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Resenhas

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ganizar nossas formas de viver. Tais aspectos da vida, decifrados, definidos


BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da deslocamentos vão sendo apontados ao e organizados, seja uma das mais im-
pós-modernidade. Rio de Janeiro: longo do livro no sentido de situar de- portantes pretensões modernas. Sob
Jorge Zahar Ed., 1998.Inquietações terminadas características próprias do essa perspectiva, aumentariam consi-
da vida contemporânea e suas projeto moderno e daquilo que pode- deravelmente as chances de intervir-
formas atuais de organização: uma ríamos chamar de pós-modernidade, mos no mundo (porque totalmente des-
relação de imanência. não para demarcar limites entre um e coberto e explicado) e de o
outro, senão para ir assinalando algu- modificarmos no sentido de lhe devol-
mas descontinuidades históricas a par- ver uma ordem que, por excelência,
Liberdade. Se é possível apontar tir das quais diferentes meios de go- seria pura e inquestionável. O perfeito
uma idéia que serve como o fio que vernarmos – a nós mesmos e aos mundo moderno seria aquele sobre o
conduz Bauman a escrever acerca da- outros – vão sendo colocados em fun- qual pudéssemos ter o máximo de con-
quilo que poderíamos considerar como cionamento. Em outras palavras: não trole possível. Dessa forma, o “suces-
inquietações/incômodos da vida con- se trata, de modo algum, de uma tenta- so” de futuras ações, devidamente pla-
temporânea, talvez esta idéia seja a de tiva de compreender a “essência” de nejadas (levando em conta ações
liberdade – não apenas porque tal uma ou outra condição (a moderna e a passadas), estaria assegurado.
temática é posta em discussão na pós-moderna), descrevendo-as a partir Segurança – que serviu como
maioria dos (senão em todos os) de uma seqüência cronológica de fa- uma das promessas modernas de um
quatorze capítulos que compõem O tos, fases ou mudanças de caráter so- mundo melhor –, Bauman nos alerta: é
mal-estar da pós-modernidade, mas cial, histórico, econômico ou cultural. exatamente com ela que já não pode-
também (e talvez principalmente) por- Trata-se, ao invés disso, de enfatizar mos mais contar. Em vez dela, vive-
que a própria idéia de liberdade – que, determinadas transformações nas for- mos com a companhia constante de
mais do que uma ambição, se tornou mas de conduzirmos nossas vidas para uma profunda ansiedade que se faz tão
uma constante e indispensável exigên- colocar em questão algumas contin- mais presente quanto tão mais as ten-
cia contemporânea – alimenta as in- gências dos espaços e tempos que nós tativas de uma segura apreensão do
quietações pós-modernas, diferente- habitamos – e que nos habitam – fa- real se intensificam. Disso resulta que
mente das inquietações de outrora, zendo do nosso mundo o que hoje é e as nítidas divisões, a inflexibilidade e
que nasciam do demasiado desejo de de nós mesmos o que hoje somos. rigidez disciplinar, a solidez da estru-
controle e ordem. Nesse sentido, Bauman salienta tura da ordem moderna, em que as
É pelo viés da liberdade indivi- que o advento da era moderna coinci- ações humanas podiam encontrar cer-
dual como condição e demanda pós- diu com a exaltação da ordem como tezas e portos seguros, deslocam-se
moderna que Bauman coloca sob aná- uma desejável realização capaz de para a pós-moderna sensação flutuante
lise algumas transformações e alguns construir um mundo estável, seguro, de ser. A incerteza e a insegurança que
importantes deslocamentos em opera- coerente, limpo, sólido, enfim, puro. ocupam lugares cada vez mais centrais
ção no mundo atual, relativamente às Daí que a descrição supostamente exa- nos modos de vida contemporâneos es-
condições sob as quais tratamos de or- ta e a classificação da totalidade dos tão profundamente conectadas ao fato

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de que, hoje, a organização dos espa- berdade dada ao capital – acabam por autor salienta que, dada a dimensão
ços e o controle da ordem (tanto no gerar inúmeras desordens responsáveis prioritária que a competição do merca-
que se refere aos problemas de ordem pela contínua sensação contemporânea do assume na sociedade contemporâ-
coletiva quanto de ordem individual) de incerteza e desconfiança – alguns nea, a questão da liberdade individual
estão passando por um crescente e in- dos muitos mal-estares pós-modernos. de escolha ganha também proporções
tenso processo de desregulamentação Talvez um dos motivos que me quase ilimitadas nesse jogo incerto,
e privatização – que Bauman chama movem a escolher tal obra para sobre “aventureiro” e cada vez mais desigual
de a nova desordem do mundo: “o que ela redigir uma resenha seja o fato de que se tornou a vida cotidiana. Nele,
quer que venha a tomar o lugar da po- as análises de Bauman servirem-me de quanto maior for nossa possibilidade e
lítica dos blocos de poder assusta por inspiração em estudos que venho reali- flexibilidade de ação, enquanto seres
sua falta de coerência e direção e tam- zando no curso de mestrado. Tenho de livres para escolher diante de uma va-
bém pela vastidão das possibilidades confessar a enorme admiração que sin- riedade de opções e de caminhos que
que pressagia” (p.33). to por suas colocações acerca das mu- nos é apresentada, maiores também
O autor enfatiza que, na maioria danças pelas quais nosso complexo serão as chances de a liberdade do ca-
das transformações da organização da mundo vem passando e, em especial, pital (“à custa de todas as outras liber-
vida atual, o que se vê é o crescente pela forma com que as apresenta. Mas dades” ) seguir desenfreadamente
engrandecimento das forças de merca- um outro motivo também se faz prefe- crescendo. Este é um dos muitos pon-
do que, de uma forma cada vez mais rencialmente presente: considero im- tos de O mal-estar da pós-modernida-
intensa, chamam para si (porque con- prescindível divulgar uma obra que, de que eu destaco como particularmen-
ferimos a elas) a função de conduzir a apesar de não tratar especificamente te interessante às discussões que são
ordem do mundo. Eis o paradoxo a do campo educacional, em muito con- travadas no campo educacional. Algu-
partir do qual o autor trabalha com o tribui para que possamos entender sob mas análises têm continuamente advo-
que o título do livro nos sugere: ordem outra perspectiva a chamada “crise” gado em favor da liberdade contra a
dá idéia de uma certa fixidez, de uma pela qual a educação – e a escola, con- idéia de sermos governados por uma
disposição das coisas cada uma em siderada como local legítimo do saber busca incessante do capital, pelo con-
seus devidos lugares e em nenhum ou- – vem passando. Tal contribuição se sumo desenfreado, por meios de comu-
tro mais, um arranjo disciplinar rígido acentua se levarmos em conta o fato nicação social e determinadas instân-
que visa ao bom funcionamento das de que vivemos uma época em que o cias culturais que fazem circular a
coisas segundo certas relações. O que neoliberalismo tem uma significativa idéia da supremacia da lógica do mer-
acontece, no entanto, no caso das for- predominância sobre outras formas de cado, ou por qualquer outra forma de
ças de mercado, é que elas estão em racionalidade política – ou seja, sobre governo que supostamente impediria o
constante movimento – e isso significa outras formas de efetivação do exercí- despertar de uma consciência crítica
não fazer parte de nenhum lugar espe- cio de governo –, utilizando-se da edu- capaz de nos guiar a uma vida livre de
cífico; em função de sua mobilidade, cação (institucionalizada ou não) como todo o tipo de dominação. Nesse senti-
novos pontos de convergência apare- um importante meio de produção de do, tais análises caracterizam-se por
cem a todo o momento, assim como sujeitos que correspondam à lógica defender a proposição/consecução de
também são facilmente descartados. competitiva neoliberal, ao mesmo tem- determinados objetivos educacionais
Não é de se estranhar que, com formas po em que indivíduos cada vez mais que primam pela formação de sujeitos
de ordenação que mudam muito de- “neoliberalizados” acabam por produ- livres, autônomos e responsáveis como
pressa, a segurança que supostamente zir saberes e práticas que também algo indispensável e urgente ao pro-
se tem diante de acontecimentos regu- correspondam a essa mesma lógica. cesso de transformação social, em
lares, precisos e estáveis fica, senão Se digo que tal obra nos possibi- busca de melhoria das condições de
completamente extinta, certamente lita entender a “crise” educacional do vida de “toda” a sociedade. Não está
enfraquecida, exatamente porque as nosso tempo sob outra perspectiva é em discussão aqui se tais intenções
forças de mercado dificilmente man- precisamente porque termos como são ou não são realmente boas. Mas
têm regularidades e porque trabalham emancipação, liberdade, autonomia, certamente não terão o efeito espera-
com a escassez cada vez maior de re- entre outros, são tematizados por do, na medida em que tais análises
gulamentos normativos. Disso resulta Bauman de uma forma um tanto dife- não levam em conta que, em vez de
que, ao “administrar” a ordem, as for- rente daquela utilizada por muitos dis- ser o “outro” do governo – constituin-
ças de mercado – e a incomparável li- cursos educacionais. Nesse sentido, o do-se como uma barreira a ele –, a li-

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berdade é exatamente um meio através guarda, mas de inspiração e ideais ain- não que, além de ser extremamente
do qual o governo pode assegurar seus da modernos. atraente, cativante, convidativo e sim-
fins, ou seja, é um recurso do governo Temas como “a verdade, a ficção pático, é da mesma forma útil e de
para que ele se efetive mais rápida e e a incerteza” povoam o capítulo 9, fa- grande proveito a todos/as aqueles/as
eficientemente. Se, noutras perspecti- zendo dele, a meu ver, um dos que que estão interessados/as em uma sé-
vas, a liberdade é apontada como ele- mais podem interessar ao campo edu- ria, curiosa e instigante discussão
mento essencial para que a sociedade cacional não apenas porque trabalha acerca de algumas das mais importan-
se faça mais “justa” e “igualitária” com as noções de verdade, razão, ciên- tes transformações contemporâneas
(embora tais termos sejam bastante cia, história e diferença, mas também que são, simultaneamente, operações
discutíveis), a perspectiva a partir da porque, ao fazer isso, passa por ques- de e operadas por nossas formas tam-
qual Bauman trabalha põe em discus- tões referentes ao papel conferido ao bém contemporâneas de viver. O livro
são a idéia de que, em nossa época filósofo e à tarefa assumida pela filo- traz como temáticas de discussão coi-
contemporânea, a liberdade não tem sofia moderna. sas tão aparentemente distantes entre
feito outra coisa melhor que sobrepor Nos outros cinco capítulos finais, si mas que certamente convergem, se-
camadas sociais: “a liberdade de esco- Bauman discute, respectivamente, o não em muitos aspectos, ao menos em
lha, eu lhes digo, é de longe, na socie- conceito de cultura, enfatizando a “cri- um: o mal-estar da pós-modernidade.
dade pós-moderna, o mais essencial se paradigmática” pela qual o discurso Talvez seja isso, e a forma como
entre os fatores de estratificação. cultural está passando (capítulo 10); a Bauman coloca isso, o que de mais se-
Quanto mais liberdade de escolha se “redistribuição pós-moderna do sexo”, dutor encontrei nesta obra.
tem, mais alta a posição alcançada na revisitando a História da sexualidade,
hierarquia social pós-moderna” de Foucault, na qual aponta três des- Karyne Dias Coutinho
(p.118). vios fundamentais, envolvidos com a Mestranda em Educação
É a partir desta e de algumas ou- revolução educacional, e trabalha com Universidade Federal do Rio Grande do Sul
tras idéias igualmente muito interes- a questão da infância e dos sentidos
santes que Bauman põe em discussão conferidos à sua sexualidade no que se
(preferencialmente nos seis primeiros refere à organização e remodelação do MEYER, Dagmar E. Estermann.
capítulos do livro) aquilo que ele cha- espaço e das relações sociais (capítulo Identidades traduzidas:cultura e
ma de estranhos, destacando quem são 11); a imortalidade e os valores reli- docência teuto- brasileiro-evangélica
os estranhos modernos e quem são os giosos pré-modernos, modernos e pós- no Rio Grande do Sul. Porto Alegre
estranhos pós-modernos, como chegam modernos, a partir dos quais faz uma RS: Edunisc & Sinodal, 2000, 242p.
a ser estranhos e sob que formas cada muito útil discussão acerca da impor-
sociedade não apenas os cria, como tância assumida por “especialistas da
também luta contra eles. Ao fazer isso, alma” e “restauradores da personalida- É comum que livros tratando de
o autor também trabalha com as di- de” em nossa época contemporânea, temáticas consideradas muito específi-
mensões da incerteza pós-moderna (al- que, em suas palavras, é “a era do sur- cas sejam destinados a um público
gumas delas comentadas anteriormen- to de aconselhamento” (capítulos 12 e mais restrito, diretamente interessado
te nesta resenha), passando por 13); a origem e os sonhos do liberalis- naquele tema. Com as inúmeras de-
questões de identidade, diversidade, mo e do comunitarismo, argumentando mandas que aquelas/es que se dedicam
pobreza, justiça, entre outras. que apesar de todas as diferenças de à educação têm cada vez mais, a idéia
Diferentes objetos vão sendo princípios que aparentemente possa corrente é que se acabe tendo uma ati-
tematizados ao longo do livro, seguin- haver entre eles, “tanto um como outro tude pragmática de apenas ler o que
do a maneira envolvente e criativa são projeções de sonhos nascidos da diretamente se liga aos projetos aos
com que o autor nos apresenta suas contradição real inerente à difícil si- quais se está dedicando. O livro de
idéias. Nos capítulos 7 e 8, Bauman tuação dos indivíduos autônomos” Dagmar E. Estermann Meyer, pela
tece comentários extremamente inte- (p.245). temática, tem forte chance de acabar
ressantes acerca do significado confe- Perante tais temas e a forma caindo na categoria de “muito especí-
rido à arte pós-moderna em sua rela- como são abordados e desenvolvidos fico” . Se, ao ler o título, você está
ção com o Modernismo, tomando-o no livro, o que mais posso eu dizer de tendendo a categorizá-lo desta forma,
como um movimento artístico de van- O mal-estar da pós-modernidade se- minha forte recomendação é: pense
outra vez. Neste livro, a autora oferece

140 Set/Out/Nov/Dez 2001 Nº 18

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