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ODE A FEDERICO GARCIA LORCA

Paulo Mendes Campos


(em: O domingo azul do mar, 1958)

O sol surpreende teu corpo em direção de Córdoba.


Laranjais em flor. Tua alma em flor e em canção.
Corpo, alma, canção, no laranjal desaparecem, mas se ouve um
rumor desgarrado de poesia,
murmúrio espesso, indiferente à imperfeição oceânica e à
língua seca do tempo.
Cantava uma ardência miraculosa de músculo possante porque
era verão em Espanha e tua carne vivia,
sem látegos enfermos, com infantilidades de namorada na
paisagem de teus olhos.
É noite nesta cidade distante, mas em festa de sol é que escuto
teus passos e teu canto.
Caminhaste demais, caminhaste sempre, até que das torres de
Granada a noite baixasse,
e quando a sombra te abraçou, tua cabeça prodigiosa repousou
na água silente, a água recebeu teu pensamento grave
e amigo e veio até nós, alagando o alheamento frio.
Não se percebe de súbito o pranto. Mas se encosto meus
dedos à face noturna,
sei que o tempo soluça e existe nada mais que desamparo,
que persistem guitarras arrepiando a carne da madeira,
que o vento se agarra à cabeleira das árvores e permanece,
que a vida perdida se refugiou no lago perdido;
se alguém lembrar que o teu coração se esquece em uma
cisterna ignorada,
nossas pernas incuráveis e gigantescas hão de andar a noite
toda a procurar-te.
Há uma orfandade enorme nas coisas mais simples.
Quem dirá a infinita beleza das caçarolas de cozinha, dos
espanadores e de uma garrafa abandonada?
Os olmos de tua terra se crestaram na sombra, as ribeiras indecisas
já não choram porque ninguém mais sabe que elas
choram.
Em Santiago chove ainda, chove ainda no mundo, mas é chuva
implacável, sem reminiscência de ternura.
Enquanto os poetas se atiram ao mar, minhas unhas arranham
a pele da noite e sei que existes.
Tanta palavra ensinaste às coisas sequiosas! E as coisas, e nós
todos, não passaremos por ti desfalecidos
porque plástico e atormentado era o teu amor.
Devolvo-te meu canto imperfeito no espanto de um menino
que lançasse uma pedra no fundo de um poço e em
vão esperasse o baque final tão cheio de paz.
Não há resposta. Granada é tão longe. E eu estou preso
às lombadas de meus livros de bronze, à visão desses
arbustos sem raiva que não sei dizer. Lembrar o adverso
me amedronta indefeso.
Na inexorável Nova Iorque, teus olhos debruçaram-se na
ponte de Brooklin, e apenas teus olhos existem na ponte
de Brooklin.
Ouviste a angústia incomparável dos olhos oprimidos de
Harlem,
e o desesperado rei de Harlem cujas barbas chegavam até o mar.
Uniste tuas mãos diante de um mascarado que bailaria entre
números e colunas de sangue,
lutaste com a lua nos terraços, te perdeste ao meio da multidão
que vomita,
e te sentiste apenas um pulso ferido, e nem um poeta e nem
um homem; gritaste, porque nada mais havia, senão um
milhão de carpinteiros fabricando ataúdes sem cruz,
e percebeste que não era um sonho, mas a vida, com criaturas
do céu enterradas na neve,
com um enxame de moedas devorando crianças indefesas,
com camareiros, cozinheiros e os que limpam com a língua
as feridas dos milionários,
com um mundo de mortos embebidos em devorar suas
próprias mãos
com ricaços putrefatos que dão de presente a suas amadas
pequenos moribundos iluminados,
e caminhaste pelos bairros onde há gente que vacila insone
como saída de um naufrágio de sangue,
e caminhaste pelos olhos dos idiotas e pelas mãos inconcebíveis
de uma humanidade em vermelho.
E, porque contemplaste Nova Iorque, aprendeste que a verdadeira
dor não está no ar, nem nos terraços cheios de
fumo
mas que é uma pequena queimadura infinita, e nada mais
pudeste cantar, Garcia Lorca, porque em tuas pupilas se
refugiaram mendigos, prostitutas, marinheiros, gente de
casta inumerável.
Debaixo das contas de somar, havia um rio de sangue terno
cantando pelos dormitórios dos arrabaldes,
e embora a aurora chegasse inútil para Nova Iorque, sem
manhã ou esperança possível,
tu a recebeste em tua boca impoluta e nas veias onde queimava
o teu sangue de espanhol verdadeiro,
porque aguardavas em combate uma luz desmedida que os
ricos temessem, e quiseste, e nós queremos, que se cumpra
a vontade da terra que deseja distribuir seus frutos para
todos. Porque eras um homem de lábios de prata e
uma palmeira.
Na tranquila noite mineira, teu grito de justiça rompe o céu
apodrecido de Nova Iorque e grita dentro de nós.
Há uma orfandade enorme.
Sei que conheces todos os caminhos como se foras um menino,
mas, ao meio de todas as vozes que te cercaram, colaste
teus ouvidos aos pulmões enfermos da cidade e não ficaste
indiferente ao arquejo que captaste,
um pedaço de voz entrecortado, um coro sem música, sem
tranquilidade nenhuma
que irrompia de gargantas humanas submersas.
Não fugiste em tropel para as ilhas de ouro, embora fosses
o dono de todos os cavalos brancos.
Poeta de palpitações suaves, aceitaste em teu rosto os borbotões
de sangue,
e embora o milagre de teus olhos ciganos,
quiseste ser apenas um sinaleiro e não enfaixaste a chaga
do mundo em gaza de palavra imaginária,
antes espremeste sobre nós o caldo amargo de tua visão compadecida,
sem esconder a tua face translúcida, a lírica
permeabilidade de tua pele às maresias do mundo.
Seria agora inútil e patético, Garcia Lorca, suspender a minha
voz no céu irresponsável e indagar onde estás.
Estás à sombra das oliveiras, talvez, nos olhos sem tempo
dos bois, no teu túmulo, talvez,
à beira dos riachos, à beira dos pensamentos de misericórdia,
nos versos melhores que fazemos,
acompanhando a lua na visita às cidades destruídas, no soluço
definitivo dos moribundos fuzilados,
no ar, no vento, na chuva, estás por toda parte, porque a
palavra amor não desmorona nunca.

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