Você está na página 1de 5

CASO CLÍNICO

Artrite séptica e gota – a propósito de um caso clínico


S Serra1, P Monteiro2, A Vaz3, E Pires4, R Monteiro5,
L Inês6, MJ Salvador6, J Bernardo7, A Malcata8

ACTA REUMATOL PORT. 2012;37:70-74

resumo AbstrAct

Os autores apresentam o caso clínico de um doente do The authors describe a 54 year-old male patient, admit-
sexo masculino, de 54 anos de idade, internado por ted after presenting in the emergency room with acute
oligoartrite aguda, com atingimento dos ombros, ti- oligoarthritis affecting the shoulders and right tibio-
biotársica (TT) e esterno-clavicular direitas, com uma tarsal and sternoclavicular joints, with a week’s dura-
semana de evolução. Apresentava-se apirético e referiu tion. He was non-febrile and related a purulent dis-
drenagem purulenta do coto de uma amputação trau- charge from the stump of a traumatic amputation of the
mática do polegar esquerdo, ocorrida uns dias antes. left thumb, starting a few days prior to the presenting
Antecedentes de artrite gotosa e etilismo moderado. Em complaints. There was a previous history of gouty
termos analíticos tinha elevação dos marcadores de fase arthritis and moderate alcoholism. Lab work revealed
aguda, com neutrofilia marcada. an elevation of the acute phase markers, with marked
A artrocentese da TT direita identificou líquido puru- neutrophilia.
lento, cuja análise revelou presença de cristais de mo- Upon admittance, the patient underwent arthro-
nourato de sódio e cultura positiva para Staphylococcus centesis, revealing a purulent discharge with sodium
aureus meticilino-sensível, para o qual iniciou tratamen- monourate crystals, which cultured positively for meti-
to. Ao 5º dia de internamento desenvolveu abcesso cer- cillin-sensitive Staphylococcus aureus. Besides antibio-
vical com extensão ao mediastino, com microbiologia therapy, on Day 5 the patient presented with a cervical
semelhante. Foi submetido a cirurgia cardiotorácica para abscess with extension to mediastinum; the abscess was
drenagem do abcesso, constatando-se destruição das ar- drained by a cardiothoracic surgeon, and the right ster-
ticulações esterno-clavicular e 1ª costocondral direitas. noclavicular and first costochondral articulations were
Os autores salientam a ocorrência concomitante, em- found to be destroyed.
bora rara, de artrite séptica e gota e discutem os meca- The authors note that, although it is a rare occur-
nismos desta associação e algumas particularidades des- rence septic arthritis can coexist with gout, while dis-
te caso. cussing the possible mecanisms of this association, as
Palavras-Chave: Artrite séptica oligoarticular; Artrite well as particular details of the clinical case presented.
gotosa; Líquido sinovial Keywords: Oligoarticular septic arthritis; Gout; Syno-
vial fluid

1. Interna do Internato Complementar de Reumatologia, Serviço de


Reumatologia, Hospitais da Universidade de Coimbra IntroduÇÃo
2. Assistente Hospitalar de Reumatologia, Serviço de Reumatologia,
Hospital de S. Teotónio de Viseu
3. Interna do Internato Complementar de Medicina Interna do A artrite séptica é uma emergência médica relativa-
Hospital de S. Teotónio de Viseu mente rara, que pode provocar sequelas articulares im-
4. Interna do Internato Complementar de Medicina Física e
Reabilitação do Hospital Infante D. Pedro, Aveiro portantes e ser potencialmente fatal. O Staphylococcus
5. Interna do Internato Complementar de Medicina Interna, aureus é o agente etiológico mais frequentemente iso-
Serviço de Medicina Interna, Hospitais da Universidade de Coimbra
6. Assistente Hospitalar de Reumatologia, Serviço de
lado. Em 15% dos casos é descrito um atingimento po-
Reumatologia, Hospitais da Universidade de Coimbra liarticular. Embora rara, a coexistência entre artrite sép-
7. Chefe de Serviço, Serviço de Cirurgia Cardiotorácica dos tica e gota, tem sido descrita na literatura, sendo na
Hospitais da Universidade de Coimbra
8. Chefe de Serviço, Serviço de Reumatologia dos Hospitais da
maioria dos casos o envolvimento oligoarticular.
Universidade de Coimbra Os autores realçam neste caso a forma invulgar de

ÓRgÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PORTUgUESA DE REUMATOLOgIA


70
S Serra e COL.

apresentação clínica da artrite séptica, e a necessidade vamento, sobretudo da dor e incapacidade funcional
de, perante um quadro de artrite aguda, independen- da tibiotársica direita, foi internado no Serviço de Reu-
temente de ser mono ou poliarticular se proceder à ar- matologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra
trocentese, para avaliação e confirmação diagnóstica, (HUC).
e iniciar tratamento o mais precocemente possível. A Ao exame objectivo apresentava-se apirético, com
semelhança de apresentação clínica entre a artrite sép- bom estado geral, e com artrite dos ombros, esterno-
tica e a gota e/ou a identificação de cristais no líquido clavicular e tibiotársica direitas (Figura 1), sem outras
articular, não deve excluir a hipótese de infecção arti- alterações relevantes.
cular concomitante. O coto amputado do polegar esquerdo evidenciava
uma ferida recente em cicatrização (Figura 2).
Os resultados analíticos revelaram uma leucocitose
cAso clÍnIco 29,8 G/L, com neutrofilia de 89%, velocidade de eri-
trossedimentação de 67 mm/h, PCR de 12,6 mg/dl, e
Doente do sexo masculino, 54 anos, raça branca que, elevação das provas hepáticas, < 2x o normal (alanina
inicia de modo súbito, artralgias inflamatórias atin- aminotransferase – 73 U/L, aspartato aminotransfera-
gindo os ombros e, de modo aditivo, as articulações es- se – 52 U/L) e uricémia de 8 mg/dl. Procedeu-se à ar-
terno-clavicular e tibiotársica direitas, quadro este com trocentese da TT direita, com aspiração de 2 cm3 de lí-
uma semana de evolução. Referiu um único pico de quido piossanguinolento muito espesso. A análise do
febre (38ºC) no início do quadro clínico, e drenagem líquido sinovial evidenciou cristais de acido úrico e a
purulenta do coto de uma amputação traumática an- cultura foi positiva para Staphylococcus aureus metici-
tiga do polegar esquerdo, ocorrida uns dias antes ao lino-sensível (SAMS). As hemoculturas indicaram bac-
início das queixas. Negava outra sintomatologia sisté- teriémia pelo mesmo agente.
mica, assim como contexto epidemiológico relevante. Iniciou antibioterapia com Vancomicina 1gr,
Antecedentes pessoais de gota mono/oligoarticular 12/12h, e Naproxeno 500 mg, 2id.
desde há 5 anos, medicada apenas sintomaticamente Apesar da apirexia, bom estado geral e antibiotera-
durante as crises, HTA e EAM (7 anos). Medicado em pia instituída, posteriormente surge uma massa cervi-
ambulatório com AAS 100 mg, 1id, captopril 25 mg, cal anterior (Figura 3), descrita pela TAC cervico-to-
½ + ½ id e Atenolol 50 mg, ½ + ½ id. rácica como: «uma colecção heterogénea, multilocu-
Feito o diagnóstico de tendinite dos ombros no Ser- lada, sugestiva de abcesso, centrada na articulação en-
viço de urgência, foi submetido a infiltrações com cor- tre a 1ª costela direita e o esterno, envolvendo também
ticóide e medicado com Diclofenac 75 mg 2id, com a esterno-clavicular direita, contactando em cima com
melhoria significativa das queixas. Por posterior agra-

FIGurA 2. Sinais inflamatórios do coto amputado do polegar


FIGurA 1. Artrite da tibiotársica direita esquerdo

ÓRgÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PORTUgUESA DE REUMATOLOgIA


71
artrite SÉptiCa e gOta – a prOpÓSitO de um CaSO CLÍniCO

FIGurA 4. Abcesso cervical com extensão ao mediastino


superior

FIGurA 3. Massa cervical


contrada nas culturas anteriores.
Foi submetido a drenagem cirúrgica do abcesso,
o lobo direito da tiróide e em baixo com a aorta e veia apresentando destruição da articulação esterno-clavi-
cava superior, estendendo-se até ao mediastino ante- cular e sinais de osteíte com envolvimento do esterno
rior». (Figura 4) e 1ª costela à direita. Manteve antibioterapia endove-
Realizou ainda Cintigrama com leucócitos marca- nosa durante as 3 semanas seguintes, apresentando
dos, para melhor avaliação da extensão dos focos sép- boa evolução clínica e laboratorial, com hemoculturas
ticos e este confirmou hiperfixação da TT direita, om- subsequentes negativas e resolução imagiológica do
bro direito, 1º dedo da mão esquerda e da massa cer- abcesso. No entanto, inicia dor mecânica e impotên-
vical em causa, não havendo referência a outras loca- cia funcional marcadas, da TT direita. Realizou radio-
lizações de hiperfixação (Figura 5). A punção aspirativa grafia da articulação referida que revelou redução da
da massa cervical revelou microbiologia idêntica à en- interlinha articular da tibiotársica e sub-astragalina (Fi-
gura 6).
Manteve seguimento posterior na Consulta de
Reumatologia, encontrando-se actualmente medicado
com Alopurinol 300 mg, 1 id e profilaxia com Colchi-
cina 1mg, 1id, mantendo valores de uricémia dentro
da normalidade e sem evidência de novas crises
de gota.

FIGurA 5. Hiperfixação anómala de leucócitos a nível cervical


e torácico direitos, com extensão mediastínica, ombro direito
(A), 1º dedo da mão esquerda (B) e TT direita (C) FIGurA 6. Sequelas artrósicas da TT e subastragalina direitas

ÓRgÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PORTUgUESA DE REUMATOLOgIA


72
S Serra e COL.

dIscussÃo Contudo, também é possível que uma crise gotosa pre-


ceda uma infecção, sugerindo-se para tal que, a sino-
A Artrite séptica é uma emergência médica, associada vial inflamada permita um acesso mais fácil de bacté-
a significativa morbimortalidade. O atraso diagnósti- rias circulantes para o interior do espaço articular8,9,10.
co ou o tratamento inadequado podem conduzir a des- A importância desta associação baseia-se no facto
truição articular irreversível com consequente incapa- de ambas as formas de artrite poderem ter apresenta-
cidade funcional1. ções semelhantes, constituindo diagnóstico diferencial
A via de infecção mais comum é a hematogénica, entre si. A identificação de cristais no líquido articular
sendo menos frequentes a invasão directa, osteomieli- não exclui a presença de artrite séptica concomitante.
te ou infecção de tecidos moles adjacentes, ou trauma No presente caso clínico, as manifestações clínicas
local. Factores de risco para artrite séptica incluem: e laboratoriais referidas eram passíveis de ocorrer em
idade avançada, doença reumática preexistente, pró- ambas as situações, não permitindo afirmar ou excluir
teses articulares, bacteriémia recente, úlceras cutâneas, um dos diagnósticos. A presença de cristais positiva
alcoolismo, abuso de drogas injectáveis ou estados de confirmou o diagnóstico de gota, e o exame directo do
imunossupressão2. líquido foi positivo, confirmado posteriormente pela
Classicamente apresenta-se como uma artrite agu- identificação de S. aureus.
da febril, com sinais inflamatórios locais e marcada li- A porta de entrada para esta artite séptica foi uma
mitação do movimento, sendo o envolvimento mo- bacteriémia com provável ponto de partida numa in-
noarticular com predomínio de grandes articulações, fecção de tecidos moles à distância, num coto de um
o mais comum. Não existem marcadores clínicos/ la- dedo amputado traumaticamente. A bacteriémia, as-
boratoriais específicos que permitam um diagnóstico sociada à fragilidade da barreira vascular provocada
definitivo e/ou a diferenciação face a outras artrites pelas articulações inflamadas pela gota, poderá ter fa-
agudas como a artrite gotosa3. vorecido este envolvimento poliarticular, que é raro
O estudo do líquido sinovial é mandatório para o numa situação de artrite séptica isolada. No entanto,
diagnóstico definitivo, com identificação do agente pa- pode a crise de gota ter sido desencadeada pela artrite
togénico. Contagens celulares elevadas com predomí- séptica, sendo favorecida pelos mecanismos já acima
nio de neutrófilos, apesar de sugestivos, não são espe- expostos, ou ainda, terem ocorrido em simultâneo.
cíficos4,5. Os casos descritos de coexistência de artrite séptica
O Staphylococcus aureus é o agente bacteriano mais fre- e artrite gotosa, são na maioria poliarticulares, con-
quentemente isolado, sendo encontrado em 2/3 dos ca- cordante com este caso.
sos. Outros agentes podem ser identificados, estando as- Destaca-se ainda a raridade do envolvimento da ar-
sociados a presença de determinados factores de risco2,6. ticulação esterno-clavicular. É uma situação incomum
Perante um grau de suspeição clínica elevado deve (0,5 a 1%), mais frequente em toxicodependentes de
ser iniciada antibioterapia tão precoce quanto possível drogas endovenosas, imunodeprimidos, diabéticos, si-
com objectivo de erradicação da infecção e destruição tuações de fractura da clavícula ou cateterização da
articular7. veia subclávia, o que não se verificava no doente apre-
A associação entre artrite séptica e artrite gotosa não sentado. Tal como neste caso, a bacteriémia está qua-
é frequente, existindo no entanto, algumas séries pu- se sempre presente e os principais riscos associados a
blicadas, a maior com 30 casos. O mecanismo exacto esta situação são abcesso local com mediastinite e a
desta ocorrência simultânea é desconhecido, assim trombose da veia subclávia, sendo a realização de TAC
como da sua relação temporal. Várias hipóteses foram mandatória para detecção da destruição articular e sua
sugeridas sobretudo para explicar a ocorrência de ar- extensão11,12.
trite gotosa em articulações infectadas, entre eles: a No presente caso clínico foi identificado um abcesso
descida do pH local pelo afluxo de neutrófilos com com extensão para o mediastino superior, com necessi-
produção de ácido láctico, favorecendo a precipitação dade de drenagem cirúrgica e ressecção de peças ósseas.
dos cristais de ácido úrico, a digestão articular da car- O presente caso ilustra bem a gravidade da artrite
tilagem pelas enzimas lizossómicas com libertação in- séptica. É uma emergência médica que, caso não re-
tra-articular de cristais de urato ou ainda, a potencia- conhecida e tratada rapidamente, pode provocar des-
ção do efeito inflamatório dos cristais de urato pelas truição articular em poucos dias e ameaçar a própria
endotoxinas e pelo aumento da temperatura local. vida do doente.

ÓRgÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PORTUgUESA DE REUMATOLOgIA


73
artrite SÉptiCa e gOta – a prOpÓSitO de um CaSO CLÍniCO

corresPondÊncIA PArA 5. Mathews CJ, Kingsley G, Field M et al. Management of septic


Sara Serra arthritis: a systematic review. Ann Rheum Dis 2007; 66: 440-
Serviço de Reumatologia 445. DOI: 10.1136/ard.2006.058909.
Hospitais da Universidade de Coimbra 6. Vestra MD, Rettore C, Sartore P et al. Acute septic arthritis: re-
Praceta Mota Pinto member gonorrhea. Rheumatol Int 2008; 29: 81-85.
3000 Coimbra 7. Kherani RB, Shojania K. Case-based review – Septic arthritis in
Email: saramserra@hotmail.com patients with pre-existing inflammatory arthritis.
8. Hamilton ME, Parris TM, Gibson RS, Davis JS. Simultaneous
reFerÊncIAs Gout and Pyarthrosis. Arch Intern Med 1981;140: 917-919.
1. Yang S, Ramachandran P, Hardick A et al. Rapid PCR-Based 9. Baer PA, Tenenbaum J, Fam AG, Little H. Coexistent Septic and
Diagnosis of Septic Arthritis by Early Gram-Type Classification Crystal Arthritis. J Rheumatol 1986; 13: 604-607.
and Pathogen Identification. J Clin Microbiol 2008; 46: 1386- 10. O’Connell PG, Milburn BM, Nashel DJ. Coexistent gout and
-1390. septic arthritis: a report of two cases and literature review. Cli-
2. Marsh RH, Brown DFM, Nadel ES. Case Presentations of the nical and Experimental Rheumatology 1985; 3: 265-267.
Harvard Emergency Medicine Residency – Septic Arthritis. The 11. El Ibrahimi A, Daoudi A, Boujraf S, Elmrini A, Boutayeb F. Ster-
Journal of Emergency Medicine 2006; 31: 417-420. noclavicular septic arthritis in a previously healthy patient: a
3. Visser S, Tupper J. Septic until proven otherwise – Approach case report and review of the literature. International Journal
to and treatment of the septic joint in adult patients. Emergen- of Infectious Diseases 2009; 13: 119-121.
cy Files – Canadian Family Physician. 12. Mikroulis DA, Verettas DA, Xarchas KC, Lawal LA, Kazakos KJ,
4. Smith JW, Chalupa P, Hasan MS. Infectious arthritis: clinical Bougioukas GJ. Sternoclavicular joint septic arthritis and me-
features, laboratory findings and treatment. Clin Microbiol In- diastinitis. A case report and review of the literature. Arch Or-
fect 2006; 12: 309-314. thop Trauma Surg 2008; 128: 185-187.

XVI conGresso PortuGuÊs de reumAtoloGIA

Algarve, Portugal
1 a 5 Maio 2012

ÓRgÃO OFICIAL DA SOCIEDADE PORTUgUESA DE REUMATOLOgIA


74

Você também pode gostar