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Coleção Pensamento Criminológico

Vera Malaguti Batista

DIFÍCEIS GANHOS FÁCEIS


Drogas e Juventude Pobre
no Rio de Janeiro

2^ edição

S
Instituto
Carioca de
Criminologia

E d i t o r a Revan
2003
I - Introdução

No dia 12 de abril de 1997, num episódio do programa da Rede


(ll(ilu) intitulado "Você decide", em que os telespectadores decidem o
fiiiMl da história, 79.493 pessoas optaram pela morte, por vingança, de

liiii jovem infrator que havia participado de um assalto violento. N o

i'iiN( I, a justiceira do rapaz seria a vítima, uma socióloga que lidava com

inniiiios de rua. As outras opções apresentadas seduziram menos es-


pt-rliidores: 44.000 preferiram que ele fosse preso e apenas 20.000 op-
l i l i i i i i i por deixá-lo fugir. A vitória do extermínio foi avassaladora. A

produtora do programa recebeu vários telefonemas reclamando da le-


Vr/a da cena de assassinato. Os telespectadores queriam execução
miniária'.
Esta opção pelo extermínio foi noticiada com falso espanto pelo
joiíial da Rede, junto com estatísticas sobre a situação dos adolescentes
liilialores no Estado do Rio de Janeiro. Essas estatísticas apontaram
hoje a droga como principal fator de criminalização da juventude. Cer-
t l i de 4 9 % dos adolescentes que entram no sistema estão envolvidos
com drogas ( 3 8 % por tráfico, 1 1 % por consumo). A maioria desses
iniMiinos vêm dos morros, favelas e bairros pobres cariocas e 3 8 % são
Hnallabetos^.
É a partir deste quadro que a mídia se encarrega de esculpir o
'IU)vo inimigo público número um, o traficante armado, que reproduzi-
rlii láticas de guerrilha, já que se difundiu que em algum momento da
história ele se cruzou na prisão com a militância de esquerda. O pro-
cesso de demonização das drogas, a disseminação do medo e da sensa-
|fio de insegurança diante de um Estado corrupto e ineficaz, vai despo-
llizando as massas urbanas brasileiras, transformando-as em multidões
desesperançadas, turbas linchadoras a esperar e desejar demonstrações
dc Ibrça.
Neste contexto, mecanismos psico-sociais de autoproteção, per-
versamente, dão lugar à lógica da exclusão. As campanhas por pena de
lliorle e as de justiça pelas próprias mãos vão tomando dimensão naci-

' JiiMKil O Globo, 19 de abril de 1997, p . l 4 e O D i a , 24 de a b i i l de 1997 e 29 de m a i o de 1997.


' U s l a i i s t i c a s d a 2' V a r a d a Infância e da J u v e n t u d e d o R i o de J a n e i r o .

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onal. Os objetos do processo de demonização são desumanizados:
^#iiiirniiemente, processos semelhantes de segregação e perseguição
eles não se aplicam os direitos à vida, à justiça, muito menos à cultui
| t r N i f i i d c r a m aos judeus, muçulmanos, bruxos e também loucos, po-
à educação. E o pior é que o imaginário os vê por toda parte, organÍ2
^I^PN (• i riminosos. Autoridades e multidões faziam sua parte encarce-
dos em poderosos comandos, inexpugnáveis e indestrutíveis se não f
Mnilo. lorlurando, apedrejando, exterminando todos os que ameaçavam,
rem combatidos ao estilo de uma verdadeira guerra, digamos, uma
0 » i|nc estavam além dos limites da cristandade. O inimigo externo t i -
zada.
HIIII l o n i o cúmplice e emanação o inimigo interno, ao alcance da mão'*.
Do ponto de vista das elites brasileiras, as massas urbanas de tra' Aliiivi-s da inquisição os perseguidos vão se adaptando (via tortura e
balhadores, em sua maioria negros, vivendo nos morros, quilombados iPMiir) aos estereótipos dos inquisidores, cristalizando o imaginário
constituem contingentes perigosos. Reivindicam-se mais e mais inv_
Hiuliil do medo e da exclusão.
timentos nos mecanismos de controle social, penas mais duras.
Na América, o encontro da civilização europeia c o m o " o u t r o "
o estereótipo do bandido vai-se consumando na figura de u i u l f r i o r se dá no momento em que a Espanha repudia seu " o u t r o " inte-
j o v e m negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de dr_, ílm, na vitória sobre os mouros e na expulsão dos judeus^. A relação
gas, vestido com ténis, boné, cordões, portador de algum sinal de orgu
WMKiiiistadores-conquistados no Mundo Novo é permeada pela pouca
lho ou de poder e de nenhum sinal de resignação ao desolador cenári
ppivopção que os primeiros têm dos segundos, pelo sentimento de su-
de miséria e fome que o circunda. A mídia, a opinião pública destacai
o seu cinismo, a sua afronta. São camelos, flanelinhas, pivetes e estã
por toda parte, até em supostos arrastões na praia. Não merecem respei t krioritlade, e pela preferência pela terra e suas riquezas antes que pelos
Innions. O genocídio d a população americana e a liberação total da
yriirldade obedecem a u m duplo movimento de desqualificação do
to ou trégua, são os sinais vivos, os instrumentos do medo e da vuln
"tuilro" e de subordinação de todos os valores ao desejo de enriquecer,
rabilidade, podem ser espancados, linchados, exterminados ou tortura^
Idnbolo da modernidade, o fetiche do ouro. Se, na Europa Ocidental, o
dos. Quem ousar incluí-los na categoria cidadã estará formando filei
^Ivo das campanhas e políticas de exclusão e controle são os grupos
com o caos e a desordem, e será também temido e execrado. Exis
minoritários, na América o processo de exclusão é generalizado à popu-
alguma coisa de novo nesta configuração simbólica da crise urban"
IMVIIO nativa.
brasileira? O u historicamente se reproduz todo o processo de formação
de nossas cidades: concentração de descendentes de ex-escravos nas N a Europa, a consolidação do capital mercantil, o fortalecimen-
tarefas informais que u m mercado de trabalho excludente e aviltador to lias cidades, o empobrecimento dos camponeses e artesãos, cria-
vem criando através dos tempos? r n n i , por u m lado, as condições para a Revolução Industrial e, por
outro, os motins e as rebeliões das novas multidões urbanas. O período
Na cidade do Rio de Janeiro, hoje, a luta pela cidadania tem o de tiansição à modernidade inundou a Europa urbana de gente do cam-
seu principal/roní no nível simbóUco e ideológico, num contexto de dis- po, Inicia-se uma fase de sucessivos motins, rebeliões, greves, mo-
seminação do autoritarismo, onde o medo e a desqualificação do outro Vhncntos detonados pela fome, pela revolta contra as máquinas, pelos
se somam às campanhas de descrédito do Estado e das classes políti- preços, pela jornada de trabalho. Na medida em que se consolida o ca-
cas. Está instaurado o terreno para o autoritarismo sem ditadura. plluiismo, consolida-se também uma classe despossuída, vista como
Na raiz da constituição desta ideologia exterminadora está o iurba ou ralé, ameaçadora e perigosa para a burguesia comercial e ma-
medo. Esse medo é administrado cotidianamente pelos meios de comu- nufatureira.
nicação. Mas, olhando para trás, vemos que a história do medo e da ex- o Grande Medo de 1790 se repete e se estende em todas as mar-
clusão já andaram juntas desde antes do início do período dito "moder- chas e contra-marchas da Revolução Francesa, até a consolidação da
n o " da história da Europa Ocidental. E m 1321, pela primeira vez acon-
burguesia e a derrota dos setores populares, antigo aliado nas lutas con-
tece um programa maciço de reclusão, dirigido aos leprosos na França.

•'Cf. G i z l e n e N e d e r . Violência e cidadania. Porto Alegre. Fabris, 1994. C i i r l o G i n z b u r g , A história noturna. São P a u l o , C o m p a n h i a das L e t r a s , 1 9 9 1 .
T/,vclan T o d o r o v . A conquista da América. São P a u l o , M a r t i n s F o n t e s , 1 9 9 1 .

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tra a aristocracia. Na reação das elites e das autoridades aos movime Vimliiigcntes de homens negros, escravos e libertos. Políticas de i m i -
tos de massa da Europa moderna, diante do pânico e da impotênci ^iiiçao são favorecidas. A constituição do mercado de trabalho a partir
frente à multidão, as autoridades se destacam pela violência contra (III l i i i i da escravidão é razão de duplo medo: das massas negras e do
vida. As políticas de controle social se aprimoram e se fortalecem p " lliovinicnto operário internacional. A concepção do mercado de trabalho
responder ao pânico das elites. A Revolução Francesa põe em pânic Ml) Miasil é excludente, desquaUficadora e racista até hoje.
toda a Europa. Organiza-se u m sistema jurídico institucional e uma p : Esta realidade social violenta e excludente traz uma agitação
lícia para conter as massas ante as rigorosas condições que o capitalis i i i i i s l a n t e nas ruas da Corte; no f i m do século X I X , há um temor dessa
mo vai impondo. A configuração urbana vai expressando e cristalizand innhiiidade contínua chamado de "medo branco de almas negras" por
os processos econômico-sociais em curso. Não é à toa que as refor- Sidiicy Chalhoub^. Esta população de escravos e libertos, entre 1830 e
mas urbanas de Paris, efetuadas por Haussmann, interferem, desarticu- IK /O, institui o processo de formação da cidade-negra. N o censo de
lam, desmontam os cenários das lutas dos sans-culottes e da Comuna, I K'I9, o Rio de Janeiro tem a maior população escrava negra das Amé-
de Paris. Isola-se o centro histórico, criam-se anéis viários para melhor l l i i i s . A preocupação com a segurança se traduz em todos os níveis. O
circulação das forças da l e i e da ordem, rasgam-se avenidas, apagam- Munio branco faz com que o temor à insurreição seja mais sólido que a
se os vestígios das barricadas. Tem-se como estratégia a neutralização própria perspectiva de insurreição.
do proletariado revolucionário de Paris e a destruição da estrutura ma- Mas a população é incansável em transformar a cidade-negra em
terial urbana dos motins populares. i'Hct)iiderijo; a cidade que esconde é a cidade que liberta. Deixa de exis-
Mas, bem ou mal, a "questão social" é incorporada na Revolu- tir a cidade escravista disciplinada e se confundem os escravos, os l i -
ção Francesa, onde cada homem é u m cidadão. vres e os libertos. A s elites contrapõem às redes de solidariedade teci-
N o Brasil, o projeto de construção da ordem burguesa é bastan- das na cidade negra as pstratégias de suspeição generalizada (cidade-ar-
te diferente. O fenómeno da escravidão desenvolve uma realidade soci- liuidilha)^. A s políticas urbanas republicanas, em conjunto com as po-
al absolutamente violenta. Ou melhor, a violência é um elemento cons- Klicas diretas de controle social, atacam a memória histórica dessa c i -
titutivo da realidade social brasileira. A o trabalho compulsório do ne- tlaile-esconderijo, desmontando cenários de significados tão penosa-
gro soma-se a despersonalização legal do escravo; o escravo era merca- ineiile construídos.
doria, não era sujeito. Temos aqui o que Roberto Schwarz chama de No Rio de Janeiro as intervenções urbanas têm uma concepção
"sentido histórico da crueldade"^. higienista. Pereira Rego propõe uma cirurgia na cidade c o m esvazia-
Como a transição para o capitalismo no Brasil não destitui a elite mento do centro e remoção dos bairros pobres para áreas periféricas.
agrária, a modernização se dá "pelo alto", pela via conservadora. So- Uodrigues Alves desenvolve a primeira intervenção sistemática do Es-
brevivem intactos até hoje a despersonalização legal das massas negras (iido sobre espaço urbano no R i o de Janeiro, demolindo milhares de
e pobres urbanas e o desprezo pelo trabalho manual no coração das cortiços para grandes obras urbanísticas.
nossas elites. O projeto autoritário das elites brasileiras se afrouxa em O final do século X I X e o começo do século X X transformam o
momentos de crise para rearticular-se imediatamente após a superação Kio de Janeiro em palco de várias manifestações populares. Nós não
dessas crises de mudança. N o Brasil, autoritarismo e liberalismo são ilcixamos de criar o nosso "Haussmann t r o p i c a l " P e r e i r a Passos, ins-
duas faces da mesma moeda^. pirando-se no modelo de Paris como metrópole industrial, empreende
N o período da dissolução das relações escravistas (segunda me- um conjunto de mudanças urbanas, baseadas nas exigências da ordem
tade do século X I X ) , vão-se criando nas cidades brasileiras grandes sanitária e da circulação urbana. E uma luta que se dá entre dois cam-

' S i d n c y C h a l h o u b . Visões da liberdade. São P a u l o , C o m p a n h i a das L e t r a s , 1 9 9 0 .


<• S c h w a r z , R o b e r t o . " O s e n t i d o histórico d a c r u e l d a d e e m M a c h a d o d e A s s i s " , i n Novos " idem.
Estudos Cebrap. São P a u l o , n " 17, m a i o 1 9 8 7 , p p . 3 8 - 4 4 .
' " l a i m e B e n c h i m o l . Pereira Passos: um Haussmann tropical. R i o de Janeiro, Sec.
' G i z l e n e Neder. Discurso jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre, Fabris, 1995.
M u n i c i p a l de C u l t u r a , 1990.

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I lido internacional, o sistema absorve o seu uso mas criminaliza o seu
pos: de u m lado "o progresso, a civilização e a regeneração", do out
liiitico, efetuado no varejo pela juventude pobre da periferia carioca. A
a "cidade atrasada, suja e doente". Institui-se o "bota-abaixo" e surgei
I Kiivivência cotidiana com um exército de jovens queimados como car-
os deserdados da urbe renovada. Uma grande força segregadora se a
vjio liumano na consolidação do mercado interno de drogas no Rio de
ticula através de um conjunto notável de obras e regulamentações jurí
liiiieiro, a aceitação do consumo social e da cultura das drogas paralela
dicas, executadas nos moldes de uma operação militar. É reduzido a es
(I (iLMUonização do tráfico efetuado por jovens negros e pobres das fa-
combros o suporte material da trama de relações engendradas na desa*
velas, tudo me remetia à génese do problema que hoje vivemos.
gregação do escravismo. A urbanização do Rio de Janeiro (e do Brasil
A cocaína se consolida no mercado internacional e no Brasil na
é o retrato fiel de sua visão de cidadania: a exclusão permanente das
iliHada de setenta, j u n t o com o fortalecimento, a nível planetário, do
classes subalternas.
iH-oiiberalismo. Importante do ponto de vista cultural, high-tech e nar-
O trabalho que desenvolvi junto à coordenação de segurança pú-
i ísica, a cocaína movimenta um mercado paralelo milionário, cujos cir-
blica durante o governo Leonel Brizola (1991-1994), o dia-a-dia letal das
eiiilos de comercialização e produção são controlados pelos países cen-
favelas, a implantação dos Centros Comunitários de Defesa da Cida-
trais. N u m mundo onde nenhuma lei vale mais do que a da oferta e da
dania, a desolação que o comércio varejista de drogas e a barbárie que
(li-manda, a cocaína transforma-se numa mercadoria altamente valoriza-
este mercado desencadearam me fazia sempre refletir: como alguéní,
da. O sistema convive com seu uso social, sua alta lucratividade, mas
pode acreditar que esses meninos são os vilões da nossa históriaT
desenvolve u m discurso moral esquizofrénico que demoniza a parcela
Como não enxergar nessas comunidades as principais vítimas de uma
(la população atirada à sua venda pelo mercado de trabalho excludente
modernidade exterminadora e segregadora, cuja dinâmica tenta destruir-
(• recessivo. A manutenção da sua ilegalidade aumenta sua lucrativida-
ás redes de solidariedade tão cuidadosamente mantidas em séculos de
de e reduz à condição de bagaço humano uma parcela significativa d a
colonização e barbárie?
^Essa perspectiva me conduzia para os objetivos da minha pes- juventude pobre de nossas cidades.
quisa: analisar a criminalização por drogas da juventude do Rio de Ja-
neiro, entre 1968 e 1988, analisar historicamente a construção^do este-
reótipo do novo "inimigo interno" (bandidos, traficantes) e do^processo
de ideologização que dissemina o "medo branco" na sociedade brasilei-
ra, emapear as mudanças nas comunidades faveladas/periféricas pro-
vocadas pelo recrutamento dos jovens para o tráfico de drogas, a partir
da consolidação da cocaína no mercado internacional na conjuntura
considerada.
Minha hipótese central de trabalho foi que na transição do a u t O ;
ritarismo, da ditadura para a abertura democrática (1978-1988) houve
uma transferência do " i n i m i g o interno" do terrorista para o trafícanteT
Todo o sistema de controle social (incluindo aí suas instituições ideoló-
gicas, como os meios de comunicação de massa) convergiu para a con-
fecção do novo estereótipo. O inimigo, antes circunscrito a um pequeno
grupo, se multiplicou nos bairros pobres, na figura do jovem traficante.
Este jovem traficante, vítima do desemprego e da destruição do
Estado pelo aprofundamento do modelo neoliberal, é recrutado pelo
poderoso mercado de drogas. C o m a consolidação da cocaína no mer-

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