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BERNARD LAHIRE

SUCESSO ESCOLAR
NOS MEIOS POPULARES
As razões do improvável

Traduçãu
Ramon Américo V:l.squcs
Sonia GolJ feJcr
SUMARIO

Editor
M iriam Gold(eder Prelúdios ... II

Editor~assistente
\. O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO. 17
Claudcmir D. de Andrade
• A estrutura do comportamento e da personJlidade da criança 17
Preparação de texto • Os traços pertinentes da leitura sociológica 19
Maria de Fátima Mendonça Couto As formas fami li ares da cultura escrim, 20 Condições c dispo~
siçõcs econômicas, 24 A ordem moral doméstica, 25 As (ormas
R evisão de autoridade familiar 27, As formas (mniHares de in ...cstimcn~
F,hima de Carvalho M. de SOllz::t (cllord.) to pedagógico, 28
Isa ías Zilli • A pluralidade dos estilos de "sucesso" 29
• Singularidade e generalidade 31
Paginação eletrônica Contexrualizar, 32 Ext'mplos caricaturais. 34 A «ucstãn lia
G&C Associados equiva lência, 36 A estruturação de o bj etos singubrcs, 37 Por
Laura Sanae Dlli um procedimento ex perimental, 40

Capa 2. uFRACASSO" E "SUCESSO" . 47


1,,;t hl,1 C lrh:tl1p
• A população pesquisada 47
Impresso nas oficinas da 53
• A percepção escolar dos alu nos
Gráfica Palas Alhena
A orJl!m cSClllar das qualidades, 54 Sobre a autonomia e a dis-
1.9 Sl!ud/uallunard, Paris, 19Y5 ciplina,58
Título orlg-ina l: Tableaux de familles - HeuTs el malheuTS scolaires
3. PERFIS DE CONFIGURAÇÕES .. 71
cn milieux populaires
ISf\N 2 02 02>911 O • Vari<lções sobre o mesmo tema 71
ISBN 8508 06601 5 • A elucidação das palavras: à procura de indícios 74
O elo impossível 77
1997 Perfil I : A distância em relação aos universos objetivados, 79 Per-
Todos os direitos reservados pela Editora Ática fil 2: Uma prisão familiar, 88 Perfil 3: Uma ruptura radical, 97
Rua Barão de Iguape. 11 0 - CEP 01507-900 A herança difícil 104
Caixa Postal 2937 - CEP 0 1065 -970 Perfil 4: A difícil situação do filho mais novo. 106 Perfil 5: As
São Paulo - SP más condiçõcs de herança, 115 Perfil 6: Dois capitais culturais
TeL (0 11) 278-9322 - Fax: (011) 277-4146 indisponíve is, 124 Perfi l 7: Uma perturbada divisão sex ual das
[arefas d () m~s ticas . 131
Internet: http://www.atica.com.br
e-mail: editora@atica.com.br
DlI indisciplina à autodisciplina 141 A CRADECIMENTOS
Perfil 8: Recusa às coerções c "bloque io" em r.... b çãtl ~I tsc ri la, 143
Pt:rfil 9: A mo nll, a aucoridade e a escola, 155 Perfil 10: A "csc rc-
vinhadora" disciplinaJa , 164
Sentimento de inferioridade, sentimenw de superioridade 171
P.... rfil 11 : U m s.... mimtnto de "inferioridade c ulntral", 173 Per-
fi l 12: U ma rcencamação sucia l, 181 Ptrfil1 3 : Vigi lânc ia moral
e auxílio 1l1ÚCUO famil iar, 190 Pcrfil14: Um afável confinamen -
to simlx'J lico, J97 Agradeço antes de tudo às faml1ias que me confiaram uma /)arte de
Configurações familiares heterogêneas 207 sua exJ)eriência. Espero que es te trabalho, ao evocar situações sociais sem
Perfil 15: As conrraJições, 208 Perfil 16: Entre inquisiçij() c indul - nenhum sentimenlO de desprezo nem piedade, /)ossa devolver a cada uma
gê ncia, 219 Pt.:rfi I1 7: Uma relação de forç a cultural, 227
delas a dignidade que raramente lhes é atribuída.
A criança no cemro da famma 233 Meus agradecimentos dirigem-se também ao Grupo de Pesquisa so/n-e
Perfil 18: Uma situação com dupla facc, 234 Perfil 19: A c rian-
ça-rc i num rcinll mlxlesto, 244
a Socialização (URA 893, CN RS), que contribuiu para a publicação
Inves timento familiar positivo ou negativo 256 deste trabalho nas melhores condições possíveis. A Daniel Thin , que fez
Pe rfil 20: Um superinvestimento esco lar paradoxa l, 258 Perfil uma grande parte das entrevistaS comigo , a todos os que participaram
21: Os limites da . . Icspesa familiar, 268 Perfil 22: O invt~ti lll e n · da pesquisa , a Roger Chartier, Daniel Fa/n-e , Ylles Grafmeyer, Claude
LO escolar. 277 Grignon , Jean-Claude Passeron, Jacques Revel e Guy Vincent, por
Os "brilltanres" sucessos 285 suas observQ{ões, e, finalmente , a Régis Bemard e Yane Golay, que ama-
Pe rfil 23: Aqui, tudo é ordem e rcgularidaJc .. ,288 Perfil 24:
Um,1 vigi lância regular e sistemática, 296 Perfil 25: U m caso
lIelmente acompanharam a passagem da relatório de pesquisa inicial
"idea l", 303 Perfil 26: Uma mili tância f<lmiliar, 313 (Les raisons de I'improba ble. "Heurs" e "malheurs" à l'école élémen-
ta ire d'enfanrs de milie ux po pulaires - As razões do improváve l.
CONCLUSÕES .... 334 "Alegrias" e "tristezas" na escola primária de crianças de classes popu-
lares) à re~ão deste livro.
• O mito da omissão parenta I e as relações famíHas,esco la 334
• As modalid ades da transmissão 338
O h::mpo e as opurtuniJades dc socialização, 338 Tmnsm issão
ou con s(T\lçiio!, 340 U m patrimônio c ultural mo rto, 3 42 A
integração soc ial c simbúlica da experiência esco lar, 343 Capi ,
tal escolar e expe riênc ia escolar, 344 A const ituiç5o das iJt!n-
{iJaJcs ~exllab, 345 Contrad ições e instabilidades, 346
• U ma antropo logia da imerdependência 348
A inct:rJt:pcndênc ia. 348 Das estruturas objeti vas às est ruHlras
mc mais, 350 O "interior" e o "exterior", 352

BIBLIOGRAFIA . 359
P enso, :llkb, comu VOCl-!>, q uc I,) qUI! deve
sohretudo solicitar n os!>a atenção ~iio (l!'>
!-,'1l1nJc!> I'rublc ma~ do mundo c d :l cii!n c i:l.
Mas, mUll ..~ "C:;:C', de 11.Ida ~ r"c form ular
o :.imple::. proJl..'lII de ~leJ i car-.,c à 1Il\'cstlJ.!aç:io
de~ Oll d"tJude gr:lndc prohlem a. ~llS ne m
!oCm pn~ ,,<Ihemm para onde dcvem()~ (IrkntM
U~ p:l~.,(I~. É ~cmr re 1ll:11S r:lC.lmal. em um
tr:lha lhn clen tí(icl), lIll'rgull \:l r naqul1 u ql!!:
te mos J i.mle de n ú~, nus ubje to::. que sc
oferece m por ... i nW!>Il\l.l!> ~ nÜ:.:.iJ 1't'~lI Ul ~ :l .
Se o (I:ermo::. com ~crkJade . ::.clll Idé l.!:.
rrecom.. c h.J <I~ . !oC 1ll expcct<lIIV,h ex,l~('r:lll:h .
e:.c ti verm tJ!> Il....lrl c, pode acnlll eü'r que,
g mç"~ "tJ~ d t~ q llC Ilg<lm llldo a tudo.
u pequeno : 11 1 gr:tnde , il traba lho que
C\ 1Il11..~~. ,1 tl1 ( 1~ ~etll nenhum:l prctenSãtl :Ihr:!
ca rninlw :lll c~t Lldo de gr:mdell proh l t' Ill : I ~
(Sigmund Frl.!uJ, llllrudllC tlon li la
/l5)chmwl)'5i!, p. 17).

Enrl....lanlU . n o ... 11\1gdn 1..·-"'.:(,rh:g:<lJUJ onde


a frlcçãu t'~I,í :lL1loentc. c onde, portanto •
..110 CUn;..I I~~C......!> 1l:'i\1 Ide:l l~ em u m certo SC IltLJ,I,
tIl,l:>, (Imle. e m tme .. , e cau......"l disso, n:111

1l( }t,.le m ().~ ca mmh:lr. ()m, queremo..\'> " ll11mh' lr;


pre c i ~,lml)~, rnrmmo, de fricç flo. VulleUlus
,)" 1l{)1" llspcrn ! (LUJWlg Wlllt..:en~ ll'lIl,
fllt!f.mgatiom /)hllmfJphlf/H<'s, p. 164.)
PRELÚDIOS

su t.'X I ~ I t.' UIll.! fllrTlM dI.' .'0.: d wg.1 1' :lll lllll\'cr ...al:

O hSCf\'iI T (! Pi lrll t.'u l,lr, n;jn .'ulx·rflcmlmentc m,IS

mmllL I(I",tlll ...'lltc c e m lk·l:llh...·~'.

P,lr,t t.'llIl1prccndcr 1:.1,1 .Ic Inlxkl mal:> d.l1\\ pr\.'o


l:1s," mlo:..la ll ll)aqu l Cl1nlOCIU I númcl\~ r.:. I:O:l!<lan,~·
li)gJl... , l:nmtdcrm ,I:> P:trt lt.'Lll.!ri J,t... k,:. do.. . prtX ... ~·
:;0:': !l/flor IlUlb J.: /)Cltl) lllJ.Ul' t:!> l ;Í 'ICI"lIl ICl.cndo!,

Souyla está cursando a 2" série do I" grau. Seu pai, ex-operário
ua construção c ivil, não-qualificado, está aposentado. Ele e su"
mulher, dona-de-casa , são analfabetos, dominam com dificuldades a
língua francesa e têm um conhecimento bastante restrito do sistema
escolar (de seu funcionamento cotidiano, do desempenho de seus filhos,
das classes que freqüentam ... ). O casal teve onze filhos e vive na peri -
feria de uma grande cidade . Souyla está indo muito bem na escola.
Esta descriçiío sumária de uma situação soc ial e escolar, que pode-
ria ser a verbalização de algumas informações extraídas de uma das
inúmeras fichas de an~í li se de uma pesquisa estatística que tenta
"explicar" a melhor Oll pior situação escol}1r de crianças de 2i! séri e
do I Q grau, segundo um conjunto de indicadores "objetivos" (níveis
de formação, situações profissionais, lugar onde moram os pais, grau
de conhec imento do sistema escolar e acompanhamento da escola-
ridade dos filhos, número de filhos na família .. . ), não é ficção, ainda
que apresente algo de inesperado. O quau ro descriti vo, por seu aspec-
ro arípico -como , pode,se questionar. uma família que acumu la ta.n-
TaS "deficiências" poderia levar uma criança a ter "sucesso" na esco-
la' - pergunta o sociólogo, em busca de maiores explicações.
Porérn, ao procurar compreender, esse sociólogo confunde-se ainda
mais. Comparando algumas famílias a partir do conjunto dos atri-
butos ou dos recursos dos quais "objetiva mente!> dispõem, não con-
seguirá chegar a nenhuma conclusão: famílias não totalmente IIdes-
providas de recursos", sobretudo do ponto de vista do capital escolar,
possuem filhos com enormes dificuldade escolares, ao passo que
outras, cujas cclracterísticas obj etivas levariam a pensar que a eSCQ-
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PRElUDIOS

l. ridade dos filhos poderia ser custosa, possuem c ri anças com boa cedem assim, de cerra forma, à man eira dos soc itS logos que ma nipu~
e mesmo muito boa situação escolar. Há, portanto, para o soció l o~ Iam categorias macrossocio lõgicas. Viveríamos em lima sociedade na
go, em relação ao que conhece sobre o funcion::u nento provélvel do qua l os pais não "conve rsam mais com seus filhos", não têm "rn ais
mundo socia l a partir de dados estatísticos, como que um mistério tempo" oll"ma is vontade" por causa de suas ocupações profissionais,
a ser elucid"do. As pistas parecem, ao me nos no início, confusas, e onde os círculos familiares se torna m "cada vez ma is instáveis", com
a tentativa uc compreensão de situações atípicas, que não nos mO$# mães solteiras, famílias "implodidas" pelos divórcios, sepamções e situa-
tram aq uilo que poderíamos esperar, constitui um verdadeiro desa# ções econômicas "preCêlrias" (desemprego, salário mínimo de inser#
fio socio lógico. ç~o* ... ). Os filhos, em tais situações, "pe rd em todos os pnrâmetros",
A qucst;;o centra l que move u nossa pesquisa diz respeito à com- "não uescnvolvem sua linguage rn" e "são abandonados a si pró#
precnsiío das diferenças "secundárias" entre famílias popul ares c ujo prios". Quanto aos Pilis, estes deixam de ser "verdadeiros pa is": não
nível de renda e nível escolar são bastante próximos. Semelhantes Jescmpenham - ou não desempenham ma is - seu "papel", "omi#
por suas condiçôcs econôm icas e cu lturais - consideradas de forma rem#se" e "não cuidam mais Jos filhos".
grosseira <1 parri r da profissão do c hefe de família - , como é possí- No entanto, quando é preciso evocar esse ou aque le aluno da clas~
vel que confi gurações familiares enge ndrem, soc ia lmentc, crianças se, com suas d ificuldades e suas capacidades específicas, seu modo de
com níveis de adapt"ção escolar tão diferentes? Q uais são as dife- compnrtml1ento e se u desempenho escolar, os professores não man-
renças inrernas nos meios popu lares suscetíveis ue justificar V;:Jfli:1# têm mais o mesmo discurso. As explicaçf">es se tomam menos segmen#
ções, às vezes consideráveis, na escolaridade das criêlnçêls! O que pude radas, menos caricaturais, menos evidentes. Confrontados com algu~
esclarecer o fato de que uma pane del"s, que tem probabilidade muito mas crianças específicas, apresentam questões premenres: como faze r
grande de repetir o ano no cu rso primclrio, consegue escapar desse para modificar ou "dcsbloquear" uma situação difícil? Por que tal aluno,
risco e até mesmo, em certos casos, ocupar os melhores lugares nas que era um "perfeito vagabundo", um belo dia começa a Hfuncionar
c lassificações escolares? Essas são as questões para as quais rentare # melho r", lia intercssar#se mais", ao passo que nunca conseguimos
mos e ncon trar respostas, tcn tando compreender as posições esco# fazer n aela por aquele o utro?
lares de c ri anças da 2a séri e do 12 grau em relação ~ sua si tu ação, Os professores (sobretudo aqueles que estão menos h abituados a
~o cru za mento de configurações familiares específi cas e do espaço manipular categori as sociopolíticas) resistem na maior parte das vezes
escolar. Paro se rmos mais precisos. o objeto central de nosso traba- às explicaçcles sociológicas em termos de categorias sociais, de gru -
lho são os fenômenos de dissonâncias c de consonâncias entre COI1# pos ou de classes, de causas sociais ou determinantes soc iais. E res is-
figurações familiares (relativamente homogêneas do ponto de vista te m , sem dúvida, por algumas (boas) razões. De um lado, encontram
de SUB posição no se io do espaço social em se u conjunto) e o lIni ~ com regu laridade casos que não se encaixam nos modelos que lhes
ve rso cscolar que registramos através Jo Jesempenho e comporta~ são propostos: "desempenhos" exemplares em meios populares (às vezes
mento escolares de um a criança de cerca de 8 anos de idade. é o seu próprio caso particular), ou, inversamente, "ciltásrrofes esco#
A maneira pela qual os professores primários classificam os "fra- lares em meios hurgucses. Por outro lado, além do caráter excepcio~
l1

cassos" escolares, ou seja, atribuem a esses acontecirnentos um c()n~ nal de certos casos enco ntrados, a vida escohu os lev<l ~l tratar os alu~
texto interp retativo , é re lat ivamente d iferente quanuo julgam ind i#
vidua lmente os a lunos de uma classe ou quando ju lgam as "causas
* O"ll,im, IIIlnllll~l ..k· .""",n,.II) (em fr, mc':"~. r..'t\,lIl1l11l1UII1Um d'llt~'flU/I1.n R~'II ) é 4li;lIlt" g.lIlh.1
gerais" do fenômeno. Quando os professores fa lam de uma fonua muito um l.k:!>CUll'n:\.:.li.ltl UlllltJ "'ltírl(H.k"t.-'mrrq.;", (tu t:111,1c, cr.. IIltI.vidlKb tnt;llm~llIt: Ill<lr\.:lfl.lli -
genérica, as "grandes causas sociais" ton1am~se predominantes. Pro# :ad'h do ~"tt:l1l.1 dt: unh:llhtl n.1 Fran~~i.I. El~ !!Ilíl t:1II rurno Je ':;00 J,\IMt:!>. (N.T.)

12 13
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PRElUOIOS

nos caso por caso (com nome e sobrenome), nunca totalmente s imi ~ 1 iplos exemplos que possibilitaram compreender como o capital cu l-
lares entre si, apanhados em um contexto de classe particular, com tuml parenta I (ou de forma mais ampla , familiar) podia ser trans-
pais, desempenhos e um comportamento escolar si ngu lares. mitido, o u, ao contrário, não conseguia encontrar condições para
O ra, nós, aqui, aposta mos que a sociologia (por causa de seu modo ser transmitido. Ou ainda, como, na ausência de capital cultural ou
de pensar relaciona I e por ev itar a absolut ização de certos traços na ausênc ia de uma ação vo luntária de transmissão de um capital
sociais, por sua capacidade específica de distanciamento em rela~ cu ltural existente, os conhecimentos escolares podiam, apesar de
ção a realidades de interdependência, que, normalmente, provocam ruJo, ser apropriados pelas c rianças. Mas, afinal de contas, as pró-
sobretudo atitudes de engajamento ') pode ajudar a compreender casos prias noções de "capital c ultural" e de "transm issão" Oll de liheran,
específicos (não especia lmente no sentido de I'cxcepcionais") sem ça" - metáforas úteis quando come ntamos quadros que c ru za m
Jispersar as razões ou disseminar as causas ao infini to . Notemos que v(H ilíve is - deixam de ser pertinentes quando, ao mudar a escala
e ncontramos aí um belo exemp lo de elo entre sen so comu m e saber de observação, voltamo- nos para a descrição e aná lise das modali-
científico, q ue, dados os problemas epistemológicos, metodológi- dades da socia lização familiar ou escolar, no âmbi to de uma soc io-
cos e teóricos levantados pe la pesquisa, comp lica de maneira s in ~ logi" dos processos de constituição das disposições sociais, de cons-
gu iar o debate sobre o tema. trução dos esquemas mentais e comportamentais.
Q uando queremos compreender "singu laridades", ucasos parti~
c uln res " (mas não necessariamenre exemp lares), parece que somos
fatalmente obrigados a aba ndonar o plano da retlexão macrossoc io- A título de aviso ao leitor, gostaríamos de ressaltar a escolha, urll
lógica fundada nos dados estatísticos para navega r nas águas da pouco particular, de determinada escritura sociológica. Após te rmos
descri ção etnognlfica, monográfica. E, gera lmente, a questão do elo precisado o pontO de vista do conhecimen to adotado, descrevendo
o u da articulação entre estas duas perspectivas não se coloca nem em seguida a população analisada. e antes de propormos algumas con-
àqueles que, etnógrafos ou estatísticos convictos, fa lam do mundo clusões a serem extraídas da exploração sociológica feita, apresenta-
de modo diferente, mas com o mesmo sentimento de dar conta do mos uma série de "perfis familiares" que constituem o corpo principal
essenc ia l. O ra, em vez de fazer de conta que a compreensão de 0 1- deste livro. O perfil, como gênero científico livremente inspirado no
50S singulares acontece po r si só, co l ocando~ nos de imediato e in ~ gênero literário, comporta duas ex igêncirls fundamenta is: de um lado,
ge nuamente do lado daqueles para quem a questão da representa- baseado em "dados" e preocupado com a crítica dos contex tos de sua
ção ou da generalização n}'io causa nenhum problema, optamos, no produção, é a pintura, diferente portan to do discurso literário, de um
quad ro de uma antropologia da interdependência, por estudarexpli- modelo particular existente na realidade. Por outro lado, deve deixar
c itamente uma série de q uestões (singularidade/generalidade; visão transparecer claramente a maneira específica de pintar. O ponto de vista
etnográfica/v isão estatística; microssociologi:l/macrossociologia; a partir do qual o pintor observa e explicita o mundo.
estruturas cognitivas individuais/estruturas objetivas ... ) a respeito Exceto suas ambições científicas principais, a qualidade deste tra-
de um objeto singular e limitado. E, sobretudo, questionar a práti- balho, se existe, reside primeiro e antes de tudo no cuidado dispensa-
ca - muito criticada nos estatísticos - que consiste em juntar, em do a cada uma das diferentes fases pnlticas da pesquisa. Nossa amllise
uma mesma categoria, realidades consideradas diferentes, e que, log i ~ não somente apo ia~se em dados ricos e suscetíveis de serem cnlz~Klos
camente, implica sncrificar sua s ingularid ~lde. (entrevistas com 26 famílias em suas casas e notas emognificas sobre
Além disso, durante um percurso de pesquisa que acentuava as cada um dos contextos das entrevistas, fichas com infonnaçóes esco~
modalidades concretas da socia lização familiar, encontramos múl- lares, caden10s de avaliação, entrevistas nas escolas com cada uma das

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SUCESSO ESCOLAR NOS ME IOS POPULARES

27 crianças, entrevistas no começo e no final do ano escolar com os 1 O PONTO DE VISTA DO CONHECIMENTO
7 professores envolvidos, entrevistas com 4 diretores de escola), mas
cada etapa dessa pesquisa foi conduzida com a preocupação particu-
lar de se fazer uma grande reflexão sociológica em cada relatório. Às
vezes, quando estes relatórios deviam ser dados "às cegas", suas con~
seqüências sobre o trabalho eram medidas logo em seguida para com- A ESTRUTURA DO COMPORTAM ENTO
preendermos o que havia sido feito, ainda que não o soubéssemos sem- E DA PERSONALIDADE DA CR IANÇA
pre no próprio momento. O conhecimento sociológico só pode ser cria-
do através de um trabalho permanente de retorno aos protocolos
anteriores da pesquisa, a partir de aquisições progressivas, gmças aos A CHrulUnt c fi form:l du CQml'l<,rra mcnt o de um
indivfduo ,k'pcnJclll dn C,lrulllt<'1 de suas rcb-
protocolos de pesqu isa que se seguiram. Trata-se neste caso de um avan- çc1cs com os nlllms m~livídllo:;-,
ço através de um retomo reflexivo sobre os momentos passados do tnl~
balho, sendo que as diferentes etapas da pesquisa não estavam jamais
separadas, como nos esquemas hipotético-dedutivos escolares. Tudo
é válido, a qualquer momento do trabalho, para compreender melhor
o que foi feito em qualquer outro momento.
Portanto, estamos inclinados a pensar que a qualidade princi~
pa i do sociólogo não pode ser a de "intérprete" final, mas sim uma
qualidade de artesão, preocupado com os deta lhes e com o ciclo A personalidade da criança, seus "raciocínios" e seus comporta~
completo de sua produção, introduzindo sua ciência nos momen~ mentos, suas ações e reações são incompreensíveis fora das relações
tos menos "brilhantes" mas mais determinantes da pesquisa: co ns~ sociais que se tecem, inicialmente, entre ela e os ou tros membros
tituição da popu lação a ser entrev istada, construção da ficha de entre- da constelação familiar, em um universo de objetos ligados às for-
vista, qualidade da relação de entrevista, trabalho de transcrição mas de relações socia is intrafamiliares. De fato, a criança constitui
da entrevista, notas etnogr:'íficas sobre o contexto ... Em vez de refle- seus esquemas comportamentais, cognitivos e de ava liação através
tir assim que acabar a pesquisa, o sociólogo deve fazê~lo a cada ins~ das formas que assumem as relações de interdependência com as pes-
rante e, particularmente, naqueles momentos banais, aparen temen~ soas que a cercam com mais freqüência e por mais tempo, ou seja,
te anódinos, em que tudo leva a crer que não há nada a se pensar. os membros de sua família!. Ela não "reproduz", necessariamente e
de maneira direta, as formas de agir de sua família, mas encontra
sua própria modalidade de comportamento em função da configu-
ração das relações de interdependência no se io da qual está inseri-
NOTAS da. Suas ações são reações que "se apóiam" relacionalmente nas ações
dos ad ul tos que, sem sabê-lo, desenham, traçam espaços de com-
E. Durkhell11, " L1 .~ci ellcc posilivl' de la mllr:11c en AlIclll.lgrll''', in Tl'Xres . 1975, p. 333. portamentos e de representações possíveis para ela.
L. Willgcn~ (,.' m, hl1'l:sugmion., phi/oslj/,nu/ucs, 1986, ]1. 141 . Se, por um lado, temos tendência a reificar os comportamentos
N. Élra... , Engag Cnll.'1l1 1.' 1 di.Hancia/lrm .. .• 199 3.
das crianças em traços de caráter ou de persona lidade, a sociologia
deve lembrar, por outro, que esses traços não aparecem em um

16 17
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

ncnte ,IS c rianças em situação de ..fr.Ka....'>I.J" , l'I idade mó.liil de enrr.IJil no maternal é de
.1 :ml~ e I) meses. "Os a lunos que se Il\!ncfid~·u",lm de lima escolariJ<tJe ma is longd no 3 PERFIS DE CONFIGURAÇOES
mmem al uhlêm melhores rcsuhl'ldos~u bucs no finoll da pri·t:';l.Cllla", escrevem A . Min·
gl.lar c M. RII,:h arJ, E' -t./{lla rion tWs ac:til.liris J.... rt'~d u ratioll ... , I 'NO, p. 49. Isto 1'\<10 sil,'I1i-
fic;) nccC~<;;'lri<lmCn l e I.{lJe ;l escOL.1 rn:.ltt"rnal i: (aus:! de um mc:lh" r ":.UCe.'ill(l" ('sco lar. A
('ntr..ua no maternal pode.ser também um ioJit::aJ nr da re b çào dos ['<I is cClIn ~I escola e
si~nifka t 4UC suas práticas s..x:i.. lizadnnl." j:\ .s:.'\n I r.lha lhnd a.~ te ndo como preocup'lçiio a
t"S(olil. Porem , em uma .série de [X'rfis, consratnnwl.'; que a frC4íiência IllI escnb mate rnal
VI\HI I\<;ÕES SOBRE O MESMO TEMA
dumnle ao me nos 2 anos permite à c ri:mça travar cunhcci mentu com : L~ 1'CS!õ.lS de com-
pt\rtamentu, (Um um;, política disciplinar, com prátic<ls ôc Iinl,'lIa~cm, etc., po uco comulti
na f.uuília, e niiu ~rJer tempo na pré-escll la arr\"ndemJo esses h.tbitos e:'<':lllarcs. ( :"mo obtivemos os perfis que vamos mostrar adiante? Como
I I P. Fmu.:onnct , "L'ccuvre pedagogi4ue de Émilc Durkhcim", 1989, p. 26.
i< ,,.a111 reconstru ídas essas configurações familiares nas quais esta-
V,IIII inseridas as crianças? Se o perfil sociológico, como gênero de
II G . Vincent. L'éco/e primairi! françnise , 1980, r.164. Seria ncc('ss~do dCi'iCnv\)lvcr aqLli ns dos ,·.".,. i,a c ientífica, trata de uma realidade social e realmente visa-
protllnJos enrre " conSTituição dt) E~tadL) ffiCld cm o, li monor ôlkl cSTaml da vinlcncia k'gí-
l IIIHO discurso não .. literário que se apóia nos dados e se preocupa
tima, a Jomin aç ~ ll lcgill r"tcional, .. s regras impe;.'iO.1isc o.~ rn)(,;es.~us Je intcritlri%.'\Ção do con-
Ir'1lle Jas eulOÇÕt:S 4UC pcw.lemos esrabelecer atta ..,'é; das (lhr....~ J e Ml.IJ( Wchcr e Nurhe" Élias. , " 111 " crítica dos contexros de sua produção - a uma verdade rela-
"va, também deve deixar aparecer a maneira específica, o estilo do
1I DI.) mesmo modo q ue Rngcr Charrier It'nra f(.·comliluir I) Ic iTtlr c :l Idtuõ.l implid ros,
insc ritos mlS estruturas materiais dos livro...: da "Bihlim heque Bleu" e visados re los ooi. "desenhista". Neste trabalho de construção, esforçamo-nos, portan-
lores (fuian!)s a partir do século XVII. Cf " Du livre a u li re", 1985, p. 62-88. ' '', para organizar sociologicamente, a partir de uma construção par-
14 EoollulrUm à 1'(II(rc!i! ou C El..., liNI, p. 6.
,ir " l"r do objero, o material oriundo da observação de realidades sociais
n·lmi~amente singulares. Com isso produzimos texros de configura-
IS Ihid., p. 20.
.JIl'S singulares; textos que, no entanto, não são isolados entre si por
16 M. Wd~ r, Éwnomie e'1 sociéré, 1971 , r. 2]1. dllas razões ao menos: por um lado, trabalham com as mesmas
orientações interpretativas, e, por outro, o texto de cada perfil
17 IbiJ., p. 225.
,bempenha um papel no texto de todos os outros perfiS'.
18 Évaluation lI. 1't.'TItrée au CE2 .. , p. 20. Dessa forma, fizemos com que o trabalh o soc io lógico progre-
19 Ele niiu ~e reduz ,l isto. É i).,(ualmeme um aluno que sabe não ultrarasstlt () lempo que:
,lisse com avanços e recuos, o que nos permitiu, finalmente, aban-
lhc é daJ(), qu\,' reconhece <lS expres.o;tjcs wrbais J o tempo, distinl;:lJC os texttJs rc10s rndi- .luna r o gênero mo nográfico puro. Na realidade , nossa forma de
ccs formai .~, ."!lhe. curiar exatamente um text!), concordar ~ ujeilO e verbll, eXImir uma proceder n ão negligenciou a singularidade de cada si tuação, mas
n.'grn a p.artir Jllllhsc.rv'lçfKI de um exemplo. ele . QuiSl'mtll>, ptlrém, i n., i ~tir S(.lbre os aspec-
tos menos .... isfvc is.
sobretudo não se contentou em fazer descrições ideográficas puras,
sem comparações, que traem a ausência de uma orientação inter-
lO L. S. V."golski , Pt'Jtséeedangage, 1985. p. 28 1. pretativa claramente definida. O que procuramos são invariantes
11 B. bhire. C U(luTe écrirc er inégalüés .scolaires ... nu invariânc ias através da análise de configurações singulares t ra-
radas como variações sobre os mesmos temas.
lZ Uma pro(cnnf;\ Jll lona de Educação Prioritária da ciJ atll! de Brun-P;ui\ty.
Ao escolher a forma científica do texro, qu isemos ultrapassar as
1~ As nt,....:L.. lil~'l.Ií~t'OS pcdaJ..lÓgica~ chegam a forçar um rrofessor a corril,tir-sc: !.I:U<lndn durnn- aposições teoria/empirismo, interpretação/faros... e apresentar à lei-
uma e ntre .... ista a p<llavm "rel,,'Ta" lhe escapa ..:omo num lart:iu: "O respe ito us regrJs,
tI." ru ra fatos - teoricamente - construídos. Dessa forma, procura-
inslruçf>es. se vocês nãn l)uefl!m dizer regras, pois !ltÜJ tU.'W .~ dh.l'T 'n.·~r.ls·. É uma pala-
vra fora de moda, dcv\!mus Jiz~r instruçflc:s, li respeitu à;o; instruçiks".
mos encarnar nesses perfis a nossa leitura sociológica das situações
sociais, para demonstrar claramente que os casos particulares na-
70
71
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

tados não passam de sínteses o rig inais de traços (ou carac terísticas) ' (- (,:xcrcem sobre as crianças singulares procura restituir os dete r,
igualmente genéricas. Evitar a explicação unilateral através de um 1111 11!"mOS sociais re laciona is de forma mais próxima da Illaneira como
facor, o u, de modo mais geral, de um tema predominante não sig, ' tO.Iprc~c ntam a e las.

nifica, na realidHde, que nos percamos e m um nevoe iro de causas. t :()mo observare mos várias vezes nos diferentes perfis, os profes'
Trata-se somente de, ao centralizar o o lhar sobre objetos mais pre- '1IrL.·~ tendem, quando falam de casos particulares, a reter ape nas um
cisos, tentarcontextualizar o efei to de ptopriedades ou de traços per- um elemento da vida da criança (ser canhoto, ter sido ope-
II , IÇO,
tinentes de amllises absolutamente gera is, exatamente os que encon, I.ld" '111'" vez, ter um problema de saúde ...) ou da família (família
tramas nas pesquisas estatísticas. IlHll1t1pmenral, pais desempregados que vivem com a aj uda mínima
Se ti vésse mos abordado separadamente troços, terfmnos perdido d" Estado ... ), para convertê- lo em causa do seu problema escolar.
de vista o que nos parece o mais importante a destacar, o u seja, que ( :ll l'l rr,l esras visões espontaneamente isolac ioniscas e absolutistas que
esses traços (características, temas) se co mbinarn entre si e só têm "l' kcionam um traço - às vezes físico - , o isolam do contexto no
sentido sociológico, para nosso objeto, se inseridos na rede de seus qua l desempenha um papel e lhe confere m, de forma mágica, o
entrelaçamentos concretos. Ao contrário do que se poderia pensar pOl..ler exclusivo de explicação, quisernos afirmar a pril11:lZia do todo
costumeiramente, é exatamente nos perfis de configurações e não . . uhre os e lementos, das relações entre as características sobre as
em aná lises que desenredassem o que tínhamos, conscienc iosamen, l-aracterísticas per se. E mais uma vez evocaremos Norbert Élias,
te, enredado que encontraremos a interpretação dos fatos. Nossa preo- qU<lndo defende o procedimento sintét ico (ou sinóptico) que con-
cupação foi a de não destruir demais as lógicas práticas com suas múl- "Jcra a especificidade das relações comp lexas entre diferentes ele-
tiplas coerções simultâneas e embaralhadas (lógicas nas quais somos mentos, contra os proced imentos exageradamente ana lít icos e ato,
constantemente surpreendidos quando precisamos adotar essa ou aque- lIli,w··. Nes(;l segunda via, elementos considerados em configurações
la orientação, fazer uma "escolha" e não outra ao longo de nossa vida \Ir relações mútuas "são abordados como capazes de conservar suas
cotidlana)l, e não a de fazer uma le itura da rea lidade socia l na tin, parricuh-uidades distintivas quando são examinados isolada e inde,
guage m das variáveis e dos fatores explicativos. pcndentemente de qUê'llquer o utro contexto"!.
O fato de os diferentes membtos das famílias contextualizadas É pteciso, conseqüentemente, ressaltar o fato de que o agru pa-
ag irem COlllO agem, de seus filhos serem o que são e comportarem, mento dos perfis por remas - que parece vir contrariar a lógica das
se como tal nos espaços escolares não é fruto de causas únicas que va riações sobre os mesmos temas - operou,se com a tinica preo,
agiriam poderosamente sobre eles. Na verdade, estão envolvidos num cupação de dar ao le ito r uma pausa para respiração. Assim sendo,
conjunto de estados de fatos, de dados cujos comportamentos práti- optamos por uma mane ira particular, entre o utras poss íveis, de jun,
cos cotidianos não passam de tradução: traduzem o espaço potencial tar os perfis. Mais ou menos como n as experiências pSicológicas com
das reações possíveis em função do que ex iste e m tennos inter~huma~ unnge n , em que, dependendo do o lhar, " indi víd uo pode distin-
nos. Qualquer modificação da constelação de pessoas (e portanto guir rostos ou um vaso, um jovem ou uma vc lha senho ra, etc" nosso
dos traços familiares, das propriedades objeti vas ou das dispoSições agrupamento é apenas uma entrada possível na realidade das COIl'
incorpo radas), da estrutura de coexistênci a, pode leva r a uma figurações fa miliares singulares sociologicamente coru,rruídas. Reun i-
transformação do comportamento da criança. Mas nenhuma carac, mos casos na med ida em que distingu imos neles, particularmente
terística em si explica este componamento. Ao contrário da com, hem , certos traços o u conjuntos de traços, mas isso n ~o significa que
preensão descontextualizada das causas do "fracasso" o u do "suces, estes estejam a usentes dos outros perfis. Além disso, ce rtos aspec-
50", a reconstruçiio das pressões socia is re lacio nais conc retas que tos prese ntcs na primeira parte (po r exemplo , as pní.ticas de escri ,

72
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

ta) são tratados ape nas no interior dos perfis e nossas conclusões
I~cido das relações do qual emerge e no qua l se inscreve se expri-
evidenciarão outros tipos de relações entre as diferentes configura-
me";. O traba lho sociológico consiste, portanto, em tentar recons-
ções famili ares (por exemplo, as diferenças segundo o sexo do
I r\lir as formas de relações sociais que estão na origem da produção
aluno).
,Ie informações liberadas no âmbito de uma forma de relação social
e~pec ia l : a enrrevis ta.
O utra questão central: teríamos acesso, através da e ntrevista, à
A ELUCIDAÇÃO DAS PALAVRAS: À PROCU RA DE INDíCIOS
práticas, ao rea l, à verdade destas práticas? Para nós é evidente que
só a o bservação direta das práti cas permite co ns ide rá~ l as com a
NJ(ll'XI~tem C(Ib.; I.~ Itnpurt,IIllC:' 'Ille, em \..t·rta:.
CIIllJI~~ I)c., e Ctn ccrtn~ n U HlICnrll~, tll.tnifl'lll:lm - Imagem que o pesquisador fornece ou que produz por sua própria
~c :ll'e n :l~ por Ml\flis mui to (ra c'I~! 1
... 1E, cnqu:-m- presença (problem>\tica teórica, fich a de observação das práticas,
h ) JUI Z,:'In f; ,:..' r Ulllot invc.~flW1Ç;i u ',uhrc um aS1>as- condições da observação, o papel do observador na produção dos
vod: ""rera o 4U~! Que o ;L....~,b.'>IIlU lenha
1>l n,lr(l ,
JCIX .•JIl ~U,I fOlOgrafltl c seu cnJcrq;(1 no lugar comportamentos o bservados ... ). A partir ti o mo mento ern que esta~
do lrUlIe, ou VllLê dcve ~ cnmCnt ,lr, I)«el>.."t- mos tratando de discursos, não podemos pretender ter acesso às pró-
n.unentc. p.ui1 JCl>cohnr .1 iJcIltIJ••dc du t.:rnni - ncas. lsso porque, primeiro, existe aq uilo que temos o hábito de cha-
110M). Lom mdíclll" em ~cr.11 milito fr:ígcl!l c
in " l g lllfll.; ;mt~ ! N.11I dc~pre:emC\'l , pt.lrl .mt o, U~
mar, hoje , de "efeitos de l eg itimid ad e'~. Q uando estamos diante de
Jl!..""'ILlcn,\', llin.lls: ele.. I"-Idem Ilt.b colnC.lr n" I n - um objeto o u de uma prática cultura l que aconrece em um IInive r~
Ih,1de I,;OIS.\,) nloll~ IInptl rt .lIltC:'\ Ml cu ltura l diferenciado e hierarquizado (onde alguns produtos são
n,"is legítimos que outros); quando, além disso, a pessoa que res-
Antes de tudo é necessário lembrar que a e ntrevista não deixa ponde a lima pergunta referente a esses objetos ou prát icas part ici ~
transparecer uma infonnação que ex istiria previamente, em uma fonna pa mais o u menos desse universo, com uma consciência mais ou
fixa, como um objeto, antes da própria entrevista. Entre o sociólo- menos clara da dignidade ou da indignidade cu ltural de certos obje-
go e o "discurso da entrev ista" não existe a mesma relação que entre tos, de certas práticas, podemos estar, então, diante de efeitos de
o historiador e os arquivos. As palavras não esperam (na cabeça ou legitimidade . O entrevistado corre o risco de subestimar (ou de não
na boca dos entrev istados) que um soc iólogo venha recolhê -Ias. Só mencionar) as pnhicas que percebe como menos legítimas, e de supe-
puderam ser enunciadas, fo rmuladas, porque os entrevistados pos~ r~st im a r as práticas que considera mais leg ítimas _O risco aumenta
suem disposições cu lturais, esquemas de percepção e de interpreta- quando - e é o caso desta pesqu isa - a situação de entrev ista, pela
ção do mundo social, fru tos de suas mélltiplas experiências sociais. maneira como os entrevistados foram avisados (através de um bilhe-
No entanto, suas formas, seus temas, seus limites de enunciação te enviado por intermédio da escola), pelos temas abordados (lei-
dependem também da própria forma da relação social de entrevis- tura, escrita o u esco laridade das c riançasL co loca os entrev istados
ta, que, neste caso, desempenha o papel de um filtro que permite tor- em uma situação de tensão em relação ao que consideram como nor~
nar enunciáve is certas experiências, mas que impede o surg imento mas legítimas. Para muitos pais, fomos identificadns comn profes-
de outras que implica m certas formas lingüísticas e desestimulam sis- sores preocupados em conhecer o meio social nnde vive a criança .
tematicamente o utras ocorrências, etc. Como escreve Norbert Élias, Da meSll13 forma, muitas c rianças entrevistadas querem agradar ao
"o comércio com os outros desperta no indivíduo [...J pensamentos, e ntrevistador, e aprese nta m~se com todas as qualiJaues possíveis.
convicções, reações afetivas, necessidades e traços de caráter que lhe °
É necessário, assim , decodificar a e ntrev ista como resultado de
pertencem , que constitue m seu 'verdade iro ' eu e através dos quais o um processo de construção, pela criança, de uma imagem de si e de
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

sua família que e la pensa ser, socialme nte, a mais conve niente pos- m/armações oriundas dos professores, da criança (entrevistada sozi-
sível aos olhos de um adul to estranho que veio entrevistá- los den- nha na escola) e das famílias: a multiplicidade dos índices e das
tro da escola, com a autorizaçãn do professor e do diretor. Informações comparáve is permitiu reconstruir pacientemente con-
Como enfrentar uma situação desse tipo? Devemos considerar lextos sociais e razõcssocia is pertinentes para as quais o efe ito de legi-
que a pesquisa é deturpada em princípio e que não poderemos r imidade funcionou e m determinados mo mentos.

nunca aringir a verdade social dos entrevistados? Na verdade, as coi- Como conclusão, fica claro que o proble ma não é, definitivamen..
sas não são tão simples assim. Antes de tlldo, lima parte do traba- te. saber se os entrevistados disseram o u não a "verdade", mas tentar
lho (da profissão) do entrevistador consiste justamente em limitar reconstruir relações de interdependência e dispos ições sociais prová-
o máxi mo possível os efeitos de legitimidade at ravés de sua parti- vt.:! i~ através das convergênc ias e contradições entre as infonnações ver-
cipaçiio ativa na entrevista e ofuscando sua pessoa em prol da pala- hrlis cle uma mesma pessoa, entre as informações verbais do pai e as
vra e da experiência dos entrev istados. Isso implica não colocá-los tê lrncciJas pela mãe Oll pela criança, entre as infonnações verbais e as
em sinmção de humilhação cultura l e, ao contrário , isentar de culpa pi-lnlvcrbais, Contcx tuais o u estilísticas. etc. Com objetivos bem dife-
o~ que se autocensuralTI durante a entrev ista por expressões do tipo: rentes, o método de trabalho do sociólogo comporta, no entanto,
"E verdade que eu dev ia ter feiro isso", "Não sOu muito evo luído". certa analogia com o do de tetive que busca indícios, "detalhes reve-
o u com entonações que demonstram que eles "se sentem diminuí- Lldores", confronta-os. testa a pertinência de uns em re lação aos
dos" diante das perguntas. E também os entrev istados nem sempre llutrOS, para conseguir reconstruir lima realidade social. . . Portanto, é
estão na defensiva durante a entrevista; nem sempre estão preocu- L'nfrentanclo a questão da entrevista como discurso não-transparente
pados em mostrar uma boa imagem o u falar a coisa certa. E mesmo que poderemos ter uma oportunidade de reconstruir as práticas efeti-
quando chegam a fazê-lo, isso nos fornece uma importante infor- vas. Ou melhor, as disposições sociais efetivas que estão no princípio
mação sobre sua relação com a cultura legítima e com a escola. Mas dos discursos proferidos.
uma e ntrev ista nunca é ho mogênea. e mesmo o entrev istado mais
preocupado em dar o que considera como "respostas corretas" mos- O elo impossivel
tra-se mais eloqüente a respe ito de certas práticas (o que denota que
contro la certas práticas melhor do que o utras, que é mais o u menos Havia i ll g(l d"'l~~1 r:lnh\\ illdl;;'iCrit rvcl. lIm;) ror .. [
apaixonado por esse a Li aquele tema), pode parecer dizer "branco" dCMlTIl'n l :I\,':il 1'1' .

pe lo discurso e "negro" pela entonação e as mímicas que faz quan-


do enunc ia "branco". Para aquele que quer vê .. las, mil pequenas co i- Nos perfiS familiares aq ui reunidos, que demonstram um elo
sas trilem os graus de fabulação dos entrevistados sobre os diferen- Impossível entre o unive rso fam iliar e o uni verso escolar. os pais são
tes pontos abordados'. originár ios de países estrange iros e têm lima relação difícil com a
Além disso, não raro há outras pessoas presentes durante a entre- língua francesa. Porém, a origem estrangeira e o frágil domínio do
vista. Marido e mulher, mãe e irmã, marido e cunhado, pais e filhos francês não são suficientes para expl icar as situações delicadas dos
podem estar juntos dura nte um certo tempo, em seguida alguém sair fi lhos ( ver os Perfis 13,14 e 23, onde estas duas características não
durante a entrevista, etc .. e as variações do discurso, dependendo da impedem o bom desempenho escolar) . Os trabalhos sociolingüís-
presença desse ou daquele protagonista da cena familiar, deixam ticos estabelecem bem que não existe uma relação de casualidade
transparecer as contradições, as fabulaçõcs, as o missõeS'. Finalmente, simples entre "língua" e "d ificuldades escolares". Como escreve
e mui to importante, nos o utorgamos a possibilidade de cruzar as John Gumperz para o caso dos Estados Unidos,

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

... se se tratasse apenas de diferenças lingüíst icas, poderíamos espe~ vendo uma concepção maquiavélica do funcionamenro da escola
rar que cri anças de cu ltura chjncs~l e japonesa tivessem maiores difi~ francesa considerada deliberadamenre segregacionista em relação
cu Idades, dada a diferença eno rm e entre seu sistc ma gramatica l e aos filhos de estrangeiros.
o ing lê~. Mas não é o caso. As estat ísticas COnce rn entes aos d esem ~ É mais difícil inserir rodas estas configurações familiares, enquan-
pcnhos escolares most!am que os im ig rantes chine~es que chega- to redes de relações de interdependência, nas formas sociais legíti-
ram recen remente da Asia consegue m, em geral. se &'l ir melhor que mas, do que as famílias mais despossuídas, mas que não são oriun-
os q ue nasceram nos Estados Unidos ll . tias da imigração. As experiências sociais anteriores vividas pelos
Quando falamos de língua o u de cultura, passamos imeuiata - adultos em universos culturais religiosos, administrativos. po líticos,
mente a impressão de que existem fronteiras intransponíve is econô micos muito diferentes não as ajudam a se orientar com faci-
entre as diversas línguas e cu lturas. Mas é preciso lemb rar, con- lidade nas novas formas de relações sociais. Estes percursos de imi-
tra o e mpiri smo . que os esquemas soc iais mentais, as fo rmas gração são casos dolorosos de desemaizamento ou de adaptação difí-
socia is o u os processos sociais mais fund amentais (por exe mplo, cil a novas situações soc iais. Revelam muito particularmente o que
os processos de objetivação, de codificação, de teorização, de escapa ao olhar comum quando tudo parece ser ev idente, o u seja,
formalização, de racionalização, de burocratização, de escolari- as condições histó ricas necessárias para que as formas de vida social
zação ... ) transparecem, na maior parte das vezes, nas línguas, nos possam ser vividas sem tantos choques.
costumes. nos traços culturais próprios aos grupos soc iais. sob re~
tudo quando estes são soc ialmente definidos " . Dessa fo rma, dois • Perfi l I : A discância em relação aos universos objerivados.
seres sociais escolarizados em sociedades muito diferentes sob o Mehdi M .. nascido nas ilhas Comores, ÁfriCll, com três anos de atraso na
::l ngulo de suas tnldições nac ion ais, c ulturais, lingüísticas, políti~ escolaridade (chegou recencememe à França) , obcC\le 3,4 7UC avalillfão.
cas, religiosas, e tc. estão mais próximos e ntre si do ponto de vista
cognitivo que os me mbros não~esco l a rizados de suas respectivas Quando fomos marcar a entrevista, o pai nos recebeu vestido com
sociedades". calça social e camisa branca. Muito cordial, parecia estar a par do
A articulação das configurações familiares e do universo esco- bilhete que lhe encaminhamos por intermédio da escola. Não sabe
lar, nesta série de perfis, é difícil de se realizar por conta da grande ° nome do professor, só o do diretor ua escola. Na casa ressoava uma
disrilncia cultural ("cultural" deve se r entendido aqui no sentido música reggae, razoavelmente alta.
dos processos, das formas sociais ou dos esquemas sociais mentais) No dia da entrevista fomos recebidos pelo pai na presença de
que os separa. Os pais, às vezes. estão vivenciando uma rupwra em Ulll amigo que assistiu a toda entrevista sem intervir. O pai estava

relação aos universos ocidentais da escrita (escola, burocracia ad mi - tomando conta dos dois filhos mais novos da família. Durante a emre-
nistrativa ... ). Podem, como reação a seu unive rso soc ial atual, opor vista, chegou um cunhado que era professor primário nas ilhas
uma legitimidade familiar (moral, religiosa) à legitimidade da ins- Comores e que fa lou muito, a pedido do senhor M., a princípio ("Ele
tituição escolar (a família e seus valo res podem inclusive tomar-se va i explicar ma is melhor qui eu"), e, em seguida, cortando- lhe
a única referê ncia em relação a um mundo exterior julgado mau e oportunamente a palavra. Fo i mais difícil obter a palavra uo senho r
hostil em sua globalidade), operando dessa maneira um fechamento M. enquanto seu cunhado esteve presente. Na verdade, muitas pes-
da famíli a sobre si mesma. Podem, fin almente, por um trabalho soas passaram pe lo apa rtamento durante a e ntrevista, entre as quais
de interpretação de um universo cujos fins e intenções lhes pare- um amigo, o cunhado e uma vizinha que e ntrou diretamente sem
cem incompreensíveis e ao mesmo tempo hostis, esta r desenvol~ tocar a campainha, dizendo: "Oi, pessoa l!". Quando a mulher do

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

senhor M. vo ltou (estava em um curso de alfabetização), fi cou um cm J9890u 1990, com Mehdi, seu filho mais velho de 13 anos. N unca
pouco conosco e depois, rapidamente, fo i para a cozinha preparar traba lho u, nem nas Como res nem na França, mas disse estar à pro~
a comida. (Estavam no período de ramadã*- ) cura de um emprego. A mãe da senhora M. vive na França, não tra-
Esta família é originária das ilhas Comores. O pai freqüentou balha e lê árabe. Seu pai faleceu há muito tempo e ela não sabe qual
durante 3 anos a escola maometana e somente por 3 anos a esco, era sua profissão. O casa l tem cinco filhos (quatro meninos e uma
la comum onde se ens inava o francês (uma das duas línguas inter- menina), dos quais dois são a inda bebês. Os mais ve lhos têm 13 anos
nacio nais, junto com o inglês), pois o trajeto e ntre sua casa e a (Mehdi, na 2" série) , 9 anos (na J" série) e 8 anos (na pré-escola).
escola era lo ngo demais e os me ios de transporte , precários. Seu Os M. são antes de tudo um caso de família que não possui um
c unhado observa que "ele se vira mui to bem", ainda que sua pouca gmnde número de práticas "oc identais" de escrita. Através de uma
escolarização seja "uma desvantagem para ele poder ajudar os rrajetória de imigração, esta família vive um embate entre univ er~
filhos". Seu pai é operário especializado na França, lê apenas árabe, sos objetivados de culturas, e se encontra tota lmente desprepara-
sua mãe nunca trabalhou e s6 lê árabe. da, pela sua situação de origem, para apropriar-se deles. E n80 é por
O senhor M. fala correntemente a língua comoriana e se expri- acaso que, para o senho r M. e seu cunhado , parece importante
me em francês com grande dificuldade nas construções de frases e exp licar bem, além das perguntas que lhes fazemos, como as coisas
no vocabulário. Lê maio francês (sobretudo do ponto de vista da acontecem nas ilhas Comores, do ponto de vista da organização da
compreensão), lê a língua comoriana escrita com a ajuda J o alfabe- vida social e econô mica. Esse é um ponto cen tral da entrev ista, que
to francês ou árabe, e lê o árabe li te rário, sobretudo o Alcorão. revela lima oposição ("Tem muitas coisas que não são nada pareci~
Aprendeu nas ilhas Comores a profissão de alfaiate, mas não possui das") entre dois universos culturais mais ou menos escolarizados, buro,
diploma profissional. Na ocas ião estava desempregado, depois de ter c ratizados, mais o u me nos tecidos por formas sociais de escrita.
traba lhado aqui e acolá para "dar de comer" a seus cinco filhos. Tra- O senhor M. e seu cunhado (que tem um di ploma técnico e fo i
balhou em vários lugares como "trabalhador braçal", "aux iliar de professor primário nas ilhas Comores) insistem mui to em da r o tes-
pedreiro" ou "lavador de pratos no Novotel durante 18 meses". Às remunho de seu espanto e de sua confusão diante do conj unto de
vezes trabalhava apenas 1 mês, outras 15 dias, alternando períodos documentos que é preciso ter na França. N este aspecto estão viven-
de desemprego e de pequenos empregos. Está na França elesde J984. do uma diferença radical entre seu país e a França. Qualificando
A mãe de Mehdi só freqüentou a escola maometana (por cerca scu país como "subdesenvolvido", no estágio de "Idade Méd ia" ,
de 4 anos) . Sabe ler o árabe mas nem sempre compreende o que lê. sem estradas asfa ltadas, sem eletricidade nem telefone (exceto nas
Isso parece ser conseqüência do ensino maometano, que insiste mais "grandes cidades"" ressa ltam a fraqueza da adm inistnlção e, con,
na organização e recitação que na compreensão dos textOs lidos. Tem seqüentemente, os poucos documentos que circ ulam.
também dificuldades para escrever, pois na escola aprendeu primei- Descrevem seu pa ís como bem menos burocrati zado, me nos
ro a ler e depois a escrever. Estava freqüentando, na ocasião, um curso codificado e, ao mesmo tempo, bem menos organizado por práticas
de alfabet ização em uma escola próxima, para onde seu marido disse de escrita e dos documentos oficiais (diploma, hollerirh, cartei ra de
[ê,la "enviado", o que caracteriza o tipo bem distinto de divisão sexual trabalho, certificado de nacionalidade, certidão de nasci mento,
dos papéis domésticos no casal. Ela veio, parece, das ilhas Comores recibo, talão de cheques, cédula de identidade, carte ira de seguri-
dade social, quitação de conta de luz, prova de residência ... ), muito
.. Período Jo ano c(lnsi dcr:ldo "ól}!r.ldo pcltl:- mll ç lllm ,m.l~ , duf,mt.... I) lllJ.ll W Jl'Jll, ' d t.:.:.i.l~ (I mais ligado à palavra dada, ao engajamento puramente oral e pes-
.11l\tlnheCl'r até ti ptJr-J'l-:'OJ. (NT )
soa l: "Num tem nenhuma instituição nos Como res onde você va i

80 8\
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

e eles vão te pedi uma prova de residê ncia, eles sabem que ocê é vezes vou até a loja e assim que entro ela me diz" (sua mulher): 'Ah ,
comoriano, ocê é comoriano. Você diz que é de tal cidade, que é de tem nada. alguma co isa" mas é tarde demais" (riSOS)), não tem
tal cidade e pronto"; "Num te pedem cédula de identidade , só se .lgenda, não marca nada no ca lendário ("N ão. eu tento me lembrar"),
você vai no banco, num têm certificado de nacionalidade: ocê é não ano ta recados no telefone, e nunca teve um diário. Escreve só
como riano , ocê é cmno riano. (Risos.)" algu mas cmtas em comoriano, usando o alfabeto francês ou árabe.
Da mesma forma, o senhor M. compreendeu rapidamente que Seus diferentes docu mentos administrativos ficam guardados em pas-
o fato de não possuir um diploma reconhecendo ofi cialmente suas tas mas em uma ordem, sem dtlvida, não muito rigorosa, pois o senhor
competências era faral na França , enquanto o diploma não tem o M. explicou que passa muito tempo procurando um documento: "Jogo
mesmo papel determinante em seu pars nata l. O senhor M. apren- em qua lquer lugar"; "Se continuar a aumen tar, em todo can to, até,
de u uma profissão na prática (vendo fazer), nas formas socia is orais se você fo r ver, no armário, [em algumas vezes, se alguém pediu nos ..
práticas e não em formas escolares de relações de aprendizagem, e 50Sdocumentos, e u se i que vo u, o documento está lá , mas não sei
nos uh que é capaz. de mostrar que "sabe fazer", mas que csnl cons .. unJe botei, procuro e m tudo quanto é canto o J iC:l inteiro, mas é
ciente ele que isso não é suficiente na França: "O diploma é quan- difícil". Dado o grau de racionalização da atividade soc ial c econõ-
do temos a profissão. Se alguém me pediu para fazer alguma coisa , m ica do universo de o rigem H , compreenderemos que as técnicas de
se me pedissem : IOcê va i tirá as medida e fazê uma ca lça', eu faço, e~c rita que permitem gerir de forma mais racional as at ividades
ou camisas, ou co isas assim, mas não te nho certificaJo". Jomésticas se mostram como a última preocupação do senhor M.,
A língua comoriana não é cod ificada, o u seja, não passou po r que parece ITIui m espantado ao saber que o e ntrev istador faz listas
toelo um trabalho histórico de dicionarização, de pesqu isas grama- de compras. A reação de incompreensão de Mehdi quando lhe per-
ticais, como explica o cunhado do senhor M.: "Não é nem mesmo guntamos se escreve bilhetes a seus pais para dar-lhes algum reca-
uma Irngua, porque não teve de fato estudos sobre ela, sobre sua gra- do mostra que essa não é uma forma habitual de intercâmbio nO
mát ica, conjugação, tudo isso. Tem gente como vocês que são, sei inte rio r de sua família.
lá, sociólogos, franceses que chegam a fazer estudos desta Irngua. Acho O senhor M. lê melhor o árabe que o francês . Raramente com-
que parece que, recentemente, ouvi falar que um francês publicou pra, portanto, algum jornal, pois não compreende tudo o que está
um dicioná rio francês .. como riano , mas antes não tinha isso. Se escrito ainda que use interesse muito pelo noticiário". Nunca lê revi s~
l

você queria escrever para sua mãe o u sua família, você escre via no ras, ne m as de programas de televisão, e dela só ass iste ao not ici á~
dialeto comoriano com as letras ... ". rio e a alguns filmes. Não lê históri as em quadrinhos, nem roman-
O senhor M. declarou que é ele (sua mulher está fazendo atual- ces, Oll livros práticos, e não possui uma estante (seus livros estão
mente um curso de alfabetização) que se encarrega dos documen- num armário). Q uando perguntamos ao senhor M. se ele ou sua
tos, mesmo que isso consista e m pedir ajud;:l (I amigos ou vizinhos, mulher lêem histórias para seus filhos, começou a rir, mostrando com
quando não compreende certos documentos que deve preencher ou isso que essa forma de interação pais-filhos, rotineira em muitas famr-
quando precisa escrever cartas, preencher cheques ... Tirando os Iias fra ncesas, lhe era totalmente estranha.
documentos obrigatórios, o senhor M. não utiliza de forma alguma De fato, o senhor M. lê textos ligados a práticas militanres, reli-
a escrita, pelas razões expos tas acima, em SlIa vida cot idiana. Não giosas ou polrticas. Possu i livros rel igiosos em árabe e lê "quase
possui um caderno de contas (e para que um caderno quando esta· todos os dias" o Alcorão, que consegue compreender (seu cunha..
mos desempregados e sempre em situação econômica precária?), não do esclarece: "Leio o Alcorão, mas não compreendo. Mas ele, isso
escreve lembretes, listas de coisas para fazer ou lista de compras ("Às ele até compreende") . Parece ter lido muitos livros "socialistas" ou

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

"comunistas", segundo seus próprios termos (Lenin, Marx, Engels, casa, e o pai confessa calmamente que não sabe se realmente fazem
Mao Tsé-tung), e define-se como um militante político: "Sou um ou não: "Não sei se estão fazendo outra coisa, não sei nada, de ver,
homem de esquerda"; \fÉ um verdade iro militante", diz seu cunha~ dade ... " Aliás, o professor de Mehdi nos diz: "Tenho a impressão que
do. Lutou. muito jovem, enquanto membro do Partido Social ista de não faz mais as lições em casa ... Ele aprende muito pouco das lições".
das ilhas Comores; pela independência de seu país, e passou onze O pai justifica que não ajuda os filhos, porque tem medo de ajudar
meses na prisão: "E o primeiro partido de oposição das Comores. é "mal ". Mehdi fica na escola até às 18 horas*". salvo no período do
o partido socialista das Comores. isso foi antes, ele foi criado em ramadã. Quando tem dificuldades para fazer as lições, pede ajuda ao
1968. e existiu até 75. e aí até a independência das Comores". Sua rio. uA gente pergunta pro meu tio porque às vez meu pai sai, não
mane ira de pensar se mostra inteiramente estruturada por estes está, saiu," Durante as férias, as crianças ficam em casa o u brincam
dois aspectos de seu engnjamento: um engajame nto muçulmano, que pelo bairro, e o senho r M. diz que só fazem lições se a escola pede
o leva a ensinar o A Icomo aos domingos à tarde a um grupo de jovens (mostrando assim que não conhece todos os pressupostos tácitos da
(que incluem seu filho Mehdi) e adultos, e um engajamen to polí- competição escolar, que estima, caso a escola não dê deveres duran~
tico voltado para o marxismo. O senho r M. é um t ipo de autod ida- te as férias escolares de verão, que seja "bOIl1", por exemplo, com~
ta que passou pelo militantismo religioso e político e que Sustenta prar cadernos de férias para as crianças).
um discurso no qual se mpre se misturam referências livrescas sobre O investimento escolar do pai é portanto bem fraco . Ainda que
seu país - históricas ("Ele é realmente capaz de te contar a histó- consciente de que a escola e sobretudo o diploma (que ele não pos-
ria de Castro ou de qualquer outra pessoa do mundo, mais do q ue sui) sejam imporrantes para se ter uma boa profiss~o na França, suas
pessoas como nós. que sabem ler o noticiário") e políticas- e expe- práticas efeti vas indicam mais uma preocupação moral de conjunto
riências pessoais. Fora da entrev ista, o senhor M. nos contou sobre do que uma preocupação especificamente escolar. No entanto. gos-
a assoc iação dos como rianos que acaba de criar (e da qual é presi~ taria que seus fi lhos não fossem como ele e que prolongassem os estu-
dente) para ajudar seus compatriotas e seus filhos a use darem bem" uos, deplorando ao mesmo tempo sua incapacidade de ajudá-los a nível
na escola ou em o utras at ividades, mostrando dessa forma que está escolar: la escolal "Ah. é, muito importante. porque, fico muito cha-
adaptando seu militantismo de origem à situação presente. teado. Tenho muita pena de não poder ir aprender na escola . Porque
Os pais exercem sua ação educativa essenc ialmente no campo hoje eu vejo, a gente precisa ajudar as crianças na escola, senão não
do controle uo comportamento mora l, que tem primazia sobre qual- consegue nada. Sem as escolas, não podemos ter médicos, cientistas.
quer outra dimensão. O pai não é, portanto, particularmente seve~ co isas assim. Acho que as crianças conseguem aprende r alguma coisa.
ro em questões estritamente escolares, ainda que não ignore as difi~ assim não vão ser corno a gente. Não somos nada, não quero que as
culdades de seu filho em francês e em matemática. Ficou bravo crianças fiquem como eu. Espero que ele aprenda uma profissão, se as
quando soube que o próprio Mehdi assinava os cadernos em seu lugar cri::mças têm alguma coisa, é bom".
para evitar sua raiva e as surras que os maus resultados pudessem pro~ Deixa o filho assistir à relevis"o quando volta ua escola e só a proí-
vocar. No entanto, disse que não toma nenhuma atitude especial quan~ be por razões de saúde ou morais (e não por razões escolares, classi-
do constata que as notas não são boas. Evenrualmente faz uso da pro- camente evocadas pelos pais atentos à hora de dormir em função das
messa de um presente como forma de encorajar o filho: "Não vou au las). Se o senhor M. não gosta que Mehdi assista durante muito
bmer nele. ta lvez depois, eu digo que precisa fazer um esforço para
aprender, às vezes digo que vou trazer bicicleta o u coisas assim, para * N,. França. CX1:. tC a r(l,~d" ljdaJc de as o..:TI<m~<b (H.:an:m n.1 ,,:>4.:01,. al'tÍ\ ,1:0. .lU!. b num .1 all -
\"KbJc ch:un.ld,\ "hunírio Jt· c:.tudo:o.livrt's", ondt' (,1:1;'111 , I:' I,,;i'l'~ l' rllOt.lc lll '>t.: r "J lId .lLl.l"
encorajar ele a estudar". As crianças fazem sozi nhr1s as lições de l·n· lltu"l mcllll· por ,dgu lll a:.::..:.tl'ntc do prn(c~"(lr ou C.~ t.I!!I ~ ri,1. (N.T.)

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PERfiS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tempo à televisão é porque, segundo ele, faz mal para os o lhos (e le Um fraco grau de escolarização, práticas de leitura essencialmen-
nos diz que é desde que estão na França que um de seus filhos preci- te lig'ldas ao Alcorão, que pouca relação têm com a leitura escolar
S" IIs"r óculos, e "ssocia o faro à prática de ver relevisão). O senhor
('em dúvida, não é por acaso que o professor nota que Mehdi lê "cor-
M. também limita a prática televisiva de seus filhos por razões morais: rc r..lInente", oralmente, mas que tem dificuldades "assim que pas~
não podem assistir a filmes ou programas onde se vêem cenas upor~ :"Iam para a parte de compreensão"), fracas práticas domésticas da
nográficas" ou violentas. Ele próprio e sua mulher não vêem filmes língua escri ta e um débil processo de racionalização das ati vidades
Umeio fortes", mas às vezes vêem filmes vio lentos. Da mesma forma, do mésticas (o filho "esquece os cadernos. não sabe o nde estão", segun~
se as crianças descem para brincar e mbaixo, perto do prédio, a mãe Jo o professor), uma v igi lância parental mo ral e não cspccifica me n ~
nilo gosta mui to, porque não quer que sigam "maus exemplos" (quc~ te escolar, SitwlÇão econômica instávei e modesta, um precá rio
brar, roubar, cusp ir nas pessoas ... ). O senhor M. também não gosta do mínio da língua francesa pe los pa is, chegada recente ao territó-
que seus filhos sa iam muito para brincar porque não pode ver com rio francês de Mehd i (agosro de 1990), que tem dificuldades em se
quem estão. Insiste também no fato de que as crianças não fazem muitO exprimir claramente durante a entre vista l /' - o conjun to comb i~
baollho no apartamento, e explica que andam descalços para não fazer nado dessas dificuldades (do ponto de vista do universo escolar) per-
barulho quando pulam. Ao ressaltar por várias vezes a questão dos mite-nos entender o "fracasso" de Mehdi, visro na escola como um
comportamentos "corretos" ou "incorretos" de seus filhos, o senho r aluno "d ifíci l de se entender" , "desinteressado", "que não estuda em
M. prova sua profunda ligação com a inculcação de um ethos. casa'\ e U com problemas de lógica e de compreensão em leitura".
Insiste bastante também no faro de que as crianças devem se cur- A descrição fina da configuração familiar da criança permite real-
var à vontade dos pais (UAqui, entre os franceses, dizem que a partir mente ver que o ufracasso escolar" de lima criança não está neces~
dos 18 anos as crianças podem fazer o que quiserem. Entre nós não é sariamente associado à "omissões dos pais", mas, neste caso preci~
assim, pois mesmo eu, meu pai, estou sob as ordens de meu pai, num so, a uma distância grande demais em re laçHo às formas escolares
posso fazer alguma coisa que ele não quer"), e que não cabe a eles "deci- de aprendi zagem e de cu ltura.
dir fazer alguma coisa". Reconhece ficar atenro pam que eles não que- No entanto, o faro de ter um pai militante e que leu bastante,
brem nada, não roubem, não façam mal a ninguém, "não joguem de ter uma mãe que freqüenta um c urso de ;l lfabet ização e um tio
pedras", etc. C hegou até a pedir a um professor do materna l para que foi professor, em um contextO em que o contro le do compor-
"bater" no pequeno se ele cuspisse nos seus colegu inhas ou no profes- tame nto m Orri I desponta como re lat ivamente estrito , em que a l uci~
sor, pois o viu fazê~lo lima vez em casa. É sempre com a preocupação dez concem ente à importânc ia da esco la no futuro profissional foi
de manter sua autoridade que o pai deixa de hrincarcom os filhos, por adq uirida e em que a frustração escolar e profissional dos adulros os
medo deperder o "respeito" deles. Quer ser levado a sério e inspirar leva a projetar as esperanças sobre os filhos (cf. o que disseram
medo ("E do medo que vem um cerro sentido de respeiro") quando sobre o futuro dos filhos, mas igualmente a vontade associativa de
diz algul1"1a coi&1, e a brincadeira 050 se presta, segundo ele, para ajudar as crianças comorianas a use darem bem"), deixa entrever a
demonstrar sua autoridade: "Pois se estão acostumados a brincar, se possibilidade de cond ições mais favoráveis de "êxiro" na escola pri-
um dia você diz para ele 'Pare defa,er isso!', ele diz, 'Eu não paro'. Por mária para os dois irmãos mais novos. A configuração familiar de
exemplo, a mãe pode 'inventar lima história' para eles irem dormir, socializaç:io não se fanua nunca definitivamente. e as diferentes crian~
mas ele não, porque, explica, 'se e les não tiverem medo de mim não ças oriundas de uma imigração nunca estão codas na mesma posi~
ir"o se deitar' ". Ele só pode brincar com os mais velhos (que já "com- ção. O faro de ser o mais velho, como Mehdi, não favorece eviden-
preenderam" sua autoridade), mas não com os me noresl~ . temente seu destino esco lar.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

comece a trabalhar", "É preciso ficar atrás dele", "Consegue devol- ., ,'" capacidade, (socialmente constituída) de cuidar de sua educa-
ver uma folha em branco sem se importar", O conjunto destas apre- ção, de sua presença a se u lado, o u, fina lmente, de sua disponibili-
ciações ressnlta a pouca implicação que N'Dongo tem em relação ao Jade de transmitir à criança certas disposições culturais ou aco m-
trabalho escolM, Evidentemente, dizem que ele não é "escolar", que panhá-Ia na construção dessas disposições.
esquece de pedir para ass inarem seus caJernos, que esquece Ou perde De fato, os indivíduos que detêm as disposições culturais mais
o material, que o material está sempre em desordem o u então que "não compatíveis com as exigências do universo escolar nem sempre são
é capaz ou não tem vontade de se organizar", E não é por acaso que - por conta da distribuição dos papéis familiares ou do tempo de
é no domínio mais próximo das prÁticas que lhe são mais comuns que dispõe - aqueles que estão em contato com a criança com mi-lis
(N'Dongo vai sempre fazer compras para a m8e), a numeração , que freqüência e de maneira mais duradoura,
obtém "boas notas", enquanto os "problemas", ao contrário, fazem Acontece que o tempo de socialização é uma condição sine qua
com que "decaia", Descrito como alguém "apagado ll no conjunto da non para a aquisição certa e duradoura dessas disposições, das manei-
classe, os professores esclarecem que "no recreio não tem esse tipode ms de pensar, de sentir e de agir, Ao contrá rio do patrimônio IlHlte~
comportamento", Acontece que a fratu ra entre a configuração fami- rial que pode ser transmitido instantaneamente, sem prazo (o que
liar e as formas escolares de vida é tal que, na escola, N'Dongo só pocle não garante, no entanto, de fo rma alguma a capacidade socia lmen-
estar com a IIcabeça na lua", te constituída do proprietário de faze r uso dela, f, mais que isso, de
ti rar dela o melhor partido possível), as disposições, os esquemas men-
A herança difícil tais sociais só podem ser adq uiridos ou construir-se através de rela-
ções sociais duní.veis (versus efêmeras, ocasionais) H, É isso o que
A tcndi-m:ia J u patrimônio (e, n c~ t c $Cnt iJu, demonstram, de n1aneira caricatural, as matrizes de socialização
dl'luJ,[.1 C~l ru l ura !)O(. I,I I) e m pen;cvcmrelll~U
M:r:>(; podo: !te re.lh:ar ~ ,\ hcr, m ~' ,1 hl'nl. , () her-
"to tais" (convento, caserna, prisão, internato, escola ... ): através do
dc,r\" '>C , JlI,r tntcrlll éJLt)d:14Uck'~ que ri::1ll pnl- isolamento dos seres sociais durante um longo período de tempo em
v,,,nrl ,II,wntc ti cl,cargu l' que Jc\'cm rt-"scgur,l r um espaço fech ado e isolado do exterior, pela gra nde promisc uida-
!tU:I.llIICC1t.,\:ll', "o m u rtti ( o u ~j<i , a I'mpricd ••dc)
Jc entre esses seres sociais e pela coerência e sistematicidade da orga~
:l1'0dcr:J-:.c du v iVI) (ml ~CJ,I, um prurrkdrin
db I XJ~ I ~ ll' :11'1 0 .1 h l,'rJ,Ir)" ~~ , nização das ativ idades, tornam possíveis os efe itos de socialização
coerentes e duráveis, É por essa mzão também que, ainda que os soció-
Como herdamos? Quais são as condições sociais, relacionais, para lugos nunca tenham aba ndonado completamente o estudo das rela-
que lima disposiçãu cultural possa ser "tra nsmitida" ou, em todo caso, ções efêmeras, ocasionais, preocuparam~se muito mais em analisar
passada, de uma maneira ou de outra - ;:. força de se incu lcar, Je as relações mais freqüentes, duráveis, estabilizadas, cristalizadas e
forma expressa ou difusa, direm ou indireto, etc. - , de um corpo IllUiti:1S vezes institucionalizadas, pois o exame dessas relações per~
soc ia lizado a um outro corpo socializado? As más condições de mite compreender as disposições sociais mais características e co ns~
h erança que desco brimos em certas condições familiares nos for- titutivas dos se res sociaisZ4.
çam a colocar questões que as h eranças que deram certo c as tr(1n s~ Os perfis que veremos aqui (bem como os de núme ro 8, 9 e L2)
missões fe lizes tendem a escamotear, mostram bem que as IIheranças" - com "sucesso" ou fracassadas -
Dado que o "capita l c ultural" está condenado, de um lado, a viver não são nunca processos mecânicos, mas cfetua m~se sempre, para
em estado incorporado, sua "transmissão" ou sua "herança" Jepen~ a criança, nas re lações concretas com outros membros da configll~
dem da situação de seus portado res: de sua relação com o filho, de ração familiar, que não se reduzem às figuras, normalmente sacra-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONfiGURAÇÕES

lizadas e reificadas, do Pai e da Mãe. A economia das relações afe- ras c analfabetas. Os pais de Ryad, que nunca foram à escola, ram-
tivas no se io da família, objeto de pesquisa de psicólogos e psica- hém são analfabetos tanto em francês quanto em árabe. O pai veio
nalistas, nunca trata de seres c uj a única caracte rística seria ocupar ".z inho da Argélia com 19 anos aproximadamente, e fez cursos de
uma ou outra posição em uma estrurura familiar abstrata (Pai, Mãe, lurmação profissional que o capacitou a operar máquinas eletrôn i ~
Filho). Essa economia efetua-se entre seres sociais com múltiplas " .. Je concreto, uma profissão qualificada ("Num é fácil fazer fun-
facetas sociais e cognitivas, formando entre si uma configuração social tionar uma máquina de concreto nas obras püblicas"). Ele tem 57
particular; e para cuja apreensão é necessário que se passe de um ,1Il0S e faz cerca de 37 anos que está na França. Atualmente está
modelo de relações entre figuras abstratas, desencamadas (despro- dese mpregado, pois sua empresa atravessou problemas financeiros,
vidas cle corpos socia lizados) de um modelo sociológico de relações c tem dificuldade para encontrar trabalho. A mãe, de 49 anos, veio
de interdependênc ia entre seres soc iais que ocupa m lugares em pnra a França com os filhos em 1971 (há 2 1 anos), e nunca traba-
configurações sociais e possuem capitais Ou recursos ligados a esses lhou, Repetem muitas vezes que entem muito não ter freqüenul~
lugares, bem como à sua socia li zação anterior no seio de outras con~ ,-lo a escola e não saber ler nem escrever. Para eles "faz uma falta
figurações sociais. enorme": uÉ, é, eles falam sempre: 'Que pena, eles não sabem ler,
n~o sabem isso, não sabem aquilo"',
• Perfil 4: A difícil situação do filho mais novo. Ryad, o mais novo da família, tem 5 irmãos e I irmã (Nora): um
Ryru1 B, nascido em L)'on, com 1 ano de atraso escolar (repetiu a pré~
I irmão de 29 anos que fez um curso técnico de soldador e está tra-
esco/a) , obteve 3,5 na a'valiação . halhando nisso, outro de 28 anos que não conseguiu terminar um
curso profissio nalizante de mecânica geral e que está atualmente
Chegamos ao encontro por volta das 14 horas de um sábado. Um fazendo estágios na Agência Nacional para o Emprego (ANPE), um
homem, jovem, abre a porta. Explicamos que havíamos marcado ,'litro de 25 anos que fez um curso técnico de 12 grau (BEP)" de
um encontro com Nora, a irmã de Ryad. Ele pede para esperar. Logo Pllltorde paredes, uma irmã de 2Z anos, Nora, que respondeu a nos-
depois, deixa~nos entrar. Nora nos cumprimenta. Estava descansan- sas perguntas e que esul fazendo um curso técnico de secretariado
do por causa do ramadã, que a deixa cansada, O homem é seu irmão após ter concluído O 22 grau em nível F8" , um outro irmão de 19
mais velho, de 29 anos. Entramos e ela diz para senmrmos em uma anos, excepcional, que está em uma esco la especiali zada, e um
cadeira, na sala de jantar. Irmão de 17 anos, que atualmente está na 7" série de um curso téc-
Seu pai estava donnindo em um cõmodo contíguo à sala de jan- nico de 12 grau, depois de um percurso escolar difícil (está com 4
tar, separado apenas por uma cortina, Não o vimos mas o ouvimos ron~ anos de atraso). Vivem ainda com os pais Nora, Ryad e seus dois
car ligeiramente. A mãe vai se levantar durante a entrevista. Nós a irmãos de 17 e 29 anos.
cumprimentaremos, Ela não se mostrará nem espantada nem parti~ Ryad, que entrou para a escola maternal quando tinha 4 anos e
culamlenre interessada em nossa entrevista. Durante toda a conver~ 2 meses, foi rapidamente considerado como uma criança "inadap-
sa Ryad estará numa festa anual regional. que acontece em lima praça t::lda" em re lação 8S exigências escotares, "Cri::lnça medrosa, pouco
não muiro longe de sua casa, com seu irmão de 17 anos, A entrev is-- à vontade na classe", que "fica sozinho'\ "muito pouco maduro para
ta decorre normalmente, sem barulho. Nora parece estar intereSS>lda aprender a ler", se mostrava "superprotegido" pelos pais, o queri,
U

na conversa e espera sinceramente que Ryad vá melhor na escola. dinho", "começou a saber ler em voz alta aos 7 anos e I O meses".
Os avós de Ryad morreram, menos a avó materna, As famílias, Ryad é a única criança de nossa amostragem que foi indicada para
tanto do lado paterno quanto materno, eram argelinas, agricul[o~ seguir aulas de recuperação no final da 2" série. Seus dois professo-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

res O consideram difícil de ser "entendido", com "enormes proble~ I,ic il de achar quando preciso. Coloco os papéis do seguro-desempre-
mas de compreensão) mesmo na comunicação co loquial", e "que se go de lado, ou o envelope com os hollerichs, quando ele estava traba-
n
deixa levar pelas brincadeir:olS dos o urros H , lhando, em outra parte, assim fica bem c1assificado , Nora copia as
Vive em uma família na qual foi uma menina quem se deu receitas de cozinha e coloca num caderno, e é ela também que tem
melhor na escola de maneira flagrante, conseguindo obter o d iplo- condições de fazer anotações antes de dar um telefonema, pois é a encar~
2
ma de 2 grau, e que depois foi fazer um curso profissiona liza nte. regada dos documentos administrativos da família: "Faço uma peque-
Não é por acaso que é e la quem responde a nossas perguntas em uma na lista pra num ter de telefonar muitas vezes". É ela também quem
fum ília na qual é a responsável pela gestão administrativa e pelo acom- f~1Z a lista de compras, Mas, em contrapartida, é seu pai quem contro~
panhamento esco lar de Ryad. Tudo repousa sobre ela, o que pode h1 as contas, discutindo com a mulher, a partir do extrato de lima cader~
explicar em grande parte a dificu ldade escola r de Ryad. neta de poupança. Esta não é uma tarefa pam N ora, que é mais do
Ainda que os pais sejam analfabetos e tenh am O Alcoriio como gênero mulh er~ad ministradora que mlllher~execlltiva17, Finalmente,
um objeto sagrado que não é lido, Ryad não vive em um universo mantém um diário pessoal e se corresponde bastante com os primos,
totalmente desprov ido de qualquer prática de escrita. É, sem délvi- primas Oll a avó, que vive m na Argélia, e (em também uma corres~
da, sua irmã Nora que representa O pólo mais instruído da fa rníl ia pondente americana. Ryad vive, portanto, rodeado de membros de
de imigrantes argelinos ana lfabetos: compra o jornal de duas a três ~lIa família que lêem, de uma irmã que organiza a vida familiar C0l110
vezes por semana (Le Progri!s ou Lyon Matin), foi assi nan te durante umél segunda mãe de fa mília. mais escolarizada e racional que sua pró-
do is anos da revista L' Étudiant, e pede emprestados com freqüênc ia pria mãe. No entanto , não basta estar "rodeado" ou "cercado" para
livros na Biblioteca Municipal de Lyon ou às a migas (romances, "h is- conseguir construir concretamente suas competências culturais,
tó rias verdadeiras, antigas"). Mas seu irmiio de 29 anos também lê É ainda Nora que m responde pe lo acompan hamento escolar de
"livros sobre a atua lidade", e seu irmiío de 17 lê romances policiais Ryad . Não tem te mpo de ir às reuniões na escola à noite, mas
e revistas e m quadrinhos. Ryad, de vez em quando, folheia h istórias conhece muito bem a situação de seu irmão na escola (qua l sua c1as~
em quadrinhos, mas sua irmã acred ita que não leia as histórias, con~ se atual, o fato de ter repetido a pré-escola ... ), e sobretudo SOlIS pro-
tentando-se em olhar as imagens: "Ele o lha, mas não lendo a histó- ble mas relat ivos à le itura em voz alta (e le tropeça nas palavras), à
ria, seguindo toda a história do começo ao fim. Lê, o lha as imagens leitura~compreensão, à gra mática e à expressão, É e la que contro ~
assim ou então uma página, depois de ixa o li vro de lado, nel!, la seus estudos, informa ndo os pa is dos resu ltados. Tenta supervi-
Nora é a responsáve l por tudo que se relacione com os documen- sionar suas lições de casa, mas repete várias vezes que nem sempre
tos escri tos, e isso desde a idade de 14-15 anos: "Da correspondência é possível, pois tem um horário muito sobrecarregado. Sobretudo
ou para responder RS cartas, sou eu quem me encarrego", Ela diz que chega muito tarde em casa: "Tento organizá- lo, mas é difícil, por
isso não Ué um sacrifício de forma alguma" e que gosta disso: "Tem CtlUSa de meu hon'irio. Ten to conversar com Ryad pra ver o que não
meus irmãos, que lêem a correspondência, mas como sabem que sou está indo bem, por que faz tantos erros no ditado, por exemplo, uma
eu quem va i)ogo responder ou preencher os papéis, então deixam pra palavra ou outra"; "Acontece que estou aqui só de no ite, nem toda
mim, né?". E ela quern redige as cartas administrativas, quem preen~ noite, porque não tenho tempo",
che a declamç;10 de imposto, que seu pai assina, quem preenche os Apesar disso, ela o obriga a fazer exercícios, quando tem te mpo,
documentos para a escola e quem classifica por ordem cronológica, e a estudar as lições. Quando os resultados não são bons, diz que faz
em pastas, os documentos da família, para poderem encontrá- los "chantagem" com Ryad em relação ao vídeo-game. Geralmente ele
facilmente quando precisam deles: "Faço uma triagem par" que seja começa a ch orar q uando ela faz isso. Pode privá- lo também de ver

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

televisão ou de sai r com os amigos, mas como diz Nora , IIfunciona pela leitura: HTento, começo a contar um pouco da história, para
na hora, depo is não". Ryad, portanto, faz os deveres norm almente t-entar arraí#lo, né ? Então, leio algumas palavras, conto um pouco
sozinho Oll com seu irmão de 17 anos, que não o aj uda muito. Às tia história por alto, mas nunca o fim. E[e sempre me pergunta
vezes a irmã lhe exp lica, o corrige, lhe dá outros exemplos e passa como é que termina (risos ), eu digo: 'Bom, leia e você vai ver como
outros exercícios. A hora da lição de casa parece ser muito desgas- termina, né?'. Daí, ele va i para o quarto, tenta ler, mas não se i, ele
tante para Ryad, que chora cada vez que tem que aprender uma lição: não lê. Faço duas o u três perguntas uma ho ra depo is, duas horas, e
"Ele aprende com dificuldade, mas aprende; chora, é um drama cada ele continua na primeira página. E olha que eu tento contar um pouco
vez que te m que ap render uma lição". C hega a ficar até as 10 e meia a história para facilitar um pouco, mas não". Poderíamos pergun#
da noite para faze r duas operações: "E ele ainda queria q ue eu fizes- rar se ela, sem saber, não está colocando o irmão diante de dificul #
se para ele". O que não é de espantar, pois lIesquece" freqüentemen# drtdes insuperáveis.
te de fazer as lições ou de ano tá- las no caderno. É preciso ficar "o Sua irmã acha que será necessário inscrevê#lo no honhio de estu#
tempo todo at rás dele", e Nora pediu a um de seus professores para do livre após a aula , durante os três últimos meses de escola, po is
ficar lIum pouco mais atrás dele". Durante as férias de ve rão, ele não tI"s 17h às 19h30 mais ou menos (ho ra em q ue volta para casa) ele
fez nenhuma rev isão, a não ser na semana que antecedeu a volta às fica brincando e não faz a lição ("Acontece que não tem ni nguém
aulas. Nora tra balha durante esse período, pro vave lmente para para cuidar disso, das 5h às 7h. E[e brinca demais, não faz a [ição"),
poder pagar os estudos, e n ão pode organizar melhor as coisas. e às vezes nem chega a vê- lo de noite. N a verdade Ryad é mui to
Deplora o fato de não ter mais tempo du rante o ano escolar para ma is ligado a seu irmão de 17 anos ("os do is são mais próximos, ele
fi car "atrás" de Ryad, que, se não for assim, acaba não faze ndo nada. é mui to mais próx imo de Ryad do que de mi m, porque tê m muita
Sua mãe, a cunhada, o irmão de 29 anos e o de 17 também fica m co isa em comum. Saem juntOS nos fin s de se mana. Q uando fazem
"atrás dele" para ele fazer as lições, mas parece que s6 a irmã é que as lições, fazem juntos") , que também está em situação de grande
con trola realmente essa parte. "fracasso" escolar (um dos professores nos infom13 que teve este irmão
Nora nos descreve Ryad como uma criança que não tem nenhum como aluno, e que ele "também t inha eno rmesd ificu[dades" ). Nora
gosto pela leitura: "Bom, eu tento o brigá- lo a ler, mas ele não gosta ressalta a existência de uma grande cumplicidade entre seus do is
de [er". Ryad n80 freqüenta a biblioteca, [ê ra ramente e quase nunca irmãos (UEstão sempre conversando, po is dividem o quarto"); o
pede um li vro: "Nunca ele vai dizer: 'Olha, esta tarde vô pegá um irmão e sua irmã representam portanto concretamente para Ryad
livro e vô lê, em vez de ir joga r bola de gude"'. No fim de semana, dois princípios de socialização contrad itórios (o IIsucesso" e o ufra#
quando ela te m tempo, às vezes lhe dá para ler algumas páginas de casso", a diversão e o esforço escolar), mas a cumplicidade entre os
alguns livros de bolso que guardou de suas aulas da 7' ou 8" séries. dois irmãos, fundada, sem dú vida, em parte , sobre uma identidade
"Tento obrigá- lo a ler ao menos duas ou três páginas por dia, mas masculina comum, faz pender a ba lança para o lado mais desfavo-
ele n;;o gosta de ler. Fica parado na frente do livro. Faço umas per- nível a uma boa adaptação escolar.
guntas, digo: 'Me diz qual é o ass un to, q ual é a história"' , mas ele Nora conta que Ryad, quando volta da escola, vai logo to mar
não gosta de ler. Q uando ela faz perguntas, percebe que ele não [eu lanche, e sai para brincar com seus amigos. Pode vo ltar para casa
ou que não guardou nada: "E[e fica ali , com o livro na frente dele, [á pelas [9h ou faze r a lição antes que ela chegue. Pode ficar fora
num se i, ele não lê. Faço algurnas perguntas, é como se eu fa lasse até às 20h e dormi r entre 211130 e ZZh, no máximo 22h30, e isso,
(risos ) com um surdo. Ele não gosta de jeito nenhum de ler, não sei todas as noites. Às vezes, no domingo, Ryad almoça sozinho por-
por quê". Portanto, Nora tenta, infrutiferamente, provocar#lhe o gosto que fica brincando com seus amigos e só volta depois das 13h.

11 0 111
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

Parece que Ryad se di verte e sai bastante: vê telev isão demais (toma lhe uava frases. É uma senhora que cuida da cantina. Era muito sim #
o café da manhã vendo desenho animado), brinca com seu vídeo- p,ítica com ele. Fazia com que lesse certos ... Era superlegal, não o
game, brinca fora com os amigos, va i ao estádio de futebo l com o rempo todo, mas de vez em quando". A figura da "senhora da canti-
irmão Je 17 anos, pratica atividades esportivas na quarta#feira à tarde na" que deu atenção a Ryad, consagrando- lhe um pouco de tempo,
por intennédio da escola. O controle que é exercido sobre ele é, então, ci o exemplo de uma si tuação, excepcional e não durável, na qual ele
bastante limitado: diz respeito aos filmes a que pode assistir (nada p,>de constituir através de uma relação socioafetiva pri vilegiada, um
de violência nem de sexo), aos amigos que pode freqüentar e aos pri ncípio de mo ti vação ou de interesse pela leitu ra e pelas coisas esco-
limites terri toriais de suas brincadeiras fo ra de casa ("Eles não vão lares ("Chegava todo contente, falava disso com a gente à noite").
além de um certo perímetro, porque eu os proíbo de irem além"). A entrevista com Ryad permitiu confirmar os elos estreitos que
U ma outra faceta para explicar o que acontece com Ryad é for- '"cm com o irmão do qual se se nte mais próximo , o papel de con#
necida, de forma endógena, pela própria irmã, quando diz que ele t rolado ra que sua irmã exerce em matéri a de escolaridade ("Depois
fo i tra tado demais como o "filhinho m;:'Iis no vo", O uqucridinho" "super# da diz: ' Faz a lição'. Depois cu terminei, depo is ela di z: 'Me mostra
pro tegido'\ que "brinca demais" e nunca é colocado di nnte das suas o caderno"'" seu v ivo inte resse po r tud o o que é brincade ira em
obrigações. Parece, realmente, q ue Ryad não é sisrematica mente con- G 1Sa ou fora dela. Mas deixa sobretudo transparecer, através de
trolado em sua vida cotidiana familiar, no interior da qual passa muito Imprecisões semânticas, os d iálogos de surJo, os im plícitos, a ori ~
tempo desenvolvendo atividades lúdicas de todos os t ipos. Não está, gem das dificuldades de compreensão da qual falam seus professo-
portanto, nem em uma situação o nde poderia se redi recionar por si res. E que são, sem nenhuma dúvida. a conseqüência que sofre uma
mesmo para uma autod isciplina do ponto de vista escolar (em con- cmmça cujas produções de linguage m, no interior de uma fa mília,
seqüênc ia, por exemplo . de uma socializaçilo fa mil iar escolarmente não são retomadas pelos adul tos para corrigi- lo e levá- lo a ultrapas-
favoráve l), nem em uma situação o nJe as injunções dos pais sobre sar suas contrad ições, suas imprecisões, seus contra#sensos ...
a irnpo rtânc ia da escola pudessem encontrar os me ios de se conc re#
ti zar mlS formas de exercício de um contro le e de um acorn panha# "Eu... cu vô comê . Depo is eu. depo is minha mãe, cb se ... ela va i
mento mais regulares e permanentes de seu traba lho escolar. O fa to passc~t El<1 passe ia , passe ia, e eu vú pra fora pra passeá. U ma vez,

de ser " "filho mais novo", protegido, dentro de uma família sem gran- lIln <1 vez , 1IIrUl. .. um mo nte de ve is! Fi co da nd o volta, vô na minh a
p rim~ . A í fi gem c,. , a gente fal a, a gente fal:w<1, eles fa lava c ass im
des inves timentos culturais obje ti vos (pais analfabetos, irmãos com
l" assim . Depo is, é ... meu primo. sabe, ahn n ... . tcm. o mesmo t::\ma~
percursos escolares difíce is) ; o fato de ser escolarizado em uma classe
nho lj ue cu. En tão. ahnn n ... elHão ... a gen tc bri ncava um pouco
composta de casos difíce is e onde cada aluno não pode ser aco mpa-
no quarto . Então, ahnnn ... E ... ele si chama F. ... A i ele dissc, ahnnn:
nhado regular e constantemente (como observou um dos dois pro- 'Va i. vai ficéÍ do lado da tua mamãe. vai'. Aí. ahnn , mm ha, minha
fessores); o fato , finalmente, de só pcxler se beneficiar das compe- m5c . ela me di sse. ahnnn: 'Porque você não vai hrincá com o
tências de sua irmã de vez e m quando, de ter re laçõcs ma is estre itas F. .. .!' Aí cu disse: INão, num rô m<lis clIm vontade'. Ai ela me disse:
com um irmão mais velho em situação de IIfracasso" escolar. tudo 'Então, va mo, V~lmo voltá pm casa' , Aí a gentc vo ltou, vi as hom,
isto contribu i para explicar a situação escolar de Ryad. em 10 ho ras. Aí a gente ... depois dormi. minha mãe me dbse:
No ano passado, quando ele almoçava na cantina da escola, sua 'Dorme!'"
Irmã nos conta que fez amizade com uma servente que o fazia ler, e
ele voltava à tarde rodo contente conta ndo- lhes: "Ele conhecia uma Q U>lmlo relemos a entrevista de Ryad, tivemos im edi ~ra mc nte
senhora <lqui , não se i seu no me , que fazia ele preencher o tempo. Ela " impressão de um modo de discurso bastante típico das crianças

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULAIUS PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

escolarizadas em classes especiais, que já tínhamos eS[lldado a lguns caue iras exteriores e interiores mais distanciadas da socialização
anos antes" . O fato de fi carmos sabendo que Ryad fora indicado para escolar? De qua lque r forma Nora, se m exemplo anterio r em sua
freqüentar uma classe especial só confi rmou nossa intuição inicial. frarria , pôde, ao contrário de seu "irmãozi nho menor", encontrar
Através de suas respostas, Ryad nos permitiu evidenc iar um pres- um lugar na configu ração familiar, q ue se tornou compatível com
supostO às questões que nos colocamos no momento da entrev ista. scu lugar na escola.
Essas questões partem do princípio de que a c riança saiba si[llar-se
no registro do recorrente, do regu lar, do habitual ou do geral ("Em • Perfil 5: As más condições de herança.
gera l, me deito a tal hora, faço isso, aquilo, etc."), e portanto que lrh K., nascido em Lyon, sem repecência escolar, obret1e 3,8 na at}alia~
adote lima atitude um tanto uteórica" e classificatória em re lação à ção nacional.
sua pnSpria experiência. Acontece que Ryad não consegue suste n ~
tar esse registro. Seu discurso, pleno de implícitos (de "eles", "a gente" Q uando fomos marcar a entrevista, Jescobrimos que a senhora K.
que não remetem n ninguém de preciso ), confuso e contraditór io , n"o tinha lido o bilhete que tínhamos env iado. Pede a seu filho Ith
respondendo ao contrário daquilo que esperamos, é igua lmente um para procurá-lo, se bem que tenhamos insistido em que não havia pro-
discurso que toma a dimensão do fato particular relatado com a uti- hlema e que poderíamos explicar do que se tratava. Ela parece sem
lização do pretérito perfeito' e de demlhes não perti nentes ao tipo graça pelo fato de não ter tomado conhecimento do bilhete, e culpa
de discurso que se espera ("Um dia, com alguém, em tal situação, o filho , que, segundo ela, não lhe conta tudo. O bilhete estava no meio
aquilo se passou assi m ou assado e deste jeito ... "). de suas cai as, todo amassado, o que a deixa bastante aborrecida.
Desta forma, quando perguntamos o que faz quando vem da A sala onde vai acontecer a entrevista, a lguns dias mais tarde,
escola e não quando vai à escola, Ryad responde à segunda propo- é revestida por um papel de parede um pouco gasto, com algumas
sição. Em seguida, após uma retificação de nossa parte, diz que larga ;erigrafias pregadas na parede, entre as quais o busto de uma mulher
sua mochila, que e senta "na mesa'\ que vê te levisão, que toma l an~ com um chapéu de véu. Hav ia também uma televisão, um peqlle~
che, que vai brincar lá fora, que sobe, que pega um copo de água, no aquário com peixes e um grande aquiÍrio onde estavam colocados
que bebc, põc de vo lta, e sai de novo para fo ra com "e les", tudo isso alguns livros. O irmão da senhora K., que está vivendo provisoria-
expresso e m um reg istro superficial. mente em sua casa , entraní. por um ll'lOme nto durante a entrev ista.
Mas é necessário, para compreender melhor a situação de Ryad, Durante nossa conve rsa, a senhora K. nem sempre termina as fra~
sabe r o que ocas ionou o "sucesso" de Nora, que assim mesmo sesI e faz várias afi rmações vagas. Às vezes, fa la depressa, e seu rosto
repetiu a I " série ("Acho que foi por causa das companhias (risos), é muito expressivo. Fora da entrevista, vai falar muito dos proble-
era legal, me d ivertia pra va ler"). Uma socia lização fem inina mas do prédio, do fato de estar velho, de ter baratas e ser insegu-
menos vo ltada para o exterior da casa, um s istema de coe rções e ro e evocará também seu tédio durante os fins de semana. Quan-
responsabi lidades familiares mais importames por causa de seu sexo, do fomos embora, nos agradeceu, talvez por termos preenchido uma
a responsabi lidade muito precoce pelos docu mentos da família e daquelas tardes "morta is", ou talvez por termos nos dado ao traba~
certas tarefas domésticas não acabaram por desviar Nora das brin- lho de escutá- Ia.
A mãe de Ith, que tem 32 anos, é de nacionalidade francesa (como
• Em Irllnc..ê:. c,'Xbh:m dl)l ~ prt'l':nt m rcrfcn (l~ (ação concluíJ .• ) .lIu,.lmcnlc: U d .. Imgll.J· seus pais), e não está trabalhando atualmente, pois cuida do filho
~cm cM..rlla/hlt'r;1ri,I, I:.h,lInaJ;J Jcpa.s~ ~Im"k <P,I:.:-..tJU , unplc:,), c. d:. \'1,::1..":., t'mpn:gaJIl
elll li'nguôl mó,l em ((Irm." Je n;lrr:n i va.~; na IlIlgu.lgelO mal c t'.)(.rH,t nUflll,d, t'lII prt'g.t·~ menor. Ela trabalhou em "impressão" (gráfica), em seguida como
(l ,)(15.~ c(Jtnposé (p:l'''Klo co mro~ro) . (N.T.) digitadora, que aprendeu na prática, "num dia só". Depois de ter

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

Porém, as exigências do pai em matéria de leitura, de escrita e, de de não ser indisc iplinada, em resumo: "Você lhe dá trabalho para
forma mais ampla, de escolaridade são mais eficientes junto aos filhos fnzcr", di z () professor, Hela começa e pronto, sem discutir".
na medida em que ele se mOStra igualmente preocupado em estabe- Mas talvez a fi gura central do pa i explique também por q ue Sa-
lecer boas relações com eles, em sair, brincar, ainda que, cansado do lllna é julgada, do pon to de vista escolar, um pouco menos "brilhan-
tra balho, nem sempre tenha vontade: "Bom, às vezes num tôcom von- tc" q ue o irmão. O pai descreve uma di visão sexual de papéts bas-
tade, mas faço por eles, porque, bom, tô cansado, chego, tô mo rto, mas t:lnte clássica. É ele q uem fica atrás do filho, incita ndo-o ""v trar.se
eles são jovens, prec isam se mexê, nél". Responde também a desejos qtJando, por exemplo , um pneu de sua ~ici~lcta ~stollro. .u: Eu , por
deles por atividades, inscrevendo-os em clubes esporti vos ("Queria levar CXC ml)lo si sua bic icleta quebrou, eu dIgo: O lha. Eu do as peças e
, ,M
eles na gim\stica, mas é mui to longe. Num tenho tempo de chegar às e u digo: 'Ti v ira, eu ti compre i cola, você mo nta, a peça. as uma
5 e meia e levar eles até lá. Então coloquei eles no fute bol pra que eles vez montei uma peça pra ele". Em contmparttcIa, é sua mulher
se soltem um pouco"), ou então deixando-os participar de excursões quem é a respo nsáve l po r uma parte da educação das me nm a~ ,
organizadas pelo centro social durante as férias. :->obrctuJo e nsinando .. as a cozinhar um pouco: IIS o bretudo as m~ nt ~
De modo geral, o pai parece exercer uma autoridade baseada niio nas, e u digo pra sua mamãe, 'po rque elas s50 meninas ?um so e~
na violência física, mas na interiorização da legitimidade de suas pala- que vô tomar conta, é a mãe, de e nsinar a cozinhar, de f~:~ e las COZI~
vras pelos filhos. Assim sendo, ele não bate quando os filhos trazem nharem fazerem umas coisas, num vai fazê mal pra elas . N a cons·
notas baixas, e "xinga" moderadamente , com a preocupação de não trução s~i al de sua identidade sexual, ,S alima te l~ de ajustar~se a
os culucar contra e le ou piorar a situação: "Num quero dizer coisa uma mãe bastante alhe ia à cultura escri ta e ao 1I111VerSO escolar.
demais. N um sô tão vio lento. G ri to com eles, mas .. . G rito pro bem
deles, mas não demais". Vimos também que o senhor T. verifica as Senrimento de inferioridade, sentimento de superioridade
lições de casa à no ite, mas, quando não o faz, demo nstra confiança
Minha Int lllç:.i o Illc \I.~ 11 Io:cnC:::1ue quc. IIn,llInen-
nos filhos. Isso não significa fa lta de autoridade. Sabemos que ele tc . toJo mi hem . c a l n hu<l Ill:-l. ' . 10 1'1\0 n n c ",nll -
sabe faze r~se respe itar rapidame nte, e que as crianças inte rio rizaram IflCntu de 1>egur.IOÇ:l q\l e e:qx-n mcntci l'nqll:m-
o respe ito ao adul to. Uma passagem da entrevista nos fornece um {(1 I1Iho línico, Rraça.> a ll. 1Il1tlr de meu. . . pa is \',

belo exemplo disso. De fato, quando as crianças chegaram da esco-


la, dutante a entrevista, Salima perguntou se pod ia brinca r lá fora, Em certos casos de "fracasso" escolar, podemos dizer que o con ..
e o pai respondeu-lhe uma só vez, pela negativa: ("Não, e feche a fli to cultural é duplo para a criança. Enquanto ser socializado pelo
porta, Sa lima"). Ela não fez nenhum come ntário , e não ins i stiu~7 . A grupo familiar, ela transporta para o universo escolar ~sque n:as com ~
nosso pedido, o senhor T. comen rou esse aconteci men ro mais tarde portamentais e mentais heterônimos que ~cabam por Im~eJI~ a com~
durante a entrevista, di zendo: "Em princípio, quando digo pra eles preensão e criar uma série de ma l ~e n[e ndldos: esse ~ 0 . pnmelfo con ~
fazerem alguma coisa, eles niio d izem não. Porque são jovens. Q uan- flito. Mas, vivendo novas fo rmas de relações SOCiaiS na esco'~, ,<.1
do lhes digo qualquer coisa , é qualque r coisa. A í eles num podem criança, qualquer que seja seu grau de resistência pata com a socmIt-
me d izer não. D igo: 'Vai fechar a porta, vai buscar tal coisa' , e le num zação escolar, interioriza novOS esquemas culturaiSque leva pa.ra o Ul~l ~
vai me di zer não. Nenhum dos três va i me dizer não. Estão habi tua~ verso familiar e que podem, mais ou menos confonne a cOl:flguraçao
dos". Esse modo de exercício da autoridade familiar está sem dúvida fa miliar, deixá-Ia hesitante em relaçiio a seu uni verso de o ngem: esse
bastante ligado à capac idade, observada pelo professor, de começar é o segundo conflito. O "fracasso" escolar é. entã~, o ~r~uto ~e,lIm
a estudar quando ele lhe diz, de ser discreta, de não fazer barulho, conflito tanto entre a criança e a escola (entre a famtlta e a esco~

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

la", como se diz freqüentemente de mane ira lap idar, mas essa forma \ :1:-', da Htransmissão dos sentimentos" é importante , lima vez que sabe·
sumária de colocar o problema desvia o olhar da sutileza do duplo con- 1I111S que as relações sociais, pelas mllltiplas injunções preditivas que
flito vivenciado na intersecção de duas redes de interdependência) engendram, são produtoras de efeitos de crenças individuais bem rea is.
quanto entre a cr iança e os membros de sua fam íl ia.
Po r consegui nte , a maneira como os me mbros da configuração • Perfil 11: Um sentimento de "inferioridade cultural".
familiar vivem e trata m a experiênc ia escolar da criança, reviven~ Alberto C . . nascido em Bron, sem nenhuma repetência escolar, obteve
do, às vezes, através dela, sua própria experiê nc ia esco lar passada, nota 3.3 na at1aliação nacionaL.
feliz ali infeli z, se mOStra como um e lemento cen tra l na compreen.
são de certas situaçõcs escolares. Os adultos da família, às vezes, vive m A entrev ista é feita com os pais de Alberto. Estamos sentados
numa relação humilde com a c ultura escolar e com as instituições "m volta da mesa da sa la de jantar. A peça tem poucos móveis: um
legítimas e podem transmitir à criança seu próprio sent imento de relevisor, uma cômoda ba ixa onde estão colocados numerosos bibe-
indignidade cu ltural ou de incompetênc ia (cf. os Perfis 11 e 12 e lús e uma Virgem no centro, um pequeno apare lh o de som e um
também o Perfil 8). Mas, ao contrário, podem comunicar o senti- pequeno sofá num canto. Depois da entrevista, o senho r e a senho-
mento de orgulho que experimentam d iante dos bons resultados esco- ra C. nos oferecerão vi nho do Porto, de sua terra nata l, com orgu-
lares da criança, ou então olhar com benevolên cia a escolaridade lho, e, quando for mos embora, nos agradecerão.
da criança, apesar da d istância que os separa do mundo escolar (cf. O senhor e a senh ora C,) in ic ialmente, estão muito intimida·
os Perfis 13 e 14 e também os Perfis 16 e 25). dos. Fica m à nossa frente com as rnãos sobre a mesa , quase como
O apoio mo ral, c]fetivo, simbólico se mostra tanto mais importan~ numa situação de exame . Por diversas vezes, demonstram que
te quanto sejam pequenos os investimentos familiares (por exemplo, estão prestando atenção no que estamos uizendo e que querem pare#
o caso dos pais analfaberos). Ele possibilita à criança senti r-se inves- cer "bons pais". Permanece m muito prudentes em suas respostas,
tida de uma im portância exatamente por aqueles de quem ela está que são sempre razoave lme nte c urtas, e, na maior parte das vezes,
em via de separar-se. Com efeito, como sublinhava Maurice Halb- parecem ter por princípio a vo ntade de "responder bem". Ao
wachs a propósito da dor (psíquica ou fíSica), esta se mostra mais supor- mesmo tempo, tudo na atitude deles evoca a humildade, o senti-
táve l quando podemos imaginar "que ela pode ser experimentada e mento de não ser m uito importantes. Parecem sempre espanta~
compreendida por vá rias pessoas (o que não seria possível se perma- dos quando lh es fazemos perguntas sobre le itura o u escrita, mas
necesse uma impressão puramente pessoal e , então, única)", pois nos nunca ousarão cOntesta r a legitimidade das perguntas ou a utili-
parece, então , que "transferimos uma parte de seu peso para os o utros, dade de fa lar das práricas que evocamos.
e que eles nos aj udam a suportá-Ia"" . E, se a criança consegue, no ponto A fa mília C. é portuguesa . O pai, 32 anos, paisagista (ou "jar-
de cruzamento da configuração familiar e da configuração escolar, tor- Jine iro", como diz em um determinado momento), ch egou à França
nar o traba lho escolar o local de construção de seu valor ou de sua há I O anos. Foi à escola primária durante 4 anos, e m Portugal, e
legitimidade própria, então as "desvantagens" de origem podem até gostaria de ter continuado os estudos. Entretanto, seu pai n~o que,
tornar-se uma fonte de desafio suplementar para a criança. ria que ele continuasse, pois "era preciso trabalhar", e foi o que ele
A uherançal! familiar é, pois, também uma questão de sentimen# fez depois dos 11 a nos, no sítio da família. Na verdade, seu pai e
tos (de segurança ou de insegurança, de dúvida de si ou de confiança sua mãe são lavradores, ana lfabetos, e todos, na época, traba lha·
em si, de indignidade ou de orgulho, de modéstia ou de arrogância, de vam com eles n a propriedade em que eles eram meeiros. O senhor
privação ou de domínio ... ), e a influência, na escolaridade das crian- C. viveu com seis irrnãos e irmãs. Destes, o que foi mais lo nge na

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfIS DE CONfIGURAçÕes

escola conclu iu o primário. Foi durante férias em Portugal que o . iL· tudo" ("E depois, se vejo que me inte ressa, continuoi senão,
senhor C conheceu sua futura mulher. VirO a págin a"), mas se m grande con v icção. A mãe diz que não lê
A senhora C, de 28 anos, atualmente está trabalhando como ope- I''''que não gosta de política ("Principalmente po lítica, não me
rária numa fábrica de encerados de caminhão e cortinas de lona. Veio Interessa, então ... Ah, tenho h orror disso"), associando, dessa
de Portugal para a França com a idade de 4 anos. Foi à escola até a 4" h mna, espontaneamente Ujornal" a Upolítica". O senhor C. lê, todas
2
série do 1 grau, e tinha, segundo ela, 15 anos (o que indica ou uma ilS semanas, revistas, que ele chama de "livros", sobre automóve is
escolarid:de particulannente difícil- 5 anos de atraso - ou uma supe- (Auro- Plus), e sua mulher compra o que ela c hama de "roman ces",
restlmaçao da Idade de sa ída da escola primária). Em suas palavras, que são "fotonovelas", mas "só quando me vem na cabeça", pre~
ela oscila entre o arrependimento de ter parado de ir à escola e a ausên- eisa e la. Eles também compram um gu ia de TV (Télé 7 lOUTS), que
cia de arrependimento: "Bem, eu fui até a idade de 15 anos. Até a 4" ele decla ra ler inteiro ("A gente lê tudo, hein, eu leio tudo"), e
série, e depois parei. Não fava indo muito mal. Mas também não tava ela d iz ler apenas a parte da programação.
indo muito bem, não. Ah, me virava. Das vezes, os jovens, a gente se Fo ra disso, ambos não lêem. Ele não tem livros práticos ou téc-
enche da escola e então pára, a gente prefere trabalhar. Foi o que acon- ni cos , e ela tem um livro de rece itas, mas não o consu lta (ela diz
teceu com igo. E depois, mais tarde, a gente se arrepende, Or3. A gente que cozinha "assim" - subentend ido de cabeça ou "por intuição").
t113, se a gente tivesse ido mais adiante". "A senhora se arrepende?" Não lêem romances ou histórias em quadrinhos, nunca foram assi-
IINão, acho que não, não necessariamente. Não, não me arrependo." nantes de uma organização de venda de livros por correspondên-
Na ocasião, ela tinha vontade de trabalhar, e foi o que fez. Faz 12 anos cia, não vão à biblioteca e não têm biblioteca em casa. Se têm um
que está empregada na mesma empresa. Seu pai é paisagista no mesmo Jicionário (mas não enciclopédia), é apenas para Alberto usar. Eles
local que seu marido. Foi ele quem conseguiu que o senhor C fosse não o utilizam nunca, e constatam que Alberto também não O lIti,
contratado. A mãe da senhora C, que também é a "babá" de Alber- liza muito: "Bem, o dicionário a gente comprou principalmente pra
to, nunca trabalhou (exceto fazendo algumas "fax inas"). Não lê nem ele. Porque uma vez ele pediu um. A gente comprou c depois, no
escreve em francês, só em português; na maioria das vezes, fala em sua fim das contas, ele não usa muito ele. Ele diz: 'Mãe, prec iso de um
lí~gua de origem. A senhora C tem um innão e uma irmã que, dos dicionário" f, no fim das contas, ele só usou uma vez e nunca mais".
tres filhos, é a que foi mais longe nos estudos (7" série). Esse dicionário que tem em casa, e que não tem nenhum usuário
O "fracasso" esco la r de Alberto (que é a ünica criança depois pelo lado dos pais, é o exemplo típico da situação de ruptura que
da morte, no início do ano esco lar, de sua irmã) pode ser explica- Alberto pode estar vivendo. Os livros que, no universo escolar, estão
do, Como em todos os casos observados, não por uma causa deci~ investidos de um grande valor (e Alberto não se engana quando esco-
siva, única, mas pela combinação si ngular de características fami~ lhe, no decorrer de sua entrevista, antes a leitura do que a televi-
liares bastante gerais. Inicialmente, trata,se de pais que tiveram são) permanecem em estado de "letra morta" no âmbito do universo
~rna .experiência escolar extremamente curta (caso do pai) ou familia r. Os contextos de leitura que se oferecem a ele no interior
IIlfeJ.z (caso da mãe). Por causa de sua socia li zação escolar, não de sua família são raros e pouco variados. Se íl mãe se espanta s in~
desenvolvenllTI um grande interesse pela leitura e, entre o utras, ceramente com o fato de que Alberto apenas utilizou o dicionário
pela leitura de livros, totalmente ausente de suas práticas. O pai uma vez, já que o comprara porque ele tinha pedido, ela não ima-
lê jorna l "não todo o tempo" e só o compra muito raramente. Afir, gina que é a re lação entre a criança e o dicionário que não é susci,
ma que foi nos jornais cl i,lrios que aprendeu a le r o francês sozi- tada (como nas famílias em que os pais dão o exemplo natural cle
nho, mas que "é mui to difícil"; declara ler nos jornais "um pouco uma utilização cotidiana do dicionário) ou organizada pelos adul-

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

tos. O senhor e a senhora C. compram-lhe livros "de tempos em Ii 111((0 da entrevista, numa espécie de humildade e de grande timi-
tempos", mas dão o exemplo de Picsotl (revista de história em qua- dez. O discurso do pai, fora da entrevista, sobre os "pobres" que têm
drinhos), de Martine (álbum) ou de ,\lbuns com figuras para colar de "se calar" e os tl ricas" que decidem por eles realmente indica a
(uas tartarugas N inja), mas não pequenos romances (ele próprio diz maneira como e le se percebe.
não pegar livros sem imagens). Os pais de Alberto vivenciam, além disso, uma série de defasa-
As práticas familiares de escrita deles também não são muito fre- gens em relação à escola que indicam a que ponto estão excluídos
qiientes. Como sempre acontece nos meios populares, é a senhora do universo escolar, apesar da vontade de ajudar o filho da melhor
C. quem se encarrega de escrever as cartas administrativas, de preen~ maneira possível. É ainua a senhora C. que mais responde às pe r-
cher o formulário de impostos ou cheques da família, de escrever os guntas referentes à sua escolaridade . Com efeito, no âmbito de uma
bilhetes pa", a escola ou de assinar os papéis da escola. É ela ainda divisão sexual, bastante clássica, dos papéis familinres, é ela quem
que, às vezes, deixa bilhetinhos para O ma riu O ("Às vezes, sim, deixo cuida da sua educação. É ela quem vai às reuniões (ele não conhe-
um bilhete . Por exemplo, quando preciso que compre alguma coisa, ce o professor) e diz que Alberto tem muita dificuldade em orto-
porque vou chegar mais tarde: 'Será que você pode fazer isso pra grafia, matemática e leitura, mas julga que "está indo melho r" na
mim?'''), que anota coisas num calendário ou que, às vezes, faz as ano~ escola desde que está indo à fonotempia ("No final das contas, é
tações prévias para um telefonema quando há várias coisas a pedir. graças a ela que ele aprendeu a ler, porque não sabia absolutamen-
Seu marido se encarrega apenas das cartas em português, quando pre- te ler. Ele ainda precisa progredir muito, mas se sai razoavelmen-
cisa escrever para uma pessoa de sua família em Portugal (a senho- te"), enquanto os resultados e os j~lgamcntos escolares permane-
ra C. não sabe escrever em português). cem constantemente negativos ("E um desastre", diz o professor).
Mas não fazem exammente suas contas (a senhora C. conhece Os pais foram convocados uma vez pelo professor, e a mãe imedia-
um colega de trabalho que as tem num caderno), não redigem lis- tamente acred ito u que ele tinha feito uma "bobagem" ("Minha
tas de coisas a serem feitas, a serem levadas numa viagem (!lÀ medi# reação foi: 'Que bobagem você andou fazendo, que besteira você
da que a gente arruma a mala, pega as coisas, põe dentro") ou listas ap rontou?' E ele me disse: 'Nada, não fiz nada'. E eu lhe disse: 'Mas
de compras ("Não, não. Sei mais ali menos, abro o arrnário, olho e se o professor me convocou, é porque você fez algu ma coisa. Você
sei mais ou menos o que está faltanuo. É raro quando faço uma lista, deve saber' . Ele disse: 'Não, não, não fiz nada'''), quando se trata~
ora."). Com seu modo de responder, o sen hor e a senhora C. nunca va dos resultados escolares de Alberto.
alisam, entretanto, dizer coisas que poderiam questionar a legitimi~ É ela quem "controla", todas as noites, sua mochila para saber
dade das perguntas: as práticas, mesmo as mais distanciadas do uni- se ele tem tarefas, quem o manda fazê-Ias se ele ainda não as fez antes
verso cultural de les, nunca são rejeitadas como inúteis ou incom, ue ela ter ido buscá-lo, à tarde, na casa de sua própria mãe, e é enfim
preensíveis. As respostas sempre revelam a mesma humildade, que ela quern verifica suas notas. Ela o manda refazer as tarefas (USe não
consiste em dizer que "talvez é ütil", mas que nunca "pensaram" e está bem feito, como aconteceu comigo várias vezes, risco e depois
que mostram que eles não se sentem, diante de nós, em posição ue mando ele refazer"), se o que fez estiver errado, e, às vezes, lhe faz
julgar sobre a utilidade de tais práticas. Da mesma forma, se não fazem ditados. A maneira como a senhora C. julga a ortografia correta das
palavras cruzadas diretas, e não jogam sCTabble, é porque ach,lm isso palavras mostra, nesse aspecto, também lima defasagem em relação
muito difícil para e les ("Tentei lima vez, não cunsegui, larguei'\ diz às exigências escolares: "Eu falo pra ele: 'Bem, você pega um cader-
a senhora C.). Parecem, assim, diante de nós, experimentar como nO que, depois, vou te fazer um uit<1do, pm ver o que você sabe'. Ele
que um sentimento de inferioridade cultural que transparece ao esquece uma letra e muita.s vezes põe uma a mais. Mas ele sabe. Não

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONf iGURAÇÕES

sei como ele faz, mesmo das vezes que e le não aprende, ele sabe". ,'m casa , a senhora C. é obrigada a repetir-lhe várias vezes, até
A senhora C. ju lga corretamente ortografada uma palavra mesmo erguendo a voz, para que ele comece a estudar ("Ele é teimoso, sim.
que esteja com "aproximadamente uma letra" errada, ao passo que l~ preciso pelo menos que eu lhe diga três vezes: 'Alberto, faz as tarefas'.
a escola considerará que um erro por palavra é sinal de um péssimo E logo depois, bem, ass im que e rgo um pouco a voz, que comece a
domínio da ortografia. ficar aborrecida, então, ele começa logo em segu ida"), A avó mater-
Os pais também não compreendem as novas regras pedagógicas na, que cuida dele desde seu nascimento, durante os períodos de férias
que abalam um pouco certezas e transtornam as poucas referências, c todas as quartas-feiras (ela o leva à fonoterapia e ao catecismo, a
ligadas à sua própria experiência esco lar, que tinham em relação ao CH,lJ quinze dias), é analfabeta em francês, só fala com A lberto em
sistema escolar. Criticam a escola por não dar muita tarefa, como português e não pode, pois, aj udá-lo a fazer as tarefas. Ela também
na época deles ("A gente acha em relação à nossa época - é, a gente nõo pnrece quere r obrigar o neto a fazê-las. Da mesma forma , nas
compara - , a gente acha que ... eles não tê m muita tarefa como a férias, os pais de A lberto compram-lhe um caderno de mrefas, umas,
gente, antes"), e acham que há pouca severidade (mesmo que pen- se cu não obrigo e le a fazer, ele não faz", diz a senhora C. Ele quer
sem que, em sua época, fosse muita (UE a gente, na nossa época, o brincar, e diz à mãe que as férias não são feitas para estudar: IIEle só
que a gente levou um chute. E isso não é método", diz O senhor C.) quer brincar. Ele diz: 'É as férias, não é pra estudar'''.
e pouca aprendizagem "de cor". Criticam também o método de Q uando traz más notas da escola, seus pais "ficam bravos" com
apre ndizagem da leitura mais global (eles não empregam essa pala- e le, mas sem se re m "maus". Eles lhe pedem que melhore, mas
vra), que não lhes parece bom, e ao qual parecem atribuir a respon - nunca o punem: "A gente não diz: 'Bem, vais ficar de castigo, sem
sabilidade da dificu ldade de leitura do filho. O senhor C. diz: "Eu te lev isão, vamos te deixar de castigo por isso''' . Da mesma forma,
não aprend i assim. Aprendi começando a aprox imar as letras. O Alberto vê muito televisão (A senhora C.: "Assim que chega a casa,
senhor vê, ele não. Ele, é tudo de cor, ora . Não gosto disso. Eu come- se abole ta em seguida, Antes de colocar a mala (riso), liga a tele-
cei aprendendo palavrinhas, mas letra por lerra, e depois a gente visão") e pode deitar quase que a hora que quiser. O pai diz que
aprend ia bem e depressa, enquanto agora .. . Não ap rendem mais seu filho "nunca tem pressa" de ir d e i[a r~se, e freqüentemente
nada"; e a senhora C.: "E eles não aprendem o alfabeto como a gente acontece de ficar com eles até as 22 h . As palavras um tanto quan-
na nossa época . E a gente pensa que se ele tivesse aprendido o alfa- to vagas sobre as horas de deitar-se parecem indicar que elas depe n-
beta como a gente, teriam ° métodoquc a gente tinha antes, penso dem da atitude mais ou menos coercitiva dos pais conforme as no i-
que ele teria conseguido ler. Não precisaria da fonoaudióloga". tes: "Acontece dele se de itar ta rde. Princ ipalmente se a gente não
Demonstram, assim, uma forma de desespero diante das mudanças diz nada". O próprio Alberto diz, ainda a respe ito da te levisão, coi-
pedagógicas que não dominam. sas aparentemente contraditórias que podem ser ap roximadas do
Mas as regras de vida ou as exigências escolares impostas a A lber- "falso rigor" dos pais em relação à hora de dormir. Com efeito, às
to são também muito raramente aplicadas de forma muito rigorosa. vezes diz que não "pode ver te lev isão à noi te'\ e "quando quero ,
A anál ise das palavras dos pais faz surgir elementos que entram em vejo". Isso só se mosaa contraditório se não fizermos a distinção
contrad ição com a vontade real declarada por outro lado. Por exem- entre uter o dire ito formal" e IIsaber que se pode ficar se se quiser'\
plo, Alberto não fica no horário de estudo livre, mas vai à casa de isto é, entre o discurso empregado pelos pais e as práticas efe tivas.
sua "vovó". Sua mãe diz que ele tem" de fazer suas tarefas até e la ir
U De modo geral, os pais, portanto, não reprimem Alberto rígida e
buscá- lo depois que sai do traba lho (por volta das 18h ), mas, freqüen- sistematicamente, e, quando a senhora C. lembra a conversa que
temente, quando ela chega, encontra-o brincando. Assim que chega teve com a professora sobre o caráter "fechado" de Albetto, des-

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PERfiS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

venda , em grande parte, o que transparece por trás de um conjun - 1'; 1i~ terminam transfe rindo suas esperanças para a Clvontade" de
to de resposras: "Ela queria saber por q ue ele se t inha fechado e se
A lberto e pa ra a sua capacidade pessoa l de "mudar" , e nqua nto
(: 'ire , preso a uma inte rdepe ndência familiar, não pode, se m dúvi~
h av ia alguma coisa que incomodava ele n a escola, seus colegas, ou
e m casa. Eu d isse a ela : 'Não, em casa , de fato , a gente deixa ele fa ZeT .1:\, muda r sem que mude a constelação d e pessoas que constituem
° que quer'. Então, não sei por que ele era assim, fechado ". As regras 'iC U universo:

de vida ex istem, mas Alberto tem o h á bito de transgredi-Ias bas-


Sra . C.: O que a gente quer para ele é que ilprenda. Q ue aprenda bem
tante freqüentemente, na medida el"!') que nenhuma punição repro~
e q1..IC v:i mais longe do q u e ... do q u e a gente foi. A gente quer que vá
vará essas transgressões.
mais longe. se não é ... se for possível. Mas isso depende dele, se tiver
Em uma tal configuração, sem exe mplos de contextos de apropria- vontade, que ele tenha diploma, que V Ll. mais longe . ora. Porque agora,
ção da escrita nem sistema muito rígido de coações, na interação socia, agora, n~o é, se a geme não tem diploma. não tCITI nada, não é ...
lizadora com uma avó analfabeta q ue se dirige a ele em português e E: E o que é que vocês chamam "será que há um mínimo", vocês
com pais de passado escola r curto e infeliz e que ta mbém fa lam com querem Jizc r: "É preciso que ele atinja um mínimo , para ... "?
ra. C.: Bem, a geme gostaria muito que ele tcrmmasse o 3 col e~
Sl
ele. em gemi, em português, Al berto não pode criar outra vida senão
essa que sculugar nas relações de interdependência familiares lhe esbo- gial, mas não dá pra pedir mui to, não é ...
ça. Repetindo, sem dúvida , as angústias familiares diante da escola E: É, pe lo jeito de vocês, parece 4ue não têm mu ita ce rreza ...
(sua mãe conta que tinha "dificuldades e m mate mática, na escola", Sr. C.: É que ele j~l. t~í pe nsando em trabalhar co migo.
e a professora de Alberto nota que ele tem "um sério problema com E: Já?
Sr. c., rindo: Sim, mas ... ele tava me falando disso ... Me fa la disso
n úmeros") e das práticas de escrita, Al berto é descrito pela professo-
ra como uma c riança "ansiosa'\ "completamente bloqueada", "se n) ~ sempre.
pre na defensiva", Hmuito inquieto". Um clementosuplementarpode
Sra. c.: Ah, é.
S r. C. , dirigindo,se ao fi lho: "E en tão, você que ir com o pai? Veja
con tri buir para justificar essa inquie tação e tiques nervosos de Alber-
bem, hcia, lá não é ... não é a esco la".
to, ou seja, a morte de sua irmã, no in ício do ano leti vo. Mas tal ti po S ra. C.: É mais Juro que a escola.
de acontecimento, que pode permitir melhor esboçar o perfil de um E: Vocês acham <.tue se ri a bo m que elc termin asse o 2 Sl grau, mas ,
"fracasso" e que, freqüentemente, é citado n os discursos dos pedago- no mo men to , vocês não acreditam tTIui ro nisso , se é lluC estou
gos, nada diz em si mesmo e por si mesmo. N ossas análises provam entend endo bem ?
que nenhum elemento pode ganhar o stattiS de causa, e que cada ele- Sra . C.: Sim, não, mas não acredi to mui to. Principalmente com,
mento só tem sentido e efeito em configurações familiares singulares. bem ... , como e le tásc comportando na escola c com as no tas que tem.
Tanto para a mãe como para o pai, a escolt1 , no entanto, é uma Sr. c.: Ele vai mudar. Não é, Alberto?
coisa importa nte. Esperam que Alberto possa ir mais lon ge do q ue Sm. C .: A gem e espera, pra e le, que e le mude.
e les , e estão conscientes da necessidade do diplo ma na ú tuação
do mercado de trabalho. Visam ao "di plo ma de 2· grau" para o filho, • Perfil 12: Uma reencarnação social.
mas timidame nte, també m sem muito acredi tar n isso. Em um ROM' F., nascido em Lyon, 11m ano de a,raso (repe":'ncia do /JTé-escola) ,
di álogo que conclui a e ntrev ista, e ncontramos, de mane ira co n ~ obteve 4 na ,,,,alioção nacional.
de nsada, ~ mistura de rea lismo e de esperança, ue resignação e
de vo n tade , que ca racteri za o discurso do senho r e da senho ra C. No momento da marcação do encontro por te lefone, o pai de
Se esse trecho n os pa rece partic ula rme nte pungente, é pu rque os Robe rt nos pergunta se estamos ve nde ndo algo. Q uando lhe expli-

18\
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

« •
sempre pronta para lazer favores". Essa característica de cornpor~ Configurações familiares heterogêneas
tamento (ou de caráter, como se diz comumente) é, sem dúvida, o
produto de uma socia lização familiar que estimula as crianças (prin- Em hX Ia, c!"'<;,b (orlll .I~ . ,\ Ct)C rcn":: la ,1.:, "1ll d~·
.:uhcrr,\ d c~clII~n h ,1 -.empr!." o II\c~mo 1'<11'(:1;
cipa lmente as meninas) a cuidar das coisas do lar (Samira tira a mesa, ml lC! ttM4uc .15conlmdl~-ÕC" imt.'lhal.1ll1t'nl l." Vls f·
passa o aspi rador, arruma a cama, "esquenta um cafezinho , um c h a~ \'CI~ na...!;t mal ... :.<10 Ju que um rdlt'xll de ~upcr ­
ficiei c '-lU\: é prec l:'l) n.:JlI:lr a m n,l llrij!cTll únlc.,
zinho" de vez em qua ndo para o pai ... ), da correspondência e de seus o jugo uc rdl cx i)C~ dl!>pc ~IJ, L.. I... I. De 4u.tlque r
irmãos e irmãs. Desde o maternal, Samira tem tendência a cuidar (...lrm:l, .1 :m:íhllc te ll\ de 'illl'nuur, t.mlu l.Jll<ln tu
possfvel, ,\ cunrmdiç,id',
de seus colegas de escola, sinal de que, mui to cedo, teve de cuidar
do irmãozinho. As ta refas domésticas ou educativas lhe dão respon-
sabilidades, assim como o hábito do traba lho e da ordem. Entretanto, Assim como a h istória das idéias que, como escrevia Michel Fou-
h,\ certamente um limite para essas atividades, que podem tomar cau lt , atribui ao discurso um "c réd ito de coerência", as concepções
tempo do trabalho escolar (a irmã mais velha, que cuida principal- globalizantes que vêem em cada família um pequeno mundo total-
mente dos trabal hos domésticos com a miie, está com muita difi- mente coe rente . unitário, às vezes uniforme, subestimam, freqüen-
culdade escolar). tememe, as diferenças de investimentos, de disposições, de orien-
A situação escolar de Sam ira só é, portanto, muito favorável tações e de interesses que caracterizam os diversos componentes da
porque a configuração famil iar não é contraditória (os pais são coe~ configuração familiar.
rentes entre si, não há vár ios princípios de socia li zação que se super~ É claro que tudo é uma questão de pomo de vista e de escala
ponham ou se choquem) e exerce seus efeitos regular, sistemática e dos contextos que o pesquisador se propõe reconstruir. Pode ser úti l
permanentemente. A ausência de capi tal escolar é compensada pela caracterizar a família com indicadores muito gerais, tais como a pro~
presença de uma ordem de vida que, direta (na produção de crian- fissão do chefe do lar, assim que se pretenda compreender as linhas
ças disc iplinadas, que respeitam as autoridades) ou indiretamente (pela gerais de uma situação social global. As correlações estatísticas entre
produção de Sitll;'1ções em que as crianças são incitadas a ir, por si var iáve is nos dão como que visões panorâmicas, conforme ãngu ~
mesmas, em direçiio a uma cultura escolar ausente da f.1mília) se har- los específicos. Se esse ponto de vista revela o espaço em suas
moniza com o uni verso escolar, Mas vemos que, ncsscs casos, o linhas gerais, suas estruturações mais genéricas, e le, entretanto, não
"êxito" nunca está definitivamente assegurado. Samira chegou a ter possibilita esclarecer as múlt iplas particularidades mais finas, apa-
uma queda no ~lno: "Não era catas trófico, mas era menos bom", Ora, gadas sob O efe ito do distanciamento. Pode, por conseguinte, ser
essa queda, em janeiro e fevereiro, corresponde exatamente ao nas~ muitíssimo útil heterogene izar o que parecia homogêneo aos olhos
cimento de uma irmãzinha (no dia 18 de janeiro). Nada de espan- da visão estatística.
toso se, numa situação tão excepc io nal, a modificação da economia A atenção para com fenômenos, tais como o fato de pertencer-
das relações afetivas no seio da família devida a um nascimento pôde mos, simu ltânea ou sucessivamente, a vários grupos ou como a trans,
pôr em perigo o equilíbrio de uma situação escolar. Talvez Samira formação progressiva dos grupos aos quais participamos, o que impli-
tenha se sentido menos ouvida, menos envolvida. Talvez os pais ca que nunca estamos totalmente no mesmo grupo em momentos dife-
tenha m diminuído sua vigilância durante um curto período. De rentes da história desse grupo (duas crianças que pertencem a uma
qualquer forma, a mãe foi chamada, disse que fa laria com o pai e, mesma. frátria não nascem e não vivem nunca exatamente na mesma
como diz a professora. "depois, voltou (la normal", sinal de que os família), ou tais como o fato de freqüentarmos segmentos ou frag-
pais souberam restabelecer " equilíbrio inicia l. mentos singulares de certos grupos, já está bem presente no traba-
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

lho de um soció logo como Maurice Halbwachs, preocupado com o Q uando da marcação da entrev ista, a senho ra B., jovem mulher
cru zame nto e os laços íntimos enTre o psicológico e o social: arge lina, nos recebe na sole ira da porta; atrás de h"l, a mãe, vestida
rri:ld icionalmente. Ace ita a enrrev ista, mas espera que e la seja fe ita
Para razermos urna idéia, ao contltÍno, da rn ul npl lclJaJeJas menh)~
na escola. No d ia marcado, ela n ão está lá. O diretor nos diz: "Me
r i a~ colet ivas, imag inemos o que seria a his[()ria de nossa viJa se,
espanta M . .. ., e la não esquece esse tipo de co isa", Ela fo i sua aluna,
enqu<1 mo a estivermos comando, nós a interrompêssemos sempre
que nos lembrássemos Je um Jos grupm pe los quais p<lssamos, p~:u.l e ele a conhece mui to bem . Telefona para a casa dela e pede à mãe
exami n í.í~ lo em si mesmo e dizer rudo o que dde conhecemos. N ~o mandá- Ia à escola assim que ch egar. Q ua ndo ela c hega , em abrigo
esporti vo, be ijam-se e fica claro q ue ela tinha esquecido comple ta-
ba::,[..lria dis tingUir íl lguns conj u n to~: nossos pnis, :1 escola, o co lé~
gio, nussos amigos, os homens de nossa profissão, nossas relações
em socicJade e, ainda , lima dada sociedade polít ica, reiigioS3, arrís.
mente o e ncontro , po is diz: "Assim que soube que M···queria me
ve r, v im ". Ex iste uma re la ção muito íntima entre a senho ra B, e a
tica ~ qual poderíamos nos [cr ligado. Essas grandes ditlisões são escola e, partic ularmente, com a família do diretor. Q uando a de i-
cômodas, l7ULS re,~pondcm a uma tlisão aincUl exu..'T;or e simplificada da xarmos, e la vai para a reunião de preparação da que rmesse organi ~
realidade. Essas sociedades compreendem grupos bem menores que DC11 ~ ,ada pe la escola.
IXlm apenas uma pane do espaço, e fo i apenas com uma seção local de A senhora B. tem um defeito de pronlll1cia que, às vezes, tom a difí-
um dentre eles qlle esei'vemos em contaro. Eles se trtmsfon1wm, se seg~
c il a compreensão de suas palavras, e os erros de francês são pemln,
menUlm, de modo que, mesmo que pemumeçamos num gmpo e qHe dele
nentes em seu d iscurso. Q ualquer que seja a "boa vontade cultura l"
ntlo saiamos, acon tece de o grupo tomtlr~sc, /)ela renot'açào lenta ou
rápida de seus membros, realmente mn Outro grupo que [em apenas fJOu ~ expressa por ela no decorrer da entrevista, vemos como se inscreve
cas tradições comuns com aqueles que o constituÍllm no inícid'". em seu discurso a d istância objetiva q ue a separa do universo do falar
escolar. Souyla, tal como a mãe, te m um defe ito de pron(mcia: ela fala
As fa míl ias reuniJas aqui (cf. também os Perfis 4, 6, 9 e 13) , às vezes "ch" no lugar de "se" Ou "ce".
numerosas, consti tuem como que leques, mais o u menos amplos, de A senho ra B. te m 29 anos e vi ve na casa dos pais com a única
posições e de d isposições culturais, de preferências, de comporta men- fi lha, Souyla. Teve uma escolaridade d ifícil, que a levou a faze r e m
tos, de, relações com a escola, de princípios socializadores heterogê- 2 anos a 7 íJ série , numa classe pré~ profiss ion a l ue aceleração, e mais
neos, A s vezes, até o bservamos um conjunto de mati zes mui to sutil 2 anos para obter o Cert ifi cado de Aprendizagem Profissional de corte
na ex periência escolar dos diversos membros da constelação familiar. e cüstum, parando, fin almente , os estud os antes de faze r o exame:
Essas dife re nças, esses desv ios o u essas contradições no se io da "Não te rm ine i. Tava me enchendo. A esco la não me di zia nada, o ra.
fa mília (a lgu mas contradições se apresen tam, às vezes, até mesmo Preferia trabalhar". Explica q ue n ão tillha vontade de fazer corte e
nos ind ivíduos) são ta mbém relações de fo rças, te nsões e ntre dife- costura, mas que fo i influenc iada pelos pais: "Fo i quando estava na
rentes pólos familiares, e a escolarização da criança depende, e m iío, classe pré-profission al de aceler"ção que e u quis fazc r um c urso pro-
do produ to dessas relações de fo rças modificáveis pe la evo lução dos fission aliza nte. Sempre gostei de datilografia ou mcd\n ica, mas meus
destinos individuais (nascimen to de outra criança, morte de um adul- pais: 'Não, costura, costura', E eu, não era meu caso". Trabalhou como
to, part ida o u chegada de um dos membros da fa míl ia). faxi neira e depois fico u dese mpregada, após um período de doença.
No momemo da entrevista, ela fdZ um estágio Je reinserção há 5 meses:
• Perfi l 15: As contradições. "Agora, estou faze ndo um estágio, com re i nserç~o. É uma reci cl a~
SOIl)'1a B., nascida em L)'on, sem nenhWll11 refJerêllcia ('scolar, obtei.le gem oA gente te m o vídeo, tem ecologia, tem expressão oral. Isto é,
3,3 rui mJaliaçào nacional. esse estágio é pra ir pro Marrocos, e a gente faz esporte. À ta rde, a

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONfiGURAÇÕES

gente faz sempre esporte. Isto é, o que a gente quer é escalar o Atlas em que ela fa lta dois o u três dias". Esse problema envolve a con-
do Marrocos, o maior A tlas do Marrocos. É isso que é meu estágio". figu ração fami li ar e, princ ipa lmente, o papel da avó materna:
A senhora B. é mãe solteira, e não mencionará o pai de sua filha, "Falei com a mãe dela, então ela já está sabendo. Não sei por que
que nunca a conheceu. Nasceu na França, mas sua nacio nalidade ela está sempre ausente assim. Aparentemente, e la fica ria na casa
é arge lina. Seu pai, chegado em [954, hoje é aposentado, foi ope- da avó, deve te r muitos problemas de saúde , enfim, ou então,
rário em fundição. Ele nunca foi escolarizado, e não sabe ler nem basta ter qualquer coisinha, não vem. E além disso, tenho a impres-
escrever (em francês ou em árabe); fala misturando palavras fran- são que é a sua avó que m c uida dela quase sempre. A mãe não está,
cesas e árabes. Sua mãe, na França desde a idade de 16 anos, nunca e quando a mne não está, se ela não tem vontade de vir, a avó
trabalhou e é analfabeta como o marido ("Lá, ela nunca põde ir à parece que não diz nada. Porque a mãe de la, Qutra dia, me disse:
esco la; seus pais não deixaram"). Os irmãos e irmãs da senhora B. 'Não estarei no mês de junho, então fique atenta para que ela venha,
tiveram resultados desiguais na escola: ela tem um irn1ão que co m~ porque é a minha mãe que vai cuidar dela, e muitas vezes, se e la
l

pletou o 2 2 grau, uma irmã que tem um Certificado de Aprendiza- não quer v ir, e la não vem'. Então, e la me disse: IPrecisa te lefonar
gem Profissional de cabeleireiro, dois outros irmãos que pararam o nessa época'. E, aparente mente, se Souyla não pode vir, a avó não
estudos depois do gim\sio e um último que está na última série do diz nada, ora". O av iso da mãe é interessante na medida em que
2º grau (contabilidade). Compreendemos por que a senhora B. deixa transparecer a diferença de percepção da importância da esco-
marcou o encontro na escola. Vive na casa dos pais e divide um la entre ela e a avó ana lfabeta. Esta não tem, portanto, um papel
quarto do apa rtamento com a filha. Sem dúvida, a escola, mais do de socialização nulo (mesmo que se trate de uma personagem
que o espaço familiar, lhe possibilita falar mais livremente. pouco lembrada nas entrevistas com a senhora B. e com sua filha),
uma vez que sua percepção da escola tem implicações pn\ticas con-
side ráveis na freqüência esco lar da neta.
o caso de Souyla está longe de ser simples. Mesmo a nota na ava- O professor observa, portanto, um "trabalho irregular" e con-
liação não é das mais confiáveis no que diz respeito a ela, na med ida tradições no comportamen to de Souyla, que ora pe~e exercíc ios
em que, em três campos, não fez trabalhos por causa de fa ltas: conhe- suplementares, o ra não faz os exerdcios normais: "E uma meni~
cimento do cód igo, produção de texto e resolução de problemas. na que um dia vem me pedir exe rcícios suplementares e, no di a
Essas ausências parecem ser o centro do problema de Souyla. No final segu inte, quando s6 tem um exercício ge mate mática pra faze r,
do ano, o professor nos indicou que estava em 14 2 lugar, numa clas- ela não o faz. Então, bem, eu digo a ela: 'E bobagem me pedir mais,
se de 24 alunos. Não estamos, portanto, neste caso, tratando de uma se você não faz o que eu lhe dou'''. Apesa r disso, mesmo que não
situação cat..lstrõfica, mas de uma aluna "bastante média", como julgue tais comportamentos mui to sérios, O professor observa,
dizem os professores, no seio de uma classe de nível "bastante médio". com espanto, que ue la se v ira re lat ivamente bem" com ntnneros,
Desde o maternal, para o nde entro u muito cedo, com 2 anos que "não é de todo catastrófica" na resolução de problemas, e que,
e 6 meses, Souyla tem uma freqüência à instituição escolar muito finalmente, "apesar de todas essas ausências, não é totalmente
irregular, por causa, principalmente, da saúde . Os professores dessa catastrófica, porque não sei como ela faz para se recuperar".
época jtl evocam uma "criança apagada e integrando~se pouco na Nesse aspecto, as contradições apontadas pelo professor são
v ida da classe por causa de suas ausências". O professor de Souy- compreensíve is quando se reconstitui a configuração familiar da
la, da 2" série do 1º grau, destaca O problema: Souyla está "mui - criança. A pequena Souyla vive concretamente em relação de
tíssimas vezes ausente", "perdeu numerosas provas"; "há semanas interdependência com pessoas que representam universos cultu#

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

rais e princípios socializadores muiro diferentes e cujas relações com pensar as repetidas ausências. Espera acompanhá- la, para que ela
a escola são extremamente heterogêneas (essencialmente sua mãe, niío perca pé na escola: "É verdade que ela está sempre doente,
os avós, um tio que está na última série do 2 2 grau e uma tia). As mesmo. Ent.ão, eu gostaria que e la não ficasse atrasada na au las,
oposições entre ausência escolar e trabalho em casa, pedido de exer- Bem, ontem ela recuperou todas as au las de uma semana. Bem,
cíc ios suplementares e tarefas de casa irregularmente real izadas colo- cu fa lo pra e la: 'É me lhor você recuperar as aulas, pelo menos ente n ~
cam em jogo diferenças entre membros da constelação familiar. Para I.. lcr, assim você será como todos os o utros'", A senhora B. diz que
a mãe de Souy la, a escola é algo importante , e ela gostaria que a ela está sempre "atrás dela" (verificando se fez as tarefas), mas fica-
filha continuasse , pelo rnenos, até onde foi seu tio: "Orfl, e la os ins~ mos sahendo pe lo professor "que acontece dela esq uecer as [are~
trui. E depois, na vida, falo dos que não esteve na esco la ... Tenho fas", Nós, entretanto, compreende mos como Souyla consegue
um colega , ele não fo i na escola. Ele fava pouco se lixando. Bem, "rccupenl r, sc": os cadernos de exe rcíc ios parauidáti cos, o tio no
ele n80 sabe ler, nem escrever. E então, prum documento, bem, e le último co leg ial que ajuda e m tarefas, corrige, eXpliGl e até lhe
precisa procurar o diretor do alojamento o u qualquer ou tro e isso ensi na coisas que e la a inda não viu na esco la, o contro le e a v i g: i ~
que eu falo que ~ pena. Falo, é melhor que a gente tenha uma pos- lância mais ou menos regulares da mãe, tuJo contribui para com~
sibilidade ue ir na escola, melhor a gente ir. Por mais ta rue que seja, pensa r, e m parte, as ausências freqüentes de Souyla, que parece
ela nos serve. Eu gostava que terminasse o colegial pelo menos. E viver quase como as crianças que fazem cursos por correspondên~
depois, ela própria, ela diz pra ela: 'Sim, eu vô até onde como meu C Ia e fora do sistema escolar.
tio, até o fim do colegial', ora. Ela diz isso na cabeça dela. Bem, Além do acompanhamento escolar, a mãe, assim como os avós,
então eu falo: 'Precisa estudar para chegar até lá'. É isso que eu tento ficam atentos às atividades e às companhias de Souyla. Na qua"a-
fazer ela entender", feira pela manhã, ela tem aula de dança, e à tarde pratica esporte
A senhora B. conhece relativamente a escolaridade de Sua filha nH escola. No sábado e no domingo, a senhora B. passeia com ela
encontra,sc regularmente com o professor e pa rece acompanhá~ c deixa que ela desça para brincar fora, mas não o tempo todo, por
la bem de perro, mesmo que fiqu emos sabendo, pouco a pouco, causa do bairro, que apresenta, segundo ela, perigos: uA gente vê
que não é e lfl, definitivamente, quem c uida, no mnis das vezes, muito jovem que a gente não conhece. E depois, nos momentos que
das tarefas de Souy la. Ela olha as tarefas com a filha dumnte o tcm CSS;;lS baderna que a gente vê nos bairros, então eu prefiro evi~
fim de semana (pode , por exemplo, pedir que ela rev ise as tabua- tar pras crianç.as, pra minha filha e também pros outros, prefiro que
das), o u então diz à filha para pedir ao professor. Durante a se ma- l'iubam) 4UC ficam aqui se tem badenla, Como ontem, aconteceu uma
na, é o tio de Souy la (3" série do 2° grau de ontabilidau e) quem badema no bairro". Ela vigia sempre a filha por uma janela: "Ela
corrige suas tarefas e, se erradas, faz com que e la refaça: "Deixo desce, uepois tem suas amiguinhas que descem, bem, é verdade que
o encargo a meu irmão mais novo, s im, como é mais instruído do t!~tou na janela e não saio dela um minuto, ora", O avô de Souyla
que t!u, então deixo que ele se encarregue um pouco", A senha, vai buscá, la na saída da escola, ao meio .. Jia, e é sua mãe quern a
ra B" assim como Souyla, até conta que o tio lhe ensina divisão, leva pela manhã e vai buscá-la à tarde: "A gente não deixa ela sozi-
ao pHSSO que o professor ainda não a abordou. É sempre o tio que nha nunca", Se a mãe de Souyla se opõe à avó em matéria de per~
lhe uiz pa ra reler, a fim de compreend er melhor, ou que lhe dá cepção da importância da escola, ela próprIa é perturbaua por uma
outros exemplos para que ela compreenda. A tia (eAP) ou a mãe contradiç.ão e ntre diferentes aspectos de suas experiências (presen~
podem também ajuuá- Ia quando não estoo trabalhando. A senho- tes ou passadas) e de suas disposições sociais. De um lado, seu per-
ra B. até comprou para a filha cadernos de exercíc ios para com- curso escolar infeliz, seu percurso profissional difícil, irregular, seus
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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

erros de sintaxe e suas imprecisões léxicas, suas dificuldades com o clais. Também lê revistas, como Maxi ou Femme Acwelle, que deno-
texto escrito e com um conjunto de coisas que lhe lembram, de perto mina de "livros". Em gera l, "evita" as páginas sobre os "problemas"
ou de longe, a esco la, sua pouca prática de leitura; por ourro lado, das pessoas, mas o lha principalmente as receitas ("É o q ue gosto
uma boa vontade culcural recente, uma particular atenção em rela# mais"). Tem o programa da televisão no Le Progres. IlH1S diz não o
ção à escolaridade da filha (ela a leva à biblioteca, compra-lhe consultar, pois isso nfio lhe interessa. Essa declaração pode, entre~
cadernos de exercfcios ... ), suas ambições profissionais e as que pensa tanto, estar matizada, na medida em que talvez nada mais seja do
para a filha, mesmo que possam mostrar-se um tanto vagas (ela gos- que o produto de um efeito de legitimidade que a excita, particu-
taria que a fi lha concluísse o 2 2 grau para '4 ser cabe leireira" ou u pro # larrnente num período de "reciclagem" e de contato com a cu ltura
fessora primária"). legítima. A senhora B. diz, com efeito, que só deixa a filha ver tele-
A senhora B. parece estar em plena fase cle mutação ou de moti- visiio entre 20 e 20h30, durante a série Madame est servie, ao passo
vação cultura l, por causa do estágio que está fazendo. Expressa suas que a filha esclarece que liga o aparelho quando tem "vontade", e
aspirações quanto a um trabalho como monitora, para ajudar os jovens prova, em todo o caso, que não está inventando ti esse respeito, c itan#
na rua, depois da obrenção de um BAFA~" e declara que, agora, a do os títulos dos programas a que assiste: os desenhos animados Club
escola lhe interessa: uOs estudos, pra mim, antes não me dizia nada, plus, La Petite Maison dans la prairie, Flipper te dauphin, Drôtes de dames,
enquanto que agora, bem, tô fazendo urna reciclagem. e me inte# Madame est servie e o filme das noites de terça-feira para as crian-
ressa cada vez mais. f eu acho que tenho, parece que, o professor de ças. E acrescenta: USe eu quero , fico acordada" e "Quando tem
francês, ele me disse que eu avaliei [por evoluí! de verdade, compa - coisa legal na televisão, eu vejo". Isso, portanto, põe em dúvida uma
rando com o início que ele me viu". Mas diz, no final da entrevis# parcela das palavras da mãe, que, sem dúvida, são incitadas pelo dese-
ra, que gostaria rambém de alpinismo, mosrmndo o frágil realismo jo de "falar bem".
de suas esperanças profissionais ("É verdade que o alpinismo, bem, Seu interesse pela leitura de livros parece ter-se constituído,
antes, eu nfio conhecia, e, então, estou começando a descobrir o recentemente, pelo estágio de reinserção. No momento. relaciona#
alpin ismo. Acho que é legal mesmo, orno Depois, escalar uma rocha do ao projeto de alpinismo no Marrocos, está lendo um livro sobre
de verdade, ver o que é, comparar com uma parede artificial, e ntão esse país (UBem, agora, estou debruçada sobre o Marrocos, pnrrl ver
eu prefiro ter uma rocha de verdade. (Riso.) É, acho que é bon ito, o que é que nos espera lá. Como não conheço o Marrocos. Entiío
ora, principalmente quando a gente chega no alto e depOis olha a é pra ver as tradições deles, é. E depois, de vez em quando, ele nos
paisagem. Eu acho que é legal"). explica o que eles comem e o que tem que ser respeitado, o que não
Encontramos a mesma nlptura entre um "antes" (o estágio) e tem de ser respeitado. Como a gente não conhece a vida deles, é
um "agora" referente às suas práricas de leitura. A senhora B. diz diferente da nossa. É isso que estou fazendo nesse momento sobre
que lê o jornal todos os dias, há algum tempo: "Todos os dias eu leio o Marrocos"). mas e la não gosta de romances (UNão me diz nada
agora. É. todos os dirls. Antes, eu não me interessava, mas agora eu de nada, ora, não gosto de jeito nenhum"). Ela fala do que está lendo
pego todos os dias". Ela compra Le Progres e fi Moudjahid (jornal com seu professor de francês, com quem se encontra duas vezes por
argelino em francês). A primeira das coisas que declara ler são "os semana e que parece ser a principal pessoa para ela nessa nova fase
classificados" (para encontrar um trabalho mesmo durante as fé rias) de sua vida: "Eu. finalmente, falo sobre isso com meu professor de
c as notas policiais. "Sempre" dá uma olhada no horóscopo, "nunca" francês, porque sei que ele é atencioso, ele nos escuta, nos diz: 'Se vocês
a política. No fi Moudjahid, ela se interessa pelos anúncios (em rela- rêm algo, bem, a gente pode discutir o livro' ". Ela também usa dicio-
ção a casas de campo, para passar férias na Argélia) e nOtas poli - nário, sobretudo nas aulas.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

Se a senhora B, vai à biblioteca municipal com a filha, todas as definições não consigo encontrar. Então tem LIma palavra que n;1o
quartas-feiras, é "sobretudo por Souyla". Pede ã bibliotecária que sei o que quer dizer. Tem uma, não se i o que quer dizer, então des is;
lhe sugira li vros para a filha, e retira, assi m, um livro de receitas para to. Então, não cons igo. As palavras e mbaralhadas, é mais prático
crianças e livros para a escola. Também compra livros como pre- pra mim". Também diz nunca ter riJo diário pessoal. Gosta ria, mas
sentes de Nata l Ou na época dos aniversários (ultimamente cinco :lcha que é muito difícil pôr por escri to, Também foi apenas recen-
livros de con tos), te mente que aprendeu, no estágio, a escrever começando por um
Seguindo os conselhos do irmão mais novo do 3" co legial, faz brainswnlling ("Então, o que eu aprendi ultimamente é fazer um
a filha ler uma página de livro todas as noites e, desde a idade de l>raimstorming [sic! sem medo, e depois tudo o que sinto, tudo o que
3 anos, lê para e la hist6 rias à noir.c: "Meu irmão me disse: 'VOll te me vem na cabeça, nurna folha e, depois, trabalhar e m c ima disso,
da r u}1,a fórmula pra que a pequena guarde bem o que você lê pra é. É isso que estou fazendo agora").
ela. E comprar um livro e ler e le. Os con ws, aos J anos, entram Ela não faz listas de coisas a serem feitas, não gosta de agendas ,
um pouco na cabeça'. Bem, é verdade, nessa idade não é s imples, porque diz não supo rtar ver as semanas passarem, não escreve car#
mas devagarinho, devagarinho. ela começava a entender. E agora tas à fa mília ou a amigos ("Não rne diz nada escrever"), exceto se
está entendendo bem". A esse respeito, a filha faz um julgamento os pais lhe pedem para ter notícias da família na Argélia, e "nunca"
escolar negativo sobre o modo de ler em voz alta da mãe , exp li - faz listas das coisas a sere m levadas numa viagem ("Tudo de impro-
cando-nos que "ela lê depressa", ao passo que ela própria lê como viso, eu improviso no último momento. Não esquento a cabeça com
"precisa" ser lido ("Eu faço como precisa ler"), As mesmas COntra- isso"). Também não redige listas de coisas a serem ditas antes de
dições se Hpresentam à senhora B" principalmente no leque de suas telefo nar, e conta que foi censurada por isso no estágio. A prepa-
pníticas com uns de escrita: a regularid ade das práticas de escrita ração escrita, que ret ini a espontane idade do discurso, incomoda
passadas ou recentes caminham lado a lado com a rejeiçiio de cer- a senhom B. Portanto, aO mesmo tempo. diz de sua dificuldade dian-
tas fo rmas do texto escri to, e o desejo de escrever pode, às vezes, te dessa planificação escri ta do que va i dizer e de sua preferência
ser paralisado pelo medo de cometer erros ou a angústia de ter de pela espontaneidade da fala, pelo senso lingüístico l)fático: "O dire-
encontrar palav ras ... ror lá onde eu fazia meu estágio me disse: 'É melhor anotar, dizer
A ajuda buscada para determinados textos escri tos é, inicial- antes para saber o que se quer dizer a um chefe'. Mas e u improv i ..
mente, sinal de pouca habilidade de escri ta. A sen hora B. redige as so no último instante . Não esq ue nto a cabeça. Não gosto de ano ..
cartas às repartições com as qua is tem en vo lvimento, com seu gu ia ta r toda vez e, depois, olhar minha lista. Isso me perturba um
de correspondência ("Pego o modelo. É, leio bem o modelo e, depois, pouco. Eu, é verdade, eu, esses negócio, não gosto de jeito nenhum.
escrevo minha carta!!), e também pede aj uda ao irmão mais velho; Isso me incomoda muito. Tentei. A gen te queriél organ iza r uma v ia ..
o mesmo acontece com os bilhetes endereçados à escola, pois te m gem para os desempregados que recebem o RMI, en tão, a orienta ..
dificuldades com ortografia. É também o irmão q uem lhe preenche dora nOS preparou a lista, então, como era eu que telefonava, aqui ..
a declaração de impostos. Da mesma forma. quando resolve caça- lo me incomodava muito. Então, eu falei: 'Eu pre firo improv isa r'.
palavrasi não gosta, porém, de palavras cruzadas, por causa d::ls defi~ Então . ela me falava: 'Não, não, é impormntc saber ponto por ponto'.
niçães que lhe lembram suas dificuldades escolares. É nesses momen- Então, aquilo me incomodava, mas não era sim ples. Precisava cu
tos que se percebe que a recentíssima boa vontade cultural encontra telefonFlr uma segunda vez para tornar a me exp li car como é pre~
limites nas experiências escolares infel izes: "Já as definições, 1180 ciso. Mas, depois, eu fiz sem a folha, hcin ?, não agüentava mais.
consigo encontrar elas cu mesma. Como não era boa e m fran cês. as (Riso.) É duro pra mim".

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PERfiS DE CONfiGURAÇÕ ES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Ela também nunca faz anmações depois ou du ra nte um telefo- Podemos concluir dando a palavra ao professor, que, ignorando
ne ma: "N unca. (Riso.) Não, eu ten to memori zar na minha cabe~ () conjunto das características singulares da configuração familiar,
ça. Depo is, mesmo que ti ver de fa zer de novo, de repetir duas mas med indo os "efeitos" através dos comportamentos e dos resul#
vezes, porque sei que tem sempre alguém do meu lado. Bem, q uan- tados escolares de Souyla, declara: "O problema é, principalmen-
do é pra uma viagem ou qualquer co isa, te m uma pessoa do me u te, as ausê ncias, porque tenho certe za de que ela teria melhores resul-
lado, e la escuta. Mas, de outro jeito, não, hein ?". Em relação às recei# tados se estivesse sem{Yre presente, regularmente , e também se fi zesse o
tas cu linárias, arranca as que estão nas revistas e as põe e m plás ti # trabalho regulanllente. Porque é a mesma co isa, um d ia não vem e
cos, ou num li vro de rece itas, mas não as copia. Também tem fez as tarefas; no dia seguinte, vem e não fez as tarefas. É. humm ...
~ l b uns de fotografias, mas não escreve nada em c ima (nem datas, muito, muito irregu lar".
nem comentários : "Não, não coloco nada, nunCCl escrevo nada. Mas podemos facilmente imaginar que a situação das relações
(Riso.) Enfim, eu, acabo reconhecendo quando ela foi feita, a foto, de interdependênc ia no se io das qua is se acha inserida Souyla é
mas não diz nada pra mim marca r num álbum"). susce tível de se transformar. A mãe pode encontrar um trabalho
En'l contrapartida, a senhora B. mantém um caderno de contas, mais va lorizador ou ver a boa vontade cultural fnlsrrada com os resll l~
desde que aprendeu a fazê- lo no curso de preparação ao CAP de cos- tados de seu estágio o u de suas tentativas de volta ao emprego. Os
tum ("Eu gosro bastante de fazer isso. Marco minhas despesas no irmãos podem deixar o domicílio familiar, e Souy la se acha r mais
mês. S im, escrevo o que gasto, o q ue retiro, o que ga nho. Eu come- solitária diante dos problemas escolares. A senhora B. pode insta-
ce i, bem, ensinaram pra gente isso quando e u estava no curso CAP lar-se num apart3mento com a filha, e Souyla pode ser forçada a
de costura. Foi ali que ensi naram pra nós, e depois eu conserve i isso uma ma io r presença escolar, e ass im por diante . Q uando tudo (a
e ac ho interessante") , escreve, às vezes, le mbretes ou deixa bilhe# situação escolar positiva ou negativa da criança) s6 se mantém por
tes aos irmãos. Também escreve, "o te mpo inteiro", listas de com# um fio, por causa de uma ausência de investimentos cultura is e eco#
pras. anota coisas num calendário e tem , e nfi m, uma caderneta pes# nôm icos suficiente mente forres, recorrentes, para impedir qualquer
soa i de endereços e de números de telefone . acontec imento perturbador, a menor modificação das relações de
As contrad ições presentes no âmago da configuração familiar força entre e lementos contraditórios pode se transforrnar em ICsuces,
e que passam pela se nhora B. são visíveis também em sua própria so" o u e m "fracasso" escolares.
rede de interd ependênc ia. Ela vive num uni verso de pessoas muito
heterogên eas do pOnto de vista da relação com a cultura legítima • Perfi l 16: Entre inquisição e indul gên ci~ .
e a escola: os pa is ana lfabe tos e uma parte po uco escolarizada de Kamel B . , nascido em Lyon, sem nenhuma repelência escolar, obteve 4 ,3
sua frátria se acham lado a lado com o diretor da escola, o profes- na avaliação nacional.

sor de francês (várias vezes c itado, e que representa um novo


mode lo de ident ificação possível) e uma outra parte ma is escola- C hegamos ao encontro por vo lta das 14h50, em vez de 15h . O
rizada de sua frátria. Essas contradições entre personage ns fam i- senho r B. ab re~nos a porta, dá#nos a mão e nos conv ida a sentar.
liares o u extrafamiliares, entre o passado e o presente drl senho ra Sua mulher está lá, assim como Kame l, que est<í doente desde a
B., entre seus diversos comportamentos, interesses Ou preferências, manhã e não foi à escola. O senho r B. é um homem mui to acolhe-
são contrad ições que podem muito be m expli ca r os resultados dor, que fa la mui to e conta inúmeras anedotas deta lhadamente. S ua
"médios" de Souyla, que vive, muito conc retame n te, no inte rior mulher fala me nos, e freqüentemente sua palavra é cortada pelo
dessas múlt iplas oposições. marido, quando seu discurso é um pouco longo. O senho r e a

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

Em conclusão, faremos duas observações a propósito desse perul. régias educativas em torno de um "projeto escolar" e conduzem os
A primeira é que, se as trajetórias da mãe e do pai fossem exatamen- fi lhos nos caminhos do "sucesso" escolari de outrO, aqueles que não
te inversas, no âmbito da própria divisão sexual dos papéis, o "suces- rêm os recursos objetivos e subjetivos para pôr em prática dete nni-
so" de Nicole estaria, sem aúvida, muito comprometido. A segunda ""das estratégias e determinada mobilização, e cujos fiLhos experi-
é que a reconstrução da configuração familiar não possibilita ver mentam as dificuldades escolares. Esse q uad ro se mostra simples e
uma separação clara entre as características familiares favoráveis à esco- esclarecedor, mas a realidade se revela um tanto quanto rebelde.
laridade da criança e as características famili ares desfavoráveis a essa Em primeiro lugar, todos os casos de "sucesso" escolar encon-
escolaridade, mas que algumas práticas socializadoras são ambivalen- rrados não dependem, ao contrário, desse modelo de mobilização
tes do ponto de vista dos efeitos escolares, nem totalmente positivos, fam ili ar em torno de um projeto escolar: o grau de intencional i-
nem totalmente negativos. dade nas condutas familiares, assim como o grau de investim ento
f~ miliar especifi ca mente voltado para a escolaridade, é extrema-
Investimento familiar positivo ou negativo mente variável. Em segundo lugar, quando ex iste, a mohi li zação
fa miliar nno ocasiona automaticamente o "sucesso" escolar. Como
N a situação social contemporânea, caracterizada por uma muito as condutas que são classificadas na ru brica tl mobi li zação" podem
grande proporção de assalariados e de exigência · cada vez mais ele- ser muito diversas e como essa mesmas condutas não são se m ~
vadas em matéria de cursos de qualificação, o diplo ma se torna uma pre coerentes com o utros aspectos das pn'iticas familiares, os efe i ~
cond ição necessária (mesmo que insuficiente) de entrada no mer- ros positivos na escolaridade das c rianças são, ainda aqui , extre~
cado de trabalho para o conjunto dos grupos sociais. Mesmo o filho ma mente diferentes.
do lavrador que quiser assumir a propriedade familiar tem ae passar Alguns pais podem, portanto, ter uma elevada expectativa esco-
pela escola e submeter-se a suas ex igências. Com a crise do empre- lar para seu filho e, com isso, controlar sua escolaridade, acompa-
go, od iploma até se toma particulanneme detenninante para se con- nhando-a e conhecendo-a em detalhes, fiscalizando e corrigindo as
seguir um emprego estável. N o âmbito dessa nova configuração tarefas, fazendo estudar durante as férias com material comprado com
social e escolar, o nde tudo é oposro à situação do século XIX (onde essa finalidade, encontrando-se regularmente com os professores,
o acesso ao emprego e, por conseguinte, às posições sociais se orga~ sancionando ou demonstrando seu descontentame nto quando os
nizaVrl, para muitos, independentemente do tempo ue escolarização), resultados escolares parecem insatisfatórios, etc. Mas a rentabilida-
o "fracasso" escolar ganha, imediatame nte, o sentido de uma rele~ de escolar desses compo rtamentos de investimento varia conforme
gação socioeconômica, e os pais dos me ios populares vão, pouco a a configuração familiar considerada.
pouco e em graus diferentes confonne os recursos e as trajetó rias fami# Em a lguns contextos familiares perpassaaos por contradições
liares, investir na escola como um importante desafio. Em certos casos, (entre as expectativas escolares e os me ios concretos para sua rea~
;) escola até pode invadir a família, que, com isso, destina a maio r lização, entre as palavras e os atos, entre os princípios alardeados
parte de seus esforços e de suas atenções para a criança. e os princípios posros em pni tica), em q ue os pais punem quando
Assim, supomos, às vezes, que é no grau de conscientização e de de maus resu ltados escolares sem ve rdadeirame nte conseguirem
mobilização familiares em relação aos desafios escolares que reside ajudar Oll dar o "bom exe mplo!!, e só incita m o filho para o traba~
o princípio das diferenças entre as escolaridades cm meios popula- lho escolar em forma de sanções, a mobilização familiar produz efei-
res. De um lado, temos aqueles que, buscando explícita e intencio- ros negativos n80 controlados (Perfil 20). Em outros casos, tam-
nalmente (e, às vezes, racionalmente) um objetivo, desenvolvem estra- bé m, a arrebatada mob ilização familiar e as numerosas pequenas

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

estratégias educarivas postas em prática mal conseguem compen- f;\bricas ou ficava em casa. O contexto fam iliar (sete fil hos, con-
sar as dificuldades familiares objetivas (cf. o Perfil 2 1 e também tando o pai de Johanna) pode explicar a situação do senhor U., quar-
o Perfil 19). to filho, que é eletricista. Com a morte de sua mãe, o filho diz que

Enfim, e m outras cond ições materiais e c ulturais e outras con# se ton10u "responsável pela família": "Perdi minha mãe, e então tive
figurações familiares, alguns pais podem, a partir às vezes de um que trabalhá, ora". Uma de suas irmãs (o terceiro filho, com diplo-
pequeno capital escolar, cuidar da escolaridade da cria nça como ma de 2" grau) trabalha, atualmente, nas Antilhas como "diretora
que para fazê- Ia chegar a um rendimento máxi mo (cf. o Perfil 22 de telecomunicação, na pesquisa". Ele não rem condições de falar
e também os Perfis 17 , 24, 25 e 26). de todos os outros irmãos com os qua is não manteve nenhuma
relação. Seus irmãos e irmãs foram à escola durante maior o u menor
• Perfil 20: Um superinvestirncnto escolar paradoxal. tem po, mas não estão privados de qualquer capital escolar. É, entre#
Johanna U., nascida em Lyon, sem nenhuma rel)etênôa esco/tlr, obre\/e tanto, necessário o bservar que, em vários momentos, o senhor U.
1,8 na avaliação nacional. parece confundir os níveis escolares: o de um irmão que está uno
1º colegia l ou na 7' série, qualquer coisa assim", ou seu próprio nível
Foi com o pai de Johanna que marcamos o encontro. De início, escolar que afirma ser a U6i! série" e, depois, em o utro ponto da entre#
escava desconfiado, reticente. Pede#nos um documento, "uma car, vista, quando sua mulher declara ter ido até o colegial, "a 7' '': "É,
tão" e só aceita a entrevism quando vê O bilhete que mandamos arra, é mesmo, não e ra 8ª, me enganei, era o mais ou menos a 7ª ", Tem
vés da escola e que sua filha não tinha mostrado (sinal da forma pela 37 anos, trabalha como eletricista em uma empresa de obras públi-
qual os documentos circu lam entre a escola e a família). cas com a qual é obrigado a deslocar-se inúmeras vezes (uma em cada
A entrev ista acontece na sala de jantar. O cômodo parece entu- duas semanas). Chegou à metrópole há 12 anos, fez um curso de
lhado - há uma mesa, um jogo de sof,\s, uma televisão e móveis formação profi sional e obteve um Certificado de Aprendizagem
diversos - e nele se circula com dificuldade. Durante a entrevis- Profissional_de eletricista. Depois, fez um em\gio de formação em
ta, a televisão está ligada. e as crianças passam inúmeras vezes eletrônica. E muito sensível em re lação às diferenças entre profis~
(para as tarefas escolares, para ouvir O que se está falando), bem sào qua lificada e profissão não-qualificada (falando do trabalho da
como vizinhos. O pai sai no deco rrer da e ntrev ista (e era princi# irmã de sua mulhe r, e le diz: "Não é um a coisa mecânica, ora. Te m
palmente ele quem estava respondendo às perguntas) , porque a prima uma diferença entre ser lima coisa mecânica e, pior, ser, bem ... ").
de sua mulher vem procurá-lo para que ele saia com ela de carro. Em re lação aos avós matenl0S. a situação parece menos favo#
A mãe toma seu luga r. Muitas das vezes, ela responde em poucas nive l: dois filhos que viviam sozinhos com a mãe, que "trabal hou
pa lavras ou balançando a cabeça. Definitivamente, a entrevista é em fábrica". A irmã da senhora U. foi até o 2" co legial, mas e la
mais uma cena corriqueira do que um momento formal, um parên- só foi até o I". Gostaria de ter continuado os estudos, mas a situa-
tese no ritmo doméstico cotidiano no qual as pessoas se dedica- ção familiar não o permitia. Tem 35 anos e trabalha como auxi-
riam inte iramente a responder a questões ou no qual as condições liar de enfermagem num hospital de Lyon. Não tem em vista tor-
nas quais a conversa se concretiza seriam controladas (limitar os nar~se enfermeira porque Uagora é muito tarde": "Com três filhos,
ruídos, as passagens das pessoas ... ). não vou muito longe" .
A fam ília é originária da Martinica. O avô paterno é apresen- O senhor e a senhora U. vivem maritalmente. Têm três filhos,
tado, por seu filho, como "subdiretor de obras públicas" e "respon- Jentre os quais um está escolarizado na 6" série (um menino), um
sáve l por tudo". A avó fazia, antes de morrer, "serv ic inhos" em na 2" sé rie do I" grau (Johanna) e um no maternal (um menino).

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

o maior já está I ou 2 anos atrasado, e o pai parece falar, a respei- qua ndo não faz as coisas corretamente, compra-lhe cadernos de
to dele, um tanto quanto incoerentemente, quando lhe pergunta- exerdc ios de férias, vai ver os professores para fazer- lhes perguntas,
mos como está indo sua escolaridade: "De modo geral, a gente tem, pôs a filha na fonoterapia (há 2 anos) ... Até podemos destacar a prá-
bem, não vou batê pa lma pra ele, mas tá indo mais ou menos bem, tica do catec ismo todas as quartas-feiras pela man hã (forma escola-
mas, nesse momento, não está lá assim". Não sabemos realmente rizada de transmissão da religião: com leitura, audições, diálogo ... )
no que é que ele quer insistir: no fato de seu filho não te r proble- c ~1 freqüênc ia ao centro de atividades extra~esco la res, indicando uma
mas na escola o u no fato de estar atravessando uma fase ruim na participação e m instâncias educativas externas. E as palavras do
esco la. Mas já até fala no passado sobre as expectativas profissio- professor responSável por Johanna confirmam realmente essa impres-
nais que tinha para e le. Ele "teria preferido" (mas o filho ainda não são: uS ua mãe se expressa bem, he in !"j "ela é muito acompanhada
completou a escolaridade) que o menino fosse mais longe que ele pela m8e, que se preocupa com e la, leva,a à fonoterapia".
e5colarmente, que tirasse o diplo ma de 22 grau, ou, melhor ainda, Mas as mobi lizações o u os investimentos familiares, ass im como
que fizesse O "mestrado" para tornar,se rnédico ou advogado, e não os investimentos objetivos dos membros da família, são impotentes,
gostaria que e le se tornasse eletricista, pintor o u mecânico. parece, para modificar o desempenho desta aluna. Com efe ito, isso
Do ponto de vista das condições familiares objetivas, nada nos nfio é totalmente exato. Tanta coerção fami liar n~o deixa de ter um
parece poder expl icar o "fracasso" de Johanna na 2" série do I· grau. efeito sobre o comportamento escolar da c riança. NHO é por acaso
Um pai operário qualificado e uma mãe empregada, um pai deten- que o professor observa que, apesar de seus mallS resultados, "ela tem
tor de um CAP e uma mãe que foi até o 12 colegia l. Tudo isso vontade", Utenta, de qualquer forma, progredir'\ "é esforçada", upro~
distingu iria mais positivamente essa família de o utras famílias obje- cura saber", e que é "uma menina muito, rnuito amável, que não tem
tivamente menos bem-dotadas. Não ape nas do ponto de vista das nenhum defeito", ou que, use aprende uma regra de gramática",
condições da vida familiar, mas também do ponto de vista do que "sempre se lembra o u é capaz de aplicá- Ia". De qualquer forma,
alguns chamam de a "mobilização familiar", estamos diante de um ca~ alguns vestígios dos comportamentos familiares permanecem: e la não
50 em que tudo deveria correr bem. Mas este não é O caso. Johanna é é uma aluna instável, indisciplinada. Entretanto, podemos ficar
exata mente a aluna de nossa amostragem que obteve a no ta mais espantados com o baixo rendimento escolar que uma tão grande mobi-
ba ixa na ava liação nacional. Experimenta, em final de ano, gran~ lização familiar produz. Na verdade, tudo isso só pode se tornar sur-
eles dificuldades em todas as matérias. Assiste-se, claramente, neste preendente se permanecermos num níve l muito abstrato de defini,
caso, a um caso paradoxal de superinvestimento escolar que não leva ção de um comportamento de "mobilizaçfio", oe "superescolarização"
aos efeitos esperados. Écomo se houvesse uma distorção objetiva entre ou de "superin vestimen to escolar", É preciso considerar um pouco
os fins visados e os meios utilizados ou detidos para chegar a eles. mais de perto as práticas e os comportamentos fam il iares, assim
N umerosos índices mostram, contrariamente ao que se imagina fre, corno ~l economi a psíquica particu lar das relações pais~filhos.
qüentemente, que não há nenhuma "omissão" dos pais, nenhum
"abandono". O pai deseja para o filho um belo futuro escolar, gos-
taria que se saísse me lhor que ele na vida, aplica sanções quando ele O pai é operário qualificado, mas tem práticas de le itura incon-
cai escolarme nte, diz a seu respeito, como sua mulher a propósito de sistentes. Prefere ver o jornal televisionado a ler o jomal. Quando
Johanna, que Ué preciso a gente ficar atds dele". A mãe controla cans, o lê, inreressa,se pelas notícias policiais e pelo futebol, mas não, tal
tantemente a fi lha, manda-a fazer as tarefas, verifica se as fez corre- como sua mulher, pela política ("A política eu não gosto muito, não
tamente, contro la suas notas, sua freqüência, pllne~a Oll bate nela é meu campo") , da qual se sente muito afastado. Foi fê de histórias

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAçÕes

em quadrinhos populares na infânc ia (Blek Ie Roc, 2emb/a, Akim). vol ta dos 30 anos, mais do que na esco la por vo lta dos 16-1 8
Quando ele diz: "Antes, outrora, lia muito", sua companhe ira come, anos). ou como muitos empregados em contato direto com pes-
ça a gargalhar, contradizendo-o, com isso, imediatamente. Ele, soal mais qualificado (a aux iliar de enfermagem, oriunda do pessoal
e ntão, acrescenta: "Agora não tenho mais tempo, sou mais televi, de limpeza , está em contato com a enfermeira e com o médico),
são, ora". A senhora U. parece ler um pouco mais que seu compa- o pai e a mãe mantêm uma relação ambivalente com a cultura esco-
nheiro''' . Ela compra revistas (March, Maxi, Femme Acwelle) para lar, impregnada de reverência mas afastada da maioria de seus pon-
ler "no serviço", lê Té/é-Poche inteiro, é assinante de France Loisirs tos de referência, compreenderemos, então, o próprio estilo da entre-
e declan] le r um li vro por mês. Entretanto, não é, de fato, capaz de vista. Por um efe ito de legitimidade, os entrevistados sem dúvida
dizer o gênero de livros de que gosta. Como seu marido, enrola-se orientaram, consciente o u inconscientemente, suas respostas para
um pouco em suas expl icações: "Quando tenho tempo também, por- os pólos mais legítimos . Não é por acaso que a mãe não consegue
que quando a gente trabalha, hein?, mais durante as féri as, ou então deixa r de rir quando o marido diz ter lido muito "antes". Ela tam-
quando ten ho um tempo". E, mais ad iante, torna a acrescentar bém não deixará de faze r o mesmo (aliáS, o marido não estava mais
ainda: "Eu gosto bastante de ler, porque então, agora, eu leio menos ali) a propósito de suas leituras de romances, sobre os qua is não
porque não tenho tempo". conseguirá dar mui tos detalhes. Podemos, afina l de contas, per-
A mbos crêem que a enciclopéd ia é para seus filhos e não para guntar-nos que va lor devemos atribui r '15 decla rações dos pais a
eles. Q uase nunca a utilizam, tanto quanto não utilizam os dois dicio- respe ito de seus níveis escolares.
nários ("Mais para enriquecer eles, porque ele [o filho] nos faz uma O utro ponto central na compreensão desta configuração fami-
pergunta, ele só tem que olhar lá") . O ra, uma enciclopédia como a liar: a relação dos pais com a escrita. Dizem explicitamente não gos-
deles não é, sem dllvida, muito acessível a c rianças, mesmo às de tarde escrever e preferir telefonar ("Não gosto de escrever", diz prin-
6" série (principalmente para um aluno com dificuldade escolar). c ipalmente a mãe, "toma tempo"). O pai raramente se envolve com
Trata-se de um patrimõnio cultural que quase não é mobilizado a escrita doméstica e pede explicações à mulher sobre a maneira de
pelos pais e para o qual as crianças estão, sem dúvida, totalmente preencher o formu lário de impostos (ela declara isso quando ele se
despreparadas. É um patrimônio cu ltural morto, não apropriado e ausenta por um instante). Mesmo que haja um ev iden te desequilí-
impróprio. Mas haverá metáfora mais perfeita para um patrimô nio brio do ponto de vista das tarefas domésticas de escrita "a favor" da
cu ltural morto do que a disposição que nós, imed iatamente, cons- mãe ("Sim, tudo, papelada é com igo"), esta, o rgan izando, mais do
tatamos ao entrar na sala de jan tar? Os volumes ex ibem, a quem os que o companheiro, a vida familiar (por sua posição na divisão sexual
esteja olhando, o seu corte de frente, e n ão a lombada. do trabalho doméstico, ela gerencia o cotidiano doméstico e é for-
Nem o pai nem a mãe vão à biblioteca municipal e também não çada a recorrer à escrita: lembretes, agenda para O estudo e para a
levam os filhos ali . Johanna "está começando a ler", segundo sua cantina dos filhos, cartas às repartições, bilhetes para a escola, for-
mãe, mas não lê li vros sem imagens. Ela não tem ass inatu ra de algu- mu lário de impostos ou de seguro soc ial, listas de coisas a serem
ma revista para crianças e nunca pede livros, salvo qua ndo está num levadas em férias, caderneta de números de telefone e de endere-
supermercado. Não tem um espaço pessoal para colocar os próprios ços), quando não se vê forçada, também não utiliza realmente a escri -
livros, que se espalham por toda parte em seu quarto (eles parecem ta (USim, no trabalho sim , a gente é obrigada, he in ?, é, é, escrever
não estar arrumados). no trabalho, escrever aqui, assim de vez em quando, é ... ") : nenhu-
Se postularmos a hipótese de que, como muitos operários qua- ma lista de compras, pois estas são feitas espontaneamente ao pas-
lificados na prática e tardiamente (em estágio de formação, por sar pelas gôndolas {"Vou, passo em cada prateleira, vejo o que tá

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

faltando (riso) e pronto, tá pronto"}, nenhuma lista de coisas a Nesse aspecto, se e la não fize r as tarefas, a mãe também ralha
serem feitas (exceto para dizer aos seus para fazerem o que ela pró- com ela. A mãe até ex plica que, às vezes, a filha fica estudando
pria n ão pode fazer quando está traba lhando), n enhuma nota no até as 2\ h 30, e que nno va i se de ita r e nqua nto n ão tiver termi-
ca lendário-agenda, que, outro detalhe revelador, está na data erra- nado. Ou então ela a chama às 6h da manhã para que termine as
da quando da e ntrev ista, nenhum livro o u caderno de contas, tarefas. A mãe ch ega a esclarecer que é muito mais a prima de
nenhuma nota antes de um telefone ma impo rcante, etc. Johanna (2\ anos, Cerrificado de Conclusão do 10 Grau Profis-
~lS ausências marcam lima o rganização doméstica muito pouco sionalizante de costura, agente de serviço n o hospital) que se encar-
centrada na raciona li zação, na previsão e no cálculo. O utrO índice rega de ajudá-Ia, pois e la própria acaba ficando nervosa e batendo
disso tmnbém é o fato de que a mãe reconhece n ão ser muito "o rga- ne la. Aliás, " filha se dirige ma is à sua prima, por causa do com -
nizada": ela realmente não arruma os documentos familiares, que portamento da mãe: "Quando, às vezes, já lhe explique i duas ou
tem dificuldade de e ncontrar, e faz os próprios filhos arrumarem os três vezes e el a me acaba fazendo a mesma bobagem, então isso
quartos, rec u sando~se a intervir: "N ão é fê:kil, hc in ?, pra e les, bem, me e ne rva e eu bato nel a". Podemos dizer que, par;) as c rianças,
mas eu deixo eles fazerem, he in ?, e eu não arrumo, hein?". Confes.. a esco la e tudo o que de la decorre (especialmente as tarefas) po-
sando que os fil h os têm dificuldades para arrumar o q uarto ()ohan- dem se mostrar, pelas experiê nci as familiares que têm, como uma
n a chora para não fazer isso), faz pensar que os diferemes cômodos ocasião de sofrimen to, de punição, de san ção, de privação, de ner-
devem ficar freqüentemente e m desordem. Da mesma forma, os horn~ vosismos, de surras, e assi m por diante. Johanna freqüentemen ..
rios de deitar, de higie ne corporal e de refe ições são freqüentemen- te esquece os cadernos na escola, vendo~se, ass im , ameaçada pel a
te var iáve is, indicando com isso uma irregularidade nos ritmos mãe ("Freqüentemente, s im, sim, então mais ameaças também:
familiares. A ausência de disposição racional marcada, visfvel tanto 'Você va i levar lima surra', ah, mas é freqüente, hein?"), e pode,
na o rdem dos cômodos o u nos ritmos fmniliares quanto n~l manei .. mos nos perguntar se o esquecimento dos cadernos o u dos livros
ra de gerenciar a atividmje do mést ica, pode revelar-se importante n ão é um a to fa lho sociologicamente compreensíve l da parte da
para a cO ll1preensão do IIfrac~sso" escolar de Jo hanna. Alhís, vemos me nina: é fác il esquecer de levar objetos que silo a origem de uma
um efeito direto dessas características familiares n as palavras do pro- experi ên c ia do lo rosa'''.
fessor, referindo-se a Johanna, que gos ta "de te r muitas coisas em Num po nto de vista superfici a l, poder-se- ia ver, nas práti cas
volta dela". de vigi lância, de controle, de c h amada à ordem , os índices de uma
Enfim , os modos de intervenção do pai em relação ao filho (fOi ele mob ilização familiar positiva"'. A mãe conhece bem a s ituação
quem puniu O filho quando seu resultado escolar baixou) e da mãe em escola r da filha, sabe que não repetiu , está também a par de suas
relação à fi lha parecem ser muito coerc ivos. Quando as co isas não vão dificuldades escolares, que começaram na pré-esco la, "em todas
bem na escola , os pais reagem rapidamente, mas através da punição, as matérias ll ; na sua opi ni ão, é O ditado que lhe traz mais prob le ..
da chan tagem, da sanção, da privação, da coerção. Quando as notas mas - e o professor observa, com efeito, grandes dificuldades e m
de Joh anna ..;0 ruins (e elas o são freqüentemente) , a mãe diz que e la ortografi a. A senho ra U., aliás, vai regularmente ver o professor,
"leva uma surra", que ralha com e la ou que faz chantagem com ela faz perguntas a e le sobre o trabalho da filha, pergunta-lhe se ela
com os presentes de aniversário, emhora confesse que isso não ft.m~ está progredindo, se ela é "ajuizada" Oll IIdistraída" e m au la, vai
ciona durante muito tempo, pois Johanna é qualificada de "cabeça- às re uniões da escola com o ma rido e ach a que é útil porque
dura". É preciso constantemente, segundo a mãe, lembnl .. la de fazer ficam sabendo "o que está acontecendo n a escola". Durante os
as tarefas, estar sempre "atrás dela", senão ela só quer brinc:l r. longos períodos de férias, Joh"nna fica e m casa com a prima o u

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PERFIS DE CONFIGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

então viaja para a Martinica; compram-lhe cadernos de exercícios sobre os estudos de Johanna (vigilância, acompanhamento, contro-
de férias e ela tem de estudar 2 horas todos os dias, apesa r do fato de le, chantagens, punições ... ). e Johanna, de fato, não ter nunca opor-
ela "rebelar-se". tunidade de fa lar de sua experiência escolar o u de "ter explicações"
Mas vemos, ademais, numa tal configuração familiar perpassa- ca lmamente, sem excesso de nervosismo , isto é, que as tentativas
da por contradições culturais (por desejos e expectati vas para cuja Je trabalho escolar não estejam associadas sistematicamente com
rea lização não se encontram os me ios conc re tos), os índi ces de experiências infe lizes ' 14 .
uma mobili zação familiar de efei tos negativos não controlados. As Apesar da maneira "correta" como os pais fa lam, sentimos a fra~
crianças parecem estar submetidas a um sistema de double bind* com gilidade das informações e a frágil coercncia de algumas de suas
pais que punem sem dar o "bom exemplolt e que incitam excl ll s i ~ palavras. Por exemplo, é como se o pai quisesse empregar uma ret6-
vamente em fo rma de sanções. Os princípios ou as vontades apre- r rmu Ias, pa Iavras (" mestr:1 do ", "I a boraton.sta ")
rica, expressões, r6 .. .
goados pe los pais diante de nós ou diante dos filhos podem tam- que dão aparência da "boa linguagem" t da uboa mane ira de falar'\
bém nem sempre ser colocados em prática. Enquanto;'l mãe diz que sem dom imí-Ias J e faro. Com isso, O emp rego delas é um pouco vago
é obrigada a luta r para q ue a filha faça as tarefas, em vez de ver tele- ou aparece em contextos sintáticos ou semânticos nem sempre muito
visão, esta fica ligada durante quase todo o tempo da entrevista : está pertinentes. O que as palavras d izem, e os valores que elas parecem
ligada sem q ue alguém em particular a esteja vendo, quase como encerrar, entra imediatamente em contrad ição com o e mprego que
uma emissora de rád io que se teria posto como fundo sono ro. Jelas se faz. Isso tamhém acontece com sua mulher, cujo discurso se
No decorrer da entrevista com Johanna, esta ap resenta suas caracteriza por imprecisões léx icas e raciocínios um tanto quanto
ações depois da sa rda da escola na seguinte orde m: lanche, tarefas, imprecisos. A liás, a entrev ista com Johanna revela uma men ina
televisão, brincar com o irmão - prestando bastante ate nção para bastante tímida, que fa la baixo, quase sussurrando, como q ue para
colocar as tarefas antes da televisão, como a mãe não pára de lhe não fazer barulho, e que sente, como os pais, certa dificuldade de falar
repeti r. Mas se Jo hanna afirma também preferir leitura a tel evisão de mane ira coerente e exp I"ICltaII'i . N a entreVista,
. aIguns "eles" , "a
(interiorizou bem a legit imidade relat iva das d uas práticas), fala mais gente", nós " re metem a pessoas raramente explicitadas, salvo pedi,
U

dos programas a q ue assiste ("Vejo Madame est servie e Sauvé par le do de nossa parte. Como em relação a seus pais, podemos dizer que
gong, e Pro! et tais-toi") do que dos livros que lê. Da mesma forma, há imprecisões em sua linguagem, e que ela tem formas de raciocinar
a mãe di z, prime iro, que a filh a não pode descer para brincar; depo is, um pouco surpreendentes. Quando lhe perguntamos, por exemplo, o
d iz que va i brincar, às vezes, com O irmãozinho ; e acrescenta, mais que prefere na escola, ela inicialmente responde que é "francês"e "mate,
adiante na entrevista, que, 1105 fins de semana, quando o tempo está mática". Depois diz que o que gosta menos são "os exercícios". E fin al-
bom, e la lia manda descer", mente acrescenta, depois de um ped ido de esclareci mento: "Fora os
Além disso, a mãe diz, o que pode parecer cont rad itório com o exercícios de matemática e francês, não gosto dos exercícios de, de ...
investime nto escolar, não "falar muitd ' da escola com Johanna, com (silêncio de 7 segundos) gramática". Além disso, Johann, não domi-
exceção do que eventualmente tenha acontecido no recreio (acerca na a noção de tempo (duração e horas) : não consegue aval iar q uan-
das outras crianças que possam estar incomodando a filh a). to te mpo dura seu trabalho escolar da noite, diz que d eita às 9h da
Entretanto, talvez não seja tão contraditório assim: O diiílogo fami- no ite, mas não sabe a que horas s~ deita nas noites e m que fica acor,
liar a respeito da escola parece reduzir-se a um monólogo dos pais dada até mais tarde: "Depois de Equalizeur"lI>.
Se q uisermos acrescentar um último retoque ao perfil familiar, é
• Em inglês, no llrigin.l 1. (NT) preciso, sem dúvida, considerar o fato de que ambos os pais traba-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

!ham, a mãe com ho rários va riáve is e o pai viajando durante uma traba lhando como pedreiro na construção civil. A prende u fra ncês
semana em cad:-'l duas . Mas essas situações profi ssio nais que apenas q uando chegou à França, mas não sabe ler nem escrever (nem em
poss ibilitam po uco _tempo de dedicação aos filhos não explicam ára be , nem e m francês). Seu pai, lavrado r na Tunísia, mo rreu antes
nada em si mesmas. E apenas recolocado no seio da configuração fami- mesmo de e le nascer. S ua mãe estava gravemente doente, e depois
liar de conjunto que esse último aspecto pode adquirir um sentido "ficou inválida". Era o filho que a aj udava financeiramente.
particular. A senhora H., de 35 anos, fo i à escola na Tunísia du rante 6 anos.
Durante 3 anos estudou ape nas árabe, e depois o árabe e o francês,
• Perfil 2 1: Os limi tes da despesa fa mili ar. por mais 3 anos. Sabe ler e escrever em árabe, e lê e escreve com
Kais H .. nascido em Villerbanne, um ano atrasado (repeLêncill da 1 série
(I d ificuldades em francês ("Tem erros" ), Conheceu o marido quando
do I Q grau) , obr.e·l!e 6,7 na avaliaçl10 nacional . este estava de férias na Tunísia, há 13 anos, e , desde então, vi ve na
França. Faz 5 meses que ela começou a trabalhar como fax ine ira em
Estamos adi antados para o encontro; a senho ra H . acaba de d ife rentes loca is, emprego que a obriga , às vezes, a ho rários até tarde
chegar do traba lho e se apressou para estar em casa antes de nossa da no ite. Seu pai teve mais o u menos o mesmo níve l escolar que e la
chegada. Está um pouco maq uilada, usa roupas modernas. A casa, e, antes de aposentar-se, era caminhoneiro por conta própria (trans-
bem c uidada, pa rece~se , em sua decoração, mais com um lar euro~ portava fru tas e legumes). Sua mãe, analfabeta, não fo i à escola.
peu do que Outras casas magrebinas visitadas" '. O senhor e a senho ra H. têm quatro filhos: uma menina de 11
Durante a entrevista, ficamos sentados num sofá, À nossa fren- anos, esco!rlfi zada, na 5i! série ; um menino de lO anos, esco l a ri za~
te, a senhora H . sentou-se numa poltrona. Entre nós há uma mesa do, na 3" série (série em que ficou retido no ano an terior) ; Ka'is,
baixa. A irmã mais velha de Ka'is ta mbém está sentada no sofá, à escolari zado , na 2i! série do I!:! grau, e uma menina de 6 anos, esco~
nossa dire ita. Menina sorriden te, amável, responde, algumas vezes, larizada , na pré-escola, e a propósito de q uem eles nos explicam, de
às nossas perguntas e se expressa como um adulto. Sua mãe fa la arras~ imediato, que é a prime ira da sua classe.
tando os "r" e pronuncia "lé" po r "le", "pé" por "peu", "ti" por u tu ", O caso de Ka'is nos fornece o exemplo de um meio social que,
Cljo urni )1 por "journée" ... Tem, portanto , um fo rre sotaque tun is iano, aparentemente, apresenta todas as características do me io "desfavo ..
mas se faz compreender. Q uase no fina! da entre vista, a irmãz inha, recido". Se falarmos a linguagem das variáveis e se objetivarmos esse
Ka'is e o irmão mais velho chegam e se instalam, por algum tempo meio com a ajuda de variáve is socio logicamente clássicas, nos encon~
- os meninos atrás da mãe, a meno r a seu lado - , para escutar nossa traremos em face de uma situação objetivamente desfavorável. O pai,
conversa . O funcionamento da entrevista é pe rfeitame nte reve l a~ pedreiro, é analfa beto. A mãe, fax ineira, com um pequeno capital
dor da configuração familiar: o pai está no trabalho, a irmã mais velha escolar (em relação a outras configurações familiares em que a crian-
respo nde às perguntas junto com a mãe e os meninos estavam fora ça estava em "fracasso"), domina o fra ncês com d ificuldades e, caso
e só inte rvirão quando chegarem, no final da entrev ista, tenha lido na juventude, não lê quase mais nada : "Antes de me casar,
O senhor H ., de 45 anos, nunca foi à escola na Tunísia, "Éa famí- eu pegava em árabe, às vezes em francês, e tudo , eu leio. Mas desde
lia dele, é um pouco pobre e tudo. Ele não encontrou os meios. Sua que ... Estou ocupada, não sei, não encontro tempo (e la ri)", De vez
mãe trabalhou um pouco nas casas para ajudá- lo um pouco. Ele não e m quando, compra um jornal tu nisiano, em fra ncês ("Para saber,
chegou a estudar ou algo assim ." Fez vários tipos de serviços ("Em nosso ministro, O q ue é que ele conta") e uma programação de tele-
qualquer lugar, quando ele acha alguma coisa de bom, ele faz, hein ?") visão. O senho r e a senhora H . possuem o A lcorão, mas ape nas o
antes de vi r pa ra a França, há q uase 20 anos. Desde o início, está lêem raramen te, po is aprenderam preces de cor na infância.

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

isso, não é? Não acredita? A gente até não fica pensando mais entre Sabine e o irmão provenham dos modelos sexuais de iden-
quando faz isso. niio é? mas precisa fazer. é claro"). escreve coisas tificação tota lmente diferentes.
no ca lendá rio da família ("Porque é mais fácil pra mim. O ca len- Se, por uma ou outra razão, tal como encontramos em outras con,
dário fica diante de nós quando estou comendo à no ite") e, num figurações familiares. o senhor G. gostasse de imprimir mui to mais
bloco-calendário que tem no loca l de trabalho. guarda receiras a própria marca nos filh os. a situação não seria absolutamente a
coladas num caderno elA gente retira, eu tenho um caderninho meu. mesma para eles. A configuração das incitações socializadoras se acha-
Freq üentemente recorto e colo") em ordem alfabética ("É bem-arru- ria muito mod ificada. Na situação descrita. o senhor G. parece
mildo"), rroca~as com as "colegas", faz anotações depois de uma c ha~ desempenhar o papel de um capital econô mico que delega à mulher
mada telefônica. troca pequenos bilhetes com o marido e dei xa alguns toda a gestão das questões familiares, dentre as quais as questões esco~
para os filhos ("Mesmo pras crianças. outro dia deixei um pra eles"). lares. A situação é, po rtanto, relativamente coerente para os filhos,
A senhora G. dá mos tras de grandes disposições racionais na pois a delegação de autoridade leva ao esmaecimento do caráter rela-
orga nização do cot idi ano fam iliar c utiliza freqüentemente. para tivamente contraditó rio das características familiares,ligado à mis~
tanto. escri tos domésticos. Em contrapartida. o marido deixa tudo c ibilidade social do casal.
por conta dela ("Ele berra quando niio tem mais dinheiro" . diz ela
falando dcle com humo r), e ela aceita a situação como se fosse uma Os "brilhames" sucessos
ev idênc ia: "Acho que é. de qualquer forma. da minha natureza.
não é?, fazer assi m. Nunca me pergunte i" . Será, portanto, um COIH.:lUl -"C 411C, mc.. mu 4Ué a ('lInih .l não I,)
"ubnl:,'UC" muHU. é d e quem O
'"" flhng:l" (um WJ.b
acaso se a mãe observa que a filha "se o rganiza quase sozinha" para ,l\ ~Ui.I' fl\rça~ c par.! .11~1ll de \ lll.lll{llC r Illcd id ,I,n .
as tarefas ? ("Ainda o ntem. ela me disse: ·Ah. bem. eu tenho
te mpo. é pra sábado que ve m. eu vou fazer· ... ) Para ela. é porque Os últimos perfis de famílias agrupados agora (pode-se também
ehl é uma menina (em sua cabeça, uma me n ina é, necessariamen~ ler o Perfil 22 na mesma perspectiva) são casos de verdadeiros "êxi-
te, o rdenada, ansiosa, preocupada): "Porque é as me ninas, não é?, tos", sem defeitos, que os professores percebem como "brilhantes"
com as menin(ls rem ourra coisa , é tudo mais ordenado . E tam~ sucessos em meios populares. Por sua diversidade. estes exemplos são
bém . ela é preoc upada. ansiosa. fi ca aflita. então. ela também tem uma prova do fato de que não h,' um estilo familiar único que leve
suas confusões. Eles rêm o livro de textos e ela entende ráp ido . à conclusão da escola primária. Estes casos se mostram, pela regllla~
como tem de ser. Ela é esperta . São as meninas". Será um acaso ridade. pela linearidade dos resultados. como fatos excepcionais.
re r sido a filha q uem pensou por si mesma em escrever na lousa Todas as crian ças parecem ter interiorizado precocemente - J.Xlr razt1es
da família o que estaria faltando ("Pilhas para o walkman") e a mãe de singular economia socioafetiva que a análise sociológica das rela-
ter esclarecido que o filho nunca teria tido essa idéia ("Mas fo i ções de interdependência tenta reconstruir - o "sucesso" escolar como
e la que inv ento u isso, porque o maio r, ele não teri a pe nsado lima necessidade interna, J>essoal. um motor inte rior. Assim, e las têm
assim") ? Será ainda um acaso se o filho é, escolarmente. um pouco menos necessidade de solicitações e de adve rtências externas do que
menos "brilhante" que a irmã (ele. principalmente. foi à fonoau- outras crianças, e até parecem, às vezes, ma is mobilizadas do que os
dióloga: "O irmão também estuda bem. mas ela tem. talvez. mais pais (p. ex .• Perfil 23 ).
facilidade do que ele . Ele talvez tem um pouco mais de dificulda- A autobiografia de Richard Hogga rr"' . intelectual o riundo das
des e m francês, é menos expansivo que a irmã. A irmã está bem classes populares inglesas. nos dá um bom exemplo dos casos de "suces-
à vontade")? Ninguém duvida de que as nuances de escolaridade so" improvável (o Perfi l 25 apresenta numerosos pontos em comum

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

com a situação familiar vivenciada pelo autor) c, mais ampl amen~ e enfim de sua tia Annie, que, como a avó, tem para com e Ie " um
te, da maneira como podemos justificá-lo. Com efeito, num gêne- amor desi nteressado". Mesmo a figura contrastante de seu tio
ro particular de escrita, uistinto do gênero literário que consiste em Walter (que "esbanja" seu talento bebendo álcool) não é totalmen-
sempre dar prioridade à vida e aos senti mentos do autor, Hoggart te negativa: Hoggart se lembra de que, num universo socia l bastan-
nos oferece uma autobiografia que não está exclusivamente volta- te distanciado da cultura escrita, seu tio Walter escrevia histórias
da para um percurso individual isolado, mas que nos ap resenta, atra- "conforme o modelo que podia ser encontrado nas baratas revistas
vés de um minucioso trabalho de reconstrução, as diferentes con- semanais da época"l!!'. Da mesma forma, o avô paterno (morto antes
dições sociais de produção de sua pessoa. A autobiografia, para ele, que ele se integrasse à família), caldeireiro e "bem acima de um ope-
só pode ser a descrição de si mesmo visto, e incessantemente for- rário não-q ualificado" , ficou na memória da família como um
mado, constituído, num tecido de relações sociais, de m(lltiplos homem caracterizado por um orgulho profissional.
vínculos de interdependência . E se acrescentarmos a impo rtância de um diretor de escola pri-
Hoggart viveu muito pouco com os pais: seu pai, pintor de pare- mária e de um professor da Universidade de Leeds que foram solíci-
des, que teve muitos períodos de engajamento nO exército, morre tos em ajudar materialmente e em encoraja r o jovem Hoggart (com
antes da idade de 40 ou 45 anos, e a mãe, originária de uma famí~ injunções preditivas do tipo: uÉ preciso que você vençil. meu jovem"),
lia de Liverpool, considerada pelo lado paterno como de "classe compreenderemos todos os pequenos elementos, materiais e simbó-
melhor", morre quando seu fil ho tem apenas 7 ou 8 anos. Essa mãe, licos, que contribuíram para tornar possível um improvável "suces-
verdadeiro "princípio organ izador do lar", se camcterizt:l, antes de so" escolar. No entanto, é necessário esclarecer que esses múltiplos
tudo, por uma recusa constante, ligada provavelmente a sua o rigem elementos não se somam uns aos outros, mas se combinam para c riar
social menos popu lar, da "negligência", do "desleixo" e da "indul- a realidade, tão evidente à intuição quanto rebelde aos esforços de
gência", características de outras famílias também deserdadas. Viven- objerivação. que um "cl ima familiar" escolarmente favorável cons~
do em cond ições materiais muito precárias e , sob muitos aspectos, titui. Não estamos, neste caso, diante da lógica dos investimentos
humilhantes (a família Hoggart, composta da mãe e de seus três filhos, que se somariam entre si, onde o ntllnero mais ali menos elevado de
fica sob a responsabilidade da paróquia, da Comissão da G uarda investimentos determinaria o grau de "sucesso" escolar.
Civil e da assistência socia l da municipa lidade), ela, com o pouco As an~lises estatísticas de alguns percursos escolares de lIêxito" em
dinheiro de que dispõe, gerencia, como pode, uma vida familiar con- meios populares fazem, aliás, realmente evidenciar-se dois pontos fun-
centrada em si mesma. damentais l!". Por um lado, nenhum faror explica por si SÓ O IIsucesso"
Quando Richard Hoggart, com a morte da mãe, foi separado dos alunos: avós nfio-operários, uma relativa estabilidade profissional
do irmão e da irm~. ficando na casa da avó paterna em Hunslet, na e uma comodidade financeira de um pai mais para operário qualifica-
Rua Newport, 33, integra então um meio que também se caracte- do, uma mãe ativa ou com uma sitlla~1.o profissional mais elevada do
riza por um "apego crispado e contínuo à respeitabilidade, produto que o pai, uma família pouco numerosa, uma trajetória de imigração
do temor de soçobrar sem deixar vestígios"'''. Essa "classe popular dos pais ... , tudo isso pode contribuir para explicar certas trajetórias esco-
respeitável" se personifica nos traços de sua tia Ethel, guardiã intran- lares, mas nenhum desses investimentos se mostra claramente deter~
sigente das exigências da "não-negl igência", do controle de si e da minante. Por outro lado, quando se tenta ver se o acúmu lo de inves~
respeitabilidade, da sua avó "imensamente cnfamiliarizada", despro- timentos mais sólidos pode possibilitar uma melhor compreensão
vida de qualquer ambição pessoal, que quer que o neto "siga seu cami- dos casos observados, constata~se que raras são as famílias que acu~
nho" e, "acima de tudo'\ "saiba manejar as palavras" e "aprenda", mulam os fatores mais favoráveis, e encontram-se até casos de alu-

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SUCESSO ESCOlAR NOS MEIOS POPULARES
PERfiS DE CONFIGURAÇÕES

nos que acu mul am mais investimentos do que Outros e que são ou por breves garga lhadas. De modo geral, não se afastam da pergun-
foram escolarizados em escalões menos nobres. ta feita, e suas respostas são, em conjunto, bastante curtas, mas
sempre precisfls. ~
• Perfil 23: AlIUi. tudo é ordem e regularidade ... O senhor v..
de 42 anos, veio para a França em 1985. E uriginá-
Bun Nat v., nascido na Tailândia, rem, sem dlívida, dois anos a mais rio do Camboja, onde vivenc iou o regime khmer verme lho de Pol
do que a idode declarado. Obrei'" 7.5 na avaliação nacional. POL Entrou para a escola com 9 anos, onde permaneceu até os 24,
na última série do 2· grau, onde estudava matemática. Trabalhou
v..
Quando chegamos à casa do senhor e da senhora o marido ainda inicia lmente no Camboja como policial, depois como "aux iliar de
não tinha voltado do trabalho. Sua mulher, que estava conversando mecânica" na aero náutica . Q uando veio para a França, consegu iu
com uma viz inha cambojana, manda~nos sentar na sala de jantare nos emprego como operário não-especializado e permaneceu nesse cargo
oferece um café. O apartamento no qual entramosse distingue dos outros Jesdc então. Seu domín io precário do francês e o fato de ter perdi-
interiores visitados pela clareza e grande ordem que nele reina. Nada do todos os seus documentos que provam seu nível de estudo o
está jogado pelo chiio ou sobre os móveis. No cômodo, iluminado pela impedem de encontrar um empregu mais qualificado. Seus pais eram
luzdo dia, há um gr<mde sofá. uma mesinha branca encostada na pare- comerciantes num pequeno armazém e traba lhavam também como
de e um telev isor Sony de excelente qualidade. Percebemos uma nesga agricu ltores nos arroza is. Seu pai sabia ler e escrever, m;)s apenas o
da cozinha, que fiC<l ao longo da sala, limpa, arrumaua, clara. Uma sim- que se referia aos assuntos de sua loja (ele não escrevia "cartas muito
ples cortina separa a sala de estar de um quarto de crianças. lo ngas") , e sua mãe não sabia ler nem escrever.
Começamos a falar com a mãe. explicando-lhe o que gostaría- A senhora V., de 38 anos, foi à escola até os 2 1. na última série
mos de saber. Ela parece muito cansada. e observamos, em vulta de do 2" grau de ciências. Ia entrar para a faculdade de direito quan-
seu pescoço, uma cicatriz, vestígio da vida no Camboja sob o regj~ do o regime de Pa i Pot se instalou. Ela nos descreve as condições
me de Pol Pot. A irmãzinha mais nova de BUIl Nat (no 2" ano do de vida no tempo de Pol Pot que reduzia as pessoas à escravidão nas
maternal) estl\ ali. Faz~nos grac inhas e vai esconcle r~sc, como numa "cooperativas" de traba lho forçado. Todas as escolas foram fecha-
brincadeira. Quando as outras crianças chegam da escola, uma a uma, das, e todos trabalhavam 14 horas por dia, sem sa lário, apenas por
olham- nos, mas não dizem nada, e não farão nenhum barulho. No um pouco de comida e uma ro upa por ano. Desde en tão, por causa
final da entrev ista, tomaremos um café com o senhor v.. café que do esgotamento. tem problemas de memória e de coração. Antes
nos foi trazido por Sua mulher. Por duas vezes, a senhom V. nos per- do regime de Pol Pot. estava empregada como agente de impostos.
gunta, preocupada, se nós nos encontramos apenas com refugiados Desde que chegou à França. em 1987. trabalha como costureira em
em nossa pesqu isa, e nos explica, por antecipação, que seus docu~ domicílio. Seu marido a ajuda nos trabalhos de costura. à noite, quan-
mentus se que imaram no decorrer da imigração que. do Camboja, do volta da fábrica. Os pais da senhora V. eram comerciantes um
os trouxe para a França, passando pela Tailândia. pouco mais abastados que os de seu mariuo. Também eram agricul-
O senhor e a senhora V. falam. com um carregado sotaque cam- tores e possuíam tratores. Os dois escreviam e liam bem, e seu pai
boja no, um francês cujo domínio é muito imperfeito do ponto de até poderia ser professor primário, "porque eles vão à escola duran-
vista sintático e léxico, e que, às vezes, temos dificuldade em te muito tempo", umas ele não quer fazer", "ele quer fazer comer~
compreender. Mas compreendem bem as perguntas e, em caso con ~ c iante". O senhor e a senhora V. também poderiam ser professores
trário, não hesitam em pedir esclarecimentos. Não transparece primários, pois haviam concl uído o 2" grau, ao passo que, para
nenhuma reticência. O [Imbiente é tranqüilo, às vezes pontuado tanto, bastava o 2" ano.

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SUCESSO ESCOLAR: NOS MEIOS POPULARES PERFIS DE CONFIGURAÇÕES

o
·cnhor e a senhora V. têm quatro filh os. O mais velho é um filh o. N ão é considerando, rápida e superfic ialmente, as caracte-
rapaz de 14 anos, esco larizado na 6" série. Depo is vem um outro rísticas obj etivas e as práticas dos pais que se conseguirá exp licar
mcn ino de 10 anos, na 4" série; Bun Nat, de 8 anos, na Z' série do um uStlcesso" escolar tão admirável.
12 grau, e a ((I t i ma, de 4 anos, no maternal. Entretanto, há uma Se examinarmos, inicialmente, as práticas de le itura, ficaremos
dú viJa em relação à idade das crianças. O professor de Bun Nat sabendo que, apesar de o senhor e a senhora V. terem aprendido fran-
nos disse, com efe ito: "A idade ofic ial não é a sua idade rea l. Na cês na escola no Camboja, eles o lêem com dificuldade. A senho-
verdade, ele de ve ser de 8 1 (e n50 de 83 ), acho. Na rea lidade, é ra V. diz que há frases que ela não entende (" Ela não entcnde o sen-
mais ve lho , e , freqüe nteme nte , e ntre os ca mbo janos ou os v ietna# tido para as frases", explica o marido ). Mas e les não têm ne nhum
micas, eles enganam sobre a idade para poder recupcrar o nível esco- tempo livre pa m ler, pois ambos trabalham muito (o pai, desde que
lar. E ele deve ser de 8 1. Ele diz isso abertamente, inge nu amente". vo lta do trabalho, ajuda a mulher a costurar: "Não muito tempo para
Bun Nat é descri to , na Z' sé ri e do 1° grau, como um "super- ler assim . Trabalho depois assim"; "N ão, porque o senhor sabe,
bom aluno'\ II muito escolar, pe rfe ito , c uidadoso, impecá ve l", que como a gente trabalha sempre, trabalho mui to, n;;o posso fazer tudo
escre ve bem . Ele até é visto corno ullla c ri ança II lllu ito minuc iosa" sozinha. Meu marido ajudar um pouquinho qua ndo sa i trabalho, ele
e que rea liza "belos grafismos" desde a escola maternal, que fre- ajudar para costura ass im") , e não lêem, portan to. nen l~um jornal,
qüe ntou durantc Z anos. Termina o ano seguindo as aulas de ma te- nenhuma revista e nenhum livro em francês ou em cambojano. Quan#
máti ca com os alunos da Jõ! série da classe , ca mpo e m que e le é J o evocamos a possibilidade de ler histórias em quadrinhos, riem e
particu larmente excelente. De qualquer forma, tem algumas lac u- nos dize m que os filhos deles possuem algumas, mas que eles não
nas na expressão o ral e escrita, isto é, nos ca mpos e m que o domí# têm tempo para esse tipo de coisa ("Nunca ler. N unca ter tempo
nio preciso da Irngua francesa est,í em jogo (confunde, na linguagem para ler ass im") , ne m mesmo , segundo eles, para os jornais distri #
oral , os masc ulinos e os femininos, por exemplo). Não contente buídos gratuitamente nas caixas da correspondência.
de ser um excele nte aluno e m mate mática ( l Ona maioria das pro# A penas o lham, de vez em quando , os livros de matemática e de
vas: "Em mate mática, e le realmen te domina o assunto" ) Il(l e um física do filho mais ve lho, pois se interessam por isso: "Como o livu-
mu ito bom aluno em francês (mesmo assim , cle te m 8,2 como média ro de matemát ica, sim. eu le io muito porque tem interesse para mim.
geral de francês , o u seja , 8 em le itura#compreensão e 7 e m expres# O física também. Sim, ass im". Achmn que os métodos mudaram,
siio esc rita). Bun Nat desenvolve qualidades de compe tido r: "Ele mas ucu sigo sempre", diz a senhora V : "Os métodos, uifercnte um pou#
quer ser o primei ro , quer ve ncer. Seu obj e ti vo é sempre fazer o quinho, mas leio um pouquinho e depois cntendo", diz o senhor V.
me lhor possíve l, vencer os outros". Tem um "tempe ramento de COffi # Eles compraram uma enciclopédia para que os filhos, quando cres-
pet ido r", "compara#se sempre com os o utros", va i solici tar a clas# cerem, possam fazer as tarefas ("Sim, muitos vo lumes, sim , para meus
sificação (que o professor não entrega publica mente na classe ) e, filhos também, depois d>l S>l ída da escola, c voltam pra casa, não tenho
"se não tiver a melhor no ta, não fi ca satisfe ito ". Alé m disso, não muito tempo pra ver, pa ra acompanhar a tarefa ass im" ), e sabem
se nota ne nhuma queda no decorrer do ano: uFo i exce len te do perfeita mentc bem que ela não é um instrumento de trabalho para
começo ao fi m. É semprc mu ito bom". O mesmo professor teve as crianças que estão no primário, mas mais para as c n anças que cur#
como aluno um irmão mais velho (o que est<í na 4" série). e diz sam o ginásio e aci ma. Também têm um dicionário , que consultam
que se tratava de um "a luno do mesmu tipo", prova de que o de vez em quando (o senhor V. diz: "Se eu não compreende r, ablo
"sucesso" escolar de Bun Na t está relac ionado a uma configura- o dicionário, explicar ass im, mas não tenho muito te mpo para ler
ç ão familiar singul ar que produ ziu efe itos em, pe lo me nos, o utro ass im), mas que é, sobretudo, para as c rianças: (lAh , não , é meus

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERFI S DE CONFIGURAÇÕES

filhos! (Ela ri.)". A se nhora v., às vezes, também os leva à biblio- lares relativas aos quatro filhos. Além disso, falam raramente sobre
teca municipal, para que eles retire m livros, e os compra quando a escola com os fi lhos, somente quando há algum problema: "Não é
e les têm necessidade, mas trata~se unicamente de livros escolares: sempre não. Como te m um probre ma sim, se não tem probrell)a... ,
"Si m, se ele quer livuros como matemática, como ortografia ou gra- probrema com as tarefas, com meus filhos. E com probrema assim.
mát ica, leva na loja para comprar, sim, sim , ou ler alguma coisa tam~ Sigo todos os tirimeste assim. Vejo a caderneta da escola. Se as notas
bé m, se e le quer". baixa que o mês antes, eu falo: IPor que as notas baixar um pouco assim.
Q uanto à correspondência, o senhor e a senho ra V. tentam Precisa aprender bem', eu converso com e le ass im para ... ".
resolvê- Ia entre si sempre que possível, sem a ajuda das crianças. É Bun N at não fica nos horários de estudo livre e faz as tarefas em
mais ele quem cuida da correspo ndência e a redige, pois veio para casa. O pai diz que não tem muito tempo para ajudá-lo: "Se eu
a Fmnça dois anos am es da mulher e domina melhor a língua escri- tenho um pouco de tempo, aco mpanho as tarefas com meus filhos,
ta, mas é ela quem so licita a ajuda da ass istente social qua ndo se assim . E depois, cansado, eu descanso!". Bun Nat, às vezes, lhe pede
trata de documem os mais complicados que o normal, em relação explicações (liDas vez, meu marido, ele exprica. S im, se tem a lgu~
ao sa lário-famíli a. Quando não consegue, o senhor V. pode recor- ma coisa assim. S im é meu marido que expricar que mostrar sim, mas
rer, numa primeira vez, a alguém, mas depois é ele mesmo quem faz: não tempo inteiro"). Q uando perguntamos ao irmão mais velho
"A primeira vez, mas a segunda vezjá sei bem". São e les que preen~ presente se ele ajuda Bun Nat, ele responde laconicamente: "Não,
chem o formulário de impostos, que fazem os cheques ("Sem pro- deixo ele se virar". Q uando tem notas menos boas, seu pai lhe diz
blema") , que fazem os bilhetes para a escola ("Sim, sim, a geme pode para ler mais e aprender: "Ele chegava na casa e eu fa lo fi ele para
fazer isso. Po rque é bilhete sempre. Não é compricado! (Ela ri.) Se aprender, para ler assim, o lha bem a gramática, ortografia. E depois,
compricado, não posso fazer"), que classificam os documentos, que para fazer os ditados com seu irmão também". E, finalmente, Buo
colocaram numa folha de pape l, e em ordem alfabética, os no mes Nat não faz trabalhos escolares durante as férias.
das pessoas com os números de telefone ("S im , marcado numa Com um pai operário não~especia lizado e lima mãe costureira que
folha, folha grande assim, marcado o nome na orde A, o B, o C , o fa lam francês com dificu ldades e se dirigem aos filhos em camboja-
O, o nome assi m, bem grande, é mais fác il para olhar. Sim, é me lhor no, que nunca lêem livros, revistas ou jornais, que têm práticas de
assim") . Ambos anotam pequenos recados dados pelo telefone e a escrita em fmncês pouco trabalhosas, que rea lmente não têm tempo
senhora V. escreve, num ca lendário, os compro missos dos filh os e para cuidar da escolaridade dos filhos e, principalmente, para acom-
deles. Ambos também escrevem, uma ou duas vezes por mês, ca r~ panhar regularmente as tarefas, que não obrigam os filhos a fazer tra-
tas em cambojano para a famíl ia. Ellfim , têm mu itas fotografias ("A balhos escolares durante as férias, que não conhecem o professor de
gente tem bastante"), classificadas em ordem cronológica em ,llbulls. Bun Nat e que quase nunca vão às reuniões escolares, não dispomos
Em relação à escolaridade de BUIl Nat, o senhor V. diz que "ele é da chave para interpretar o "sucesso" escohu ua
criança.
sério para apre~de r" , mas "tímido um pouquinho": "Ele tem muito O senhor e a senhora V. têm um nível escolar equi va len te ao
medo, assim". E ele quem acompanha seus resultados, e nos diz que do 22 grau completo. Se não tivesse parado em sua progressão pela
ele é mais fraco em francês (ortografia e leitura) do que em matemá- instauração do regime de Pai Pot, a mãe teria até entrado na
tica (Bun Nat lê, limas não bem" e "não muito depressa"). Entretanto. fac uldade de direito. Ela estudou ciências e o pai, matemática. E,
o sellhor e a senhora V. não conhecem o professor de seu filho (a senho- sem dúvida, não é por acaso - mesmo que não captemos, de ime-
ra V. diz: "Não , c u nunca ir com, conversar com e le nunca"), e ape~ diato, com a e ntrevista , as modal idades da transmissão de um ta l
nas participarmn, por fa lta de tempo, de uma ou duas reuniões esco- saber - que Bun N at é particularmente forte em matemática. A

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES PERfiS DE CONfiGURAÇÕES

mãe até parece ser de extrato social relativamente abastado, uma discipl ina. Neste caso, nenhuma chamada incessante à ordem por
vez que seu pa i tinha formação para ser professor primário e pre~ parte dos pais em relação a seus fi lhos. Estes não vêm perturbar a
feriu ser comerc iante para ganhar melho r a vida. entrev ista, são calmos e reservados. Desde o mate rnal, Bun Nat é,
Entretanto, o capital escolar dos pais não parece ser transmitido aliás, ass inalado como "ativo" nas atividades físicas individuais,
de forma pedagógica dentro do ambiente familiar. Neste caso, não mas "apagado" no grupo . Bun Nat é antes descrito, tanto do ponto
estamos tratando com pais que sempre têm tempo para ajudar nas tare~ de vista escolar quanto familiar, como uma criança interiorizada,
fas ou assegurar que tenham sido bem feitas (Bun Nat confirma que fechada, que quase não gosta das atividades coletivas nas brinca-
ninguém o controla). E, no entanto, sabemos também que Bun Nat de iras aO ar livre com crianças de sua idade.
faz bem todas as tarefas e assumiu a escola de fonna competitiva. Temos, Os pais tmnbé m insistem no fa to de que os filhos devem apren-
portanto, um caso, se assim podemos dizer, ele superinvestimento der na escola e também em casa: ('Um pouquinho assim, não muito.
escolar de Bun Nat, sem superin vest imento escolar por parte dos pais. Sim, eu fa lo: 'Ah, não ap render tudo na escola. Aprender em casa
Por que meios, então, os pais Utransmitem" essas disposições esco l a r~ um pouquinho'lI. Por exemplo, Bun Nat tira ~ mesa quando acaba
mente adequadas que fazem de Bun Nat um "superbom aluno"? de comerll~ . A liás, o que nos impressionou ass im que entramos n O
t sem dúv ida, no estilo de vida familiar como um todo, na apartamento foram a ordem e a clareza. Nada estava espalhado.
ordern mora l doméstica, que é, indissociavelmente, uma ordem nern na sa la de jantar, nem na cozinha 1" . Essa irnprcssão se confir-
menta l, que podemos reconstnlir os princípios de produção de com- mou com certas práticas de escrita Oll de classificação: organ ização
portamentos adequados do ponto de vista escolar. Percebemos, dos documentos, listagem de telefones, classificação cronológica das
tanto nas moda lidades da entrevista quanto nas declarações feitas, fotografias o u freqüente utilização do cale ndário. Por fim, a incan-
que há inculcação difusa mas siste mática de uma espécie de elhos sovel atividade da mãe e do pai é um exe mplo de regularidade que
ascético, racional. Os horários da fam ília, por exemplo, são de gran- se ap lica, em casa, num trabalho especia lmente minucioso e prec i~
de precisão, e a regularidade parece ser uma importante qua lidade 50: a COStura.
fa mili ar. Bun Nat vo lra da escola às 17h. Até a hora do jantar, vê Precisão, regl,/nridade, interioriZll)'ão, calma, autonumia, ordem , cla-
relevisão ou fica brincando, em casa ou fora. Janta por volra das 18h30 reza e minúcia , essas são as "qualidades" indissociavelmente co m ~
c, entre o fim da refeição e a hora em que va i se de irar (entre 2Oh30 porra mentais e o rganizacionais que sobressaem de todo um conjun-
e 2 1h, exceto quando não tem aula no dia seguinte), e le "estud a" to de elementos em relação ao conrexto da entrev ista, o estilo do
e Ué proibido ver telev isão". Às quartas-feiras, Bun Nar fica livre o uiscurso mais do que seu conteúdo. Os pais, e também o filho, são
dia inte iro , desce para brincar fora e vê televisão. Mas, a partir de precisos e breves e m suas respostas. Bun Nat responde às nossas per~
l 8h30, põe-se a faze r suas tarefas, e essa regra é igualmente válida guntas de mane ira rápida e concisa. Sua maneira de falar é seca e
para os domingos: "Também é proibido". As regras são enunciadas contida, e não é do tipo de ficar mu ito tempo numa questão. Inllt il
claramente: a partir de tal hora, todas as no ites, Bun Na[ tem de dizer que essas qualidades familiares são também qualidades esco-
passar das brincadeiras para o trabalho escolar. Ele, ali,ls, nos mostra lares. Se Bun Nat é descrito como uma criança "mui tO escolar" pelo
o produto dessa regularidade e dessa exatidão dos horários familia- professor, é porque tudo, em seu comportamento preciso, minllci o~
res quando nos diz as horas exatas de de itar~se, de tomar as refei~ so, rigoroso, Hdireto", se aj usta à lógica escolar da regularidade, da
ções ou a duração de suas tarefas!I 1. ordem e da clareza, e, particularmente, no interior da ordem esco~
A maneira como acontece a entrevista nos informa muito tam~ lar, às qualidades mentais e comportamentais que os exercícios de
bém sobre a mane ira fam il iar de comportar~se que repo usa na a uto~ matemática exigem.

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PERfiS DE CONfiGURAÇÕES
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES

Mesmo que este "sucesso" aconteça sem superinvestimento esco~ tendo uma coleção de bonecas e numerosos bibelôs de porce lana,
lar dos pais e que estes se apóiem na autod iscipl ina dos filhos, isso um televisor, um apa relho de som e um aparelho de vídeo. Nas pare-
não significa que os pais se ex imam tota lmente da questão da esco- des, vê~se uma paisagem em serigrafia, um quadro em relevo de bar~
laridade. Compraram uma enciclopéd ia para os filhos (depois, sem cos no mar e um pequeno quadro vertical intitulado Ethnology Df
dúvida, de um longo traba lho), levam-nos, às vezes, à biblioteca muni- Madagascar. Um calendário para as férias escolares está pendurado
cipal, compram-lhes livro escolares quando têm necessidade e, num paine l. Durante a entrevista, a senhora R. parece bastante tensa,
principalmente, modificaram, sem dúvida, e com muita lucidez, a como alguém que esteja procurando respostas corretas, que não
idade rea l dos filhos para possibilitar-lhes recuperar o atraso ligado quer se enganar.
ao problema lingüístico. Já que o sistema escolar francês distribui O marido da senhora R., de 45 anos, é originário de Madagás-
os alunos segundo a idade e não segundo o nível de desempenho, car, mas de nacionalidade francesa. Foi 11 escola em Madag,\scar até
os pais mentem quanto à idade dos filhos, para que não fiquem per- a 6" série ("Ele não foi muito, muito, muito bom. E além disso, não
didos em classes onde não compreenderiam nada. Notável preocu- pôde continuar"). Na França, fez um estágio de formação de tor-
pação pedagógica, portanto. Mas essas poucas práticas, se não esti- neiro, alguns serviços temporários, depois encontrou um emprego
vessem fundamentadas na autonomia das crianças e no conjunto de operário polivalente na Black & Oecker: tem uma loja há 10 anos.
das disposições familiares, no fundo muito "escolares", não produ~ O senhor R. está na França h,\ 20 anos. E fo i aqui que conheceu a
ziriam de forma alguma os mesmos efeitos. A conseqüência da mulher. Esta nos diz que o marido não é muito apegado aos pais (apo-
socia lização difusa descrita é realmente tão potente que Bun Nat sentado da Companhia Nacional de Estradas de Ferro e dona-de-
desenvolve uma energia escolar fora do comum. Com este caso vemos, casa), pois ficou muito tempo em um pensionato, e, quando esta~
portanto, como obstáculos lingüísticos, materiais e cultu rais (os va em férias, ia mais à casa do avô, no campo.
momentos vo ltados exp lícita e diretamente para a transmissão de A senhora R., de 42 anos, também é originária de Madagás-
um conhecimento parecem ser limitados pelo tempo que os pais ficam caro Foi à escola até a 7i! série, "os dois primeiros trimestres", mas
no trabalho) são vencidos por um ethos familiar muito coerente, regu- esclarece que a escolaridade começa mais tarde em Madagáscar
lar e sistematicamente posto em prática e, com isso, potente em seus (ela saiu da escola com a idade de 16 anos e meio). Interrompeu
resultados. os estudos para vir para a França. Tinha decidido fazer um está-
gio de formação profissional, mas abandonou-o. Começou, por-
• Perfil 24: Uma vigi lânc ia regular e sistemática. r::mto, como operária não~especia li zada numa fábri ca durante 10
Cliristian R., nmcido em Bron, sem relJerência escolar, obteve 7,5 na anos e parou com o nascimento da filha ("Parei para cri ar minha
a1valiaç[w nacional. filha"). Agora está trabalhando como babá. Não conheceu o pai,
que morreu quando ela era muito pequena e sua mãe nunca exer~
A entrevista se desenvolve com a senhora R., na presença de ceu at ividade assalariada.
sua irmã e de um bebê de quem toma conta. A irmã intervirá de O senhor e a senhora R. têm dois fi lhos: uma filha de 12 anos,
2
vez em quando na conversa, desculpando-se sempre por isso. Esta- na 6" série, e um filho de 8 anos, Christian, na 2" série do 1 grau.
mos na sala de jantar, em volta de uma mesa recoberta por uma toa~ Este' entrou muito cedo (2 anoS e 2 meses) no maternal e, desde a
lha plastificada. No cômodo, percebe-se Lima estante com enciclo- época, é visto como uma criança "bem adaptada" e "muito séri a em
péc.lias ("J.:univers en Couleurs", "BBC"), fotos de Christian e seu seus trabalhos". Na [" série do 12 grau, os professores observam que
time de futebol, um grande móvel com uma parte envidraçada con- Christian é um "aluno dócil" e, na za série do 1Q grau, é cons ide~

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CONCLUSÕES

CONCLUSÕES aos comportamentos e aos desempenhos escolares: para bater nos


filhos, é também necessário julgar que isso vale a pena e conferir à
escola um mínimo de importância e de valor. Constatamos até
casos paradoxais de superinvestime nto escolar que não leva m aos
efeitos esperados por causa de uma distorção entre os fins visados
o MITO DA OMISSÃO PARENTAL e os meios ut ilizados para atingi-los (Perfil 20).
E AS RELAÇOES FAMÍLIAS-ESCOLA É claro que existem casos em que as rupturas são tão numerosas
(Perfis I e 3), e as condições de vida fa miliar, econõmica ... , tão difí-
ce is que, ou o tempo que os pais podem dedicar aos filhos é abso-
Se, através desta obra, um fato pôde ser estabelecido, é o seguin- lutamente limitado, ou suas disposições sociais e as condições fami-
te: o tema da o missão parental é um mi to. Esse mito é produzido pelos li ares estão a mil léguas das disposições e das condições necessárias
professores, que, ignorando as lógicas das configurações fa miliares, para aj udar as c rianças a "te r êxito" na escola. Mas) mesmo nesses
deduzem, a partir dos comportamentos e dos desempen hos escola- casos, o termo moralizador de "omissão''. que remete a um ato
res dos alu nos, que os pais não se incomodam com os filhos, deixan- vo luntário, uma escolha deliberada da parte dos pais, nem sempre
do-os fazer as coisas sem intervir. Nosso estudo revela claramente a corresponde ao que pudemos apreender das rea lidades de interde-
profunda injustiça interpretativa que se comete quando se evoca uma pendência social.
"o missão" ou Ullla "negligência" dos pais l . Q uase todos os que inves, Os discursos sobre a "omissão" dos pais são emitidos pelos pro-
tiga mos, qualquer que seja a situação escolar da criança, tê m o sen- fessores principalmente quando os pais estão ause ntes do espaço esco-
timento de que a escola é algo importante e manifestam a esperan- lar. Eles não são Uvistos", e essa invisibilidade é imediatamente inter~
ça de ver os filhos "sair-se" melhor do que eles. Aliás, é importante pretada - principalmente quando a criança está com dificuldade
destacar que os pais, ao exprimir seus desejos quanto ao futuro pro- escolar - como uma indiferença com relação a assuntos de escola
fissional dos filhos, tendem, freqüentemente, a desconsiderar-se pro- em geral e da escolaridade da criança em particular. Alguns profes-
fissionalmente, a "confessar" a indignidade de suas tarefas: almejam sores até parecem pensar que a ausência de relações, a ausência de
para sua progênie um trabalho menos cansativo, menos sujo, menos contatos com algumas famílias (populares, é claro), explicaria o "fra-
mal-remunerado, mais valorizador que o deles. CilSSO escolar" das crianças. Por isso, é preciso fazer os pais irem, de

As mães ou, mais ra ramente, os pais cuidam da escolaridade, con- qualquer jeito, à escola: nas diversas reuniões, festas escolares ...
tro lam as tarefas, explicam quando podem, fazem repetir em voz alta O ra, sabemos que as relações pais-professores seguem a lógica
as lições, compram cadernos de exercícios durante as férias escola- das sociabil idades sociais corriquei ras' : os pais das classes médias
res de verão para que os filhos continuem a se exercitar (Perfil 12). e altas são os que se encontram mais com os professores de manei-
Também ficam atentos para que estes deitem cedo todas as noites ra informal, mas essas relações dizem respeito menos a um acom,
que antecedem os dias de aulas e , algumas vezes, são extre mamen, panhamento da escolaridade do que a uma sociabilidade fundamen-
te prudentes com suas saídas e suas amizades. E o que dizer dos pa is tada em posições e disposições sociais comuns ou próximas '. Essas
ou mães que batem nos filhos quando os resultados são n1ins ou quan- relações de proximidade ou de distância en tre adultos de dife ren -
do as cadernetas mostram que brincaram em aula (Perfis 2, 8, 9, 16)1 tes meios sociais estão fundamentadas em diferenças sociais evi·
O que quer q ue se possa pensar da eficácia pedagógica dessa polí- dentes, e podemos nos perguntar se os professores não estejam
tica disciplinar, tais fatos provam que os pais não são indiferentes concebendo sua relação com as famílias populares através do mode-

JJ4 3JS
SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

lo utópico (utópico por causa das distâncias sociais que ele esca- considerarmos que a simples participação dos pa is na vida escolar
mote ia) de sua relação (po is e les pertencem às classes médias) poderia modificar as coisas em relação aos uesempenhos das crian-
com as famílias das classes médias: intercâmbio na saída da esco- ças, estarfamos postulando, com isso, lima hipó tese que se rcve l a~
la, na rua, no supermercado, nas festas, etc. Se esse for O caso, pode- ria - em vista dos resultados de nossas análises - como totalmen-
mos perceber, atrás da necessidade de "ver'\ de "encontrar" o u de te ingênua e superficial.
"fazer vir" os pais à escola para limi ta r as dificuldades escolares da Richard Hoggart mostra, a seu mouo, a dissociação entre as famí-
criança, uma nova imposição de quad ros soc iais e simbólicos, de lias populares (das quais faz parte a sua) e a escola: "Não me lembro
normas de comportamentos direcio nados, não mais às c rianças, rnas de que tenha havido encontros regulares entre os pais e os mestres
aos adul tos de me ios populares. em Jack Lanc, e nôs mesmos nunca nos vimos como fazendo parte
Portanto, boa parte das ações ou das reflexões sobre as relações do dispositivo educativo desenvolvido pela municipalidade de loeds".
famílias-esco la feitas em nome da lu ta contra o "fracasso escolar" O u ainda : "Os pais conhecem a escola , mas eram muito ignorantes
só tem, sem dúvida, frágeis relações com esse "objeto". Existem, neste acerca do que hoje se chamaria de sua 'filosofi a', que se limitava a
caso, uma o rie ntação e uma ação da escola que têm mais a ver com um pequeno número de objetivos e de pontos de vista pragmáticos,
a gestão social das populações, com a integração moral e simbóli- geralmente convencionais. Eles só entravam nela em caso de urgên-
ca dos meios populares nas instituições legítimas (em locais e ati- cia, e, na ma ior parte do tempo, nunca tinham posto os pés nela't'i.
vidades legítimas: festa local, festa da escola , escola como ambien- Mas, mesmo que a ida dos pais ao espaço escolar pareça ser dese-
te de vida o nde os pais vêm "dar uma mão" e m cerras ati vidades, jada por uma grande parte dos professores, isso não emí despro-
abertura da escola aos ad ultos para estágios de alfabe tização, para vido de ambigüidade. Os pais podem ser vistos como que se intro-
estágios de formação de jovens... ). Ações desse ti po dizem respei- metendo um pouco de mais num domínio pedagógico cons iue rado
to aos costumes escolares, às normas legítimas da sociabil idade e a reservado e, assim , despe rtar reações de defesa. U m professor con -
uma determinada forma histórica de vida pública, mas não te m rela- fessa assi m que o respe ito - que leva alguns pa is de me ios popu-
ção com os fundamentos das diferenças (e dos mal-entendidos) lares a uma de legação total de autoridade pedagógica - é mui to
culturais, que estão na origem das "dificuldades escolares", entre uma confortante para os professores: "Há um respeito aqui pe lo mes-
parte das famílias populares e a escola. Q uerendo a qualquer preço tre, eu acho. Também talvez dependa do nível sociocultural. N o
integrar as famílias em locais e instituições legítimas, podemos nos mais das vezes, trata~se de resolver um proble ma, he in ? Q uando
questionar se não se está aumentando em dobro o traba lho de con - as famílias vêem, nas cadernetas escolares, que tudo va i bem, h á
versão das estruturas mentais, cognitivas - que fatalmente qual- satisfação. Bem , pode acontecer que a gen te não os veja, mas não
quer aluno oriundo dos meios populares deve operar para adaptar- é freqüente. Q uando as coisas estão indo bem, o senhor sabe ...
se ao universo escolar - , com um tra balho de conversão-aculturação (Riso.) Não vão se intrometer na pedagogia, eu diria, e quanto a
do echos, dos costumes'. Alguns perfis rea lmente revelam pais que isso, bem, ora, há uma certa tranqüi lidaue para os professores. Porque
partic ipam da vida escolar (reuniões, conse lhos de pais de a lunos, há o utras escolas em que talvez os pa is sejam bastante sequiosos
festas, excursões às montanhas, acompanhamento nas sa ídas ...: Per- por explicações no campo pedagôgico, e isso pode encher um
fis 24, 22, 19), mas isso não pode ser considerado como uma "causa" pouco os professores. Sei que , se uma fam ília quiser ir muito longe,
do "sucesso" das crianças. A esses casos, opõem-se todos aqueles que e então, como se diz. ficar esm iuçando , be m, isso pode ser i rr i tan~
só conhecem a escola através das cadernetas escolares, das notas das te , ora , e além do mais a gente sabe o que é que te m que faze r, e
crianças e, quando tê m tempo, das reuniões de início de ano. E, se então o que é que está faze ndo". (Risos.) O direito educativo de

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

ingerência é, portanto, dissimétrico: os pais se vêem sendo acon~ mos que a sociologia, e não apenas a ps icologia, está envolvida com
se lhados sobre a maneira de agi r com seus filhos, mas os profes- a análise dos processos de constn.ção de esquemas cognitivos ou com-
sores não gostam que lhes digam o que devem fazer. portamentais, então é preciso dotar-nos de ferramentas conceituais
adequadas para avançar nesse campob.
As MODALIDADES DA TRANSMISSÃO Se uma parte da sociologia estatisticamente fundamentada reve-
lou a distribuição desigual do cap ital cu ltural segundo os grupos
o tempo e as oportunidades de socialização sociais, se estabeleceu que o capital cu ltura l leva ao capital cu ltu-
ral, é preciso, doravante, destacar as modalidades efetivas de "trans-
o
que os dados estatísticos não pode m ver por falta de con- missão" desse capita l cultural, os procedimentos pelos qua is algu-
textua lização dos critéri os considerados é, muitas vezes, determi- m(l coisa como a cultura se "transmite" no nível comum das práticas
nanre. A presença objetiva de um capita l cu ltural familiar só tem (familiares ou outras). Se é importante reconstruir as disposições
sentido se esse capita l cu ltural for colocado em condições que tor- sociais dos adultos (e principalmente dos pais), podemos nos per-
nem possível sua "transm issão". Ora, nem sempre isso acontece. guntar o que Ué transmitido" concretan'lente através das relações pais~
As pessoas que têm as disposições cu lturais susceptíve is de ajudar filhos . Essa insistência nos contatos ou nas relações diretas não é
a cri ança e, mais amp lamente, de socia li zá~ l a num sentido harmo, uma abdicação positi v ista que acentuaria excl usivamente as inte~
nioso do pOnto de vista escolar nem sempre têm tempo e oportu - rações visíve is, imediatas 7, mas uma precaução sociológica inspira~
nidade de produzir efeitos de socialização. Nem sempre conseguem da pela idéia segundo a qual competências podem, às vezes, perma-
construir os dispositivos familiares que possibilitariam "transmi- necer sem efe ito (de socialização) quando não encontram situações
tir" alguns de seus conhecimentos ou algumas de suas disposições para que sejam postas em prática.
esc~lar mente rentáve is, de manei ra regular, contínua, sistemáti .. Que pessoa detém o capital cu ltural? Estará ela sempre presen-
ca. E por essa razão que, com capital cu ltural equivalente, dois con- te junto à criança? Ela cuida da sua escolaridade? Muitas são as per-
textos familiares podem produzir situações escolares mu ito dife- guntas que, por pa recerem banais, não são menos essenciais. Com
rentes na medida em que o rend imento escolar desses capitais efeito, a simples existência objetiva de um capita l cultura l ou de
cultu ra is depende muito das configurações fam ili ares de conjun - disposições cu lturais no se io de uma configuração familiar não nos
to. Podemos dizer, lembrando uma frase cé lebre, que a herança cu l- diz nada acerca das maneiras, das formas de relações sociais, a fre-
tural nem sempre chega a encontrar as condições adequadas para qüência das relações, etc., através das quais e les se "transmitem" Ou
que o herdeiro herde. não se "transmitem"'!. Se o capital ou as dispoSições culturais estão
Por isso, só podemos ficar desconfiados em relação a concepções indisponíveis, se "pertencem" a pessoas que, por sua posição na divi~
que poderíamos qualificar de "ambientalistas" e que abordam os efei- são sexual dos papéis Jomésticos, por sua situação em relação às pres-
tos de um "meio" (familiar ou socia l) de uma maneira muito abs- sões profissionais, por sua maio r ou menor estabil idade fam iliar, por
trata. Sem estar jogando com as palavras, podemos dizer que não sua relação com a criança (Perfis 4, 5, 6, 7,9), não têm oportuni -
basta, para a criança, estar cercada ou envolvida de objetos cu ltu- dades de ajuda r a criança a construir suas próprias d isposições cu l-
rais ou de pessoas com disposições culturais determinadas para che- turais, então a relação abstrata entre capital cu ltural e situação
gar a constru ir competências c ulturais. Se não queremos fazer da escolar das crianças perde a pertinência. Vimos, em contrapartida.
constituição das estruturas mentais um processo miraculoso cujas o poderoso efeito, em algumas escolarid"des, da presença constan-
modalidades concretas nunca serão compreendidas e se considera- te de adultos que possam exercer disposições escolarmente harmo-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

niosas a todo instante , de mane ira sistemática, regular e duradou~ Falar de "transmissão" é, principalmente. conceber a ação unila~
ra (Perfis 24 e 25). O fato de marcar, de forma contínua, sua pre- teral de um destinador para um destinatário, ao passo que o destina-
sença se mostra particularmente impo rtante em configurações fa mi ~ tário sempre contribui para construir a "mensagem" que se considera
Iiares e m que tudo depende do alto grau de vigilância dos pais. ter-lhe sido "transmitida". Ele tem de atribuir-lhe sentido na relação
social que mantém com O que o está ajudando a construir seus conh e-
Transmissão ou construção? cimentos e com seus próprios recursos, construídos no curso de expe~
riências anterio res. Além disso, mesmo nas mais fo nnais situações de
Se tomamos o cuidado, ao longo desta obra, de colocar os ter- aprendizagem (por exemplo, as situações escolares) , o que o adulto julga
mos "transmitir" o u "transmissão" entre aspas, é porque eles re me~ "transmitir" nunca é exatamente aquilo que é "recebido" pelas crian~
tem, freqüente mente, à idéia de uma reprodução idêntica ("mode- ças. Os hori zontes se revelam diferentes sob muitos aspectos. Em pri-
lo a ser imitado" ) de uma disposição (ou de um esque ma) mental e me iro lugar, o "adulto" (enquanto tal) possui um ho ri zonte e uma
levam, antes, a pensar em situações formais de ens ino nas quais um vivênc ia lingü ística que não estão ao alcance imediato das crianças,
saber está explicitamente em jogo. que constroem o sentido da situação de aprendizagem e dos conheci-
Com efeito , é preciso questionar essa maneira de conceber as coi~ mentos propostos a partir do estágio de seu desenvo lvimento cogni-
sas, Transmitimos, por exemplo, uma mensage m escrita a alguém, ti vo (socialmente dete rminado pelas experiências lingü ísticas das
remetendo- lhe ou mandando remeter-lhe um suporte sobre o qual quais participam). Em segundo lugar, entre o adulto-docente e as
a mensagem foi previamente inscrita . Nesse exemplo, a tra ns mi s~ crianças-discentes as diferenças são também diferenças de modo de
são parece não mudar nada da natureza ou do conteúdo da me nsa- inscrição nas relações sociais, de formas de configurações sociais de
gem transmitida; a mensagem preex istia ao ato de transmissão. A referência (a criança é um menino ou uma menina, um fi lho mais velho
(o destinador) deu (ou mandou dar) a me nsagem a B (destinatá- ou um caçula, um filho de funcionário público ou de um dono de uma
rio). Esta mos diante do modelo clássico do esquema da comunica- grande empresa privada, um filho de pais imigrantes o u um filho cujos
ção elabo rado por Roman Jakobson' . Da mesma forma, no caso da pais nasceram na França, e assim por diante ). Assim, a noção de
transm issão de um patrimônio material, o objeto X passa do doa- "transmissão" não explica muito bem o trabalho- de alJropriação e de
dor ao benefi ci<\rio (um herdeiro, por exemplo) sem que X se modi- construção - efetuado pelo "aprendiz" ou pelo "herdeiro", Ela tam-
fiqu e com O processo de transmissão (ou de herança ). Aconteceria bém não consegue indicar a necessária e inevitável transforrnLlÇão do
o mesmo em matéria de c ultura, de disposições sociais, de m a ne i ~ "capital cultural" no processo de "outorgação" de uma geração para
ra de ver, de sentir, de agir, de esquemas compo rtamentais e me n ~ outra, de um adulto para um outro adulto, etc., pelo efeito das dife-
ta is, etc.! Pode mos dizer que o saber ou a cultura passa dos ad ul tos renças entre aqueles que, presume~se, "transmitem" e aqueles que, supõe~
para as crianças como a mensagem escrita o u o patrimô nio mate~ se, "recebem",
ria I passa de A a B! O sociólogo da educação e da cu ltura deve con- Mas ela é ainda mais inadequada para conceber as freqüentes
tentar~se com a metáfora do "transvasar" o u da "outorga" (fala~se situações em que algo se "transmite" - o u me lho r, se constró i -
também e m "transmissão de poderes"), o u então deve c riar uma lin~ sem que nenhuma intenção pedagógica tenha sido v isada, sem que
guage m mais adequada à descrição desses fenõmenos! As noções de ne nhuma ação de transmissão te nha sido pensada como tal. Q uan-
capital c ultural e de transmissão ou de herança perdem, afinal de tos conheci mentos e habilidades construímos sem saber, sem que
contas, sua pertinência ass im que nos ded iquemos à descrição e à alguém nos tenha dito: "Veja, hoje nós vamos ap render a fazer isso
análise das moda lidades da soc ialização familiar ou escolar. o u aquilo., ." ? Se pudermos datar aprox imadamente o mo mento em

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES
CONC LUSÕES

q ue aprende mos a ler e a escrever ("Eu aprendi a ler ma is ou menos membros da família, e as crianças estão, muitas vezes, privadas dele.
com 5 anos"), porque, neste caso, estamos d iante de um saber obje# Trata-se, portanto, de um patrimônio cultural morro, não ajYropriado e
tivado, constituindo um investimento explíc ito em nossas forma# in-a{JI'opriado (Perfis 11 e 20). Um capital cultural objetivado não
ções socia is, e ensinado e m situações formais de aprend izagem, tem efeito imediato e m ágico para a cri ança se interações efetivas
quem pode dizer com precisão em que momento aprendeu a puxar com ele não a mobilizarem".
ou a e mpurrar um objeto, a combinar habilmente essas duas ações, Por outro lado, em oposição a essas famílias que não desenvol-
a sentar d ireito à mesa , a ligar um televisor ou a discar um número vem estratégias de apropriação dos objetos cu lturais por seus filhos,
de telefone? E, no entan to, objetivamente , isto é, para o sociólogo encontramos outras famílias em que, mesmo que os próprios pais quase
ou o psicólogo que estudam , descrevem, ana lisam, nesses exemplos n ão leiam (não passando ass im a image m de uma prática n atural da
existem conhecimentos e h abilidades e m ação. H á, pois, um gran- le itura), e les, entretanto, desempenham um papel de intermed iár ios
de n úmero de situações n as q ua is a criança é levada a consenti,. dis- entre a cultura escrita e seus filhos: fazem com que eles leiam e
posições, conhecimentos e habilidades em situações "organizadas" escrevam históri as, fazem-lhes perguntas sobre o q ue estão lendo, lêem
- não consc ientemente - pelos adu ltos e sem que tenha h avido para eles histórias desde pequenos, levam-nos à biblioteca munici-
verdadeiramente "uansmissão" vo luntária de um conhecimento lV• pal, jogam palavras cnlzadas com eles, etc .... (Perfis 10 e 21).

Um patrimônio cultural morto A integração social e simbólica da experiência escolar

Nenhuma família é desprov ida de quaisquer objetos culturais, mas Podemos observar também que famíli as fracamente dotadas de
estes (principalmente os impressos) podem, às vezes, permanecer em cap ital escolar o u que não O possuam de forma alguma (caso de pais
estado de letra morta porque ninguém os faz viver fam iliarmente. A analfabetos) podem, no entanto, mui to bem, através do diá logo o u
existênc ia de um capital cultural familiar objetivado não implica através da reorgan ização dos papéis domésticos, atribuir um lugar
forçosamente a existência de membros da família que possuam o capi- simbólico (nos intercâmbios familiares) ou um lugar efetivo ao "esco-
tal cultural incorporado adequado à sua apropri ação. Os pais com- lar" ou à "criança letrada" n o se io da confi guração fam ili ar. Assim,
pram liv ros, d icionários, enc iclopéd ias (que, freqü entemente, cons- em algumas famílias, podemos encontrar, inicialmente, uma escu~
tituem investimentos finance iros mui to altos ) para seus filhos, mas ta atenta ou um questionamento interessado dos pais, de mo nstra n ~
sem que possam acompanhá- los em suas descobertas desses objetos do assi m, para elas, q ue o qu e é feito na escola tem sentido e valor.
c ul tura is. Não desempenham - por falta de disposições ou de opor- Mesmo que os pais não compreendam tudo o que os filhos faze m
tu nidades - o papel de intermediários que possibilitar ia aos filhos na escola e como não têm vergonha de dizer q ue se sen te m infe-
apropriarem-se dos textos que são colocados à disposição deles, e, riores, e les os escutam, prestam atenção na vida escolar deles,
freqüentemente, ficam decepcionados com O pouco uso que eles fazem interrogando~os, e indicam, através de inúmeros comportame ntos
desse capital. As crianças são, portanto, colocadas numa situação para- cotidianos, o interesse e o va lor que atribuem a essas experiências
doxal, uma vez que possuem objetos cuja ausência de utilidade fami- escolares". As con versas com pelo menos um membro da família
liar podem constatar todos os dias. Os livros comprados estão tam- possibili tam verbalizar uma experiência nova, não v ive nc iá#la sozi#
bém freqüentemente - por seu conteúdo - fo ra do alcance das nho, não carregar sozinho uma experiência diferente. Da mesma
crianças, principalmente quando estas já têm problemas de compreen- forma, quando pais an alfabetos ou com dificuldades n a escri ta
são de textos. Esse patrimô nio cultural quase não é mobilizado pelos pedem progressivam ente aos filhos escolarizados no c urso primá-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

rio que os ajudem a ler a correspondência, a explicar- lhes o con - conservem angllStias, vergonhas, complexos, remorsos, traumas ou blo--
teúdo dela, a preencher as ordens de pagamento, a escrever bilhe- queios. Na incapacidade de aj udar os filhos, os pais sem capital esco-
tes para a escola, a procurar números de telefones na lista, a aco m ~ lar também não tendem a comunicar-lhes uma relação dolorosa com
panhar a escolaridade dos irmãos e irmãs, etc., podemos dizer que a escola e com a escrita. Essa é uma das razões que podem explicar o
eles criam uma função familiar importante, ocupada pela criança fato de que não se observa, em nossos perfis, um vínculo mecânico e
que, com isso, ganha em reconhecimento, e m legit imidade fami~ di reto entre grau de "sucesso" escolar dos filhos e grau de escolariza-
liar (Perfis 13, 14, 16). Algumas configurações familiares demons- ção dos pais. Saindo da lógica simplista do volume de capital escolar
tram, portanto, a importância socia l, simbólica, no próprio seio da possuído, é preciso interrogar-se a respeito da plura lidade das condi-
estrutura de coex istência, daqueles que sabem ler e escrever (da ções e das modalidades concretas de "trans missão" ou de " não~trans~
"criança letrada"), ou a integração simbó lica do "esco lar". Quando missão" das disposições culturais.
se está desprovido de qualquer meio de aj uda direta, esses proce- Também se percebe claramente que o que se "transmite" de
dimentos de legitimação familiar desempenham um papel central uma geração a o utra é muito mais do que um c::!p iml cu lru ral: um
na possibilidade de uma "boa escolaridade" no curso primário. conjunto construído em relação à escola e à escrita - de angllstias
e de humilhações, de reticências e de rejeições - em relação ao
Capital escolar e experiência escolar tempo, à orde m e às pressões ... O estudo dos fenômenos de "heran-
ça cultura l" nunca deve o mi t ir a análise da especifi cidade cogniti-
Temos, pe lo menos, dois casos flagrantes de "tnmsmissão" de uma va " do que se herda.
relação infeliz com a escrita em nossa população (Perfis 8 e 12). Nos
dois casos, mães passam aos filhos seu "bloqueio" inicial em relação à A constituição das identidades sexuais
escrita, ao dlcu lo ou à memória: medo de cometer erros de ortogra-
fia, de escrever sem encontrar as fonuas certas, de não saber fazer um A análise dos perfis de configurações, assim como outras pesqui-
cálculo ... Essas mães não estão desprovidas de qualquer capital esco- sas l4 , revela que freqüentemente as mulheres, encarregando~se dos escri~
lar, mas expõem aos olhos dos filhos, em múltiplas situações cotidia- tos domésticos, estão por isso mais para o lado do pólo racional e os
nas, a frag ilidade de suas competências em escrita, em matemática, homens, contando com o trabalho de gerenciame n to de suas mulhe-
ou de suas competências mnemônicas, um sofrimento em relação a res, estão mais para o lado do pólo espontâneo ou hedonista. As mulhe-
qualquer documento escrito mais o u menos formal ou a qua lquer res também se encarregam da educação dos filhos e, principalmen-
situação de cá lculo. Comunicam, portanto, seus complexos, suas te, do acompanhamen to escolar deles. E tal fato não deixa de produzir
angústias, suas próprias dificuldades escolares passadas, ao mesmo efeitos nas escolaridades dos filhos " . Em mais de um caso, os meni-
tempo que suas preferências, mostrando assim que um cap ita l escolar nos é que estão, escolannente, com mais dificuldade, na medida em
nunca está dissociado de uma experiência escolar (feliz ou infeliz). Para- que a constituição de sua identidade sexual no seio da configuração
doxalmente, essas situações em que os pais têm um pequeno capital familiar deve ajustar-se a um pai que se acha, freqüentemente , do lado
escolar são mais problemáticas do que aquelas em que os pais são anal- dos princípios familiares de socialização mais dissonantes em relação
fabetos, mas desenvolvem outras estratégias familiares para ajudar os aos princípios escolares de socialização.
filhos. Expondo os fatos rapidamente, poderíamos dizer que, do ponto Mas, de maneira mais geral, vimos que, em famílias em que havia
de vista da escolaridade da criança, é sem dúvida preferível ter pais diferenças marcadas em matéria de capital cultural, de disposição social
sem capita l escolar a ter pais que tenham sofrido na escola e que dela o u de atitude cu ltural entre o pai e a mãe e, mais amplamente, entre

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

os h omens e as mulheres confrontados, a escolaridade das meninas pela le itura ... Mas as contradições perpassam, às vezes, as próprias
e dos meninos comportavam matizes: um menino considerado um pessoas, dúplices por sua história (Perfil 15). A ex istên c ia de prin-
pouco menos "brilhante" que seu irmão numa configuração familiar cípios de social ização contraditórios faz com que a situação escolar
em que o pai era o único que sabia ler e escrever e que cuidava da da criança dependa, mui to particularmente, de uma relação de
escolaridade (Perfil 10 ); meninos um pouco men os fortes escolar- força c ultural (Perfil 17) entre os diferentes membros da família: a
mente do que as irmãs numa situação familiar bastante desigual mod ificação das relações particulares de interdependência que pos-
entre os pais e as mães do ponto de vista das disposições rac ionais, sibilitam à criança "desobrigar-se" escolarmente pode fazer com
do capital escolar e das práticas culturais, porém, neste caso, a favor que sua carre ira escolar 17 seja reconsiderada.
das mães (Perfis 21 e 22) ... Isso e nfatiza, qualquer que seja o sexo De qua lque r maneira, é ma is raro encontrar configurações fami-
que se beneficie de uma situação familiar existente, o peso da cons- liares cultural e moralmente h omogêneas. Pouco numerosos são os
trução social das identidades sexuais na constituição das estruturas exemplos que possibilitam falar de uma exterioridade familiar coe-
da personalidade e do comportame nto dos filhos. Isso obriga a reco- rente , produtora de disposições gerais inteiramente orientadas nas
nhecer as diferenças sexuais como diferenças plenamente sociais que mesmas direções. N umerosas crianças vivem concretamente no
entram em jogo na compreensão dos matizes de percurso escolar no seio de um espaço fam iliar de sociali zação com ex igênci as variáveis
seio de uma mesma fratria , e características variadas, em que exemplos e contra, exemplos se
ch ocam (um pa i ana lfabeto e uma irmã n a unive rsidade, irmãos e
Contradições e instabilidade irmãs em "sucesso" escolar e outros em ufracasso", e assim por dian-
te), em que princípios de socialização ~ontraditórios se entrecru-
roJcnl\l~ I ,·1deplor<lT que u contexto seja fre -
zam. Com o conjunto dos membros de sua família, elas são, freqüen -
qüe nt e mente pintaJo como rígiJo , coerenTe c
que sirva de rela de fundu uuüvd para explicar temente, colocad as diante de um amplo leque de sis temas de
a biografIa!", preferências e de comportamentos possíveis. E temos muito mais
possibilidades de encontrar elementos contradi tórios quando esti-
Longe de constituir realidades homogêneas, as configurações fami- vermos em presença de famílias numerosas em que várias ge rações
liares estudadas nos forneceram ma is de um caso de h eteroge ne i- de filhos v ive m sob o mesmo teto ou que comportam, po r mú lti-
dade. A c riança pode estar cercada de pessoas que represen ta m plas razões, tios, tias, primos Oll primas, e avós.
princípios de socia lização, tipos de o rientação em relação à escola A situação das re lações de interdependê nc ia no seio das quais se
muito diferentes, até mesmo opostos. Uma parte do sucesso esco- acham inseridas as crianças é , po rtanto, muito susceptível de trans,
lar dessas crian ças está, a liás, relacionada a essa presença de elemen- fonnação e, quando a boa situação escolar das crian ças só se mantém
tos contraditórios que lhes possibilita ter pelo men os um membro por um fio, por uma ausência de in ves timentos culturais e econô,
da famíli a (pai ou mãe, irmão mais velho ou irmã mais velha, tio micos suficientemente potentes, recorren tes, para evitar qualquer
ou tia.. ,) e m quem podem apoiar'se em SLla experiência escolar. A acontecimento perturbador, então a menor modificação das relações
oposição ou a contradição pode estabelecer-se, confonne o caso, entre de interdependência entre as pessoas confrontadas (e, por consegu in-
o controle moral muito rígido e a indulgência, entre o "divertimen- te, entre as disposições sociais, as orientações ou os princípios sacia,
to" e o "trabalho escolar", entre uma sensibilidade mui to grande para lizadores ) pode traduzir-se em "dific uldades" (Perfil 14 ou 15). Esses
com tudo o que diz respeito à escola e uma menor sensibilidade, entre elementos perturbadores podem ser de natureza extremamente varia-
prefe rên c ias pela le itura e uma ausên c ia de práticas e preferências da: nascimento ou morte de um irmão ou de uma irmã, que provo-

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SUCESSO ESCOLAR NOS MEIOS POPULARES CONCLUSÕES

ca a modificação temporária ou permanente da economia dos laços salta de geração em geração. E, no entanto, a língua avança ao mesmo
afetivos no se io da famíl ia, um desemprego que acarreta modifica- te mpo que essa corrente e é inseparável dela. Em realidade, a língua
ções de comportamentos, um início de trabalho de uma mãe que até não é transmitida, ela dura e perdura na fomUl de um processo ininter-
então estava em casa, saída de um irmão mais ve lho ou de uma irmã rupto de evolução. Os indivíduos não recebem , como quinhão, uma lín-
mais velha da família, um divórcio que modifica as situações habi- gua pronta para ser utilizada, eles se inserem na corrente da comunica-
tuais de socialização ... , qualquer acontecimento que venha transfor~ ção verbal, ou, mais exatamente, sua consciência s6 sai do limbo e
mar a estrutura de coex istência familiar pode fazer com que tudo o desperta graças à sua imersão nessa correme"/9.
que tinha sido adq uirido com dificu ldade possa ser reconsiderado. Essas poucas palav ras de Mikhail Bakhtine são de uma notável
Mas esses acontec imentos não são tão perturbadores numa situação clareza e podem servir para esclarecer boa parte das discussões socio-
familiar inversa, e a força de seus efeitos na situação escolar das crian- lógicas em torno das oposições (ou tentativas de esmero dialético)
ças é, sem dúvida, inversa mente proporcional à força dos investi- entre indivíduo e sociedade, ator e estrutu ra, subj etivismo e obj e~
mentos fami liares. tivismo, estruturas mentais e estmturas objetivas. As ciênc ias socia is
No oposto dos casos de "êxito" engendrados em configurações têm realmente a tendência, como sugeri a Bakhtine, de rei fi car as
familiares contraditórias e que dependem de uma relação de força noções de contexto, de ambiente, de sociedade, de estrutura, e de
entre os diferentes princípios de socialização mais ou menos com ~ colocar diante dessas abstrações reificadas indivíduos isolados, fazen-
patíveis com o universo escolar, observamos casos e m que a força do de duas apreensões, distintas da mesma realidade de interdepen-
escolar da criança repousa numa configuração familiar n ão~co ntra~ dência, duas realidades substanciais, dois objetos rea lmente sepa-
ditória, composta de adultos coerentes entre si , em que vários prin- rados. Passamos, assim, de um corte metodológico a um corte
cípios de socialização não se superpõem e exercem seus efeitos regu~ ontológico entre indivíduo e sociedade" . Além disso, as opos ições
lar, sistemática e duradouramente (Perfis 14, 23, 25) . (ou as dialéticas) do tipo ator/estrutura ou indivíduo/sociedade des-
crevem a formação das consc iênc ias individuais da mesma forma
UMA ANTROPOLOGIA DA INTERDEPENDÊNC IA que Santo Agostinho descrevia a aquisição da linguagem pela crian-
ça, a saber, "co mo se esta fosse para um país estrangeiro se m com~
A interdependência preender sua língua: isto é, como se ela já possuísse uma linguagem,
mas não aq uela linguage m, ou ainda: como se a criança já pudesse
C riticando o objetivismo abstrato da lingüística saussuriana que pensar, mas não ainda falar"ll. Ora, os seres sociaisH não se encon~
define, de mane ira mu ito durkheimiana, a IIlíngua" - que 110 indi ~ tram diante das "estruturas sociais" ou das "estruturas lingüísticas",
víduo registra passivamente"' S- em oposição à "fala", da mesma mas se constituem enquanto tais através das formas que suas rela~
forma que o social se opõe ao individual, Mikhail Bakhtine escre- ções sociais adq uirem. Como muito bem di zia Norbert Élias, o
ve que essa corrente teórica "considera a transmissão da língua tal tenno "indivíduo" é particularmente confuso na medida em que "des~
como um objeto, por herança, de um ponto de vista mernfísico", masobser- perta a impressão de que se está falando de um adulto sem nenhu-
va que "essa assim ilação não constitui apenas {... ] uma metáfora: crian~ ma relação, isolado, e que nunca fo i c riança"21.
do o sistema da língua e tratando as línguas vivas como se fossem A consciência de qualquer ser social só se forma e adqu ire ex is-
mortas e desconhecidas, o objeti vismo abstrato corta a língua da cor- tênc ia através das múltiplas relações que ele estabelece, no mundo,
rente da comunicação verbal. Essa corrente avança sempre para a fren- com o o utro. Ela é, portanto, social por natureza, e não porque seria
te, de maneira contínu a, ao passo que a língua, tal qual um balão, lI influenciada" por um "meio social", um "ambiente social" (con~

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