Você está na página 1de 10

A Odisséia da imagem:

Freud, Lacan e a arte


Sergio Sklar*

Resumo
Ousando se aproximar de outras áreas do conhecimento, a psicanálise foi
também marcada, como atestam inúmeros ensaios psicanalíticos, pelo alto
apreço de Freud e Lacan em relação à arte. Um deles, percorrendo as
adjacências entre o discurso freudiano, a teoria lacaniana e o mundo artístico,
é considerado neste artigo: O Espaço Imanente (Rio de Janeiro: Imago, 1989).
Este livro se aventura pelas longas divagações estético-freudianas, revendo as
análises sobre o Moisés de Michelangelo, Leonardo da Vinci e a Gradiva de
W. Jensen e os comentários de Lacan sobre o quadro de Hans Holbein, Os
Embaixadores. Delas, rediscute a concepção de uma psicanálise da arte em
torno da cisão entre o concreto, visível ou “externo” (o que existe
concretamente na escultura de Michelangelo, na pintura de Da Vinci, no
delírio do protagonista de Jensen, no quadro de Holbein), e o mental ou
“interno” (o que torna a realidade pensada ou representada). Na contramarcha
desta posição, assinala como o externo torna-se, também, condição para que o
artista possa criar “internamente”. Insólito na leitura psicanalítica que
sustenta, este ensaio agrega ao ar de liberdade que insufla a criação do artista
diante de sua obra, traduzindo um aparente rompimento ou descompromisso
dos conteúdos artísticos com qualquer ocorrência concreta, a organização
física ou imanente dos objetos que se encontram na realidade.
Palavras-chave: Freud; Lacan; Arte, Psicanálise e Filosofia.

*
SERGIO SKLAR é Doutor em Filosofia (USP), Professor-Adjunto do Departamento de
Estudos da Subjetividade Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Faculdade de Educação-
DESF-UERJ), Membro da Sociedade Internacional de História da Psiquiatria e da Psicanálise (Paris).

113
Expandindo interfaces Previsão que inflama
da psicanálise, num suas mais diversas
claro sobrevôo reflexões sobre a arte,
teórico, Freud destacando-se, numa
ampliou suas rápida olhada:
preocupações a áreas (1) Delírios e Sonhos na
não diretamente Gradiva de W. Jensen,
clínicas, devotando 1907 (sobre o romance
boa parte de seu Gradiva, escrito em
tempo e esforço para 1903 por Wilhelm
entender a criação Jensen) (FREUD:
artística. Revelando 1993);
seu ardor e fascínio Sigismund Schlomo Freud (1856-1939) (2) Leonardo da Vinci e
pela arte, ele deixa uma lembrança de sua
rastros teóricos ao longo da obra, numa infância, 1910 (referente à criação
trajetória que começa das cartas à esposa de Da Vinci) (FREUD: 1996);
de 1880, ao Esboço de Psicanálise em (3) O tema dos três escrínios, 1913
1939. Ele vasculha por este caminho (em torno da escolha de uma
criações dos mais diversos expoentes da terceira personagem em dois dramas
literatura (Goethe, Shakespeare), da de Shakespeare) (FREUD: 1991a);
pintura (Leonardo da Vinci) e da
(4) O Moisés de Michelangelo, 1914
escultura (Michelangelo). Profusa, rica (concernente à escultura do Moisés)
em referências e divagações, a (FREUD: 1991b);
proximidade com a arte recoloca
significativamente o alcance da (5) Uma recordação de infância de
investigação clínica na teoria freudiana, Dichtung und Wahrheit, 1917
trazendo uma viva luz sobre as leis do (relativa à biografia de Goethe)
(FREUD: 1986a).
funcionamento psíquico. Freud chega
mesmo a colocar lado a lado em 1900 o Com elas, percorremos idéias bem
mundo onírico e a poesia, indicando que distantes do horizonte clínico. Parecem
o percurso clínico apresentava-se como se colocar, no entanto, numa
um dos recursos, não o único, nem o contramarcha à distância dos analistas
principal, para ilustrar mecanismos para empreender reflexões estéticas, se
inconscientes, assinalando no prefácio à for dada como final, acabada, a
terceira edição de sua Interpretação de apreciação que formula Freud sobre a
Sonhos: essência do trabalho analítico em seu
estudo sobre o não-familiar ou sinistro,
quando afirma:
O analista sente apenas raramente a
Posso até mesmo ousar-me a prever
motivação para empreender
em que outras direções as edições
investigações sobre a estética,
posteriores deste livro, se é que
mesmo quando ela não se restringe à
alguma se fará necessária, diferirão
doutrina do belo, mas é descrita
da atual. Terão (...) de proporcionar
como a teoria das qualidades dos
um contato mais estreito com o
nossos sentimentos. Ele trabalha em
copioso material apresentado na
outras camadas da vida psíquica e
poesia, no mito, no uso lingüístico e
tem muito pouco a fazer com as
no folclore (...) (FREUD: 1987,
diversas constelações acompanhadas
Seiten XI-XII).
de emoções dependentes, inibidas

114
em seu fim e atenuadas que, na perdurar no rosto da mãe de Da Vinci.
maioria das vezes, constituem o Conserva-se obscuro, de outro, o que
material da estética (FREUD: desperta nossas mais vívidas impressões
1986b, Seite 226). sobre as criações de arte. Diante do
Haveria, à primeira vista, ao menos, um Moisés de Michelangelo, Freud (1991c,
rompimento que parece distanciar o que Seite 173) chega a assinalar, a este
“o analista sente” do que compõe “o respeito, que “algumas das mais
material da estética”; o problema é que, grandiosas e dominantes criações
de fato, esta ruptura se torna inverídica, artísticas permanecem misteriosas para a
à luz do que ocorre em sua obra. nossa compreensão”.

Voltando nossas atenções rapidamente Mas se elas são tão enigmáticas, como
para o extenso conjunto das referências interpretá-las? Ou mesmo, para que
freudianas sobre a arte, o artista e sua analisá-las? Talvez, estivessem sujeitas
criação, ultrapassando bastante as aos mesmos processos psíquicos
citações enumeradas, percebemos que o presentes em qualquer ser humano.
analista deve incluir, com efeito, no rol Assim, apesar de não ter uma imagem
de suas preocupações o que se passa clara do que torna um quadro, uma
com a assimilação do belo, a captação pintura, um romance ou uma escultura,
das formas artísticas, ou o que se vivos para um espectador, Freud teria
conhece por estética. Percepção cuja suposto que o esclarecimento da arte só
importância chegou a impulsionar o se completa na medida em que está
surgimento de um estudo em língua sujeito às oscilações dos afetos e seus
portuguesa sobre o lugar da arte no destinos. Daí ter se debruçado em suas
pensamento freudiano e na reflexão análises tanto sobre o sentido da criação
lacaniana: o Espaço Imanente artística.
(SKLAR:1989). Em seu anexo, O avanço pela psicanálise esbarra,
encontra-se, passo a passo, o caminho assim, no acabamento de um sólido
percorrido por Freud ao delimitar em sua diálogo com a arte. Sinaliza-se uma
obra o que passou a se denominar, com cumplicidade entre áreas do
todo rigor, de “estética analítica”. Ao conhecimento que, no mínimo, nos
longo de suas páginas, uma idéia ganha intriga: para esclarecê-la, o Espaço
destaque para quem se aventura pelas Imanente nasceu. Reencontrando uma
idéias freudianas: as múltiplas formas da das vertentes do interesse científico-
arte não passam despercebidas da psicanalítico, este ensaio abriga a
psicanálise, pois por elas podemos inquietação teórica que moveu Freud a
compreender com nitidez as leis que investigar, com minúcia e rigor, o
regulam os modos de funcionamento ou universo artístico.
mecanismos das imagens psíquicas.
1. O retorno à arte em Freud:
Mesmo convidativo, o entendimento Michelangelo e Da Vinci
desta interface não deixa, no entanto, de
mesclar clareza com obscuridade. É bem De fato, o reencontro em 1989 com o
claro, de um lado, que a obra artística que Freud escrevera sobre a arte não
reapresenta a realidade por meio de suas guardava qualquer novidade. Desde Otto
formas, se lembramos, por exemplo, Rank, alguns autores, como Sarah
conforme assinalam vários experts de Kofman (1968), se posicionavam numa
arte, incluindo Freud, a existência de um franca vanguarda teórica sobre o tema.
elo que leva o sorriso da Mona Lisa a Mas a sucessão das mais variadas

115
leituras convergia para a idéia de que o extremo oposto da importância das
artista seria capaz de reler o que se passa formas ou representações, sobre as quais
na realidade, recolocando ou traduzindo a estética freudiana parecia girar,
circunstâncias reais sob a linguagem abrindo originalmente uma nova
própria das formas artísticas. Ele démarche no mundo de idéias freudiano.
reapresentaria ou re-presentaria num Nessa análise, chamando também nossa
novo invólucro formal, se podemos atenção, Freud dirige-se ao Moisés como
dizer, episódios, vivências, situações. escultura e personagem, não se
Por este olhar, a tão-esclarecedora limitando apenas a circunstâncias
profundidade que Freud com méritos pessoais de Michelangelo que
desbravou ao examinar as chamadas leis alicerçassem sua obra. A relevância ao
da representação psíquica, tornava que abriga o espaço indica, assim, que a
consistente e inovador um élan teórico criação contém “concretamente”
estético-psicanalítico. elementos que possibilitam a
Contudo, esta compreensão do
perspectiva esbarrava conjunto de sua
em um ponto bem expressão, deixando à
sutil, em torno do qual margem o caminho de
o Espaço Imanente explicação da obra
abriu o curso de sua como manifestação
leitura. subjetiva de
Michelangelo. É lícito
Para analisar o Moisés
assegurar que ali a
de Michelangelo,
manifestação
Freud supôs a
subjetiva se espelha
precedência de um
na concepção da
possível movimento
expressão artística,
velado das Tábuas da
obrigando-nos a
Lei. Moisés, como
permanecer nos
sabemos, está sentado.
limites e no tempo do
Reavendo os mais
acontecer da criação.
diversos estudos da
criação, a análise A dualidade
freudiana aventa a Moisés, de Michelangelo expressão-
hipótese de que aquele instante sucedera manifestação nos fez retroceder quatro
o momento da idolatria pagã dos anos do estudo sobre o Moisés, impondo
hebreus. O personagem bíblico, sujeito à um segundo passo freudiano central em
instabilidade de suas iras, teria permitido torno da arte: a análise sobre Da Vinci
um deslize das Tábuas logo que aparece em 1910, sob o título,
interrompido. E foi justamente a posição Leonardo da Vinci e uma lembrança de
da mão direita do herói em relação ao sua infância (FREUD: 1996). Freud não
braço direito que pressiona as Tábuas, de mais se restringia a uma simples
um lado, e a postura do indicador direito dimensão visível, conforme assinalado
sobre a barba, de outro, que induziram em Michelangelo, mas a um segundo
Freud a presumir que uma dimensão vestígio também concreto que
visível e concreta estivesse na base permanecia, no entanto, velado ou
daquela criação. Surpreendendo pela invisível, aumentando em muito a
ousadia, este dado nos remetia ao novidade de seus passos

116
A imobilidade do sorriso encontrado na verdadeira, de quem foi separado entre
Mona Lisa fixava-se como primeiro os três os cinco anos, e a madrasta,
dado concreto-visível. Ao acolher a Donna Albiera. Com a obra, o artista
interpretação de um crítico na qual teria reproduzido uma composição
predominava naquele sorriso algo desses personagens, em que o sorriso de
passível de reflexão, frio e sem alma, Sant'Ana encobriria o ciúme sentido por
Freud tornava mais sólida a suspeita de sua mãe, ao ver-se obrigada a ceder à
que o fantástico e misterioso rival o filho e o homem amado. Mas o
permaneciam na pintura, tingidos de que mais se destaca nessa pintura é o
uma sensualidade tempestuosa. Estava contorno de um abutre formado de modo
convencido de que o sorriso ocultava um estranho e não facilmente perceptível na
sentido. A possibilidade aventada pelo veste da Virgem Maria, cuja descoberta
crítico de arte Vasari de que Da Vinci se deve à Oskar Pfister, pastor e
teria se esforçado para distrair seu educador suíço, responsável pela
modelo enquanto pintava, pretendendo aproximação da psicanálise ao domínio
conservar a feição sorridente em seus da educação e com quem Freud manteve
traços, o ajudou bastante a este respeito. uma extensa correspondência entre 1909
A ela se agregava a sugestão, formulada e 1938.
por um biógrafo do artista, de que o
sorriso da Mona Lisa estaria encarnando A descoberta era arrojada e, por se
toda a experiência amorosa da entrelaçar com uma circunstância da
humanidade civilizada como ideal infância do artista, nos levou a assimilar
feminino de Da Vinci. Apoiado sobre um inesperado sentido nas ponderações
estas duas indicações, Freud reunia freudianas. Freud se deteve em
elementos suficientes para concluir que anotações feitas por Da Vinci sobre o
o sorriso teria seduzido o artista, por ser vôo dos abutres, assinalando uma
capaz de lhe evocar uma velha lembrança na qual ele rememorava o dia
lembrança adormecida e suficientemente em que um deles pousara sobre seu
significativa, para que dela não se berço, abrindo-lhe a boca com a cauda e
libertasse uma vez desperta. batendo-a muitas vezes contra seus
lábios. Hipótese freudiana: a cena, em
A composição dos três personagens do questão, decorreria de uma fantasia que
quadro da Virgem, Sant'Ana e o Menino, o artista construiu e transferiu
que, aos olhos freudianos, nada tem de posteriormente à sua infância,
natural, impunha-se como segundo dado simbolizando a amamentação pela mãe
concreto-invisível. Freud se volta ali na figura da ave. Como fontes deste elo
para o sorriso que aparece nos lábios das materno-animal, Freud encontrava a
duas senhoras; afirma que, apesar de ser crença na Antigüidade Clássica de uma
o mesmo do quadro da Mona Lisa, perde característica feminina e auto-
qualquer caráter enigmático e estranho, reprodutora do abutre e, desdobrando
chegando a expressar, segundo suas esta crença, a utilização da
palavras, “uma intimidade e uma unissexualidade pelos padres
silenciosa tranqüilidade” (FREUD: eclesiásticos para reforçar a veracidade
1996, Seite 184). Por este traço, ele do nascimento virginal. Ele ainda supôs
assimila a cena representada a algumas estar gravada nesta fantasia a
impressões infantis do artista, cuja vida aproximação sexual do artista, até cinco
fora marcada pelas presenças femininas anos de idade, com a mãe (não com o
da mãe e da madrasta. Da Vinci teve, pai). Além disso, ela se mostrava numa
assim, duas mães: Catarina, a primeira e forma passiva, homossexual e feminina:

117
a cauda da ave substituía um pênis, Jensen. Com ela, o Espaço Imanente
igualmente como a cabeça do abutre, desenhou suas próprias bases.
seguindo o que se encontrava na maioria
das figuras egípcias antigas, assumia a A análise freudiana resgata a trama do
forma fálica. romance, pautada no delírio e sonho do
No campo da mitologia, Freud ampliou personagem Norbert. Este viu num dia
esta formulação. Respaldado na idéia de uma escultura que se encaminhava
que algumas divindades egípcias artisticamente para o lado. Passou a
agregavam o falo às figuras femininas, denominá-la de “Gradiva”, que significa,
ele conclui que o artista, como “a que avança” (FREUD: 1993, Seite
homossexual, filho e fortemente ligado à 35). Dando asas à sua imaginação,
mãe, quis expressar a união do atribuiu um corte grego aos seus traços
masculino e do feminino pela figura do fisionômicos, concluindo
abutre. Suas investigações já haviam fantasiosamente que ela teria uma
comprovado que na infância (de onde origem helênica. Desde então, seu dia-a-
provém a fantasia do artista) os genitais dia se altera significativamente. Se antes
masculinos se compatibilizam com a não prestava muita atenção nas
imagem materna: a criança, atraída mulheres, sob o “reaparecimento”
eroticamente pela mãe, deseja possuir contínuo da estátua, muda sensivelmente
seu genital que ela vê como pênis. de atitude. Passa a olhar os pés
Alcançando o conhecimento posterior de femininos, infantis e adultos, mas, para
que as mulheres não possuem o membro desgosto seu, chega à conclusão de que
masculino, esse desejo pode se o andar da Gradiva não era real.
transformar no contrário, criando uma
repugnância capaz de causar na Multiplicando curiosas proximidades e
puberdade impotência psíquica, ligações, os símbolos que se acoplavam
misoginia e homossexualidade ao delírio de Norbert seguiram seu curso
duradouras. peculiar numa nova elaboração em
relação ao seu “objeto”. Ele sonha com a
Em linhas gerais, Da Vinci teria antiga Pompéia e logo se depara com a
encontrado a ocasião para manifestar no Gradiva. Vê a cidade ser destruída e a
quadro da Virgem, Sant'Ana e o Menino figura se desvanecer sob uma chuva de
conteúdos mnemônicos de sua vivência cinzas. Quando desperta, encaminha-se à
infantil materna, associados a antigas janela de sua casa e ouve os trinados de
dimensões míticas. As duas referências, um canário. Volta os olhos para a rua e
vivencial e mitológica, por precederem a se deixa arrastar pela fabulosa idéia de
criação, dão um tom mais temporal do que lá estava a sua Gradiva. Tenta sem
que espacial à pintura. sucesso persegui-la, redirecionando,
2. A Gradiva de Jensen logo após, sua atenção para o canário.
Para sua surpresa, sente-se como ele
O ápice da articulação entre imagem atado, aprisionado. Querendo libertar-se
psíquica e a referência espaço-temporal desta sensação obscura de
de um acontecer no horizonte da criação aprisionamento, resolve empreender
artística nos levou a um terceiro uma viagem à Itália cujo destino final
momento do olhar freudiano sobre a arte seria Pompéia, mesmo reconhecendo
com Delírios e Sonhos na Gradiva de que o móvel de sua decisão encerrava
Jensen, de 1907, cujo foco é o romance mistérios. Freud não deixou de notar,
Gradiva, escrito em 1903 por Wilhelm neste instante, uma significativa e

118
indissolúvel comunhão de Norbert com a Do Moisés à Gradiva, indicávamos
estátua. como Freud articulava pela arte o espaço
com o tempo. Ou, lembrando o prefácio
E é sob a pressão deste elo que sua de Estrella Bohadana ao Espaço
fantasia passa, ao longo da viagem, a se Imanente, resgatávamos, sob o olhar
realimentar com elementos da realidade, psicanalítico, a arcaica noção grega de
inflamando seu delírio. Assim, entre τόπος (topos) − lugar. Pois, no dizer da
várias circunstâncias em instantes autora, os gregos arcaicos admitiam que
diferentes, ele chega a visualizar um o estar no mundo não implicava sair da
vulto que confunde com a própria ordem dos acontecimentos para um
Gradiva do baixo-relevo e a denomina tempo puro de reflexão; o topos seria
de Zoé. As ocorrências passadas na Itália definido no momento mesmo de um
passam a se reportar a este imaginado acontecer próprio, singular, englobando
encontro de Norbert com uma Zoé- o tempo da experiência vivida em um
Gradiva, enredada nas malhas de seu lugar. E é deste acontecer que Bohadana
delírio. reencontra, no centro do Espaço
Imanente, a mesma referência que anima
Dois grandes aspectos desta “incursão a situação do herói homérico. Segundo
delirante” foram assinalados no Espaço assinala, a consumação do ato heróico
Imanente. De um lado, a transposição do para os gregos é o momento de
que é real e concreto na escultura para constituição do herói, do topos e de um
símbolos que, ao multiplicarem sinuosas tempo circunscrito ao próprio acontecer.
e imaginadas ligações, formavam uma Na esteira desta verificação, ela
linguagem própria e extraordinária. De relembra de que modo Homero trata um
outro, a implantação das percepções simples raiar da manhã como o instante
delirantes de Norbert nesta linguagem, privilegiado do irromper da “Aurora de
sob heranças psíquicas de fantasias e róseos dedos” (BOHADANA apud
suas diversas formas ou representações, SKLAR: 1989, p.11) − o acontecer de
abrangentes a episódios corriqueiros um novo dia.
como a visão da escultura, a observação
Seguindo a autora, chegávamos, assim, a
dos pés femininos, os trinados de um
uma espécie de odisséia da imagem,
canário e o encontro com Zoé em
caminhando da valorização do mundo
Pompéia. Recolocava-se, assim, o que
concreto à percepção que o espectador
fora descoberto com o Moisés − um
tem da obra. E foi justamente desta
suposto movimento regressivo da mão
última dimensão que repensamos sob
direita no continente ou espaço próprio
que base se constitui o direcionamento
da estátua − e Da Vinci − a apresentação
das idéias lacanianas para a arte.
velada do abutre no espaço da pintura
como mola de incursão pelo passado do 3. Lacan e a arte
artista. Na Gradiva, de modo mais
elaborado, o convívio com Dois momentos indicados por Lacan no
circunstâncias reais enredava o delírio de quadro Os Embaixadores, pintado por
Norbert com profusas referências que Hans Holbein em 1533, tocando
flutuavam pela conjunção de um espaço diretamente a relação que se estabelece
vivido com um tempo percebido e entre a pintura e a percepção do
fantasiado. espectador, abriram aqui nosso caminho.
O primeiro momento refere-se à
O que isto significava?
percepção em conjunto dos personagens

119
em pé ao lado dos personagem da
objetos. Parecem esquerda e dele à
formar uma unidade, extremidade do
cujo sentido nos leva velado pergaminho. O
a reconhecer a época resultado nos
de criação da pintura surpreendia. Sob o
− a renascença, sem esboço desta nova
dúvida. O segundo articulação,
momento diz respeito descortinávamos a
à presença do objeto. presença de um
Enigmático, sem se triângulo retângulo na
mostrar com nitidez, base do quadro, em
permanece velado, que as retas traçadas
desconhecido, ou, Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) aderiam por analogia
mesmo, indiferente. à composição de dois
Lacan esquece a concisão, ao indicar de catetos e o pergaminho à extensão de
que modo este objeto impõe inúmeros uma hipotenusa. Afastando-nos um
obstáculos ao espectador para ser pouco da valorização à alternância
decifrado. Por sua indeterminação, ele simbólica na situação, equacionávamos a
permanece perceptivamente inacabado distância do objeto aos personagens sob
para o espectador, que se rende ao a prevalência de uma figura que se
mistério daquela presença, sem dúvida, abrigava na própria montagem dos
imprecisa. Em torno da insistência desta componentes da pintura. Deslocávamos,
obscuridade, Lacan sublinha que a em síntese, a indeterminação do olhar
percepção do quadro toca justamente no tão enfatizada por Lacan, à insistência de
que não é claro, não evidente na uma configuração geométrica que se a-
situação. Daí ter percorrido o presentava nos limites da criação.
acabamento de uma perspectiva que
realça como o olhar não consegue de Descobríamos uma artimanha do mestre
fato “visualizar precisamente” o objeto: francês ou nos precipitávamos numa
trabalha por ensaios e erros na sua interpretação ousada?
identificação. Simboliza o objeto.
Numa releitura mais atenta de alguns
O trabalho de tradução na circunstância, pontos básicos da obra lacaniana,
alternando presenças e ausências entre verificamos que, de fato, o realce ao
símbolos, é bem nítido. Mas Lacan concreto se ampliava e recolocava ali o
parecia querer dizer mais com seu papel dos símbolos. Pelo esquema
comentário. óptico, inicialmente, quando Lacan
pontua as etapas que convergem para a
O objeto saliente tinha algo a nos produção de uma imagem real e
revelar. Ele é um pergaminho, de fato. invertida de um objeto no psiquismo,
Está colocado um pouco à direita de constatamos que a inversão da imagem
quem está em pé no canto esquerdo e se estruturava realmente pela situação
tangencia a vestimenta do outro dos objetos “reais e concretos” ali
personagem. Avançando um pouco por presentes, o vaso e as flores. Desta
este indício perceptivo, imaginamos o condição de realidade, chegamos à
traçado de uma reta que terminasse o decodificação das diversas articulações
encontro do objeto com personagem da entre os símbolos através da “rede 1-3”,
direita, se estendesse em seguida ao como foi chamada por Lacan,

120
assinalando que ele aliava à ao artista e ao espectador captarem
correspondência entre o físico e o “mentalmente” o que é real e concreto −
concreto uma autonomia dos símbolos, sob a referência psíquica de percepções
marcada por uma auto-anulação dos ou representações. Insólito na posição
mesmos num certo momento de suas que defende, sem ferir o rigor que
combinações. Finalmente, ao sustenta, este ensaio leva às últimas
repassarmos as ponderações lacanianas conseqüências a demonstração de que,
sobre o conto de Edgard Allan Poe, A sob o olhar freudo-lacaniano, as imagens
Carta Roubada, concluíamos que a artísticas tomem um sentido próprio na
tensão causada pelo desaparecimento do mente (do artista e do espectador) que
bilhete ali mencionado − em torno do acolhe, paradoxalmente, um vínculo
qual os personagens tramam relações − com a situação física dos objetos na
tornava-se central para que os símbolos realidade. Cada imagem transforma-se
se combinassem. assim no pólo de convergência do que é
interno − representado no tempo de uma
Breve, o direcionamento assumido por
percepção − e externo − apresentado
Lacan para a arte manifestava a
numa circunstância, estado ou espaço
proximidade não diretamente expressa
físico; de modo conciso, as imagens
em seu sistema entre o que a criação
assumem a identidade de um sinal que
artística a-presenta concretamente e as
“passa por” representações e impressões,
combinações psíquicas do que
fundando na inerência ou imanência de
representam os símbolos. Sob esta
sua “viagem” uma odisséia própria.
perspectiva, a análise da arte repensava
os inter-relacionamentos artista
(sujeito)−obra (objeto) e espectador Referências
(sujeito)−obra (objeto), indicando que o
artista, a obra e o espectador 1. BOHADANA, Estrella. A Imagem: uma
Odisséia. In: SKLAR, Sergio. O Espaço
demarcavam fronteiras em torno da
imanente: um estudo psicanalítico sobre a arte
premência de um espaço que resultava em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Imago, 1989.
da imanência de um encontro entre os 157 p.
três, dimensionando o tempo pela
2. FREUD, Sigmund. Die Traumdeutung. In: ---.
duração da experiência ali vivida. Gesammelte Werke. Frankfurt am Main: S.
Fischer Verlag, 1987. Band II/III. 724 Seiten.
Considerações finais
3. _______________. Der Wahn und die Träume
Caso seja viável resumir um livro em in W.Jensens “Gradiva”. In: ---. Gesammelte
algumas linhas que indiquem o volume Werke. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag,
de questões, sugestões e divagações que 1993. Band VII. 496 Seiten.
contém, diríamos que o Espaço 4. _______________. Eine Kindheitserinnerung
Imanente concentra uma linha de des Leonardo da Vinci. In: ---. Gesammelte
reflexão sobre a psicanálise que Werke. Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag,
confronta a cisão entre o psiquismo e a 1996. Band VIII. 502 Seiten.
realidade extrapsíquica, na interface que 5. _______________. Das Motiv der
aproxima a psicanálise da arte em Freud Kätschenwahl. In: ---. Gesammelte Werke.
e Lacan. De suas demarcações teóricas, Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1991.
a arte, significativamente explorada nos Band X. 481 Seiten.
dois sistemas, torna-se um domínio para 6. _______________. Der Moses des
o qual confluem indícios físicos que Michelangelo. In: ---. Gesammelte Werke.
provêm dos objetos − sob a forma de Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1991.
Band X. 481 Seiten.
impressões − e imagens que permitem

121
7. _______________. Der Moses des 9. _______________. Das Unheimliche. In: ---.
Michelangelo. In: ---. Gesammelte Werke. Gesammelte Werke. Frankfurt am Main: S.
Frankfurt am Main: S. Fischer Verlag, 1991. Fischer Verlag, 1986. Band XII. 354 Seiten.
Band X. 481 Seiten.
10. KOFMAN, Sara. L'enfance de l'art. Paris:
8. _______________. Eine Kindheitserinnerung Payot, 1968.
aus “Dichtung und Wahrheit”. In: ---.
11. SKLAR, Sergio. O Espaço imanente: um
Gesammelte Werke. Frankfurt am Main: S.
estudo psicanalítico sobre a arte em Freud e
Fischer Verlag, 1986. Band XII. 354 Seiten.
Lacan. Rio de Janeiro: Imago, 1989. 157 p.

122

Você também pode gostar