Laranjais em flor. Tua alma em flor e em canção. Corpo, alma, canção, no laranjal desaparecem, mas se ouve um rumor desgarrado de poesia, murmúrio espesso, indiferente à imperfeição oceânica e à língua seca do tempo. Cantava uma ardência miraculosa de músculo possante porque era verão em Espanha e tua carne vivia, sem látegos enfermos, com infantilidades de namorada na paisagem de teus olhos. É noite nesta cidade distante, mas em festa de sol é que escuto teus passos e teu canto. Caminhaste demais, caminhaste sempre, até que das torres de Granada a noite baixasse, e quando a sombra te abraçou, tua cabeça prodigiosa repousou na água silente, a água recebeu teu pensamento grave e amigo e veio até nós, alagando o alheamento frio. Não se percebe de súbito o pranto. Mas se encosto meus dedos à face noturna, sei que o tempo soluça e existe nada mais que desamparo, que persistem guitarras arrepiando a carne da madeira, que o vento se agarra à cabeleira das árvores e permanece, que a vida perdida se refugiou no lago perdido; se alguém lembrar que o teu coração se esquece em uma cisterna ignorada, nossas pernas incuráveis e gigantescas hão de andar a noite toda a procurar-te. Há uma orfandade enorme nas coisas mais simples. Quem dirá a infinita beleza das caçarolas de cozinha, dos espanadores e de uma garrafa abandonada? Os olmos de tua terra se crestaram na sombra, as ribeiras indecisas já não choram porque ninguém mais sabe que elas choram. Em Santiago chove ainda, chove ainda no mundo, mas é chuva implacável, sem reminiscência de ternura. Enquanto os poetas se atiram ao mar, minhas unhas arranham a pele da noite e sei que existes. Tanta palavra ensinaste às coisas sequiosas! E as coisas, e nós todos, não passaremos por ti desfalecidos porque plástico e atormentado era o teu amor. Devolvo-te meu canto imperfeito no espanto de um menino que lançasse uma pedra no fundo de um poço e em vão esperasse o baque final tão cheio de paz. Não há resposta. Granada é tão longe. E eu estou preso às lombadas de meus livros de bronze, à visão desses arbustos sem raiva que não sei dizer. Lembrar o adverso me amedronta indefeso. Na inexorável Nova Iorque, teus olhos debruçaram-se na ponte de Brooklin, e apenas teus olhos existem na ponte de Brooklin. Ouviste a angústia incomparável dos olhos oprimidos de Harlem, e o desesperado rei de Harlem cujas barbas chegavam até o mar. Uniste tuas mãos diante de um mascarado que bailaria entre números e colunas de sangue, lutaste com a lua nos terraços, te perdeste ao meio da multidão que vomita, e te sentiste apenas um pulso ferido, e nem um poeta e nem um homem; gritaste, porque nada mais havia, senão um milhão de carpinteiros fabricando ataúdes sem cruz, e percebeste que não era um sonho, mas a vida, com criaturas do céu enterradas na neve, com um enxame de moedas devorando crianças indefesas, com camareiros, cozinheiros e os que limpam com a língua as feridas dos milionários, com um mundo de mortos embebidos em devorar suas próprias mãos com ricaços putrefatos que dão de presente a suas amadas pequenos moribundos iluminados, e caminhaste pelos bairros onde há gente que vacila insone como saída de um naufrágio de sangue, e caminhaste pelos olhos dos idiotas e pelas mãos inconcebíveis de uma humanidade em vermelho. E, porque contemplaste Nova Iorque, aprendeste que a verdadeira dor não está no ar, nem nos terraços cheios de fumo mas que é uma pequena queimadura infinita, e nada mais pudeste cantar, Garcia Lorca, porque em tuas pupilas se refugiaram mendigos, prostitutas, marinheiros, gente de casta inumerável. Debaixo das contas de somar, havia um rio de sangue terno cantando pelos dormitórios dos arrabaldes, e embora a aurora chegasse inútil para Nova Iorque, sem manhã ou esperança possível, tu a recebeste em tua boca impoluta e nas veias onde queimava o teu sangue de espanhol verdadeiro, porque aguardavas em combate uma luz desmedida que os ricos temessem, e quiseste, e nós queremos, que se cumpra a vontade da terra que deseja distribuir seus frutos para todos. Porque eras um homem de lábios de prata e uma palmeira. Na tranquila noite mineira, teu grito de justiça rompe o céu apodrecido de Nova Iorque e grita dentro de nós. Há uma orfandade enorme. Sei que conheces todos os caminhos como se foras um menino, mas, ao meio de todas as vozes que te cercaram, colaste teus ouvidos aos pulmões enfermos da cidade e não ficaste indiferente ao arquejo que captaste, um pedaço de voz entrecortado, um coro sem música, sem tranquilidade nenhuma que irrompia de gargantas humanas submersas. Não fugiste em tropel para as ilhas de ouro, embora fosses o dono de todos os cavalos brancos. Poeta de palpitações suaves, aceitaste em teu rosto os borbotões de sangue, e embora o milagre de teus olhos ciganos, quiseste ser apenas um sinaleiro e não enfaixaste a chaga do mundo em gaza de palavra imaginária, antes espremeste sobre nós o caldo amargo de tua visão compadecida, sem esconder a tua face translúcida, a lírica permeabilidade de tua pele às maresias do mundo. Seria agora inútil e patético, Garcia Lorca, suspender a minha voz no céu irresponsável e indagar onde estás. Estás à sombra das oliveiras, talvez, nos olhos sem tempo dos bois, no teu túmulo, talvez, à beira dos riachos, à beira dos pensamentos de misericórdia, nos versos melhores que fazemos, acompanhando a lua na visita às cidades destruídas, no soluço definitivo dos moribundos fuzilados, no ar, no vento, na chuva, estás por toda parte, porque a palavra amor não desmorona nunca.