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Resumo: Esta pesquisa objetivou analisar uma proposta de ensino de zoologia desenvolvida
com base nos saberes etnozoológicos da comunidade local de Itagi-BA em articulação com o
conhecimento científico. Para atingir o propósito foi realizada uma intervenção pedagógica
durante dois meses com uma turma de estudantes do 7º ano do ensino fundamental em uma
escola municipal do referido município. Como constituição de dados utilizou-se de
questionários, atividades dos estudantes e os registros de observação.A maioria dos estudantes
trouxe saberes populares sobre os animais envolvendo uso terapêutico e crenças. A
intervenção contribuiu para que os discentes se interessassem pela zoologia, compreendessem
as principais características evolutivas e percebessem a necessidade da conservação da
biodiversidade.
Introdução
O ensino de ciências naturais na escola fundamentaltem se orientado, historicamente,
por tendências educacionais tradicionaispautadas na transferência e acumulação de
conhecimentos, na negligência dos saberes prévios dos estudantes e na ausência ou restrição
do diálogo e na pouca utilização de estratégias didáticas interativas e participativas. Com isso,
as aulas de ciências têm se caracterizado como exaustivas, enfadonhas, excessivamente
descritivas ememorísticas, não favorecendoo interesse dos discentes pelo conhecimento
científico.
Em se tratando do ensino de zoologia, a abordagem sobre os animais tem clara
preferência pelo abstrato, com pouca contextualização e com isso os alunos não constroem
conceitos com base naquilo que sabem e não fazem interações entre a zoologia expressa nos
materiais didáticos e a fauna local. “O professor deve entender que o aluno traz para a sala de
aula seus conhecimentos prévios ou sua cultura prevalente, anterior à aprendizagem escolar,
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como consequência do fato de que ele é um sujeito ativo também fora da escola”
(DELIZOICOV; ANGOTTI; PERNAMBUCO, 2002, p.84).
Geralmente, a interação com os animais leva os estudantes a vê-los como alimentos,
meios de transporte para fins terapêuticos ou como seres “inúteis” que prejudicam o ser
humano e por isso devem ser eliminados. Esse modo como cada estudante vê os animais
direciona suas atitudes perante os mesmos ora aprisionando-os, ora eliminando-os e ora
acariciando-os, evidenciando uma visão antropocêntrica, na qual o ser humano é visto como
superior aos outros animais e estes somente são respeitados quando servem a humanidade. É
relevante questionar a ideia do ser humano como o ápice da evolução, sendo um ser vivo
como qualquer outro (SANTOS, 2000).
Nesta caracterização, docentes e discente mantém certa distância do assunto
interessando-se pouco pela zoologia. O ensino de ciências naturais no ensino fundamental
requer um novo olhar permitindo uma mudança de atitudes dos educandos em prol do
reconhecimento e da conservação da biodiversidade animal. Além do que, é relevante pensar
a zoologia e o seu ensino com base no parentesco evolutivo e na reconstrução de filogenias
dos animais com base em uma abordagem comparativa dos grupos a fim de que os discentes
entendam que as espécies apresentam relações entre si e que se modificam ao longo do tempo
(ARAÚJO-DE-ALMEIDA, 2011; GUIMARÃES, 2004).
Ademais, o uso do conhecimento etnobiológico não pode ser ignorado. Esses saberes
são difundidos oralmente por intermédio das gerações desde a Antiguidade e vêm se
expandindo ao longo do tempo; este conhecimento tradicional existe em todas as culturas
independentes da etnia e é socializado muito cedo na vida das pessoas. Segundo Alves e
Souto (2010, p. 23): “A variedade de interações (passadas e atuais) que as culturas humanas
mantêm com os animais é abordada pela perspectiva da Etnozoologia, uma ciência que
certamente tem raízes remotas, considerando a relação antiga entre os seres humanos e outros
animais”.
Os estudos etnozoológicos têm contribuído para compreender os sistemas de
classificação das diferentes culturas; analisar como os animais são retratados em contos, mitos
e crenças; discutir as diversas formas de aquisição, elaboração e uso de substâncias extraídas
de animais e os seus impactos sobre as várias populações animais (SANTOS-FITA; COSTA
NETO, 2007).
De forma geral, percebe-se que o conhecimento etnozoológico é fundamental para o
patrimônio cultural da humanidade, não podendo ser desconsiderado nas aulas de ciências.
Conforte Baptista e El-Hani (2006), uma prática docente apropriada ao ensino de ciências
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deve contribuir não somente para ampliar o universo de conhecimentos do aluno relacionados
ao saber científico, mas auxiliar no questionamento e na ampliação dos conhecimentos ditos
populares.
Com base nisso, este trabalho objetivou apresentar e analisar uma experiência de
ensino de zoologia utilizando-se dos saberes etnozoológicos e realizada com estudantes do
ensino fundamental de uma escola municipal em Itagi-BA.
Percurso metodológico
Esta pesquisa está pautada na abordagem qualitativa, na qual, entre outras coisas, a
preocupação centra-se nos significados, pensamentos, ideias que os participantes atribuem ao
mundo (MINAYO, 2012). A pesquisa foi desenvolvida por meio de uma intervenção com
estudantes do 7º ano do ensino fundamental em uma escola municipal da cidade deItagi-BA.
É nessa escola que a primeira autorado referente artigo atua como professora desde 1998. O
critério utilizado para a escolha da turma foi o fato de que é nesta série que a escola propõe o
estudo da zoologia. A classe consta com estudantes de faixa etária entre onze e vinte e três
anos, oriundos tanto do campo quanto da cidade.
Para o desenvolvimento da intervenção elaborou-se um plano de unidade. A sequência
didática foi realizada durante dez semanas, totalizando trinta horas aulas, cada uma com
cinquenta minutos. A intencionalidade da proposta foi contribuir para que os estudantes
ampliassem os seus conhecimentos sobre os animais por meio do resgate dos saberes
etnozoológicos da comunidade e do diálogo desses com o conhecimento científico.
Na 1ª semana foi apresentada a proposta de trabalho e o roteiro com questões
abordando opiniões sobre os animais encontrados no município para que os discentes
entrevistassem familiares acima de 50 anos. Alguns realizaram a entrevista com sucesso,
outros devolveram o questionário sem responder. Após essa etapa foram recolhidos os
resultados da atividade aplicada e feita uma leitura analítica, registrando as ideias encontradas
para iniciar a intervenção.
Na 2ª semana foi realizada uma atividade em que os discentes foram divididos em
grupos e receberam envelopes contendo figuras dos animais citados pela comunidade para
que classificassem conforme os seus próprios critérios a fim de discutir sobre as múltiplas
formas de agrupar os animais.
Na 3ª semana aconteceu o momento de socialização, no qual os estudantes
apresentaram as classificações e explicaram os métodos utilizados para o agrupamento como
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a) Primeira etapa
No questionário inicial aplicado, pelos estudantes, com vinte e seis moradores da
cidade identificaram-se quatro categorias taxonômicas, quais sejam: mamíferos (26 citações);
aves (21); répteis (9) e anfíbios (1). Dos animais identificados, constatou-se que mamíferos e
aves constituem os grupos mais citados. Os dois animais mais citados foram a paca
(Cuniculus paca) e o tatu (Euphractussexcinctus). Estes dois animais silvestres são vistos
como fonte de alimento e, portanto, são caçados por muitos dos moradores da localidade em
estudo. Outros animais citados são aqueles domesticados como gato e cachorro ou mesmo a
galinha e o porco criados para servirem como alimento.
A tabela 1 apresenta uma síntese dos animais mais citados e o número de citações.
Segundo Pires, Pinto e Mateus(2010), os mamíferos são mais conhecidos por terem uma
relação com a alimentação, uso terapêutico, afetividadeou valoreconômico.
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“Não tenho medo, tenho nojo do rato ele fede e transmite doenças, com a
gata tenho uma relação de respeito e afetividade, pois é um animal muito
inteligente, vai me encontrar na rua, me faz companhia e não faz as
necessidades dentro de casa.”
“Medo da surucucu, especialmente da pico-de-jaca que é venenosa e
agressiva”.
“Um homem estava roçando a manga quando ele bateu a foice e notou que
tinha cortado uma cobra mais ou menos no meio e ficou preocupado, mas
não conseguiu achar a parte da frente para matar, não achando, desistiu,
depois de quatro meses achou o restante da cobra perto da casa de farinha,
longe de onde ele estava roçando, a cobra estava seca, só couro e osso, se
arrastando, ele matou e queimou”.
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b) Segunda etapa
Uma das atividades desenvolvidas foi agrupar os animais citados pelos moradores nas
entrevistas. Em relação aos critérios prévios utilizados pelos discentes para agrupar e
classificar os seres vivos, observou-se algumas tendências. A primeira delas foi o uso
decaracterísticas morfo-fisiológicas. Como exemplo, cita-se o agrupamento de alguns
animais:
“Bem esse aqui é o grupo dos répteis, eles são compridos e se arrastam”.
“Esse aqui é o grupo das aves, são bonitas e bota ovos”.
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Alguns felinos e aves foram classificados como animais do rei e, portanto, eram vistos
como fortes. Em síntese, concluiu-se que os alunos desconheciam a importância ecológica dos
animais e das interações entre as espécies, além de não estabelecerem relações de parentesco
evolutivo entre os grupos.
No questionário inicial observou-se que os invertebrados foram pouco citados. Diante
disso e baseando-se no pressuposto da relevância de se discutir sobre este grupo, pois,segundo
Brusca e Brusca (2007), foram os primeiros animais na escala evolutiva da vida e abrangem o
maior número de espéciesde animais descritas (aproximadamente95%), foi proposta uma
visita no Laboratório de Zoologia de Invertebrados da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia, campus de Jequié-BA. Ressalta-se aqui que apesar de a divisão vertebrados e
invertebrados não ser adequada à sistemática filogenética atual, o uso destes termos foi feita
mais por tradição histórica.
Nesta aula os discentes observaram alguns representantes dos grupos taxonômicos dos
invertebrados e mostraram-se motivados e questionadores. Esta experiência possibilitou um
diálogo entre o conhecimento científico e saberes prévios dos educandos. Dentre as várias
perguntas feitas pelos discentes durante a visita, destacaram-se:
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Conforme Pough, Janis e Heiser (2008), em relação aos peixes, o grupo relatou que as
escamas estão presentes na maioria dos peixes, porém usar a ideia de corpo alongado é muito
vaga para caracterizá-los e ressalta-se que nem todos os peixes têm nadadeiras.A equipe que
caracterizou os anfíbios mencionou que são animais de pele nua, porémo termo científico
mais adequado é a pele úmida e permeável, já os ovos dos anfíbiossão desprovidos de casca e
com camadas gelatinosas o que leva os estudantes a caracterizá-los como moles. Sobre a
temperatura corpórea, o termo mais utilizado é ectotérmico correspondendo aos animais
queregulam a temperatura do corpo a partir de fontes externas de calor.
Sobre os répteis, estes têm a pele seca e impermeável, sãoectotérmicos, os sexos nem
sempre são separados e a fecundação é interna.O grupo que caracterizou as aves trouxe ideias
aceitas cientificamente. Quanto aos mamíferos, o grupo não mencionou que são animais
endotérmicos, ou seja, controlam a temperatura corpórea embora citassem a presença de pelos
e de glândulas mamárias, características estas coerentes com a visão científica.
Em outro momento foi trabalhado o texto “Medicina tradicional ameaça répteis” com
o intuito de discutir a utilização da matéria-prima proveniente de répteis para uso medicinal e
religioso por comunidades tradicionais no Brasil e no mundo e os riscos do uso
indiscriminado por meio da biopirataria associado à destruição do habitat dessas espécies.
Com a leitura e discussão do texto, os estudantes fizeram perguntas sobre a biopirataria e o
uso de pílulas com material extraído de cascavel, além de perceberem que algumas espécies
podem ser extintas caso nãos sejam modificadas essas ações antrópicas.Isto foi extremamente
relevante, pois conforme apontado por Costa-Neto (2011), o uso de medicamentos produzidos
à base de animais pode comprometer a biodiversidade, pois, algumas vezes, tanto usuários
quanto comercializadores de zooterápicos desconhecem que determinados animais estão
ameaçados de extinção como é o caso de jacarés e tartarugas-marinhas citados pelo autor.
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Considerações Finais
Constatou-se que os discentes interagem com os recursos faunísticos destacando-se o
uso como fonte alimentar e para fins terapêuticos.No decorrer da investigação, a maioria dos
objetivos propostos foi alcançada. Buscou-se por meio de uma abordagem questionadora
aproximar as necessidades educativas dos interesses dos discentes, confrontando a ciência e
os conhecimentos prévios, mas sem o propósito de reiterar o conhecimento científico como
verdadeiro em contraposição ao conhecimento tradicional.
Em suma, concluiu-se que os estudantes compreenderam, em linhas gerais, as formas
de classificação e organização dos animais com base na sistemática filogenética e perceberam
a relevância de revisitar os seus saberes com o intuito de construírem atitudes consonantes
com a conservação da biodiversidade animal, não desconsiderando os saberes tradicionais.
Referências
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