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O RELATO DE CASO, CRISE E SOLUÇÃO*

Éric Laurent

Para saber “como se analisa na Escola da Causa Freudiana hoje”, nossas


jornadas utilizam o método do exemplo, do caso clínico. O método é de tradição na
disciplina. Ele não é sem críticas. O prestígio da ciência e da série estatística arruína,
nas ciências humanas, o brilho do caso único. A questão não se limita à Psicanálise.
Consideremos a história. Conhecemos a fascinação da Escola dos Anais com a série
estatística e seu desdém pelo caso singular. Cremos, agora, que o mais difícil é escrever
a descrição do grande homem, da contingência histórica, sem renunciar à descrição das
determinações que ele ou ela souberam desafiar. O que está em jogo é inscrever a
contingência do caso na necessidade.
A crise do relato de caso em psicanálise, o fato de que não se saiba mais muito
bem como redigi-lo e a variedade do modo de narrativa admitida, designam um mal-
estar. Este parece se organizar em torno de um certo número de falsas oposições e de
falsos dilemas. Citemos, nessa desordem, o qualitativo contra o quantitativo, a vinheta
contra o caso desenvolvido, a monografia exaustiva, as grandes séries, contra o
isolamento das variáveis pertinentes do caso isolado. Os cientistas bufam diante do
inscrever o relato de caso psicanalítico no quadro do single case experiment, quando
certos psicanalistas os incitam a isso1. O que é, então, uma experiência que depende tão
estreitamente do laço observador— observado, como é aquela que a transferência
instaura?
Na verdade, o problema é o seguinte. A psicanálise não é uma ciência exata. O
mimetismo da ciência fora de seu domínio não conduz senão à paródia. É, geralmente, o
caso das séries estatísticas em nosso campo. Nesse sentido, o caso não pode ser
“objetivo”. Isso não impede que exista a clínica psicanalítica e suas narrações, ou seja,
“tipos de sintoma”. Cada caso, em sua contingência, se inscreve nas classes que o
esperam. Como é que ele se inscreve?2 A epistemologia das classificações nos faz

*
Texto, originalmente publicado em Liminaire des XXXèmes Journée de L’Ecole de la Cause
Freudienue. Em português, com tradução de Alessandra Thomaz Rocha e revisão de Cristina Drummond,
este texto foi publicado em: Almanaque de Psicanálise e Saúde Mental, Belo Horizonte, Instituto de
Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais, Ano 6, n. 9, p. 69-76, novembro de 2003.
1
WIDLOCHER D. “La méthode du cas unique”, Le cas en controverse, Paris, PUF,1999, p. l98.
2
MILLER, J.-A., La conversation d’Arcachon. Paris: Agalma éditeur, colection Le Paon,1997, pp. 267-
68. (Traduzido como Os casos raros ou inclassijícaveis da clínica psicanalítica, A Conversação de
Arcachon. São Paulo:Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998).
perceber a função de toda classificação como tal. É uma nominação, uma
“individuação”. Nomear o caso, a exigência de bem-dizer, é um dos nomes da lógica da
experiência analítica. Ela orienta o dizer do analisante, sua transferência e o dizer
interpretativo do analista.
Um caso é um caso se ele testemunha sobre a incidência lógica de um dizer no
dispositivo da cura, e sobre sua orientação em direção ao tratamento de um problema
real, de um problema libidinal, de um problema de gozo. Se observarmos essa
gravitação da lógica significante no campo do gozo, então, poderemos falar de caso, no
sentido em que nós encontramos o casus latino3, isso que cai, contingência inoportuna,
ou o Einfall freudiano que recobre a mesma zona semântica.

O modelo freudiano e sua crise

O relato de caso freudiano tem, no início, o modelo do


romance goethiano. Os sofrimentos de Dora devem muito, em sua forma de expressão,
aos sofrimentos do jovem Werther que atravessaram o idealismo alemão. Eles fixam, no
entanto, um modelo: o sonho e suas associações, derivado da forma original empregada
por Freud em sua Traumdetung, para dar conta da experiência da análise original. Freud
consegue dar uma forma narrativa à estrutura, liberada das limitações do Ideal. Ele
consegue integrar a sessão analítica, por natureza enodada na dissimetria do analista e
do analisante, em um mesmo relato contínuo do diálogo do sujeito com seu
inconsciente.
Ele consegue, também, transmitir a Abraham e a Ferenczi seu sua
modo de narração. Seu gosto romântico continuou a levá-lo na direção dos
prolongamentos do romance histórico alemão, na direção do sonho histórico
apresentado mais ou menos, explicitamente, como ficção. O desdobramento do
romancista e de sua ficção está sempre presente nele. Nós o lemos na “Gradiva” de
Jensen ou nas biografias romanceadas de heróis culturais como o Leonardo da Vinci de
Mereschkowski4. Abraham e O. Rank ficaram muito impressionados com isso, os
trabalhos que eles fizeram sobre esse modelo o provam. Foi preciso esperar a Primeira

3
casus, “particípio passado substantivado de cadere que, significando propriamente “fato de cair, queda”
designa, por eufemismo, a morte e significa “o que acontece; acaso”, notadamente com um valor
desfavorável, “acidente inoportuno, azar”. Dictionaire historique de la langue française, sob a direção de
Alain Rey, Paris, Le Robert, 1998.
4
Editado em Leipzig em 1911, que inspira a Freud seu estudo sobre Leonardo.
Guerra Mundial e o estudo sobre O homem dos lobos para romper com essas formas
antigas. Este será o último “caso” freudiano a tomar a forma clássica
do “relato de caso”.
A literatura se apropriou dos recursos do relato de caso freudiano para libertar-
se das formas convencionais. A Traumnove/le, de Schnitzler, é de 1926 e se apóia em
Freud para forçar a literatura a dizer mais sobre os conteúdos sexuais da conduta do
sujeito. Em 1925, Alban Berg quer fazer do Woyzeck essa p
de Büchner, no qual o drama inclui o diário clínico e o noticiário médico-legal, uma
ópera. Escrita automática, jogos de associação de palavras5, método crítico-paranóico,
monólogo interior, fluxo econtínuo de pensamentos, tornam-se outros tantos espaços de
experimentação para a nova literatura. O gosto muda. Ocorre, aí, um tipo de inclusão da
obra dentro da obra6 da literatura e do caso, no momento em que, na psicanálise, a
“virada dos anos vinte”, crise na prática da interpretação, ressoa sobre o modelo Lacan
do relato do sonho e de suas associações.
A “crise da interpretação”, que acompanha a virada dos anos vinte, coloca em
perigo o relato de caso. Ao invés da associação triunfante que vem à tona do sonho, os
psicanalistas lidam com o sintoma que resiste ao desvelamento inconsciente. Os “casos”
vêm dar conta das dificuldades de cada um e da extensão da psicanálise, lá onde o
sonho não tem curso, na psicose, por exemplo. Bem mais que no modelo freudiano, é a
unidade da sessão de psicanálise que vira assunto de relatório. Os autores tentam fazer
coincidir seus relatos com suas práticas. O sonho dc um bloco de notas de
laboratório sustenta essa extração de momentos cruciais de uma sessão. A unidade do
relato de caso não era mais o destino de um sujeito, mas o fato memorável,
transmissível, extraído de uma sessão. A forma curta iria prevalecer.
Melanie Klein inventa uma nova narração, sob a modalidade do bloco de notas
da experiência, sessão por sessão. O “material”, imediatamente traduzido em termos
“inconscientes” por um aporte do psicanalista com a mesma extensão, transtorna a
ordenação dos relatos freudianos. O interesse centra-se sobre isso que nós poderíamos
denominar “a epifania” própria a cada sessão, manifestação do inconsciente na sua
materialidade e demonstração do “saber-fazer” do psicanalista. A senhora Klein só

5
N.T.: cadavres exquis: jogo surrealista consistindo em compor coletivamente uma frase escrevendo
uma palavra sobre um papel que se dobra antes de passar ao jogador seguinte que deve inscrever um
outro elemento da frase. Cf. Le Petit Robert.
6
N.T.: mise en abîme: se diz da estrutura de uma obra mostrada no interior de uma outra que fala dela,
quando os dois sistemas significantes são idênticos: relato dentro do relato, filme dentro do filme, pintura
representada dentro de uma pintura. Cf. Le Petit Robert.
consegue desviar o problema da dificuldade da publicação ao tornar pública, após sua
morte (1960), sua “análise de uma criança de dez anos”, conduzida em 1940. Ela
mantém, assim, a forma desenvolvida da monografia. Esta será a última monografia
publicada.
A evolução se fará na direção da vinheta clínica, a forma clínica breve, à
medida que a literatura, no sentido amplo, adota os procedimentos freudianos para fazer
deles um novo objeto literário. À medida que, também, ninguém mais leva em conta “a”
psicanálise como tal, mas se dedica a ilustrar um aspecto parcial dela.

Da história à lógica

É nesta crise que a evolução do método escolhido pelo Dr. Lacan, a partir de
sua tese, toma todo o seu valor. Na tese de psiquiatria, que o conduz ao umbral da
psicanálise, o fundo do método é jaspersiano, e se organiza em torno do conceito de
personalidade. Ele estende o método na direção da concepção francesa da “psicologia
concreta”7. Ele almeja a publicação de monografias exaustivas sobre um caso para
testemunhar a verdade do sujeito. Ele manterá em parte essa perspectiva8. Trata-se de
um verdadeiro single case experiment apoiado sobre a unidade da “personalidade”.
A passagem de Lacan para a psicanálise o fará abandonar as esperanças
falaciosas de um método exaustivo. Mais exatamente, ele substituirá a exaustão pela
coerência do nível formal onde o sintoma se estabelece. Nós encontraremos um eco
desse método no acento colocado por ele sobre o papel da recuperação, por cada sujeito,
de sua história9. À medida que torna lógico o inconsciente, Lacan faz pender o relato de

7
LACAN J. De la pychose paranoaique dans ses rapports avec la personalité (1932), Paris, Seuil, 1975,
p. 346 (Traduzido como Da psicoseparanóica em suas relaçoes com a personalidade (1932). Rio de
Janeiro: Forense universitária, 1987): “A chave do problema nosológico, prognóstico e terapêutico da
psicose paranóica deve ser buscada numa análise psicológica concreta que se aplica a todo
desenvolvimento de sua história, aos progressos de sua consciência, a suas reações no meio social. O
método implica então em sua base monografias psicopatológicas, tão exaustivas quanto possível”.
8
LACAN, J. Prémisses à tout développement possible de la criminologie (1950). In: ____. Autres écrits.
Paris: Seuil, 2001, p. 121. (Traduzido como “Premissas a todo desenvolvimento possível da
criminologia”. Cf. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003): “(...) no coração de suas
conseqüências objetivas em termos científicos a plenitude dramática da relação de sujeito a sujeito; ela
sedesenvolve numa busca que vai mais além da realidade da conduta: nomeadamente a verdade que aí se
constitui”.
9
LACAN , J. “Afirmar da psicanálise como da história que, enquanto ciências, elas são ciências do
particular, não quer dizer que os fatos aos quais elas têm a ver sejam puramente acidentais, ou factícios e
que seus valores últimos se reduzem ao aspecto bruto do trauma. Os acontecimentos se engendram numa
historicização primária (...). O que nós ensinamos o sujeito a reconhecer como seu inconsciente, é sua
caso psicanalítico em direção à iluminação do envelope formal do sintoma, concebido
como um tipo de matriz lógica.
Na leitura que faz dos casos de Freud, Lacan “eleva o caso ao paradigma”, à
categoria do “exemplo que mostra” as propriedades formais, no sentido mais amplo das
manifestações do inconsciente freudiano. O paradigma mostra a estrutura e indica, tanto
o lugar do sintoma em uma classe, quanto, os elementos de substancialidade na vida de
um sujeito, elementos que se repetem e que permutam, ou ainda os modos de declinação
na repetição do mesmo. A estrutura lógica e topológica dos casos freudianos aparecem
assim, com uma nitidez inesquecível. A estrutura lógica dos trajetos do pequeno Hans
em torno do vazio da fobia se revela na leitura do caso, O esquema R mostra as arestas
da psicose de Schreber a partir dos significantes isolados por Freud. O quarteto de Dora
se junta àquele da Jovem homossexual, indicando o grupo de transformações da
sexualidade feminina em torno do significante do desejo. No Homem dos ratos, ele faz
valer a “combinatória geral”10 das formas do labirinto obsessivo.
Enfocar, em cada um desses casos paradigmáticos, a combinatória
inconsciente, nos poupou dos falsos dilemas nos quais o movimento psicanalítico
americano soube se fechar. Citemos alguns deles: é preciso ou não ler os textos de
Freud como os de um fundador? uma verdadeira ciência tem fundadores? será que não
perdemos nosso tempo lendo os textos princeps? Esse tipo de perguntas, das quais
Jacob Arlow11 se tornou especialista, supõe que questão da cientificidade da psicanálise
seja resolvida. Se ela fosse uma ciência exata, e não um discurso, nós não teríamos mais
nada a aprender de Freud, tudo teria sido transmitido integralmente.
Essas questões também são acompanhadas de distorções retóricas, nas quais a
crítica norte-americana primeiramente considera que Freud se enganou, falsificou seus
resultados, apresentou desvios injustificáveis entre suas anotações de sessão e sua
publicação, se conduziu de maneira vilmente interessada com seus pacientes (o dossiê
Frink). Enfim, trata-se inicialmente, de fazer a careta do não-tolo para o qual não há
grandes homens. Por conseguinte, podemos reconhecer que os casos de Freud são
insubstituíveis e acabamos por nos ordenar na opinião irônica do grande crítico literário

história”. Cf. Fonction et champ de la parole et du langage (1953). In: ____. Écrits. Paris: Seuil, 1996, p.
261. Traduzido como “Função e Campo da Fala e da linguagem” (1953), cf. LACAN, J. Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998. p. .212.
10
LACAN, J. La direction de la cure et les principes de son pouvoir. Écrits, op. cit. Traduzido como: “A
direção da cura e os princípios de seu poder”, cf. LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editora, 1998. pp. 636-637.
11
ARLOW, J. Adress to the graduating class of the San Francisco Institute. The American Pychana/yst
(Quaterly Newsletter of the Maer. Psychoanal. Assn), 25,15-21.
Harold Bloom: “Freud é entre os escritores modernos, um dos mais persuasivos”)12. Ir
mais além de Freud, repensar a psicanálise, colocar à luz os novos conceitos, para
pensar seu objeto, implica, sem dúvida, passar pela dialética segundo a qual aprendemos
muito mais de um erro de Freud do que de uma verdade de um outro, como mostra o
“retorno a Freud” de Lacan.
Como inscrever a particularidade da construção lógica de cada sintoma nos
tipos de classificações?13 O caráter de coerência lógica do sintoma, ao mesmo tempo em
que afirma a existência de classes de sintomas, efetua a desconstrução dessas. A
nominação do sintoma remete, em última instância, a um impossível, ao que da pulsão
se recusa ao significante.

A transferência do lust e a questão da língua comum

Enfocar o envelope formal não é o todo do caso. É preciso ainda que o sujeito
“reconheça o lugar que ele ocupou” nessa partida, jogada logicamente, como todos os
“grandes jogos”. Essa parte ocupada é a via pela qual o sujeito terá de volta uma noção
sobre as verdades que lhe serão reveladas no curso da análise. Ele engajou nisso seu ser,
ou seja, para nós, sua carne e suas pulsões, desde sua inserção nos balbucios do Fort-da.
O lugar dessa parte ocupada, dessa parte “proibida” e não maldita, é inicialmente
nomeado por Lacan como o lugar do desejo14. Este será, em seguida, o lugar do gozo,
no momento em que ele modificar a sua teoria do sintoma15. A construção formal gira
em torno de um impossível, que inscreve um lugar vazio em reserva: S de (A) barrado.

12
Citado no artigo de PatrickJ. Mahonny mencionado infra: MAHONY, P.-J. Les cas de Freud
aujourd’hui. In: Les cas en controverse. Paris: PUF, 1999, p.130.
13
Na Psicanálise “é preciso que sejamos, por um lado, nominalistas: o sujeito chega, nós liberamos
nossas prateleiras de todas as classificações(...) acolhemos o sujeito em seu frescor inaugural. Quer dizer
que todas as classificações não passam de semblantes? Ah! É aí que somos estruturalistas. Ser
estruturalista quer dizer: existem espécies subjetivas, a estrutura existe”. MILLER, J.-A. La conversation
d’Arcachon, op. cit., 1997, pp. 267-268. (Traduzido como: Os casos raros ou inclassficáveis da clínica
psicanalítica. A Conversação de Arcachon. São Paulo: Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998).
14
“A importância de preservar o lugar do desejo na direção do tratamento necessita que se oriente este
lugar com relação aos efeitos da demanda, somente concebidos atualmente no princípio do poder do
tratamento...” Cf. LACAN, J. A direção do tratamento... (1958), op. cit., p .633.
15
“Parece-me que num certo momento de seu ensino, trata-se, para Lacan, de aprender a pensar o sintoma
sem o conflito, (...) uma clínica sem conflito”. Cf. MILLER, J.-A. Seminário de Barcelona sobre Die
wege der Symptombidetung. In: Le symptôme-char/atan. Paris: Seuil, 1998, p. 40. (Traduzido como: O
sintoma-charlatão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998).
Esse lugar é reconhecido como crucial, não somente no que está em jogo num
tratamento, mas também para a comunidade analítica. Como o discurso psicanalítico
constitui sua comunidade de auditores e de expositores? Como reconhecem a evidência
que submetida a eles? Isso se dá por meio de uma língua comum, uma definição comum
do que seria um caso, do que seria uma análise ideal, um resultado previsível? É no
inverso dessa via que o discurso analítico procede. Certamente, o relato de caso
comporta as formas pautadas nas diferentes comunidades de trabalho psicanalíticas. Há
modelos do gênero que circulam. Mas, é na distância com relação esses modelos que a
qualidade do trabalho de cada analista, sua presença se faz escutar. O caso clínico é,
neste sentido, tanto inscrição como afastamento. Como reconhecer, então, a pertinência
do afastamento?
A indicação fundamental que Lacan deu sobre esse ponto é que a demonstração
em psicanálise é homogênea à forma do chiste. É a partir do efeito de sentido, muito
mais do que do sentido que, em seu último ensino, Lacan mantém juntos o significante e
o sentido. Ele se junta assim a Wittgenstein, pelo menos ao segundo Wittgenstein, e seu
sentido agudo da disjunção entre significante e significado. É o que Jacques-Alain
Miller nota:

Lacan não se satisfez com o Nome-do-Pai. Na mesma função de


ágrafo, ele situa o que ele chama dc a estrutura do discurso. No
momento em que estamos num discurso, o significante e o significado
se equilibram (...) a compreensão, incluído nela o acordo entre o
significante e o significado, sentido e real, é um assunto de
comunidade (...) o verdadeiro sentido do meaning is use, repousa
sobre uma prática comum da linguagem numa dada sociedade. É o
que ele chama de compartilhar uma forma de vida. Para nos
compreendermos, é preciso compartilharmos uma forma de vida16.

O modus ponens, o desprendimento, se produz em nosso discurso no momento


em que o ganho libidinal é atingido. É o que Lacan conservou para a experiência do
passe, em que cada um sustenta a demonstração de seu próprio caso. Esse dispositivo,
no qual se conta seu caso, no fim de análise, como uma boa história, tem a estrutura do
chiste. Ela radicaliza a enunciação de cada um. Esse modelo da transmissão da
psicanálise é conservado por numerosos autores psicanalistas fora da nossa orientação17.

16
MILLER, J-. A. L’appareil à psychanalyser. Conferência pronunciada em Gand em 1997, publicada
em: El sintoma charlatan. Buenos Aires: Paidós, 1998. (Traduzido como O sintoma-charlatão. Rio de
Janeiro:JZE, 1998.)
17
Podemos citar Pierre Fedida, evocando os trabalhos de André Joiles sobre “As formas simples”; “a
espirituosidade oferece essa particularidade, entre ‘as formas simples’ de poder produzir um nó, desfazê-
Em sua tendência, o discurso universitário vê, ao contrário, a solução no
apagamento da enunciação na língua. Daí, sua busca permanente de uma língua nova,
neo-língua purgada das marcas do gozo das enunciações do início. A busca de uma
língua clínica única, de um modelo de caso cinico que seria o commonground, o
fundamento comum que permitiria a troca entre psicanalistas, deriva dessa tentativa. A
utopia seria permitir uma grande conduta, da língua, como dizia Locke, autorizando
uma comunicação purgada dos mal-entendidos que lhe fazem obstáculo. Essa utopia do
discurso universitário é uma empreitada clínica no sentido em que ela quer apagar o
desejo do psicanalista que atualizou um fato clínico como tal. Ela deriva da mesma
ordem de operação que havia mostrado o lingüista JeanClaude Milner em seu belo livro
sobre O amor da língua18. Não estamos mais na época de um significante mestre que
definiria uni bom uso, e acossaria as formas desavergonhadas da invenção sintomática
na língua. Estamos na época de um ideal humanitário da língua, querendo dar a ela um
bom uso universal.
A via própria ao discurso psicanalítico, na troca sobre o relato de caso, reside
no contraste entre a abordagem pela heterogeneidade e a abordagem pela língua
expurgada universal. Longe de expurgar, é preciso atualizar uma clínica dos sintomas,
estabelecida por cada sujeito, tendendo àquilo que é nomeável e àquilo que é
inominável no uso que ele faz da língua de sua comunidade. Isso supõe manter vazios
os lugares ocupados pelo prêt-à-porter das classificações segregativas, para dar lugar a
verdadeiras distinções, uma por uma.
É por isso que a solução da crise, no relato de caso, se resolve na diversidade
mesma das vias na qual cada um se defronta com o real em jogo em cada caso. Com
suas particularidades, e com um mesmo estilo de racionalidade comum, cada um tenta
demonstrar como responde ao caso, que é sempre, de uma certa forma, um “caso de
urgência”.

Tradução: Alessandra Thomaz Rocha


Revisão: Cristina Drummond

lo e criar uma nova forma, e, no curso de seu processo, dar lugar a uma comunidade que será
recompensada pelo riso”.Cf. Morfologie du cas dans la psychanalyse, questions ouvertes. In: Le cas en
controverse. Paris: PUF, 1999, p. 43.
18
MILNER, J.-C. L’Amour de la Langue. Paris: Seuil, 1978. (Traduzido como: O amorda língua. Porto
Alegre:Artes Médicas, 1987.)

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