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ArqueologiaOeste PDF
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ISSN 2178-0811
RESUMO
O presente artigo propõe apresentar algumas reflexões sobre o campo de possibilidades de
pesquisas arqueológicas em áreas indígenas situadas no oeste do Estado de Santa Catarina. Tal
tarefa deverá necessariamente incluir nas agendas de pesquisa duas preocupações básicas: a
inclusão dos povos indígenas junto às investigações, além de que os resultados devem estar em
consonância com a valorização da identidade indígena, de um lado, e com as reivindicações
políticas e territoriais, por outro.
ABSTRACT
This paper aims to present some reflections on the archaeological research possibilities in
located areas in West Region of the Santa Catarina State, Brazil. This task should necessarily
include research agendas in two basic concerns: the inclusion of indigenous peoples in the
archaeological investigations, and that the results should be in line with the appreciation of
indigenous identity, on the one hand, and the political and territorial claims, in the other.
Segundo Francisco Silva Noelli3, a região sul do Brasil possui uma ocupação
indígena inicial há cerca de 12 mil anos, composta dos primeiros grupos de caçadores-
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coletores que deixaram como legado sítios a céu aberto ou em abrigos, compostos por
grande variedade de artefatos líticos, classificados pelos arqueólogos em duas tradições:
Umbu e Humaitá. Mais recentemente, por volta de 3 mil anos atrás, a região foi sendo
paulatinamente mais densamente povoada, por grupos humanos agricultores vindos da
Amazônia, no caso dos Guarani, e da região centro-oeste do Brasil, no caso dos povos
Jê. Quando da chegada e ocupação territorial de origem europeia, todo o planalto sul
estava povoado, incluindo evidentemente a região oeste do atual Estado de Santa
Catarina. Como aconteceu nas demais regiões brasileiras, as guerras de extermínio, as
epidemias, os conflitos por terras e a escravidão ocasionaram o genocídio indígena,
restando hoje alguns milhares de índios que ainda vivem em situação de conflito, na
incansável luta por seus direitos e por terras adequadas para a reprodução do modo de
vida tradicional.
Mais especificamente, a região oeste do Estado de Santa Catarina foi povoada
por populações indígenas desde épocas muito remotas, com datações mais antigas
situadas em torno de 8.000 anos atrás. Dentre os diferentes sistemas de povoamento
regional pré-colonial, destacam-se os assentamentos de dois povos com matrizes
linguístico-culturais diferentes: os Guarani e os Jê, sendo estes últimos hoje
subdivididos em dois grupos étnicos diferentes: os Kaingang e os Xokleng. Na região
em tela, os Guarani ocuparam principalmente as margens dos médios e grandes rios. Ao
longo das barrancas e várzeas dos rios Uruguai e Iguaçu foram identificados centenas de
sítios arqueológicos associados a estes povos, que devem ter chegado à região
provindos de um longo processo de migração amazônica, por volta de 2.500 anos atrás.
Os povos Jê devem ter sido predecessores dos Guarani, havendo colonizado
praticamente todos os ambientes do território onde hoje situa-se o oeste catarinense a
partir de 3.000 anos atrás, aproximadamente, o que deve ter gerado uma situação de
conflito permanente, por interesses de ordem ambiental e/ou cultural diversas entre estes
dois grandes grupos étnicos4.
Com o processo de colonização não-indígena na região, estes povos foram sendo
sistematicamente perseguidos e diversas aldeias foram sendo sumariamente dizimadas.
Os Guarani, em sua grande maioria, migraram para a região dos trinta povos das
Missões, mais ao sul do território, participando da experiência jesuítica nos redutos
religiosos, que serão desestruturados a partir da chamada Guerra Guaranítica entre os
4
NOELLI, Francisco Silva, op. cit., 1999-2000.
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5
GOLIN, Tau. A Guerra Guaranítica 1753-1756: A coligação colonial ibérica contra os índios
missioneiros, 2008.
6
Ver, por exemplo, LAROQUE, Luis Fernando da Silva, Lideranças Kaingang no Brasil Meridional
(1808-1889), 2000.
7
NACKE, Aneliese e BLOEMER, Neusa Maria Sens, As áreas indígenas Kaingang no oeste catarinense,
2007.
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Ver por exemplo, a seguinte matéria jornalística: http://g1.globo.com/sc/santa-
catarina/noticia/2012/07/area-no-oeste-de-sc-e-alvo-de-disputa-entre-indios-e-agricultores.html.
9
SILVA, Fabíola Andréa, Arqueologia e Etnoarqueologia na Aldeia Lalima e na Terra Indígena Kayabi:
Reflexões sobre Arqueologia Comunitária e Gestão do Patrimônio Arqueológico, 2009.
10
ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion; MIGLIACIO, Maria Clara, Preservação do Patrimônio
Arqueológico e Terras Indígenas, 2008.
11
OLIVEIRA, Nanci Vieira de; FUNARI, Pedro Paulo Abreu; CHAMORRO, Leandro K. Mendes,
Arqueologia participativa: Uma experiência com indígenas guaranis, 2011.
12
FERREIRA, Lúcio Menezes, Sob fogo cruzado: Arqueologia comunitária e patrimônio cultural, 2008.
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SILVA, Fabíola Andréa, Arqueologia e Etnoarqueologia na Aldeia Lalima e na Terra Indígena Kayabi:
Reflexões sobre Arqueologia Comunitária e Gestão do Patrimônio Arqueológico, 2009.
14
FERREIRA, Lúcio Menezes, Sob fogo cruzado: Arqueologia comunitária e patrimônio cultural, 2008,
p. 80.
15
SILVA, Fabíola Andréa, op. cit., 2009, p. 14.
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ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion; MIGLIACIO, Maria Clara, op. cit., 2008, p. 17.
17
SILVA, Fabíola Andréa; BESPALEZ, Eduardo; STUCHI, Francisco Forte, Arqueologia colaborativa na
Amazônia: Terra Indígena Kuatinemu, Rio Xingu, Pará, 2011.
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SILVA, Fabíola Andréa; BESPALEZ, Eduardo; STUCHI, Francisco Forte, op. cit., Pará, 2011.
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deram depoimentos sobre situações pré e pós-contato (como conflitos com outros
coletivos indígenas e depois com os brancos, o porquê escolheram os lugares de
assentamento, etc.), os quais foram gravados em áudio e vídeo. Os jovens
acompanharam estes relatos fazendo as perguntas na língua Asurini e traduzindo os
relatos para o português19.
A pesquisa colaborativa desenvolvida pela equipe de Silva mesclou as técnicas
arqueológicas com o conhecimento e a memória dos velhos Asurini. Além de indicar os
locais de seus antigos assentamentos, os Asurini identificaram em todos os sítios os
materiais arqueológicos que estariam relacionados com a ocupação de seus “parentes”,
os que seriam oriundos de seus ancestrais míticos e os que não pertenceriam ao seu
coletivo. Também fizeram distinções entre os padrões de assentamento pré e pós-
contato e destacaram os lugares de memória carregados de significados sócio-
cosmológicos. Todas as interpretações dos vestígios realizadas pelos Asurini foram
pautadas em sua filosofia ameríndia sobre a relação entre os humanos, a natureza e a
sobrenatureza e revelam um regime próprio de historicidade que difere muito daquele
dos pesquisadores.20
Outro tema diretamente ligado à arqueologia colaborativa em terras indígenas se
refere à associação ou não da cultura material aos coletivos indígenas de determinada
área, agindo-se, portanto, na esfera política e jurídica de demarcação tanto de terras já
ocupadas, bem como daquelas reivindicadas em situação de litígio e disputa. O estudo
de caso apresentado por Oliveira21 na terra indígena Sucuri'y, no município de Maracaju
no Estado do Mato Grosso do Sul, proporciona bases para se pensar a pesquisa
arqueológica nestes termos de reclames territoriais. Em tese, a arqueologia seria de
grande contribuição para a demarcação de terras devido aos achados que podem ser
identificados, mas, por outro lado, gera-se muitas vezes um grave problema de
associação ou não dos materiais arqueológicos com determinados grupos étnicos, pois é
impossível na maior parte dos casos de comprovar relações seguras entre o estático
arqueológico e a dinâmica atual indígena. Portanto, o fato de não encontrar-se vestígios
seguramente ligados aos Guarani, ou aos Jê, por exemplo, não significa que as terras em
questão não pertençam na atualidade aos coletivos que atualmente a ocupam. Como o
19
SILVA, Fabíola Andréa; BESPALEZ, Eduardo; STUCHI, Francisco Forte, op. cit, Pará, 2011.
20
SILVA, Fabíola Andréa; BESPALEZ, Eduardo; STUCHI, Francisco Forte, op. cit., 2011.
21
OLIVEIRA, Jorge Eremites de, Cultura material e identidade étnica na arqueologia brasileira: um
estudo de caso por ocasião da discussão sobre a tradicionalidade da ocupação Kaiowá da terra indígena
Sucuri'y, 2006.
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BARTH, Fredrik, Grupos étnicos e suas fronteiras, 1998.
23
FERREIRA, Lúcio Menezes, op. cit., 2008, p. 87; OLIVEIRA, Jorge Eremites de, Cultura material e
identidade étnica na arqueologia brasileira: op. cit, 2006, p. 41; OLIVEIRA, Nanci Vieira de; FUNARI,
Pedro Paulo Abreu; CHAMORRO, Leandro K. Mendes, op. cit., 2011, p. 17.
24
OLIVEIRA, Jorge Eremites de, op. cit., 2006, 41.
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ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion; MIGLIACIO, Maria Clara, op. cit., 2008, 16.
26
NACKE, Aneliese e BLOEMER, Neusa Maria Sens, As áreas indígenas Kaingang no oeste
catarinense, 2007, 62..
27
OLIVEIRA, Jorge Eremites de, op. cit., 2006, 43-44.
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ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion; MIGLIACIO, Maria Clara, op. cit., 2008, p. 17.
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saberes e dados, retomando-se uma ideia central nos projetos de educação patrimonial, a
saber, de que os conhecimentos gerados por pesquisas científicas devem ter como
finalidade básica a divulgação para as comunidades envolvidas, criando-se soluções
didáticas para atingir tal público de forma compreensiva.29 A necessidade de divulgação
também deve atingir o público não-índio, servindo de instrumento de valorização da
diversidade cultural regional, afetada no senso comum por ideias pré-concebidas e
preconceituosas contra os povos indígenas, tidos como “inimigos do desenvolvimento”,
como pode se observar cotidianamente em uma cidade como Chapecó, que a partir de
seus gestores públicos, se esforça para conceber uma ideia de cidade moderna e
desenvolvida, a qual, como pode-se supor, os índios não fazem parte deste projeto, já
que, para estes mesmos gestores, os índios representam o oposto daquilo que tentam
impregnar na população de maneira geral. Um bom caminho pode ser visto no trabalho
de arqueologia participativa da Aldeia Sapukaí-Bracuí em Angra dos Reis, Estado do
Rio de Janeiro, em que índios Guarani e não-índios, como estudantes universitários,
tiveram a oportunidade de travar relações e discussões sobre os saberes científicos e
tradicionais dos povos indígenas que ocupam a referida área.30
Considerações finais.
29
ROBRAHN-GONZÁLEZ, Erika Marion; MIGLIACIO, Maria Clara. op. cit., 2008, p. 16.
30
OLIVEIRA, Nanci Vieira de; FUNARI, Pedro Paulo Abreu; CHAMORRO, Leandro K. Mendes, op.
cit., 2011.
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REFERÊNCIAS
OLIVEIRA, Nanci Vieira de; FUNARI, Pedro Paulo Abreu; CHAMORRO, Leandro K.
Mendes. Arqueologia participativa: Uma experiência com indígenas guaranis. In Revista
Arqueologia Pública. Campinas, n° 4, 2011. p. 13-19.
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