encerrando-se na


representação de uma falta mio simbolizá1·el que o aliena e o
condena, por isso mesmo, ao trabalho de Sísifo de uma contestação
psíquica inesgotável sob os auspícios da negaçcio da castraçüo
da mãe. Deste modo obstrui-se, para o fitturo perverso, a
possibilidade de aceitar facilmente a castraçüo simbólica que não
tem outra função sencio fazer advir o real da diferença dos sexos
como causa do desejo para o sujeito.". 169

""' Dor, J. (1987). Estrutura e perversões. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991, p. 103. Os
negritos são da autora.
148 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Segundo este critério, teríamos de dizer que homossexuais,


bissexuais, transvestistas, fetichistas não compuJsivos, praticantes da
sexuaJidade SIM, etc., têm problemas com a operação simbólica da
castração. Eles, ao não aderir ao critério da diferença dos sexos, ao
real da diferença dos sexos (?) como causa do desejo, seriam
todos perversos, segundo esta definição? Não seria esta uma simpli-
ficação banal e inútil?
Daqui em diante, examinarei a obra de Freud (e a de Lacan no
próximo capítulo) com cuidado, para diferenciar o que eles disseram
e o que disto fora interpretado. Provavelmente o mesmo Freud, que
no percurso da sua obra falara muitas vezes, e de forma às vezes
contraditória, de perversões e homossexualidade, tenha dado lugar a
equívocos.
A evolução de suas idéias a este respeito (perversão) pode ser
resumida na seguinte cronologia, seguindo Patrick Valas 170 :
De 1895 (Estudos sobre a histeria 111 ) até os Três Ensaio.~· 112
(primeira versão de 1905), Freud diz, não se interessa realmente pe-
las perversões. Opõe-se ainda ao cérebro anormal dos degenera-
dos e desequilibrados, ao cérebro sadio das histéricas. Em Car-
tas a Fliess (nº 69) 173 já teria falado que se percebe melhor o papel do
fantasma, com a perversão. Em 1900 (lnterpretaçüo dos Sonhos 114 ),
fa]a da compulsão exibicionista, com um certo colorido subjetivo. No
"caso Dora" 175 diz que as perversões não são bestialidades nem de-
generações e estão contidas na predisposição geral pelo que, quem
se torna manifestamente perverso, teria sofrido uma interrupção no
desenvolvimento. Então surge a idéia de que as neuroses seriam, por
assim dizer, o negativo das perversões. Nos Três Ensaios 116 tinha
170 Valas, P. Freud e a perversüo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990 e 1994.
171 Freud, S. (1893-95). Em1tlios sobre la histeria (Brcuer e Freud). ln: AE, vol. II, pp. 1-44.
170 Freud, S. ( 1905). Tre.1· ensayos de teoría sexual. ln: AE, vol. VII, pp.109-224.

"' Freud, S. (1982-99; 1950). Fragmentos de la correspondência com Fliess. bz: AE,
vol. 1, pp. 211-322.
m Freud, S. (1899; 1900). la interpretación de los suenos. ln: AE, vol. IV, pp.1-610
175 Freud, S. (1901; 1905). Op. Cit.

rn, Freud, S. (1905). Op. Cit.


Gradeia Haydée Barbero 149

falado da homossexualidade como uma inversão na escolha de obje-


to. Logo vai distinguir, com a teoria das pulsões, o objeto de amor do
objeto pulsional (parcial e indeterminado). Em 1914, em Introdução
ao Narcisismo 177 , mostra que a descoberta do objeto (de amor) na
adolescência é só uma redescoberta, um reencontro com o objeto
infantil abandonado. Tinha falado também, nos Três Ensaios' 78 de
perversões passivas (psiconeuroses) e de perversões ativas (perver-
sões). Depois da teoria da libido, na Metapsicologia, em Pulsão e
destinos da pulsüo 17'1( 1915) deixa claro que perversão e pulsão são
conceitos diferentes. As perversões não são pulsões sem diques ou
recalque. A perversão já estaria, neste momento, definida por uma
organização geral, específica, da vida sexual, segundo mecanismos
particulares. Pergunta-se nestes anos sobre fatores externos e inter-
nos, fatores constitucionais ou históricos e chega à conclusão de que
a perversão deriva de uma soma de fatores.
Então, a perversão é uma posição subjetiva a que, mais adiante,
agrega-se a explicação da passagem pelo Édipo. Pergunta-se, de-
pois, sobre a diferença que poderia haver entre o fantasma incons-
ciente do neurótico e o consciente do perverso ( I 908: As fantasias
Histéricas e sua relaçüo com a bissexualidade)' 80 , afirmando que
o neurótico sonha o que o perverso atua, mas logo se dá conta de que
esta afirmação não é tão absoluta. Em Sobre a moral sexual civili-
zada181, também de 1908, distingue os perversos, cujo objetivo se-
xual não é o genital, dos invertidos, no qual o objeto é desviado do
sexo oposto.
Em 1908, no caso do pequeno Hans 182, descobre o mecanismo
da recusa, no menino que imagina o órgão (peniano) que não vê nas

177 Freud, S. (1914). lntroducciôn ai 11arcisi.wno. ln: AE, vol. XIV, pp.65-98.
17" Freud, S. (1905). Op. Cit.
179 Freud, S. (1915). Pulsümes y desti11os de pulsiôn. /11: AE, vol. XIV, pp. 105-134.

"º Freud, S. (1908). Las fa11tasías histéricas y s11 relaciôn con la bisexualidad. ln: AE,
vol. IX, pp. 137-148.
'"' Freud, S. (1908). La moral sexual 'cultural' y la 11erviosidad moderna. ln: AE, vol.
IX, pp. 159-182.
18 ~ Freud, S. (1909). Análisis de la fobia de um nilio de cinco wíos. ln: AE, vol. X, p. 1-118.
l!,O Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

crianças de sexo feminino. Ligado a este fato de observação, surge a


itk;ia do fantasma da mãe fálica, que vai se confirmar no caso de
l .l'onardo da Vinci 18 \ em 1910. O conceito de desmentido ou
renegação aparece novamente em 1913-14 ( O falso reconhecimen-
to 184 e Um caso clínico de fetichismo" 185 ); em Algumas conseqü-
ências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos 186 (1925),
O Fetichismo 181 (1927) e, finalmente, em 1938, no artigo sobre A
clivagem do ego no processo de defesa 188 •
Em numerosos outros textos Freud fala sobre traços perversos,
perversões e fantasmas perversos. As idéias, porém, não mudam
demasiado. Vale a pena mencionar, pelo conhecido dos textos: O pro-
blema econômico do masoquismo (1924 ) 189 , Neurose, psicose e
perver.\·ilo 190 (1924 ), e Sobre alguns mecanismos neuróticos no
ciúme, na paranóia e na homossexualidade 191 , (1922). Compro-
vamos neste percurso um uso um tanto confuso e contraditório do
termo, perversões são, às vezes, sexualidades não unificadas em tor-
no da genitalidade e da reprodução, outras, aponta-se a um quadro
psíquico particular, que sugeriria a existência de um sujeito perverso.
~ O psicanalista brasileiro Jurandir Freire Costa 192, em uma obra
pioneira sobre homossexualidade pela sua corajosa ausência de pre-
183 Freud, S. ( 1910). Um recuerdo infantil de Leonardo da Vinci. 111: AE, vol. XI, pp. 53-
128.
18' Freud, S. ( 1914). Acerca dei 'jtmsse reconnaissance (d~ià raconté)' en e/ curso ele/

trabajo psicoanalítico. ln: AE, vol. XIII, pp. 203-212.


,s; Freud, S. ( 1913). Experiencias y ejemplos extraídos de la práctica analítica. ln: AE,
vol. Xlll, pp. 193-202.
166 Freud, S. ( 1925). Op. Cit.

187 Freud, S. (1927). Fetichümo. ln: AE, vol. XXI, pp. 141-152.

188 Freud, S. (1938; 1940). La escisiôn dei yo en e/ p,vceso defensivo. ln: AE, vol. XXIII,

pp. 271-278.
18' 1 Freud, S. (1924). E/ problema económico del masoquismo. ln: AE, vol. XIX, pp.

161-176.
'''º Freud, S. (1923; 1924). Neurosis y psicosis. ln: AE, vol. XIX, pp. 151-160.
"" Freud, S. (1921;1922). Sobre algunos mecanismos neuróticos en los celos, la paranoia
1· la homosexualidad. ln: AE, vol. XVlll, pp. 213-226.
,.,. !'reire Costa, J. A face e o Verso - Estudos sobre o homoerotismo li. São Paulo,
l·'.ditora Esi;uta, setembro de 1995. Especialmente o Capítulo 5: "Freud e a homossexu-
:tlid;odc". pp. 185-256.
Gradeia Haydée Barbero 151

conceitos em um momento ainda prévio ao que hoje vivemos, e que me


parece respeitar suficientemente a obra freudiana, reconhece nela cin-
co tentativas de sistematização que resumiremos a seguir para mostrar
a quantidade de argumentos que Freud manejara neste campo.
Segundo esta apresentação, antes de uma primeira sistematiza-
ção, oferecida por Freud nos Três Ensaios de uma teoria sexua/ 193,
apareciam claramente certos elementos herdados da psiquiatria: a as-
sociação da homossexualidade masculina com o feminino, a suposição
de que os homens recalcariam, em geral, estas tendências, e por isso
teriam dificuldades de falar sobre isto, uma suposição evolutiva de que
a homossexualidade formaria parte de um estágio posterior ao auto-
erotismo e prévio à heterossexualidade, a suposição de que a sedução
homossexual poderia ser causa traumática de posteriores distúrbios
psíquicos e a utilização da palavra homossexual como se correspondesse
a uma identidade, idéias todas que ele mesmo discutiria nos trabalhos
posteriores, mas não resolveria de maneira consistente.
A primeira tentativa de sistematização, segundo Costa, estaria
localizada no Fragmento de análise de um caso de histeria - o
caso Dora 194 e se trata da consideração da homossexualidade, em
mulheres ou homens, como parte da disposição perversa polimorfa
infantil. Aqui apareceria a homossexualidade como perversão, so-
mente no sentido de uma sexualidade desligada da função reprodutiva.
E, sendo infantil, seria considerada como uma inibição do desenvolvi-
mento, se bem que já nestes anos Freud reconhecia que na elevada
cultura dos gregos este era um fenômeno socialmente aceito, den-
tro de certas condições. Aparecem, por outra parte, idéias evolucionistas
ainda não superadas, em contradição com a evidência mencionada
sobre os cidadãos gregos, segundo afirma Costa.
Por outra parte, Freud não deixava de reconhecer que todos os
seres humanos compartilhavam em maior ou menor grau estas tendênci-
as, portanto, entrava em contradições, isso sem falar dos diques que

19' Freud, S. (1905). Op. Cit.


19" Freud, S. ( 1908). Op. Cit.
152 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

supunha deviam limitar esses comportamentos ''perversos" nos adultos,


tais como o asco e a repulsa. Estas questões retornam nos Três Ensaios
sobre uma teoria sexual1 95 , sendo a homossexualidade classificada como
uma aberração sexual, que se distinguiria pelo desvio do objeto e,
neste artigo, chama os sujeitos, que apresentam fortemente essas ten-
dências, de invertidos e não de perversos. Vemos aqui o mestre criador
se debatendo entre uma mente clara que produzia idéias revolucionárias
e suas rígidas crenças morais, adequadas à época em que vivia. Neste
artigo, Freud critica todas as teorias existentes nesse momento sobre a
dita perversão: a inversão congênita, a bissexualidade biológica, o
hermafroditismo psíquico; nenhuma delas seria capaz de explicar os com-
portamentos de todos os "invertidos", mas suas elucubrações continua-
vam frágeis. Por exemplo, pensava que os homens "invertidos" se inte-
ressariam, como as mulheres, pelas características viris de outro sujeito,
mas, ao mesmo tempo, afirmava que no caso do amor grego, os homens
amariam as características femininas dos adolescentes.
Costa atribui estas contradições às imposições lingüísticas da
época, onde "mesmo sexo" e "outro sexo" seriam verdades inquestio-
náveis, mas me parece insuficiente esta explicação 1'JI,, que não deixa
claros os aspectos ético-políticos em jogo.
Freud também pensou no erotismo anal como causa destas ten-
dências homossexuais nos homens, mas viu rapidamente que, de for-
ma alguma, o erotismo anal poderia se restringir aos assim chamados
homossexuais.
Em 1908, em A moral sexual cultural e o nervosismo moder-
no 191, ele especifica que a sexualidade normal é aquela exigida pela
cultura. Ou seja, Freud sempre pensou que não há normalidade sexu-
al que não seja relativa a algum critério social. E a cultura é dinâmica
e mutável. Depois dos Três Ensaios, fica claro que há uma diversi-

19s Freud, S. (1905) Op. Cit.


196 A autora desenvolveu com mais detalhes estas idéias na sua dissertação de mestrado,
tentando aderir às mesmas.
191 Freud, S. (1908). Op. Cit.
Gradeia Haydée Barbero 153

dade de formas possíveis de homoerotismo e se evidencia a fragilidade


da categoria perversão no sentido em que a estava usando (perver-
sões). Em todo caso, trata-se, simplesmente, de uma denominação.
Nesse mesmo artigo, segundo Costa, Freud teria recorrido à
teoria da bissexualidade psíquica original inconsciente como uma nova
tentativa de explicação. E aqui, deixando a norma biológica e a nor-
ma social para trás, Freud teria começado a desenvolver sua segun-
da teoria, ligada à dinâmica do inconsciente.
Tanto em As fantasias histéricas e sua relação com a bis-
sexualidade198 como em Cinco cm{ferências sobre a psicanáli-
se•w, Freud defende a idéia de que haveria sempre uma bissexualidade
psíquica inconsciente por detrás de qualquer sintoma neurótico. Por-
que somos desde a origem bissexuais é que podemos ser homossexu-
ais, pensava Freud neste momento. Este postulado, segundo Costa, vai
se transformar em uma espécie de a priori. Mas o postulado da
bissexualidade deixa de ser explicativo quando começamos a utilizar a
hipótese fálica a partir da qual os sujeitos se posicionariam em uma
dinâmica erótica e identificatória (Lacan), ou simplesmente não expli-
ca como é que cada um escolhe seus caminhos.
Agrega depois a idéia de que haveria uma dificuldade narcísica
de perceber a falta de pênis da mulher, por parte do menino (como no
caso do pequeno Hans e de Leonardo da Vinci, já citados). Neste
ponto surge a hipótese de que a perversão seria uma defesa contra a
ameaça de castraçüo, tão cara a muitas explicações psicanalíticas
posteriores da homossexualidade masculina, mas não tem como ex-
plicar a escolha sexual e amorosa de uma mulher por parte de outra
mulher, a menos que o complexo de masculinidade ocupe este lu-
gar. Em qualquer caso, o argumento de defesa contra a "angústia de
castração'' substitui a idéia de inversão deste momento em diante.
Coincidentemente ou não, Freud passa a considerar neste mo-
mento a homossexualidade separada das outras "perversões" e a
'"" Freud, S. (1908) Op. Cit.
1•• Freud, S. (1909; 1910) Cinco conferencias sobre psicoanálísis. ln: AE, vol. XI, pp. 1-

51.
154 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

falar de uma normalidade possível desses sujeitos nos outros aspec-


tos da sua vida sexual (Sobre as teorias sexuais infantis200 , e so-
bretudo, no caso do pequeno Hans 2º1). É neste texto onde expressa
que os homossexuais (masculinos, mesmo que não o especifique)
seriam aqueles sujeitos para os quais o significado erótico de seu
próprio pênis os teria impedido de renunciar ao mesmo na figura do
parceiro ou objeto sexual, como Freud o nomeava. Então o motivo
aqui era o inconsciente, não mais a fixação em uma etapa, nem o
erotismo anal. Porém, quando faz sua reflexão diagnóstica sobre
Leonardo da Vinci, cujas preferências homossexuais eram conheci-
das, o classifica como um neurótico obsessivo. Aqui aparece também
a hipótese da existência de fantasias de felação ligadas à etapa oral,
portanto bem anteriores a qualquer angústia de castração, afirma
Costa. Surge a idéia de uma relação erótica intensa com a mãe, e sua
atração por garotos jovens estaria na identificação dos adolescentes
como ele mesmo sendo amado pela mãe, que teria sucumbido à re-
pressão, uma identificação carregada de libido narcisista.
A idéia de identificação aparece junto da noção de "objeto per-
dido", o sujeito se identificaria com este objeto para não perdê-lo, e
este mecanismo viraria central na explicação da homossexualidade.
Este é um ponto interessante que Lacan retomara quando trabalhe o
conceito de objeto pequeno a, por definição, a-sexuado. Mas em
Freud, na medida cm que desenvolve sua teoria do Édipo, a identifi-
cação final com a mãe ou com o pai só pode ser explicada, em última
instância, por disposições prévias. De qualquer maneira, ele volta a
entrar em contradição: o menino se identifica com a mãe por que é
seu "objeto perdido", ou, como sugere em Algumas conseqüências
psíquicas da distinção anatômica entre os sexos 20 2, por que quer
substituir a mãe como objeto sexual em relação ao pai, situações
estas completamente opostas?

2"' Freud, S.( 1908). Sobre las teorías sexuales infantiles. ln: AE, vai. IX, pp. 183-202.
201 Freud, S.( 1909). Op. Cit.
2"' Freud, S. ( 1925). Op. Cit.
Gradeia Haydée Barbero 155

Agrega-se aqui uma reflexão sobre a atividade ou a passividade na


relação amorosa, que levaria, segundo Costa, à terceira teoria sobre a
homossexualidade em Freud: a passividade com intenções masoquistas.
Daqui em diante, segundo este autor, abre-se um enorme ema-
ranhado conceituai ( ... ).

"Freud começou a usar termos como homossexualidade,


passividade e feminilidade inconsciente como se fossem sinônimos.
(... ) Ora, este era um expediente problemático( ... ) Freud lllio po-
dia dizer que a causa da homossexualidade consciente era a
lzomo.1·.1·exualidade inconsciente··. 203

Em Psicologia das massas e análise do eu 204 , Freud afirma


que a formação das massas depende do amor dessexualiza<lo entre
os homens proveniente do trabalho em comum, mas também que na
massa não teria sentido se perguntar se a libido é homossexual ou
heterossexual, novas hipóteses que, em parte, se contradizem. Agre-
ga, ademais, outro fator: o dos ciúmes relacionados com um irmão-
ri vai, que teria se transformado em amor por formação reativa.
Para Costa, pode se levantar a hipótese de que nesta quarta
teoria a homossexualidade manifesta ou a sublimada seriam o resul-
tado de impulsos sádicos inconscientes, hipótese da qual os anglo-
saxões teriam extraído suas idéias sobre a agressividade na homos-
sexualidade, inversão e perversão.
Por fim, em Bate-se numa criança 20 5, aparece diretamente a
hipótese de uma posição masoquista no erotismo.
Continua a trabalhar este tema em O problema econômico do
masoquismo 206 e, finalmente, nas Novas conferências de introdu-
ção à psicanálise 207 • O que não fica demasiado claro é qual seria a
203 Costa, J. F. Op. Cit., p. 227.

"" Freud, S. (1921 ). Op. Cit.


"" Freud, S. ( 1919). Op. Cit.
""' Freud, S. (1924). Op. Cit.
207 Freud, S. (1932; 1933). Nuevas conferencias de introduccián ai psicoanâlisis. ln: AE,

vol. XXII, pp. 1-168.


156 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

diferença entre uma posição feminina e passiva e um desejo por um


objeto masculino, dado que Ferenczi teria apontado em um trabalho
da época com o qual Freud concordara mas aparentemente não se
dedicou a resolver.
Resumindo, Costa desenvolve, a partir do neopragmatismo, para
explicar esta diversidade de teorias e critérios freudianos em relação
à homossexuaJidade, a idéia de que ele teria partido da suposição da
existência da homossexuaJidade por ela ser um fato lingüístico.
Sob nosso ponto de vista, acreditamos que Freud tratou, sob
este rubro, muitos problemas e questões referentes à sexualidade
humana em geral, sem poder chegar a conclusões definitivas e ele foi
o suficientemente honesto para não forçar uma explicação única do
que estava comprovando que era impossível. A homossexualidade
não existia como uma entidade única, não podia ser identificada em
sua totalidade de expressões com uma perversão e tampouco com
uma patologia. E as expressões não convencionais da sexualidade se
qualificariam segundo seu grau de intensidade ou exclusividade.
Não foi assim com a maioria de seus continuadores, como vimos
no capítulo anterior. A maioria prendeu-se em uma ou outra destas
teorizações querendo tudo explicar, e se autorizando da palavra de Freud,
sem considerar o percurso íntegro da sua obra que nunca pretendeu
estabelecer leis universais eternas e sim modelos de pensamento.
Henry Abelove, um historiador americano que redigiu um texto
sobre Freud e a homossexualidade masculina nos Estados Unidos 208 ,
concordaria com estas afinnações sobre a obra freudiana. Resumirei
a continuação brevemente deste trabalho, que me parece conter in-
formações válidas sobre o percurso da psicanálise neste respeito. Ele
começa com um comentário sobre a carta escrita por Freud, para
uma mãe que o consultara sobre a possibilidade de tratar a homosse-
xualidade de seu filho, muito conhecida, já que figura na biografia de
Freud escrita por Jones. Nela, o autor responde que a homossexuali-

208Abelove, H. "Freud, la homoscxualidad masculina y los americanos". ln: Grafías de


Eros. Hisroria, género e identidades sexuales. Op. Cit., pp. 173-197.
Gradeia Haydée Barbero 157

dade não é uma vantagem, mas também não é uma doença, um cri-
me ou uma desgraça. A psicanálise, diz, a considera como uma vari-
ante daJunção sexual, produto de uma detenção do desenvolvimento
e não se propõe a curá-la. Esta carta é de 1939, quando todas as
teorizações que acabei de resumir já tinham sido desenvolvidas. Con-
cordaríamos com ele sem precisar explicar que se trata de uma de-
tenção do desenvolvimento, que nos parece uma hipótese evolucionista
e desnecess{rria. Muitos anos atrás, o autor tinha dito o mesmo, fa-
lando dos invertidos, se bem que afirmando que uma perversão não
é uma doença, já vimos como ele usou este termo para se referir à
sexualidade desligada da função reprodutora.
Freud colocou explícitamente sua posição política: só deveria
ser acusado em um tribunal aquele que molestasse alguém que não
pudesse (ou quisesse) dar seu consentimento. Este julgamento éti-
co de Freud é, ainda hoje, sustentável. A moral sexual é uma ideo-
logia que atravessa um momento de grandes mudanças enquanto a
ética atinge os comportamentos que devem ser regidos por leis,
aqueles que tratam das relações de uso ou abuso de poder entre as
pessoas. A igualdade perante a lei e o respeito assegurado definem
o estado de direito em que vivemos, incluindo todos os mandamen-
tos da declaração universal dos direitos humanos que governam a
sociedade ocidental democrática. As "variantes da função sexual"
não constituem, já faz muito tempo em nosso mundo, crimes, e,
portanto, não merecem sanções nem propostas de mudança por
parte dos especialistas. Em 1930, Freud se pronunciara em Viena
para a imprensa, declarando estes mesmos princípios em um mo-
mento em que se discutiam mudanças no Código Penal. Ele pensa-
va que as leis que penalizavam a homossexualidade, prática esta
que teria existido em todo tempo e lugar, constituíam uma violação
aos direitos humanos. Esta mesma foi sua posição na instituição
analítica: o que importava para determinar se alguém poderia ser
aceito não era sua forma de sexualidade.
Outros analistas reagiram ideologicamente, negando este direito
às pessoas homossexuais. Freud acabou por aceitar. Porém, parece
1[i8 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

que na sua prática clínica, se alguém se apresentava como homosse-


xual, sem outras queixas, não o aceitava em análise. O que poderia
parecer uma inconsistência teórica, ou seja, as diversas e, às vezes,
contraditórias afirmações, sinais de uma procura teórica cuidadosa,
se acompanhavam, a meu ver, de uma total convicção de que o cará-
ter moral de uma pessoa não passa por estas caracteristicas da orien-
tação sexual.
Henry Abelove cita o nome de somente três analistas que com-
partilharam esta postura do mestre: Otto Rank, Isidoro Sadger e Victor
Tausk. A postura contrária surgiu com grande força e, desde o início,
nos Estados Unidos. Uma atitude que Abelove denomina "tipicamen-
te americana" e moralista.
Coincidentemente é neste país que se desenvolveram os estu-
dos de gênero, os Gay & Lesbian Studies, os queer studies. Diante
de tanta repressão, tanta resistência ... Mas não entendamos mal, Freud,
que não aprovava a discriminação, tampouco teria aprovado uma
militância, em qualquer sentido, dentro da psicanálise.
Abclovc sugere que Freud tinha uma impressão pouco favorá-
vel daquele país, com tão poucas liberdades sexuais, e tão determina-
do pelo simples lucro econômico. Freud antecipou, com esta visão, o
porvir do mundo ocidental, assim como os terriveis acontecimentos
que se desenvolveriam sob o nazismo e o fascismo, no artigo sobre a
"Psicologia das massas".
Segundo relata este autor, muitos homossexuais sofreram em
análises ideologizadas ou se viram privados dos benefícios da mes-
ma, nos Estados Unidos. Não é de surpreender que tantos autores
tenham dedicado seu tempo a discutir estas questões.
Pessoalmente, tenho ouvido muitas histórias que confirmam esta
afirmação. Aqui mesmo em São Paulo e atualmente. Muitos sujeitos,
que se autodefinem homossexuais, afirmam ter sido mal encaminha-
dos, e até maltratados, por analistas preconceituosos, seja porque ten-
tavam convencê-los de que não eram verdadeiramente(?) homosse-
xuais ou porque exigiam deles coisas realmente aberrantes, como
proibir a uma mulher lésbica de assistir as sessões vestida com cal-
Gradeia Haydée Barbero 159

ças 2 09 • Muitos gays, lésbicas e transgêneros se sentem rejeitados


pelos profissionais e procuram e solicitam analistas homossexuais, o
que gera uma problemática bastante complicada no sentido dos en-
caminhamentos (e na transferência). Mas, foi-se já o tempo da de-
núncia. Hoje é o momento da construção de novos parâmetros teóri-
cos que possam respeitar as idéias políticas de seu criador. Freud se
opôs à tentativa de Ulrichs de considerar os homossexuais como su-
jeitos que constituiriam um terceiro sexo: almas femininas aprisio-
nadas em cmpos masculinos, já que pensava, e isto sem contradi-
ções, que as tendências hornoeróticas formam parte do capital libidinal
de todos os seres humanos. Se bem que Ulrichs se propunha à
descriminalização desses comportamentos, o fazia produzindo as
mesmas confusões que até hoje perduram em parte na comunidade
homossexual.
Abelove relata que nos Estados Unidos, depois da morte de Freud,
houve um grande revisionismo na teoria, sobretudo relacionada à ho-
mossexualidade. Sandor Rado teria declarado, por exemplo, em uma
série de artigos de 1940, que o casal homem-mulher era saudável e
que a homossexualidade seria uma doença baseada no medo às mu-
lheres, que poderia ser curada com a psicamilise. Irving Bieber disse
que todas as teorias psicanalíticas assumem que a homossexualidade
é psicopatológica. Sodrrides agregou que esta seria uma doença gra-
ve, acompanhada geralmente de manifestações psicóticas ou manía-
co-depressivas. Em 1970, os ativistas conseguiram mudar estas clas-
sificações, mas a situação ainda está carregada de idéias e atitudes
contraditórias e de indefinições.
No Brasil, estamos a discutir estas questões: a psicanálise, em
geral, continua mais dogmática que seu próprio criador. Se bem que
no meio psicanalítico poucos profissionais assumem uma posição aber-
tamente preconceituosa, que seria considerada politicamente incor-
reta, sob a forma de noções e teorizações várias, estendem-se ainda
a intolerância e o preconceito.

'º~ isto foi relatado à autora em uma entrvista.


160 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Senão, por que existiria ainda a necessidade de se escrever uma


tese procurando achar uma psicanálise que contemple as novas figu-
rações do erotismo contemporâneo como simples variações possí-
veis da função sexual?
Podemos ver, por outra parte, surgindo aqui e ali, autores con-
temporâneos com uma visão totalmente diferente.
Até agora temos considerado a questão da homossexualidade
em Freud e como este fenômeno está associado aos termos de in-
versão, perversão ou perversões. Além disso, confirmamos a exis-
tência de várias explicações possíveis nesta teoria, como aquelas
baseadas na fixação, regressão, identificação com a mãe, com o pai,
com outro/s adolescente/s com quem haveria urna identificação nar-
cisista, cm um modo de evitação da angústia de castração, na utiliza-
ção do mecanismo da renegação, clivagem do ego, submissão ao pai,
bissexualidade original, erotismo anal, complexo de masculinidade,
detenção do desenvolvimento, etc.
Se pensarmos a questão de modo inverso, ou seja, se nos per-
guntarmos de que maneira Freud trabalhou o conceito de perversão e
olharmos a partir dali o momento em que esta entidade psíquica se
cruza com a/as homossexualidade/s, será que a questão adquire ou-
tra pcrspccti va? [slo é o que faz, por exemplo, Patrick Valas, em seu
conhecido livro Freud e a perversão21 º, que mencionamos páginas
atrás e que agora me deterei para olhar com um certo cuidado.
O mesmo acompanha passo a passo as elaborações freudianas
a respeito, assim como o faz Costa, mas sem classificar os diferentes
momentos. Parte, porém, da mesma idéia de que Freud teria se des-
tacado das elaborações psiquiátricas da sua época sobre a perver-
são, negando a existência de causas degenerativas e afirmando, des-
de cedo, que elas são a expressão de uma posição subjetiva. Em um
primeiro momento, Freud considera as perversões corno fatos e não
corno doenças, diz Valas, mas começa a se interessar mais por elas
quando descobre que as fantasias dos neuróticos que estava estu-

"º Valas, P. Freud e a Perversão. Op. Cit.


Gradeia Haydée Barbero 161

dando eram as mesmas que os comportamentos "perversos". Daí


sua primeira afirmação de que a neurose seria o negativo da perver-
são. Os neuróticos sonhariam o que os "perversos" atuam, transfor-
mam em comportamentos. Isto, em 1900, quando trata da histeria e
de "Dora". Chega a falar neste momento que as neuroses são per-
versões passivas e que as outras seriam as verdadeiras perversões
(ativas). Mas, quando Freud se dá conta de que os neuróticos tam-
bém podem atuar seus sonhos e fantasias, e que os assim chamados
perversos podem simplesmente evocar cenas imaginárias para se
satisfazer, a distinção cai por terra, afirma Valas.
Segundo este autor, o extraordinário polimorfismo da sexualida-
de, tanto no plano individual como no cultural, dificulta estas distin-
ções. Pelo que Freud não pode deixar de constatar que nüo existem
normas sexuais fora da moral, só existem normas culturais. Portanto
cada vez fica mais claro que, no plano fenomenológico, a distinção
entre ambas é quase impossível de se fazer. Realmente, se conside-
rarmos não apenas a homossexualidade masculina e feminina senão
também os distintos tipos de fetichismo, a utilização de instrumentos
para jogos sadomasoquistas, o exibicionismo, o voyeurismo e outras
práticas afins, simplesmente como outras formas de erotismo, resta
perguntarmos, a partir da psicopatologia, sobre a instrumentalização
e abuso do outro e sobre a violência não consentida por ambos par-
ceiros e, por outra parte, sobre os comportamentos que possuem de-
terminado grau de compulsividade, elemento que marcaria, a meu
ver, a aparição de um sintoma.
A satisfação de uma pulsão não constitui uma posição subjetiva
específica e acontece em todo ser humano, independentemente do
objeto no qual se satisfaz, mediada por formações culturais. Já desde
os Três Ensaios211 , onde o estatuto da pulsão não está totalmente
elaborado, como o será posteriormente na metapsicologia, Freud re-
conhece que a pulsão não é um instinto, e que por mais horrível que
pareça um desvio qualquer, há sempre uma idealização do objeto que

' 1' Freud, S. (1905). Op. Cir.


162 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

incide sobre o processo pulsional. Esta idealização, ligada à valoração


do prazer preliminar, pode levar à sublimação, mesmo nas perver-
sões, diz Valas, e exemplifica com os casos de Leonardo da Vinci e
da 'jovem homossexual" (perversos, então, por definição?) que, re-
nunciando ao exercício direto da sexualidade, teriam podido sublimar
e, portanto, apresentam grande valor cultural, segundo esta interpre-
tação. O que penso é que já há sublimação em qualquer elaboração
social de uma prática específica.
Com relação aos mecanismos utilizados, repensando a fixação,
Valas afirma que o que é fixado, segundo Freud, é uma representa-
ção da forma como foi satisfeita uma pulsão a primeira vez (isto em
1908, falando de um caso de fetichismo). Também, que a dissociação
dos componentes da pulsão, a regressão e a fixação, podem ser ob-
servados em qualquer distúrbio de comportamento, diz Valas. Em um
primeiro momento Freud afirma que só na neurose haveria um recalque
destes e1cmentos e que por isto voltam em forma de sintomas, mas
um pouco depois reconhece que também haveria recalque (parcial)
nas perversões, lembra. Aliás, sempre há recalque.
Valas volta-se logo para a questão do fantasma na busca de
algum elemento <lifcrcnciador entre neuroses e perversões. Especifi-
ca primeiramente que o tipo de escolha de objeto não é definitivo
para determinar uma perversão, já que se este objeto continua a ser
do tipo incestuoso, pode haver uma escolha heterossexual mascaran-
do uma perversão e também uma escolha homossexual pode masca-
rar urna neurose, já que os primeiros objetos se estabeleceriam antes
da diferenciação dos sexos realizada no momento de resolução edípica.
Conclusão: até ai nada pode definir claramente uma perversão como
11111a entidade subjetiva independente e diferente das neuroses ou da
psicose.
Com relação ao fantasma, fica claro, especialmente a partir de
fl11l<'··.\·e numa criança 212 , que um fantasma perverso (masoquista)
pn1k existir no neurótico. Mas Valas conclui, e outros psicanalistas
---
' h,·1111. S. < Jl>Jl)). <>,,. Cit.
Gradeia Haydée Barbero 163

também, que isto mostra que a perversão se constitui também no


Édipo, como qualquer estrutura psíquica. A perversão seria uma for-
ma de saída da situação edípica.
Em 1908, em As teorias sexuais infantis 213 , momento que Costa
também sublinhara, Freud descobre a dificuldade da criança (do me-
nino, aliás) de admitir a castração materna. Haveria marcas disso na
representação de uma mulher com pênis que aparece nos sonhos de
todos e na necessidade do homossexual (masculino) de encontrar o
membro no seu parceiro. Quase todos os autores fazem referência a
esta "necessidade" do sujeito homossexual masculino encontrar um
pênis no seu parceiro (que pode ter pênis, mas não é mulher), mas
nunca vi esta explicação relacionada à mulher heterossexual, que
também procura um pênis em seu parceiro. Mas do que necessidade,
é desejo. Neste momento teórico começa a se construir a idéia do
desmentido (como Valas prefere traduzir a renegação), para expli-
car a perversão. Insisto em que este pode ser um achado clínico
importante e levar à construção de conceitos valiosos como o de
angústia de castraçüo e a renegaçüo, mas não creio que possa ser
aplicado a todos os sujeitos que têm comportamentos sexuais
homoeróticos ou outras variedades do erotismo. Trata-se de um C<m-
ceilo útil para definir uma possível estrutura perversa, mas isto não
soluciona todos os problemas que estamos discutindo.
A partir dessa época este critério se estabelece e se generaliza.
O horror e a recusa da castração (a mulher sem pênis é vista como
castrada só em uma teoria sexual infantil correspondente à etapa
fálica) são dados como denominador comum de todas as ditas per-
versões, as determinadas em fases precoces da libido como o
voyeurismo, o exibicionismo e o fetichismo, e as que se constituem
mais tardiamente como a homossexualidade, afirma o autor. Esta tese
de 1908 seria confirmada no caso de Leonardo da Vinci, por exem-
plo. Apesar de que, como já falamos, Freud o diagnosticara como um
neurótico obsessivo e não como perverso. O que é importante, penso,

m Freud, S. (1908). Op. Cil.


164 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

é o conceito de angústia de castração e a reflexão sobre os mecanis-


mos defensivos que pode provocar, conceituações importantes para
a teoria, mas que são insuficientes como critérios para definir a per-
versão e resolver os problemas que suscita. Valas diz também que:

"( .. .) a perversiio nos.facilita a compreensão da.função simbólica


do falo. de outra maneira tão enigmática, na medida em que ela
assume aí w11 papel preponderante". 214

Ele encontra um outro denominador comum a todas as perver-


sões: a .feminização do SI(jeito por identificação à mãe fálica em
sua recusa de castraçüo.m Mãe fálica que, segundo ele, implicaria
na perversão, ou seja, no uso de um fetiche ou na exigência de que o
objeto (que seria um duplo nardsico do sujeito homossexual) carre-
gue este .fêtticheJalo. Todos estes elementos reaparecem com cla-
reza no artigo freudiano de 1927 sobre O fetichismo, afirma Valas.
Com relação ao sujeito, e mesmo lembrando-se de que Freud
afirmara claramente que as questões de escolha de objeto e a posi-
ção sexual do sujeito deveriam ser diferenciadas, parece ter ficado
claro, para Valas, que há sempre uma feminização no homossexual,
que estaria identificado com a mãe e a procura de um parceiro se-
gundo uma escolha narcisista. Mas Freud não expressa esta idéia
dessa forma generalizada. A clínica e o mundo social nos mostram
possibilidades bem diferentes.
Creio, como já falei, que Freud realmente, neste processo, que
ocupa o percurso de quase toda sua obra, entra em contradições.
Disse, por exemplo, que é pessimista em relação ao tratamento da
inversão sexual, que o fetichismo lhe parece uma solução bem cômo-
da e mais satisfatória que a neurose, mas também que (os perver-
sos) são uns "pobres diabos" obrigados a se submeter a suas pró-
prias exigências cruéis, e que são, portanto, compulsivos. Isto nos

214 Jbid., p. 111.


215 lbid., pp. l l l/112.
Gradeia Haydée Barbero 165

deixa em num verdadeiro impasse, e não só quanto à perversão femi-


nina, como coloca Valas.
Em resumo e apesar da importância do descobrimento freudiano
de que as estruturas psíquicas são o resultado da passagem do sujeito
pelo complexo de Édipo, e de que, mesmo as fixações mais primárias
se complementam neste processo, ainda que tendo indicado diversas
funções do falo e alguns novos mecanismos de defesa, penso que o
estatuto da perversão não ficou de forma alguma esclarecido. Conti-
nua a se definir fenomenologicamente, e só se conclui, com estes
critérios, que "os perversos"(homossexuais, fetichistas, exibicionistas,
sadomasoquistas, etc.) utilizariam, todos, o desmentido perante a an-
gústia de castração, à qual produziria uma clivagem do eu que, por
outra parte, é sempre resultado de algum fator narcisista exacerbado.
Quando parecia que tudo se resolveria, ficou novamente obscu-
ro. Parece óbvio para todos que as perversões são distúrbios de
personalidade graves e que, apesar de terem efeitos de valor sobre a
cultura segundo alguns autores, estes quadros são o resultado de uma
recusa da castração. Os sujeitos perversos aceitariam somente em
parte a castração, já que, ao mesmo tempo, a desmentem. Além de
não estar suficientemente desenvolvido o que seria exatamente esta
recusa da castração (não se trata de não perceber que as mulheres
não têm pênis, claro), o problema fundamental é que esses sujeitos
perversos seriam (outra vez!): os homossexuais, fetichistas, sádicos,
masoquistas, exibicionistas, etc. Talvez fosse mais simples dizer, ao
contrário, que são perversos aqueles sujeitos que desmentem a cas-
tração, fazem escolhas fortemente narcisistas e apresentam uma sé-
ria clivagem do eu, mas como os reconheceremos senão pelos sinto-
mas e quais seriam esses sintomas senão os mesmos conhecidos de
sempre? Realmente o mecanismo da recusa ou do desmentido care-
ce de muitos desenvolvimentos e pesquisas, já que é mais o que se
supõe sobre aquilo do que se sabe sobre ele. O exemplo do fetiche
que representa o pênis faltante da mãe, ao mesmo tempo em que o
reconhece, não é suficiente para dar conta de tantas situações clíni-
cas e subjetivas diversificadas. Certamente há diferentes formas e
166 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

graus da recusa ou do uso deste mecanismo. Desta forma, errada até


sob um ponto de vista lógico, toda uma paite da psicopatologia e da
psicanálise está negando a validez das expressões contemporâneas
da sexualidade e de todos os sujeitos que no mundo ocidental, organi-
zados em grupos e instituições e em grande quantidade, estão a rei-
vindicar a aceitação social das relações homossexuais, as identida-
des trans genéricas, os jogos sadomasoquistas consentidos, a utiliza-
ção consciente e voluntária de instrumentos e fetiches, etc., conside-
rando que seriam simplesmente perversos que tomaram conta da cena
social. E, por outra parte, se existe uma verdadeira estrutura perver-
sa, esta carece de desenvolvimentos clínicos específicos.

A renegação e o fetichismo generalizado

U rn outro ponto de vista, mais crítico, pode ser lido em autores


contemporâneos, cujos trahalhos se encontram ligados ao pensamen-
to do psicanalista Jean Allouch.
José Assandri, em um artigo da revista Litoral, denominado
"Fetichismus"w,, começa lembrando-nos de que o campo do erotis-
mo foi explorado por diversos regimes de saber, recortando figuras
eróticas como o masturbador e o fetichista e que a psicanálise não foi
alheia a estas produções. E afirma que, a partir de novas leituras, o
mesmo fetichista acaba denunciando certos aspectos enigmáticos da
própria psicanálise. Como é que, por exemplo, o conceito de renega-
ção, que Freud ligou ao fetichismo, acabou sendo considerado para
muitos o elo explicativo de qualquer perversão possível?, se pergun-
ta?. E como isto impede novos enunciados e apreciações? O ponto
de vista do autor é que ao se considerar alguns termos como pontos
de ruptura epistemológica ou fundamento, impede-se de ver como
l'll's foram construídos e com que objetivo. O autor deseja mostrar

'· ·\·.,andri. fosé. ''Fetichismus··. ln: Litoral 32. Lu invención dei sadismo. Córdoba,
1 • .,1,c1 :1t·;11111irnc' de psychanalyse, Ediciones literales, março de 2002, pp. 111-145.
Gradeia Haydée Barbero 167

que o fetichista, entre outras coisas, serviu, na psicanálise, para con-


firmar uma visão heteronormada e androcentrada. A problemática
do fetiche está relacionada diretamente à questão do falo, pelo que se
refletirá na sua função e localização, afirma, mas ela é usada para
outras coisas, como acabei de assinalar.
Freud e a psiquiatria (representada por Krafft-Ebing, a quem
Assandri chama Krafft-Moll por ter usado essa versão, posterior à
utilizada por Freud), têm ce1tamente pontos em comum, mas eles não
são firmes, ele diz. Ambos dirigem um olhar novo à sexualidade. O
fetichista é aí uma figura-chave. Para "Krafft-Moll", segundo se lê
nas suas descrições, o fetichismo podia ser preparatório do "ato nor-
mal" ou ser exclusivo e podia ser observado tanto no amor heteros-
sexual como no homossexual. Os genitais podiam ser transformados
em fetiche tanto no homem como na mulher. Para ser patológico,
nesta versão, o fetiche devia ser persistente, o coito genital passaria a
segundo plano e o fetiche poderia se ligar a qualquer pessoa e não a
uma pessoa determinada. O fetichismo podia, também, induzir arou-
bos. Krafft-Moll apresenta 59 casos. O primeiro deles fala de um
homem, bem casado, que se fascina pelos olhos de uma outra mulher
(de alguém que não era sua esposa) que "o perseguem por todos
lados". Os autores rapidamente transformam esta atração em pato-
logia, afirma Assandri. Segundo o autor, isso demonstra simplesmen-
te que o diagnóstico de fetichismo teria aqui uma função de normali-
zação. Por cem páginas, estes autores teriam falado de prostituição,
masturbação, infidelidade mas reconhecem que "não sabemos onde
estão as raízes do amor".
Freud, por sua vez, escreveu em Três Ensaios 217 que o fetichismo
é algo um pouco diferente, continua argumentando o autor. Apesar
de apresentá-lo depois como um substituto inadequado do objeto se-
xual, ele teria dado importância às primeiras impressões da infância,
que toma de Binet, e dado pouca importância ao gênero nestas des-
crições. Somente em 1910, aparece em nota de rodapé, e daí em

217 Freud, S. (1905) Op. Cit.


168 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

diante quase sempre, o fetiche como substituto do pênis faltante na


mãe, diz Assandri (corno já vimos, no texto de Leonardo), o que o
teria colocado novamente perto das descrições de Krafft-Moll.
Antes disso, lembra, ele tinha abordado as perversões como
perversão polimorfa infantil e como sintoma nos neuróticos e teria
afirmado a neurose como sendo o negativo da perversão. Esta inver-
são sob a forma do negativo teria funcionado como sustentáculo das
perversões, como podemos ver no caso Dora, diz, quando fala que os
psiconeuróticos têm inclinações perversas muito marcadas, suas fan-
tasias sendo as mesmas que as ações dos perversos, o que as define
como o negativo das perversões. Para este autor, o fundamento des-
ta inversão estaria dado pelo abandono da teoria da sedução e a afir-
mação da fantasia como base da sexualidade infantil (e logo adulta),
coisa que a sociedade burguesa da época teria aceitado de forma
mais amena que a teoria anterior, que fazia de todos os pais de neuró-
ticos/as, sujeitos perversos (abusadores de crianças). Segregando os
atos do lado da perversão, Freud fazia uma aliança com Krafft-Moll,
diz Assandri. Mas em 1910, quando afirma que o fetiche substitui o
pênis faltante da mãe, em vez de continuar apresentando uma certa
neutralidade em relação aos gêneros, Freud dera um salto de gran-
des conseqüências, diz.

"Porque essa pas.mgt'm do fetichismo pelo buraco da mulher sem


pênis, em sua enunciaçüo generalizada, ainda que suponha um
achado clínico, conclui em um obstáculo que atravessa a escrita
freudiana até seu.fim. " 218

Em Leonardo, Freud conclui que a veneração fetichista do pé é


um símbolo venerado do pênis que atribuíra à mãe. Este fetiche, se-
gundo Freud, poderia servir até para evitar a homossexualidade em

218 lbid., p. 120: "Porque ese paso dei fetichismo por el agujero de la mujer sin pene en

su em111ciacirí11 generalizada, mmque suponga un hal/azgo clínico, conduye en un


obstáculo que atraviesa la esaitura ji-eudiana hasta su jin. ".
Gradeia Haydée Barbero 169

alguns homens. Mas, Assandri se pergunta: por que este horror ü


falta de pênis na mulher, base da misoginia, da impotência, do
fetichismo, da homossexualidade, aqui enunciados por Freud? E o
que aconteceu com a teoria anterior que, em 1909, Freud descrevera
a Abraham, segundo a qual o fetiche se constitui a partir de uma
repressão parcial, na que se recalca um elemento do complexo e
outro se idealiza? O que acontece agora com o prazer olfativo ligado
aos pés sujos e aos fetichistas dos vestidos, ligados aos atos de
despimento? Na segunda versão, a de 1910, pensa o autor, Freud
insiste no horror da diferença dos sexos e oscila entre o pênis e o falo
como se fossem a mesma coisa. Segundo ele, Abraham foi o único
discípulo que acompanhou Freud na primeira versão e usou o concei-
to de objeto parcial.
O autor afirma que o ''.fetiche universaf' atravessou a obra de
Freud até 1927 no artigo O fetichismo 219 , onde o explica cabalmente.
Para o autor, houve aqui uma redução do fetichismo a um assunto
de homens em uma única versão etiológica, cuja explicaçâo deve
buscar-se nos aspectos políticos e tramferenciais que, na épo-
ca, acabaram pesando mais que a doutrina. (Op. Cit.)
Entre a carta a Abraham de 1908 e o artigo sobre Leonardo de
1910, Freud viajara com Jung e Ferenczi para os Estados Unidos, e
voltara para a Europa para encontrar um público de psicanalistas. Tam-
bém, antes da redação do texto de 1927, teria havido um acontecimen-
to de ordem transferencial, no qual um livro de Wittels (antigo analista
de um paciente seu) sobre fetichismo-queAssandri considera impor-
tante - teria sido totalmente deixado de lado, com todos os dados que
incluía. Os casos anteriores em que Freud baseia suas idéias sobre
fetichismo são, a partir daqui, abertamente desconsiderados, diz o au-
tor, segundo razões óbvias, ao dizer de Freud, que nunca explicita. Sua
clínica exposta a este respeito é núnima, afirma o autor. Ele opina que
Lacan fizera uma "costura" de Freud no próprio artigo sobre Leonar-
do, quando o comenta durante seu Semináiio (Seminário sobre as

'"' Freud, S. (1927). Op. Cit.


170 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

relações de objeto e as estruturas freudianas)2 20 . Nele, Lacan teria


precisado dizer que Freud é Freud pelo que escreveu, errado ou não,
diz. Neste texto, Lacan dá a entender que Freud introduz a função da
mãe fálica. Fala da aparição do narcisismo (que seria o precursor do
registro imaginário) e da sublimação. E toma por um viés a questão do
fetichismo como o horror à ausência de pênis, que atravessara a obra
freudiana daí em diante, porque politicamente não podia ainda marcar
suas diferenças com Freud, já que ele mesmo fazia tempo que tinha
ficado longe do pênis em suas teorizaçãoes pondo a relevância no con-
ceito de falo, segundo Assandri.
Esta tensão oscilante entre pênis e falo na obra de Freud não se
resolve com o remendo lacaniano que sugere que em Freud também se
tratava disso. Mas não era assim. Aqui Lacan se diferencia de Freud,
que, cm 1927, falando de fetichismo, colocava o pênis do lado do meni-
no e o falo do lado da mãe. Lacan inventa aqui, a função de véu do falo.
Isto não era totalmente ausente em Freud (vestimentas, brilhos que
encobrem uma ausência), mas aqui Lacan teria colocado, segundo
Assandri, o véu como uma função consubstancial ao falo. Esta aula,
de 30/01 li 957, é prévia a seu aitigo: "A significação do falo" 221 •
Segundo Assandri, haveria uma outra peça-chave, anterior ao de-
senvolvimento da função de véu do falo. Um artigo, assinado por Lacan
e Granoff, denominado "O fetichismo: simbólico, imaginário e real" 222,
publicado cm 1956, texto que, na realidade, teria sido escrito somente por
Gramoff. Nele diz-se que o fetichismo está classificado, sem dúvida,
como perversão e que a perversão é, por sua vez, segundo a conhecida
fórmula, o negativo da neurose. Porém, o fetichismo é,justamente, uma
forma de perversão onde não é possível achar nenhum contraste com a
neurose, diz Assandri. Este texto, imediatamente anterior ao seminário
que acabamos de mencionar, no qual Lacan falaria muito de fetichismo,
mostra que a famosa fórmula não se cumpre.

·'·'" Lacan, J. ( 1957-58; 1995). Op. Cit.


'·, J .acan, J. ( 1958). ln: Escriros. Op. Cit.

· · · .'\11/1(/ .J. Assandri, op. cit.


Graciela Haydée Barbero 171

"Interpretar assim a noção da perversão como negativo da


neurose, como se a perversão fosse em si mesma a satisfação que
está reprimida na neurose, como se ela fosse o positivo (... ) É
exatamente o contrário, jâ que o negativo de uma negação não é
contudo forçosamente seu positivo, como o demonstra o fato de
que Freud afirma da maneira mais clara que a perversüo está
estruturada em relação com tudo que se ordena ao redor da noção
da ausência e presença do falo( ... )". 221

Há aqui, para o autor, um deslocamento. Tudo isto só pode ser


explicado e encontrar um sentido, diz, a partir da necessidade lacaniana
de isolar o falo como termo-chave da subjetivação.
Por outro lado, um dos problemas com os quais se defrontava
Freud, o Freud que operava no campo da Psyclzopathia sexualis
(Krafft-Moll), e que está na base da redução fetichista ao pênis au-
sente na mãe, era justamente a questi'ío da d(ferença sexual, con-
tinua o autor.
A bissexualidade freudiana parecia dar lugar a duas considera-
ções opostas: por um lado apontava à indeterminação homem-mu-
lher, por outro a uma questão que implicava um desenvolvimento di-
ferenciado, que sancionava como desvio ou fixação do desenvolvi-
mento tudo o que não se reduzia à proporcionalidade esperada. Isto é
o que fica visível, diz, no horror que segrega a homossexualidade e os
fetichismos, igualando-os à impotência e à misoginia. Horror que marca
o peso das teorias sexuais infantis, fazendo um nó entre a fragmenta-
ção corporal (correspondente ao objeto parcial) e o complexo de cas-
tração e que somente pode ser desatado, segundo Assandri, superan-
do Freud, com a formulação lacaniana do modelo de três pontas sim-

m Do seminário IV de J. Larnn, apud Assandri, no artigo que a autora apresenta, p. 128:


"Interpretar así Ia noción de pcrversión como negativo de la neurosis, como si la
perversión fuera en sí misma la salisli1cdón que está reprimida en la neurosis, eomo si
ella fuese el positivo ( ... ) Es cxactamcnlc lo contrario, ya que e! ncg,llivo lil' 1111a
ncgación no cs con todo, forzosamcntc su positivo, como lo demuestm d hL·dm d,· (!IIL'
Freud afirma de Ia manera más nela ljllL' la pcrvcrsi6n está eslructurada ,·11 rrl.1<·i,i11 n,11
todo lo que se ordena ai redcdor de• la auscncia y presencia dei falo.".
172 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

bólico-imaginário-real. Horror que Freud complementa com a expec-


tativa do orgasmo vaginal feminino, com a frigidez, a conversão e
todos os sintomas histéricos, fora a suposta patologia da sexualidade
clitoridiana, continua. Para o homem, o pênis, para a mulher, a
vagina 224 • Postulados derivados de um desenvolvimento "normal"
suposto que, sob o modo de transtornos, revelaria realmente os obs-
táculos teóricos a se transpor, diz o autor, aqueles que Freud não teria
conseguido superar totalmente.
Lacan corrige Freud, afirma Assandri, mas nesses mesmos pon-
tos de remendo ele situa objeções. Devemos prestar atenção. Não é
por acaso que em momentos impmtantes como are-invenção do falo
e a criação do conceito de objeto a, Lacan objete a invenção freudiana
do deslocamento erogenético na mulher, lembra. Em A sign(ficação
do falo 225 , estaria localizada a primeira objeção. Referindo-se à fase
fálica freudiana, lembra-nos de que ela se caracteriza por uma
dominância do pênis e do clitóris, promovido assim à função de falo,
diz, parecendo excluir nos dois sexos, até a declinação do Édipo, toda
localização instintual da vagina como lugar de penetração genital.

''Esta ignorância (da vagina) é muito suspeita de desconhecimento


no sentido técnico do termo, e tanto mais quanto que às vezes é
totalmente inventada. Concordaria unicamente com a fábula na
que Longo nos mostra a iniciaçcio de Dafnis e Cloe subordinada
aos esclarecimentos de uma anciã? " 226

Aqui, neste parágrafo, ele assinala que o imaginário do falo não


é muito dislinto do órgão. Essa dualidade (e indistinção) é um dos
problemas de Freud, diz, que podem ser considerados de outra ma-

214 Assandri, J. Op. Cit., p. 130.


"' Lacan, J. "La signil'il:ación <lei falo". ln: Escritos 2. 15" edição em espanhol. México,
Siglo Veintiuno, 1966, p. 665.
226 Assandri, J. Op. Cit., p.130. "Esta ignorancia es muy sospechosa de desconocimiento

en e/ sentido térnic:o dei término y tanto más Cllanto que a vezes es totalmente invellla-
da. Conc:ordaría únicamente con la fábula en la que Longo nos muestra la iniciaciún
de Dafnis y Cloe subordinada a los esclarecimientos de una anciana?".
Gradeia Haydée Barbero 173

neira segundo o modelo do SIR. Esse comentário de Lacan de que a


ignorância da vagina é totalmente inventada, às vezes, será que
significa que nem o conhecimento nem o desconhecimento podem
ser generalizáveis? As afirmações parecem contraditórias. Para o
autor do artigo que estamos comentando, a significação do falo em
Freud e Lacan não era a mesma, em Lacan é um significante, um
significante qualquer, mas não deixa de haver um ponto problemático
associado ao falo até que, depois de conceitualizado o objeto a, ele
volta a ocupar um lugar de objeto parcial.
Também, no Seminário da Angústia 221 , Lacan teria se referido
à zona vaginal como totalmente insensível. As teorias variadas com
relação à vagina: nonnal e madura em Freud. fantástica nas histé-
ricas, anestésica em Lacan, dentada em Melanie K/ei,1, diz
Assandri, traçaram um mapa do erotismo feminino que as feministas
contestaram, especialmente no tocante à primazia genital.
As diferenças com Freud não aparecem claramente. Para Lacan,
era importante ainda ser freudiano, insiste o autor, há um jogo político
em ação. E se no Seminário da Angústia, logo da invenção do vbje- .
to a, Lacan retoma o fetiche, não é por acaso, diz, é porque releva
sua encenação erótica, que se faz mais evidente nos assim chamados
fetichistas, mas que não deixa de ser a condiçào do desejo, em
geral. Isto leva diretamente, afirma Assandri, à questão do fetichismo
como montagem, como encenação, fazendo da natureza do erotis-
nw o art(fício que é.
Distinguir falo e objeto a permite outra leitura desses proble-
mas e do percurso de Lacan até o Seminário da Angústia, continua.
E não deveríamos esquecer, também, de que a objeção à
heterossexualidade não aparece claramente até a leitura que Jean
Allouch fez deste seminário, apesar de que desde Krafft-Moll eram
patentes uma série de objeções à heterossexualidade que não foram
recolhidas senão como patologia, diz Assandri. Porque no próprio
fetichismo de Krafft-Moll, diz, é possível constatar uma série de oh-

m Lacan, J. (1962/63). Op. Cit.


174 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

jeções. Objeção à pessoa como objeto total, na parcialidade dada


pelo fetiche, à genitalidade como relação erótica privilegiada, à
heterossexualidade, na medida em que o fetiche pode aparecer em
relações homossexuais, ao problema "andro" dado que também na
mulher pode aparecer o fetiche. Agrega-se a essa série de objeções
fenomenológicas, afirma, a "parcialidade" freudiana: repressões par-
ciais, pulsões parciais, o~jetos parciais. Mas, segundo este autor, a
virada cientificista de Freud, principalmente por motivos políticos, te-
ria descartado tudo isto com o universal fetiche. Este devia:

" (... ) fimdamentar a teoria das perversties e servir de prova para


a mesma, quando na realidade sefazia presente lll/LÚ todo o artif'ício
do erotismo em geral, a l'ncen(ficaçüo erótica para a qual mio há
natureza homem, nem mulher, senüo se revelando com.o
encenações, construções, artifícios eróticos com os quais alguns,
independentemente da sexuação com a que foram marcados,
fabricam o artifício de suas satisfações em um resplandecente
politeísmo. "2211

Vimos como sempre foi difícil, para Freud, diferenciar masculi-


no e feminino, continua argumentando Assandri. Em Três Ensaios 22'i,
cm uma nota de pé de página, o faz mostrando três possíveis dire-
ções: ativa-passiva, biolcSgica, e sociológica, especificando no mesmo
texto que cada ser humano mostra pulsões, necessidades e proprie-
dades tanto masculinas como femininas e reafirmando o que todos
sabem, ou seja, que somente a anatomia pode registrar com clareza o

''" lbid., p. 134: " (. .. ) Ji111da111e11tar la teoría de las perversümes y servir de prueba para
la misma, cuando ,m realidad se hacía pre.wmte aquí todo el artifício dei erotismo en
general, la e11cenijicacüí11 erótica para la c:ual no lzay rwturaleza hombre ni mujer sino
revelándose como enc:enijkaciones, c:onslrucc:iones, artifícios eróticos con los que
ulgwws, independientemente de la sexuac:ic5n con que jileran marcados, fabrican el
artif'ício de sus satisfaccione.1· en un resplandeciente politeísmo. "
"" Freud, S. (1905). Op. Cit.
As numerosas notas de rodapé deste artigo foram sendo agregadas em anos posteriores,
a partir das modificações e especificações que Freud ia introduzindo na teoria.
Gradeia Haydée Barbero 175

caráter de feminino e masculino. Talvez por isso fala-se, às vezes,


ainda hoje, do real da d(ferença dos sexos, como se essa anatomia
diferente fosse por si mesma, real (do real lacaniano).
A famosa frase freudiana - anatomia é destino (que Lacquer, o
historiador, comenta, dizendo que não significa que a anatomia deter-
mina o destino) - aparece evidenciada em duas ocasiões, afama o
autor: para mostrar a cercania do aparelho excretor com o genital e na
colocação, na questão das diferenças sexuais, de uma espécie de urna
esperança, diz, de encontrar um final à deriva psicológica da não-deter-
minação do gênero. A.fâb11la biolôgica do deslocamento erotogenético
na mulher (do clitóris à vagina) e a do universal fetiche no homem
teriam dado uma consistência precária a esses pólos, por meio de uma
certa proporcionalidade que não existe verdadeiramente.
Cabe aqui o adágio lacaniano, tão discutido, tão citado e, às ve-
zes, tão mal interpretado "não há relaçiío sexual". Não podemos
esquecer de que ele não ''torcia", como Freud o fez, apesar de tudo,
por uma normalidade heterossexuada, afirma Assandri. Ele pensa
que para resolver o problema deixado por Freud em relação a estes
assuntos, e por meio destas formulações, Lacan teve que passar pela
hetemssexualidade. Das quinze vezes que aparece quando se utiliza
o saber da multimídia (CD Pas tout Lacan), continua explicando, oito
aparecem no Seminário 4. 230 Esta heterossexualidade teria continua-
do a jogar um papel até o Seminário IO e a invenção do objeto a,
objeto não necessariamente marcado pelo gênero. Neste lugar rea-
parece o fetichismo, estudado no Seminário 4, mas de outra maneira,
como acabamos de ver: como condição (artificial) do desejo.
Para responder à pergunta sobre por que o fetiche constituiu
uma entidade psicopatológica que parecia explicativa por si mesma e
por que significou durante longo tempo tantas coisas na história das
religiões, na antropologia, na economia e no discurso coITente, Assandri
encontra um denominador comum: a degradação. O sexual estaria
associado à idéia de degradação. Até quando Marx falou do fetichismo

"º Lacan, J. (1957-58;1995). Op. Cit.


176 Homossexualidade e Petversão na Psicanálise

da mercadoria, diz, ele não estava longe da idéia de degradação a que


poderia conduzir o capitalismo selvagem. Ele lembra que a primeira
utilização do termo foi feita pelos antropólogos, que consideraram
algo ridículo a adoração de um Deus, tão diferente do próprio, e re-
presentado em uma pedra, por um fetiche.
Mas não poderíamos pensar de outra maneira? Dentro de um
par forçado: natural-artificial, por que não pensar na natureza original
humana como perverso-polimorfa, conceito que Freud desenvolveu
há já tantos anos? Por que reduzir, na psicanálise e na vida, a imagi-
nação erótica a uma patologia?

"No erotismo, a natureza é enfeite, maquilagem, art(fício, fetiche


enfim, marcando a carne". (Op. Cit.)

Judith Butlcr tem um texto chamado O falo lésbico e o imaginá-


rio morjó/ógico2:i 1, no qual recorda certas problemáticas com uma pre-
cisão que os psicanalistas não tiveram, afirma Assandri. Sem partir da
fórmula da neurose como negativo da perversão, e pondo em relevo a
pluralidade de objetos que não podem ser reduzidos à primazia genital, o
"falo lésbico" simbolizaria partes do corpo que não seriam precisamen-
te o pênis, o que resulta compatível com as idéias de Lacan posteriores
ao Seminário da, Angústia, como já vimos. Ademais, cruzando as or-
dens do ter e do ser, sugere que os homens poderiam se ver impulsiona-
dos por uma inveja do falo. Para Butler, esta seria a razão pela qual as
morfologias masculinas e femininas deveriam ser questionadas. As qua-
lidades do falo, ligadas à penetrabilidade, penetração, controle, submis-
são, etc., podem ser deslocadas, pensa, não têm substância própria. Se-
gundo Assandri, ela restringe suas críticas a Lacan, aos primeiros semi-
nários e aos artigos "O estádio do espelho" e "A significação do falo"
(dos Escritos)232, localizados em um momento teórico em que Lacan
ainda pretendia fazer uma continuidade direta com Freud.

231 Butler, J. (1999). Op. Cit.


232 Lacan, J. (1966). Esl'ritos - I e II. México, Siglo Veintiuno, 15ª edição, 1989.
Gradeia Haydée Barbero 177

Mas não devemos criticar demasiado Butler, pensa Assandri, já


que devemos levar em consideração que a invenção do objeto a, o
grafo do "amorrer" 233 e a relocalização do falo teriam passado inad-
ve1tidos, até para os discípulos de Lacan, até a leitura que fez Jean
Allouch do Seminário da Angústia. Daí, ele (Allouch) assinala a
possibilidade de "acolher os estudos gays e lésbicos" 234 como no-
vas referências sociológicas, indispensáveis para observar os novos
caminhos da erótica atual, e que a psicanálise não pode deixar de
considerar, como penso ter mostrado em capítulos anteriores.
Desde então, diz o autor, podemos ler melhor o seguinte comen-
tário de Lacan neste mesmo seminário:

"(. .. ) niio por acaso me servirei do fetiche como tal, onde se revela
a dimensão do objeto como causa do de.l'C'.ͺ· Porque o desejado
não é o sapatinho, nem o peito, nem qualquer coisa que encarne o
fetiche; o fetiche causa o desejo que vai se ligar onde pode, sobre
o que de forma alguma é necessário que carregue o sapatinho, o
sapatinho pode estar por perto, também mio é ne<"essário que leve
o peito: o peito pode estar dentro da cabera. Como todo mundo
sabe, para o fetichista é prl'Ciso que o.fetiche esteja ali, o.fetiche é
a condiçüo na t/Util se sustenta o desejo. "~35

O fetiche, então, não é mais o substituto do pênis, não é já o


mesmo objeto da Psychopatia Sexualis. O fetiche é agora a condi-

"-'-' Este grafo, que liga o (objeto) a e a morte, est,í desenvolvido também no seminário
mencionado e apresenta uma representação dos viírios objetos a (seio, excremento, voz,
olhar e falo), difrrenciando este último somente na medida em 4ue pode "smrbhmtear"
todos os outros.
,J., Alusão ao título do artigo de J. Allouch, já citado.
º·'·' Lacan, J. Apud: Assandri, J. Op. Cit. p. 144: " (... ) 110 por azar me serviré dei fetiche
como tal, donde se revela la di111ensirí11 dei obje/0 como causa dei deseo. Porque lo
deseado no es e/ ::,apatiw, 11i e/ pecho, 11i c:ualquier c:osa que encarne el fetiche; el fetiche
causa e/ deseo que vu a ligarse donde puede, sobre e/ que 110 es necesario de Jimna
a[f?una que cargue e/ zapalito, e/ zapatito puede estar cerca, tampoco es necesario que
/leve el pecho: el pecho puede estar dentro de la cabeza. Como wdo e/ mundo sabe,
para el fetichista es preciso que e/ fetiche este ahí, el fetiche es la c:ondiciôn en la que se
sustenta el deseo ".
178 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

ção do desejo, reformulação que implicou a invenção do objeto a e a


retomada da importância da parcialidade do objeto, que faz impossí-
vel distinguir as formas normais das formas perversas, na erótica. O
falo é agora um objeto parcial a mais, esses objetos que Lacan agru-
pa no grafo do amorrer. O que há por trás do véu. O que positiva
uma falta na relação amorosa.
Vejamos, como exemplo, a lista de objetos (parciais) que apare-
ce no livro "O corpo léshico" 236, uma obra de Monique Witting, co-
nhecida teórica e escritora lésbica:

"O COIJJO lésbico: a ciprina, a baba, a saliva, o muco, o suor, as


lúgrimas, o cerume, a urina, as nádegas, os excrementos, o sangue,
a lili/ú, li gelatina, a âgua, o quilo, o quimo, os humores, u.1·
secreçiies, o pus, ll.l' 'Sânies ', as supuraçfies, a bílis, o peito, os
seios, as omoplatas, as nádegas, as pernas, os dedos dos pés, os
taltil's. 0.1· rins, a nuca, a garganta, a cabeça, os tornozelos, as
cadl'iras ('quadris'), li lingua, o occipúcio, a espinha, os.flancos,
o umbigo, o púbis. o cmpo lésbico. " 237

'·"' Wittig, M. (l 973). El cuerpo lesbiano. Valência, Prc-Lcxto~, 1977. A tradução é da


autora.
217 "E[ Cuerpo Lesbiano la Cipri11a la Baba la Saliva el Moco el Sudor las Lágrimas el

Cerumen la Orina lus Nulgas los Exaementos la Sangre la Linfa la Gelatina el Agua el
Quilo e/ Quimo, los Humores las Secreciones el Pus las Sa11ies las Supuraciones la Bitis
el Pecho los Senos lo.1· Omoplatos las Nalgas los Codos las Piernas los Dedos de los pies
los Talmws los Ri11mw.1· la Nuca la Garganta la cabeza los Tobillos las lngles la Lengua
e/ Occipucio el E.lpinazo los Flancos el Ombligo el Pubis el Cuerpo Lel·biano. ". (Capa
e contracapa).
A tradução e adaptação do texto é da autora.
CAPÍTULO IV

LACAN E A PERVERSÃO:
UM PERCURSO

"... o parceiro sexual, quer ele S<'.ia h"mem ou mu/11('1; ist" mio tem
e.1·tri1m11e11te nenhuma i111portâ11cia. É 11111 ol(i<'to jiílirn. Isto é tudo.
E 11<Ís podemos sempre 110s cansar de se.rnar tudo </li<' nós
quere11ws: isto é 11111 objeto Jiílico.
Ora, um objeto, é assexuado (a/sexuado)." 238

Acabamos de ver, em capítulos anteriores, que o discurso de Lacan


pode ser lido de forma descontextualizada, sem incluir a evolução do
seu pensamento e os momentos político-institucionais que o faziam pro-
nunciar-se de uma ou de outra forma. Assim, obtém-se uma teoria,
aparentemente mais coerente, porém rígida e dogmática, irrespetuosa
do propósito, às vezes enigmático, de suas sentenças. que visavam pro-
duzir efeitos em um determinado público, coerente e sem resquícios,
feita de uma vez e para sempre e não uma teoria sem lacunas.
Sabemos, por outra parte, de sua intenção permanente de fazer
da psicanálise uma ciência e de encontrar meios de fazê-la
transmissível, mas isto não pode transformar sua teoria num dogma
indiscutível, em uma ilusão da qual o próprio Freud fugia, mesmo com
as ferramentas da sua época, deixando sempre aberto o lugar da
contestação, da mudança, da modificação. O tipo de ciência que Freud
inaugurara, e que Lacan continua, procura, sim, universais, não se
apóia no relativismo pós-moderno aonde tudo cabe, mas sabendo que
o universal de uma verdade não é nunca neutro e deixando claro para
o leitor e para os ouvintes (agora só leitores) de seus trabalhos -

2)s Lacan, J. ( 1966-67) A lógica do ji111tas11w. Seminário 14. Inédito


180 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

lentamente desenvolvidos, pensados, repensados, modificados, e nunca


terminados -, onde estão os pontos de fuga. Pelo menos para quem
se dispõe a aceitá-los.
Como diz o atual filósofo e psicanalista Slavov Zizek em uma
entrevista publicada pela Folha de S. Paulo:

"O universalismo do qual falo, nada tem a ver com a noção de uma
universalidade neutra e acima de todos os conflitos. ( ... ) Meu
univer:l'Cllismo é cm1flituo.1·0. no sentido de acreditar que nüo é uma
noçiio neutra que nos une. O que nos 1me é a universalidade do conflito.
( ... ) Isto podeficar claro se pensarmos em uma idéia presente tallfo
no cri.1·tümismo antigo como no marxismo. Ela t!firma que, em uma
situapio concreta de cm{flito social, a verdade niio é neutra, como
se precisássemos sair da situaçüo para a percebermos. A verdade
é própria de um lado, da só é acessível por meio de uma posiçiio
partidária. Para alcanrar a l'erdade, devemos assumir um lado "2 ·19 •

As considerações de Lacan sobre a homossexualidade e a per-


versão, ligadas a conceitualização do falo, da castração, do fantasma,
do gozo, do narcisismo, do objeto e da teoria em geral, que foram se
desenvolvendo e modificando ao longo dos seus quase cinqüenta anos
de construção teórica e ensino, não podem ser resumidas em uma
doutrina fechada. A análise desta evolução está sendo feita pouco a
pouco, enriquecendo cada vez mais a psicanálise, com o aporte, mais
ou menos controvertido, de muitos autores. Não é possível fazer uma
síntese de semelhante obra em um trabalho como este, mas tentarei,
a partir de algumas balizas, identificar alguns momentos preciosos e
algumas circunstâncias, que possam dar conta minimamente do que
me parece ser a evolução mais importante nos conceitos que estamos
analisando e que podem ajudar a resolver nosso problema, referente
à discriminação entre homossexualidade e perversão.

139 Entrevista de Zlavov Zizek. Caderno "Mais", do jornal Folha de S. Paulo, 30/11/2003.
Gradeia Haydée Barbero 181

Citarei um longo parágrafo, que pode servir como introdução


para nosso percurso porque toca nos assuntos mais importantes,
extraído do Seminário da Identificação24º, justamente um ano anterior
ao Seminário da Angústia. No dia 2 de maio de 1962, depois de ter
ouvido uma exposição de Piera Aulagnier sobre a angústia na psico-
se, neurose e perversão, Lacan fez o seguinte comentário:

"Mas a Sra. Aulagnie1; que nüo tem as mesmas raziks de pudor


que nús, e que por outra parte o diz com toda inocência, quero
dizei; que tem visto perversos e que se interessou por eles de uma
forma verdadeiramente analítica, começando a articular algo que,
pelo fato de poder apresentar dessa forma geral, repito,
incrivelmente audaz de que o perverso é aquele que se faz objeto
para o goza de um falo de que não supiíe a 'pertenência ·(aposse):
é o instrumento do gozo de um Deus. O que isto quer dizer, afinal
de contas. que merece certa pontuaçéío, alguma retificação de
uma manobra diretiva e, para dizer tudo, que isso coloca a questão
de reintegrar o que denominamos o falo - a urgência de definição
do falo - o que não é de se duvidar, já que isto tern certamente um
sentido para nâs, analistas, que é o do diagnóstico da estrutura
perversa. O que sign(fka que devemos começar por jogar pela
janela tudo o que se escrel'etl, desde Kn(ffi-Ehing até Havellock
Ellis, e tudo que se escreveu como pretenso catálogo clínico das
perver.\'<Jes.
(.. .) Em resumo, hâ no plano das perversiJes que superar essa
e.\pécie de distância considerada sob o termo da díni.rn que não
é, na realidade, mais do que uma forma de desconhecer o que tem
esta estrutura de absolutamente radical, de absolutamente aberto
a qualquer um que saiba dar um passo que é o que exijo a vocês,
esse passo de conver.wlo que nos permita estar no ponto de vista
da percepção na qual saibamos o que a estrutura perversa quer
dizer de absolutamente universal.

"º Lacan. J. ( l 961-62). A Jdentijicaçtio. Seminário 9. Inédito.


182 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Não por nada evoco aos deuses, já que também teria podido trazer
o tema das metamorfoses e toda a relação mística, um certo vínculo
pagão com o mundo que é aquele, onde, a dimensão perversa
encontra seu valor clássico, por assim dizer.
É a primeira vez que <'scutofalar num certo tom que é verdadeiramente
decisivo, que é a abertura da que temos necessidade neste campo no
momento que vou explicar a vocês o que é o falo. "

Nesta citação fica claro que, para ele, o importante da estrutura


perversa, considerada desta forma particular, é que permite marcar a
relação do falo com o desejo, ou seja, está desenvolvendo elementos
fundamentais da teoria.
Precisarei comentar estas posições de Lacan, e a forma em que
chegou a elas, para o que farei uma análise sobre a evolução dos
conceitos nas exposições do Seminário. Há, creio, seguindo as expli-
cações de Allouch, um momento preciso onde acontece uma virada
fundamental: o momento de criação do conceito de objeto a, clara-
mente diferenciado do objeto especular, que acontece no Seminário
l O. Neste momento aparece à vista a necessidade de se redefinir o
narcisismo. Para desvendar este nó, Lacan passa pela angústia. Não
é por acaso. A angústia marca o corte, a separação entre o gozo e o
desejo, a falta da falta, o objeto que sou, objeto parcial, objeto do
desejo desconhecido do Outro, perto do horror, o momento em que o
falo com seu brilho agâlmico ameaça desaparecer e mostrar o que
verdadeiramente têm por detrás: o nada, um pedaço de carne.
Vimos como algumas teorizações freudianas, elevadas ao nível
de tudo explicar, acabaram levando às práticas normativas, como o
próprio conceito de complexo de Édipo, o assassinato do pai primor-
dial, a polaridade masculino-feminina, o complexo de castração, a
inveja do pênis, a bissexualidade, a idéia de desenvolvimento por fa-
ses ou etapas e, finalmente, seu testemunho em Análise Terminável
ou Sem Terminar 24 t, onde reconhece um final de análise diferente

w Freud, S., 1938. Op. Cit.


Gradeia Haydée Barbero 183

para o homem e para a mulher. Se uma prática se baseia em uma


teoria que se pretende universal e imodificável, acaba sendo normativa.
Por isso Lacan procurou o auxílio das matemáticas, da lógica e da
topologia, depois de ter esgotado as idéias da antropologia estrutural
e da lingüística, na sua procura de modelos que fizessem da psicaná-
lise a ciência que ele achava que devia ser.
Conserva a idéia do valor estrutural e estruturante da falta para
o sujeito desejante. Quando esta falta se reveste de semblantes fálico-
narcisistas, o sujeito não se dá conta que está deixando fora da obser-
vação o ol~jeto a, que é o que a angústia consegue trazer de volta.
Com relação à perversão, notei, a partir de minha pesquisa nos
seminários e escritos, que ela está presente desde o começo (Sen1i-
nário 1) até praticamente o final, aonde, no Sen1inário do Sintoma
(Seminário 23), chega-se à sua conclusão final, de que a perversão
não é nada mais do que uma pere-version (pai-versão), uma versão
do pai, o que deixa a muitos perplexos e nos convida a ir passo a
passo acompanhando seu cantinho.
No Capítulo II, apresentei, por meio da exposição de Hugo
Bleichmar, o que poderíamos chamar uma Teoria Clássica
(freudiana ainda) das Perversões, baseada nos primeiros anos do
ensino lacaniano. Insistir nesta interpretação, sem prestar aten-
ção às mudanças posteriores, é uma forma de procurar uma coe-
rência que não existe no trabalho teórico de Lacan. É sabido que
ele procurava modelos em outras ciências, indagava, mudava de
posição. Se o falo é um referente (simbólico) perante o qual as
pessoas se declaram homem ou mulher, isto é em nome de uma
convenção cultural, um jogo de semblantes que comporta toda uma
série de relações sociais implícitas fortes, estruturais, mas que é
mutável2 42 . E é isto, exatamente, o que está em jogo. E é isso o
que Lacan vai tentar sempre, cada vez mais sofisticadamente,
capturar e resolver por meio de seus modelos antropológicos, ló-
gicos e topológicos.

140 Aqui caberia, por exemplo, a introdução do seu conceito de semblante.


184 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

A evolução dos conceitos de falo e castração, indica clara-


mente sua diferente concepção da homossexualidade e da perversão
através do tempo. Na realidade, ele falou desde o começo de ambas
as coisas, nem sempre como sinônimos, mas considerando, em geral,
a homossexualidade - especialmente a masculina -, um modelo de
certo tipo de perversão, por entender que haveria uma identificação
imaginária com o falo matemo, mas, dando-se conta, ao mesmo tem-
po, que a maioria dos homossexuais que se apresentam na clínica ou
na literatura, são sujeitos que atravessaram o Édipo e que, portanto,
não podemos dizer que careçam de uma evolução subjetiva. Estas
pequenas contradições vão aparecendo ao longo dos seminários e as
mudanças são sutis, jtí. que o percurso é fragmentado, as indicações
soltas, cheias de enigmas e "buracos". A impressão que se tem é a de
que ele mesmo não tinha certeza do lugar teórico para onde tudo isto
iria levá-lo. Chega a dizer, como veremos mais adiante, que o concei-
to de homossexualidade é inconsistente, e que a perversão é normal.
O que não significa que não tenhamos muito para refletir a partir das
suas observações, às vezes herméticas, mas nunca gratuitas. Talvez,
enfrentando suas próprias idéias no que elas tinham de contraditórias,
de aporísticas e também de científicas.

"Chamemos heterossexual, por definiçüo, a quem ama as mulheres,


seja qual for seu próprio sexo. Será mais claro "243 , ele diz em 1973.

Isto me parece significar que ele estaria evidenciando um siste-


ma social particular, onde, a partir do uso do significante fálico, pode-
mos supor que "o homem não é sem tê-lo e a mulher é sem tê-lo".
Neste sentido, a mulher, que não tem um significante próprio, repre-
senta o Outro sexo, daí, é heterossexual (hetero = outro) quem a ela
se remete. Mas, justamente, Lacan nunca pretendeu que se tratava
de um sistema fixo e imutável.

243L'etourdil, Sei/icei nº 4. Paris, Seuil, 1973, p. 23. Há versão em espanhol da "Escuela


Freudiana de Buenos Aires", entre outras.
Graciela Haydée Barbero 185

Segundo Markos Zafiropoulos, num trabalho publicado na Fran-


ça, em 2001, sob o titulo Lacan e as Ciências Sociais 244 , quando
Lacan escreveu Os Complexos Familiares, em 1938, estaria utilizan-
do referencias sociológicas durkhemianas e marcando, desde já, algu-
mas diferenças com Freud. Neste texto, Lacan contextualiza a família
paternalista, valorizando a função do pai que nela aparece e a configu-
ração que conhecemos do complexo de Édipo. Ela seria responsá-
vel pelas funções repressivas e sublimatórias, incluindo os ideais do ego
ligados à polaridade sexual. Mas Lacan inclui as determinações sócio-
culturais, não pretende usar um modelo a-histórico, diz Zafiropoulos.
Estela Maldonado, comentando esta obra, em um texto sob o
título Sohre el Padre, ainda em vias de publicação245 , explica por
que, em Os Complexos familiares 246 Lacan fala claramente de uma
família paternalista, usando Durkheim como referência. Lacan teria
especificado que os complexos se desenvolvem no ambiente, ambien-
te este que Maldonado interpreta como o da família patriarcal.
Zafiropoulos assinala, que ao não ficar clara esta referência, teríamos
herdado uma certa nostalgia do pai e que, hoje em dia, tem muitos
avanços das ciências sociais que devem ser tomados em conta.
Durkheim chama a atenção à contração da instituição ao seu
núcleo burguês, origem do modelo edípico clássico.
Conseqüência, diz Zafiropoulos: Lacan aceita o modelo do com-
plexo de Édipo, relativizando sua universalidade e acaba assinalando
a importância, nesse momento, da família conjugal nuclear. Momento
histórico da modernidade que Durkheim trabalhava como "contra-
çüo da família moderna" e que marcaria, na realidade, o começo
do declínio da figura paterna e o surgimento de novos sintomas, que
Lacan denominou "complexos caracteriais", derivados de uma ca-

'·" Devo esta referência a Estela Maldonado (Córdoha, Argentina) no texto que citarei a
conlinuação.
245 Maldonado, E. Sobre e! Padre. Texto inédito. Apresentado em um seminário dedicado

a Nijinsky. Ela tem vários textos dedicados à "Erótica da Arte" respeitando essa idéia.
°''' Lacan, J. Les complexes familiaux. Paris, Navarin editor, 1984. Há versão em
castelhano La familia, Homo Sapiens, Co!ección El Hombre y su Mente, 1977.
186 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

rência paterna. Não posso aprofundar estes desenvolvimentos neste


momento mas gostaria de mostrar, que, mesmo aceitando que o com-
plexo de Édipo é o complexo nuclear das neuroses (psicoses, perver-
sões), o modo de concebê-lo não é exatamente o mesmo que o pro-
posto por Freud. Para Zafiropoulos

"( ... ) ali onde o descobrimento freudiano convoca um pai que não
se discute, Lacan opta pelo valor de um pai de família cujo 'curso
edípicu' varia segundo as condições sócio-históricas do exercício
de sua autoridade". 2-1 7

Um passo além, leva-nos a ler criticamente o próprio Durkheim


e aceitar o que outros historiadores demonstraram: existem diferen-
tes organizações familiares e a função paterna é relativa a cada uma
delas. E não é outra coisa o que o trabalho de Lévi-Strauss e outros
antropólogos permitem teorizar, mas a configuração do Édipo mais
freqüentemente usada na psicanálise, é parcial e relativa à moderni-
dade. E não necessariamente devemos falar ou pensar em decadên-
cia da função paterna, como o sugeriria o conceito durkheimiano de
anomia 248 , senão em mudança. O pai, figura humana, muda seu lu-
gar social em diferentes tempos históricos, a função paterna so-
mente coincide com ele no patriarcado. Precisamos ter o devido cui-
dado para não esquecer que o complexo de Édipo, da forma como
Lacan vai se utilizar dele, acaba sendo um modelo teórico do
anodamento (ou amarração) principal da subjetividade. Mesmo que a
forma das relações familiares não seja a mesma, deveremos procu-

,.., Apud Maldonado. Op. Cit., p. 13. "( ... ) allí donde e! descubrimiento freudiano
convoca un 'padre que no se discute', Lacan opta por el valor de 1111 padre de familia
cuyo 'curso edípico' varía según las condiciones socio-histôricas dei ejercicio de su
autorid{ld." ln: Zafiropoulos, Op. Cit., p. 58.
''" Anomia. "Um est{ldo de caos e ruptura. O termo é particularmente associado a
Durkheim, para quem a anomia caracteriza os períodos de dissoluçüo das normas
sociais, quando a perda de autoridade tende a relaxar as obrigações morais, a produzir
desejos ilimitados e a causar aumento nas taxas de suicídio", segundo o Dicionário
Oxford de filosofia, de Simon Blackburn. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1997, p. 16.
Gradeia Haydée Barbero 187

rar a estrutura que as sustenta. Precisaria-se de todo um capítulo à


parte, para pensar mais detalhadamente a mudança social contem-
porânea mas o certo é que esse nó, que o autor vai chamar de
synthome, revela uma certa versão do pai, como mostrarei no final
deste capítulo.
Estela Maldonado, nas conclusões de seu trabalho, marca a im-
portância de conhecer as referências sociológicas da teoria psicana-
lítica, mostrando, por outra parte, como a castração não deve ser
reduzida ao fantasma da perda do pênis e sim articulada a momentos
fantasmáticos anteriores do corpo fragmentado, que encontrarão uma
localização imaginária nos órgãos genitais quando isto adquira impor-
tância. Segundo a autora "Esta locali:::.açüo i11wf?inária se chama-
ra falo, depois de que Lacem dé uma outra volta na sua leitura
de Freud''. 24 '1 Aqui a autora revela um fato importante na crise
edipiana: não s6 a figura paterna a conduz, existe também a reatua-
lização, no desejo genital, de um objeto particular, a mãe arcaica,
aquela do gozo mortífero, que Melanie Klein descreve como superego
primitivo e que Lacan retoma, à sua maneira, ou seja, a castração
que representa o corpo fragmentado é a que dará origem às fantasias
de mutilação de membros, e não o contrário.
A partir deste trabalho, Lacan continua mudando, marcando di-
ferenças com Freud e consigo mesmo. Como acompanhar estas mu-
danças, como decifrar Lacan? Escolhi fazê-lo cronologicamente,
acompanhando os seminários. Com relação a meu tema, posso afir-
mar que, desde o começo, Lacan fala de perversão como uma estru-
tura específica e também de fantasmas perversos (no neurótico),
usando a homossexualidade masculina e feminina como exemplos,
nem sempre de perversão, à medida que vai expondo seus conceitos.
Este interesse na perversão, sempre presente, foi comandado pelos
desenvolvimentos da teoria e suas transformações, o que era seu
foco principal.

249 Maldonado, E. Op. Cit., p. 19: "Cette localisation imaginaire s 'appellera phal/us
/orsque Lacem .fáa un autre tour dans sa /ecture de Freud".
188 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Como método de trabalho, ciente de suas limitações, resolvi


acompanhar o que me pareceram algumas observações principais a
respeito, ao longo da exposição dos Seminários. Os textos relativos à
perversão que aparecem nos "Escritos" e outros trabalhos foram
considerados como pano de fundo, porque, até onde pudemos obser-
var, não agregam idéias diferentes das que tratam nos seminários
com relação à questão que estamos focalizando, e tratam, por outra
parte, de tantos outros assuntos importantes, que seria impossível
analisá-los a fundo em um capítulo como este. 250
No Seminário I, capítulo XVII, Lacan trata da relação de objeto
e a relação intersubjetiva. E vai especificando questões: o objeto não
é o objeto de satisfação de uma necessidade, a perversão só aconte-
ce quando se sustenta em uma relação intersubjetiva.

"A criança é um perverso, e mesmo, um perverso polimmfo. Nüo


hâ uma 1ínirn forma de manifestação perversa, cuja estrutura
mesmo, a cada instante do seu vivido, não se sustente numa relação
intersubjetiva.
A relação sádica só se sustenta na medida em que o outro está no
justo limite em que continua ainda sendo um sujeito (. .. )". 251

Mesmo assim, chama-nos a atenção que desde este primeiríssimo


momento Lacan não identifica a perversão com a patologia:

"Vocês sabem o quanto, a maior parte da soma clínica que


conhecemos como perversões, fica no plano de uma execução
somente lúdica". 252

21" Particularmente o texto "Kant com Sade", publicado nos Escritos trabalha este tema
mas ele tem interpretações completamente contrárias. Alguns autores pensam que este
é o texto fundamental onde Lacan analisa o fantasma, e particularmente o fantasma
perverso. Allouch nega ambas afirmações. (Ver: Allouch, J. Faltar a la cita, Kant con
Sade de Jacques Lacan. Córdoba, Ediciones Literales, 2003.)
m Lacan, 1. O Seminário. Os escritos técnicos de Freud. Livro 1. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 3" edição, 1986, p. 245.
252 lbid., p. 246.
Graciela Haydée Barbero 189

De todas maneiras, até aqui, na perversão - lúdica ou não-, e


sendo por enquanto intersubjetiva, prevalece a relação imaginária,
saturando o desejo.

"O simbólico modelará todas as inflexiJes que, no vivido do adulto,


pode tomar o engajamento imaginário, a captaçüo originária.
Penso que vocês compreenderam a quais impasses chegaremos se
fizermos uma noçiio central da relaçüo imaginária suposta
harmônica e saturando o desejo natural. Tentei demonstrá-lo na
fenomenologia da relaçüo perversa". 253

Aqui diferencia a homossexualidade das outras "perversões".

"Acentuei o sadismo e a escoptofilia, deixando de lado a relaçüo


homossexual, que exigiria um estudo ili/111ita111e111e nuançado da
intersubjetividade imaginária. da sua incC'fte-;.a. do seu equilíbrio
instável, do seu caráter crítico".

E mais adiante:

"O que é a perversüo'! Ela nüo é simplesmente aherraçiio em


relaçüo a critérios sociais, anomalia contrária aos bons costumes,
se hem que esse registro nüo esteja ausente, ou atipia em relaçêío
à critérios naturais, isto é. que ela derroga mais 011 menos a
finalidade reprodutora da conjunção sexual. Ela é outra coisa na
sua estrutura mesma.
( ... ) Estruturalmente, a perversão tal com a delineei no plano
imaginário, só pode se sustentar 1111m estatuto precário que, a
cada instante, do interior, é contestado para o sujeito.
(. .. ) Essa incerteza fundamental da relaçüo perversa, que nüo tem
como se estabelecer em nenhuma ação satisfatória, faz uma jê1ce do
drama da homossexualidade. Mas é também essa estrutura que dá à
perversão seu valo,: A pen,ersão é uma experiência que permite

"' lbid., p. 250.


190 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

aprofundar o que se pode chamar, em sentido pleno, a paixão


humana... que está aberta a essa divisão com ela mesma que estrutura
o imaginário, ou seja. entre O e O', a relação especular". 254

E como está marcando o que seria uma relação principalmente


especular e imaginária, continua:

"A relação intersubjetiva que sub-tende o desejo perverso sô se


sustenta da anulação, ou bem do desejo do outro, ou bem do desejo
do sujeito. Ela só é apreensível no limite, nessas inversi'5es c1~jo
sentido se percebe num lampejo. " 255

Até aqui, a perversão está perto da paixão e é uma estrutura


baseada na relação imaginária onde prevalece o desejo de um ou do
outro, afirma.
No Seminário 4 256 , notamos um "avanço" desde minha pers-
pediva. Lacan fa]a da perversão entre a!>pas, a mais problemática
possível, diz, na perspectiva da análise, a saber: a homossexualidade
feminina. Não é aqui o único lugar donde o diz. Talvez porque não
fica claro, por enquanto, como é que se deseja sem a presença, em
um ou em outro dos parceiros, do órgão fálico associado ao pênis.
Um pouco mais adiante, afirma que o próprio das relações ho-
mossexuais é apresentar toda a variedade das relações heterossexu-
ais comuns, e talvez algumas outras variações mais, agrega.
O que é desejado na mulher amada é aquilo que lhe falta.

"No extremo do amor, no amor mais idealizado, o que é buscado


na mulher é o que falta a ela. O que é buscado, para além dela, é o
objeto central de toda a economia libidinal: o falo. (... ) E aquilo
que lhe falta nessa ocasião (continua.falando da jovem 'perversa

254 Jbid.' p. 252.


255 lbid., p. 253.
' 56 Lacan, J. (1956/57). Op. Cit., p. 95.
Graciela Haydée Barbero 191

entre aspas', como ele diz) é precisamente esse objeto primordial


cujo equivalente o sujeito, o substituto imaginário, iria encontrar
na criança e à qual ele retoma " 257 •

O que é a perversão? - pergunta novamente, duas páginas de-


pois. Alguns crêem na persistência de uma fixação incidindo sobre
uma pulsão parcial, um acidente na evolução das pulsões, afirma,
discordando. Outros, que é a erotização de uma defesa; mas, como
se erotiza uma defesa? - questiona. Por enquanto aparece somente
a falta de respostas.
Um pouco mais adiante, falando do fantasma perverso, remete
ao texto freudiano Bate-se numa criança 258 :

"Existe aí (na fantasia perversa), como que uma redução simhôlica,


que eliminou progressivamente toda a estrutura stil~ietiva da
situaçêio para deixar subsistir apenas 11111 rl'síduo inteiramente
des-subjetivado, e, afinal de contas, enigmático porque conserva
toda a carga -mas a carga nêio revelada, inconstituída, inassumida
pelo sujeito - daquilo que é, 110 nível do Outro, a estrutura
articulada em que o .1·1~jeito está engajado. "259

No mesmo seminário aponta, no fetichismo, o objeto ocupando


o lugar do "pênis" da mãe fálica. E diz, de novo, que o molde da
perversão é a valorização da imagem. Mas, mesmo assim, não seria
algo somente pré-edípico, pelo contrário:

"Freud marca claramente, que o problema da constituiçc7o de


toda perversão deve ser abordado a partir do Édipo, através dos
ava tares, da aventura, da revolução do Édipo". 260

' 57 lbid., p. 111.


' 5" Freud, S. (1919). Op. Cit.
' 59 Lacan, J. lbid., p. 114.

'"" Lacan, J. lbid., p. 122.


192 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Mas,

"Resta, com efeito, um elemento fantasístico, essencialmente


imaginário, que é a prevalência do falo, mediante o que há para o
sujeito dois tipos de seres no mundo: os seres que têm o falo e os
que não o têm, isto é, que são castrados. (. .. ) O falo não tem, por
uma boa razão, o mesmo valor para aquele que possui realmente
o falo, isto é, a criança masculina, e para a criança que mio o
possui, isto é, a criança feminina", agrega 261 •

O sujeito, no nível genital, é introduzido à dialética do dom.

"Em outras palavras, aquilo a que se chama, por assim dizer, a


perver.1'(10, neste caso se exprime entre as linhas, por contrastes e
alu.,·aes. É uma maneira de j(dar de uma coisa inteiramente diversa,
uma .fimç<io metonímica. 2r• 2
(... ) é o único motor de sua perver.1·üo, a saber. em conformidade
com o que Freud muitas vezes afirmou em relaçüo à patogênese de
um certo tipo de homossexualidade feminina, um amor estável e
particularmente rtj'orçado pelo pai. " 263

Novamente, o Édipo. E, a continuação, a interpretação mais


clássica dentro do lacanismo:

"Esse pênis simbólico, que eu situava outro dia no esquema da


homossexual, desempenha uma função essencial no ingresso da
menina na troca simbólica. É na medida em que a menina nüo tem -
no plano simbólico, na medida que ela entra na dialética simbólica
de ter ou não ter o falo, é por aí que ela entra nessa relação ordenada
e simbolizada que é a dfferenciação dos sexos, relação inter-humana
assumida, disciplinada, tip(ficada, ordenada, marcada por interditos,

061 lbid., p. 124.


062 /bid., p. 148. Grifo da autora.
263 lbid., p. 150.
Gradeia Haydée Barbero 193

marcada, por exemplo, pela estrutura fundamental da lei do incesto.


É isso que Freud quer dizer quando escreve que é por intermédio
daquilo que ele clu1ma de a idéia da castração - e que é justamente o
seguinte, que ela nüo tem.falo, mas ,u7o o tem simbolicamente, portanto,
pode tê-lo -, que a menÍlw entra no complexo de Édipo. ". l<>+

Neste mesmo seminário, em que ele pensa as diversas formas


em que o ser humano se relaciona à falta, além de falar da jovem
homossexual para exemplificar uma forma cavalheiresca de amar,
na qual se dá o que não se tem, e não se pede nada, Lacan vai desen-
volver seus argumentos em relação ao fetiche e à fobia.
O fetiche é um símbolo, afirma, mas se encontra com algo um
tanto contraditório:

"( ... ) por um lado, nüo podemos perder o co11tato com a noçiío de
que a gênese do fetichismo está es.1·encialme11te articulada ao
complexo de castraçüo. Por outro lado, é nas relações pré-
edipianas, e em nenhum outro lugar, que aparece mais assegurado
que a mãe fálica é o elemento central, a mola decisiva. Como unir
as duas coisas? '""65

E, um pouco mais adiante, aparece a função do véu para escla-


recer as coisas:

"(. .. ) é sobre o véu que o fetiche vem figurar precisamente o que


.falta para além do objeto. " 2',r,

Assinala também, a "impotência (de Freud) de sair do dilema


colocado pela perpétua ambigüidade que se lhe propàe entre dois
tennos que ele define, a saber, ident(ficação e escolha de objeto. " 267 •

x,., lbid., p. 156.


21' 5lhid., p. 161.
2"' lbid., p. 168.
' 67 lbid., p. 173.
194 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

Em síntese, ficam algumas questões em aberto, apesar de ter


colocado sua interpretação mais conhecida e começa a marcar algu-
mas dificuldades freudianas.
No Seminário 5, diz:

"Assinalo, pois, que em torno da questão do campo pré-edipiano


reúnem-se a questão da perversão e a da psicose(. .. ) trata-se da
função imaginária. " 268
"(. .. ) a função do Édipo como repercutindo diretamente na
assunção do sexo concerne à questão do complexo de castração
no que ele tem de pouco elucidado. "269

Neste seminário Lacan lembra que a função do pai é a que está


no centro da questão do Édipo. E aqui assinala que o Édipo pode ter
uma função normativa:

"Por um lado - ponto que muitas exploraçiJes e discussões na


histária.fizeram passar a segundo plano mas que continua implícito
em todas as clínicas, o complexo de Édipo tnn uma .fimçüo
normativa, mio simplesmente na estrutura moral do s14eito, nem em
suas re/açiJcs com a realidade, mas quanto assunção de seu sexo, o
que, mmo vocfa· sabem, sempre persiste na análise, dentro de uma
certa ambigüidade (... ) A virilidade e a feminização süo os dois
termos que traduzem o que é, essencialmente, a função do Édipo.
Encontramo-nos, aí, no nível em que o Édipo está diretamente ligado
à fimçüo do Ideal do eu - ele não tem outro sentido " 270 •

Logo mais, o pai será, na teoria lacaniana, uma metáfora, a


metáfora paterna. Aqui se pergunta pela reJação do homossexual e
o pai, e realça a questão - delicada -, diz, do Édipo invertido, do
Édipo que inclui o amor do homem pelo pai.

"' Lacan, J. (1957/58). Op. Cit., 1998, p. 169.


"'" /bid., p. 172. Grifo da autora.
270 lbid., pp. 170/171.
Gradeia Haydée Barbero 195

No centro da relação não está o objeto parcial, afirma. Está o


falo. Fazer-se falo, diz. A via imaginaria não seria a via normal, se-
gundo Lacan, porque deixa sempre alguma coisa de aproximativo e
insondável, de dual, o que geraria todo o polimorfismo da perversão.
A via simbólica normal seria a aceitação, em um momento, da metá-
fora paterna.
Neste momento do seminário desenvolver-se-á os três tempos
do Édipo, discriminando-os. Fica esclarecido que a ordem simbólica
remete à significação fálica, ou seja, a que corresponde a um mundo
onde h.í um modelo de homem, de mulher e de pai, derivado da distri-
buição de lugares em relação ao critério fálico.

"( ... ) é exatamente a existência, por detrás dela, de toda a ordem


simbólica de que ela depende, e a qual, como está sempre mais ou
menos presente, permite um certo acesso ao objeto de seu desejo, o
qual já é um objeto tão e~pecífic:o, tão marcado pela necessidade
instaurada pelo sistema simbólico que é absolutamente impensável
de outra maneira quanto a sua prevalência. Esse objeto chama-se
falo e em torno a que fiz girar toda a relaçüo de objeto o ano
passado. " 271

E ainda:

"Não chamaríamos o que está em jogo de complexo de castraçtio,


se de certa maneira, isso não se coloca em primeiro plano, que,
para tê-lo, primeiro é preciso que tenha sido instaurado que nüo
se pode tê-lo, de modo que a possibilidade de ser castrado é
essencial na assunçüo do fato de ter o.falo." 272

E falando dos homossexuais:


196 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

"Se há uma coisa que se destaca das observações da maneira mais


clara, é que a homossexualidade masculina - a outra também,
mas hoje vamos limitar-nos ao homem, por razões de clareza - é
uma inversão quanto ao objeto, que se estrutura no nível de um
Édipo pleno e acabado, mas sensivelmente, mesmo reafiz.ando a
terceira etapa de que falávamos, o homossexual a modifica muito
sensivelmente. Temos que investigar (. .. ) em que ponto exato se
situa a condusüo de seu Édipo.(... ) se o homossexual, em todas as
suas nuances, atribui um l'alor preponderante ao bendito objeto,
a ponto de fazer dele uma característica absolutamente exigível
do parceiro sexual, é na medida em que, de alguma forma, a mlle
dita a lei ao pai, no sentido como lhes ensinei a distingui-lo. " 273

Referindo-se ao escritor A. Guide e a seu comentário sobre o


amor de um uranista, interpreta as cartas de amor que dirigiu à sua
mulher, a quem não desejava, como fetiches.
Seminário sobre o desejo*, classe 20:

"O a - eu disse-, é o efeito da castração. Nllo disse que é o objeto


da castraçtio. Esre objeto da castração, o chamaremos de falo. O
falo, que é'!"."74

Lacan especifica que a sua experiência sobre a homossexuali-


dade está baseada e definida a partir do momento que começara a
analisar homossexuais. E lembra-se de que:

"( ... ) o 'professor Freud' nos disse, em 'Três Ensaios sobre a


Sexualidade', que a homossexualidade masculina - ele não pode,
neste momento, avançar mais, explica, se manifesta por uma

m lbid., p. 214.
* Lacan, J. Seminário 6 - Inédito - 1958, p.59.
274 "El a, he dicho que era el t!j'ecto de La castral'ión. No he diclw que es el objeto de la
castraciôn. Este objeto de la castraciôn, lo llwnaremos e[ falo. El falo, qué es?"
Daqui em diante, as falas traduzidas do castelhano dos seminários inéditos não serão citadas
no original, já que, de qualquer forma, trata-se de versões não oficiais dos Seminários.
Gradeia Haydée Barbero 197

exigência narcúica de que o objeto nüo poderia estar desprovido


daquele atributo considerado pelo siijeito como essencial''. 275

Então, temos que avançar mais.


A homossexualidade, comenta, está longe de ser uma exigência
instintiva. E vejamos como aqui ele vai começar a dizer coisas cada
vez menos conhecidas.

"( ... ) o falo que intervém no mecanismo da homossexualidade está


muito /011!!,e de ser o do objeto (parceiro). que o falo do qual se
trata se ident(fica, talvez muito rapidame11te, ao .fúlo paterno, em
tanto este falo se encontra na vagina da mulher. Eis ai um falo,
en/üo, com outro alcance, com outra função e com outro lugar do
que tínhamos visto no começo". 276

E finalmente deixa claro:

"( ... ) desde que tento com vocês ficar perto daquilo que se trata no
complexo de castraçüo, devem ter notado as amhi,?üídades que
commulwn em /Orno li funçâo desse .ftilo. " 277

É um elemento que a experiência analítica mostrou como chave


das funções significantes e que se chama.fêtlo, sendo que não é sim-
ples e puramente um órgão, ali onde é um instrumento de gozo. A
função do pai, entanto autor dos seus dias é a de ser o significante da
lei de fecundidade. Ela regula, amarra um desejo à lei. Apresenta-se
na lei dos intercâmbios, das re1ações fundamentais que regulam as
inter-relações do desejo na cultura, diz.
Na classe 25, marca a confusão que existe entre o fantasma
perverso e a perversão. Não são iguais; o perverso tem verdadeira-
mente aceso ao objeto, afirma, (sem mais explicações). E comentan-

275 lhid., s/p. Sublinhado da autora.


"'' lbid., s/p.
277 Jbid., s/p.
198 Homossexualidade e Perversão na PsicanáJise

do um outro autor, afirma também que a noção de splitting é impor-


tante. Até aqui, parece-me que está construindo a estrutura perversa,
até para ele mesmo, partindo somente de algumas idéias básicas como
da identificação do suposto perverso com o falo imaginário da mãe e
tentando o tempo inteiro diferenciá-lo do neurótico, que, em seu fan-
tasma, deseja também ocupar este lugar privilegiado. Qual seria exa-
tamente a diferença? Há na perversão, diz, mais adiante, uma espé-
cie de inversão na qual ele o é e ele o tem (o falo). A perversão se
apresenta, diz, como uma simulação natural do corte, identificado que
está com a forma imaginária do falo, insiste.
Já no Seminário 8, no capítulo que os editores da versão em
português chamaram A mola do amor278 , falando do Banquete de
Platão, parte da afirmação de que o amor grego seria o amor dos
belos rapazes e afinna algo que me parece uma última tentativa de
considerar a homossexualidade como uma estrutura perversa inde-
pendentemente do contexto social. Disse assim:

"/,\·to não impede que o amor grego permaneça uma perversão,


por maior suhlimaçüo que seja. Nenhum ponto de vista culturalista
prevalece aqui. (... ) a homossexualidade não deixava de ser o que
é, uma perversüo (. .. ) Dizer-nos, para acomodar as coisas, que se
tratamos dela é porque, em nosso tempo, a homossexualidade é
inteiramente diferente, não está mais na moda, ao passo que nos
tempos gregos ela exercia sua função cultural, sendo enquanto
tal digna de toda nossa consideração é realmente, elidir o
problema. Se não houve a demanda, com o mais-além do amor que
ela pn~ieta, não haveria este lugar para aquém, de desejo, que se
constitui em tomo de um objeto privilegiado".

Parece-me que é importante conservar esta idéia: a demanda


produz um mais além, o amor (a demanda é sempre, em última ins-

'" Lacan, J. O Seminário - livro 8 - A transferência (1960/61). Rio de Janeiro, Jorge


í'.ahar. Reimpressão 1994, p. 38.
Gradeia Haydée Barbero 199

tância, demanda de amor), e um mais aquém, um lugar de desejo em


tomo de um objeto que ficará mais claro quando as diferenças forem
especificadas, no Seminário 1O, entre: o objeto pequeno a como
função e o a da identificação.
No Outro, que é o lugar da fala, há algo análogo àquilo que se
pode encontrar no objeto mais inerte, a saber, o objeto do desejo, o a.
Esta tensão, este desnivelamento, é a problemática do desejo, afirma.
E começa, desde aqui, a trabalhar as diferenças entre fi minúsculo
imaginário, o cp, interessado no complexo de castração, e fi maiúscu-
lo, o éf>, que seria o Iugar desde onde se produz à falta de um significante
no Outro.

"Em outras palavras, no nível do desejo genital da fase da


castração, da qual tudo isso é feito para lhes introduzir a
articulação precisa, o a é o A menos fi (<.p). É por este viés que o
phi( <l>) vem simbolizar aquilo que falta ao Outro para ser o Outro
enquanto se pode confiar em sua resposta à demanda. Deste Outro
Noético o desejo é um ... universal enigma. E este enigmu está
enlaçado com o fundamento estrutural da castração. " 279

Aclara que não é simplesmente que o éf> é o falo simbólico e o cp


o imaginário. Talvez isto seja verdade só em um certo sentido, mas
aqui temos que considerar a presença do real, afirma. E logo vem
uma afirmação ainda um pouco enigmática, mas que remete à rela-
ção do perverso com o falo.

"O que nos permite falar dela, F, assim mesmo, como significante,
e isolar como tal(. .. ) é isso que chamo o mecanismo perverso. " 280

Parece aqui um pouco surpreso. Lembra-nos de que o falo, sob


a função orgânica do pênis não é, no reino animal, um órgão genera-

079 lbid., p. 248.


28" lbid., p. 248.
200 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

lizado (nem todos os animais copulam com este modelo orgânico); ou


seja, é simplesmente um signo do desejo, mas há outros. É por ser um
signo que ele é um significante? - se pergunta. E faz referência à
necessidade do homossexual (masculino) de ver um órgão ereto para
poder ele também ter esse efeito.

"( ... ) o que chamamos, de maneira mais ou menos confusa, a


instância homossexua/" 281 , afirma. E também:

"Ele é o sign~ficante e ao mesmo tempo o objeto signo do desejo, o


objeto de desejo. o obieto de atração para o de.wjo. (... ) a castraçâo
é idêntica àquilo a que chamarei a constituição do de.seio como
tal. (... ) como o desejo se comp<1e entre a marca do signijicanl<' e a
paixiio do ohjl'to parcial. " 282

Na aula 23, já quase finalizando o seminário, ele introduz a dife-


rença entre eu ideal e ideal do eu e os três tipos de identificação
que Freud anuncia cm Psicologia das Massas. Uma identificação pri-
mária, anterior ao Édipo (ou seja ao Édipo correspondente à fase fálica),
uma identificação por abandono do objeto, regressiva, (em tanto o ob-
jeto se recusa ao amor, segundo Lacan), e a identificação histérica.
Nas duas primeiras tratar-se-ia de identificação a um traço.
Aparece então, o traço unário e a identificação com um
significante sem sentido. Aqui, lembrando do famoso esquema do
florero invertido, que tinha apresentado no texto dos Escritos - "Ob-
servação sobre o informe de Daniel Lagache" 283 -, começa a de-
senvolver a idéia de que o objeto especular tem um branco, "eu sou
o que me vejo ser (Ideal), e algo mais". A identificação com I seria
a da "Psicologia das Massas". Isto é um momento importante já que

281 Jhid., p. 258. Sublinhado da autora.


282 Jbid., p. 288. Sublinhado da autora.
283 Lacan, J. Ohservaciôn sobre el inj<mne de Daniel Lagache "Psicoanálisis y Personalidad".

ln: (1966) Escritos. Siglo Veintiuno, 1989. 15" edição em espanhol, vol. 2, pp. 627-664.
Graciela Haydée Barbero 201

começa a diferenciar, ligado à identificação, o a especular, do peque-


no a como conceito e função. Diferencia também, uma "identifica-
ção de significantes" de uma identificação imaginária.
No Seminário 9, Seminário da Jdentificação 284 , justamente,
Lacan se estende sobre a questão do traço unário, no qual se reco-
nhece o real entanto nos indica onde está suspenso o sign(ficante.
A identificação não é só "fazer um", diz. O significante representa o
sujeito para outro significante. A função do traço unário teria a ver
com a identificação regressiva freudiana, ligada à perda do objeto
amado. Identificação com um traço que admiramos. A primeira iden-
tificação se faz sobre o fundo da imagem, é ambivalente porque se
baseia em "devoraçc7o assimilante". Já no terceiro tipo de identifi-
cação, que, segundo Freud, seria a histérica, se observa a função do
significante como tal, do nome próprio. É muito importante observar
que o traço unário vem do Outro (sem gênero). Todos estes elemen-
tos levam a uma nova forma de teorizar o Édipo e os outros conceitos
básicos da psicanálise.
Um significante é uma marca, um traço, uma escritura. Lacan
fala aqui do objeto oral e anal como falos e da função privilegiada do
falo na identificação. Afirma que devemos levar em conta a equiva-
lência aportada por Freud em "Introdução ao narcisismo", entre libi-
do objetal e libido do eu. Também, que à diferença do amor, no dese-
jo, o que se procura é menos o desejável que o desejante, quer
dizer, aquilo que falta ao Outro (ct> e <p). Eros está articulado ao redor
do falo. Na identificação, o sujeito está constituído em sua estrutura
ali onde a pulsão sexual tem sua função privilegiada. O sujeito cons-
titui primeiro a ausência desse traço unário, diz, para depois se cons-
tituir no lugar de algo que pode faltar.
Este seminário está condicionado pela procura de uma erótica
no sentido de se perguntar o que há de real (de real pulsional aqui)
nesse efeito de significante. Também afirma que o sujeito tenta fun-
dar seu desejo no caminho da demanda do Outro, mas que há ali uma

"' Lacun, J. (1961/62). Op. Cit.


202 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

relação de engano porque recebe a mensagem: "não desejarás o


que fora meu desejo (tabu do incesto)". 285 O problema do Édipo
que todos somos, diz, é querer saber o que há mais além.
No estádio do espelho o sujeito se relaciona ao outro por meio de
uma imagem que o inclui, que é a imagem do outro. Esta é uma estru-
tura parcial, insuficiente, diz Lacan, já que o campo de surgimento do
objeto é um campo significante, porque se relaciona com a demanda.
Na relação do sujeito com o desejo, articula-se a castração. O vazio
incluído no coração da demanda, liga-se ao falo, àquilo que está além
do princípio do prazer, além da repetição, diz. O Outro proíbe o gozo.
Aqui Lacan dá um outro passo, começa a distanciar-se de Hegel.
O desejo já não é bem o desejo do Outro, há um menos um (-1) que
me representa, diz. Não conheço o desejo do Outro, mas conheço
seu instrumento, o falo" 286 • O sujeito demanda o falo e o falo deseja
por ele. O temor de perder o falo é porque somente ele dá seu campo
ao desejo.
Na aula de 02/05/1962 do mesmo seminário, Piera Aulagnier faz
uma exposição sobre a angústia, e fala da angústia no psicótico e na
perversão, diante do qual, Lacan reconhece que ela toma uma posição
audaz: o perverso é aquele que se faz objeto para o gozo de um falo do
qual ele não supõe a "pertenência". E ele agrega: é o instrumento do
gozo de um Deus. Além de concordar com isto, insiste na necessidade
de continuar a especificar que é o falo, na "urgência da definição do
falo", já que isso nos ajudara no diagnóstico da estrutura perversa, diz.
Ou seja, as definições anteriores não são suficientes. Ele diz, também,
como mencionei no começo do capítulo, que:

"(.. .) para diagnosticar a estrutura perversa é necessário Jogar


pela Janela tudo que se tem escrito, desde Kraft-Ebing a Havelock
Ellis e tudo que se tem escrito de um catálogo de uma clínica
qualquer das perversões (... ), e mais adiante (... ) exijo de vocês,

' 85 Jbid., aula de 13/03/18962.


"'' Thid., 04/04/1962.
Gradeia Haydée Barbero 203

esse passo de conversão que nos permita estar no ponto de vis/a


da percepção no qual saibamos o que a estrutura perversa quer
dizer de absolutamente universal. " 287

A estrutura perversa nos interessa no que quer dizer de univer-


sal, ou seja, no que pode aportar à teoria psicanalítica. Aqui, introduz
a fórmula do fantasma: sujeito barrado($) losango a. O a não pode
captar-se sem o$ porque a função de a no fantasma, diz, é correlativa
ao desvanecimento do simbólico. O objeto é representante de uma
demanda latente que toma valor de um desejo que é de outro registro.
Como se produz esta "transmutação libidinal"? - pergunta-se. Pela
função do falo. Mas esse falo está ali em tanto ausente, ou seja, aqui
o objeto a é falo, o falo semblantea o nada, positiviza o - cp.
Agora Lacan procurara um modelo topológico que dê conta
destas funções do falo. O falo, na sua função radical, é o único
significante que pode significar-se a si mesmo, mas é inominável como
tal. Como concebê-lo? É o único nome que apaga todas as denomi-
nações, diz.
O significante é sempre diferente de si mesmo. Só aparece do
lado do real. O significante é corte.
Na aula de 27/06, Lacan fala da função do a como sendo o
objeto da castração, diferentemente de sua afirmação anterior (p.
196) onde afirmava que o objeto da castração era o falo. A função
deste objeto (o a do fantasma) está ligada à relação por onde o sujei-
to se constitui na sua relação, no lugar do Outro, desde onde se orde-
na à realidade do significante. No ponto onde falta toda significância,
esse ponto nodal chamado desejo de A (do Outro), no ponto chamado
ponto fálico, porque abole a significância, esse é o ponto aonde a,
objeto da castração vem a tomar seu lugar. É este o ponto de onde
volta o desejo, a causa do desejo, o ponto onde aparece a angústia.
"Que será que esse Outro deseja de mim?" Aqui aparece o - cp, o
falo negativado. Aquilo que falta ao Outro, no meu imaginário.

281 lbid., 02/05/1962.


204 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Freud deixa aberta a teoria, afirma Lacan, no ponto do splitting


do eu, num ponto de arnbigüidade que o leva ao seguinte: o objeto da
castração é esse termo bastante ambíguo, para que no momento
mesmo que o sujeito se empregou a reprimi-lo, o instaure mais
.firme que nunca num outro, o que entendemos pela idéia de que o
objeto a, o sujeito o encontra no parceiro.
Antes de passar ao Seminário 1O, gostaria de comentar algumas
falas de Lacan, que se encaminham pela via do complexo de Édipo e que
mostram as modificações de suas idéias prévias sobre este assunto.
O Édipo, explica, é uma dependência da demanda do Outro ("não
desejarás o que fora meu desejo").

"Hâ ,u•s.1·c nó com o Outro, tal e com.o está aqui ilustrado, uma
relurüo de senhuelo o desejo estâ pr<~f'unda e radicalmente
estruturculo por esse m, que se chama Édipo. (. .. ) esse nô interno
que se duuna É.'dipo. no entanto é essencialmente o seguinte: uma
relaçüo nitre' uma demanda que toma um valor privilegiado que
se tran.forma em mandato absoluto, a lei, e um desejo que é o
desejo do Outro, do Outro do que se trata no É'dipo. (. .. ) o ol~jeto
do desc~jo existe como essa nada mesma da que Outro não pode
sabe 1: "lxx

Mas o sujeito deseja sabei; esse é seu problema. Já teria Lacan


antecipado, no Seminário da Ética 289 , que o desejo do Édipo da
tragédia foi o desejo de saber. Neste seminário marca a relação do
desejo com a morte.
Por outra parte, adve1te que a psicanálise pode ser utilizada como
uma ideologia moralizante.

288Seminário 9. Op. Cit.


289Lacan, J. O Seminário - livro 7 - A Ética da psicanálise (1959/60). Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1988.
Gradeia Haydée Barbero 205

"Promover na ordenação da análise a normalização psicolâgirn


inclui o que podemos chamar de uma moralização racionalizante.
( ... ) (mas) a perspectiva teórica e prática da nossa ação deve
reduzir-se ao ideal de uma harmonização psicolôgica?" 2w1

E logo:

"Tenho necessidade de lembrar o que, na tradiçiio analítica. aqui,


confirma o que estou articulando? Quem é que nos dú inicialmente
o exemplo da castraçiio abstraída, assumida, desejada como tal,
.1·e11iio o Édipo? Édipo mio é, antes de tudo. o pai, é o que quero
dizer /ui muito tempo, observando ironicamente que Édipo mio
soube ter complexo de Édipo. Édipo é aquele que quer passar
autêntica e míticamente ao quarto nível que é necessário abordar
por sua via exemplar, aquele que quer violar a interdição
concernente à junção de a, aqui - fi, e da angústia, aquele que
quer ver o que há depois da satisfação conseguida. " 291

No Seminário 10 vamos ver a tentativa de resolver alguns


impasses, que já apareciam nos seminários anteriores, como a confu-
são cm que ele mesmo entra, entre o Outro e o outro, tentando dife-
renciar o a da identificação, (metonímia do outro/autre em francês)
do a como função, que é um novo conceito. Haveria uma armadilha
na captura narcisista, porque há um ponto que não chega a investir-
se no objeto. Isto é, fica marcado pela castração, observa. Há um
resto na imagem que não está investido. Este resto sem investir da
imagem especular é o - cp (menos fi). O falo negativado. O branco
no olho do Outro. O falo é uma reserva operatória, está cortado da
imagem especular. - <p (menos fi) não entra no imaginário. Ele não é
visível para o homem, é o início do desejo. Mas quanto mais fica
perto do objeto de desejo, mais ele está desviado da rota do Outro. É
um investimento profundo ao nível do corpo próprio, do narcisismo

'~" lbid., p. 363.


' 9' Jhid.• p. 367.
206 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

primário (que se chamava auto-erotismo), fica ali como instrumento


da relação com o outro, seu parceiro sexual, diz (sem especificar
gênero). O fantasma que contém este objeto (a) é uma defesa con-
tra a angústia.
Neste momento do seminário, Lacan vai falar do ato, da pa1,sagem
ao ato e do acting-out. Atuar é tirar à angústia sua certeza. A fórmula do
fantasma é o suporte do desejo. O objeto a, causa do desejo, pode se
dizer, metaforicarnente, que está por detrás do objeto. 292
O desejo sádico se caracteriza porque seu ato procura (e não o
sabe) realizar-se como puro objeto, ocupar este lugar de puro obje-
to sem enfeites. Mas o a tem de se conservar como falta porque o
sujeito ama com essa falta. (Entendo que, no sádico, não haveria
conservação da falta, nesta realização como puro objeto). Para ter o
falo é preciso não sê-lo (como a jovem homossexual, que se coloca
no lugar de um cavalheiro, ao dar o que não tem, o falo). O acting-
out é o início de uma transferência, uma transferência sem analista,
explica.
A angústia não é sem objeto, porque está ligada ao objeto como
resto, como pedaço de carne que cai. O - cp (menos fi) é somente
uma das traduções possíveis da falta original. É um suporte imaginá-
rio. A angústia não é sem objeto, mas não pode dizer de que objeto se
trata. A angústia nos introduz na função da falta que somente pode
ser apreendida por intermediação do simbólico. Mas há aí algo perdi-
do, esse pedaço de carne, esse real que aparece na constituição mes-
ma da subjetividade. Haveria uma construção diferente em relação
ao a, no fantasma do perverso, do psicótico e do neurótico.
Na perversão o desejo apareceria como dando-se a lei, uma
subversão da lei, mas, mesmo assim, isto que pode parecer um
desenfreio, esclarece Lacan, é defesa, procura de uma lei que freie o
caminho do gozo. A vontade de gozo no perverso, corno em qualquer
outro é vontade que fracassa, ao contrário do que se pensa, que en-
contra seu próprio limite, seu próprio freio (27/02/1963) no exercício

292 Lacan, J. Seminário 10 ( 1962/63), Inédito. Aula de 10/01/1963.


Gradeia Haydée Barbero 207

mesmo, como tal, do desejo perverso. O perverso não sabe a serviço


de que gozo exerce sua atividade, diz. Neste ponto aparece uma acla-
ração de Lacan:

"Me pllrece que perverso (se deitarmos de lado as estruturas) tem


o sentido que poderia derivar de Freud, do 'polimorfismo
perverso'. Exemplo: a obesidade ou a anorexia. " 293

Parece que está entendendo a perversão como uma defesa. O


que o per\'erso busca é a angústia do Outro, sua divisão. A angús-
tia existe porque o desejo do Outro n~o me reconhece, diz (contrari-
ando já a Hegel). A angústia aparece na separação do objeto. O
objeto se transforma em parcial, em fragmentos.
No orgasmo humano, o gozo, propriamente, coincide com a
dctumescência do órgão (o pênis), no final do ato, assim, ele deixa de
ser falo, pensa Lacan. Aqui a suhjelivid,llk l'St,í localizada na queda
do falo. A castração tem a ver com os restos do objeto caduco (a
criança não se separa da mãe, o do seio, mas de suas próprias peles
caducas, diz Lacan).
O sujeito desejante aparece na tentativa de querer fazer entrar
o gozo do Outro em um lugar significante. Mas há uma hiância do
desejo ao gozo. No sadismo, na procura da angústia do outro, procu-
ra-se o objeto a. Para fechar a fendi:t.
Um pouco mais adiante, Lacan, falando da mulher, esclarece
que o faz a partir de uma perspectiva antropocêntrica, pensando em
uma diferente relação com a função fálica, entre ela e a posição
masculina, que precisa passar pela negativização do falo, pelo com-
plexo de castração; um nó que a mulher, a partir desta perspectiva,
não precisa passar.

"Para a mulher o desejo do OutfO é o meio(... ) para que seu gozo


tenha um objeto conveniente. "

°'
1 lbid., 27/02/1963.
:lOH Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Neste momento, com a aclaração de que está tomando a via


antropocêntrica para pensar a mulher, reconhece, e não é a única
vez, que esta perspectiva é a que deriva da significação fálica e impli-
ca, assim colocada, que poderiam existir outras, só que a psicanálise
mudaria também, pelo que a questão fica, por enquanto, sem outros
desenvolvimentos.
Na seguinte aula, ele especifica que para a mulher também há
constituição do o/~jeto a,

"(. .. ) porque fá la, diz, mas ela sabe, apesar dtt reivindicaçãofâlica
e do pênis-neid. que a insatisfaçüo fundamental do desejo é pré-
castrativa. Para a mulher, procura-se o que não tem, para o homem,
o que não é. O homem que fala está implicado em seu corpo por
essa palavra. No estádio oral luí uma demanda com relaçâo ao
de.w:jo veludo da müe. No estádio anal, uma resposta à demanda
do Outro, no.fêJlico, a entrada da negatividade, o -cp(menosfi), em
tanto instrumento do desejo. ":.w

Uma outra afirmação nos leva diretamente ao centro da minha


questão:

"./amais .f<1i resolvido por Freud em último termo o que seria o


.fiuu:ionamellto do complexo de castração. (... ) O que é a castraçüo?
A angústia da falta na mãe é a angústia do esgotamento do seio.
(... ) A que nÍl'el se produz o complexo de castração? Para Freud
hâ uma relação da castração e da privação do ôrxão. A
detumeschzda do órgão na cópula é a primeira imagem de uma
separaçüo, desaparece a.função de órgão.
(... ) A imagem especular é sem resto. Não posso ver o que me.falta.
A função imaginária do falo está em todas as partes. O falo funciona
em todos os lugares, salvo onde é e:,perado. Aqui está o princípio
da angústia de castração. " 295

m lhid., 03/1963.
' 95 lbid., 0311963.
Gradeia Haydée Barbero 209

Castração que já não significa não ter um órgão, mas sim o fato
de que ele é transitório. Na cópula se juntam a pulsão de morte e a
sobrevivência da espécie. É isso que se pede ao parceiro (sem espe-
cificar gênero), diz Lacan.

"Se deixarmos de lado este ideal da realização genital. nos


apercebendo do que tem de estruturalmente. felizmente, enganoso,
não há nenhuma razão para que a angústia ligada à castraçüo
não apareça numa correlação muito mais laxa com seu ol~jeto
simbólico e numa abertura, entüo, totalmente difáente com os
objetos de outro nível. " 291>

O falo, ali, onde o esperamos como sexual, aparece somente


como falta. Ao <l> (Fi), alcanço como - cp (menos fi).

"O suporte do desejo nüo está feito para a unü7o sexual porque,
generalizado, não me especifica mais como homem ou como mulher;
senão como o um e o outro".
O signo menos (do menos fi) indica o defeito do falo como
constituindo a disjunção que une o desejo ao gozo. ···m

Respondendo à demanda do outro, o objeto se valoriza, ocupa


uma função de "agâlma". E por isso se relaciona com o falo. As-
sim é como o objeto excremencial ocupa nossa atenção (ocupa o
lugar fálico).
O a minúsculo se refere a hiância central que separa o desejo
do gozo.
É neste seminário, segundo Allouch, que Lacan se separa de si
mesmo, abandona a importância do falo simbólico, coloca o falo no
lugar do objeto a, e, por conseguinte, acaba com a necessidade da
heterossexualidade e com a relação entre os sexos, tanto quanto com

296 Ibid., 29/05/1963.


297 lhid., 05/1963.
210 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

a importância fundante <la "diferença dos sexos" como critério para


guiar o desejo. 298

"Que ofalo ncio se encontre ali onde se espera, diz Lacan, ali onde
se exige que esteja, a saber, no plano da mediação genital, eis o
que explica que a angústia é a verdade da sexualidade, quer dizer,
o que aparece cada vez que o fluxo se retira. A castraçcio é o preço
dessa estrutura, ela substitui essa verdade, explica. Mas, na
verdade, isso seria um jogo ilusório. Na realidade, não há
castração, pensa o mestre, porque no lugar onde ela se produz
não há objeto a castrar. Seria necessário, di::., que para isso, o falo
estivesse lá. Ora, ele só estâ lá para que não haja angústia. E tudo
isto quer di::.er que o falo é chamado para funcionar como
instrumento de potência. (. .. ) O ser humano cmifitnde o gow com
os instrumentos da potência. "299

Então, como continua Lacan depois disto? Como muda sua teoria?
Voltamos a encontrar referências à perversão, à castração e ao
falo, cm alguns seminários seguintes. Não significa que sejam os úni-
cos, mas podem servir como baliza.
Há algumas pistas no seminário 13, seminário chamado do Ob-
jeto300 (uma espécie de revisão do Seminário 4, já citado por nós).
Na aula nº 22 301 , há uma referência clara. Está falando de um livro
de Clavreul, um analista que comparecia ao Seminário, e disse o
seguinte:

2'" Em uma reportagem feita ao mesmo, que apareceu na Internet, em novembro de 2003

(no site: http://www.Galcon.com/textospsi/allouchl.html), ele coloca a idéia de que neste


seminá1io, Lucun estaria rctilizando "uma teoria do trepar" (já que a relação sexual não
existe, não haveria outra forma de falar disto, afirma Allouch), aí se dá conta de que o
falo não pode servir para diferenciar os sexos e se o falo não pode explicar a diferença
sexual, insiste Allouch, deixa de jimcionar o conceito de heterossexualidade (e, então,
o de homossexualidade referenciado nele).
2"'' Idem, 05/06/1963.

·''"' Lacan, J.(1966/67). Seminário 13. O objeto da psicanálise. Inédito.


'º' Ibíd., aula de 15/06/1966.
Gradeia Haydée Barbero 211

"( ... ) não pensam vocês que isso sempre volta num complô con-
tra o doente? Não é isso o que falseia a coisa? O que faz que se
chel{ttem a dizer algumas coisas que ultrapassam um pouco,
enfim. se posso dizer, o estrito pensamento cient(fzco. que poderia
ser aquele no qual a gente se sustentaria, se se tratasse de
Perdadeiras reuniões científicas?(... ) Há comunicações que se
dizem científicas e que não o süo tanto.
(... ) Mediante o qual, sobre o plano da notaçüo clínica, algo
centrado ao redor do casal perverso. Clavreul, de quem sinto
.falta, porque teria lhe renovado minha feliciraçào. nos fez algo
excelente. nüo falta seniio isto que foi dito finalmente na
discussão, mas que ninguém ouviu, porque não foi dito cla-
ramente. É que, em resumo, para falar totalmente, cientificamente
da perversão, seria necessário partir disto que é, muito
simplesmente, a base, em Freud. Disse-se, se trousse timidamente
esses 'Três Ensaios sobre a sexualidade'. Bem, é que a perversão
é normal.
Tem que se tornar a partir daí, de uma vez, enü7o o problema. o
problema de uma construção clínica, seria saber porque lzá
perverso.1· wwrmais. Porque há perverso.1· a1wmwis? Isso nos
permitiria entrar em toda uma ,·mifzguraçüo histórica, por uma
parte histórica, porque as coisas históricas mio são histáricas
somente porque aconteceu um acidente, süo históricas porque
era muito necessário, que de uma certa forma, uma certa
rnnfiguraçüo saísse à luz.
É muito claro que é o problema de nosso amigo Michel Fou-
cault. que mio está tampouco (... ) nosso amigo Foucault aborda
com excelentes livros (... )
(... ) lamento a ausência de Clavreul porque 1/ze recomendaria
um livro (trata-se de um velho livro intitulado 'As memórias do
abade Choicy' que gostava de se vestir de mulher e nunca teve
problemas de qualquer tipo com isso).
(... ) a sua conferência (de Clavreul) estava intitulada 'O casal
perverso', como se os houvesse, puros e simples casais perversos,
justamente é todo o drama".
212 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

E, mais adiante, deixa uma observação, sem muitas explicações,


referindo-se ao escritor Jean Genet, de que sempre, no exercício do
ato perverso, há um lugar onde o mesmo sustenta a marca do falso.
É uma pena que Lacan não tenha se estendido sobre este e outros
comentários sobre a perversão, que seria da maior utilidade. Mais adian-
te neste seminário, falando do Édipo, diz que se trata de uma tragédia que
tenta dar conta da fundação da lei. E também que o drama é engendrado
pelo desejo de saber do Édipo, já que ele não sabia o que tinha feito.
Refere-se também aos olhos caídos no chão - na tragédia -, uma tela
esvaziada. Exemplifica com isto, um tipo de objeto a e sua relação com
o complexo de castração e ele afirma que é este um terreno virgem para
o psicanalista, já que disto se fala de forma marginal, como se se sou-
besse, afirma. E volta a colocar a função do - cp, ou seja, do falo
negativado, do falo como o objeto que falta ao outro/Outro.
Especificando seu pensamento com relação ao Édipo, neste
momento de seu ensino, Lacan diz:

"Há, em todo caso, uma coisa certa, jâ que falamos do mito de


édipo, e é que o edipismo é a pedra angular, e que se mio vemos
que tudo que construiu Freud está ao redor do Édipo, niio veremos
janwis absolutamente nada, só que não basta que se explique o
édipo para que vocês saibam do que falava Freud, a menos que
vocês saibam, de acordo ao vocabulário que venho desenvolvendo,
que o que se trata de articular é o fundamento do desejo, e que
entanto não vemos senão até aí, não preenchemos o campo da
sexualidade. O mito de Édipo não nos ensina nada em absoluto
sobre o que é ser homem ou mulher." 3º2

Já tinha falado, no Seminário 11 3º3 , que no psiquismo não há


nada pelo que o sujeito possa situar-se como homem o como mulher.

3º' lbid., 15/06/1966. Tradução livre.


303 Lacan, J. O Seminário - lil'ro ll - Os Quatro Conceitos fu11damentais da Psicanálise
(l 964). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988. Este foi o Seminário que Lacan ofereceu
depois da única aula ministrada do anteriormente planejado como "Os nomes do pai".
Graciela Haydée Barbero 213

O que fazer, nestes casos, sempre se aprende do Outro. Neste mo-


mento, Lacan aponta uma falha freudiana: ele não teria dado a se-
gunda volta (giro) necessária. É por isto, por tentar marcar, segundo
ele, o limite onde se deteve Freud, que ele foi expulso da TPA naquela
época, afirma. O seminário que foi suspenso se chamava: "Os No-
mes do Pai", e ia mostrar como este significante, esta metáfora, não
se encontra somente no lugar do pai, gerador da criança.
Em um texto chamado "O Segredo do Nome do Pai", em que
comento este "Seminário Inexistente'' (só deu uma aula do mesmo
antes de ser expulso da IPA), tento mostrar com argumentações
lacanianas que Os nomes do Pai (antes, função paterna) são as for-
mas em que o sujeito faz semblante ao objeto a, lugar de gozo304 •
Em um de seus comentários, entre irônicos e cômicos, do Se-
minário 13, diz que com o ôrgüo peniano se faz o que se pode, e
que ele estaria para servir de mostra ao acordo do gozo macho com
o gozo fêmea. Aqui onde aparece o gozo fálico, comenta.

"( ... ) depois disto faremos melhor não falando desses dados da
maduração genital, da existência de um acordo perfeito. (... ) a
relação que se tenta estabelecer na união sexual tem a l'er com o
estabelecimento de um gozo fálico. "305

Vemos aqui, surgindo, a utilização do conceito de gozo, que está


desenvolvendo.
Já no Seminário 14306 , na classe nº 20, de 31/05/1967, diz que a
perversão tem uma relação íntima com o gozo, que é uma operação
subjetiva que aponta ao gozo do Outro entanto o sujeito se coloca
como resto (o a, também). Carecemos de possibilidades de esclare-
cer aqui todas as implicações que a introdução do conceito de gozo
trouxe à teoria. Mas, é importante salientar que está construindo uma

'º"Barbero, Graciela. "O Segredo do Nome do Pai". ln: Temas da Clínica psicanalítica
(Alejandro Viviani, org.). São Paulo, Experimento, 1998, pp.103-114.
305 Lacan, J. Seminário 13. Op. Cit.
3"" Lacan, J. Seminário 14. Op. Cit.
214 Homossexualidade e Petversão na Psicanálise

teoria dos gozos, perspectiva que volta a sublinhar a importância do


erotismo e da sexualidade, mais além, (ou aquém), da linguagem, da
marca significante do Nome do Pai. O fundamental seria poder esta-
belecer as relações do desejo e o gozo.
No Seminário 16307 , classe 16308 , diz-se que o perverso se consa-
gra ao obturar o buraco do Outro, e o importante é que ele acredita que
esse Outro existe; é um defensor da fé, afirma. E acaba ironizando:

"( ... ) o que se refere à perversão, à verdadeira perversão, vos


escapa. Não é porque sonhem com a perversão que vocês são
perversos. "3m

Ou seja, que continua a marcar a diferença. Mesmo assim, se


lembrarmos que o desejo funciona também na tentativa de positivar o
que falta (o falo negativado) no Outro, vemos como a perversão vai
se configurando nada mais que como uma forma de acentuar a fun-
ção do desejo no homem. Talvez, alguns (perversos?) acham que isto
é realmente possível, o tempo todo, e se não acontecer naturalmente,
o realizam a força.
No Seminário 18 310 vai especificar que a afirmação "não há
relaçüo sexual" significa que, no ser falante, o sexo não define qual-
quer relação. "Não que negue a diferença entre meninos e meni-
nas, esclarece, mas não são eles que se distinguem, os outros os
distinguern, é uma questão de lógica, diz. Esta pequena diferen-
ça que passa enganosamente ao real por intermédio do órgão.
Ele é um instrumento, um significante." 311
Referindo-se às mulheres homossexuais, diz, no mesmo semi-
nário, que elas não arriscam tomar o falo por um significante. Agre-
gando que isto amputa para ela o discurso psicanalítico.

-' 117 Lacan, J. (1969-70). Seminário 16. De um Outro ao outro. Inédito.


3"" Jbid., aula de 26/03/1969.
J()<J lbid., 26/03/1969.
3 io Lacan, J. (1971/72). Seminário 18. O Pire. (O Pior) Inédito.
311 Ibid., s/p.
Gradeia Haydée Barbero 215

"A homossexual não está totalmente ausente no que lhe sobra de


gow, diz. Isso lhe facilita o discurso do amor, mas é claro que isso
a exclui do discurso psicanalítico, que não pode senão
halhuciw: "312

Inclui esse comentário, mesmo sendo um tanto obscuro, porque


me parece que, de alguma maneira, com ele aponta as configurc1ções
que não estariam incluídas nas fórmulas da sexuação que está começan-
do a delinear neste momento. Significa talvez que a~ mulheres lésbicas
careceriam de um desenvolvimento a mais na teoria psicanalítica?
No mesmo seminário, torna a falar de significantes e fórmulas
lógicas que permitam escrever funções.

"Que haja homem e mulher é um assunto de linguagem (... ) são


valores sexuais. "313

Entretanto,

"(. .. ) a castração nlio é anedótica, é uma que.1·tüo lógica. "314

Localiza a instância do Real na lógica. O Real é, assim, o


paradigma do que pode sair fora da linguagem. Lembremos neste
ponto que todos os últimos seminários de Lacan, desde o ponto de
vista da clínica, têm sido considerados como aqueles que abririam as
portas a uma clínica do gozo, uma clínica do Real, e não mais, uma
clínica da identificação, ou uma clínica do simbólico. Neste contexto,
ele diz que a castração, "não instaura senão que torna impossível
o enunciado da bipolaridade sexual." 315
Acaba a aula lembrando que o sexo entre parceiros é somente
uma das formas possíveis da reprodução animal, pelo que não deve-

:<" lbid., s/p.


.IH /bid., S/p.
lbid., s/p.
" 4

m lbid., s/p.
216 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

mos nos confundir com isso. Não há nada natural, no mundo animal,
que implique uma bipolaridade sexual necessária, afirma.
No Seminário 20, "Mais Ainda" 316 , desenvolve já todos os argu-
mentos relacionados às fórmulas da sexuação. Este é um seminário
conhecido por ter trabalhado, fundamentalmente, sobre a existência,
no "lado mulher", de um gozo a mais, um suplemento ao gozo fálico,
o gozo Outro, que corresponde a uma lógica do "não-todo". Este
lado da fórmula (lado mulher), será não-todo fálico. E qualquer um,
independentemente dos órgãos que porte, pode se posicionar nele,
segundo o autor.
Neste Seminário insiste em que os perversos não são como os
neuróticos, mas que os neuróticos precisam sonhar com eles para
atingir seus parceiros.

"Os neuróticos não têm nenhum dos caracteres do perverso.


Simplesmente sonham com eles, o que é muito natural, pois, sem
isto, como a1i11Rir o parceiro?(. .. ) Os perversos, a gente começou
entüo a enco111râ-los, süo aqueles que Aristóteles não queria ver a
nenhum preço. Hâ neles uma subversão da conduta apoiada num
saber fazei; o qual está ligado a um saber sobre a natureza das
coisas, hâ uma embreagem direta da conduta sexual sobre o que é
sua verdade, isto é, sua amoralidade " 317 •

Um pouco mais adiante, falando do objeto a, agora ligado aos


anodamentos, esclarece:

"O objeto a é aquilo que supõe de vazio um pedido(. .. ) Um desejo sem


outra substância que não a que se garante pelos próprios nós. (... ) o
objeto a, (... ) que viria satisfazer o gozo (. ..) O parceiro desse eu que é
o sujeito, sujeito de qualquer frase de pedido, é, não o Outro, mas o
que vem se substituir a ele na fonna da causa do desejo". 318

"• Lacan, J. Seminário 20. Op. Cil.


)I? lbid., p. l 17.

318 lbid.• p. 171.


Graciela Haydée Barbero 217

Um outro comentário,já no final do seminário, explica:

"Não há relaçlio sexual porque o gow do Outro, tomado como


corpo, é sempre inadequado - perverso de um lado, no que o
Outro se reduz ao objeto a - e do outro. eu direi louco,
enigmático. "31 '1

No Seminário 21 ·120 , Os incautos nüo erram (outra forma de


dizer, transliterando, Os nomes do Pai no original em francês), na
aula nº 11, de 9 de abril de 1974, parte da afirmação explícita que o
único que ele inventou foi o objeto a, o que cremos, marca sua im-
portância, sua colaboração específica ao avanço da psicanálise.
Falando das fórmulas quânticas da sexuação, diz que elas pode-
riam se expressar de outro modo. Poderia, por exemplo, ele comenta,
se dizer assim:

"O ser sexuado não se autoriza mais do que de si mesmo." 321

É possível escolher. O ser sexuado não se autoriza mais do que


de si mesmo, e de alguns outros, agrega. Isto é um comentário que
também se aplicará ao analista. É conhecida sua sentença: o analista
não se autoriza mais do que de si mesmo ... e de alguns outros.
Põe como exemplo a homossexualidade e diz que este termo,
bastante novo, é inadequado. Um reconhecimento de sua mu-
dança, já que tantas outras vezes ele o tinha utilizado sem reser-
vas. Neste momento somente os critérios lógico-quânticos e a cas-
tração dentro deste modelo, podem ser úteis para definir o lado
homem ou o lado mulher. Estamos bem longe do Édipo freudiano e
do critério da diferença dos sexos e em caminho a sua última ver-
são (borromeana).

"'' Jbid., p. 197.


"" Lacan, J. (1973/74). Seminário 21. Os incautos não erram (Lc's dupes mm errent).
Inédito.
) 21 Jbid., s/p.
218 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Finalmente, no Seminário RSP 22 (nº 22) e no Seminário do


SintomcP 23 (nº 23), exprime, com um jogo de palavras, uma última
versão da perversão, indicando que ela é nada mais do que uma pere-
version ("pai-versão", uma versão que vem do pai).
No RSI (aula de 21 de janeiro de 1975), afirma que:

"Um pai tem direito ao respeito, senão ao amor, se o dito amor, o


dito respeito, estiver, vocês não vão acreditar nas suas orelhas
'pere-vertidamente' orientado, isto é, (se tiver)feito de uma mulher
o objeto 'pequeno a' que causa seu desejo, mas o que essa mulher
em pequeno acolhe, se posso me exprimir assim. nada tem a ver
c:om a questcio. Do que ela se ocupa, são outros objetos 'pequeno
a' que são as crianças, junto a quem o pai intervém, no bom caso,
para manta na repressão ( ... ) a versão que lhe é própria de sua
pai va.w7o. Única garantia de suafimção de pai. (... ) basta aí que
de ,l'l'.ia o modelo de uma fimção. "

No Seminário do Sintoma (aula 1), vai confirmar esta idéia


com algumas sentenças. Ali, ele está trabalhando algo que supera o
conceito de estrutura e do nó borromeano, como modelo ternário.
Precisa-se de um quarto nó, para amarrar Real, Simbólico e Imaginá-
rio, que ele vai interpretar assim:

"O complexo de Édipo como tal é um sintoma. É porque o Nome


do pai é também o pai do Nome que se precisa do sintoma. (... ) No
perverso não estão rompidos R Se I. Eles süo distintos e precisamos
supor um quarto nó, o sinthoma (antiga escrita da palavra
sintoma).
(... ) que perversâo não quer dizer semio versâo para o pai e que,
em síntese o pai é um silltoma, ou um sallto homem (jogo de
pulavras com Saint-home/santo homem e sintoma).".

322 Lacan, J. Seminário 22. RSI (l 974/75). Inédito.


-' 23 Lacan, J. Seminário 23. O Sintoma (''Sinthoma") (1975). Inédito.
Gradeia Haydée Barbero 219

Na aula 11, a última do Seminário, em 11/05/1976, reafirma que


a lei do seu "Nobo" (nó borromeano) não tem nenhuma relação com
a lei do Real, é ela (... ) a lei do amor, ou seja, a pere-version. Está
falando de .Joyce e interpreta que sua escrita funciona nele como o
qmu·to nó, como seu Nome do Pai, que aqui, não coincide com o pai
do nome. O resto está para ser construído.
Finalizo aqui este breve percurso que considero ilustrativo de
minha idéia fundamental de que o fenômeno da homossexualidade
em Psicanálise não deve ser imediatamente articulado a uma suposta
perversão até porque, o próprio Lacan foi mudando este conceito no
percurso de seu longo itinerário. Sei que alguns analistas coincidem
com esta perspectiva. Outros, pelo contrário, a refutam, mesmo sem
se colocar numa postura abertamente conservadora. Os analistas,
memhros das instituições do campo freudiano, ligadas a Jacques
Alain Miller, por exemplo, se bem que tomam nota dos acontecimen-
tos sociais neste campo, aos que responderam com artigos, livros e
colóquios 324 , encontram-se, segundo podemos extrair de alguns co-
mentários, numa polêmica com "o movimento gay", em geral, na
qual reconhecem e ao mesmo tempo discutem a existência de uma
identidade gay. A reunião de homossexuais em comunidades cultu-
rais que se dizem identitárias é entendida como a procura de um novo
significante Mestre que atrapalharia, substituindo-a, a demanda de
uma análise.
Não o entendo assim, se bem que pode ter acontecido em alguns
casos particulares. A disputa da militância "gay" com a psicanálise tem a
ver com a marginalização desta escolha que teve lugar durante muito
tempo, mas este não é um assunto que possamos resolver politicamente.
O que podemos fazer, como psicanalistas, é ouvir as pessoas sem classificá-
las previamente, ainda quando elas se classifiquem. E se algumas figuras

"'"1Existem dois números da publicação A causa freudiana, ligada a este grupo de analis-
tas, dedicados a este tema. A primeira, de 1997, denominada L' incmzscienr homosexue/
(0 Inconsciente homossexual), Paris, Publication de l' El:ole de la Cause freudienne. e a
outra, de 2003, Des Gays em anlyse? (Gays em análise?) citada na próxima nota de
rodapé.
220 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

conhecidas rejeitaram a análise em nome de uma comunidade de


pertenência, não é o caso da maioria. Minha experiência pessoal na clíni-
ca me mostra, cada vez mais, que quem sofre procura ajuda de um
psicanalista, entre eles, muitos ditos e ditas homossexuais, só, que, muitas
vezes, com medo de serem rejeitados/as, mal compreendidos/as ou mal-
tratados/as. A existência de coletivos e "comunidades gay" é um fenô-
meno de cultura e deve ser analisado desde este ângulo.
De qualquer forma, concordo com as afirmações que assina-
lam, no último ensino de Lacan, elementos que apontam à solução
dos impasses que esta questão representou na psicanálise. Desde a
transformação da norma social numa lei de estrutura, na qual a ho-
mossexualidade era entendida como uma saída desviada do comple-
xo de Édipo (porque considerado como a configuração típica corres-
pondente à família nuclear burguesa) que se pretendia curar, passan-
do por uma clínica do desejo que substituiu aquela baseada num de-
senvolvimento libidinal por etapas, Lacan desemboca na idéia de um
progresso privati::.ado e, fundamentalmente, na idéia de que o Édipo
seria uma formação perversa dela mesma, uma forma entre outras
de saber fazer com o gozo. Por isso a expressão pere-version, um
Witz de Lacan, diz Jacques Alain Miller, criticando o antigo pressu-
posto de que o perverso não teria acesso à norma edipiana. Essas e
algumas outras idéias foram apresentadas por este autor nas conclu-
sões de um colóquio, denominado "Gays em análise?" 325 , no qual
houve muitos outros trabalhos dedicados ao tema.
Preocupações teóricas similares já foram elaboradas anterior-
mente, geralmente por autores com uma certa coloração feminista.
Numa publicação de 1989, uma psicanalista européia, Marcelle Marini,
interessada pela questão da mulher, em seu livro: Lacan: Itinerário
de sua Obra 326 , reflexiona sobre alguns temas fundamentais, entre

315 Miller, J. "Des gays em analyse? - Intervention conclusive au colloque franco-italien de


Nice sur ce theme." ln: Des gays em analyse?, La Cause freudienne, Revue de psychanalyse,
nº 55. Publication de l'Ecole de la Cause Freudienne. Paris, France, outubre 2003.
" 6 Marini, M. Lacan:Itinerario de su obra. Buenos Aires, Ediciones Nueva Visión, 1989

(1986 em francês o original).


Graciela Haydée Barbero 221

eles, o da primazia do falo, um tema popular, diz ela, que acaba por
reafirmar a obsessão da castração, seu reverso inseparável.
Com relação a este conceito, o primeiro texto de referência,
segundo Marini, seria justamente "A significação do falo" 327 , texto
que é utilizado por muitos comentadores, às vezes, como se fosse o
definitivo. Aqui, esta problemática aparece depois de ter criado a
trilogia SRI, da noção do inconsciente estruturado como linguagem e
da metáfora paterna, lembra-nos Marini. A primazia do falo lhe é
necessária para sustentar a preeminência do pai no individual e na
cultura. Isto se observa claramente no Seminário da Psicose 328 ,
onde a forclusão do Nome do Pai é atribuída a um fracasso da metá-
fora paterna que não teria permitido ao sujeito e\'Ocar a significa-
ção do Falo. Na "Significação do falo", mostra o falo como objeto
paradoxal, objeto erótico e com vocação simbólica. Aqui é o
significante dos significantes. Não há significante do sexo feminino,
não há outro significante da diferença dos sexos, só o falo é a refe-
rência. Como se transforma este órgão, derivado da representação
do pênis, no símbolo dos símbolos? Marini afirma que seria usado
como os "equivalentes gerais" no marxismo, sendo que falamos de
uma lógica falocêntrica. Lacan teria revelado assim, o caráter
androcêntrico de nossas sociedades (Op. Cit.). Como vimos esta
revelação foi totalmente consciente em Lacan. Teríamos que consi-
derar também, diz a autora, a ambigüidade do fa1o - significante do
desejo -, signo e objeto ao mesmo tempo, e a dificuldade de separar
falo de o~jeto a (objeto parcial convertido em causa do desejo) e do
agâlma, essa forma brilhante e fascinante, quase um fetiche que
joga entre Sócrates e Alcebíades no Seminário 8. Como possuir (ou
representar) o símbolo do objeto desejável e continuar com seu esta-
tuto de sujeito desejante? - pergunta-se.

m Lacan, J. (1958). "La significación dei falo". ln: (1966) Escritos, vol. 2, pp. 665-675.
15" edição em espanhol. México, Siglo Veintiuno, 1989.
32 ~ Lacan, J. O Seminário. Livro 3. Op. Cit.
Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

No Seminário da Angústia, afirma Marini, ter ou não ter o


falo se transformaria em não ser sem tê-lo. Para 'salvar a situação',
aqui o falo se faz, não o oposto da castração, senão seu símbolo,
afirma. Ele passa a ser significante da falta. Na análise de Hamlet, o
terrível se transfonna em descobrir que "o falo é indisponível no Ou-
tro", não há Outro do Outro, não há garantias do pai como Outro
simbólico. Para explicar como o sujeito se defende do horror do real,
Lacan teria criado a noção de plus de gozar. Do Outro se passa ao
outro. Depois de 1971/2, Lacan denuncia o erro de não ver que o
significante é o gozo e o falo somente seu significado, explica Marini.
Há um elogio em Lacan, diz Marini, da homossexual, como sen-
do a única mulher capaz de cumprir um verdadeiro percurso de sujei-
to, mesmo que o fracasso esteja ao final, uma afirmação que não
explica, mas que pareceria ir de encontro a meus anteriores comen-
tários a esse respeito.
Devemos lembrar que o sujeito, diz, especialmente no final da
obra lacaniana, é somente um efeito, é aquilo que um significante
representa para outro significante, não é uma pessoa. Mas Marini
não vai muito além, marcando somente alguns impasses e inconsis-
tências com textos e seminários posteriores. Essa conferência sobre
a significação do falo deveria ser contextualizada e relativizada. É o
que acabamos de fazer. Esta relativização permitiria, creio eu, que a
psicanálise não se coloque no lugar de ditar normas à sociedade, algo
que muitas vezes se fez, inclusive com a ajuda do lacanismo.
Idéias como a de que os homens ou mulheres "homossexuais"
não poderiam ter direito de adotar crianças, porque elas seriam psicóticas
ou de que existe algo como um "inconsciente homossexual", são exem-
plos que apontam para uma identificação com um lugar de Suposto
Saber, o que não é de se esperar num psicanalista lacaniano.
Reconheço também, com Foucault, que abordar a questão
erotológica desde uma concepção masculino-feminina que se dá como
constituída (haveria duas identidades, dois gêneros) significa fechar
de entrada o problema que se pretende tratar. Lacan afirmou no Se-
111 imírio da "Identificação" e reiterou na "Angústia", como vimos,
Gradeia Haydée Barbero 223

que pegara a via androcentrada de achar uma mulher, o que estabe-


lece uma disparidade, quer dizer, haveria outras formas de considerá-
la. A questão da tensão existente enu-e sexo e identidade não se re-
solve facilmente. Devemos observai' a realidade social e as novas
formas de identidade cultural que surgiram, como referências, e não
como problemas por solucionar. Nossa clínica não é uma clínica da
identidade. É simplesmente clínica.
O que não significa, de maneira alguma, uma toma de posição a
respeito da questão da identidade diforente da clássica. A identidade,
para Lacan, é uma função do ego, e mesmo correspondendo a uma
subcultura e favorecendo a criação de laços sociais, não implica em
menos ilusão que qualquer identidade se esta é colocada no lugar de
uma essência. Uma outra possibilidade surge da interpretação
posicional da identidade, que surgiu em autores do campo gay &
lésbico americano. Por isso mencionei, no Capítulo 1, as diferenças
internas dentro dos grupos militantes, como aquelas surgidas no mo-
vimento queer. A psicanálise (clínica) é uma experiência singular e a
teoria não pode defender, e sim registrar, a existência de diferentes
comunidades culturais, às que os indivíduos pertencem, contlitivamente
ou não.

Algumas precisões conceituais:


a invenção do objeto a

Como vimos, Lacan apontou para a invenção do conceito de


objeto a, como algo único e primordial em seu trabalho. Na tentativa
de estabelecer algumas precisões teórica<; desenvolverei algumas idéias
ao redor deste conceito que me parecem contribuir com o movimento
e atualização da teoria psicanalítica.
De que maneira afetou à Psicanálise a invenção lacaniana do
objeto a? Qual foi sua origem, seu alcance?
Em 1960, em um momento próximo à saída da Instituição Ana-
lítica Internacional, Lacan precisava seu invento fundamental. Esta
224 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

foi uma forma de se diferenciar de Freud na teoria, já que, na prática


clínica, o que mais se conhece como sua invenção é a sessão "curta",
marcada pelos tempos do inconsciente. Em uma intervenção de Jean
Allouch 329 no colóquio proposto pela revista Ornicar?, em Paris, em
fevereiro de 2002, ele propõe que haveria em Lacan quatro tipos de
relação deste autor com Freud, quatro formas de acordo/desacordo
entre ambos autores. A primeira parte da tentativa de modificar Freud
de maneira que a análise pudesse não descuidar o que Lacan
chamava o campo paranóico da psicose (Op.Cit.). A segunda
marca um retorno a Freud, logo depois de apresentar seu ternário
SIR (Simbólico, Imaginário, Real), a terceira é correlativa à invenção
do objeto a, momento em que faz uma leitura crítica de Freud, cor-
respondente à sua intervenção clínica no caso da jovem homossexu-
al. O quarto momento, segundo Allouch, corresponde a um passo
teórico maior, nele introduz o nó borromeano com as três dimensões,
esta vez em sentido contrário: Real, Simbólico, Imaginário. Diante
desta pluralidade, torna-se necessário, diz Allouch, separar ambos
autores para promover uma leitura crítica de Freud.
À continuação farei um pequeno resumo de um outro texto de
Allouch, denominado A invenção do objeto a. 330
Nele, o autor começa por relacionar o a com o título da revista
que o publicou, Me cayô el veinte, uma expressão mexicana que signi-
fica algo similar a "me caiu a.ficha", que tem sua origem nos tempos
em que os orelhões utilizavam fichas, na qual o sujeito da frase não é o
eu, senão a ficha, um objeto que se perde, no momento em que se
começa a falar. Assim, ele diz, o objeto a é um objeto perdido que se
perde novamente cada vez que uma palavra se fecha.
Este conceito, queAllouch data da aula do Seminário da Angús-
tia acontecida no dia 9 de janeiro de 1963, se fez necessário, segundo
este autor, para resolver algumas ambigüidades da teoria, como a

n• Intervenção publicada, cm francês e espanhol, pela revista virtual: Acheronta. Revista


de Psicanálise e cultura, nº 15, julho de 2002 (http://www.acheronta.org).
330 Allouch, J. "La invención dei objeto a". ln: Me cayó el veinte. Op. Cit., nº l, outono

de 2001.
Gradeia Haydée Barbero 225

confusão entre o outro do espelho e o outro como resto da divisão do


sujeito (i(a) e a). Também formava parte dessa grave crise, segun-
do Allouch, a impossibilidade de diferenciar o outro do Outro, o que
já teria começado a aparecer no seminário anterior, o Seminário da
Identificação. A angústia marca o momento em que o a, como resto,
aparece para o homem. A diferenciação entre objetos especulares e
aqueles que não o são, que Lacan tinha proposto, a partir dos mode-
los topológicos que introduz no Seminário da Identificação (Nº 9) lhe
serve de base, assim como o conceito de oNeto parcial de Abraham,
que seria um resto que escapa ao jogo da libido reversível entre i(a) e
i'(a), segundo afirma Lacan no Seminário 8, sobre a transferência.
Estas especificações vão ajudar Lacan a modificar dois es-
quemas fundamentais, o grafo do desejo e o "esquema do floreiro
invertido", que estariam com graves problemas, segundo Allouch.
O novo conceito de objeto a é uma função e não mais uma metonímia
do pequeno outro (autre em francês). A notação algébrica tem a
vantagem de deixar de fora a significação induzida pelo próprio
significante. Nessa aula, Lacan teria mostrado, "em ato" (passando
alguns esquemas em cartolina para os ouvintes), aquilo que a pala-
vra não alcança a expressar. Segundo Allouch esta passagem ao
ato .f<mna parte do objeto a. Por quê? Há aqui uma mostra, uma
posta em ato, diz, de que a transmissão da psicanálise não é a mes-
ma que a das ciências exatas, porque sempre existe um resto na
produçlio formal.
Como já mencionei, Allouch reconhece quatro invenções prin-
cipais em Lacan, implícitas nos pontos de diferenciação com Freud:
a do estádio do espelho, em 1936, a do ternário SRI, em julho de
1953, a invenção do objeto a e, finalmente, a invenção da cadeia
borromeana, em 1973. Todas elas têm conseqüências fundamen-
tais na teoria: sobre o tema do luto, sobre a questão do auto-erotis-
mo, sobre o estatuto do objeto e, finalmente, sobre o que Lacan
chamou fazer o a-morrer (articulando amor e morte; objeto a e
morrer), um terna que Allouch não desenvolve neste texto, pela sua
extensão.
226 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Esta nova teorização permite distinguir melhor entre duas clas-


ses de objetos: os que podem ser compartilhados (os objetos de inter-
câmbio) e os que não se compartilham. O falo, o seio, o excremento,
o olhar e a voz são objetos anteriores à constituição do objeto comum,
e quando entram no campo do reparto, diz Lacan, a angústia marca a
particularidade de seu estatuto. Eles são os objetos não especulari-
záveis, não intercambiáveis, não comunicáveis, não comuns, não uten-
sílios, não socializados, relacionados com a perda, correlativos do fan-
tasma e anteriores ao objeto comum, que correspondem ao objeto a.
Os outros são os objetos fenomênicos, posteriores, socializados, co-
municáveis, especularizáveis, comuns. Antes disto, existiam teoriza-
ções na psicanálise sobre os objetos pulsionais, mas apresentavam
dificuldades. Qual seria, por exemplo, o objeto da pulsão de domínio,
pergunta A11ouch, qual a diferença entre o objeto das pulsões agressi-
vas e das destrutivas'? Assim, o objeto pequeno a, que vem ocupar
o lugar de um vazio, de uma perda, soluciona muitas inconsistências
da teoria. Todos os tipos de objeto a podem se referenciar ao falo,
porque não tem um valor em si mesmos. O a minúsculo, como falo,
está ligado ao estádio em que se opera a disjunção do desejo e do
gozo, segundo disse Lacan, na aula de 19 de junho desse mesmo ano.
Vemos como esta problemática é fundamental e poderia nos levar
muito longe, mas para escJarecer o problema do falo entanto não
necessariamente ( ou não primariamente) ligado à diferença dos se-
xos, parece-me suficiente. Com estas considerações penso ter mos-
trado que a articulação suposta entre homossexualidade e perversão
não se sustenta mais, considerando as últimas elaborações da teoria
lacaniana.
Um passo além, na mesma intervenção, Allouch vai mostrar a
transformação, em Lacan, da concepção de sujeito. Ele começou por
falar em personalidade, diz, mas logo passou para a idéia de
intersubjetividade, que foi abandonada, anos depois, quando o sujei-
to ficou definido pela relação entre o significante S 1 e o S2. Mas,
segundo Allouch, Lacan não ficou satisfeito ainda com esta última
definição, justamente porque não ficava claro que o sujeito também
Gradeia Haydée Barbero 227

está representado pelo objeto a. Daí, a fórmula do fantasma. Mas,


isto somente ficaria resolvido, segundo Allouch, na última virada de
1975, quando, depois de ter ficado muito satisfeito com seu modelo
borromeano "a três" (três nós amarrados), encontra-se com a difi-
cuklade de diferenciá-los. Ali, vê-se obrigado adi vidir o Simbólico em
dois e introduzir o quarto nó, o Sinthome. O sujeito, agora, não está
mais representado claramente pela cadeia simbólica, pelo significante,
senão pelas cordas mesmas, diz Allouch (dos nós).
Perguntando-se de que forma estas mudanças se refletem na
clínica, Allouch critica o modelo clássico, ternário também, de neuro-
se, psicose e perversão. Modelo útil que diferencia as estruturas pelo
mecanismo fundamental que utiliza: recalque, forclusão e recusa (ou
desmentido), mas que não fora usado pelo próprio autor da forma
simples e "aplicável" que muitos de seus seguidores lhe atribuíram.
La<..:an observou - mais de uma vez, que na análise cada <.:aso deve
ser abordado como se fosse o primeiro, ou seja, não devemos apoiar
nosso trabalho clínico num diagnóstico baseado em entidades psico-
patológicas pré-estabelecidas, posição que seria, a seu ver, em última
instância, médica. Algumas pretensas entidades clínicas (homos-
sexuais, bissexuais, transexuais, sadomasoquistas e outros) irão fal-
tar, afirma Allouch, na categoria clínica da perversão. Ela, no caso de
ser necessária, somente poderá ser utilizada no um por um, na singu-
laridade de uma experiência e independentemente de normas cultu-
rais. O saber nosológico - ele diz - é desnecessário na análise.
Em um último texto, aparecido na revista Cité3·11 , Allouch con-
firma - uma vez mais - seu ponto de vista: Lacan teria sido profeta
ao proferir sua já famosa frase "Nilo há relaçiio sexual". Ela nos
ajudaria a resolver os problemas colocados atualmente pela ditas mi-
norias sexuais, que, na verdade, representam diferentes tipos de prá-
ticas eróticas. Lacan mesmo teria ignorado os movimentos que co-
meçaram em 1969 nos Estados Unidos, mas a sua definição de sujei-

''' Allouch, J. "Lacan et les minorities sexuellcs". /n: Revista Cilé, nº 16, Paris, outubro
de 2003.
228 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

to, baseada no significante (e no objeto a) exige que o psicanalista


não se apóie em qualquer categorização de tipo nosográfica, sexista,
racial ou comunitária. Até a psiquiatria renunciara já ao paradigma
simplificado: perversão-neurose-psicose, se bem que eles se curvam
ao saber do mestre contemporâneo, submetendo os sofrentes aos
medicamentos ou, se estes não resolvem no caso de existirem cri-
mes, à prisão, afirma.
O que devemos fazer, depois de acolher e reconhecer as mino-
rias sexuais no que elas fazem, falam e escrevem publicamente, fina-
liza Allouch, é lhes mostrar nossa fraternidade dentro da clínica, que
é a mesma fraternidade a-sentimental que oferecemos a qualquer
analisante em potencial.
CAPÍTULO V

CONCLUSÕES E
PERSPECTIVAS

O percurso que acabei de fazer no Capítulo 4 da evolução das


idéias de Lacan a respeito da perversão e as referências à obra de
Freud no mesmo sentido não nos permitem emitir conclusões defini-
tivas sobre o lugar que virú a ocupar este conceito na psicanúlise. O
assunto me parece, porém, um dos que marca mais claramente a
senda por onde devemos continuar a pesquisa e a reflexão psicanalí-
tica no futuro, se queremos dar conta de todas as mudanças nos
comportamentos e práticas sociais que aqui estamos apresentando.
A psicanálise, diz Allouch, é uma erotologia, um certo giro de Eros
trabalhando sobre Eros 332 , ela não pode ter corno objetivo a
nonnatização da sexualidade e sim, em todo caso, a expressão sadia,
não estereotipada, de pulsões anteriormente fixadas a objetos infan-
tis. As tendências homoeróticas não são, em si mesmas, doentias
nem sadias. Precisam encontrar um lugar adequado no psiquismo e
no mundo social, e a psicanálise pode contribuir com isso, principal-
mente desligando-as da categoria de perversão. Ela deve conservar
assim um lugar de importância na análise da erótica, da política e dos
movimentos do poder que definem as sociedades.
m Allouch, J. (1998). Op. Cit.
230 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Para se referir a estas instâncias, Lacan falou, entre outras coi-


sas, de Deus. No Seminário 22, chamado RSI, o autor fez uma outra
referência à perversão, bastante enigmática também, num momento
em que estava falando dos nós borromeanos e da experiência da
análise. Dirigindo-se ao público que o escutava, disse que poderia
provar que cada um deles acreditava na existência de Deus. Todo
mundo acredita, exclama ( ... ) Esse é, inclusive, o escândalo. O
que, formalmente, estaria relacionado à origem judaica de Freud se-
gundo este autor. E então afirma:

"Deus é pai-verso, é .fato patenteado pelo próprio judeu. Mas


vamos acabar, (... ) por inventar algo menos estereotipado que a
perversão. É inclusive a única razão pela que me interesso pela
psicanálise. ". 333

O alcance deste comentário é difícil de afirmar com toda certe-


za. Podemos, porém, fazer suposições. Que o Deus judeu seja per-
verso, parece-me que tem a ver com a idéia de que nele, há gozo. E
o gozo de Deus, o gozo do Amo, o gozo do Pai, traz à tona a perver-
são (a pai-versão). Não há desejo puro, nem função paterna livre de
gozo, na medida em que esteja encarnada. As fórmulas e modelos
funcionam sem resto na teoria. O resto pode até ser designado por
uma letra, mas, na vida humana, as funções não se exercem sem que
haja gozo. E o desejo do analista, será desejo puro? Somente é possí-
vel ocupar esta posição, e não sem vacilar, depois de ter atravessado,
na própria análise, um momento de des-subjetivação, um momento
de des-ser.
Jean Allouch afirma, na sua última obra publicada334 , que have-
ria uma fratura na erótica moderna: uma sobrevivência da antiga
modalidade erótica centrada num Deus Pai Onipotente, um Deus que

m Seminário RSI. Inédito. Aula de 08/04/1975.


Allouch, J. E/ Sexo Dei Amo. E/ erotismo desde Laca11. Córdoba, Ediciones Literales,
334

2001.
Gradeia Haydée Barbero 231

não tem falhas, desejos ou sexualidade; uma erótica que se organiza


ao redor da reprodução, da família e do amor entre o homem e a
mulher, modalidade cada vez menos necessária, à medida que os avan-
ços científico-tecnológicos realizam experiências de reprodução hu-
mana em que o sexo é cada vez mais dispensável. Ela favoreceu a
criação das oposições binárias: feminino-masculino e heterossexual-
homossexual.
A posição de Freud, presa nesta erótica mais ou menos ultra-
passada, é ambígua, um tanto oscilante. Constrói uma sexualidade
que excede à reprodução e a genitalidade, porque concebe o sintoma
como a sexualidade dos neuróticos e também, a sua maneira, dos
psicóticos (em Schreber, por exemplo) mas estes sintomas estão liga-
dos a um pai edípico legislador.
Sobrava uma categoria nosográfica, diz Allouch, de quem não
estava orientado para o pai, ou melhor - con-ige-se -, pela nonna
edípica: o "perverso". Nela incluíram-se uma série de coisas díspares
como: sadismo, masoquismo, exibicionismo, vo.veurismo, homosse-
xualidade, pedofilia, travestismo, fetichismo, e muitas outras, que ques-
tionavam, à sua maneira, a figura do pai e a do amo. Por isso eles
foram excluídos até dos benefícios da análise, diz Allouch, para con-
tinuar o ocultamento de que, no modelo reprodutivo da sexualidade, a
figura inatingível de Deus continuava a exercer seu domínio, por trás
do pai.
Desta forma, ele diz, Deus continuava a exercer seu domínio
sobre uma sexualidade da qual estaria, aparentemente, a salvo. Allouch
pensa que os assim chamados "perversos" (e os Estudos Gays &
Lésbicos) problematizam,justamente, o sexo em tanto sexo do amo e
põe como exemplo a sexualidade S/M (dos grupos sadomasoquistas)
lesbiana, em que se cria uma figura de amo que não se nega ao sexo,
a "top", perante a qual uma "bottom" se submete. Conta do depoi-
mento de uma jovem, numa jornada de estudos, que declarou publica-
mente que é bom e doce obedecer, que submeter-se à vontade de
uma Rainha, de uma Senhora, suscita uma felicidade muito intensa.
Só que, a diferença da submissão a um Deus Amo, esta Senhora não
232 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

se negaria ao sexo, e, provavelmente, poderia mudar de posições em


algum momento da relação.
Na antiga Grécia, o amo local, o cidadão adulto, devia ficar im-
penetrável. Uma parte de seu corpo estava negada na relação com
seus discípulos amados por uma lei implícita da sociedade. A
problematização do sexo coloca a questão de saber se o masoquismo
não é a essência da sexualidade, afirma Allouch, e agrega que deve-
mos situar o sexo do amo e estudar as leis do gozo.
Já Leo Bersani teria afirmado que a sexualidade, no modo em
que está constituída, equivale ao masoquismo. Haveria um encanto
pela perda do poder, uma atração pela radical desintegração e humi-
lhação de si, um desfalecimento fascinante.
Foucault trabalhou com a idéia da existência de um ponto cego
na erótica grega, a antinomia do jovem cidadão, que deve aprender a
ser amo mas, por um tempo, se oferece como objeto do desejo do seu
mestre, o crastés. Como chegar a ser erastés, mestre dominante do
outro e de mesmo, se, em algum momento, aceitou-se a posição de
eromenos, de dominado, de objeto passivo? Se o amo tivesse um
sexo que o dominasse completamente, seria escravo dele, deixaria de
ser amo. A discussão sobre a erótica grega vai longe, não entrarei
nas várias nuances e possibilidades de questionamento e nas solu-
ções que apresenta, mas, o que queremos extrair daí, é uma confir-
mação de que o que está em jogo na difícil aceitação das "perver-
sões" no marco de uma nova erótica, que não necessariamente faça
sintoma na relação sexual é justamente a questão do jogo entre
dominador e dominado, a figura do pai, o amo que pretende permane-
cer inquestionável. Na nossa cultura, ainda valoriza-se a penetração,
interdita-se a passividade e vive-se no faz de conta de que na aplica-
ção da lei, não existe gozo. Mas lei e gozo estão relacionados, como
mostra Lacan no seu texto Kant com Sade335 •
Como se relacionam os papéis eróticos e os papéis políticos?
Bersani acredita que não se deve pensar que haja um reflexo do

m Lacan, J. (1966). Op. Cit.


Gradeia Haydée Barbero 233

político na sexualidade senão em uma erotização do político. Ases-


truturas sociais derivariam das sexuais e não vice-versa. As novas
sexualidades não escondem senão que aceitam a idéia do gozo do
amo, até porque, qualquer um pode ocupar estas posições, que são
voluntárias e não socialmente predeterminadas, podem ser intercam-
biáveis sem intermediação das regras sociais, só por um acordo entre
as partes e vão até onde cada um, em cada momento, deseja e supor-
ta; evidentemente, uma outra relação de poder.
Na psicanálise, a figura do superego, aquele amo semioculto den-
tro de nós, ajuda articular a lei e o gozo. No texto Bate-se numa crian-
ça, Freud mostra a estrutura perversa do fantasma neurótico. Fantas-
ma masoquista de flagelação, de ser batido pelo pai, marco de acesso
ao Édipo (clássico) e à lógica fálica. Este é um fantasma inconsciente
no neurótico (homem e mulher), pelo menos em parte, e se relaciona,
segundo Bersani, com um sistema político fascista, baseado no par
vítima/vitimário. Sabemos que o brutal, na sexualidade, é algo "sinistra-
mente" familiar, a brutalidade provém de dentro de nós.
Aqui surge uma questão básica, que carece de maiores desen-
volvimentos: a violência foi sempre excitante ou a erotização do par
dominado/dominador é cultural? O que sabemos é que o gozo maso-
quista funciona muitas vezes como um elo entre a erótica e a política.
Tirar o gozo masoquista do jogo político (ou do domínio social)
no qual se esconde ou se expressa de forma injusta e colocá-lo num
jogo erótico aberto e sem vítimas, muda as coordenadas em que o
poder se exerce, o que não deixa de criar alguns problemas.
A questão do gozo masoquista em Lacan, é instável, comenta
Allow:h no livro que mencionamos. Por isso não devem extrair-se
teses lacanianas sobre este ponto, apoiando-se numa ou outra afir-
mação. Não se chega a conclusões definitivas. Com relação ao ma-
soquismo, teríamos que considerar, ademais, a ambigüidade que Lacan
cria quando, no seminário 16, introduz o plus de gozar (ou mais-
gozar, que provém do conceito de mais-valia de Marx), como outro
nome para o objeto pequeno a, no que este teria de "bonificação"
(para quem?, se pergunta Allouch) e não de perda.
234 Homossexualidade e Peiversão na Psicanálise

Lacan não dirigiu suas reflexões e teorias diretamente para ques-


tões políticas. Porém isto não significa que não se interessasse por
este assunto. No Seminário 17336 , chamado o Avesso da Psicanálise,
ele chega a dizer que:

"( ... ) falando do avesso da psicanálise, coloca-se a questão do


lugar da psicanálise na política.
A intrusão na política só pode ser feita reconhecendo-se que não
hâ discurso - e não apenas analítico - que não seja do goza, pelo
menos quando dele se espera o trabalho da verdade. ". 337

Este é um seminário que aconteceu em meio à efervescência


dos movimentos estudantis na França. Nele, Lacan procurará encon-
trar uma estrutura de discurso que ultrapasse a palavra. E nesta pro-
cura de estruturas faz um jogo dialético entre lugares, posições e
func;õcs que o levarão a estahelecer quatro modelos discursivos bási-
cos, cm que o significante mestre, o saber, o sujeito e o gozo vão
ocupando o lugar do desejo, da verdade, do Outro e da perda. O
Édipo entra aqui, como mito freudiano, diz Lacan,junto com Totem e
Tabu e Moisés, três formas de "semi-dizer" da verdade.
E apesar de afirmar que vai tratar do Édipo como de um sonho
de Freud, conclui que, em resumo, o que importa de tudo isto à psica-
nálise é a morte, o assassinato do pai, condição de gozo, que é, em
resumo, um operador estrutural.

"A equivalência entre o pai morto e o gozo é um operador


estrutural. (... ) O discurso do mestre nos mostra o gozo como vindo
ao Outro, é ele quem tem os meios. O que é linguagem não o obtém
a não ser insistindo até produzir uma perda onde o mais gozar
toma corpo. "338

~~• Lacan, J. O Seminário, livro 17 (1969ll0) - O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro,


Jorge Zahar, 1992.
m lbid., p. 74.
m Jbid., p. 117.
Gradeia Haydée Barbero 235

Neste Seminário, conhecido como seminário dos quatro discur-


sos, Lacan introduz abstrações e volta a falar da histeria como o
discurso inicial de uma análise. Não pretendo resumir estas argu-
mentações, especialmente sobre o saber do analista, que continua-
ram a fluir durante mais dez anos e precisam de um estudo específi-
co, mas sugerir que o gozo e o real, como operadores fundamentais,
vão se fazendo cada vez mais consistentes na obra deste autor. E a
estrutura formalizada com estes operadores (com o Significante
Mestre no lugar de Amo), vai se firmando borromeana.
O panorama mundial (ocidental fundamentalmente), por outra
parte, vai se tornando menos hostil aos gays e lésbicas e à problemá-
tica dos transgêneros, em função de uma série de vitórias dos grupos
militantes computadas aqui e ali. Uma grande conquista foi de ordem
legal. Em graus variados, a maioria dos países adotou leis de prote-
ção às diferenças. Se bem que dezenas de nações ainda tratam a
homossexualidade como crime, entre elas Argélia, Irã e Paquistão,
analisando apenas os países mais progressistas, há avanços notáveis.
Holanda e Bélgica dão aos gays e lésbicas que se casam os mesmos
direitos dos não-gays. No Canadá, as autoridades consideraram
inconstitucional a definição de casamento como ''união entre homem
e mulher". Na França, na Alemanha e em países escandinavos, há
estatutos semelhantes ao da União Civil Estável para casais domes-
mo sexo. Recentemente, a Justiça argentina decidiu que as uniões
homossexuais, em Buenos Aires, devem ter todos os direitos civis
dos casamentos heterossexuais. Há algum tempo, o Parlamento eu-
ropeu aprovou resolução recomendando aos países da União Euro-
péia que reconheçam e estabeleçam garantias legais ptmt as famílias
formadas por homossexuais.
Em muitos países, os casais gays e aqueles formados por duas
lésbicas têm direito à adoção. De acordo com uma pesquisa recente,
há pelo menos dois milhões de crianças morando com casais homos-
sexuais apenas nos Estados Unidos. Mesmo assim, nesse país, não
há consenso entre as autoridades nacionais e as leis dos diferentes
estados.
236 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

No Brasil, onde a legislação não é das mais avançadas, a popu-


lação GLBTT registrou diversas conquistas. Por decisão da Justiça
gaúcha, o Instituto Nacional de Seguridade Social, órgão público res-
ponsável pelo pagamento das aposentadorias, vem sendo obrigado a
custear a pensão a viúvos e viúvas de homossexuais. Em São Paulo,
há pouco tempo, houve uma medida similar aplicada à companheira
de uma funcionária pública falecida. Outros estados apresentam ca-
sos ainda não resolvidos na Justiça, mas percebe-se uma boa vonta-
de legal em proteger as uniões de mesmo sexo. Em Minas Gerais, a
Justiça recusou o pedido de uma mãe biológica que queria ficar com
a guarda do filho. O garoto morava num lar gay, com seu pai e o
parceiro amoroso dele. A decisão mais famosa ocorreu em janeiro do
ano passado após a morte da cantora Cássia Biler. A Justiça carioca
resolveu que "Chicão", o filho da cantora, poderia ficar com a com-
panheira dela, Maria Eugênia Vieira Martins, que viveu com Cássia
durante catorze anos. "A questão da homossexualidade não tem
importância, escreveu o juiz na sentença, o essencial j<,i assegu-
rar o interesse superior de Chicão" 339 • Momento pontual e feliz,
de um juiz que pode se livrar de obscuros temores. Em São Paulo foi
sancionada uma lei, em novembro de 2001 (Lei nº 10.948), que pune
a discriminação contra orientação sexual no estado. 340
O respeito aos gays e a seus direitos produz um efeito imediato
na vida das pessoas que assim se definem ou são definidos e também
inocula na sociedade uma preocupação crescente em respeitar ou-
tras diferenças individuais, não apenas de ordem sexual, mas de clas-
se social e cor, por exemplo. Qual é o problema político que isto re-
presenta? E como a psicanálise está implicada na questão?
Retornando ao problema que me coloquei sobre a sobreposição
de homossexualidade e perversão na literatura psicanalítica e à per-
gunta de que a obra de Freud e de Lacan estaria sustentando esta
coincidência, creio ter demonstrado que, ambos desenvolvem idéias

3-'9 Extraído da mídia local.


"º Ver Anexo.
Gradeia Haydée Barbero 237

e afirmações que poderiam confirmar esta ligação em alguns mo-


mentos, também oferecem, especialmente Lacan, elementos teóri-
cos para sair do impasse teórico-político que esta questão representa
na psicanálise atual, a partir da separação clara do conceito de per-
versão e da categoria (social) de homossexualidade.
Com relação à questão do gozo masoquista ligado ao fantasma
de flagelação, lembramos que, apesar de algumas pessoas poderem
viver esta fantasia, o neurótico precisa, assim mesmo, sustentar seu
desejo como insatisfeito, impossível ou prevenido (histeria, neurose
obsessiva, fobia). Talvez um "perverso-normal", que goze com seu
fantasma, possa mudar o lugar do sintoma. Apontaria assim para as
diferenças entre os perversos normais e os anormais, <las que fa-
lou Lacan no Seminário 13? Mas, por onde passaria o sintoma naque-
les sujeitos que estivessem classificados numa entidade clínica cha-
mada perversão, se o sexual em si mesmo não for mais considerado
"perverso"? Pelo laço social? Talvez. Mas este seria tema para uma
outra pesquisa, tema que já fora desenvolvido por outros autores:1 41 •
Sem poder resolver ainda todas estas questões, quero destacar que
elas oferecem perspectivas para o trabalho futuro de quem deseje
continuar a estudar e produzir dentro de uma psicanálise de orienta-
ção lacaniana. A nova erótica em desenvolvimento nos convoca a
realizar discriminações, ao abandono de termos e idéias ultrapassa-
das e à construção de novas conceitualizações.

"' Ver especialmente o texto citado de C. Calligaris. Perversão, 11m laço social?
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Gradeia Haydée Barbero 247

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ANEXOS

- Carta de Lacan a Michel Foucault (francês e português)


- Resolução CFP nº 001/99
- Resolução brasileira sobre "direitos humanos e orientação sexual"
(E/CN .4/2003/L. 92).
-Leinº 10.948
250 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Lettre à Michel Foucault parue sous forme manuscrite


dans Michel Foucault. Une histoire de la vérité, Paris,
Syros, 1985 p. 106 1

Le 8 III 68
Cher Foucault
Ceei n'est pas une pipe ...
J'adore ça.
J' ai parlé de vous (non,je vous ai nommé) à 111011 séminaire d' aujourd'hui.
C'est ce que j'ai dit dans ce séminaire, qui parlait de vous
sans vous nommer.
Je vous en envoie le début, à charge pour vous d'en faire usage.

Écrit au tableau:
Jc'temps
Je ne cormais pas De la poésie
J'ignore

2"111ctemps
Je ne connais pas tout De la poésie
J'ignore tout

3étncD'ott la différence (de l'universel au particulier)?


Est-ce
la liberté laissée au premier pas de l'accoler au tout

4cmc Mais:
I don't know everything about poety
I don't know anything
lei c'est l'anything qui inclut la négation

5emc Alors? ... Et la suite


Je m'efforce à les décomposer.
Votre J. L.
' Extraída da Revista Litoral, nº 28. "La opacidad sexual II - Lacan, Foucault, ... ". Edelp,
Córdoba, 1999, pp. 111-114.
Gradeia Haydée Barbero 251

8.IIl.68 2
Estimado Foucault,
Isto não é um cachimbo ...
Isso me encanta. Falei do senhor
(não, nomeei-o) no meu seminário de hoje.
O que eu disse,
nesse seminário, é que falava do senhor sem nomeá-lo
Envio-lhe o começo, fica a seu critério a decisão de utilizá-lo. Escrito
na louça:

1º tempo
Eu não conheço
II a poesia
Eu ignoro

2º tempo
Eu não conheço tudo
II da poesia
Eu ignoro tudo

3º Daí a diferença? (do universal ao particular?) É a liberdade


concedida ao primeiro não de abarcar o tudo.

4º Mas
1 don 't know every thing (Não sei tudo)
About poetry (da poesia)
l don ·t knmv an.vthing (Não sei nada)
aqui é o anything que inclui a negação

5º Então? E o que segue.

Faço um esforço em dissociá-los.

Seu J. L.

' Traduzida pela autora da versão em espanhol mencionada na cita precedente.


252 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

RESOLUÇÃO CFP Nº 001/99


DE 22 DE MARÇO DE 19993

"Estabelece normas de at11açüo para os psicólogos em


relaçüo à questiio da Orientaçiio Sexual"

O CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, no uso de suas


atribuições legais e regimentais,

CONSIDERANDO que o psicólogo é um profissional da saúde;

CONSIDERANDO que na prática profissional, independentemen-


te da área cm que esteja atuando, o psicólogo é freqüentemente in-
terpelado por questões ligadas à sexualidade;

CONSIDERANDO que a forma como cada um vive sua sexualida-


de faz parte da identidade do sujeito, à qual deve ser compreendida
na sua totalidade;

CONSIDERANDO que a homossexualidade não constitui doença,


nem distúrbio e nem perversão;

CONSIDERANDO que há, na sociedade, uma inquietação em


torno de práticas sexuais desviantes da norma estabelecida sócio-
culturalmente;

CONSIDERANDO que a Psicologia pode e deve contribuir com


seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexu-
alidade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações;

J Pode-se consultar o site do Conselho Regional de Psicologia: http://www.crpsp.org.br.


Gradeia Haydée Barbero 253

RESOLVE:

Art. 1º - Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da pro-


fissão notadamente aqueles que disciplinam a não discriminação e a
promoção e bem-estar das pessoas e da humanidade.

Art. 2º - Os psicólogos deverão contribuir, com seu conhecimento,


para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de dis-
criminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam com-
portamentos ou práticas homoeróticas.

Art. 3° - Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a


patologização de comportamentos ou práticas homocróticas, nem
adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tra-
tamentos não solicitados.

Parágrafo único - Os psicólogos não colaborarão com eventos e ser-


viços que proponham tratamento e cura das homossexualidades.

Art. 4° - Os psicólogos não se pronunciarão, nem pa1ticiparão de


pronunciamentos públicos, nos meios de comunicação de massa, de
modo a reforçar os preconceitos sociais existentes em relação aos
homossexuais como portadores de qualquer desordem psíquica.

Art. 5º - Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 6° - Revogam-se todas as disposições em contrário.

Brasília, 22 de março de 1999.

ANA MERCÊS BAHIA BOCK


Conselheira Presidente
254 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Resoluções4

Supporting the Brazilian Resolution

Na última sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU, o Bra-


sil propôs uma resolução sobre "direitos humanos e orientação sexu-
al" (E/CN.4/2003/L.92) à qual afirma que a diversidade sexual é par-
te integral dos Direitos Humanos Universais tal como refletidos na
Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Como conseqüência, 53 nações estarão presentes em Genebra em


Março próximo para discutir, argumentar e votar e depois declarar
publicamente se acreditam que a orientação sexual é um direito hu-
mano ou não.

Se a resolução for aprovada não irá provavelmente causar direta-


mente mudanças em muitos países mas vai enviar um sinal claro para
a comunidade global que esses países NÃO estão con-etos quando
discriminam pessoas baseando-se na orientação sexual.

Esta questão pode parecer irrelevante para o comum dos mortais, mas
nós na ILGA acreditamos que há muito que cada um pode fazer indivi-
dualmente para que a nossa voz seja ouvida em Março em Genebra.

A resolução será votada por 53 países com direito de voto mas os


países não-votantes também podem participar no debate.

É a nossa responsabilidade comum garantir que cada governo tenha


em conta este tema e faça uma declaração pública relativa à orienta-
ção sexual e direitos humanos.
( ... )
4Este comentário e o próximo, sobre uma proposta de participação do Brasil na ONU
em 2004 e sua postergação posterior, foram extraídos do site http://www.ilga.org/. ILGA
Home. International Lesbian and Gay Association.
Gradeia Haydée Barbero 255

ONU 2004 - RESOLUÇÃO BRASILEIRA


Resolução sobre Orientação Sexual e Direitos Humanos foi
postergada para 2005

17/04/2004

Mundo
Mundo

No dia 15 de abril a Comissão de Direitos


Humanos da ONU (UNCHR) decidiu por
consenso adiar a Resolução Brasileira
sobre "Orientação Sexual e Direitos Hu-
manos" para a próxima sessão em 2005.
O texto, apresentado pelo Brasil na ses-
são do ano passado, já havia sido poster- ArovA lA Rri.oLtK:IÓN
gado. Se votado, seria a primeira Resolu- mi Br~it,. EN l.A ONU
ção da ONU a mencionar Orientação
Sexual e condenar a discriminação neste campo da violação dos di-
reitos humanos.

O embaixador Mike Smith, presidente desta 60ª sessão, observou


que não havia nenhuma objeção nem oposição ao pedido brasileiro de
31 de março para adiar a consulta do projeto de Resolução. Não
houve votos nem debates por parte da Assembléia. As preocupações
eram grandes, a ponto de que a Resolução pudesse ter sido derrotada
ou retirada da agenda da ONU.

Grande coalisão de ativistas Gay, Lésbicas, Bissexuais e


Transgêneros presente na ONU como nunca visto antes

Pela primeira vez na história, uma grande coalisão de ativistas Gay,


Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros patrocinada pela ILGA e outras
organizações internacionais está nas Nações Unidas para dialogar
com delegações nacionais e assegurar que as vozes da comunidade
256 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

GLBT sejam ouvidas. Esta postergação dá aos ativistas outro ano


para se preparar e lutar contra as forças contrárias à Resolução. A
petição de ILGA, que recolheu 45.000 assinaturas até a data de hoje
a favor da Resolução, permanecerá aberta até a próxima sessão da
Comissão de Direitos Humanos da ONU (UNCHR).

GRULAC, Grupo Latino Americano e Caribenho na ONU,


convida uma delegação de ativistas GLBT para exporem suas
preocupações

GRULAC se reuniu na manhã de 16 de abril, onde o Brasil expres-


sou seu compromisso contínuo a favor da Resolução sobre Orienta-
ção Sexual e Direitos Humanos. Graças ao convite do Ministro Ser-
gio Cerda, presidente da Delegação Argentina na ONU, um grupo de
ativistas teve a oportunidade de expor suas preocupações sobre a
violação dos direitos humanos no campo da orientação sexual e iden-
tidade de gênero. Pedro Aníbal Paradiso Sottile, membro do CHA
(Comunidade Homossexual Argentina), e Rosana Flamer Calder, co-
Secrctária Geral da ILGA, solicitaram oficialmente aos membros do
GRULAC que considerem eco-patrocinem a Resolução no próximo
ano.
Gradeia Haydée Barbero 257

LEI Nº 10.948, DE 5 DE NOVEMBRO DE 2001


(Esta lei, que pode ser lida em diversos lugares, foi extraída, neste caso, do
site: http://www.litoralgls.oi.eom.br/direitos.htm

Litoral GLS - A União faz a força/direitos/nosso direito)

(Projeto de lei nº 667/2000, do deputado Renato Simões - PT)


Dispõe sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discrimi-
nação em razão de orientação sexual e dá outras providências.

O GOVERNADOR DO ESTADO DE SÃO PAULO:


Faço saber que a Assembléia Legislativa decreta e eu promulgo a
seguinte lei:

Artigo Iº - Será punida, nos termos desta lei, toda manifestação


atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão homossexual,
bissexual ou transgênero.

Artigo 2º - Consideram-se atos atentatórios e discriminatórios dos


direitos individuais e coletivos dos cidadãos homossexuais, bissexuais
ou transgêneros, para os efeitos desta lei:

I - praticar qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimidatória


ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica;

II - proibir o ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou esta-


belecimento público ou privado, aberto ao público;

III - praticar atendimento selecionado que não esteja devidamente


determinado em lei;

IV - preterir, sobretaxar ou impedir a hospedagem em hotéis, motéis,


pensões ou similares;

V - preterir, sobretaxar ou impedir a locação, compra, aquisição, ar-


rendamento ou empréstimo de bens móveis ou imóveis de qualquer
finalidade;
258 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

VI - praticar o empregador, ou seu preposto, atos de demissão direta


ou indireta, em função da orientação sexual do empregado;

VII - inibir ou proibir a admissão ou o acesso profissional em qual-


quer estabelecimento público ou privado em função da orientação
sexual do profissional;

VIII - proibir a livre expressão e manifestação de afetividade, sendo


estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos.

Artigo 3º - São passíveis de punição o cidadão, inclusive os detento-


res de função pública, civil ou militar, e toda organização social ou
empresa, com ou sem fins lucrativos, de caráter privado ou público,
instaladas neste Estado, que intentarem contra o que dispõe esta lei.

Artigo 4º - A prática dos atos discriminatórios a que se refere esta lei


será apurada em processo administrativo, que terá início mediante:

J - reclamação do ofendido;

li - ato ou ofício de autoridade competente;

Ili - comunicado de organizações não-governamentais de defesa da


cidadania e direitos humanos.

Artigo 5° - O cidadão homossexual, bissexual ou transgênero que for


vítima dos atos discriminatórios poderá apresentar sua denúncia pes-
soalmente ou por carta, telegrama, telex, via Internet ou fac-símile ao
órgão estadual competente e/ou a organizações não-governamentais
de defesa da cidadania e direitos humanos.

§ 1º - A denúncia deverá ser fundamentada por meio da descrição do


fato ou ato discriminatório, seguida da identificação de quem faz a
denúncia, garantindo-se, na forma da lei, o sigilo do denunciante.

§ 2º - Recebida a denúncia, competirá à Secretaria da Justiça e da


Defesa da Cidadania promover a instauração do processo adminis-
trativo devido para apuração e imposição das penalidades cabíveis.
Gradeia Haydée Barbero 259

Artigo 6º - As penalidades aplicáveis aos que praticarem atos de dis-


criminação ou qualquer outro ato atentatório aos direitos e garantias
fundamentais da pessoa humana serão as seguintes:

1 - advertência;

II - multa de 1.000 (um mil) UFESPs - Unidades Fiscais do Estado de


São Paulo;

III - multa de 3.000 (três mil) UFESPs - Unidades Fiscais do Estado


de São Paulo, em caso de reincidência;

IV - suspensão da licença estadual p,mt funcionamento por 30 (trinta) dias;

V - cassação da licença estadual para funcionamento.

§ 1º - As penas mencionadas nos incisos II a V deste artigo não se


aplicam aos órgãos e empresas públicas, cujos responsáveis serão
punidos na forma do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Es-
tado - Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968.

§ 2º - Os valores das multas poderão ser elevados em até 10 (dez)


vezes quando for verificado que, cm razão do porte do estabeleci-
mento, resultarão inócuas.

§ 3º - Quando for imposta a pena prevista no inciso V supra, deverá ser


comunicada a autoridade responsável pela emissão da licença, que pro-
videnciará a sua cassação, comunicando-se, igualmente, a autoridade
municipal para eventuais providências no âmbito de sua competência.

Artigo 7º - Aos servidores públicos que, no exercício de suas funções


e/ou em repartição pública, por ação ou omissão, deixarem de cum-
prir os dispositivos da presente lei, serão aplicadas as penalidades
cabíveis nos termos do Estatuto dos Funcionários Públicos.

Artigo 8° - O Poder Público disponibilizará cópias desta lei para que


sejam afixadas nos estabelecimentos e em locais de fácil leitura pelo
público em geral.
260 Homossexualidade e Perversão na Psicanálise

Artigo 9º - Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Palácio dos Bandeirantes, 5 de novembro de 2001

GERALDO ALCKMIN

Edson Luiz Vismona -


Secretário da Justiça e da Defesa da Cidadania

João Caramez -
Secretário-Chefe da Casa Civil

Antonio Angarita -
Secretário do Governo e Gestão Estratégica

Publicada na Assessoria Técnico-Legislativa

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