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FUNDAMENTOS DA

CIÊNCIA POLÍTICA

Autor

Nelson Rosário de Souza

2007
© 2007 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor
dos direitos autorais.

S729 Souza, Nelson Rosário de.


Fundamentos da Ciência Política./Nelson Rosário de Souza. —
Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2007.

124 p.

ISBN: 978-85-7638-753-4

1. Ciência política. 2. Poder e política. 3. Estado. I. Título.

CDD 320

Todos os direitos reservados


IESDE Brasil S.A.
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80730-200 • Curitiba • PR
www.iesde.com.br
Sumário
A formação do pensamento político: dimensão histórica | 7
O que é a política? | 7
A política na Antiguidade Clássica | 9
A política como instância autônoma | 11

A formação do pensamento político: dimensão lógica I | 19


Aristóteles e as formas de governo | 19
A representação da política na modernidade | 22

A formação do pensamento político: dimensão lógica II | 27


O poder soberano | 27
A teoria da soberania | 29

A construção da Ciência Política Moderna | 37


A paternidade da Ciência Política | 37
O príncipe moderno | 39

O liberalismo | 47
O liberalismo como reação ao absoluto | 47
Locke: um pensador liberal | 48
O liberalismo e a defesa do indivíduo | 49
Ambiguidades do liberalismo | 51

A democracia liberal | 57
A difícil definição de democracia | 57
Significado formal de democracia | 58
O povo como fonte do poder | 60
A democracia liberal | 61
A democracia direta | 67
A crítica à “civilização” moderna | 67
A propriedade como fonte do mal | 68
O pacto da igualdade | 70
Um projeto utópico e perigoso ou uma perspectiva necessária? | 71

O conceito de poder | 77
Uma definição inicial | 77
O exercício do poder | 79
O poder legítimo | 81

O Estado | 85
Estado e sociedade | 85
O Estado contemporâneo | 87
A concepção marxista de Estado | 89

Partidos políticos | 93
O surgimento dos partidos | 93
A tipologia dos partidos | 95
Os partidos na atualidade | 97

A cultura e a política | 101


Os estudos de cultura política | 101
A cultura política tradicional | 102
A cultura política da modernidade | 104
A construção da cultura política moderna | 105

Participação política | 109


O que significa participar | 109
A participação em sociedades democráticas | 110
As lições da história | 111
Novas formas de participação política | 113

Referências | 119

Anotações | 123
Apresentação

Escrever uma obra com o objetivo de introduzir o aluno de Graduação em Ciências


Sociais às principais temáticas e conceitos da Ciência Política é um grande desafio.
A diversidade costuma marcar o universo de alunos que iniciam um curso de
graduação. Os interesses são múltiplos e o nível de formação do corpo discente
não é necessariamente homogêneo. Quanto às decisões sobre o conteúdo da
disciplina, a tarefa não é menos difícil. A Ciência Política, como outras matérias das
Ciências Humanas, está marcada pela multiplicidade de perspectivas. O debate é
uma característica central da nossa área e não a construção de verdades absolutas.
Para completar a complexidade do empreendimento proposto é necessário
lembrar o dilema entre valorizar a apresentação de temas e autores filosóficos que
formam a base da Ciência Política moderna, ou priorizar a discussão dos conceitos
propriamente políticos.

O quadro de dificuldades acima descrito impôs a necessidade de escolhas


no momento de confecção desta obra. Procurou-se, por exemplo, equilibrar
a abordagem de temas e autores filosóficos com a definição de conceitos
fundamentais da Ciência Política. Cada capítulo procura contemplar a diversidade
de perspectivas, sem, no entanto, abrir mão de tomar posição. Espera-se que essa
postura contribua com a formação de um aluno crítico, capaz de decidir se está de
acordo, ou não, com os posicionamentos do autor a cada momento da leitura.

Enfim, o livro procurou apresentar os conteúdos de forma didática, mas sem


abrir mão de contemplar a complexidade dos temas e conceitos. Desse modo, a
expectativa é de que os alunos tenham neste livro uma fonte acessível de informação
e também se sintam desafiados a investir em novas leituras e pesquisas. Uma boa
forma de apreender esta obra é tomá-la como ponto de partida para a caminhada
formativa e não como ponto de chegada.

Convido o aluno leitor a enfrentar seu próprio desafio de formação, usando


o presente trabalho como uma das ferramentas úteis à sua empreitada. Bons
estudos a todos.

Nelson Rosário de Souza


A formação do pensamento
político: dimensão histórica
Nelson Rosário de Souza*

O que é a política?
Em Guerra do Fogo, filme dirigido por Jean-Jacques Annaud (1981), é possível observar, entre
outras coisas, a precocidade na disputa por bens materiais e simbólicos na história da humanidade.
O filme reconstrói o embate entre tribos de hominídeos que caminhavam no seu processo evolutivo,
na justa medida em que a disputa em torno do fogo apresentava novos problemas e solicitava novas
soluções. Nesse caso, o conflito estava associado à sobrevivência, à espiritualidade, à linguagem, enfim,
à construção do ser humano.
Outra situação de conflito bastante conhecida era quando um novo líder espiritual emergia em
meio ao povo sofrido e arregimentava um grande número de seguidores. Os altos escalões da religião
vigente enxergam nesse fato uma ameaça aos valores tradicionais, à sua instituição e hegemonia;
o conflito era iminente. A reação era conclamar a autoridade do Estado a tomar uma atitude que
restabelecesse a ordem. O governante decidia não intervir, lavava as mãos. Abria-se, então, o caminho
para que os religiosos condenassem à morte, pela crucificação, aquele que era visto como desafiador
dos poderes estabelecidos. Religião e poder se confundiam.
Um terceiro episódio histórico: na Paris de 1968, estudantes descontentes com a ordem vigente
na dimensão política, econômica, social e cultural encabeçaram uma greve geral e ocuparam as ruas
durante vários dias. O poder exercido por instituições e autoridades tidas como democráticas avançava
sobre os jovens. A coerção foi perceptível e disseminou-se em nome da ordem. De modo surpreendente,
o movimento acabou como começou, de repente.

* Doutor e Mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal
do Paraná (UFPR).
8 Fundamentos da Ciência Política

Greve geral na França.

Os três episódios acima descritos têm um ingrediente em comum: o embate que perpassa mais
de uma dimensão da realidade. No primeiro caso, o conflito confunde-se com o próprio processo de
constituição da humanidade. Se o conflito está disseminado na realidade desde o passado mais distante
até os nossos dias e se a política é a gestão do conflito, significa que a política sempre existiu e está em
todas as relações? Como precisar o campo da política e, mais propriamente, o objeto da Ciência Política?
Tais perguntas trazem consigo a resposta: a condição para que a política se constitua na sua dimensão
própria é de que a dispersão do conflito, o seu caráter ilógico e sem rosto definido sejam transformados,
concretamente, em concentração do jogo de poder, com uma face detectável e relativamente estável.
A idéia de que a política é tudo, ou que tudo é político, inviabiliza o pensamento sobre a política. Esta
pode estar em tudo: na arte, nos jogos amorosos, nas relações de trabalho, nas religiões etc., mas ela
não é tudo. A política que interessa à ciência é justamente a atividade que busca, pela concentração
institucional do poder, sanar os conflitos e estabilizar a sociedade pela ação da autoridade; é o processo
de construção de uma ordem. Ao longo da história, a política se separou paulatinamente de outras
dimensões, ganhando autonomia, ainda que relativa, diante da Economia, do Direito, da religião,
da moral, enfim, da sociedade. O olhar do cientista político recai sobre os processos que objetivam
gerenciar institucionalmente os conflitos sociais. As análises científicas sobre o significado desses
processos variam numa escala que vai do otimismo ao realismo. Para alguns, a gestão dos conflitos
tende para a construção de sociedades democráticas, ou seja, pretensiosamente de não-dominação.
Para outros, as formas de dominação cada vez mais sofisticadas sucedem-se ao longo da história, o que
explicaria as disputas entre os grupos sociais pela conquista da hegemonia no campo político.
O terceiro episódio revela, por um lado, a crise que acomete a dimensão política quando o conflito
social se generaliza e se sobrepõe às instituições e às autoridades. A disputa não é localizável e passível
de gerenciamento institucional. É como se a sociedade, formada por instituições como a família, a
igreja, associações, empresas, sindicatos etc., não aceitasse mais a fronteira que demarca o político e
marchasse sobre ela. Por outro lado, o restabelecimento da ordem pelas vias institucionais, no mesmo
evento, indica a restauração da autonomia da esfera política, em que os atores sociais voltam a ocupar
suas posições na sociedade, deixando a política para os especialistas.
Quais condições precisaram ser preenchidas para o aparecimento da Ciência Política? É possível
afirmar que dois caminhos se combinaram para o surgimento dessa ciência. De um lado, ocorreu o
desenvolvimento lógico. Questões filosóficas que, no seu amadurecimento, se desdobraram em
problemas científicos sobre aspectos específicos da realidade possibilitaram a configuração desse
A formação do pensamento político: dimensão histórica 9

novo campo de saber. Paralelamente a esse desdobramento reflexivo, aconteceram as transformações


na própria realidade histórica. Sobre elas, novos olhares foram lançados e delineamentos teóricos
singulares emergiram. Com o desenrolar da história, práticas, processos e relações concretas que, num
primeiro momento, formavam um todo ao mesmo tempo social, político e jurídico, ganharam espessura
própria, agregando atores específicos e demarcando fronteiras, se não rígidas e palpáveis, com certeza,
nítidas e decifráveis pela perspectiva científica. Não há sentido em perguntar o que aconteceu primeiro:
novas reflexões transformaram a realidade ou novos acontecimentos transformaram a forma de pensar
o mundo? As mudanças resultam do revezamento entre inovações representativas e transformações
concretas, uma agindo sobre a outra. Uma dinâmica difícil de congelar numa relação causal unívoca.
Aliás, a questão da causalidade, aqui, não faz sentido e também pouco colabora para o entendimento
da história.
A ciência tem o hábito de separar para analisar, dividir para compreender. A análise do surgimento
da Ciência Política inicia-se pela dimensão dos processos concretos, ou seja, pelas condições históricas
que favoreceram a autonomia da política em relação às outras dimensões da realidade. Não que a
pretensão seja de conferir maior importância, ou força causal à realidade histórica em relação às suas
formas de representação.

A política na Antiguidade Clássica


Não é exagero recuar até a Antiguidade Clássica

Wikipedia
grega. Muito do ordenamento político moderno tem
como fonte de inspiração a organização grega. Esse fato,
entretanto, pode gerar alguma confusão. Existiria na
Grécia uma dimensão da realidade propriamente política?
A polis grega apresentava uma distinção entre Estado e
sociedade? Aristóteles quando proclamou que o “homem
é um animal político” (zoon politikón) estava precocemente
recortando uma dimensão da realidade, a dimensão
política e reconhecendo sua autonomia? A resposta a essas
questões é uma só: não. Como bem lembra Giovanni Sartori
(1981) a afirmação de Aristóteles aparece num contexto de
definição da vida como um todo e não de um aspecto dela.
O “homem” na Grécia Antiga só realizaria plenamente sua
essência se estivesse inserido na polis e esta, por sua vez,
compreendia mais do que uma suposta dimensão política,
dizia respeito à cidade. Polis significava a comunidade
de homens adultos participando de forma isonômica no
exercício do poder. Esse verbo, participar, tem aqui um
Aristóteles.
sentido profundo. Na polis, as dimensões social e política
não se distinguiam, elas formavam um todo; tal separação
só vai se cristalizar na Modernidade. Nem mesmo a palavra
social existia no vocabulário grego, ela é uma elaboração
latina posterior.
10 Fundamentos da Ciência Política

Isso significa que a polis grega era horizontal. No que dizia respeito à vida pública, os cidadãos
gregos estavam em igualdade e juntos decidiam, pela via dos debates, os caminhos da comunidade.
Não existia uma hierarquia rígida entre os homens, a verticalidade das relações estava limitada à esfera
privada. No mundo do lar, o homem se sobrepunha às mulheres e aos servos. Na cidade, os cargos
de magistratura, distribuídos entre os cidadãos, eram ocupados segundo o princípio do revezamento.
Até mesmo o espaço urbano estava configurado segundo a lógica da horizontalidade, da participação
igualitária e da totalidade sociopolítica. A ágora era uma praça que abrigava o mercado onde se
realizavam os debates e ao mesmo tempo sucediam-se as tomadas de decisão e a vida política acontecia.
Era o que hoje chamamos de vida social. Esfera pública por excelência, a ágora era o espaço de exercício
da democracia direta e da convivência dos cidadãos, era o lugar onde a vida ateniense acontecia. A
atividade política harmonizava a experiência individual com os interesses da comunidade, a vida na polis
iluminava o caminho de cada cidadão constituindo uma ética (MAAR, 1982). O homem adulto ateniense
que não vivia a “cidade” não participava e era considerado pelos demais como anormal. Participar da
construção da polis confunde-se com desenhar o caminho da própria vida. Sartori (1981, p. 158-159)
explica esse caráter unitário da polis e a identidade que dela emerge:
A polis era a unidade constitutiva indecomponível e a dimensão suprema da existência. No viver “político”
e na “politicidade” os gregos viam não uma parte, ou aspecto, da vida, mas seu todo, sua essência. Inver-
samente, o homem “não-político” era um ser deficiente, um ídion1, um ser carente (significado original do
nosso termo “idiota”, cuja insuficiência consistia justamente em ter perdido (ou não haver adquirido) a di-
mensão e a plenitude da simbiose com sua polis. Em breve, um homem “não-político” não era apenas um
ser inferior, era menos-que-homem.

O significado da polis enquanto dimensão indistintamente sociopolítica, configurada e reproduzida


espacialmente, foi bem apreendida por Richard Sennett (1997). Ele nos mostra, numa bela narrativa,
como a horizontalidade e a integralidade da cidade grega começou a ruir, quando importantes debates e
decisões foram transferidos da ágora para o teatro grego. No novo espaço, o discurso entre interlocutores
em condições de igualdade foi substituído pela distinção entre cidadãos que tomavam a palavra no
espaço por excelência da fala, o palco, e aqueles que passivamente assistiam a tudo da platéia. Aqueles
cidadãos gregos que demonstraram ou desenvolveram uma técnica de dramatização do discurso foram
mais eficientes no convencimento em relação aos outros. Vê-se aí o início de uma especialização e,
associado a ela, o nascimento de uma hierarquia entre os cidadãos. O resultado foi trágico: passado um
tempo das decisões, os cidadãos não se reconheciam mais nelas. A horizontalidade da polis com a sua
unidade sociopolítica e espacial desmoronou e junto se desmanchou a identidade dos cidadãos. O efeito
disso foi a fragilidade dos gregos diante da invasão estrangeira. Aí talvez identifique-se um primeiro e
pequeno passo rumo à autonomia da esfera política em relação à dimensão social. Passo tímido, mas de
efeitos históricos monumentais.
A realidade do mundo romano antigo mostrou-se mais propícia à separação entre as dimensões
do social e do político, ou melhor, à substituição do homem político pelo homem social. Os romanos
herdaram os princípios da vida na polis da tradição ateniense, mas, já num contexto em que as cidades
atingiam uma dimensão que inviabilizava a participação direta dos cidadãos na ágora. Diante da
nova realidade, os romanos traduziram polis por civitas, cujo significado remete a relações de outra
ordem. Civitas traz consigo a conotação de associação sob um conjunto de leis, ou seja, uma civilis

1 Irresistível a comparação. Para os gregos da Antiguidade Clássica era “idiota” o sujeito que preenchendo as prerrogativas para participar da
vida pública na polis, abdicava de fazê-lo. Hoje, muitas vezes, são rotulados de idiotas aqueles que, nas rodas de conversa, não se empolgam
com assuntos sobre a vida privada das celebridades e insistem em colocar em pauta temas públicos, ou seja, assuntos políticos. Interessar-se
por política, para muitos, não é normal.
A formação do pensamento político: dimensão histórica 11

societas e, finalmente, uma iuris societas (sociedade jurídica). A idéia de sociedade vai se configurando
dissociada da política. O homem político de Aristóteles vira homem social na formulação de Sêneca
(4a.C.-65d.C.). A vida social remete, progressivamente, à convivência pacífica entre os homens a partir
da adesão a um conjunto de leis. A gestão das leis era feita pelo imperador, visto como um tutor a cuidar
dos seus pupilos e impor os interesses dos mesmos ao restante da população. O caráter positivo que
acompanhava a idéia ateniense de participar da construção da polis, paralelamente à elaboração da
própria trajetória de vida, vai sendo substituído pela condição negativa de fazer parte da sociedade,
agora uma “cosmópolis” (SARTORI, 1981). Não se trata, ainda, de uma relação hierárquica entre política e
sociedade e sim da substituição da fórmula ateniense caracterizada pela polis – “o homem é um animal
político”, pelo modelo romano centrado no social e que vai resultar na concepção de que o “homem é
um animal social”.

A política como instância autônoma


Se a história vivida na Grécia e na Roma antigas não favoreceram a autonomia da esfera política,
tampouco, ao longo da Idade Média a política apresentou-se com densidade própria. Durante o
período feudal, a dimensão política esteve associada à esfera religiosa. Um dos efeitos desse vínculo era
a subordinação da política à moral religiosa. O exercício da autoridade pelo Estado tinha como base de
legitimidade a tradição fundada em concepções teológicas a respeito do ordenamento do mundo. A
força do Estado combinada com a persuasão religiosa formavam o cimento que estabilizava as relações
no feudalismo (MAAR, 1982). Os conflitos eventuais entre a monarquia e a igreja apenas evidenciavam
a força da segunda diante da primeira. Não havia, ao longo deste período, uma clara separação entre a
esfera pública e a privada. O critério de sucessão no poder, por exemplo, se dava pela herança familiar.
Os códigos do espaço familiar informavam o funcionamento do campo político.
A relativa estabilidade do mundo feudal também estava assentada sobre uma rede de relações
que tinham como base a posse da terra pela nobreza e pelo clero. A concessão para o uso da terra
partia dos estratos mais elevados da sociedade e chegava até os camponeses, gerando uma aliança de
compromissos. De um lado, a concessão descia a estratificação social e tomava a forma de favor associada
à segurança, às vezes ilusória, de pertencer a um reino. Por outro lado, a contrapartida ascendente
dos estratos mais baixos assumia o caráter de lealdade e fidelidade em relação aos que governavam.
É importante sublinhar o caráter, ao mesmo tempo, social, econômico, religioso, moral e político
dessa engrenagem. Paralelamente ao arranjo econômico e político feudal, operava a representação
teocêntrica do mundo, cujo principal ingrediente era a idéia de destino. Uma configuração que, por
certo, não desenhava um ambiente propício ao desenvolvimento de relações políticas autônomas.
O declínio da sociedade feudal apresentou um duplo movimento, com forças aparentemente
contraditórias, mas que se mostraram complementares e úteis ao surgimento da sociedade
contemporânea. Não convém conferir à dimensão econômica a condição de única fonte causadora das
transformações em foco. Muito já se escreveu com o objetivo de criticar as perspectivas que adotam
o determinismo econômico para explicar a derrocada do feudalismo. Mas as mudanças econômicas
tiveram um papel relevante na transição do mundo feudal para a sociedade moderna, não por
acaso, fortemente associada ao mercado. O primeiro movimento a impulsionar esse processo foi a
descentralização do poder jurídico-político. Dependendo do momento ou do lugar, as cidades-Estado,
12 Fundamentos da Ciência Política

os principados ou os burgos ganhavam autonomia, constituíam-se em espaços com legislação própria.


Esse movimento foi importante para viabilizar a livre circulação dos mercadores, suas mercadorias e seus
novos comportamentos num mundo em transformação. Novas relações de trabalho se estabeleciam,
enfim, novos costumes e atores sociais apareciam e, com o aspecto de resistência ao antigo, entravam
em concorrência com a tradição a partir de espaços alternativos, relativamente independentes. É
difícil dimensionar o impacto cultural dessas novas práticas. Após a descentralização ter propiciado a
liberação de novas energias, processos e sujeitos, num jogo de desmonte das amarras jurídicas e morais
próprias da Idade Média. O desdobramento seguinte foi justamente no sentido contrário, mas de efeito
complementar.
O declínio da sociedade feudal, ao mesmo tempo, oferecia a oportunidade do surgimento de
novos valores e comportamentos e desenhava um cenário de instabilidade, conflitos generalizados,
enfim, desequilíbrios sociais. O desafio que se apresentou, principalmente à classe ascendente, a
burguesia e seus representantes, foi de harmonizar as relações no novo contexto. É ilusório imaginar
que os caminhos percorridos pela história apenas concretizam os planos bem elaborados pelos
poderosos de cada momento. É mais prudente pensar que o jogo complexo de ação e resistência abre
virtualidades, nem sempre previstas pelos sujeitos históricos, e que são preenchidas por atores os
quais, muitas vezes, ao buscarem objetivos mais imediatos, acabam calçando o caminho do grupo que,
mais tarde, será reconhecido como vencedor. A ação que começa individual pode ganhar um sentido
social que ultrapassa o horizonte do ator que a protagonizou. Nesse sentido, é surpreendente, mas
não ilógico, que o último estágio do feudalismo tenha sido marcado pelos Estados de poder absoluto,
centralizadores, organizados pela monarquia, mas adequados às necessidades do mercado naquele
instante. Não há dúvida de que a nova configuração foi uma resposta à autonomia das cidades, embora
houvesse tido um alcance muito maior. Sob o absolutismo começou o ordenamento das novas relações
e, principalmente, a formação dos Estados nacionais. Não por acaso, o novo modelo de poder emergiu
da aliança entre burguesia ascendente e monarquia decadente. Seu efeito foi propiciar maior autonomia
do poder temporal em relação ao poder espiritual. Idéias como livre arbítrio, direito divino dos reis e
vontade do povo indicavam resistência aos limites religiosos impostos ao exercício do poder profano
(ARANHA; MARTINS, 1986).
Depois de um longo percurso histórico, finalmente as condições concretas para uma autonomia
do poder político frente aos poderes paralelos estão dadas. A centralização do poder no monarca, a sua
colocação acima das autoridades religiosas, a aquisição de prerrogativas ilimitadas, o seu apartamento
da moral cotidiana, enfim, a criação da estabilidade como seu objetivo são características que distinguem
o exercício do poder na modernidade em relação às suas formas anteriores. A política passa a ter um
fim específico a ser buscado por uma lógica do próprio jogo político. Paradoxalmente a nobreza na sua
despedida preparou o cenário para a encenação da política com roupagem singular e pelas mãos de
novos atores sociais.
Sob o Estado centralizado começa o processo de racionalização burocrática. O poder, aos poucos,
vai adquirindo um caráter impessoal, isso significa que o mundo público ganhou dimensão própria
e estabeleceu as fronteiras que o separam, desde então, da vida privada. O Estado, como potência
acima da religião, desce verticalmente sobre a sociedade, concentrando a força em nome da solução
dos conflitos dispersos e da construção da estabilidade capaz de gerar a harmonia. Ao menos é este o
efeito real que o poder gera na modernidade (LEBRUN, 1984). O poder político passa a ser visto como
instância, relativamente autônoma, capaz de ordenar a vida social. Ainda que a fórmula seja contestada
em certos momentos por determinados grupos, do Estado se espera a demonstração de capacidade
A formação do pensamento político: dimensão histórica 13

para gerenciar o mundo do contrato garantindo o bom andamento das instâncias econômica e social.
Não se trata mais de reivindicar a participação horizontal na polis como condição para construção da
própria vida, ao cidadão moderno restou fazer parte do social: trabalhar, cuidar da família e conviver
com os amigos, desde que o Estado garanta a estabilidade.
É correto pensar que o fracasso do Estado em harmonizar a sociedade e a economia faz emergir
demandas por participação, transparência, enfim, controle da política pelos cidadãos. Nesses momentos
ao que se assiste é o social tentando envolver o político. Crise da política? Sim, pois a sua autonomia
não é absoluta. Dizer que a política ganha densidade própria não é afirmar que o sistema de poder
institucional apresenta-se totalmente separado das outras esferas da vida, ou mesmo acreditar que o
mundo político impõe o tempo todo os limites às outras dimensões da vida. Trata-se, antes, de perceber
que o mundo político adquire uma lógica própria, na qual, na maior parte do tempo, as causas do seu
funcionamento são encontradas dentro das suas próprias fronteiras e, muitas vezes, fatores políticos se
apresentam como causas até mesmo de fenômenos no campo social, econômico, cultural etc.
Em resumo, este capítulo demonstrou que o conflito pode estar em muitas relações, mas nem
toda relação é política e, principalmente, a Ciência Política tem um objeto específico: as relações de
poder institucionalmente constituídas. A construção desse objeto solicitou que, ao longo da história, a
política fosse se separando das demais dimensões: sociedade, religião, moralidade etc. Na Antiguidade
grega, uma totalidade, ao mesmo tempo social e política, formava a polis, cuja principal característica
era a horizontalidade. O Império Romano deu um primeiro passo no sentido de verticalizar as relações
entre o Estado e a sociedade, mas enfatizou o social como comunidade jurídica. Na Idade Média, a
política e a religião aparecem mescladas e só com o declínio do mundo feudal é que a política ganha
autonomia em relação à moralidade cristã e passa a formar uma dimensão específica da realidade. O
próximo desafio é analisar as condições lógicas de construção da Ciência Política.

Texto complementar
Política
Capítulo II
Aristóteles
[...] A primeira associação formada por diversas famílias para suprir necessidades que não se
limitam à vida cotidiana é a aldeia (kóme), cuja forma mais natural parece ser a de uma colônia da
família, e seus membros são chamados, por alguns, de homogálactas (que sugaram o mesmo leite),
e compreendem os filhos e os filhos desses filhos; é justamente por isso que as cidades (póleis) foram
originalmente governadas por reis, como ainda o são em nossos dias as nações (éthne), pois elas se
formaram pela reunião de pessoas submetidas aos reis. Toda família, de fato, submete-se ao reinado
do patriarca, o mesmo ocorre com as extensões da família, em razão do parentesco de seus mem-
bros. É o que diz Homero:
14 Fundamentos da Ciência Política

“Cada qual prescreve leis a suas mulheres e filhos”2


pois as famílias andavam dispersas, e era assim que se vivia antigamente. Quanto aos deuses, a
razão pela qual se admite unanimemente que eles são governados por um rei é que os próprios ho-
mens são, ainda hoje, ou foram, no passado, governados dessa maneira; os homens não apenas repre-
sentam os deuses à sua imagem, mas também atribuem-lhes um modo de vida semelhante ao seu.
Por fim, a comunidade formada por muitas aldeias é a cidade (pólis) no pleno sentido da palavra;
da qual se pode dizer que atinge desde então a completa auto-suficiência (autarkéias). Surgindo para
permitir viver (tôu zên), ela existe para permitir viver bem (tôu êu zên). Portanto, se as primeiras comu-
nidades são um fato da natureza, também o é a cidade, porque ela é o fim daquelas comunidades, e
a natureza de uma coisa é o seu fim: aquilo que cada coisa se torna quanto atinge seu completo de-
senvolvimento, nós chamamos de natureza daquela coisa, quer se trate de um homem, de um cavalo
ou de uma família. [p. 1253a] Além disso, a causa final e o fim (télos) de uma coisa é o que é o melhor
para ela; ora, bastar-se a si mesma é, ao mesmo tempo, um fim e um bem por excelência.
Essas considerações tornam evidente que a cidade é uma realidade natural e que o homem é,
por natureza, um animal político (politikón zôon). E aquele que, por natureza e não por mero aciden-
te, não faz parte de uma cidade é ou um ser degradado ou um ser superior ao homem; ele é como
aquele a quem Homero censura por ser
“sem clã, sem lei e sem lar”3;
um tal homem é, por natureza, ávido de combates, e é como uma peça isolada no jogo de
damas. É evidente, assim, a razão pela qual o homem é um animal político em grau maior que as
abelhas ou todos os outros animais que vivem reunidos. Dizemos, de fato, que a natureza nada faz
em vão, e o homem é o único entre todos os animais a possuir o dom da fala. Sem dúvida os sons da
voz (phoné) exprimem a dor e o prazer e são encontrados nos animais em geral, pois sua natureza
lhes permite experimentar esses sentimentos e comunicá-los uns aos outros. Mas quanto ao discurso
(lógos), ele serve para exprimir o útil e o nocivo e, em consequência, o justo e o injusto. De fato, essa
é a característica que distingue o homem de todos os outros animais: só ele sabe discernir o bem e
o mal, o justo e o injusto, e os outros sentimentos da mesma ordem; ora, é precisamente a posse co-
mum desses sentimentos que engendra a família e a cidade.
A cidade, portanto, é por natureza anterior à família e a cada homem tomado individualmente,
pois o todo é necessariamente anterior à parte; assim, se o corpo é destruído, não haverá mais nem
pé nem mão, a não ser por simples analogia, como quando se fala de uma mão de pedra, pois uma
mão separada do corpo não será melhor que esta. Todas as coisas se definem sempre pelas suas
funções e potencialidades; por conseguinte, quando elas não têm mais suas características próprias,
não se deve dizer mais que se trata das mesmas coisas, mas apenas que elas têm o mesmo nome
(homónima). É evidente, nessas condições, que a cidade existe naturalmente e que é anterior aos in-
divíduos, pois cada um destes, isoladamente, não é capaz de bastar-se a si mesmo e está [em relação
à cidade] na mesma situação que uma parte em relação ao todo; o homem que é incapaz de viver em
comunidade, ou que disso não tem necessidade porque basta-se a si próprio, não faz parte de uma
cidade e deve ser, portanto, um bruto ou um deus [...].

2 Odisséia, IX, 114.


3 Ilíada, ix, 63.
A formação do pensamento político: dimensão histórica 15

O impulso que leva todos os homens para uma comunidade desse tipo tem sua origem na na-
tureza; mas aquele que em primeiro lugar fundou essa comunidade é ainda assim credor dos maio-
res benefícios. Pois se o homem, ao atingir sua máxima realização, é o melhor dos animais, também
é, quando está afastado da lei e da justiça, o pior de todos eles. A injustiça que tem armas nas mãos
é a mais perigosa e o homem está provido, por natureza, de armas que devem servir à prudência
e à virtude (phronései kài aretêi) mas que ele pode empregar para fins exatamente opostos. Eis por
que o homem, sem a virtude, é a mais ímpia e feroz das criaturas, e a que mais vergonhosamente se
orienta para os prazeres do amor e da gula. E a virtude da justiça é um valor político, pois a comu-
nidade política tem como sua regra a [administração da] justiça (ou seja, a discriminação do que é
justo).
Disponível em: <www.unicamp.br/~jmarques/cursos/1998-hg-022/politica.doc>.
Acesso em: 31 jul. 2007.

Atividades
1. A formação da Ciência Política pressupõe a autonomia da política. Qual o sentido dessa afirmação?
16 Fundamentos da Ciência Política

2. Por que a frase de Aristóteles “O homem é um animal político” só ganha pleno significado no
contexto da Grécia Antiga?

3. Os gregos da antiguidade participavam da polis, os cidadãos modernos fazem parte da


sociedade. Qual a diferença entre as duas situações?
A formação do pensamento político: dimensão histórica 17

4. O contexto da Idade Média não favorecia a autonomia da esfera política. Explique.

Gabarito
1. A atividade política se separou da atividade religiosa, social e econômica. Foi quando a política
ganhou especificidade que as condições para o surgimento da Ciência Política apareceram.

2. Porque naquele contexto os cidadãos eram integrantes da polis e suas vidas só faziam sentido na
polis, que é espaço social e político ao mesmo tempo.

3. Participar da polis é construir a dimensão coletiva ao mesmo tempo em que se faz o percurso
individual, é estar integrado ativamente ao social e político. Fazer parte do social significa estar
distante do político que se constituiu numa instância separada. Os homens passam a se dedicar
ao social e a política vira coisa de especialistas.

4. Na Idade Média, política e religião estavam misturadas, a política não aparecia como uma ativi-
dade com regras e lógica próprias.
A formação do pensamento
político: dimensão lógica I

Aristóteles e as formas de governo


Ainda que na Grécia Antiga a política não se manifestasse enquanto uma dimensão autônoma
da realidade, foi no seu seio que determinados temas políticos foram inaugurados e se tornaram re-
correntes na história do pensamento político até a modernidade. Na Atenas Clássica, política e socie-
dade estavam unidas na vida da polis, e esta, por sua vez, associava-se a uma ética, ou seja, à busca da
felicidade na convivência coletiva. Isso significa que os primeiros pensadores de temas que, num olhar
retrospectivo, podem ser classificados como políticos, estavam em busca menos de uma especialização
do saber do que de respostas sobre a fórmula da boa convivência entre grupos tão diferentes.
Antes da contribuição aristotélica, questões como as que seguem orientavam o debate na
Antiguidade: quem deve governar a cidade? A maioria, ou seja, aqueles que têm menos posses e que
formam o estrato mais numeroso da comunidade? Um pequeno grupo de homens que se destaca
pela sua capacidade, os melhores e mais bem posicionados na estratificação social? Ou o governo
deve ficar a cargo de um só homem? Qual “forma de governo” deve ser adotada? Ou, qual a melhor
constituição política? Enfim, como a cidade deve ser ordenada? Qual regulamentação vai normalizar a
ocupação dos cargos públicos e estabelecer a autoridade soberana? É importante perceber que, desde
cedo, o pensamento sobre a forma de governo trouxe consigo uma dimensão prescritiva, para além da
descritiva. Alguns pensadores, na sua reflexão sobre a política, não satisfeitos em somente explicar o que
acontecia, procuravam também apontar como as coisas deveriam ser. Não é prudente esquecer que a
política, como atividade que englobava a vida social na Atenas de Péricles (495-429 a.C.), ultrapassava
a atividade de governar.
Heródoto, já no século V antes de Cristo, relatou a discussão entre três personagens imaginários –
Otanes, Megabises e Dario – que tentavam convencer um aos outros sobre a melhor forma de governo a
partir do critério quantitativo: um governante, poucos ou muitos (BOBBIO, 1980). As formas de governo
20 Fundamentos da Ciência Política

defendidas pelos três personagens (respectivamente, eram: a monarquia, a aristocracia e a democracia) se


tornaram clássicas. O tema foi retomado por diferentes autores até a modernidade. O aspecto prescritivo
na narrativa de Heródoto é bastante acentuado, pois cada personagem defende uma forma de governo
como sendo a melhor e ataca as outras, apontando seus defeitos. Otanes, que defendia o governo do
povo, chamado por ele de isonomia, argumentava que a monarquia se caracterizaria pela prepotência,
inveja e ausência de controles, o que facilitaria o desvio de caráter do governante. Já a isonomia
possibilitaria o controle pelo povo e a distribuição igualitária do poder. Megabises concordava com as
críticas à monarquia, mas, ao defender o governo de alguns, os melhores, o que chamava de oligarquia,
atacou o governo do povo. Para ele a massa é que estaria marcada pela prepotência e pela ignorância,
o que tornaria o seu comportamento arriscado e irrefletido1. Dario, por sua vez, referenda as críticas de
Megabises ao governo popular, mas enaltece a monarquia, o governo do melhor dos homens. Segundo
ele, o governo de poucos levaria às desavenças, à formação de facções e ao declínio. O governo do povo
seria uma fórmula marcada pela corrupção e pela aliança dos maus contra o próprio povo. Para Dario, o
fracasso da oligarquia e da isonomia levariam, fatalmente, à monarquia e esse fato seria suficiente para
demonstrar a superioridade dessa forma de governo, única capaz de gerar a estabilidade (este é outro
tema recorrente na história do pensamento político – BOBBIO, 1980). Na modernidade, essa questão
ganha novo perfil com a separação entre política e sociedade: como construir a estabilidade social a
partir de um determinado ordenamento político (LEBRUN, 1984).
Aristóteles (384-322 a.C.) retomou o tema das formas de governo adotando um tom mais
descritivo. Ele promoveu observações históricas e preocupou-se em elaborar uma classificação mais
adequada à realidade. Uma de suas contribuições foi lançar mão de uma segunda questão. Para além da
indagação quantitativa sobre quem governa, o discípulo de Platão formulou uma pergunta qualitativa:
Como governa? A novidade levou a uma relativização de cada forma de governo e sua duplicação,
pois o governo de um só, de poucos ou de muitos tanto poderia ser bom, no caso de buscar o bem
comum, o interesse coletivo; como poderia ser ruim, quando elegesse como objetivo o atendimento de
vontades particulares. Conforme nos explica Bobbio (1980, p. 34), a classificação sêxtupla de Aristóteles
contém três formas boas de governo e suas respectivas degenerações em três formas más. O esquema
aristotélico das formas de governo pode ser visualizado na tabela abaixo:

Como governa?
Quem governa? Bem Mal
Um Monarquia Tirania
Poucos Aristocracia Oligarquia
Muitos Democracia / Politia Oclocracia*
O cruzamento da resposta de cada uma das questões é que gerou a classificação hierárquica
pela qual Aristóteles buscou distinguir as melhores das piores formas de governo. Seguindo as pistas
deixadas por Platão, ele vai estabelecer que a pior forma de governo resulta da degeneração da melhor.
Sendo assim, entre as formas retas de governo, ou seja, entre as melhores, a monarquia era, para
Aristóteles, a melhor. Logo a seguir, numa hierarquia descendente vinha a aristocracia, e a pior entre as

1 Sem dúvida é possível identificar aqui um tema que será retomado ao longo da história, por exemplo, no final do século XIX, com os
teóricos das elites e suas formulações negativas a respeito do comportamento político das massas a partir de um diagnóstico psicológico das
mesmas.
A formação do pensamento político: dimensão lógica I 21

melhores formas de governo seria, segundo ele, a democracia ou politia. A degeneração do governo
do povo gerava, na classificação aristotélica, a forma menos ruim entre as más, qual seja, a oclocracia.
Na sequência aparecia a oligarquia, desvio da aristocracia e, por fim, a pior constituição, entre todas, a
tirania, definida como o governo de um só que busca apenas seus interesses próprios. Do pólo positivo
para o negativo, a hierarquia das formas de governo de Aristóteles pode ser assim representada:

+ monarquia aristocracia politia oclocracia oligarquia tirania –

Conforme registra Bobbio (1980), na Antiguidade Clássica o governo de muitos, tanto no sentido
positivo quanto na sua forma degenerada, não tinha uma denominação precisa. Na sua forma reta
aparecia como: isonomia, politia, timocracia e democracia, mas na forma degenerada também recebia
o nome de democracia, além de oclocracia. Essa imprecisão não é casual. O esquema não é um retrato
puro da realidade, mas um ponto de partida que deve ser contrastado com as situações concretas. As
fronteiras efetivas entre as formas de governo não são rígidas. Desse modo, o governo de muitos na sua
forma boa está, na realidade, muito próximo da forma degenerada do governo do povo. A dificuldade
real em distinguir a forma boa da forma má reflete-se na imprecisão da representação, a nomenclatura
imprecisa que, nesse caso, é o espelho de processos complexos.
O próprio pensamento de Aristóteles é mais rico do que o esquema por ele formulado. O
pensador grego percebe que na realidade histórica existiam formas de monarquia, por exemplo, com
características tirânicas, mas perfeitamente legitimadas pelos governados. Para ele, alguns povos
poderiam se apresentar com características servis e, nessa situação, um governo tirânico não poderia
ser classificado entre as formas degeneradas ou corruptas. Existiria, então, para Aristóteles, uma
diferença entre a tirania sobre povos que não aceitavam a submissão e outros que a ela se adequavam.
É importante registrar que a temática da legitimidade do poder também será retomada e tornar-se-á
um tema clássico do pensamento político.
Ao contrastar o esquema com a realidade, Aristóteles também percebe que duas formas más de
governo podem se combinar e gerar uma forma boa. É o que acontece com a politia, o governo bom
de muitos. Essa constituição pode ser o resultado da mistura de elementos da oligarquia e da oclocracia,
ou seja, é possível que homens livres e pobres, na sua maioria, entrem em acordo com homens ricos e
nobres, gerando o governo de muitos e aliviando a tensão social existente entre os sem propriedade
e os com propriedade (BOBBIO, 1980).
Aristóteles é um exemplo da inauguração de temas clássicos do pensamento político pela
reflexão dos gregos da Antiguidade. Ainda que a política não tivesse, nesse momento, uma espessura
própria, pois estava mesclada à ética, assuntos como a estabilidade, o comportamento político das
massas, a legitimidade do poder e a identificação do interesse comum foram colocados na agenda do
pensamento político para não mais sair.
A experiência da Roma Antiga foi marcada pelo Estado imperial, centralizado e com ênfase na
dimensão jurídica que delimitava os interesses dos proprietários, dos patrícios, frente à autoridade. Um
primeiro indício da verticalização do poder do Estado sobre a sociedade aparece nesse cenário.
Ao longo da Idade Média, o poder político e o poder religioso atuam lado a lado estabelecendo
uma ordem que combina força e persuasão. A superação desse período histórico gerou uma experiência
singular e um dos seus efeitos foi a autonomia da esfera política. Esse processo abriu uma rica reflexão
e um amplo debate que chega até os nossos dias.
22 Fundamentos da Ciência Política

A representação da política na modernidade


O termo modernidade é utilizado em diferentes contextos e assume vários significados. Convém
precisar o sentido que essa palavra assumirá neste estudo. Ainda que o capitalismo seja um fenôme-
no moderno, modernidade não se reduz ao capitalismo, pois as transformações econômicas ocorri-
das nos últimos séculos, sob à égide do mercado, denota apenas um aspecto do fenômeno moderno.
Modernidade também não se esgota nas inovações tecnológicas. A combinação entre ciência e técnica é
típica da modernidade, mas o termo moderno abarca uma realidade mais ampla. A palavra modernidade
traz consigo, para além dos significados materiais, uma dimensão reflexiva. Com a modernidade, funda-
mentalmente, inaugura-se um olhar e uma perspectiva nova em grande parte inspirada, vejam só, na
Grécia Antiga. Modernidade é, acima de tudo, Iluminismo.
Qual é a principal característica desse olhar moderno que surge com o declínio da sociedade
feudal? Um traço distintivo da modernidade, o que confere a ela toda a sua singularidade, é a razão. O
que significa, no entanto, dizer que a modernidade é racional? Ao longo da história do homem o pensa-
mento não esteve sempre presente? A reflexão rigorosa sobre a condição do homem no mundo não foi
objeto, por exemplo, dos filósofos da Grécia Antiga e também dos teólogos da Idade Média? A resposta
a essas questões é sim. Por que, então, afirmar que a razão é a principal característica da modernidade?
Porque a grande novidade da modernidade não é a razão enquanto simples pensar, mas a afirmação de
que a razão é a essência do homem. Concepção muito bem condensada na célebre frase de Descartes
(1596–1650): “Penso, logo existo”. Quer dizer que seria o fato de pensarmos que nos faria ser o que so-
mos: humanos; que de todas as características que o homem tem (medo, dor, alegria, raiva, fé, inveja,
solidariedade, desejo, vontade de poder, ganância etc.) uma seria a fundamental, submeteria as demais
e, definitivamente, faria a distinção entre o homem e os demais seres vivos, qual seja, a razão.
A aposta moderna é de que a razão é a chave explicativa sobre quem somos, de onde viemos e
para onde vamos. Através da razão seria possível recuperar a lógica do processo histórico na qual o ho-
mem, racional no início da sua caminhada, deixou-se alienar ao longo do percurso e se desencontrou da
sua essência. Também a força da razão, ao reorganizar o mundo presente, possibilitaria ao homem, num
futuro próximo, reencontrar-se consigo mesmo. A racionalização do mundo nas suas diferentes esferas
(econômica, social, cultural, política etc.) levaria o homem a emancipar-se dos diferentes constrangi-
mentos que o limitaram ao longo da história: a escassez com a miséria, a desigualdade com a injustiça,
o misticismo com a alienação, enfim, o autoritarismo com a violência.
Autores que pensam a partir dos princípios modernos, mesmo que adotem perspectivas
diferentes, vão partilhar a concepção de que o homem é o sujeito da razão e de que a razão explica sua
trajetória passada e pode orientar seu caminho rumo a um futuro cada vez melhor. É o caso, por exem-
plo, de Karl Marx (1818-1883) que, de uma perspectiva dialética, aposta na razão tanto quanto Augusto
Comte (1798-1857) cujo ponto de vista é positivista. Ambos acreditam que, com ajuda da razão, o
homem pode dominar não só a natureza mas o seu destino histórico.
Associado ao princípio de que a razão é a essência do homem, nascem ou renascem as idéias
de liberdade e de igualdade. Ser racional significa ser autônomo, ou seja, ser capaz de conduzir-se no
mundo. O homem não está mais preso a um destino previamente determinado por forças sobrenaturais.
Definitivamente, o ser humano é dotado de livre arbítrio. Outra característica da racionalidade é considerar
todos humanos iguais, ou, para ser mais preciso, a razão como definidora da humanidade coloca todos
em igualdade de condições. Não há mais sentido em aceitar a autoridade de alguém, por exemplo, em
nome de uma suposta diferença que lhe conferiria superioridade divina ou de qualquer outro tipo.
A formação do pensamento político: dimensão lógica I 23

Razão

Liberdade Igualdade

A introdução na história do trinômio razão – liberdade – igualdade foi um processo lento e


construído em diferentes frentes. É possível citar a contribuição de Dante Alighieri (1265-1321), poeta
italiano que muito cedo apontou a possibilidade da condução do Estado de forma autônoma em
relação à Igreja. Marsílio de Pádua (1280-1341) também colabora com a modernidade nascente, ao
formular a concepção de “vontade do povo” como condutora das decisões. Os dois personagens citados
são representantes do “renascimento urbano”, período rico na formulação de princípios que guiarão o
projeto moderno (ARANHA; MARTINS, 1986).
O advento da razão no sentido moderno colocará novos desafios para o homem em todos os
campos. Trata-se de fazer este sujeito ideal, caracterizado pela racionalidade, liberdade e igualdade,
encontrar o homem real, superando os limites impostos pelo mundo concreto. Nesse sentido, é mais
apropriado falar de “projeto moderno” que precisaria ser realizado. Múltiplas formas ou fórmulas
foram concebidas com vistas à implementação do projeto, algumas bem conhecidas: o liberalismo
com sua ênfase na liberdade dos indivíduos no mercado, o socialismo sublinhando a igualdade
social garantida pelo Estado, a social democracia buscando combinar elementos das concepções
anteriores etc. Cada perspectiva reivindica para si o melhor modelo para propiciar o reencontro do
homem com a sua essência. São posturas muitas vezes opostas e contraditórias entre si. O projeto
moderno é marcado, então, por fissuras, tensões que, para alguns, o faz rico e aberto; para outros,
denotam sua fraqueza.
No campo político, que nos interessa em particular, o desafio moderno pode ser resumido da
seguinte forma: ordenar racionalmente as instituições que dizem respeito ao objetivo legítimo da con-
quista e manutenção do poder, estabelecendo regras, normas, enfim, leis que regulem o jogo político
afastando os riscos de violência. O aparato jurídico do poder deveria tornar o seu exercício impessoal e
voltado para os interesses comuns. Nesse sentido, o ideal político da modernidade é a democracia, regi-
me no qual todos participariam em igualdades de condições. A modernidade traz consigo a pretensão
de criar uma forma de governo, ou seja, de exercício do poder, no qual o poder esteja dissolvido, pulve-
rizado na sociedade. Fica mais clara, a partir da modernidade, a separação entre sociedade civil e esfera
política. Cria-se a expectativa de que a sociedade civil exerça o controle do mundo político. No limite, é o
projeto de um não poder, uma não dominação. Uma utopia ou um projeto em vias de realização?
Ao se definir que os homens são racionais, livres e iguais, torna-se impossível aceitar um
fundamento para o poder que não esteja na própria razão. Por que temos que aceitar a autoridade?
Por que se submeter ao poder do Estado? A modernidade descarta a resposta que apelava para Deus
ou outra entidade metafísica. A imposição da vontade pessoal do rei como efeito da sua diferença
natural referendada por Deus não será mais aceita. A existência do poder passa a ter como alicerce o
argumento racional de que este é o único caminho para construirmos a convivência pacífica. O mais
importante é que a legitimidade do poder também se pretende racional, o poder aceitável passa a
ser aquele fundado no consentimento coletivo, ou seja, na vontade geral. Nesse sentido, os modernos
24 Fundamentos da Ciência Política

abrem mão de fundar a convivência coletiva em valores transcendentais, de caráter religioso ou não.
A percepção é de que toda tentativa de encontrar o bem supremo a partir do qual derivassem as regras
para a conduta dos homens redundou em autoritarismo ou violência generalizada. A busca pela verdade
moral definitiva só pode resultar, segundo o pensamento moderno, numa eterna e perigosa disputa.
Diante desse fato, os modernos deixam de lado a busca pelo “fim” (o bem transcendental) e valorizam
os “meios” (procedimentos democráticos) para a convivência pacífica entre homens racionais, livres e
iguais. A modernidade restabelece a divisão entre a esfera pública, espaço das disputas políticas e da
construção dos interesses comuns; e o mundo privado, dimensão das escolhas valorativas a partir das
perspectivas individuais e de pertencer a diferentes grupos, como a família, as associações religiosas,
os clubes etc. As instituições do público e do privado comunicam-se, de modo possível e necessário,
considerando-se a diferença entre as duas dimensões.
Paralelamente às transformações históricas, as representações “racionais” do mundo irão demarcar
o espaço próprio da política. A elaboração de questões propriamente políticas sobre o fundamento
racional do poder, a legitimidade do Estado, a construção da estabilidade irão reforçar as fronteiras da
dimensão política. Pensadores da Filosofia política moderna e, depois da Ciência Política, terão como
desafio buscar explicações sobre o funcionamento do poder institucional a partir de fatos e processos
do próprio campo político. A cada contribuição ganha nitidez a lógica específica do campo político que
opera de maneira autônoma em relação à religião, à moralidade privada ou os interesses individuais dos
governantes. Desse modo, constituí-se a Ciência Política, cujo objeto são os fenômenos políticos. Estse
processo merece uma análise cuidadosa.

Atividades
1. Apresente os principais problemas e virtudes de cada forma de governo a partir do relato de
Heródoto.
A formação do pensamento político: dimensão lógica I 25

2. Qual a inovação introduzida por Aristóteles em relação ao debate sobre as formas de governo?

3. Quais as implicações políticas da seguinte afirmação: “a essência do homem é a razão”?


26 Fundamentos da Ciência Política

4. Pesquise em sites da internet, ou em dicionários especializados (Ciência Política, Ciências Sociais e


Filosofia), os sentidos das palavras modernidade e iluminismo. Separe as definições que associam
os termos à Política e depois debata com os colegas o sentido político das palavras modernidade
e iluminismo.

5. Pesquise sobre as contribuições de Dante à modernidade política.

Gabarito
1. Monarquia – virtudes: governo do melhor, estabilidade; problemas: prepotência, inveja, ausência
de controles. Aristocracia – virtude: governo dos melhores; problemas: desavença, formação de
facções, declínio. Isonomia – virtudes: controle do poder pelo povo, distribuição igualitária do
poder; problemas: prepotência e ignorância da massa, comportamento perigoso e irrefletido,
corrupção e aliança dos maus.

2. Aristóteles introduz um critério qualitativo de avaliação, ele pergunta sobre como se governa:
para o interesse comum ou particular?

3. A frase implica em adotar a liberdade e a igualdade como condições humanas. Ou seja, a partir
dessa concepção o homem não vai aceitar mais ser dominado.
A formação do pensamento
político: dimensão lógica II
O poder soberano
Com a abstração das tensões, contradições e, mesmo, frustrações reais que marcam a moderni-
dade, torna-se plausível afirmar que o ideal político moderno aposta na construção progressiva de uma
convivência pública capaz de equilibrar liberdade e igualdade. As instituições modernas, notadamente
as da esfera política, seriam capazes, teoricamente, de gerar o debate argumentativo entre os cidadãos
e, a partir dele, construiriam o consenso democrático. Os membros da sociedade, gozando de liberdade
e confrontando-se em condições de igualdade, estabeleceriam de forma consentida as regras jurídicas
da convivência pacífica e a autoridade soberana que cuidaria da implementação das mesmas.
É importante enfatizar o que o pensamento moderno entende por igualdade. Com certeza,
a idéia de igualdade entre os seres humanos não exprime mesmice, não significa que somos todos
idênticos. É evidente que somos diferentes uns dos outros. Quando o pensamento político moderno
fala em igualdade está querendo dizer que a sociedade só irá funcionar se partirmos do princípio que os
cidadãos devem estar no mesmo patamar político, ou seja, em condições semelhantes para exprimir seu
pensamento, associar-se, demandar direitos e exercer pressão sobre as autoridades. Isso significa que
na política moderna não é aceitável que um homem, ou um grupo de pessoas, exerça qualquer poder
sobre os demais em nome de alguma suposta diferença que o faria superior ao “outro” construído, desse
modo, como inferior; seja essa diferença de credo, cor, origem social, renda, gênero, ou qualquer outra.
É necessário perceber que diante dessa concepção de igualdade segue-se o desafio, ainda aberto, de
realizá-la concretamente, pois estar em condições de igualdade exigiria que todos os participantes do
contrato social tivessem o mesmo nível de informação, assim como possibilidades iguais de reflexão
sobre sua condição no mundo, sobre o significado do jogo político e sobre a identificação dos grupos
aos quais pertence; enfim, ter capacidades semelhantes de expressar seus interesses no espaço público
e lutar democraticamente para realizá-los.
28 Fundamentos da Ciência Política

A política moderna, desse ponto de vista, forneceria os ingredientes para uma sociedade de
não-dominação, posto que as regras estabelecidas seriam seguidas não como efeito de uma relação
assimétrica de mando e obediência, mas principalmente como resultado de uma identidade entre os
sujeitos e as normas por eles criadas. Nessas condições, não existiriam mandatários e, sim, autoridades
limitadas pelas leis, tanto quanto o conjunto dos cidadãos. Essa igualdade entre os legisladores e a
população é uma das características da democracia, ao menos em projeto.
Diante da crítica de que uma república de homens livres e em igualdade de condições não se
realizou em lugar algum, e de que as regras são obedecidas pelo temor da coerção, o intelectual otimis-
ta, assim como o político democrático, defenderiam-se lembrando que a modernidade é um projeto em
andamento. Avanços teriam sido conquistados e novos desafios deveriam ser vencidos.
Difícil negar, entretanto, que entre o mundo ideal e o real existe uma longa distância. O campo
teórico também está marcado pelas divergências sobre a melhor fórmula política para combinar razão,
liberdade e igualdade. É conveniente lembrar, por exemplo, que os primeiros passos rumo à elaboração
de um fundamento racional para o poder na modernidade foram dados por intelectuais que devem ser
qualificados como realistas ou pessimistas na sua leitura sobre o gênero humano e, consequentemente,
na sua concepção de poder político.
Entre os séculos XVI e XVII, diferentes pensadores fizeram a crítica às doutrinas teocráticas do
direito divino e abriram caminho para a inversão da origem do poder. O poder não descenderia mais
de determinações divinas, mas seria o resultado da vontade do povo que o estabelecera por consenso.
Filósofos medievais, notadamente Tomaz de Aquino (1225-1274), inovaram ao enunciar que o “modo”
e o “uso” do poder tinham um caráter humano e sua fonte era o povo, mas o “princípio” do poder, nesse
momento, ainda tinha como origem a vontade divina (AZAMBUJA, 2005). Se, por um lado, a introdução
dessa temática semeou dúvidas sobre a legitimidade do poder da realeza, por outro, alimentou as
tensões entre nobreza e clero na Idade Média e levou à virada na concepção de poder. É importante
sublinhar a diferença fundamental entre o cenário do poder no mundo feudal e na política moderna,
que diz respeito ao estabelecimento do povo como fonte única do poder. A autonomia da política
avançou, em relação ao mundo religioso, na justa medida em que a origem do poder foi se afastando
da esfera divina e encontrando a materialidade do povo. O conjunto de cidadãos passa a ser entendido
como origem do poder, primeiro pela mudança na leitura da “vontade divina”, que passaria a agraciar o
povo e não mais os reis, e depois, numa interpretação laica por inteiro, o poder do povo aparece como
uma condição intrínseca à própria cidadania.
A idéia de que a população é a fonte do poder foi muito importante para a construção da
autonomia da política diante da religião. Mas, nesse processo, também foi fundamental a introdução da
teoria de que esse poder, que emana do povo, é soberano. O que significa um poder soberano? Antes de
tudo, que o poder político, centralizado no Estado, está acima dos demais poderes e sobre eles exerce
sua força. A partir da “teoria da soberania”, cujos principais formuladores foram Jean Bodin (1530-1596)
e Thomas Hobbes (1588-1679), o poder político do Estado se impôs como instância soberana diante
do poder religioso, das associações, das famílias, das empresas, enfim, dos indivíduos. A soberania é
definida, desde seu início, como absoluta, perpétua, indivisível, inalienável e imprescritível.
A soberania qualifica o poder do Estado como supremo
[...] no sentido de não conhecer outro poder juridicamente superior a ele, nem igual a ele dentro do mesmo
Estado. Quando se diz que o Estado é soberano, deve entender-se que, na esfera da sua autoridade, na
competência que é chamado a exercer para realizar a sua finalidade, que é o bem público, ele representa
A formação do pensamento político: dimensão lógica II 29

um poder que não depende de nenhum outro poder, nem é igualado por qualquer outro dentro do seu
território. (AZAMBUJA, 2005, p. 61 e 62).

Antes de explorar uma certa ambiguidade que marca a teoria da soberania e as concepções
modernas do poder – que emana do povo e, ao mesmo tempo, sobre ele é exercido – convém analisar
um pouco mais as características desse poder soberano do Estado. Ele atua dentro de uma fronteira
territorial, formando uma nação composta por cidadãos e, nesse espaço, é hierarquicamente superior,
não encontrando, sequer, a instituição equivalente a ele em força. As leis que proclama se impõem a
todos sem distinção. Aliás, o poder legitimado na lei é outra característica do poder soberano, “ [...] o
conceito político-jurídico de soberania indica o poder de mando de última instância, numa sociedade
política [...] a soberania pretende ser a racionalização jurídica do poder, no sentido da transformação da
força em poder legítimo, do poder de fato em poder de direito” (MATTEUCCI, 1993, p. 1178).
No que diz respeito à dimensão externa, ou seja, a relação com os demais Estados nacionais, a
condição é de igualdade, sem a qual a soberania fica comprometida. Nos dias atuais, é comum ouvir
alertas sobre a ameaça à soberania nacional a partir de diferentes situações: retaliações comerciais de
um país contra o outro, invasões territoriais, imposição de sanções diplomáticas, recriminações por
decisões políticas etc. Vejamos um exemplo que apareceu na imprensa:
“O governo argentino saiu em peso a defender a ‘soberania’ do país após a queixa pública feita pelos EUA à
Argentina por ter permitido a realização de um ato anti-Bush com a presença do venezuelano Hugo Chávez,
em um estádio de futebol de Buenos Aires, exatamente durante a visita do presidente norte-americano,
George W. Bush, ao vizinho Uruguai. [...] O ministro do interior, Aníbal Fernández, disse que ‘a Argentina
é um país soberano e livre’. ‘Ocupem-se de si mesmos’, declarou. Chefe de gabinete de Kirchner, Alberto
Fernández afirmou que os EUA ‘não devem se intrometer’ nos assuntos nacionais”
[Jornal Folha de São Paulo. 24/03/2007. Caderno Mundo. “Argentina repele quinze dos E.U.A. por Chávez]
Disponível em: <www1.folha.com.br/psp/ft2403200709.htm>.
Acesso em 24 mai. 2007. Sem grifo no Jornal.

A queixa do governo norte-americano e a resposta veemente das autoridades argentinas


denotam a atualidade da temática da soberania na política internacional contemporânea. O exemplo
torna evidente como não é simples e tranquilo definir a soberania externa. Até onde pode ir o poder
de um Estado diante das outras nações soberanas? Certamente não é a legislação internacional que
vai abolir essa tensão, pois trata-se, antes de tudo, de embate político, jogo de forças, capacidade de
persuasão. Em geral, Estados com maior força conseguem “persuadir” os demais e, na prática, flexibilizam
a concepção de soberania das nações mais fracas. Nesse jogo existe espaço para a resistência, como no
exemplo acima apresentado. Se este é o jogo no cenário internacional, o que dizer sobre a soberania no
sentido interno à nação?

A teoria da soberania
Quando a modernidade enfatiza o caráter racional do homem e o associa à liberdade e à igualdade,
inaugura uma complicada equação referente ao poder. É possível viver em sociedade sem a instituição
do poder? A resposta negativa da filosofia política moderna a essa questão abre outras dúvidas: por
que submeter-se ao poder? Como esse poder será exercido? Respostas diferentes e antagônicas foram
elaboradas ao longo da modernidade. A teoria da soberania é uma das primeiras formulações que busca
responder a essas complicadas questões.
30 Fundamentos da Ciência Política

Para os antigos, o poder estava associado à busca do bem e da felicidade, como no caso da Grécia
Clássica. Na Idade Média, a finalidade do poder ligava-se à bondade e à justiça. Mas a concepção de
justiça era bem peculiar. Um Rei justo deveria distribuir prêmios, benefícios, enfim, reconhecimento aos
nobres que tivessem um comportamento fiel e que demonstrassem bravura nas batalhas ou mesmo nos
torneios. Aos pobres, o governante oferecia esmolas como sinal da sua bondade e senso de justiça.
A teoria da soberania desmonta essa relação entre poder, felicidade, bondade e idéia de justeza.
Para os teóricos da soberania, o poder supremo deve sua existência à necessária construção da paz
interna, com vistas ao fortalecimento da sociedade diante dos inimigos externos. A teoria da soberania
inaugura uma perspectiva funcional do poder. A existência e a necessidade deste passa a ser remetida
à sua função de fazer com que a sociedade opere de forma estável e equilibrada. A paz social passa a
ser valorizada como condição fundamental para o progresso das instituições, o amadurecimento dos
indivíduos, a realização dos negócios e o desenvolvimento da humanidade em diferentes aspectos,
com destaque para a dimensão econômica.
A concepção moderna de que o poder do Estado é soberano e obedece a uma função fundamental,
a paz, libera a instituição política das amarras fornecidas pelos poderes paralelos feudais, do tipo religioso,
moral, natural etc. A pluralidade de poderes da alta Idade Média é superada quando o Estado absoluto
impõe a sua força aos mandatários locais (LEBRUN, 1984).
Hobbes, ao buscar o fundamento racional do poder, sua essência e legitimidade, reconstrói, com
o recurso da especulação filosófica, o cenário anterior ao surgimento da sociedade e do próprio Estado.
Nesse contexto, nomeado por ele como “estado de natureza”, os homens viviam tão somente sob o
princípio do “direito natural” e das “leis da natureza”. Essa situação não seria suficiente para garantir
a paz.1 Constrangido apenas pelos preceitos naturais, nenhum homem seria forte suficiente para
sentir-se seguro ou fraco o bastante para não servir de ameaça aos demais. O fato de o homem ser
racional (Hobbes como pensador moderno parte desse princípio) não seria condição suficiente para a
convivência pacífica. Ao contrário, ao refletir sobre as ameaças que os outros homens representariam na
luta pela satisfação de necessidades e desejos pessoais, o sujeito se sentiria predisposto ao conflito. O
“direito natural” se traduz na mente de cada indivíduo como o “direito a tudo”. Daí decorre a reflexão de
Hobbes, ao mesmo tempo desconcertante e lógica, segundo a qual no “estado de natureza” é racional
agir pautado pela violência contra o outro que é uma ameaça. Também a condição de igualdade e de
liberdade, por si só, não afastariam, mas colaborariam, com a reprodução da barbárie do “estado de
natureza”. Nessa condição, ainda que algum homem pudesse parecer mais inteligente ou mais forte,
não conseguiria convencer os demais de que essa suposta diferença fosse suficiente para justificar uma
submissão consentida e pacífica. Se sou igual e livre, não aceito de bom grado a submissão ao outro.
A impossibilidade de Hobbes vislumbrar uma situação de paz garantida apenas pelas leis naturais
deriva da sua antropologia2. Para Hobbes, o homem é mau por natureza. Ou seja, o pensador inglês
inverte a leitura de Aristóteles sobre uma natureza humana sociável. Autor da célebre frase “o homem
é o lobo do homem”, Hobbes considera que sem constrangimentos advindos de um poder soberano,
ou seja, sem a constituição de uma esfera política impositiva da ordem, os homens entrarão em confli-
to violento na busca da realização dos seus desejos e vontades. Mas, do mesmo modo que o homem
apresenta-se como limite para o próprio homem, ele é também a sua condição de emancipação. Como
1 Também Locke e Rousseau imaginam um momento pré-político e o nomeiam “estado de natureza”, no qual os homens viviam conforme “leis
naturais”. Apesar das diferenças entre os três filósofos políticos, esse traço de semelhança fez com que eles fossem agrupados sob o rótulo de
“jus naturalistas”.

2 A palavra antropologia está sendo aplicada aqui com o sentido de concepção sobre a natureza humana.
A formação do pensamento político: dimensão lógica II 31

pensador moderno, a ênfase da reflexão hobbesiana não está na maldade, mas no caráter humano das
relações de poder, ou seja, os limites e possibilidades do jogo político estão circunscritos à condição
humana e não mais a elementos sobrenaturais.
Os homens, ao mesmo tempo maus e donos dos seus destinos, teriam escapado da barbárie
própria do “estado de natureza” ao mobilizarem a razão e, em nome da paz, estabelecerem um pacto
entre si. As condições para que este acontecesse estavam no próprio estado de natureza, pois, se os
“direitos naturais” apontam para o conflito generalizado e aguçam a cobiça, a desconfiança e a busca da
glória, as “leis naturais” indicam o caminho da paz. Faz parte das “leis naturais” o esforço de conciliação
em nome da preservação da vida. A lei do evangelho que diz: “não faça ao outro o que não queres
que façam a ti” reflete bem o seu espírito das leis naturais. As “leis naturais” rivalizam com o “direito
natural”. Em nome da paz e da preservação, os homens abrem mão, em conjunto e simultaneamente,
dos “direitos naturais” e aderem às “leis naturais”. Nisso consiste o acordo que significou a transferência
consentida das prerrogativas naturais de cada homem para uma instituição concentradora do poder
e instauradora da ordem social. Não basta o compromisso mútuo de adesão às leis naturais, é preciso
a instituição de um poder soberano que, pelo temor da sua força, faça valer o acordado. Trata-se da
criação do contrato social que, para Hobbes, supõe a alienação absoluta dos poderes individuais em
favor desse Estado com força suprema, não por acaso, chamado metaforicamente de Leviatã3. Caso
algum resíduo de poder permanecesse no indivíduo, o risco de guerra generalizada não seria dissipado.
No edifício lógico de Hobbes, o Estado soberano corresponderia às características da natureza humana
e seria a única possibilidade da construção da estabilidade, ou seja, superação da barbárie.
A lógica hobbesiana surpreende e desconcerta. O filósofo inglês parte de uma perspectiva
moderna, aparentemente liberal4. Sua questão inicial é sobre o fundamento racional do poder, pois não
aceita justificar o mando em alguma entidade metafísica. Na busca pela resposta ao problema formulado,
aparentemente, lança mão do “indivíduo” racional, livre e igual como ponto de partida do processo
histórico. Reconhece nos indivíduos a fonte do poder. Mas, no resultado da sua reflexão, encontramos o
Estado concentrador absoluto do poder e entidade que se impõe sobre os indivíduos como um Leviatã.
Como Hobbes parte de questões modernas e no ponto de chegada encontra a fórmula da monarquia
absoluta? Sua trajetória sofreu um desvio ou cumpre um desenvolvimento lógico?
A resposta às questões acima formuladas deve ser encaminhada considerando, em primeiro
lugar, que o Estado absoluto, por mais que se contraponha ao projeto iluminista e, particularmente,
ao ideário liberal, não foi, naquele momento histórico, contraditório com o processo de modernização
política e econômica. O Estado absoluto criou as condições para a emergência de um poder impessoal,
voltado para a competência administrativa. Possibilitou, ainda, a superação dos limites da política feudal:
instabilidade, dispersão e sobreposição com a religião, a moral, os poderes locais e as determinações
naturais. A concentração de poder no Estado também contribuiu para a regulação do comércio nacional
e internacional.
Em segundo lugar, é preciso considerar que a reflexão hobbesiana tem uma lógica interna
consistente e não totalmente incompatível com a perspectiva moderna. Para Hobbes, a defesa abstrata
da liberdade individual não faz sentido, o que importa é pensar as condições concretas para que a

3 Leviatã é o monstro mitológico de força descomunal. Ele aparece, por exemplo, na Bíblia como o maior monstro aquático.

4 O liberalismo político é o referencial que valoriza o indivíduo como célula fundamental da construção social. Para um liberal, o indivíduo está
no ponto de partida do processo histórico, ele se associa e cria o Estado para sua proteção. O indivíduo, na concepção tipicamente liberal, não
pode transferir todos seus poderes para o Estado, sob o risco de ser vítima dessa instituição que pode se tornar totalitária e autoritária. Este é
o maior temor de um liberal.
32 Fundamentos da Ciência Política

individualidade, a liberdade e mesmo a vida social possam existir. O requisito prévio para a individualidade
livre e, portanto, para a vida social, é a instauração do poder absoluto, pois, antes desse ato, os indivíduos
estavam presos, limitados pela barbárie, eram vítimas da tentativa frustrada de realizar os “direitos
naturais” no estado de natureza. A verdadeira liberdade é aquela que sucede à instauração pactuada
e consentida do Estado soberano, materializado na figura de um indivíduo (o Rei) ou uma assembléia.
Para Hobbes, a política precede o social, a multidão só se torna corpo político a partir da instauração do
poder absoluto. Antes da política não existia a sociedade. É uma concepção que não está em oposição
direta ao ideário político moderno, pois, não é a defesa do despotismo. A finalidade do Estado soberano
não é espalhar o terror, mas manter a paz social, preservar a vida, ou seja, zelar pelo interesse comum.
Diante das desconfianças quanto ao comportamento humano, Hobbes entende que só um poder que
esteja acima dos indivíduos e desperte neles o temor da punição irá assegurar o respeito ao contrato
livremente acordado e, por consequência, a convivência pacífica em sociedade. Gérard Lebrun tem uma
interpretação bem peculiar sobre Hobbes, de que o pensador inglês teria sido o melhor intérprete sobre
o funcionamento do poder na modernidade, isso porque não se iludiu quanto às possibilidades de
atenuar a dominação ou mesmo suprimi-la (LEBRUN, 1984).
Enfim, Hobbes parte de uma perspectiva democrática, mas sua lógica o conduz a um absoluto.
Sem dúvida, sua idéia de um pacto de submissão destoa das reflexões posteriores que operarão no
registro da divisão do poder e da participação popular, como formas de garantir a convivência pacífica
entre homens racionais, livres e iguais.

Texto complementar
Leviatã
Capítulo XIII.
[...] A natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito, que,
embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais
vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre
um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa com base
nela, reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque
quanto à força corporal o mais fraco tem a força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta
maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo.
Quanto às faculdades do espírito (pondo de lado as artes que dependem das palavras, e
especialmente aquela capacidade para proceder de acordo com regras gerais e infalíveis a que se
chama ciência; a qual muito poucos têm, e apenas numas poucas coisas, pois não é uma faculdade
nativa, nascida conosco, e não pode ser conseguida – com a prudência – ao mesmo tempo que
se está procurando alguma outra coisa), encontro entre os homens uma igualdade ainda maior
do que a igualdade de força. Porque a prudência nada mais é do que experiência, que um tempo
igual igualmente oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam. O que
A formação do pensamento político: dimensão lógica II 33

talvez possa tornar inaceitável essa igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria
sabedoria, a qual quase todos os homens supõem possuir em maior grau do que o vulgo; quer
dizer, em maior grau do que todos menos eles próprios, e alguns outros que, ou devido à fama ou
devido a concordarem com eles, merecem sua aprovação. Pois a natureza dos homens é tal que,
embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência, maior eloquência ou
maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios; porque vêem sua
própria sabedoria bem de perto, e a dos outros homens à distância. Mas isto prova que os homens
são iguais quanto a esse ponto, e não que sejam desiguais. Pois geralmente não há sinal mais claro
de que uma distribuição equitativa de alguma coisa do que o fato de todos estarem contentes com
a parte que lhes coube.
[...] De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia.
Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.
A primeira leva os homens a atacar os outros tendo em vista o lucro, a segunda, a segurança;
e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas,
mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para defendê-los; e os terceiros
pó ninharia, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de
desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoais, quer indiretamente a seus parentes, seus
amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.
Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder
comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se
chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens [...].
HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Editora Rideel, 2005.

Atividades
1. Qual o sentido que “igualdade” adquire no pensamento político moderno?
34 Fundamentos da Ciência Política

2. Como São Tomaz de Aquino contribuiu com a modernização da concepção de poder?

3. O que Hobbes queria dizer com a frase: “O homem é o lobo do homem”?


A formação do pensamento político: dimensão lógica II 35

4. No congresso ‘Intercom 2004’ a psicóloga Carolina Lanner Fossatti traçou um paralelo entre o
Leviatã hobbesiano e o personagem ‘Marlin’ do filme ‘Procurando Nemo’. Disney – Pixar, 2003.
Assista ao filme e reflita sobre as semelhanças entre o ‘Estado Leviatã’ e ‘Marlin’.
:: Em sala de aula, discuta com os seus colegas sobre as relações entre os dois personagens.
:: Pesquise na seção internacional dos jornais reportagens sobre conflitos diplomáticos
internacionais e, a partir delas, reflita sobre o conceito de soberania.
:: Pesquise na internet e/ou bibliotecas sobre o pensamento político de Hobbes.

Gabarito
1. Não é o sentido de “mesmice” e sim de estar em igualdade de condições em relação ao poder.

2. Ao introduzir uma dimensão humana ao poder, entendendo que o povo era a sua fonte.

3. Que o homem é mau por natureza, por isso precisa da instituição política para instaurar a paz.
A construção da Ciência
Política Moderna
A paternidade da Ciência Política
Hobbes (1588-1679), tanto quanto Maquiavel (1469-1527), contribuiu de maneira contundente
para a autonomia do pensamento político. Nesse sentido, ambos estavam bem articulados com o
desenvolvimento da ação política rumo à modernidade. O pensador inglês, ao teorizar sobre o Estado
absoluto, assim como Maquiavel ao refletir sobre a formação da unidade nacional, valorizou o caráter
vertical da política e, nesse aspecto, ele foi além do intelectual florentino, revestindo-a de uma pureza
quase absoluta. Não foi Hobbes, entretanto, o eleito pelos estudiosos do poder como o pai da Ciência
Política e sim Maquiavel (SARTORI, 1981). Por que esse tratamento diferenciado?
Antes de produzir a resposta, convém apresentar mais alguns pontos em comum entre Hobbes
e Maquiavel no que se refere à delimitação da política como campo autônomo. Até mesmo o rótulo
“injusto” – é bom frisar – de pensador maldito aproxima os dois. Mesmo partindo de questões modernas
e inspiradas na perspectiva da burguesia revolucionária, Hobbes construiu uma lógica que solicitava
e justificava o poder absoluto do Estado contra o indivíduo, algo inaceitável da perspectiva do
liberalismo político1. Ainda que a teoria hobbesiana não se reduza à defesa da monarquia absoluta,
sua resposta à questão sobre o fundamento racional do poder forneceu a justificativa teórica desse
modelo de Estado. Como agravante, o Estado Leviatã hobbesiano já foi considerado o inspirador do
Big Brother de George Orwell (SARTORI, 1981), figura que representa o Estado totalitário, despótico,
no romance intitulado 1984 (ORWELL, 1982). Uma das atividades do Estado Big Brother de Orwell era
reinventar incessantemente a língua. O romance Ministério da Verdade ocupava-se em abolir, criar e
recriar palavras, mantendo atualizada a “novilíngua”, sem dúvida, uma forma draconiana e eficaz de,
não apenas controlar a verdade, mas produzi-la. Hobbes, por sua vez, já percebia que a política como
instância autônoma, diferente e superior em relação à religião e à moral, criava e impunha a verdade.
Em que pesem as similitudes, acusá-lo de nos ter deixado essa herança autoritária é uma injustiça de

1 O liberalismo político é a perspectiva que mais se aproxima dos interesses da burguesia, pois valoriza a liberdade e os direitos do indivíduo.
38 Fundamentos da Ciência Política

igual magnitude àquela sofrida por Maquiavel, pois Hobbes, tanto quanto o pensador italiano, não era
um defensor do Estado despótico no qual o mandatário por capricho individual e desejos privados
imporia sua vontade pessoal ao povo. O Leviatã, ao contrário, deveria provocar o temor dos cidadãos
em nome do interesse público2, ou seja, da preservação da paz e da vida. Trata-se, antes de tudo, da
percepção, também expressa por Maquiavel, de que a política tem uma lógica própria, leis inescapáveis,
que se impõem ao político. O governante deve se adaptar às regras da política na sua tarefa de fundar
o Estado e fazê-lo funcionar para viabilizar a sociedade e, até mesmo, salvá-la. O chefe que não atender
a esse preceito coloca em risco não só a sua autoridade também como a estabilidade da sociedade.
A radicalidade do pensamento hobbesiano, ao caracterizar o Estado como também auto-suficiente,
diferente e independente da religião e da moral, assim como uma instituição que possibilita a existência
da sociedade e do indivíduo, rendeu-lhe inimigos tanto entre os religiosos quanto entre os liberais. Vem
daí a disseminação de uma imagem negativa ao seu respeito.
Por que a percepção tão aguda da política, elaborada com tamanho esforço e sacrifício, não rendeu
a Hobbes o título de pai da Ciência Política? A questão se torna mais inquietante quando lembramos que
ele construiu o Estado como uma máquina que funciona segundo uma lógica objetiva. Em Maquiavel,
ainda existe uma brecha para que se expresse uma dimensão humana, subjetiva, por exemplo, na idéia
de virtude do príncipe (SARTORI, 1981). Mesmo a religião tem um papel a desempenhar na sustentação
do mundo político desenhado por Maquiavel, ainda que apareça a serviço do poder. Por outro lado,
se nos deixarmos conduzir pelas mãos de Hobbes, iremos nos deparar com a frieza funcional de um
Estado-máquina, cujo fim é, tão somente, equilibrar a sociedade. Nele o soberano controla totalmente
a religião. Mais para Maquiavel do que para o filósofo inglês, o Estado é a causa do social. Nessa
lógica objetiva, outro elemento desconcertante é que Hobbes a desenvolve a partir do pensamento
matemático geométrico. O autor do Leviatã, diferente de Maquiavel, usufruiu os avanços na concepção
de “cientificidade” trazidos por Bacon (1561-1626) e Galileu (1564-1642), assim como vivenciou os
desenvolvimentos da metodologia científica empreendidos por Descartes (1596-1650). Ainda assim,
Hobbes não é visto como o pai da Ciência Política. Maquiavel, mesmo distante da elaboração de um
saber propriamente científico, é celebrado como o criador da ciência que focaliza o Estado.
A explicação para o status diferenciado adquirido pelos dois autores junto à comunidade científica
está, justamente, no procedimento lógico adotado por Hobbes. A lógica hobbesiana é filosófica no
sentido mais puro do termo. Trata-se de um raciocínio do tipo geométrico, ou seja, marcado pela dedução3.
Como se sabe, um matemático não sai à procura de um triângulo perfeito na realidade empírica4 para
poder tirar conclusões lógicas sobre o funcionamento dos seus ângulos. Guardada as diferenças, Hobbes
também imagina o desenho do Estado e, adotando um raciocínio rigoroso, faz deduções lógicas sobre
a sua essência e funcionamento. Ora, a metodologia científica moderna diferencia-se do pensamento
filosófico e matemático, justamente pela adoção da indução5. O cientista cruza informações teóricas
anteriores com os dados empíricos por ele coletados através da observação metódica e chega a novas

2 Hobbes está sujeito à crítica de que a determinação do que é o interesse público é relativa e deixar essa tarefa a cargo do próprio Estado
seria criar as condições para o despotismo. A mesma crítica, entretanto, parece imputável a outras correntes políticas modernas: quem define
o que é o interesse comum?
3 “Processo de raciocínio através do qual é possível, partindo de uma ou mais premissas aceitas como verdadeiras (como: A é igual a B e B é
igual a C), a obtenção de uma conclusão necessária e evidente (no exemplo anterior, A é igual a C).” (Dicionário Houaiss eletrônico).
4 “Empírico: baseado na experiência e na observação, metódicas ou não. Obs.: por oposição a conceptual”. (Dicionário Houaiss eletrônico). Aqui,
no sentido de uma realidade concreta, ou seja, perceptível aos sentidos.
5 “Raciocínio que parte de dados particulares (fatos, experiências, enunciados empíricos) e, por meio de uma sequência de operações
cognitivas, chega a leis ou conceitos mais gerais, indo dos efeitos à causa, das consequências ao princípio, da experiência à teoria”. (Dicionário
Houaiss eletrônico).
A construção da Ciência Política moderna 39

elaborações teóricas via indução. Hobbes não observa, ele deduz e descobre a autonomia da política por
um caminho não científico, mas filosófico (SARTORI, 1981). Maquiavel, ainda que não tenha desenvolvido
um método científico de análise da realidade política, observou os fatos históricos e, a partir deles,
construiu um raciocínio indutivo sobre o funcionamento do jogo político. Este foi o principal motivo
para o pensador florentino ter conquistado a reputação de pai da Ciência Política.

O príncipe moderno
No que se refere ao título de pai da Ciência Política, Maquiavel continua sendo associado, prin-
cipalmente pelo senso comum, ao que há de mais negativo no mundo da política, ou seja, às práticas
inescrupulosas, à falta de ética, enfim, às atitudes mesquinhas de quem pensa que “os fins justificam os
meios”. Tal herança maldita que se liga à imagem de um pensador que se alia aos poderosos não é justa
com Maquiavel e para desfazê-la é importante contextualizar a sua obra e compreender os princípios
que a orientam. O próprio Rousseau, um pensador que defendia a soberania popular, viu no intelectual
florentino um libertador, que teria desnudado, aos olhos dos dominados, o funcionamento da engrena-
gem do poder e, de forma astuciosa, fez parecer que falava exclusivamente aos poderosos.
A península itálica na passagem do século XV para o XVI era um território marcado por intensos
conflitos internos. Pequenos principados, com seus mandatários locais, disputavam o poder entre si,
gerando, para a região, uma situação de intensa instabilidade interna e grande vulnerabilidade externa.
Espanhóis e franceses invadiam com frequência o espaço italiano. O próprio Maquiavel foi vítima dessa
situação. Perdeu seu cargo de chanceler no Estado florentino com a volta dos Médicis ao poder (1512) e
a consequente dissolução da república. Ele foi declarado inimigo da monarquia, preso e torturado, por
fim, viu-se obrigado a recolher-se à sua casa e viver no ostracismo da sua vida privada. Nessa condição,
produziu suas principais obras e não desistiu de reaver seu cargo. As tentativas não frutificaram, mas
renderam-lhe a imagem de bajulador e adepto da monarquia, o que foi suficiente para que enfrentasse
novos problemas quando da restauração da república (1527). O desgosto, diante da situação, contribuiu
para o seu enfraquecimento e morte (SADEK, 1991).
O contexto se configurava ainda mais grave para a Itália, diante de uma Europa que vivia a
formação dos Estados nacionais sob o comando das monarquias absolutistas. Maquiavel mostrou-se
bastante perceptivo da realidade histórica que o cercava ao diagnosticar o atraso da Itália provocado
pelas suas dificuldades em unificar-se. É fundamental não perder de vista essa referência que orientou
a construção da reflexão “maquiaveliana”. Maquiavel acreditava na possibilidade de se compreender os
processos políticos através da observação histórica, tendo em vista encontrar as leis que explicassem
a construção da estabilidade. Como estabilizar a sociedade italiana pela ação política e abrir caminho
para unificação e para o progresso? Este é seu principal desafio teórico e prático.
Na Itália do final da Idade Média, era comum aconselhar o príncipe, ou seja, o governante. Não
por acaso, Maquiavel adotou também esse formato num dos seus principais estudos (MAQUIAVEL,
1996), mas o conteúdo do trabalho foi inovador e mostrou uma força crítica surpreendente em relação
à concepção política vigente. Maquiavel enunciou desde o início de suas reflexões a preocupação em
entender a política efetiva (SADEK, 1991), tal qual ela se manifesta concretamente. Isso significa que ele
não seguiu a tradição normativa herdada dos gregos (ARANHA e MARTINS, 1986), não era sua tarefa
imaginar como o homem “deveria agir” ou como “deveria ser” na política, pois essa postura correspondia
40 Fundamentos da Ciência Política

à submissão da política à moral. Maquiavel inverte essa relação, a política como técnica social da
construção da unidade e da estabilidade pode ir contra a moral do senso comum. Sua preocupação com
o mundo real o fez observar o comportamento humano e concluir que a natureza humana é marcada
por certa maldade. O caráter do homem o leva a se comportar de forma traiçoeira, com ingratidão,
simulação, covardia, injustiça, isso tudo associado às disputas entre os diferentes grupos, “o povo” e “os
grandes”, faz com que a sociedade seja marcada por longos períodos de conflito, sucedidos por breves
momentos de estabilidade (SADEK, 1991). É importante perceber que Maquiavel sublinha o caráter
humano do processo político. O ciclo de caos e de estabilidade resulta da condição e da ação humana,
e isso significa que os próprios homens, caso compreendam o funcionamento desse jogo, podem
modificar o seu curso, se não afastando o caos por completo, tarefa difícil dada a natureza humana,
ao menos prolongando os períodos de estabilidade e reduzindo os momentos de desordem. Este é o
projeto do príncipe, tarefa terrena e não transcendental, ancorada na técnica política enquanto jogo
de poder e não na moral religiosa. O príncipe competente submete as múltiplas vontades e unifica os
interesses, não porque é bom, mas por saber usar todos os recursos do poder.
É nítida a introdução, por Maquiavel, de uma percepção mecânica da política no pensamento
moderno. Esta deve funcionar com vistas a atingir determinado fim. O agir político não deve se remeter
mais a uma idéia transcendental de bondade ou justiça. A ética política não é determinada por valores
definidos a priori6 (ARANHA; MARTINS, 1986). Como definir então o que é o bem? A avaliação sobre o que
é bom ou justo não pode ser elaborada a partir de critérios exteriores à própria política, por exemplo,
valores religiosos. A medida da ação política precisa se remeter ao seu próprio fim, qual seja, a construção
da estabilidade. A boa ação política é aquela eficaz com vistas a esse fim. Passa a haver a preocupação,
a rigor, com a legitimidade da ação, cujo substrato não é mais o divino, mas a situação concreta. Nesse
sentido, Maquiavel percebe que a herança ética do cristianismo não favorece à construção do equilíbrio
do Estado. A lógica da política é secular; portanto, é diversa e autônoma em relação ao mundo religioso.
Estando o governante cercado pelo mal, deve ele agir com bondade? Muitas vezes, pensa Maquiavel, a
ação que ao olhar da moralidade privada é má, da perspectiva estratégica do Estado é boa. É possível
imaginar uma situação na qual o governante, diante de um traidor da nação, seu próprio filho, escolheria
agir orientando-se pelos princípios da bondade cristã, da afetividade paterna, ou da racionalidade
política. Caso conduza sua ação pelo valor do perdão, poderá até colher a admiração das almas caridosas,
mas não conquistará o respeito necessário ao exercício da autoridade e a confiança fundamental para
a manutenção da segurança e estabilidade do Estado. Estes só virão com a restauração da ordem pelo
cumprimento da lei mediante a punição do culpado.7 Nesse caso, praticar o “bem” seria irracional, faria
do príncipe um irresponsável que se autoconduz à ruína pessoal e à desordem da sociedade. Aquele
que exerce mando vive uma duplicidade, é uma pessoa privada com sentimentos afetivos e, ao mesmo
tempo, uma autoridade pública com responsabilidades coletivas; situação angustiante, que exige
qualidades específicas. Maquiavel inverte mais um ensinamento dos conselheiros renascentistas: para
eles,” a conduta racional será sempre uma conduta moral”, mas, conforme nosso exemplo, “nem sempre
é racional ser moral” (SKINNER, 1988). Fica evidente o realismo e o utilitarismo de Maquiavel, referente
ao que é bom, ao que é útil ao interesse comum, ou seja, à estabilidade do Estado, da sociedade e, por
consequência, à glória do governante. Diante de uma situação angustiante como a exemplificada, a
autoridade pública não pode se dar ao luxo de agir segundo a moral privada, pois pesa sobre si o destino
da coletividade. Esta é a ética própria ao mundo político, que não é amoral. Simplesmente, colocar-se

6 A priori: anterior à experiência.


7 É o caso célebre do Cônsul Julio Brutus que na República Romana manda matar o filho que traiu o Estado. No caso, ele renunciou à moral de
pai e agiu como estadista preservando os interesses públicos, ou seja, seguiu os princípios da política.
A construção da Ciência Política moderna 41

na esfera moral, como amigo, pai, irmão, pede atitudes morais, mas posicionar-se na dimensão política
pede comportamento político, que, aliás, não é um comportamento sem normas, mas tem regras
próprias. Significa, ainda, que a relação entre meios e fins não é de “vale tudo”, mas é feita de uma mútua
determinação guiada pela lógica da própria política e a partir dela, deve ser avaliada.
Foi observando a história que Maquiavel descobriu a lógica e a ética, próprias da política, além
de compreender a sua dimensão humana. Segundo ele, a política é feita por homens livres, dotados de
livre arbítrio, sujeitos de sua história na justa medida em que dominam sua sorte submetendo-a pela
força e coragem. Tal entendimento levou o intelectual de Florença a combater a idéia de predestinação
associada à interpretação medieval sobre a fortuna, ou seja, a sorte, o acaso8. Segundo essa tradição,
a história do homem seria desenhada pela sorte. Ao acaso, mandatários subiriam ao poder e, também
segundo sua sorte, perderiam o comando do seu reino. Contra essa interpretação, Maquiavel vai se
inspirar nos clássicos da Antiguidade romana e resgatar o significado original de fortuna. Ela deve ser
vista como uma deusa, uma linda mulher a ser conquistada, sendo que a sedução se daria pela ação
do homem e traria para ele, como prêmio, os bens desejados: honra, glória, riqueza, influência e poder
(SKINNER, 1988). Mas a conquista exige do homem virilidade, astúcia, coragem, ou seja, virtù (virtude).
A virtú é a chave do livre arbítrio, ela possibilita o controle da fortuna, a construção do próprio destino.
Mais uma vez, Maquiavel inverte a representação religiosa do mundo separando a virtù das virtudes
tradicionais associadas ao bom cristão. Bens terrenos como o poder, a honra e a glória devem ser
buscados, e virão com a conquista da fortuna. A sociedade estável e pacífica pode ser construída aqui
na Terra e é o resultado da ação virtuosa de um príncipe recompensado pela merecida glória. É possível
perceber aqui a distância do pensador Maquiavel do seu mito “maquiavélico”, pois ele não fala de um
governante pérfido, velhaco e traiçoeiro, e sim de um príncipe virtuoso.
A noção de virtù traz embutida uma flexibilização da moral. Nesse sentido, a aparência será, muitas
vezes, mais importante à conservação do poder e da ordem do que a realidade. Muitas vezes, o príncipe
precisará parecer bom, ainda que pratique alguma maldade. Isso porque o povo, segundo Maquiavel,
se deixa levar pelas aparências.9 Diante dessa flexibilização, a idéia de que o agir humano é racional
e associa-se à moral distanciando-se do indesejado comportamento animal não encontra abrigo na
formulação maquiaveliana. O governante não deve contentar-se com a razão, tampouco com a moral,
pois também é prudente e necessário combinar características humanas com traços encontrados
nos animais. A força do leão e a astúcia da raposa, por exemplo, são qualidades que o príncipe deve
incorporar caso deseje se manter no poder e construir a unidade do Estado.
Ser virtuoso é ser também astucioso. Por esse prisma o governante deve ponderar, conforme a
necessidade do momento e diante das circunstâncias dadas, se o uso da força é o mais recomendado
ou não para se atingir a estabilidade do Estado. Este é mais um indício de que Maquiavel não era um
defensor do despotismo ou do uso da violência como forma necessária de ordenamento do social. O
virtuosismo indica também que o príncipe atua como sujeito, mas respeitando as condições dadas e
se adaptando a elas. Isso significa que a dimensão humana da história, reconhecida por Maquiavel,
não possibilita aos homens conduzirem o processo social sem constrangimentos ou com autonomia
absoluta. A fórmula elaborada por Marx, três séculos mais tarde, parece sintetizar bem a idéia de
autonomia contida no agir virtuoso: os homens fazem a história, porém em condições historicamente
construídas (MARX, 1978).

8 Atenção, “fortuna” aqui não tem o sentido de riqueza material e sim de “sorte”, “acaso”.
9 Como não relacionar essa reflexão de Maquiavel com a importância que a construção da imagem midiática do político ganhou no espetáculo
eleitoral contemporâneo.
42 Fundamentos da Ciência Política

O próprio Maquiavel estava atento às condições históricas no momento de formular as recomen-


dações ao príncipe. A superação da desordem pede a instauração de um governo forte. Quando a anar-
quia é o ponto de partida, o mais adequado é a construção de um principado, mas, mesmo nesse caso,
o governante não deve ser um déspota e sim o fundador do Estado (SADEK, 1991). Caso a sociedade já
viva uma condição de equilíbrio, com um povo virtuoso e instituições estáveis, a república se torna a
forma mais apropriada de governo e nela o conflito emerge como algo saudável. Sempre preocupado
em avaliar as condições concretas, ao invés de eleger um valor abstrato como norteador da ação po-
lítica, Maquiavel lança mão de outros critérios que devem orientar os governantes. Ele faz a distinção,
por exemplo, entre os governos novos e os antigos; também entre aqueles conquistados pela força,
com ajuda de exércitos mercenários, com aqueles herdados pela fortuna; ou ainda, com os principados
mistos, que combinavam elementos de cada caso. A observação da história orienta a análise indutiva de
Maquiavel e o faz abrir o caminho para a Ciência Política.
Não encontraremos em Maquiavel palavras que apontem para a utopia de uma sociedade sem
poder, na qual a razão e a moral substituam a dominação. Não é este o traço que o faz um pensador
moderno. Sua reflexão inaugura uma nova época ao recortar com precisão a dimensão da política e
apontar com realismo seu funcionamento, cuja finalidade não é um bem moral, mas operacional, a
estabilidade, o equilíbrio que pode ser traduzido como interesse público. O exercício do poder é a
condição para a ordem social, e o realismo desse raciocínio está bem condensado na idéia maquiavélica
de que “a política não é o paraíso, mas, sem ela, viveríamos o inferno”.

Texto complementar
O Príncipe
(MAQUIAVEL, 1996)

Capítulo XVIII
De que modo os príncipes devem manter a fé da palavra dada
(quomodo fides a principibus sit servanda)
Quando seja louvável em um príncipe o manter a fé (da palavra dada) e viver com integridade,
e não com astúcia, todos compreendem; contudo, vê-se nos nossos tempos, pela experiência, alguns
príncipes terem realizado grandes coisas a despeito de terem tido em pouca conta a fé da palavra
dada, sabendo pela astúcia transtornar a inteligência dos homens; no final, conseguiram superar
aqueles que se firmaram sobre a lealdade.
Deveis saber, então, que existem dois modos de combater: um com as leis, o outro com a força.
O primeiro é próprio do homem, o segundo, dos animais; mas, como o primeiro modo muitas vezes
não é suficiente, convém recorrer ao segundo. Portanto, a um príncipe torna-se necessário saber bem
empregar o animal e o homem. Esta matéria, aliás, foi ensinada aos príncipes, veladamente, pelos
antigos escritores, os quais descrevem como Aquiles e muitos outros príncipes antigos foram confia-
dos à educação do centauro Quiron. Isso não quer dizer outra coisa, o ter por preceptor um ser meio
A construção da Ciência Política moderna 43

animal e meio homem, senão que um príncipe precisa saber usar uma e outra dessas naturezas: uma
sem a outra não é durável.
Necessitando um príncipe, pois, saber bem empregar o animal, deve deste tomar como mode-
los a raposa e o leão, eis que este não se defende dos laços e aquela não tem defesa contra os lobos.
É preciso, portanto, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos. Aqueles que
agem apenas como o leão, não conhecem a sua arte. Logo, um senhor prudente não pode nem deve
guardar sua palavra, quando isso seja prejudicial aos seus interesses e quando desapareceram as
causas que o levaram a empenhá-la. Se todos os homens fossem bons, este preceito seria mau; mas,
porque são maus e não observariam a sua fé a teu respeito, não há razão para que a cumpras para
com eles. Jamais faltaram a um príncipe razões legítimas para justificar a sua quebra da palavra. Disto
poder-se-ia dar inúmeros exemplos modernos, mostrar quantas pazes e quantas promessas foram
tornadas írritas e vãs pela infidelidade dos príncipes; e aquele que, com mais perfeição, soube agir
como a raposa, saiu-se melhor. Mas é necessário saber bem disfarçar esta qualidade e ser grande si-
mulador e dissimulador: tão simples são os homens e de tal forma cedem às necessidades presentes,
que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar.
Não quero deixar de apontar um dos exemplos recentes. Alexandre VI jamais fez outra coisa,
jamais pensou em outra coisa senão enganar os homens, sempre encontrando ocasião para assim
poder agir. Nunca existiu homem que tivesse maior eficácia em asseverar, que com maiores juramen-
tos afirmasse uma coisa e que, depois, menos a observasse; não obstante, os enganos sempre lhe
resultaram segundo o seu desejo, pois bem conhecia este lado do mundo.
A um príncipe, portanto, não é essencial possuir todas as qualidades acima mencionadas, mas
é bem necessário parecer possuí-las. Antes, ousarei dizer que, possuindo-as e usando-as sempre,
elas são danosas, enquanto que, aparentando possuí-las, são úteis; por exemplo: parecer piedoso,
fiel, humano, íntegro, religioso, e sê-lo realmente, mas estar com o espírito preparado e disposto de
modo que, precisando não sê-lo, possas e saibas tornar-te o contrário, Deve-se compreender que um
príncipe, e em particular um príncipe novo, não pode praticar todas aquelas coisas pelas quais os ho-
mens são considerados bons, uma vez que, frequentemente, é obrigado, para manter o Estado, a agir
contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade, contra a religião. Porém, é preciso que ele tenha
um espírito disposto a voltar-se segundo os ventos da sorte e as variações dos fatos o determinem e,
como acima se disse, não apartar-se do bem, podendo, mas saber entrar no mal, se necessário.
Um príncipe, portanto, deve ter muito cuidado em não deixar escapar de sua boca nada que
não seja repleto das cinco qualidades acima mencionadas, para parecer, ao vê-lo e ouvi-lo, todo pie-
dade, todo fé, todo integridade, todo humanidade, todo religião; e nada existe mais necessário de
ser aparentado do que esta última qualidade. É que os homens em geral julgam mais pelos olhos
do que pelas mãos, porque a todos cabe ver mas poucos são capazes de sentir. Todos vêem o que tu
aparentas, poucos sentem aquilo que tu és; e esses poucos não se atrevem a contrariar a opinião dos
muitos que, aliás, estão protegidos pela majestade do Estado; e, nas ações de todos os homens, em
especial dos príncipes, onde não existe tribunal a que recorrer, o que importa é o sucesso das mes-
mas, Procure, pois, um príncipe, vencer e manter o Estado: os meios serão sempre julgados honrosos
e por todos louvados, porque o vulgo sempre se deixa levar pelas aparências e pelos resultados, e no
mundo não existe senão o vulgo; os poucos não podem existir quando os muitos têm onde se apoiar.
Algum príncipe dos tempos atuais, que não convém nomear, não prega senão a paz e fé, mas de uma
e outra é ferrenho inimigo; uma e outra, se ele as tivesse praticado, ter-lhe-iam por mais de uma vez
tolhido a reputação ou o Estado.
44 Fundamentos da Ciência Política

Atividades
1. Diante do que foi estudado neste capítulo, você acredita que para Maquiavel “os fins justificam os
meios”? Por quê?

2. Por que o termo “maquiavélico” não faz justiça ao pensamento de Maquiavel?

3. Enuncie os pontos em comum entre o pensamento de Hobbes e de Maquiavel?


A construção da Ciência Política moderna 45

Gabarito
1. Não. A relação entre meios e fins é mais complexa, os meios podem sim comprometer os fins.

2. Porque Maquiavel não defendia a tirania, estava preocupado sim com a estabilidade do poder
como fonte de progresso social.

3. Ambos consideravam que o homem era mau por natureza, e valorizavam a política como instância
fundamental para a construção da estabilidade social.
O liberalismo
O liberalismo como reação ao absoluto1
Algumas teorias políticas caracterizam-se pelo absoluto, ou seja, constroem o poder institucional
como uma força política total, concentrada e soberana. Do alto desse edifício político desceria
verticalmente sobre os indivíduos a regulação inescapável. Os idealizadores do poder absoluto
acreditam que esse modelo torna possível a vida social e até mesmo o exercício da liberdade. Para eles,
só com um poder concentrado e soberano é possível alcançar a verdadeira democracia e fazer a justiça
triunfar contra a barbárie. Hobbes, por exemplo, elabora a teoria do poder absoluto do Estado. Para ele,
o Estado está acima das demais instituições e as submete. A instituição estatal pré-existe ao social e
viabiliza o seu funcionamento. Nessa perspectiva, o indivíduo só pode exercer sua liberdade e realizar
suas potencialidades após a construção do Estado. Os indivíduos fazem um pacto e criam o Estado para
sair da barbárie e, em nome da preservação da vida, aceitam submeter-se totalmente ao Estado.
Outro autor que pensa a concentração do poder é Rousseau, mas, nesse caso, a soberania
absoluta é depositada no povo. A vontade popular é, para Rousseau, a instância máxima de decisão e
o exercício do poder está concentrado na “vontade geral”, sendo este o único caminho de construção
da liberdade. É interessante notar que Hobbes elabora a teoria do poder absoluto do Estado porque
desconfia do indivíduo, pois para ele a natureza humana não é boa e, por consequência, se os indivíduos
se encontrarem sem o constrangimento do poder, tendem à destruição mútua. Já Rousseau não lê a
natureza humana com pessimismo, mas tampouco considera que o indivíduo seja o contraponto ao
totalitarismo do Estado. Desconfiado das potencialidades do indivíduo isolado e dos riscos do Estado
absoluto, Rousseau acredita que o ordenamento político capaz de civilizar e libertar a sociedade virá
como efeito da soberania absoluta do povo.
O pensamento liberal, por sua vez, tem como principal característica a oposição à concentração
absoluta do poder. O liberalismo combate a concentração do poder nas duas frentes: no Estado e no coletivo.
Esse combate se faz em nome das liberdades individuais. Historicamente, o liberalismo nasce na passagem
do século XVII para o século XVIII como norteador da luta da burguesia revolucionária contra a monarquia
absolutista. O primeiro grande momento do ideário liberal foi a Revolução Gloriosa de 1688 na Inglaterra. O
resultado prático foi a limitação dos poderes da monarquia em favor do fortalecimento do parlamento.
1 Este estudo não abordará o liberalismo econômico, pois este foge aos seus objetivos. É importante registrar, entretanto, que o liberalismo
econômico e político têm dimensões próprias, ainda que existam semelhanças entre eles e mútua influência.
48 Fundamentos da Ciência Política

Locke: um pensador liberal


Um dos principais pensadores liberais, com forte influência nas lutas contra o absolutismo, foi
o inglês John Locke (1632-1704). Locke formula a crítica à predestinação e aos conhecimentos inatos.
Como efeito desse empreendimento, ele foi um dos primeiros a formular teoricamente o empiricismo,
ou seja, a idéia de que os conhecimentos vêm das experiências sensíveis e não estão pré-elaborados nos
indivíduos como uma herança de sangue. Nesse sentido, ao nascer, o indivíduo teria uma mente aberta
à aquisição dos saberes, tal qual uma página em branco. Essa formulação teve efeitos importantes sobre
as concepções pedagógicas. É uma reflexão que está associada ao espírito liberal, pois reforça a idéia
de igualdade natural entre os indivíduos e, também, valoriza a autonomia dos sujeitos no processo de
autoconstrução. A luta moderna por liberdade está fortemente associada às guerras religiosas (um dos
seus efeitos é a reivindicação de autonomia moral para o indivíduo presente, por exemplo, em Locke). A
opinião pública e não o Estado deveria apresentar os limites éticos ao indivíduo. É possível localizar aí um
princípio favorável ao pluralismo de convicções, valores e comportamentos. Com o pluralismo aceito,
a relação política entre os homens não deveria se pautar por dominação fundada em diferenças, sejam
elas associadas à herança familiar, à religião, à tradição, à inteligência, ou mesmo às características físicas.
Para o liberalismo, a legitimidade do poder deve estar assentada no consentimento e as autoridades
devem ser escolhidas democraticamente. É uma teoria e um ideário político que defende o fim do direito
divino ao poder e a superação da esfera privada como fonte de legitimidade da autoridade política.
O princípio do consentimento associado à idéia de um “estado de natureza” como ponto de
partida do processo histórico coloca Locke entre os pensadores catalogados como “jusnaturalistas”
e “contratualistas”. Mas, diferente de Hobbes, que vê barbárie na condição de natureza, Locke vai
entender que, no estado de natureza, os indivíduos viviam em relativo equilíbrio e harmonia, sob as
leis e os direitos naturais. Isso porque a natureza humana, para ele, não é má. Sendo assim, o “estado
de natureza” lockiano já se configurava como um espaço pré-social e pré-político, no qual vigiam a
liberdade e a igualdade. Tal equilíbrio era proporcionado pelo respeito à propriedade como direito
natural. Ele dá à propriedade um sentido amplo: “tudo que pertence a cada indivíduo, ou seja, sua vida,
sua liberdade e seus bens” (ARANHA; MARTINS, 1986, 249). Locke, ao elevar a propriedade a um direito
natural fundamental, apresenta um traço característico da teoria liberal, mas é preciso reconhecer
que no seu contexto histórico a posse de bens era uma garantia de sobrevivência e não um capricho.
Macpherson (1979) é um autor que percebe esse elemento forte do liberalismo, o “individualismo
possessivo”. Isso significa que a liberdade natural se realiza à medida que o indivíduo toma posse,
adquire propriedades. A apropriação de bens é condição e efeito do percurso autônomo. Aliás, o corpo
seria já uma forma de propriedade que igualaria os indivíduos no seu ponto de partida e o uso do corpo
no trabalho os tornaria diferentes, pois uns se empenhariam mais do que outros e, por consequência,
se apropriariam de mais bens. Para Locke, no início dos tempos o trabalho era o limite da propriedade,
ou seja, ninguém acumularia, por exemplo, o principal meio de produção, a terra, para além do que seu
trabalho pudesse transformar em bens. Mas o mesmo pensador pondera que, com o surgimento do
dinheiro, a acumulação de bens para além das necessidades imediatas tornou-se possível e aceitável,
pois é uma forma de precaução. Fica evidente que para o referencial liberal o acúmulo de riqueza e
as diferenças sociais dele resultantes são legítimas, pois advêm dos diferentes usos da capacidade de
trabalho pelos indivíduos. Daí decorre que uma tarefa fundamental do Estado, para o liberalismo, é
assegurar o direito de propriedade, daqueles que acumularam bens, em relação aos demais e garantir,
ainda, a livre troca desses bens no mercado.
O liberalismo 49

O liberalismo e a defesa do indivíduo


Se o “estado de natureza” imaginado pelos liberais é de paz, por que os homens fazem um acordo
para sair dele e fundar a sociedade? Para Locke, à medida que as relações se tornam mais complexas,
as leis naturais se mostram insuficientes para frear os juízos parciais e o exercício das paixões. Nesse
momento, para evitar maiores riscos e preservar seus direitos, os homens, por livre consentimento,
decidem realizar o contrato social e estabelecer a autoridade estatal. A nova instituição, entretanto,
terá como finalidade manter a segurança e a garantia dos direitos individuais. A passagem do estado
de natureza para a sociedade política, via contrato social, não representa para Locke uma ruptura.
O contrato social é estabelecido para preservar os direitos naturais. Aliás, para esse típico pensador
liberal, diferente de Hobbes, certos direitos individuais são inalienáveis, ou seja, intransferíveis, pois são
naturais: o direito à vida, à propriedade e à busca da felicidade. Ao manter esses direitos sob sua posse,
o indivíduo do liberalismo se mostra precavido em relação ao Estado e sobre ele exerce uma vigilância.
Qualquer ameaça do Estado aos direitos individuais torna legítima a rebelião contra as autoridades. O
liberalismo valoriza, então, a sociedade civil como esfera separada e autônoma em relação ao Estado. A
sociedade civil deve ser uma dimensão com regras próprias, imune à ação do poder governamental e
deve ser por ele protegida.
É comum observarmos na sociedade norte-americana uma resistência à aprovação de leis que
limitem a aquisição e o uso de armas de fogo pelos cidadãos. Sempre que acontece algum massacre
de pessoas inocentes por indivíduos que utilizam armamentos letais, esse debate é retomado pelo
congresso dos Estados Unidos. Entretanto, a legislação permissiva não muda. É possível afirmar que
um dos princípios utilizados para a defesa do direito à posse de armas tem sua origem no liberalismo
de Locke. Ou seja, não se deve retirar do indivíduo a prerrogativa de defender seu direito à vida. Para
isso, ele deve ter acesso livre às armas para proteger-se contra possíveis ataques de outros sujeitos e até
mesmo agressões vindas do Estado. Sob esse ponto de vista, desarmar o indivíduo pode ser um convite
para a formação de um Estado autoritário.2
Uma característica saliente e constante do liberalismo é, portanto, a proteção do indivíduo contra
o poder absoluto. Instrumento como o habeas corpus, que garante que ninguém pode ser mantido
preso sem acusação formal e que todos têm direito à defesa, resulta da preocupação liberal em conter
o ímpeto do Estado, manifestado, por exemplo, no absolutismo. Aliás, os liberais dizem aceitar que a
autoridade, democraticamente estabelecida, aja coercitivamente contra o indivíduo desde que obedeça
a certas condições: o limite da legalidade, a transparência total dos procedimentos ou a ação repressiva
deve servir para reparar preservar os direitos sociais. Alguns autores consideram que a concepção dos
direitos individuais inalienáveis e a sua defesa são o grande mérito do liberalismo que, se não levantou
a bandeira da igualdade de direitos, ao menos proclamou “o princípio geral da igualdade de dignidades”
(CERRONI, 1993, 63), contribuindo, indiretamente, para as lutas posteriores por direitos universais.
O indivíduo, na teoria política liberal, não só é bom por natureza, mas também é o ponto de partida
de toda organização social, ou seja, as instituições sociais foram criadas pelos indivíduos que conviviam
bem no “estado de natureza”, e a finalidade destas é possibilitar o contínuo desenvolvimento desses
indivíduos. A instituição política, que para um liberal surge depois da existência de uma vida social,
tem a função de proteger a sociedade dos indivíduos para que eles, no exercício das suas liberdades,
possam aprimorar a si próprios e, por consequência, as instituições. Isso significa que as regras do jogo
político devem garantir o exercício da livre competição entre indivíduos proprietários. Sendo assim, o
2 Esse argumento lockiano também foi utilizado na campanha da “frente do não”, por ocasião do referendo das armas no Brasil em 2005.
50 Fundamentos da Ciência Política

liberalismo contrapõe ao poder absoluto o poder disperso nos indivíduos em concorrência. O limite
do conflito é dado pela instituição, ou seja, pelas regras que impeçam o confronto para além da livre
argumentação na defesa pública de interesses.
Pensadores liberais adotam o indivíduo como célula a partir da qual se constitui a vida social e
política, portanto, como elemento chave da construção histórica e da elaboração lógica. A análise sobre
o comportamento dos indivíduos seria fator elucidativo do processo histórico e social. Na dimensão
concreta, o indivíduo seria peça fundamental do projeto moderno. A liberdade é vista como a causa e o
efeito das interações individuais. Nas palavras de Matteucci (1993, p. 701) “A defesa do indivíduo contra o
poder” associa-se ao objetivo “de ressaltar o valor moral original e autônomo de que o próprio indivíduo
é portador” o que não deixa de ser uma luta contra as tentativas de uniformização do indivíduo. Mas nem
todos os autores que adotam o indivíduo como ponto de partida lógico podem ser enquadrados como
tipicamente liberais.3 Logo, o pensamento político liberal não se limita à adoção do indivíduo como
sujeito central. Para o liberalismo, esse indivíduo tem uma natureza boa e é, em essência, livre, e, no gozo
da sua liberdade, constrói a boa sociedade que a política, como esfera complementar, irá proteger. Os
indivíduos, competindo pela realização dos seus interesses, beneficiariam toda a sociedade. Nessa luta,
os melhores se destacariam e a comunidade estaria protegida da paralisia e da tibiez das massas e sua
simbiose com o Estado burocratizado.4 Deste ponto de vista, trata-se de desconfiar do poder do Estado
e das massas, na justa medida em que se confia que os indivíduos, na busca da realização das suas
necessidades, formam uma associação perfeita, com interdependência, equilíbrio e desenvolvimento.
É a apologia à sociedade do contrato, leia-se, do mercado. A teoria liberal se caracteriza, então, por
solicitar limites ao poder do Estado, restrições que impeçam a instituição do poder de se tornar absoluta,
totalitária, condição que a faria atentar contra as liberdades individuais.
É a perspectiva liberal que introduz a preocupação com a divisão dos poderes do Estado em exe-
cutivo, legislativo e judiciário. Essas três esferas deveriam funcionar com autonomia relativa e cada uma
delas teria a função de controlar e contrabalançar as demais. Tal divisão seria uma das garantias contra
a formação de Estados absolutos. O poder judiciário deveria se restringir à aplicação da lei, previamente
elaborada, sem distinção. O governante seria apenas um executor das leis e os representantes do povo
elaborariam as leis interpretando a vontade geral nas casas legislativas. As decisões obedeceriam o prin-
cípio da maioria. Mas os liberais buscam uma precaução diante do risco de a maioria se tornar totalitária
adotando a pluralidade como valor democrático. Ou seja, as sociedades que se dizem livres devem
preservar a existência de diferentes grupos, inclusive os minoritários, e estimular a concorrência deles
na sociedade, com vista a influenciar as instâncias decisórias. Isso só seria possível com a conservação
da autonomia dos indivíduos e dos grupos sociais frente ao mundo político.
O liberalismo se preocupa com a proteção do indivíduo, também, em relação à força da
multidão. A massa popular é vista com desconfiança pelos liberais, pois, dessa perspectiva, ela pode
se constituir num absoluto irracional a oprimir os indivíduos. É nítida aqui a contraposição entre,
de um lado, os indivíduos isolados, proprietários que estabelecem acordos no mercado e, de outro,

3 Locke, não Hobbes ou Rousseau, é o típico pensador liberal. Macpherson (1979) foi muito criticado por aproximar excessivamente os três
pensadores e considerá-los, por igual, precursores do liberalismo (LEBRUN, 1984).
4 Existe uma forte associação entre a “teoria das elites” e o pensamento liberal. Em resumo, a “teoria das elites” acredita que sempre elites
se destacam no papel de dominar politicamente a sociedade e isso é desejável, uma vez que as massas são perigosas e irracionais. Não é a
participação direta das massas nas decisões que constitui uma sociedade democrática. Para os elitistas, a competição pelo poder entre uma
pluralidade de elites já nos coloca numa democracia. Os italianos Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto são clássicos da “teoria das elites”. Um autor
contemporâneo que adota essa perspectiva é Robert Dahl.
O liberalismo 51

as classes populares sem posses, configuradas como fonte de risco político. Este é um dos motivos
pelo qual os liberais defendem a participação política indireta. A forma político-institucional aceita
pelos liberais não prevê a ação direta dos cidadãos na gestão política; seus interesses devem chegar
até o Estado através de organizações e processos representativos. Para um liberal, é perfeitamente
compatível a representação de interesses com a idéia de liberdade política. Aliás, parlamentos, partidos
e outras associações representativas constituem, da perspectiva liberal, o necessário contraponto ao
poder executivo. O conjunto das associações representativas, mais o espaço econômico do mercado
e a dimensão da formação da opinião pública, constituem a sociedade civil, instância separada do
Estado, protegida dele, autônoma e que teria o papel de exercer influência sobre as decisões e ações
de governo.

Ambiguidades do liberalismo
Uma crítica frequente e contundente ao liberalismo diz respeito ao fato de os direitos e as liber-
dades por ele defendidas permanecerem, na maior parte dos contextos, na dimensão formal. Os liberais
se dariam por satisfeitos de verem os direitos inscritos nas leis. A teoria liberal não daria conta de pensar
o problema das massas populares que não experimentariam concretamente os direitos e liberdades
por limitações e constrangimentos do mundo cotidiano. Por exemplo: ir e vir é um direito liberal, mas,
se não tenho recursos, ainda que ninguém me impeça de me deslocar, essa ação é inalcançável para
mim. O mesmo podemos dizer sobre o direito de livre expressão: pode estar garantido na Constituição,
mas, se não tenho acesso ao mundo da informação, terei dificuldade para formar uma opinião a ser ver-
balizada. Como agravante, a passividade dos liberais diante desses constrangimentos está associada à
idéia de que a liberdade de ação no mercado, a competição entre os indivíduos para satisfação de suas
necessidades, seria o caminho adequado e suficiente para superar essas dificuldades.
A literatura crítica indica que o liberalismo atua apenas na defesa formal das liberdades “de”, ou seja:
de expressão, de associação, de religião, de participação etc. O que poderíamos chamar de liberdades
pró-ativas. Mas teria sérias dificuldades de operar na solução das liberdades “das” necessidades e “dos”
medos, tais como, emancipar-se da fome, do desemprego, da falta de moradia, da carência de saúde.
Pensadores que se colocam à esquerda no espectro político apontam a competição no mercado como
a principal responsável pelos constrangimentos à realização das liberdades e dos direitos, uma vez
que a relação entre proprietários e não-proprietários seria desigual e geraria cada vez mais diferenças
e conflitos. Esses críticos do liberalismo vão além, apontam o Estado como a única instituição capaz
de, através de uma forte ação reguladora sobre o mercado, visando conter o seu ímpeto, minimizar as
desigualdades e restituir as condições de sociabilidade.
O processo histórico recente, desencadeado na primeira metade do século passado, fez o
liberalismo recuar em seus princípios. Diante da crise econômica de 1929, dos avanços da economia
planejada, praticamente todos os países do mundo adotaram a fórmula do Estado de bem-estar social,
cujas principais características são: a forte presença do Estado no mercado, controlando seus excessos;
e políticas públicas de amplo alcance para conter a pobreza e buscar a justiça social5, reduzindo, assim,
as desigualdades.

5 É importante registrar que a crise do Estado de bem-estar social, iniciada nos anos 1970, reacendeu a chama do liberalismo econômico, ou
seja, a aposta no mercado como agente capaz de resolver os problemas sociais. O liberalismo reaparece com o nome de neoliberalismo.
52 Fundamentos da Ciência Política

O limite do liberalismo, manifestado na sua resistência diante das ações do Estado em favor da
igualdade, está associado à sua concepção de que as diferenças entre os indivíduos já existiam no “estado
de natureza”; seriam, portanto, componentes normais do processo social e teriam pouco, ou nada, a
ver com relações de poder. Os homens, pelo esforço diferenciado no trabalho sobre a natureza, teriam
adquirido posses em diferentes gradações. Nessa leitura, não se faz qualquer menção às relações de
força que informam o processo de apropriação. A igualdade estaria na garantia das liberdades formais.
Aliás, os precursores do liberalismo, pensadores clássicos como o filósofo Emanuel Kant (1724-1804),
ou mesmo Locke, faziam uma distinção entre proprietários, sujeitos de direito e não-proprietários que
eram colocados na condição de tutelados. Indivíduos de fortuna eram vistos como cidadãos, pois teriam
interesses mais elevados e, não sendo tutelados, estariam em melhores condições para exercitar a razão
e tomar decisões. Nessa distinção, alguns estariam aptos só para serem governados, outros, também
para governar (ARANHA; MARTINS, 1986 e CERRONI, 1993). Os direitos políticos aparecem, então,
associados ao sucesso econômico de cada indivíduo, como se a sua conta bancária fosse a credencial
para entrar no mundo da cidadania.
Ainda que o liberalismo proclame a necessidade de preservar as liberdades, dificilmente apóia
lutas libertárias pela ampliação dos direitos ou pela conquista de novos patamares de igualdade, pois
vê ameaças aos indivíduos vindas dos movimentos coletivos. O liberalismo tende a valorizar as regras
estabelecidas e as autoridades constituídas. Essa postura já levou os liberais a assumirem posições
paradoxais. Por exemplo, diante das ameaças dos movimentos de esquerda, sentiram-se protegidos
pelo nazismo e pelo fascismo, prestando, até mesmo, apoio a eles (CERRONI, 1993).
Enfim, da perspectiva liberal, a sociedade civil acaba confundindo-se com o mercado e, por vezes,
deixa-se colonizar por ele. Quando a lógica do mercado se impõe ao jogo político, fica bloqueado o
caminho de superação das desigualdades pela via negociada. O efeito é o aumento das tensões e das
inseguranças. Diante desse cenário de ameaça ao mundo da propriedade e do mercado, o liberal, que
costuma defender um Estado mínimo, passa a exigir um Estado forte e atuante na defesa dos seus
interesses. Talvez este seja o maior paradoxo do liberalismo, desejar um Estado fraco, para que a lógica
do mercado possa operar livremente; e solicitar um Estado forte, a lhe oferecer segurança, sempre que
vê seus interesses ameaçados (LEBRUN, 1984).

Texto complementar
Ensaio sobre o governo civil
(MELLO, 1991)
Capítulo II - do estado natural
[...] 4. Para se poder bem entender o poder político, derivá-lo da sua origem, devemos saber
qual é o estado natural do homem, o qual é um estado de perfeita liberdade de dirigir as suas ações,
e dispor dos seus bens e pessoas segundo lhe aprouver, observando simplesmente os limites da lei
natural, sem pedir licença, ou depender da vontade de pessoa alguma.
O liberalismo 53

Um estado de igualdade, onde toda a jurisdição e poder são recíprocos, não tendo um mais
do que o outro; não havendo nada mais claro, do que ver que os entes da mesma espécie e ordem,
nascidos todos para as mesmas vantagens da natureza, e para o uso das mesmas faculdades, devido
ser também iguais entre si, sem subordinação ou sujeição; salvo se o Senhor de todos eles tivesse,
por uma declaração manifesta da sua vontade, posto um acima do outro, e conferido por li uma
nomeação evidente e clara, um direito indubitável ao domínio e soberania [...].
6. Porém ainda que este seja um estado de liberdade, não é contudo um estado de licença; e
ainda que o homem naquele estado tem uma liberdade indisputável para dispor da sua pessoa e
bens, não a tem todavia para se destruir, nem há criatura alguma que tenha tal poder, salvo, quando
algum uso mais nobre do que a sua simples conservação o exigir. O estado natural tem uma lei natural
para o governar, a qual obriga a todos: e a razão, que constitui essa lei, ensina a todos os homens, que
a consultarem, que sendo todos iguais e independentes, ninguém deveria ofender a outro na sua
vida, propriedade, liberdade, e saúde. Porque sendo todos os homens obra dum Criador onipotente,
e infinitamente sábio; todos criados dum Soberano Senhor, mandados para o mundo por sua ordem,
e para o seu trabalho, são sua propriedade, visto que são sua obra, feitos para durar segundo o seu
prazer, e não segundo o prazer um do outro. E sendo todos dotados das mesmas faculdades, gozando
tolos da mesma comunhão da natureza, não se pode supor entre nós uma subordinação tal, que nos
autorize a destruir um ao outro, como se nós fôssemos feitos para uso um do outro, como acontece às
criaturas de ordens inferiores em relação a nós. Todo o homem, assim como é obrigado a conservar-
se, e a não abandonar voluntariamente o seu posto, assim também pela mesma razão, todas as vezes
que a sua própria conservação não correr risco, deve, tanto quanto lhe for possível, preservar os
outros homens e não pode, salvo se for para punir o transgressor, tirar, ou pôr em perigo, a vida, ou o
que diz respeito à sua conservação, liberdade, saúde, membros, ou bens doutrem.
7. E para que os homens não infrinjam os direitos uns dos outros, nem se ofendam mutuamen-
te, e se observe a lei natural, a qual ordena a paz e conservação do gênero humano, a execução da
lei natural, naquele estado, compete a cada um individualmente, e por conseguinte cada um tem
o direito de punir os seus transgressores, tanto quanto for necessário para obstar à sua violação:
porquanto a lei natural seria, bem como todas as outras leis que dizem respeito aos homens neste
mundo, de nenhum efeito, se não houvesse pessoa que, no estado natural, tivesse o poder para pôr
em execução essa lei, e por esse meio proteger o inocente e coibir os ofensores. E se alguém há, que
no estado natural pode punir a outro por qualquer mal que ele tiver feito, cada um o pode fazer;
porquanto no estado de perfeita igualdade, aonde não há naturalmente superioridade, ou jurisdição
dum sobre o outro, tudo aquilo que a qualquer for lícito fazer em comprimento daquela lei, é igual-
mente lícito a todos os outros [...].
13. A esta doutrina, viz. [(isto é)] que no estado natural, todo o homem tem o poder executivo
da lei natural, não duvido, que alguns hão de objetar, ser contrário à boa razão que os homens sejam
juízes em causa própria, porque o amor próprio os fará parciais para consigo mesmos e para com
seus amigos, e por outro lado, que o mau gênio, paixão, e vingança os fará castigar os outros com
demasiado excesso; do que não se seguirá senão confusão e desordem, e que por isso Deus, sem
dúvida alguma, estabeleceu o governo para coibir a parcialidade e violência dos homens. Eu muito
facilmente concedo que o governo civil é o remédio próprio para as inconveniências do estado
natural, as quais, na verdade, devem ser grandes, onde os homens podem ser juízes em causa própria;
porquanto é fácil de conhecer que aquele que foi tão injusto que ofendeu a seu irmão, não será tão
justo que se condene a si mesmo por isso. Porém, desejarei que aqueles que fazem esta objeção,
54 Fundamentos da Ciência Política

lembrem-se, que os Monarcas Absolutos não são senão homens, e se o governo deve ser o remédio
daqueles males que necessariamente se seguem dos homens serem juízes em causa própria, e
por isso o estado natural se não deva tolerar, desejo saber que qualidade de governo é aquele, e
que vantagens tem sobre o estado natural, em que um homem, governando uma multidão, tem a
liberdade de ser juiz em causa própria, e pode fazer a todos os seus súditos aquilo que lhe agradar,
sem a menor objeção ou exame da parte daqueles que satisfazem o seu prazer? E faça ele o que fizer,
quer guiado pela razão, quer por engano, ou paixão, deve ser sofrido; o que na verdade os homens no
estado natural não estão obrigados a sofrer uns aos outros. E se aquele que julga em causa própria,
ou na do outro, julga mal, ele é responsável por isso aos outros homens.
14. [...] porquanto nem todo e qualquer pacto põe fim ao estado natural entre os homens, mas
somente aquele por meio do qual eles concordam todos mutuamente em se unir numa comunidade
e fazer um corpo político.

Atividades
1. Por que o liberalismo se opõe ao poder absoluto na política?

2. O que significa “direitos individuais inalienáveis”? Por que o liberalismo defende esse princípio?
O liberalismo 55

3. Quais as principais contribuições do liberalismo à política moderna?

Gabarito
1. O liberalismo teme que o poder absoluto cerceie a liberdade individual.

2. São os direitos naturais que o indivíduo não pode transferir ao Estado: direito à vida e à proprie-
dade. O liberalismo defende esse princípio porque considera que o indivíduo precede o Estado, é
mais importante do que ele.

3. O liberalismo contribui no combate ao autoritarismo e ao totalitarismo do Estado. Cria mecanis-


mos políticos e jurídicos de proteção do indivíduo, por exemplo: habeas corpus, direito de livre
expressão, direito de organização etc.
A democracia liberal
A difícil definição de democracia
É interessante iniciar a discussão sobre o conceito de democracia lembrando sua etimologia. A
origem da palavra é grega – démokratía – e resulta da junção de dêmos com kratía. Dêmos significa
“povo”, ou, mais precisamente para o contexto histórico em foco: “comunidade ateniense”. Kratía tem o
sentido de “força, poder”1 e, por extensão, “governo”. Democracia seria sinônimo, então, de “governo do
povo”. A palavra designaria o regime no qual o poder viria da comunidade de cidadãos. Mas os recursos
da etimologia e da sinonímia da palavra democracia servem apenas como ponto de partida na tentativa
de esclarecer o seu significado. É preciso considerar que associado à palavra existem experiências
díspares que escapam ao guarda-chuva semântico. Ou seja, as múltiplas realidades políticas associadas
à democracia ultrapassam o significado inicial que os dicionários dão à palavra. Este é um dos motivos
que explica o fato do tema ser um dos mais debatidos e trabalhados pela teoria política. Tentar colocar
alguma ordem nesse complexo debate pede, de saída, uma atenção para os vários sentidos que o termo
“povo” assume em diferentes teorias democráticas.
Na Grécia Antiga, Heródoto, refletindo sobre a democracia, a monarquia e a aristocracia, já
enunciara argumentos favoráveis e contrários ao governo do povo. Os aspectos positivos do governo
de muitos eram ligados, pelo pensador grego, à possibilidade de dividir de maneira mais igualitária o
poder e exercer sobre ele um melhor controle a partir do povo. Mas à democracia também se associavam
adjetivos negativos, justamente porque o povo seria ignorante e sujeito a um comportamento irracional
e perigoso.
Aristóteles, na sua explanação sobre as “formas de governo” não coloca o governo de muitos
em destaque entre as boas maneiras de se governar. Ao contrário, o bom governo de muitos aparece
apenas como a terceira forma de administrar na sua hierarquia, atrás da monarquia e da aristocracia.
Isso porque Aristóteles associa a democracia não propriamente ao governo do povo, mas ao governo
dos pobres que, tanto podem buscar o interesse comum, constituindo uma boa chefia, ou assumirem
uma posição contrária aos ricos, gerando uma forma degenerada de governo. Sendo assim, também
em Aristóteles, o governo de muitos não necessariamente terá um sentido positivo.

1 Retirado do dicionário Houaiss eletrônico.


58 Fundamentos da Ciência Política

Giovanni Sartori (SARTORI, 1994) chama atenção para as diferentes acepções que a palavra “povo”
vai adquirindo ao longo da história do pensamento político, e reflete sobre as dificuldades que cada defi-
nição gera na concepção de democracia. De saída, é preciso considerar o entendimento de “povo” como
“todo mundo”. A experiência concreta mostra que os governos ditos democráticos nunca incluíram toda
a população de um território; sempre existiram exclusões de um ou vários grupos considerados inaptos
para compartilhar o exercício do poder político, tais como: escravos, menores, mulheres, estrangeiros, tra-
balhadores etc. Não é possível, portanto, definir democracia como o governo de “todo mundo”.
Talvez fosse adequado definir “povo” conforme o sentido dado por alguns autores, qual seja:
“muitos” ou “uma grande quantidade”. Nesse caso, o problema persiste, pois “muitos” é uma quantia
vaga e não fica claro em relação a qual total ele se forma. Outro recurso presente na literatura é o de
especificar essa “grande quantidade” entendendo-a como a “classe inferior”, ou seja, os pobres e/ou a
classe trabalhadora. A história indica, todavia, que a classe inferior esteve, por muito tempo, distante do
poder, pois constituía-se na maioria e gerava o temor das elites. Paralelamente a esse fato, se tomarmos
a democracia como o governo da classe inferior, estaremos excluindo de forma definitiva aqueles
que não pertencem a ela. Tratar-se-ia de uma exclusão não justificada racionalmente e reproduziria o
argumento de Aristóteles de que a democracia enquanto governo dos pobres contra os ricos é uma
forma ruim de constituição política.
“Povo” pode ser entendido, ainda, como um “todo orgânico”. Essa acepção é muito presente na
definição de democracia, mas provoca discordâncias, especialmente por parte dos liberais, pois eles
não vêm nela espaço para a individualidade e apontam o risco de a totalidade submeter de forma
absoluta o indivíduo promovendo assim o totalitarismo. Não por acaso, os liberais preferem definir a
democracia como o governo regido pelo “princípio da maioria”. Ainda resta, nessa perspectiva, uma
distinção entre “maioria absoluta”, na qual esse agrupamento tem direitos absolutos sobre a minoria; e
“maioria limitada” quando a maioria tem limites ao exercício do seu poder, justamente pela necessidade
de respeitar os direitos das minorias. Da perspectiva liberal, o princípio da maioria limitada expressa
melhor o governo democrático.
Fica evidente que não é simples definir democracia, pois o sentido que se dá à palavra acaba
sempre revestido de uma coloração ideológica, ou seja, traz consigo determinada valoração, expressa,
por exemplo, na conotação positiva dada ao indivíduo pelo liberalismo em contraposição ao povo. Ainda
assim é possível, ao menos a título de esclarecimento, apresentar o significado formal de democracia.

Significado formal de democracia


Independente das diferenças ideológicas que permeiam o debate político sobre o tema em foco,
o mundo ocidental contemporâneo consagrou a democracia como a melhor forma de governo. Países
imersos em cenários políticos diversificados entre si levantam a bandeira democrática. No plano lógico
acontece o mesmo: perspectivas teóricas, a princípio pouco preocupadas em atender os requisitos
democráticos, com o passar do tempo renderam-se à importância em adequar, de algum modo, o formato
político proposto aos ideais da democracia. Foi assim, por exemplo, com o liberalismo e o socialismo.
Isso indica que, para além das disputas valorativas, é possível, ao menos no plano abstrato, indicar
alguns elementos consensuais, relacionados à forma de escolha dos governantes e aos procedimentos
de tomada de decisão, que caracterizam uma sociedade como democrática (BOBBIO, 1993).
A democracia liberal 59

A democracia supõe, antes de tudo, uma tomada de posição que valoriza os meios, os procedi-
mentos, mais do que os fins. Os modernos, em especial, assumiram a impossibilidade de determinar, a
partir de valores transcendentais (religiosos ou de qualquer outra ordem) qual o melhor caminho para
a sociedade seguir. Aliás, as tentativas de estabelecer a distinção entre o bem e o mal e, a partir desta,
orientar a conduta da sociedade como um todo resultaram, ao longo da história, em disputas violentas
e insolúveis ou em totalitarismo. Desiludidos quanto à possibilidade de determinar de forma absoluta
a moralidade de uma sociedade marcada pela diversidade de interesses, o projeto moderno, democrá-
tico, deixou a temática do bem e do mal para o campo privado e concluiu que o importante, no espaço
público, é estabelecer com clareza e justiça as regras para a disputa do poder e para determinação dos
objetivos sociais. Ou seja, a modernidade democrática aposta nos meios.
A valorização das regras relacionadas ao comportamento político na disputa pelo poder abarca
a possibilidade de que erros coletivos sejam cometidos; daí a previsão de redirecionamentos quanto às
escolhas realizadas, uma vez que elas não são definitivas. Dessa percepção derivam ao menos duas regras
democráticas. A primeira informa que os governantes devem justificar logicamente seus projetos e atos diante
dos eleitores. A segunda garante à minoria derrotada o direito legítimo de tentar virar maioria nas rodadas
eleitorais futuras. Assim, a democracia espera incentivar a tolerância e escapar da violência promovendo a
gestão pacífica dos conflitos sociais. Para que esse fim se realize, a democracia acolhe todas as manifestações
de opinião, com exceção daquelas que colocam em risco os próprios meios democráticos2.
Outra regra que deve ser lembrada na caracterização formal da democracia é aquela que solicita
a eleição dos representantes que irão compor as casas legislativas locais, regionais e nacionais. Essa
eleição pode ser direta ou indireta, mas, necessariamente, tem que contar com a participação do povo.
A norma vale também para os cargos executivos que devem funcionar paralelamente ao legislativo e
tendo à frente chefes eleitos em todos os níveis do governo. Também é preciso registrar nessa definição
que o direito de votar e ser votado deve ser universal, ou seja, qualquer norma que limite a participação
no colégio eleitoral precisa ser fundamentada logicamente, como no caso dos menores, e não pode, de
modo algum, utilizar critérios econômicos, étnicos, religiosos, de gênero, sexualidade etc. O princípio da
igualdade deve prevalecer entre os eleitores: cada cidadão vale um voto, o que não impede a utilização
de fórmulas matemáticas para o cálculo das eleições proporcionais, desde que sejam respeitadas as
regras elaboradas de forma transparente e não casuística.
Uma democracia deve criar e valorizar as condições de debate e argumentação no sentido de
formar uma opinião pública esclarecida. Se o conjunto dos cidadãos não pode participar o tempo
todo das decisões políticas, deve, ao menos, ter condições de influir no comportamento dos seus
representantes através do voto e da manifestação cotidiana das suas preferências. Daí a importância de
uma imprensa livre que funcione como uma dimensão do espaço público e que seja capaz de expressar
as divergências de opiniões. O caráter livre das eleições está associado também ao conflito de idéias e a
existência de alternativas políticas apresentadas para escolha do eleitor.
Conforme já explicitado, nas eleições ou outras formas de consulta aos cidadãos deve prevalecer
a vontade da maioria sem que sejam limitados os direitos da minoria, especialmente aquele de tornar-
se maioria. Enfim, os poderes constituídos devem funcionar com autonomia e em equilíbrio. Em linhas
gerais, estes são os requisitos formais para se considerar uma sociedade democrática. Não se deve
esquecer que essa definição não bloqueia o debate sobre as condições substantivas de exercício da
democracia, as quais remetem aos posicionamentos ideológicos dos atores envolvidos.
2 Não é aceitável pela democracia, por exemplo, o debate sobre a suposta inferioridade de algum grupo social, seja ele étnico, religioso, de
gênero, sexualidade etc.
60 Fundamentos da Ciência Política

O povo como fonte do poder


A teoria da soberania popular já na Idade Média considerava que o poder do governante lhe
foi conferido pelo povo. Ocorre, então, uma distinção entre quem ocupa o cargo de poder, quem o
exerce, e quem é o titular do poder. O governante, aos poucos, começa a aparecer como o executor das
determinações, enfim, dos interesses do titular do poder, no caso, o povo.
A concepção da soberania popular é importante, pois possibilitará, nos desenvolvimentos futuros
da democracia, a defesa desse regime mesmo diante da sucessão de governantes corruptos, pois o
mandatário não traz consigo a essência dessa construção política. Ele é visto apenas como o executor
da vontade do povo e, se não cumpre bem a sua tarefa, ele, e não o regime, deverá ser substituído. Não
teria sentido julgar o regime pelo mau desempenho do seu executor.3
Seguindo a tese da soberania popular, o povo não seria apenas o inspirador do direito, o ponto
de partida e de chegada das leis, mas também o criador dos costumes nos quais as leis devem estar
repousadas. Essa reflexão torna lógica a idéia de que o poder deve estar no povo e indica que, mesmo
nos regimes nos quais o povo é colocado em segundo plano, a força da tradição e dos costumes obriga
os governantes a respeitarem, em algum grau, a vontade popular. A partir do reconhecimento de que as
leis estão assentadas na tradição popular e só serão respeitadas quando se remeterem a esses costumes,
abre-se caminho para a associação do poder ao povo.
O debate, durante um bom período da Idade Média, girou em torno, justamente, da consideração
sobre quem detinha maior força na determinação da lei: o povo ou o governante. A questão era escla-
recer qual o grau de alienação do povo quanto ao poder conferido aos governantes. Uma alienação
definitiva, tal qual interpretou Hobbes, ou provisória, como ficou condensada na reflexão dos precur-
sores do liberalismo? Esse debate esteve muito vivo, por exemplo, nas reflexões de Marsílio de Pádua
(1280-1343), que apresentou grandes inovações ao pensamento político medieval e forneceu subsídios
fundamentais às teorias políticas modernas. Marsílio argumentou que o poder soberano de editar leis
deve estar no povo, ao qual clero e monarquia deveriam se submeter.4 Para ele, o legislador não seria
outro senão o corpo de cidadãos. E o corpo político formado pelos cidadãos é, segundo Marsílio, a causa
primeira do Estado, pois eles são os donos do poder principal. O povo, na sua visão, deveria estar acima
dos executores, os governantes, entendidos como causa secundária e, portanto, agregados a um poder
derivado.
Merece esclarecimento o fato de a teoria democrática da soberania popular não se confundir com o
contratualismo5, pois o princípio do contrato nem sempre está vinculado a uma sociedade democrática.
É notório o caso de Hobbes, que partilha a concepção do contrato, mas pensa o exercício do poder
pelo Estado absoluto. Também merece registro as muitas teorias democráticas que desconsideram
o contratualismo (BOBBIO, 1993). Mas, de todo modo, existe uma ligação entre democracia e
contratualismo, pois em ambos o povo é a fonte, do pacto ou do poder democrático. Não resta dúvida,
ainda, de que o contratualismo influenciou o desenvolvimento do pensamento democrático moderno.
O maior exemplo nesse aspecto é Rousseau (1712-1778).

3 É possível lembrar, na história recente do Brasil, a utilização do mecanismo chamado “impeachment’” ou seja, a cassação do mandato do
chefe do poder executivo. No caso, o presidente Fernando Collor de Mello foi cassado por não cumprir corretamente o mandato popular. No
exemplo fica evidente a separação existente entre o titular do poder, o povo, e seu representante, o chefe do executivo.
4 Não por acaso, Marsílio de Pádua foi perseguido pela hierarquia católica e excomungado.
5 A concepção contratualista entende que os indivíduos, quando saíram do “estado de natureza”, estabeleceram um contrato marcado pela
alienação do poder em favor de um soberano, pessoa ou assembléia. São contratualistas, por exemplo, Hobbes, Locke e Rousseau.
A democracia liberal 61

A democracia liberal
Os liberais não aceitam a concepção de liberdade da Grécia Antiga, entendida como participação
na pólis para a confecção das leis, na qual o cidadão está imerso num todo chamado “público”, formando
um corpo político. Para o liberalismo, a liberdade dos “antigos” é diferente daquela dos “modernos”.
Como indicou o suíço Benjamim Constant (1767-1830), a liberdade do mundo industrial se caracterizaria
pela demanda em preservar o indivíduo diante do poder do Estado. Na sociedade dos negócios, na qual
poucos teriam tempo ou vontade de participar da gestão direta da política, a necessidade não seria de
uma liberdade positiva como a dos antigos, a denominada “liberdade em”, aquela de quem está dentro
do Estado participa do corpo político e requer atuação no espaço público para confecção das leis. Os
indivíduos modernos, pensados pela perspectiva liberal, não precisam determinar diretamente o destino
da comunidade como um “igual”. A ênfase liberal, aliás, será colocada na liberdade e não na igualdade.
Na era da intensa divisão do trabalho e da diversidade de interesses, a liberdade esperada, segundo
os liberais, seria a liberdade negativa, a “liberdade de” ou “liberdade para”, associadas às garantias de
proteção do indivíduo contra o poder do Estado. São liberdades bem caracterizadas pelos direitos
civis: liberdade de pensamento, de religião, de informação, de reunião etc. E pelos direitos políticos: de
eleger representantes e ser eleito, liberdade essa vinculada mais à idéia de uma associação individual
e voluntária do que à participação coletiva num corpo político de iguais. O direito ganha um sentido
defensivo e individual. Cada indivíduo deve ter o caminho livre para, a partir de uma decisão autônoma,
escolher em que grau fará parte, ou não, da construção do corpo político representativo. Junto à idéia
de “liberdade negativa”, portanto, os liberais introduzem o princípio da representação política como
procedimento fundamental para garantir a presença indireta do “povo”, ou do conjunto dos indivíduos,
na política.
A democracia liberal agrega-se ao argumento de que o indivíduo moderno não precisa da
igualdade ou de uma liberdade positiva. Esta é a idéia de que o “povo”, entendido como a massa
popular, tem uma natureza negativa e um potencial nocivo. Diferente das concepções democráticas
que se inspiram na Grécia Antiga, a democracia liberal não vê positivamente o “coletivo”. A ação da
massa estaria marcada pela paixão e, por consequência, pela irracionalidade. Dessa observação deriva
o princípio, também característico da democracia liberal, de que o indivíduo deve ser protegido do risco
de formação de uma tirania da maioria. A participação do povo na política não deve ser direta e sim
mediada, distante.
A necessidade de proteção ao indivíduo leva os defensores da democracia liberal a demandarem
a divisão do poderes e, associada a ela, reclamam a implementação da representação como forma de
fazer os interesses da sociedade chegarem ao Estado. Ao longo do século XVIII, os liberais formularam
os princípios da representação política como forma mais adequada do exercício do poder. Entrando,
tais príncipios estavam em conflito com as perspectivas que apoiavam uma maior presença e força do
povo junto às instâncias governamentais, especialmente junto ao parlamento. Os liberais recusaram
todas as fórmulas de controle mais rígido do eleitor sobre os eleitos, tais como: mandato imperativo6
e revogabilidade do mandato. Na concepção liberal de democracia, os representantes devem guardar
uma autonomia; seu papel não é a realização automática das vontades dos eleitores. O argumento é
de que os eleitos formam um corpo de cidadãos especiais, com melhores condições e capacidade para
filtrar os interesses populares e conjugá-los com os objetivos da nação. Opera aqui a idéia liberal de que

6 Pelo mandato imperativo, ou direito de instrução, os eleitos teriam obrigação de cumprir e defender estritamente os pontos do programa
aprovado pelos eleitores no momento da eleição.
62 Fundamentos da Ciência Política

a competição, no caso eleitoral, permite que os melhores se destaquem da massa e exerçam com mais
competência o papel que lhes é solicitado. A distância entre os eleitos e o povo seria, nesse sentido,
salutar. A perspectiva liberal também pondera que a dinâmica dos parlamentos introduz temas e ques-
tões novas em relação aos momentos eleitorais, impondo uma situação que requer respostas imediatas,
nem sempre em acordo com os interesses populares manifestados nas eleições. O importante, segundo
esse ponto de vista, é que o povo tenha o momento da eleição para cobrar explicações dos seus repre-
sentantes, renovando ou não os seus mandatos. A eleição é o momento da prestação de contas dos
representantes em relação aos representados e esse mecanismo dispensa um controle cotidiano e rígi-
do da massa sobre os governantes (MANIN, 1995).
O avanço da democracia liberal ao longo da história recente significou o desenvolvimento
quantitativo dos elementos que já estavam dados na sua matriz. Uma mudança perceptível está na
extensão do direito de voto. O sufrágio foi se alargando até se universalizar, principalmente, como
resultado das pressões da classe trabalhadora e dos movimentos sociais das minorias: mulheres,
negros, migrantes etc. Outra transformação sentida foi a multiplicação das instâncias representativas,
ultrapassando as casas legislativas mais elevadas e chegando ao poder local, ao chefe do executivo
e outras instâncias em que atuam os representantes do povo. Desse ponto de vista, a representação
política é um instrumento importante de proteção tanto contra o risco da tirania das maiorias quanto
diante da ameaça de autoritarismo do Estado soberano.

Texto complementar

Voto aberto e prestação de contas


(COUTO, 2006))
Em seu artigo nesta Folha em 26 de abril último, meu estimado professor Fábio Wanderley
Reis muito propriamente criticou a noção de que os parlamentares devam, sem mais, submeter-se
aos clamores da “opinião pública” em suas decisões. Apontou ele que a defesa contra tais pressões é
que justifica a instituição do voto secreto, conferindo aos indivíduos o direito de decidir livremente
de qualquer tipo de constrangimento. Isso explicaria o direito a decidir em segredo que têm os
cidadãos e, por extensão, valeria também para os parlamentares. É quanto a este último ponto que
pretendo aqui expressar minha discordância.
Fábio Wanderley Reis argumenta que a negação ao parlamentar do direito ao voto secreto
implica o entendimento de que a relação entre representantes e representados se dá com base
num “mandato imperativo”, pois, ao ter de revelar seu voto, o legislador se vê obrigado a fazer
sempre o que, circunstancialmente, desejam os eleitores. Isso não é verdadeiro. A implicação do
voto secreto não é o “mandato imperativo”, mas, sim, a prestação de contas. Ao ter de revelar como
vota, o parlamentar se vê obrigado a explicar a seus eleitores o porquê de suas ações.
A democracia liberal 63

Portanto, muito embora seja política e moralmente correta a suposição de que não existem
razões para que os parlamentares se submetam acriticamente à “opinião pública”, ou a qualquer tipo
de clima de opinião reinante, daí não decorre que não devam se submeter ao escrutínio público de
seus atos. E isso ocorre porque, ao contrário dos eleitores, os parlamentares não agem em causa
própria, mas em causa pública. Justamente por não serem detentores de um mandato imperativo,
são livres para decidir da forma que considerarem adequada; todavia isso não implica que possam
decidir de forma irresponsável, sem ter de prestar contas da forma como agem.
Além desta distinção fundamental entre eleitores e eleitos -uns expressam sua própria vontade,
outros expressam uma representação da vontade alheia- , há também uma importante diferença
entre ambos relativa ao poder de cada um. Enquanto os cidadãos, individualmente, possuem uma
parcela diminuta de poder, que justifica sua proteção contra todo tipo de pressão que sobre eles
se possa exercer no momento do voto (de seus empregadores, familiares, chefetes locais etc.), os
parlamentares são detentores de uma parcela do poder de Estado.
Portanto, imbuídos que estão de uma parcela da autoridade pública -que, no limite, se exerce
pelo recurso à coerção-, os legisladores não são tão frágeis a ponto de necessitarem de resguardo
contra pressões de poderosos para o exercício de seu próprio papel no Estado. E, se algum tipo
de intimidação física houver, a solução para tal problema passa pelo oferecimento de garantias de
proteção, não pelo exercício oculto da atividade representativa. Se, no passado, se defendeu o voto
secreto para a cassação de parlamentares usando do argumento de que era necessário proteger os
legisladores-julgadores das pressões, o equívoco já se fazia presente desde antes.
Por fim, cabe levar em conta o problema do corporativismo. O voto secreto pode de fato ser
um elemento que livre o parlamentar judicioso tanto das pressões de seus pares para que punições
não ocorram como da “sede de sangue” por parte da “opinião pública”. Mas isso ocorre ao custo,
já apontado, de tornar irresponsável a representação. Representantes que não sejam capazes de
justificar publicamente o porquê de seus atos não estão à altura da responsabilidade que receberam
de seus eleitores e, neste caso, o melhor mesmo seria transferir do Legislativo ao Judiciário o
julgamento sobre a quebra de decoro. Todavia, estaríamos aí reconhecendo a incompetência dos
parlamentares para tomar decisões difíceis e apresentando como solução para isso a transferência
delas para um corpo supostamente mais competente - os tribunais. Será isso bom para a democracia?
Não se estaria criando um grave precedente para outras situações, já que juízes não são eleitos?
Vale lembrar que ao menos em um dos casos recentes de parlamentares acusados de
envolvimento no mensalão, o de Sandro Mabel (PL-GO), o parecer do Conselho de Ética foi por sua
absolvição. Contra ele não havia outras provas que não a acusação de uma deputada estadual goiana.
Diante da falta de evidências, o relator de seu processo não encontrou dificuldades em justificar
seu parecer pela absolvição do deputado, o que acabou por se concretizar na votação aberta dos
membros do Conselho de Ética. Nesse episódio, ninguém falou em “pizza”, pois era perfeitamente
justificável publicamente que todos agissem como agiram, sem ter de esconder-se de seus eleitores,
da mídia ou da “opinião pública”.
Creio que temos aí um bom exemplo de como é possível conciliar transparência e
responsabilidade pública dos representantes sem que isso acarrete o risco de uma tirania das
opiniões generalizadas. Por que não expandir a experiência?
64 Fundamentos da Ciência Política

Atividades
1. Por que não é fácil definir democracia?

2. Por que os liberais não concordam com a definição de povo como um “todo orgânico”?

3. Como a democracia espera nos salvar da violência?


A democracia liberal 65

Gabarito
1. Porque existem múltiplas experiências associadas à palavra democracia, até mesmo a palavra
povo ganha sentido diferente conforme a perspectiva política que se adota.

2. Porque eles temem que esse “todo orgânico” submeta o indivíduo, impedindo a liberdade
individual.

3. Valorizando os meios, as regras da disputa política, e não os fins. São regras importantes para
isso: a necessidade de os governantes justificarem seus atos diante do povo e a possibilidade de
a minoria virar maioria.
A democracia direta
A crítica à “civilização” moderna
Se a democracia liberal tem como principal característica a preocupação de proteger o indivíduo
frente ao risco de um poder absoluto, seja ele do Estado ou do coletivo; os pensadores que retomam
a tradição democrática da Antiguidade grega, ao contrário, elevam o corpo de cidadãos a uma
categoria hierarquicamente superior aos indivíduos isolados. A defesa da “democracia direta” inverte
as preocupações da democracia liberal em mais um ponto: a reivindicação que essa perspectiva
apresenta é, justamente, da participação direta e contínua dos cidadãos na instituição legislativa. Não
se trata, como definido pelo liberalismo, de demandar garantias a um indivíduo cujo comportamento se
caracteriza pelo distanciamento em relação às questões políticas. A retomada moderna da democracia
direta imagina um cidadão que reconhece a si próprio na justa medida em que se integra ao expediente
coletivo, em que de constrói os destinos da sociedade. Ao povo, principal ator político da democracia
direta, não se pede uma atitude defensiva diante do poder, mas, ao contrário, que assuma a sua condição
de agente da soberania.
Rousseau (1712-1778) é o pensador que transporta a concepção de democracia direta para a
modernidade. Um dos nomes que inspirou intelectualmente a Revolução Francesa (1789), Rousseau
compõe o quadro teórico dos “jusnaturalistas”, ou seja, ele também faz um exercício de especulação
filosófica e imagina o processo lógico de transição de um cenário natural para um mundo social. Como
outros pensadores, ele entende que a passagem do “estado natural” para o estágio social se deu através
de um contrato. Mas a antropologia de Rousseau é diferente daquela apresentada por Hobbes. Para
o pensador suíço, expoente do Iluminismo, o homem é bom por natureza e nesse raciocínio ele se
aproxima de Locke. Uma aproximação, diga-se, apenas pontual, pois, num sentido totalmente oposto
ao pensador liberal inglês, Rousseau vai considerar que a sociedade é quem corrompe a bondade do
homem natural.
Rousseau teve uma origem humilde e uma infância sofrida. Perdeu a mãe ao nascer e ficou órfão
de pai aos dez anos de idade. Diferente de outros intelectuais com o mesmo perfil, ele não se sentia
bem nos espaços da elite e assumiu uma perspectiva crítica radical em relação à chamada “civilização”.
Posição desconcertante, tanto mais pelo momento de otimismo que vigia na sociedade européia
diante das conquistas da razão, especialmente no campo técnico e econômico. Frente aos avanços da
68 Fundamentos da Ciência Política

sociedade burguesa, que valoriza a liberdade individual e a propriedade, Rousseau inova ao considerar
que o “contrato social”, tal qual foi celebrado e renovado, não possibilitou a verdadeira emancipação
do homem; muito ao contrário, legalizou a desigualdade, instaurou a dominação e o egoísmo no lugar
onde existia a liberdade natural e a bondade.
Ao denunciar o que considera um “falso contrato social” e as contradições daquilo que seus
contemporâneos chamavam de “civilização”, Rousseau vai contra o espírito otimista da sua época. Em
sua postura crítica, ele não poupa a ciência e nem a arte. Na sua visão, a forma como cientistas e artistas
atuavam, envolvidos pela vaidade e buscando apenas a glória pessoal, não contribuía para a libertação
dos homens; muito ao contrário, reforçava as condições de perpetuação da corrupção dos espíritos. Para
ele, era preciso resgatar as virtudes, o amor ao saber e a busca da dignidade humana em todas as áreas.
Uma vez que o ser humano é bom por natureza, o desafio seria contribuir para que o homem recuperasse
esse saber sobre sua essência, tarefa a ser abraçada pela ciência, pela filosofia, pela educação, enfim,
pela arte, desde que comprometidas com a verdade e com a liberdade. O empreendimento urgente,
segundo Rousseau, era fazer o homem reencontrar-se consigo mesmo, com a sua essência boa, ou seja,
fazê-lo conhecer a si próprio.
Sem se iludir com os ganhos materiais e técnicos que o capitalismo demonstrava naquele
momento, o filósofo suíço retoma uma tradição preocupada com a ética no pensamento, na cultura e
na organização da sociedade. Depois do esforço empreendido por Maquiavel e Hobbes para separar a
política da moralidade cristã, Rousseau identifica a necessidade de encontrar uma ética para a política.
De uma perspectiva normativa, então, preocupa-se em recuperar um compromisso coletivo, valorizar a
igualdade e restaurar um espírito social. Rousseau formula sua crítica ética ao progresso e à civilização
que, segundo ele, reproduzia as desigualdades e as relações hierárquicas.

A propriedade como fonte do mal


Para Jean-Jacques Rousseau, foi equivocada a interpretação dos pensadores que consideraram
o homem “mau” por natureza. Pela ótica rousseauniana, esses intérpretes foram iludidos ao focalizar o
homem já civilizado e tomá-lo como homem natural. Nesse sentido, o homem cruel, mesquinho,
traiçoeiro e violento representado no pensamento de intelectuais como Maquiavel e Hobbes não era
o personagem do “estado de natureza” e sim o sujeito já modificado pelo mundo social. Não seria,
portanto, a natureza humana que pediria a força de um poder absoluto para instaurar a ordem, mas o
homem construído por uma civilização corrompida.
Num “estado de natureza”, conforme a interpretação de Rousseau, o homem é cordial, amistoso,
temeroso e, até mesmo, inocente. Ainda que lance mão da especulação filosófica para construir seu
edifício lógico, em alguns momentos, o patrono da Revolução Francesa chega a mencionar os relatos
etnográficos sobre os índios das Américas como exemplos da boa essência humana. O “bom selvagem”
do século XVIII fornecia a Rousseau a evidência concreta do espírito altruísta e dócil que caracterizaria
o homem em suas condições naturais. Mas, se a convivência natural entre os homens era tão boa e
equilibrada, o que teria causado o rompimento com esse mundo? Por que os indivíduos aceitaram a
mudança radical gerada com o advento da sociedade?
A democracia direta 69

Rousseau considera que as relações entre os homens no seu estágio natural foram se tornando
paulatinamente mais complexas. Ao lutar pela sobrevivência, enfrentando todo tipo de dificuldades que
o início de uma caminhada oferece, o homem foi se tornando orgulhoso dos seus feitos e se percebendo
como diferente e superior ao resto do reino animal. Nessa trajetória, o homem se reconhece como
indivíduo, ou seja, destaca-se da comunidade, do todo, e vai em busca dos seus interesses pessoais. É
o processo de aumento da população que conduz à separação da humanidade em grupos sociais e à
divisão do trabalho, primeiro entre o gênero masculino e feminino, depois entre adultos e crianças, e
assim por diante. A discórdia em torno da produção e apropriação dos bens não tarda a aparecer e com
ela a necessidade de leis e regras cujo fundamento seria a instauração da paz. Nesse contexto, as leis até
produzem alguma ordem, mas seu efeito é sancionar a exploração e a dominação. Um elemento, então,
foi central nesse processo de perda da docilidade natural em favor do conflito que marca a civilização:
a propriedade privada.
É famosa a passagem da obra de Rousseau (1978, p. 259) sobre a origem da desigualdade entre os
homens, quando ele pondera sobre o efeito que o advento da propriedade teve na geração de conflitos
e no aprisionamento do homem:
O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de
dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras,
assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou en-
chendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “Defendei-vos de ouvir este impostor; estarei perdidos
se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém”.

O advento da propriedade, então, foi um acontecimento-chave para o fim do “estado de natureza”


equilibrado e a inauguração da sociedade civil conflituosa. O conflito gerado pela propriedade é que
solicita um conjunto de códigos e leis injustos, pois são fundados na desigualdade e voltados para a
sua reprodução. Logo, o contrato criador da civilização, nessa sua primeira versão, não perpetuou a paz
e harmonia. O acordo entre os indivíduos não conduziu a humanidade a um patamar superior. Nesse
estágio, o contrato responde à necessidade de justificar e preservar a existência absurda da proprieda-
de privada e, por consequência, da desigualdade. Para Rousseau, o contrato que tem como motivação
a propriedade só pode ser falso, pois as leis dele resultantes não atendem à vontade coletiva e sim ao
interesse privado dos proprietários. O efeito desse contrato, pondera Rousseau, só pode ser a explo-
ração e a dominação imposta pelos proprietários contra os “sem-posses”. Quanto mais o homem se
distanciou do “estado de natureza”, mais se viu envolvido na teia da desigualdade caracterizada pelo
poder dos ricos e pela servidão dos pobres. Imaginando colaborar com a construção de um caminho de
paz, segurança e liberdade, os homens mais simples foram envolvidos pelos espertos e, ao aceitarem o
contrato fundado no princípio da propriedade, rumaram para sua própria prisão.1
Ainda que Rousseau considere o consentimento como elemento chave para a legitimação do
poder e critique o Estado autoritário, sua argumentação, com ênfase na igualdade e não na liberdade
individual, o distancia da posição tipicamente liberal; distância que só aumenta se considerarmos o seu
ataque frontal à propriedade privada, elegendo-a como a grande responsável pela corrupção dos bons
princípios do homem selvagem. Mas Rousseau não ataca a civilização do contrato liberal com o objetivo
de defender o retorno a um passado romântico. Para ele, o homem não tem como escapar do social,
mas pode sim recriar a sociedade, refazer o pacto de maneira efetivamente legítima. E o fará na justa
medida em que recrie a si próprio reencontrando a sua boa essência perdida.

1 Não por acaso Rousseau é considerado um dos precursores do pensamento socialista, a defesa da igualdade social e a crítica à propriedade
privada serão pontos valorizados pela esquerda a partir do século XVIII.
70 Fundamentos da Ciência Política

O pacto da igualdade
A principal preocupação de Rousseau era identificar as condições que pudessem gerar o novo
pacto, agora sim legítimo e libertador, pois era fundado no princípio da igualdade. O verdadeiro contrato
social, gerador da emancipação, deveria resultar de uma alienação total dos indivíduos em favor da
comunidade. A fundação da república, que em Rousseau pode ser lida como sinônimo de democracia,
exige o consentimento unânime dos indivíduos e a transferência absoluta dos direitos naturais em favor
do corpo político que se constitui e se torna soberano. A soberania, na perspectiva de Rousseau, não é do
Estado, mas do povo. É a soberania popular que oferece segurança contra a tirania do Estado e contra a
imposição de vontades individuais egoístas, por exemplo, dos proprietários ao coletivo de cidadãos.
O corpo político é mais do que a soma de indivíduos, ele é construído pelo espírito altruísta e
guiado pela vontade geral. Sua soberania é absoluta, ou seja, seus poderes estão acima dos demais, são
ilimitados, indivisíveis, imprescritíveis, inalienáveis e alcançam, até mesmo, a propriedade. Ou seja, se o
coletivo de cidadãos decide confiscar ou abolir a propriedade privada em nome do interesse comum,
estará no seu direito legítimo. É perceptível nessa formulação o princípio de que o interesse social se
sobrepõe ao individual. Lançando mão de uma argumentação mais comum em nossos dias, encontrada
especialmente nas disputas envolvendo a terra rural e a habitação urbana, a propriedade deve cumprir
uma função social antes de satisfazer os interesses privados dos seus proprietários.
No Brasil, a título de exemplo, é possível mencionar o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) que na sua luta se utiliza, conscientemente ou não, de um argumento rousseauniano, qual
seja: num país de desigualdades sociais profundas, onde pessoas ainda passam fome, a propriedade
latifundiária improdutiva não cumpre a sua função perante a comunidade e pode, legitimamente, ser
desapropriada em nome dos interesses sociais. Por consequência, seria papel do Estado obedecer ao
interesse social desapropriando as terras improdutivas e repassando as mesmas para os necessitados,
corrigindo, assim, as desigualdades geradas pelo mercado e garantindo a paz social. De outro ponto
de vista, o contra-argumento utilizado pelos proprietários tem uma coloração tipicamente liberal, pois
defende a propriedade como um direito legítimo e inalienável, conquistado pelo trabalho. Sendo assim,
o papel do Estado seria proteger a propriedade assegurando os direitos naturais dos indivíduos. Dessa
forma, o poder público defenderia a ordem fundada no direito, incentivaria o trabalho como fator de
agregação e progresso social e, aí sim, construiria a harmonia.
A formação do corpo político com poderes absolutos, na perspectiva rousseauniana, cria as
condições para a verdadeira liberdade, a única possível, qual seja, a liberdade do indivíduo participar
em igualdade de condições do debate e das decisões públicas, enquanto parte da comunidade. Enfim,
liberdade é a possibilidade de construir coletivamente as leis cujos preceitos deverão ser seguidos por
todos, sem distinção. É livre aquele que está em condições de se integrar ao social. Fica evidente, nesse
enunciado, a dupla condição do povo, ativo e passivo. O povo participa como sujeito na elaboração das
leis e, ao mesmo tempo, deve se submeter a elas em nome da preservação do corpo político.
Diferentes pensadores participaram da construção do princípio da soberania popular ao longo da
Idade Média, inclusive alguns inspirados no liberalismo. Mas Rousseau radicalizou esta concepção. Para
ele, o povo não é apenas a fonte do poder e a população deve exercer diretamente o poder na instância
legislativa compondo efetivamente um corpo político a partir do qual se forma a “a vontade geral”. Isso
significa que o povo reunido em assembléia, sem a mediação de representantes, é que elabora as leis
e manifesta a força soberana absoluta. A vontade política, insiste Rousseau, não pode ser alienada, não
deve ser transferida para um representante, pois nesse caso deixa de ser a vontade geral e transforma-se
A democracia direta 71

na vontade de um grupo. Nessas condições, não se observaria o exercício da liberdade pela participação
coletiva na elaboração das leis, mas a dominação de alguns pela condição de impor a sua vontade aos
que abriram mão de manifestar seus interesses diretamente.
A única instância política em que Rousseau admite o expediente da representação é na
administração do Estado, pois, para o pensador, as autoridades do poder executivo não devem ter
qualquer autonomia. O governo deve ser um mero executor das leis e determinações advindas da
assembléia soberana de cidadãos. Por esse motivo, o filósofo suíço não dá grande importância à
discussão clássica sobre as formas de governo. Não faz diferença se à frente do governo encontrarmos
uma pessoa, alguns governantes ou muitos, uma vez que os administradores do Estado não passam
de funcionários a serviço do povo detentor direto da soberania absoluta. O risco de que o governo
se torne autônomo é real, daí a necessidade de uma vigilância rigorosa do corpo político em relação
ao governo.

Um projeto utópico e perigoso


ou uma perspectiva necessária?
Rousseau sofre críticas contundentes, algumas carregadas de conteúdo ideológico, outras pre-
ocupadas em apontar o caráter utópico e, portanto, impraticável das suas propostas. Começando pela
segunda linha de argumentação crítica, o raciocínio é de que nas sociedades modernas, de alto índice
populacional, não seria possível reunir em assembléia todos os cidadãos para que defendam de forma
direta seus interesses a cada momento que uma decisão importante sobre os destinos da coletividade
tenha que ser tomada. Por questões práticas, o único caminho viável, quando a população não vive numa
pequena comunidade, seria a utilização do mecanismo da representação política dos interesses. Nem os
próprios cidadãos desejariam essa participação direta, pois estariam muito ocupados com seus negócios
e interesses privados, preferindo, então, delegar a terceiros, ou seja, aos seus representantes políticos a
prerrogativa de decidir sobre os assuntos públicos.
Para além do problema prático que oferece, a proposta de Rousseau é criticada com mais
contundência por aqueles que consideram indesejável a participação direta do povo nas decisões
políticas. A formulação dessa crítica ao governo popular vem daqueles que não consideram o povo apto
à participação política direta, pois a massa popular não agiria com a razão e teria dificuldades em avaliar
quais caminhos atenderiam ao verdadeiro interesse nacional. Essa tarefa seria desempenhada com mais
eficiência pelos representantes políticos, indivíduos que se destacariam na competição eleitoral pelos
votos dos cidadãos, enfim, uma elite política.
Rousseau também não agrada aos liberais por colocar o coletivo acima do indivíduo e estabelecer
o interesse público como limite à propriedade. Da perspectiva liberal, a proposição rousseauniana
oferece o risco de o totalitarismo da massa esmagar a individualidade.
A favor de Rousseau é necessário argumentar que o seu projeto, se não se mostra realizável na
plenitude, oferece uma importante perspectiva, a partir da qual é possível criticar os limites da demo-
cracia representativa e apontar os vícios da política enquanto empreendimento quase exclusivo das
elites. Rousseau exerce forte influência no pensamento e na prática política contemporânea, por exem-
72 Fundamentos da Ciência Política

plo, quando se aponta a necessidade da ação política popular através de movimentos sociais ou pela
instauração de instituições e práticas participativas, tais como: plebiscitos, referendos, fóruns de deba-
te, conferências populares, assembléias públicas, conselhos gestores de políticas públicas, orçamen-
tos participativos etc. São exemplos que contradizem a rotulação da teoria política de Rousseau como
utópica e demonstram a utilidade filosófica e prática da sua reflexão.
Finalmente, sobre a crítica de que a ênfase na igualdade e no coletivo pode conduzir ao totalita-
rismo das massas sufocando a individualidade, é preciso considerar, em primeiro lugar, que Rousseau
elabora uma reflexão fundada na ética. Ou seja, o bom funcionamento do corpo político exige que os
homens reencontrem a sua essência boa. Não por acaso, Rousseau investe boa parte da sua análise no
tema da educação. A instituição educacional seria fundamental para formar um espírito social no indi-
víduo, sem o qual a “vontade geral” não tem como se constituir. Rousseau argumenta, inclusive, que a
vontade da maioria não necessariamente corresponde a uma “vontade geral”. É o que acontece quando
essa maioria estiver movida por desejos egoístas e não pelo interesse coletivo. Logo, a vontade geral
não pode resultar no cerceamento da individualidade, pois isso em nada colabora com a sociedade.
Quando Rousseau fala de uma alienação total do indivíduo em favor da comunidade política, se refere
aos aspectos que interessam ao coletivo. Isso significa que a dimensão privada está preservada no pro-
jeto rousseauniano, e que certas escolhas e posturas individuais não interferem na vida coletiva, logo,
não devem ser alvo de decisões do corpo político.
Rousseau se mostra, então, um pensador necessário àqueles que desejam decifrar o mundo con-
temporâneo. A partir da sua teoria política, é possível compreender melhor os problemas do poder quando
seu exercício fica restrito a um grupo específico de homens, uma elite. O inspirador da Revolução Francesa
também nos ensina que a construção de uma sociedade saudável exige um equilíbrio entre a liberdade de
participar da elaboração das leis e a necessidade de obediência às determinações delas advindas.

Texto complementar
Discurso sobre a origem da desigualdade
Jean-Jacques Rosseau
Segunda parte
O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e encontrou
pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos
crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que,
arrancando as estacas ou tapando os buracos, tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos
de escutar esse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra
de ninguém!”. Parece, porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar
como estavam: porque essa idéia de propriedade, dependendo muito de idéias anteriores que só
puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi preciso fazer
muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e aumentá-las de idade em idade,
antes de chegar a esse último termo do estado de natureza. Retomemos, pois, as coisas de mais
A democracia direta 73

alto, e tratemos de reunir, sob um só ponto-de-vista, essa lenta sucessão de acontecimentos e de


conhecimentos na sua ordem mais natural.
O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência; o seu primeiro cuidado, o de sua
conservação. As produções da terra lhe forneciam todos os socorros necessários; o instinto o levou a
fazer uso delas. A fome, outros apetites, fazendo-o experimentar, alternativamente, diversas maneiras
de existir, houve uma que o convidou a perpetuar a sua espécie; e esse pendor cego, desprovido de
todo sentimento de coração, não produzia senão um ato puramente animal: satisfeita a necessidade,
os dois sexos nunca mais se reconheciam e o próprio filho nada mais representava para a mãe logo
que podia passar sem ela.
Tal foi a condição do homem ao nascer; tal foi a vida de um animal, limitada primeiro às puras
sensações e aproveitando apenas os dons que lhe oferecia a natureza, longe de pensar em lhe arrancar
alguma coisa. Mas, logo, surgiram dificuldades; foi preciso aprender a vencê-las [...].
E, assim, o primeiro olhar que lançou sobre si mesmo lhe produziu o primeiro movimento de
orgulho; assim, mal sabendo ainda distinguir as ordens e contemplando-se como o primeiro por sua
espécie, preparava-se já para pretender o mesmo como indivíduo.
Embora os seus semelhantes não fossem para ele o que são para nós, e embora não tivesse
mais comércio com eles do que com os outros animais, não foram esquecidos nas suas observações.
As semelhanças que o tempo lhe pode fazer perceber entre eles, sua fêmea é ele mesmo, lhe
fizeram julgar das que não percebia; e, vendo que todos se conduziam como teria feito ele próprio
em circunstâncias semelhantes, concluiu que a sua maneira de pensar e de sentir era inteiramente
conforme à sua. E, essa importante verdade, bem estabelecida em seu espírito, lhe fez seguir, por um
pressentimento tão seguro e mais pronto do que a dialética, as melhores regras de conduta que, para
sua vantagem e segurança, lhe convinha observar para com eles.
Instruído pela experiência de que o amor do bem-estar é o único móvel das ações humanas,
achou-se em estado de distinguir as raras ocasiões em que o interesse comum lhe devia fazer contar
com a assistência dos seus semelhantes, e as mais raras ainda em que a concorrência lhe devia fazer
desconfiar deles.
[...] Foi preciso, para vantagem própria, mostrar-se diferente daquilo que se era de fato. Ser
e parecer tornaram-se duas coisas inteiramente diferentes; e, dessa distinção, surgiram o fausto
imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que constituem o seu cortejo. Por outro lado,
de livre e independente que era o homem outrora, ei-lo, por uma multidão de novas necessidades,
submetido, por assim dizer, a toda a natureza e, principalmente, a todos os seus semelhantes, dos
quais se torna escravo em certo sentido, mesmo tornando-se seu senhor: rico, tem necessidade
dos seus serviços, pobre, tem necessidade de seu auxílio; e a mediocridade não o põe em estado
de passar sem eles. [...] Enfim, a ambição devoradora, o ardor de fazer fortuna relativa, menos por
verdadeira necessidade do que para se colocar acima dos outros, inspira a todos os homens uma
negra tendência a se prejudicarem mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa quanto, para
dar o golpe com mais segurança, toma muitas vezes a máscara de benevolência; em uma palavra,
concorrência e rivalidade de uma parte, e, de outra, oposição de interesses, e sempre o desejo oculto
de tirar proveito à custa de outrem: todos esses males constituem o primeiro efeito da propriedade e
o cortejo inseparável da desigualdade nascente.
Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/zip/dadesigualdaderousseau.pdf>. Acesso em: 01 ago. 2007.
74 Fundamentos da Ciência Política

Atividades
1. Explique a diferença na concepção de indivíduo entre os adeptos da democracia liberal e da
democracia direta?

2. Na frase “estarei perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a
ninguém”, qual a preocupação central de Rousseau?

3. Quais as principais críticas formuladas ao pensamento político de Rousseau? Quais as respostas a


essas críticas?
A democracia direta 75

4. Com seus colegas de turma assista ao filme: DANTON, O PROCESSO DA REVOLUÇÃO (Danton,
FRA/Polônia 1982). Direção: Andrzej Wajda. Estrelado por Gérard Depardieu. A partir do filme,
discuta com os colegas a ‘presença’ das idéias de Rousseau no processo da Revolução Francesa.

5. Pesquise sobre as idéias socialistas na internet, ou em dicionários de Ciência Política, Ciências


Sociais e Filosofia, assim como em livros introdutórios.

6. Identifique no ideário socialista as influências de Rousseau.


Gabarito
1. Democracia liberal: indivíduo defensivo e distante da política. Democracia direta: indivíduo
participativo e integrado ao coletivo.

2. Preocupação em mostrar que a propriedade não é algo natural, seu surgimento levou à
desigualdade.

3. Críticas: projeto utópico, impraticável; a participação direta do povo na política é indesejá-


vel e perigosa; política é para uma elite; Rousseau favorece o totalitarismo da massa contra o
indivíduo. O projeto de Rousseau possibilita a crítica aos limites da democracia
representativa e do elitismo; o pensamento de Rousseau favorece a participação política popular na
atualidade; sua concepção está fundada numa ética, a recuperação da bondade humana impede
a tirania do coletivo sobre o indivíduo.
O conceito de poder
Uma definição inicial
O poder é um tema bastante rico e controverso. Seu estudo é um desafio necessário, pois as
teorias políticas se baseiam em concepções diferenciadas de poder. Pensadores da Filosofia e da Ciência
Política têm animado o debate sobre as características do poder, sua lógica e seu funcionamento. Para
alguns, o poder é algo a ser vencido, até mesmo extirpado, um mal que corrompe os homens e destrói a
verdade. Outros demonstram que o poder é constitutivo das relações sociais; não deveríamos, portanto,
viver a ilusão do seu fim, mas racionalizar sua aplicação. Enfim, é fácil perceber a complexidade do poder
quando observamos os temas, questões e realidades que a ele se associam, tais como: dominação,
liberdade, Estado, governo, sociedade, resistência, participação, revolução, elite, conflito etc. Antes
de enfrentar esse labirinto de temas, convém definir o sentido da palavra poder, distinguindo-a de
formulações semelhantes, mas que designam outras práticas.
Como nos explica Bobbio (1987), o termo grego kratos significa força, potência. A variação latina
cracia está presente nas mais diversas classificações de formas de governo, assim como em palavras
que indicam práticas associadas à gestão do Estado: aristocracia, democracia, oclocracia, burocracia,
fisiocracia etc. Mas entre força e potência existe um diferença. Potência remete à capacidade de um
sujeito realizar algo, ainda que a expectativa se frustre. O sentido é bastante amplo; dizemos, por
exemplo, que um garoto tem potencial de se tornar um grande jogador de futebol. A efetivação dessa
virtualidade depende de uma combinação futura de determinadas variáveis. É importante salientar que
a idéia expressa nesse exemplo nada tem a ver com o processo político. Por outro lado, quando dizemos
que o dirigente de um clube pode demitir o técnico do time, saímos da esfera da possibilidade abstrata
e entramos na seara das condições concretas para impor uma vontade, mobilizando algum tipo de
força. Diferente do garoto, o dirigente tem acesso imediato a todas as condições para realizar o ato
inscrito na sua “potência”, e isso o faz poderoso. Esse tipo de prerrogativa e os atos por ela provocados
é que interessam ao pensamento político. Qual a principal diferença entre o potencial do garoto e
do dirigente? A especificidade está na capacidade do dirigente em transformar a virtualidade em ato
(LEBRUN, 1981), pois traz consigo algo mais do que o desejo, a força. Essa prerrogativa do dirigente lhe
confere o poder de induzir o comportamento dos outros atores sociais. A força viabiliza ao ator social
passar da potência ao ato concreto.
78 Fundamentos da Ciência Política

É verdade que Aristóteles na Antiguidade, Hobbes e Locke, dentre outros pensadores modernos,
tentaram distinguir o poder político de outras formas de poder levando em consideração a esfera na
qual ele é exercido, os seus beneficiários ou o seu fundamento, ou seja, a fonte da sua legitimidade. Em
resumo, o poder paterno e o poder senhorial ou despótico seriam distintos do poder político, segundo
Aristóteles, por atenderem interesses diferentes. O pai busca o benefício dos filhos, o déspota ou o
senhor atende aos seus interesses próprios e o governante combinaria o atendimento das demandas
dos governados e também suas próprias necessidades (BOBBIO, 1987). Locke, por outro lado, lança
mão do critério da legitimidade para distinguir as três esferas de poder. Segundo ele, o poder paterno
tem um fundamento natural, a condição de gerador é que confere ao pai a ascendência sobre o filho.
O poder do senhor sobre o escravo, por sua vez, tem uma legitimidade baseada no princípio do grave
delito que gerou, como punição, o estado de servidão. Diferente das formas de poder anteriores,
o poder civil teria sua legitimidade fundada no consenso explícito dos cidadãos. Como informa
Bobbio, “trata-se de três formas clássicas do fundamento de toda a obrigação: ex natura, ex delicto, ex
contractu” (BOBBIO, 1987, 79), ou seja, o poder opera sobre bases distintas em cada caso: natural, por
delito e contratual.
Em que pese o esforço desses pensadores, acrescenta Bobbio, a distinção entre as formas de
poder opera, nesse caso, no âmbito dos valores. Ou seja, a argumentação apresentada por Aristóteles e
Locke, entre outros, ocupa-se em pensar “como deveria ser” cada forma de poder, desocupando-se do
exercício real do poder. Essa postura é pouco explicativa quando observamos autoridades do poder civil
se comportando como pais ou déspotas diante dos cidadãos. Diante dessa dificuldade, outro critério
aparece como fundamental para caracterizar o poder civil. O conceito de soberania, que aos poucos foi
sendo associado ao Estado, emerge como elemento diferenciador. O Estado é visto como a instituição
que concentra o poder de exercer a força física sobre uma população dentro de um determinado
território. Essa prerrogativa é que será considerada, por muitos autores, a característica distintiva do
poder civil frente aos demais poderes.
No campo da teoria política moderna, a força desempenha um importante
papel na caracterização do poder. Vejamos uma definição clássica que opera
nesse registro: “Poder significa toda oportunidade de impor sua própria
vontade, no interior de uma relação social, até mesmo contra resistências,
pouco importando em que repouse tal oportunidade” (WEBER, 1971, p. 219).
Max Weber (1864-1920) associa, nessa definição, poder a força ao utilizar
os termos “imposição” e “resistência”. Poder, para esse pensador alemão, é
justamente a explicitação de um comando, de uma ordem, que um ator dirige
a outro na expectativa de encontrar a obediência. A combinação de ordem
Max Weber.
e obediência nos conduz ao campo do poder, ou seja, da dominação que se
expressa nessa possibilidade de uma ordem ser cumprida por um ator ou um grupo de atores sociais
em resposta a uma força explícita ou implícita. Weber complementa sua reflexão ao distinguir
o poder legítimo, em alemão herrschaft, do simples exercício de força, Macht. O poder político,
portanto, não se caracteriza pela ação coercitiva o tempo todo, e o desafio político é, justamente, a
construção da legitimidade da autoridade. Nesse sentido, a eficiência do poder é alcançada quando
a obediência resulta da disciplina, ou seja, devido ao alto grau de incorporação das atitudes.
A resposta ao comando é rápida, simples e automática, enfim, sem maiores gastos de energia.
O conceito de poder 79

O exercício do poder
Mas o que é o poder? O poder expressa a posse de meios poderosos? O poder resulta de atributos
pessoais? Ou o poder é um jogo de ação e reação entre os homens?
É possível classificar os pensadores políticos, quanto à teoria do poder, em três grupos, conforme
a resposta que eles apresentam às questões acima formuladas: os substancialistas, os subjetivistas e os
adeptos da teoria do poder relacional (BOBBIO, 1987). No primeiro grupo, o substancialista, o ponto de
vista mobilizado é de que o poder é uma substância, um bem, um conjunto de elementos externos ao
homem. Isso significa que os homens que se apropriam desse bem adquirem poder frente a outros que
não têm acesso aos recursos poderosos. O poder é, portanto, um meio de que alguns se apropriam para
obter um determinado fim. A substância que confere poder varia de acordo com o contexto histórico.
É possível mencionar, a título de exemplo, que na Pré-História alguns grupos levaram vantagem sobre
outros ao descobrirem como produzir o fogo. Noutro momento da história, a supremacia foi conferida
aos que domesticaram os cavalos. Outros elementos se associam à condição de poder, conforme a
situação: a inteligência, a riqueza econômica, os símbolos religiosos, as armas etc.
Hobbes é um pensador que se utiliza da concepção substancialista de poder. Nesse sentido, o
poder soberano se caracteriza pela concentração dos meios, leia-se a força, numa pessoa ou assembléia,
com o objetivo de comandar o conjunto da sociedade. A concepção substancialista enfatiza o caráter
vertical e assimétrico do poder. Ou seja, a ação do poder é hierárquica, aqueles que o detêm estão acima
dos demais e sobre eles exercem uma persuasão para obter o comportamento desejado. A hierarquia
entre os agentes supõe também uma unilateralidade, a ação do poder tem um vetor único, do agente
A para o receptor B. Outro aspecto sublinhado por essa perspectiva é a coerção, ou seja, o poder opera
fundamentalmente pela força que um exerce sobre o outro, ainda que essa força não necessariamente
seja traduzida pela violência.
Próximo ao olhar substancialista existe a teoria do poder de soma zero. Ou seja, se o poder se
materializa pela posse de uma substância, a condição diferenciada entre dominantes e dominados
se estabelece na justa medida em que a aquisição e a apropriação de poder por um representa que
outro se tornou desprovido dos meios poderosos. Nesse caso, “o poder é uma soma fixa, tal que o
poder de A implica o não poder de B (LEBRUN, 1984, p. 18). A teoria do poder de soma zero associa-se
à percepção de que a escassez de bens materiais e simbólicos é responsável pela geração de conflitos
sociais e dominação. Mas é preciso atentar para o fato de que essa escassez não é natural e sim produzida
socialmente. Conforme analisou Max Weber, ainda que em certas circunstâncias a natureza ofereça
o suficiente para a satisfação de todos os homens, alguns irão se apropriar de algo mais, gerando a
escassez, o conflito e a dominação. Desse modo, o próprio poder é um bem escasso, disputado pelos
homens, apropriado por uns em detrimento de outros.
Alguns pensadores criticam o ponto de vista substancialista, pois a partir dele não seria possível
apanhar as nuanças do jogo de poder, por exemplo, em sociedades democráticas. Numa democracia, o
poder não operaria, fundamentalmente, na lógica da força e nem estaria concentrado e sim distribuído.
Ainda que a concepção de poder, como algo que se possui, não seja otimista quanto à superação
da dominação, é preciso reconhecer seu realismo. É bastante convincente a leitura de que, ao longo
da história, predominou o exercício de um poder que foi apropriado pelas elites que se impuseram de forma
vertical sobre os “sem poder”. De todo modo, fica evidente o caráter controverso do conceito de poder.
80 Fundamentos da Ciência Política

Uma segunda resposta sobre as características do exercício do poder conduz à teoria subjetivista.
Segundo esse ponto de vista, o poder não é um bem externo ao homem e disponível para sua aquisição.
A forma mais adequada de entender o poder, então, é considerá-lo um atributo de determinados seres
humanos, uma capacidade, uma prerrogativa que os coloca em condição de influenciar o comportamento
dos outros homens. Locke é um dos intérpretes que entende o poder desse modo. Nas sociedades, ao
longo da história, determinados homens demonstraram certos atributos, certas competências que os
credenciaram frente aos demais, à ocupação de posições de poder. Força, inteligência, astúcia, eficiência
etc. são, a partir desse olhar, atributos subjetivos que ganham objetividade ao serem reconhecidos e
referendados pelo coletivo. Esse entendimento é coerente com a perspectiva liberal, segundo a qual
a competição entre os indivíduos possibilita que os mais aptos se destaquem e ocupem as posições
hierarquicamente superiores.
A concepção subjetivista nos aproxima da teoria do poder apresentada pelo
sociólogo norte-americano Talcott Parsons (1902-1979). Parsons adota uma visão mais
amena sobre o poder que opera na sociedade moderna, partindo da distinção feita
por Weber entre força e poder legítimo, mas reduzindo em demasia o componente
força na teoria do poder. Sendo assim, Parsons não reconhece o papel importante que
a coerção desempenha mesmo em sociedades ditas democráticas (LEBRUN, 1984).
Talcott Parsons
Para o sociólogo norte-americano, o que possibilita o ordenamento da vida coletiva,
ao menos nas sociedades democráticas, não é, fundamentalmente, a relação de mando e obediência,
caracterizada pela verticalidade e pela coerção, e sim fatores como a tradição, os costumes e as crenças.
A construção do consenso, em torno do interesse comum, é o papel da autoridade e o fundamento do
poder. Parsons (1983, p. 24) enfatiza na sua análise das relações de poder a legitimidade e a confiança.
Nas suas palavras, poder
[...] é uma capacidade generalizada de garantir a execução de compromissos obrigatórios assumidos por
unidades de um sistema de organização coletiva, quando as obrigações são legitimadas com respeito à sua
relação com metas coletivas e quando, havendo recalcitrância, existe a garantia de cumprimento através de
sanções situacionais negativas – qualquer que seja a agência real incumbida dessa garantia.

Sua exposição sobre o poder denota uma ênfase nos compromissos mútuos que impediriam aos
detentores do poder de exercê-lo, no sentido de impor uma vontade particular aos demais. A autoridade
estabelece-se, no seu modo de entender, pela competência demonstrada e confiança adquirida junto
à coletividade; tratar-se-ia de uma autoridade cuja legitimidade repousaria no atendimento do bem
comum. Na sua definição, Parsons chega a mencionar “sanções negativas”, leia-se coerção, mas para
ele esse elemento não é central na definição do poder, ao contrário, o recurso a esse tipo de força seria
exceção no exercício da autoridade. Aliás, Lebrun olha criticamente essa abordagem de Parsons, pois
ela dissolve o poder na autoridade (1984). O campo dessa definição seria restrito a algumas sociedades
ocidentais, e não caracterizaria, portanto, o exercício do poder num sentido mais amplo. Mas mesmo
nessas sociedades ficaria difícil avaliar se a aceitação das regras se deve à confiança dos indivíduos nas
autoridades competentes, ou ainda devido ao aguçado senso coletivo que governantes e governados
manifestam. O cumprimento das regras pelos cidadãos seria mesmo o resultado do reconhecimento de
cada um nas leis que ajudaram a elaborar através da eleição dos seus representantes? Ou ao contrário, a
obediência aos princípios legais estaria baseada no temor da punição? Lebrun é muito feliz ao utilizar o
exemplo do súbito corte de energia elétrica que ocorre eventualmente nas grandes cidades e a onda de
transgressões dele resultante. Para esse pensador, fortemente inspirado em Hobbes, a ordem social não
advém de um poder fundado na autoridade e no consenso, mas resulta da ameaça coercitiva, pois muitos
cidadãos quando se vêem livres do controle não hesitam em transgredir as regras (LEBRUN, 1984).
O conceito de poder 81

Uma terceira forma de entender o exercício do poder é aquela que o vê como relacional. A
característica fundamental do poder, a partir dessa perspectiva, seria a relação entre os atores no
sentido de que um obtém sucesso ao provocar um comportamento no outro, o qual não aconteceria
sem essa intervenção. Esta é a formulação de Robert Dahl (1915-*) (DAHL, 1988) que correlaciona poder
e liberdade, ou seja, o exercício do poder de um sujeito sobre outro limita a liberdade deste que sofre
a ação. Se alguém tem poder, numa relação, implica que o outro tenha sua liberdade restringida; do
mesmo modo, se alguém goza de liberdade, o efeito é o não-poder do outro. Dessa perspectiva, é possível
pensar que o poder opera na forma de um jogo, nunca se impõe de maneira unilateral. A ação de poder
supõe sempre a resistência em algum grau; então, a assimetria nunca é definitiva e a tensão caracteriza
as relações de poder.
Fica evidente, a partir da concepção de poder relacional, que o homem é
sujeito e, ao mesmo tempo, objeto do poder. Sendo assim, o poder não resultaria da
posse de alguma substância, mas da ação de homens sobre outros homens. O acesso
a determinados bens pode até viabilizar uma relação de poder, mas não define a sua
essência. Um exemplo utilizado pela literatura nos indica que alguém com muito dinheiro
pode ter maior facilidade de induzir o comportamento do outro, mas, se o outro não
Robert Dahl tiver disposto a agir segundo a vontade alheia por dinheiro nenhum, a relação de poder
não se instala. Logo, o fundamental não são os meios materiais do exercício do poder e
sim a relação de convencimento que se estabelece, ou não, entre dois atores sociais (STOPPINO, 1993).

O poder legítimo
A capacidade de convencimento sobre o outro no campo da política não está assentada, necessa-
riamente, na violência. Aliás, o desafio da política é conseguir êxito na indução do comportamento sem
a necessidade do recurso extremo à coerção física. Esse poder que conquista a obediência deixando em
segundo plano o uso da violência, a posse de bens materiais ou o hábito dos súditos deve ser entendido
como dominação legítima ou como o exercício do poder de autoridade. No campo do estudo político,
Max Weber elaborou uma classificação que compreende três tipos puros1 de dominação legítima: o de
caráter racional, o baseado na tradição e aquele fundado no carisma (WEBER, 1991).
O exercício do poder legítimo de caráter racional tem como agente a autoridade legalmente
constituída; é o poder legal encontrado nas sociedades modernas. Sua base é a aposta no ordenamento
jurídico, que submete a todos em igual grau. As autoridades, tanto quanto os cidadãos, obedecem aos
princípios legalmente instituídos. O fundamento legal é o pacto entre os membros da sociedade e
o exercício da autoridade é racional, ou seja, justifica-se pela busca de um fim objetivo: o interesse
comum. O ordenamento jurídico que todos devem acatar é impessoal e a execução do poder se faz
por meio de um corpo de funcionários selecionados pela competência e denominado “burocracia”. A
pretensão moderna é abolir a dominação, uma vez que os cidadãos não obedecem ao poder pessoal do
outro e sim à autoridade juridicamente estabelecida. Um complicador desse projeto é o acesso desigual
aos recursos disponíveis para acessar os cargos de poder.

1 Weber agrega o termo “puro” aos tipos de legitimidade, pois entende que a classificação é ideal e, como tal, deve servir como ponto de
partida para as análises empíricas. Os tipos “puros” não serão necessariamente encontrados na realidade. Nas formas de dominação concreta
é mais provável que se encontre uma mistura de elementos legitimadores do poder.
82 Fundamentos da Ciência Política

A segunda forma de dominação legítima, pela ótica de Weber, é a de caráter tradicional. O exer-
cício do poder, nesse caso, está vinculado à crença arraigada nos costumes sedimentados e herdados.
A administração do poder tradicional tende a ser patriarcal. O agente do poder estabelece um vínculo
de patrão com seus servidores, e deles o mandatário espera fidelidade pessoal. Os dominados assumem
o perfil de súditos. Um exemplo, próximo à nossa realidade, é o do coronelismo que, durante muito
tempo, caracterizou-se como uma forma de poder tradicional instalada no meio rural brasileiro. O pro-
prietário de terras, geralmente pertencente a uma família tradicional, estabelecia vínculos patronais de
mando na sua comunidade.
A outra forma de poder legítimo identificada por Weber é a carismática. Nesse registro, o
mando é reconhecido como válido pelo caráter heróico, sagrado, enfim, por algum valor supremo do
chefe revelado por ações no campo religioso, militar ou no enfrentamento de alguma provação. Os
dominados assumem como dever a obediência ao líder carismático. Os apelos do mandatário são de
ordem emocional, pois ele se vê como portador de uma missão. A contrapartida dos seus seguidores é,
também, o apoio afetivo e inquestionável. Na administração do poder, o líder carismático não valoriza a
competência dos funcionários e sim a presença de homens de confiança. A liderança carismática tem um
caráter radical e preenche amplamente a vida dos seguidores. O exemplo histórico mais contundente
desse tipo de dominação foi, sem dúvida, a exercida por Adolf Hitler na Alemanha nazista.
É importante não esquecer que a caracterização apresentada por Weber é um modelo e não
necessariamente essas formas serão encontradas em toda a sua pureza na realidade. O caso brasileiro
é emblemático. O Brasil se quer democrático, ou seja, tenta operar relações de poder a partir de um
arcabouço legal, fundado na racionalidade jurídica e no princípio da cidadania. Entretanto, nossa
história recente registra a presença de líderes políticos que construíram sua legitimidade com um
discurso carismático. Um exemplo foi a eleição do presidente Fernando Collor de Mello em 1989. No
processo eleitoral e durante o seu curto mandato, o presidente Collor construiu uma imagem de herói
cuja missão era combater os “marajás”2, a inflação e, até mesmo, os políticos tradicionais. É interessante
perceber que seus seguidores mais fervorosos se comportavam como crédulos. Mesmo diante das
denúncias de corrupção e a posterior deposição do presidente, eles continuaram acreditando na figura
do líder herói.
As controvérsias sobre a definição do conceito de poder e o acirrado debate sobre suas
características estão associados, principalmente, à determinação do grau de proximidade que ele
guarda com a coerção. O debate se faz mais acirrado quando se percebe a dificuldade em distinguir
coação de influência, persuasão, ou convencimento. Quando um sujeito convence outro a tomar uma
atitude utilizando-se da manipulação da informação, essa ação é de coerção? A desigualdade de acesso
igualitário às informações também não caracteriza uma situação de dominação? São questões que
desafiam a sociedade dita democrática e sua pretensão de construir o poder como não-dominação.
O tenso projeto democrático constrói o poder como um problema paradoxal. Ao mesmo tempo
que pretende pulverizá-lo entre os cidadãos valorizando a liberdade, solicita a obediência de todos à lei
forjada na competição e no conflito. A democracia acredita que todo cidadão tem um pouco de poder
e isso o faz livre participante do processo de decisão política, mas a lei resulta de um embate em que os
mais fortes politicamente prevalecem. Este é o paradoxo, uma sociedade que se pretende sem poder,
mas que não conseguiu superar a dominação. Talvez a saída seja entender o poder como problema,
valorizando mais o seu exercício do que a sua solução.

2 Marajá era a designação dada aos altos funcionários da burocracia estatal que ganhavam salários exorbitantes para os padrões brasileiros.
O conceito de poder 83

Atividades
1. Qual a diferença entre potência e poder?

2. Qual o significado de disciplina para Max Weber?

3. O que significa dizer: “Parsons dissolve o poder na autoridade”?


84 Fundamentos da Ciência Política

Gabarito
1. Potência representa uma virtualidade e poder traz consigo a idéia da realização iminente de uma
ação, pois poder está associado à força.

2. Disciplina significa a capacidade de impor a vontade numa relação de forma automática, rápida e
simples, devido ao alto grau de incorporação das atitudes.

3. Trata-se de uma crítica a Parsons por não enfatizar a dimensão coercitiva do poder e valorizar em
demasia a idéia de que o poder se exerce a partir de uma autoridade consentida; é quase um não-
poder, enfim, uma não-dominação.
O Estado
Estado e sociedade
O Estado deve ser entendido como um conceito relacional. É diante da sociedade que o Estado
manifesta suas principais características ao longo da história. A advertência vale também para o
enfrentamento das múltiplas abordagens sobre o Estado oferecidas pelas diferentes teorias políticas.
Ao analisar o significado do Estado, um pensador político deve levar em consideração o comporta-
mento dessa instituição frente à sociedade. Essa forma de abordagem permite escapar ao formalismo
jurídico que entende o Estado apenas como a instituição responsável pela ordem legal.
A tradição da Filosofia política aponta uma primeira divisão entre aqueles que vêem o Estado como
instituição que cria a sociedade, e os outros que estabelecem uma relação oposta, ou seja, o Estado é
um produto da sociedade. No primeiro time podemos citar Hobbes. Para esse pensador a relação entre
os homens antes do Estado se caracterizava pela guerra de todos contra todos. Nesse estágio, portanto,
não existia propriamente uma sociedade. O primeiro ato associativo foi o da criação do Estado e, por
conseqüência, levou ao surgimento da sociedade. Dessa perspectiva, o Estado é condição para o social.
De um ponto de vista oposto, Locke, por exemplo, entende que a sociedade precedeu o Estado. Os
indivíduos viviam em relativa harmonia antes de o Estado ser criado e sua invenção teria o objetivo de
preservar a vida social. Para Locke, o social precede o político.
Deixando as polêmicas de lado por um momento, uma definição inicial de Estado pode desenhá-
lo como uma associação política criada para buscar um determinado fim coletivo. O fato de, ao longo
da história, muitos Estados terem se voltado para fins particulares não invalida a definição, apenas
demonstra o seu conteúdo ideal. Os governos que se desviam do objetivo de buscar o bem comum, não
por acaso, foram classificados por Aristóteles como degenerados. A existência dessas práticas não pode
ser negada, mas é admissível considerar que um Estado administrado para fins particulares desvia-se
da sua essência.
O Estado não é uma associação qualquer, uma vez que sua magnitude já o diferencia de outras
tantas associações. O tamanho da instituição estatal revela mais que uma diferença quantitativa, pois o
Estado engloba as múltiplas associações menores, sejam elas políticas ou não. Comunidades políticas
locais, famílias, empresas ou qualquer outro tipo de associação está submetida à hegemonia do Estado
num determinado território. É correto afirmar, então, que o Estado é uma associação política dotada de
86 Fundamentos de Ciência Política

poder soberano capaz de submeter as demais associações dentro de um território com o objetivo de
atender aos interesses coletivos.
A força do Estado sobre as demais organizações é realçada na definição de Max Weber (1864-
1920). Para esse pensador alemão, o Estado caracteriza-se por ser um aparato administrativo que busca,
com sucesso, o monopólio da força física legítima numa sociedade. Nas palavras de Weber (1982, p.
98) “Estado é uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força
física dentro de um determinado território”. Não por acaso, nos dias atuais, a proliferação de grupos que
administram a violência num determinado território, tais como traficantes e terroristas, denotam a crise
de autoridade do Estado na justa medida em que entram em competição com ele.
Ainda que o Estado tenha a pretensão de colocar-se acima das outras associações, a sua relação
com a sociedade é marcada pela tensão. Por um lado, os indivíduos aparecem integrados, num certo
sentido, submetidos ao Estado; e, por outro, ao menos teoricamente, são livres, pois a instituição estatal
existe para atender aos interesses dos cidadãos.
Durante muito tempo, a definição de Estado ficou restrita à sua dimensão jurídica. A instituição
estatal seria responsável, apenas, pela produção e aplicação das leis. Somente a partir do final do século
XIX a dimensão sociológica do Estado começou a ser valorizada. A associação política máxima passou
a ser vista como um tipo de organização social. As características da sociedade viraram subsídios para
a compreensão do Estado. Percebeu-se que a ação do poder estatal também interfere no desenho da
sociedade. Com o avanço das análises políticas, o Estado apareceu como uma organização social com-
plexa e o direito passou a ser visto como um dos aspectos formadores dessa instituição (BOBBIO, 1987).
Torna-se recorrente a percepção de que as diversidades e os conflitos sociais afetam o sistema político,
a ordenação e a racionalidade do Estado.
A bem da verdade, o Estado social surge em oposição ao Estado de direito. Não são duas dimen-
sões que se complementam e sim que se confrontam. O Estado de direito se caracteriza pelo aparato
jurídico de proteção às liberdades individuais diante dos riscos oferecidos pelo poder público. É a forma
de Estado reivindicada pelo liberalismo burguês e seu funcionamento opera na lógica da manuten-
ção da estratificação de classe e numa separação clara entre o aparato estatal e a sociedade. O Estado
social, ao contrário, demanda a participação do cidadão na vida política com o objetivo de corrigir as
desigualdades sociais e oportunizar uma distribuição mais eqüitativa da propriedade. Nesse formato,
a sociedade demanda sua entrada na vida do Estado e reivindica a superação da formalidade jurídica
do aparato estatal. O Estado, especialmente na contemporaneidade, está envolvido por essa tensão
entre liberdade e participação (GOZZI, 1993). Trata-se de um conflito que dinamiza a política e deve ser
equacionado na esfera legislativa.
A aproximação, no último século, entre Estado e sociedade, provocou uma sensível modificação
no perfil dessa instituição. A estrutura jurídica formal, caracterizada pela administração da justiça por
agentes voltados à proteção das liberdades individuais, traduzidas fundamentalmente como liberda-
des dos proprietários de transacionar no mercado, foi alterada. No mínimo o Estado agregou uma nova
estrutura à anterior, voltada para a integração do trabalhador através das políticas públicas e sociais.
O Estado 87

O Estado contemporâneo

Wikipedia.
Famílias esperando pela ajuda financeira.

Após a crise do mercado mundial em 1929. O princípio liberal do laissez faire1 foi substituído
pela idéia da planificação econômica ampla e organizada pelo Estado. O diagnóstico e proposições do
economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946), combinadas com a experiência de solidariedade
da esquerda operária européia, calçaram o caminho para um novo tipo de Estado. Foi o processo que
proporcionou o fortalecimento da instituição política frente ao mercado. Com ele surgiu, por volta da
década de 40 do século passado, o chamado Estado do bem estar social (Welfare State), uma fórmula
que se tornou universal, mas que encontrou seu melhor desenho nos países escandinavos: Suécia,
Noruega e Dinamarca, modelos sempre citados quando o assunto é “Estado social”. Nesse formato, o
Estado tornou-se um importante agente de regulação da economia, criou condições para equilíbrio
e desenvolvimento da produção capitalista, mas também atuou corrigindo as desigualdades geradas
pelo mercado através de políticas públicas e sociais voltadas para o mundo do trabalho.
No campo da teoria econômica, Keynes inovou ao diagnosticar a crise de 1929 como uma crise de
retração da demanda e não de excesso de produção como outros economistas imaginavam. Diante do
diagnóstico, a proposta de retomada do ciclo produtivo incluía a necessidade de o Estado, único agente
com possibilidade de antecipar receita e escapar dos efeitos da crise, recompor a renda do trabalho e
viabilizar o consumo. Isso seria feito através de medidas como contratação de mão-de-obra para frentes
emergenciais, adoção do seguro desemprego, políticas sociais e investimentos na economia. O Estado,
mesmo gerando um déficit, conseguiria reativar a economia recompondo as condições de demanda
prejudicadas pela exploração do trabalho imposta pela ação do livre mercado. As propostas keynesianas
eram de caráter conjuntural, mas tornaram-se estruturais; como conseqüência, o déficit público tornou-
se um elemento permanente nesse tipo de Estado.2
O advento do Welfare State, para usar a denominação na Língua Inglesa, representou uma
mudança significativa no mundo político. O Estado deixou de atender prioritariamente à reprodução
do capital e se viu obrigado a reconhecer o trabalhador como cidadão. Os riscos apresentados pela crise
econômica deslocaram a perspectiva da burguesia, mas para o centro do espectro político; o liberalismo
no seu formato mais puro foi deixado de lado. O princípio do Estado forte e regulador da economia,
em substituição à tese do livre mercado, foi aceito por amplos setores da sociedade. No campo de

1 Princípio segundo o qual o mercado seria capaz de equilibrar as relações sociais, não sendo necessária a intervenção do Estado no mundo
econômico.
2 O programa de recuperação norte-americano, nomeado new deal e implementado sob a presidência de Roosevelt, exemplifica a regulação
da economia pelo Estado. Keynes, de certo modo, racionalizou a experiência do new deal.
88 Fundamentos de Ciência Política

trabalho, a esquerda operária européia, derrotada pelo nazismo e pelo fascismo, reviu algumas de suas
posições. A questão operária muda de configuração, deixa a esfera policial e adentra no plano político.
Acontece, ao menos nos países do primeiro mundo, o que alguns autores chamam de democratização da
democracia (OLIVEIRA, 1998). Os principais agentes do mundo econômico, a classe burguesa e a classe
operária, reconhecem-se mutuamente como sujeitos políticos. O Welfare State resultou, na sua origem
européia, de um pacto entre capital e trabalho. A idéia da esquerda, segundo a qual a crise capitalista
levaria fatalmente ao socialismo, foi deixada de lado, assim como a revolução. A proposta de introduzir
princípios socialistas no Estado capitalista venceu a disputa dentro dos partidos de trabalhadores. A
vanguarda operária européia amenizou as críticas às instituições da chamada “democracia burguesa”.
É o momento no qual a esquerda operária européia se organiza em grandes partidos de massa, vence
eleições e participa de governos de coalizão. A classe operária, através dos seus representantes, torna-
se gestora do Estado ao lado dos representantes da burguesia. Os conflitos entre capital e trabalho
não acabam, mas deixam o campo privado da fábrica e ganham o espaço público da arena política. O
equilíbrio entre capital e trabalho durante o período virtuoso do Welfare State3 proporcionou um alto
desenvolvimento para o mercado e, também, ganhos políticos e sociais nunca antes experimentados
pela classe trabalhadora. Foi o período de avanço da previdência e da seguridade social, através de
programas como o seguro desemprego, a aposentadoria programada, saúde e educação públicas, além
de subsídios à habitação, ao transporte etc. Do lado do capital, o Estado impulsionou o desenvolvimento
tecnológico e a produção investindo em infra-estrutura, gastos militares, ciência e atuando em setores
estratégicos via empresas estatais.
O Estado Social representou uma vitória na derrota, tanto para a burguesia, que revisou o
liberalismo e viu o capitalismo avançar sob o comando do Estado, quanto para os trabalhadores, que
conquistaram direitos políticos e sociais, mas abriram mão do caminho revolucionário.
Em países como o Brasil, o Welfare State também se instalou, mas de uma forma simulada. Se esse
Estado tem como características principais ser o resultado de um pacto social e atender por um lado as
necessidades de reprodução do capital e de outro as demandas do mundo do trabalho, em países periféricos,
o alcance das políticas sociais, voltadas para a correção das desigualdades, foi fortemente prejudicado.
Uma das explicações está, justamente, na ausência, ou tímida presença, da classe operária organizada na
construção do Welfare State que, nesses casos, resulta muito mais de práticas populistas do que de avanços
no jogo democrático. A limitação do Welfare State brasileiro pode ser associada também à postura da classe
média que se associou às elites e não às classes populares em momentos políticos decisivos.
Por paradoxal que possa parecer, o sucesso do Welfare State gerou novos problemas e acirrou as
contradições sociais. A partir da década de 1970, o Welfare State deu sinais de crise, representada pela
dificuldade em atender, ao mesmo tempo, as demandas do capital e do trabalho. O avanço tecnológico
proporcionado pela fórmula keynesiana dispensa um grande contingente de trabalhadores das fábricas.
O setor de serviço absorve apenas parcialmente os desempregados. O efeito imediato é o aumento
da pressão sobre os gastos sociais. Do lado do capital há uma exigência cada vez maior por avanços
tecnológicos e, conseqüentemente, mais pressão sobre os cofres públicos. A crise é também um conflito
de legitimidade do Estado que tem dificuldade de justificar o atendimento das crescentes demandas
de valorização do capital diante das reivindicações de manutenção, ou mesmo ampliação dos direitos
sociais num contexto de aumento das desigualdades e exclusões. O diagnóstico é de crise fiscal, crise
de legitimidade, crise social, enfim, crise do Estado de segurança social.

3 A literatura de Ciência Política indica que o Welfare State, nos países do primeiro mundo, proporcionou um ciclo virtuoso de desenvolvimento
econômico, conquistas políticas e sociais, que durou da década de 1940 até a década de 1970 do século passado, a partir de então, vive-se a
crise desse formato de Estado e a quebra de consenso entre capital e trabalho.
O Estado 89

A concepção marxista de Estado


O marxismo entende que o sistema social divide-se em dois planos, um infra-estrutural, que
compreende as relações de produção, ou seja, a base econômica sobre a qual se ergue; o outro
superestrutural, que compreende o jurídico, o político e o cultural. As instituições políticas, entre elas
o Estado, são situados, então, na superestrutura da sociedade. A relação entre essas duas instâncias
é de determinação da superestrutura política pela estrutura econômica. Ou seja, os fenômenos do
mundo econômico é que explicariam o que se passa no mundo político. A cada momento histórico,
as contradições das relações de produção, as lutas de classe, portanto, condicionam as instituições e
os processos políticos. Isso significa que o Estado não é neutro, ele representa, fundamentalmente, os
interesses da classe economicamente dominante em cada etapa da história.
Ao contrário do marxismo vulgar, entretanto, pensadores marxistas contemporâneos criticam
a leitura de determinação absoluta e automática da dimensão política pela base econômica. Eles
apontam a complexidade dessa relação que é determinante em última instância, ou seja, não
necessariamente dominante em todos os momentos. Isso significa que a esfera política tem uma
autonomia, ainda que relativa, diante das determinações do processo produtivo. Não existe dominação,
assim como não existe revolução, que não seja ao mesmo tempo econômica, política e cultural. Se por um
lado o Estado tende a satisfazer as demandas da classe dominante, por outro ele precisa se legitimar diante
do conjunto da sociedade e os governantes pautam sua ação pelo objetivo de se perpetuar no poder.
Também é preciso considerar que a classe burguesa não é monolítica. As frações de classe representantes
dos setores rurais, comerciais, industriais e financeiros nem sempre estão unidas sob um consenso, o que
torna a disputa política complexa. É possível argumentar, ainda, que as classes nem sempre têm clareza
dos benefícios ou dificuldades que uma política pode trazer para elas. Autoridades políticas competentes
podem vencer resistências a transformações que se revelam de interesse comum, ou de grupos que, de
saída, se viam como prejudicados. Enfim, a relação entre infra-estrutura e superestrutura não é simples
e unívoca, ela evoca também reciprocidade. Como conclusão, essa linha de raciocínio nos indica que a
esfera política goza de uma autonomia, ainda que não absoluta, frente à dimensão econômica.
O Estado, do ponto de vista marxista, desempenhou, ao longo da história, o papel de criar as
condições estruturais e legais para a produção capitalista. Os exemplos são abundantes: ao cercar as terras
no final do feudalismo, obrigando os camponeses a migrarem para a cidade e se somarem ao contingente
de trabalhadores requisitados pela indústria nascente; ou ao prever punições para a vadiagem, instituindo
a carteira de trabalho como forma de controle e organização do mundo produtivo. Nesses exemplos, o
Estado usou a sua força para exigir um comportamento das massas populares favorável ao capitalismo
nascente. Mas, com as transformações históricas proporcionadas pelo advento do Estado social, o jogo de
forças e o papel das instituições políticas sofre mudanças significativas. O Estado passa a ser o responsável
pela mediação dos conflitos entre trabalho e capital, além de garantir a expansão segura do capital nacional
no mercado mundial (GOZZI, 1993). O desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, da tecnologia e o
avanço rumo ao capitalismo monopolista, aumentaram a dependência do capital em relação à ciência e à
técnica solicitando uma presença sempre maior do Estado na economia.
A história do advento do Welfare State, em alguns países, serve como exemplo claro de que,
conforme a conjuntura, a política pode se sobrepor à economia. O surgimento do Estado social não pode
ser creditado como vitória do capital, ainda que não deva ser entendido, tampouco, como realização plena
dos interesses do proletariado. O mais correto é entender que o jogo político entre capital e trabalho levou
a formação de um acordo, gerando um formato institucional com força para submeter a economia, durante
um bom período, ao resultado das negociações políticas (OLIVEIRA, 1998). Um dos fatores indicativos da
90 Fundamentos de Ciência Política

crise do Welfare State é justamente a supremacia que a economia assume diante da instância política. É
um momento de resignação diante do caminho único que a globalização econômica impõe às diferentes
nações. O discurso corrente, contestado por setores da esquerda, é de que as conquistas políticas são
legítimas, mas não podem ser atendidas porque estão na contramão dos processos econômicos necessários
e irreversíveis.
O marxismo, no seu diagnóstico, enfatiza, de todo modo, a contradição e a ruptura ao analisar o
processo político. As dificuldades do Estado em, por um lado, viabilizar a valorização do capital e, por
outro, atender as crescentes demandas do mundo do trabalho, apontariam, não para uma conciliação
politicamente construída, para a complementaridade e equilíbrio pensados pelo funcionalismo4, mas
indicariam o acirramento do conflito. Dessa perspectiva, o conflito e as contradições são importantes,
pois são momentos da transformação histórica, momento, da passagem de um modo de produção para
outro pela ruptura.

Atividades
1. Por que o conceito de Estado deve ser entendido como relacional?

2. De que modo o Welfare State se contrapõe ao liberalismo?

4 Na reflexão política, o funcionalismo é a teoria que entende a sociedade como um sistema global, composto por subsistemas que se
equivalem quanto à importância da função que cumprem gerando um equilíbrio do todo orgânico. O subsistema político, desse ponto de
vista, atenderia as necessidades de estabilidade e conservação do sistema social. Parsons foi um dos idealizadores dessa teoria no campo
político.
O Estado 91

3. O que significa infra-estrutura e superestrutura para o marxismo?

Gabarito
1. A definição de Estado não deve se restringir ao aspecto formal, como Estado de direito. A riqueza
do conceito aparece na relação com o social.

2. O Welfare State é forte e tem uma presença significativa na regulação da economia. O liberalismo
defende um Estado mínimo e um mercado sem regulação externa.

3. Infra-estrutura é a maneira como o marxismo entende o sistema social, composto por uma base
econômica que determina em última instância a superestrutura jurídica, política e cultural.
Partidos políticos
O surgimento dos partidos
Os partidos políticos são agremiações tipicamente modernas. Eles surgem em meados do século XIX
no contexto de avanço da autonomia da esfera política em relação à religião e à moralidade privada.
Os primeiros partidos merecedores de registro na história datam da emergência das democracias
representativas. Uma das características da modernidade política é a construção do consentimento
como fundamento do poder e a participação do povo no processo decisório como garantia de
legitimidade do pacto político. Diante dessas inovações, inaugura-se o problema da relação entre as
elites políticas (instaladas no parlamento e à frente do governo) e o conjunto da população. É o momento
de ampliação dos espaços públicos de discussão e formação do interesse coletivo. Nesse cenário, o
partido aparece como uma instituição que fará a mediação entre o Estado e a sociedade. Seu papel é
interpretar a vontade política do povo e viabilizar a sua implementação no governo.
O processo histórico de reconhecimento do povo como agente político e de institucionalização
da participação popular não foi tranqüilo. Ao contrário, a ampliação do direito de participação política
foi conquistada aos poucos e às custas de lutas intensas. O movimento cartista realizado no início do
século XIX na Inglaterra é emblemático a esse respeito.
Edison National Historical Site.

Linha de produção.
94 Fundamentos da Ciência Política

O “cartismo” representou uma das primeiras iniciativas políticas idealizadas por uma associação
de operários.1 O sufrágio universal encabeçou a lista de demandas contidas na “carta ao povo” redigida
em 1837. Mas essa manifestação exemplifica também o lento processo de transformação dos conflitos
bélicos entre as classes em confronto político institucional. É nesse movimento que o partido ganha
importância como canal de acesso das demandas sociais ao poder político.
O partido político deve ser entendido, então, como uma associação que busca influenciar ou
conquistar o poder, pelas vias políticas, com o objetivo de obter benefícios coletivos para o grupo de
associados, ou mesmo vantagens pessoais para seus líderes (WEBER, 1991). É correto afirmar que a
ampliação da divisão do trabalho, a diversificação dos atores sociais e o acirramento do conflito político
levam à formação de agremiações partidárias mais profissionais, com uma estrutura burocrática racional
e objetivos voltados para o interesse coletivo. O inverso também é verdadeiro, ou seja, sociedades
menos diversificadas, ou com o campo de participação política restrita, seletivo, tendem à formação de
partidos cujos agentes se agregam por laços pessoais e buscam interesses particulares.
Um enfrentamento teórico e político que contribuiu para o surgimento dos partidos e a definição
do seu papel institucional foi aquele em torno da qualidade da participação do povo. O debate sobre a
relação entre o parlamento e os eleitores inaugura a questão do lugar ocupado pela população diante
do governo e do Estado. A discussão sobre as características da representação política se desenvolveu
ao longo do século XVIII e invadiu as primeiras décadas do século XIX. As idéias de Rousseau eram
mobilizadas no sentido de conferir ao povo amplos poderes e o maior controle possível sobre o
processo de decisão política. Rousseau assume uma postura rigorosa ao considerar que a vontade
política não pode ser alienada, ou seja, não pode ser transferida do povo para seus representantes. Esse
ato significaria a própria dissolução da vontade popular e inviabilizaria a democracia. Para os adeptos
desse ponto de vista, todos deveriam participar diretamente das decisões políticas. Ou a democracia
seria direta ou não se realizaria.
Contra a perspectiva rousseauniana, diferentes pensadores e lideranças políticas implementam o
princípio do governo representativo de tipo parlamentar. A fórmula da representação política irá abrir
espaço para a formação dos partidos e reservará a eles um papel, ainda que restrito, na mediação entre
eleitores e eleitos. O modelo representativo parlamentar reconhece a importância da participação popular
no processo político mas, ao mesmo tempo, impõe limites à presença do povo nas decisões políticas.
Sendo assim, adota o princípio de que os representantes políticos devem ser eleitos pelos governados,
mas durante muito tempo o colégio eleitoral teve um caráter seletivo, com restrições à participação de
importantes setores da população: trabalhadores, mulheres, pequenos proprietários etc.
Outra característica da democracia representativa desse período está na manutenção da diferença
de status entre governantes e governados. As eleições de representantes não serviriam para igualar
povo e governo. Ou seja, o governante legitima sua posição nas eleições e não mais no sobrenatural,
mas ele não precisa, necessariamente, fazer parte do povo. O princípio da representação política, nesse
contexto, considera natural e até desejável que os representantes façam parte da elite da sociedade
(MANIN, 1995). Isso não significa que o povo ocupe uma posição subalterna no processo político, pois
seu papel é eleger os representantes e sobre eles exercer certa influência. Daí a importância do partido
político como canal de comunicação entre governantes e governados.
É importante perceber que, no contexto de implantação da democracia representativa, o partido
exerce uma função de mediação, e até mesmo de contenção, do povo na sua pretensão de participar

1 É preciso registrar que o movimento cartista contou, ainda, com apoio de setores descontentes da burguesia.
Partidos políticos 95

diretamente do processo político. Impera, aqui, o ponto de vista liberal, segundo o qual é preciso
garantir canais de manifestação dos indivíduos como meio de protegê-los contra o poder do Estado.
Mais do que isso, a participação popular no cotidiano da política deveria ser evitada, pois seria um
convite ao autoritarismo coletivo. É dessa preocupação que surge o segundo princípio do governo
representativo: os eleitos guardam uma independência parcial em relação aos interesses dos eleitores
(MANIN, 1995). Isso significa que não existe um mandato imperativo2 que pese sobre os governantes;
estes tem relativa autonomia decisória, precisando apenas prestar contas a cada eleição sobre suas
decisões. Confirma-se a limitação do poder dos governados: o princípio adotado é de que a política é
um assunto muito importante e requer capacidades específicas de quem a exerce, e à população cabe
escolher os melhores e fiscalizá-los de longe.
Para que a autonomia relativa dos governantes não se transforme numa oligarquia, o modelo
representativo parlamentar prevê o respeito à liberdade de manifestação da opinião pública que não
pode ser contida pelo Estado. A esse ponto se associa a idéia de que as decisões políticas só podem ser
tomadas após o debate (MANIN, 1995). A efetivação desses princípios solicita a valorização do espaço
público onde informações transparentes circulam e instituições políticas como o partido atuam. O
partido funciona como organizador da sociedade quanto às suas pretensões políticas e contribui para a
legitimação dos representantes.

A tipologia dos partidos


É possível afirmar que a cada contexto histórico corresponde um tipo de instituição partidária. O
nível de desenvolvimento da democracia e o grau de liberdade numa determinada sociedade explicam
o perfil dos partidos em funcionamento e o papel que eles desempenham no jogo político.
No contexto do governo representativo de tipo parlamentar, estava presente o formato partidário
definido pela literatura política como “partido dos notáveis”3. Seu surgimento se dá na Inglaterra, mas
a fórmula, com algumas adaptações, também era encontrada no restante da Europa e nos Estados
Unidos. As próprias características do processo político e eleitoral moldam o partido. No cenário onde
operava o “partido de notáveis”, o nível de participação era bastante restrito. Nesse período, imperava
a idéia de que a tarefa de elaborar leis era complexa e deveria ser exercida por pessoas competentes
e diferenciadas em relação ao conjunto da população. Esperava-se uma relação de confiança entre o
eleitor e o seu representante, ou seja, a escolha eleitoral não se fazia pelas propostas apresentadas, pela
ideologia defendida ou pela identidade de grupo, mas pelas qualidades pessoais do candidato. Isso
conferia ao partido um desenho específico.
A política, no momento do surgimento dos partidos, era atividade restrita a alguns grupos
oriundos da aristocracia e de extratos da burguesia. As primeiras agremiações políticas surgem da
própria necessidade de organizar o processo eleitoral. Muitas vezes foi pela iniciativa dos políticos,
junto aos notáveis, que teve início a formação de grupos voltados para a eleição, seja com a tarefa de
angariar votos, ou mesmo para viabilizar o processo eleitoral arrecadando fundos. O partido de notáveis,

2 Mandato imperativo é aquele em que o eleito deve se limitar à defesa das propostas apresentadas aos eleitores, ou aos planos elaborados
pela sua base. Nesse tipo de mandato o, eleito não tem autonomia parlamentar.
3 Também chamado “partido de comitê” ou “de representação individual”.
96 Fundamentos da Ciência Política

portanto, tinha uma vida efêmera, ligada ao período eleitoral. Os eleitos não formavam uma identidade
com a agremiação. A postura política do deputado era formada dentro do parlamento. Nesse sentido,
ele gozava de uma grande autonomia em relação à agremiação que o apoiou e a seus eleitores. Esse
tipo de partido, formado por um pequeno comitê, é o que predomina ao longo do século XIX num
contexto de severas restrições ao sufrágio e de atividade política institucional restrita (OPPO, 1993).
No final do século XIX e início do século XX, o mundo, e particularmente a Europa, sofre uma
grande transformação. Depois de um período de ebulições revolucionárias que sacudiram o continente
europeu, as massas populares se credenciam à participação da vida política institucional. Os trabalha-
dores trazem para o campo político sua experiência de organização que começou nas sociedades de
apoio mútuo, nos clubes de compras, passando pelos sindicatos e aportando no partido de massa4. É o
momento em que a sociedade reivindica uma participação mais efetiva no processo decisório. Declina
o ideário liberal e as características da vida política se modificam. A conquista de direitos políticos pelas
classes populares, e com eles a ampliação do sufrágio, fez com que a relação entre eleitos e eleitores
deixasse de ser pessoal e fundada na confiança. O desafio apresentado às instituições políticas em geral
e ao partido em particular não é mais o de organizar uma comunidade política de notáveis. Trata-se
agora de viabilizar a participação da massa popular na vida política de cada país.
O partido de massa é um modelo que nasce pelas mãos da esquerda operária de ideologia
socialista. O exemplo típico foi o partido social-democrata alemão de linha revolucionária (OPPO,
1993), mas, diante da necessidade de competir para não perder espaço político, agremiações políticas
conservadoras e mesmo liberais adotaram aspectos desse modelo.
A tarefa do partido de massa é ampla, e, assim sendo, sua presença no cenário político é marcante
e não se restringe ao período eleitoral. O partido deve formar seus próprios quadros, organizar a massa
popular, contribuir para elaboração da sua identidade, desempenhar uma tarefa pedagógica, tanto no
que diz respeito à participação política organizada dos trabalhadores, quanto no aspecto de conscientizá-
los sobre o seu papel histórico. Para vencer esse desafio, o partido torna-se uma organização estável,
autofinanciada, hierarquizada e pautada pela busca de eficiência no preenchimento das suas múltiplas
funções. A rigor, esse tipo de partido ramifica-se e estabelece alianças com outras instituições, como:
sindicatos, cooperativas, organizações assistenciais e meios de comunicação. Essa configuração em
rede contribui para o desempenho das múltiplas atribuições partidárias, especialmente a formação de
uma identidade política e a promoção da integração social das classes populares. O exemplo clássico foi
dado pelo Partido Social Democrata Alemão (SPD).
A gestão do partido é feita de forma centralizada, por um corpo de funcionários competentes,
com dedicação contínua, que operam segundo a racionalidade burocrática. A organização é comandada
pelos dirigentes partidários e conta ainda com a importante participação dos militantes políticos,
especializados na tarefa de mediação entre a cúpula e a massa popular.
O partido de massa tem presença marcante na política. O objetivo de influenciar o poder do
Estado e mesmo conquistá-lo é precedido pelo processo decisório interno ao partido. A estrutura parti-
dária precisa equacionar as disputas internas e viabilizar o debate esclarecido para elaboração dos seus
planos e propostas. Daí a necessidade da formação de comissões, organização de assembléias, reuni-
ões diretivas, consultas às bases, enfim, um conjunto de procedimentos novos e complexos. Diferente
do partido de notáveis, o partido de massa constitui uma força coletiva que controla o mandato dos
representantes eleitos. A própria indicação dos candidatos passa a ser feita pelo partido. Em alguns

4 Também chamado de “partido de organização de massa”, ou “partido de aparelho”.


Partidos políticos 97

casos, na contramão das práticas consagradas na fórmula do “governo representativo”, o partido impõe
um mandato imperativo aos eleitos, que se vêem sob uma rígida disciplina e controle da agremiação
(OPPO, 1993).
O típico partido de massa, com sua estrutura rígida e voltada para a formação política da
população, perdeu seu ímpeto à medida que as classes trabalhadoras foram ampliando seus direitos
políticos e conquistando direitos sociais. A integração dos operários à sociedade de consumo contribuiu
para que o partido de organização da massa desse lugar ao partido eleitoral de massa. De um lado, o
partido operário se transforma, tornando-se mais distante do cotidiano das classes populares. De outro
lado, as agremiações conservadoras investem na construção de organizações estáveis e com estruturas
sofisticadas, com vistas a competir no mercado eleitoral. Os partidos se limitam à busca do voto das
massas, com as quais não mantêm mais um relacionamento estreito. No lugar de um vínculo estável com
associados unidos pela identidade de classe e pelo objetivo de transformação radical da sociedade, os
partidos eleitorais buscam, através de métodos sofisticados de comunicação, tão-somente, conquistar
o eleitor que passa a ser visto como um cliente. A antiga função de educação das classes populares,
assim como a mobilização da base partidária em torno de uma ideologia e a elaboração de programas
políticos claros, são procedimentos deixados de lado em favor da valorização de estratégias eleitorais
e do investimento na atividade parlamentar. Essa transformação do partido espelha, de certo modo, o
distanciamento da população do cotidiano da vida política em tempos mais recentes, ou seja, reflete a
despolitização das massas.5

Os partidos na atualidade
Muitos pensadores contemporâneos partilham o diagnóstico de crise dos partidos políticos na
contemporaneidade. A fragilidade dos partidos costuma ser associada à crise maior da própria demo-
cracia representativa. Cada vez mais, o cidadão parece limitar seu papel político aos processos eleitorais.
Mesmo essa participação não se orienta mais, segundo alguns estudos, pela identificação partidária,
ideológica e programática. Grande parcela dos eleitores vota pela identificação pessoal com o candida-
to, atendendo ao apelo comunicativo e a confiança que ele transmite. No jogo político e eleitoral, passa
a ser muito valorizada a imagem que os assessores, em geral profissionais da comunicação política,
constroem do candidato. A política parece se transformar num confronto entre técnicos especializados
no espetáculo, pouco tem a ver com o debate de programas e o posicionamento ideológico. Um dos
efeitos desse cenário é o distanciamento entre representantes e representados.
O momento atual estaria marcado pelo desinteresse de diferentes grupos socais em conquistar
o poder político do Estado. As lutas se caracterizam pelo foco restrito, os objetivos são pontuais e as
mobilizações se fazem distantes das organizações partidárias. Cresce a presença de grupos de interesse
agindo nos bastidores do parlamento, em espaços não-públicos. A democracia parece ter assumido
um caráter censitário, pois os espaços de debate, de formação política e de construção da vontade
coletiva foram reduzidos drasticamente. Os típicos partidos operários, voltados para a organização das
massas, burocratizaram-se; o corpo de funcionários especialistas concentrou o poder da instituição;

5 Em contextos de fechamento do espaço político, situações de ditadura, encontramos partidos de perfil totalitário, que se confundem com o
Estado e seus mandatários; em geral, eles cumprem a função de referendar interesses particulares, ao invés de contribuir com a formação da
vontade coletiva.
98 Fundamentos da Ciência Política

os caminhos do partido passaram a ser determinados por uma racionalidade técnica eleitoral e não
mais pela manifestação ideológica das bases partidárias. Declinou a identidade partidária. O partido
enquanto instituição de atividade contínua junto às massas perdeu espaço.
As interpretações que remontam à “teoria das elites” ganharam força6. Para os elitistas, toda
organização tende a ser comandada por um pequeno grupo de dirigentes, especialistas que formam sua
competência na competição política e se destacam do conjunto da população: os partidos e o governo
representativo não estariam passando por uma crise. Segundo esse ponto de vista, a elitização da
política corresponderia a uma lei geral de funcionamento das sociedades. A crítica a esse ponto de vista
considera um equívoco não perceber que a elitização é o resultado não da “natureza” das organizações,
mas de contextos históricos específicos, associados a procedimentos que inibem a participação política
das massas.
O declínio na importância dos partidos e a redução da participação política das massas também
são analisados como efeito das mudanças recentes no mundo social, econômico e político. A este respeito
não precisaríamos ficar temerosos, pois a democracia representativa não estaria em risco, apenas teria
assumido novos contornos. Inclusive algumas características da política atual estiveram presentes
no contexto histórico do governo representativo de tipo parlamentar e agora estariam retornando
(MANIN, 1995). O comportamento eleitoral baseado nas características pessoais do candidato é um
exemplo de retomada de uma prática presente no início da democracia representativa. A absorção das
pessoas pelas atividades do mundo social, bem como a complexidade da administração pública num
mundo globalizado, teriam feito os eleitores voltarem a valorizar a personalidade do candidato e a
confiança que ele transmite. A partir desse ponto de vista, não significa que os partidos tenham perdido
importância, e sim que “os partidos continuam a exercer um papel essencial, mas tendem a se tornar
instrumentos a serviço de um líder” (MANIN, 1995).
Olhares críticos enfatizam, entretanto, a necessidade de superação da despolitização crescente
das massas. O antídoto para esse problema está na multiplicação dos canais de participação política. O
desafio atual é transformar as mobilizações políticas pontuais, empreendidas por grupos específicos da
sociedade, em movimentos dirigidos para construção do interesse coletivo. Para vencer esse desafio, ao
que parece, a democracia não pode prescindir dos partidos.

Atividades
1. Por que os partidos surgem no contexto histórico da modernidade?

6 São elitistas clássicos: Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels. Robert Dahl é um “teórico das elites” contemporâneo.
Partidos políticos 99

2. Apresente as características do eleitorado no contexto do “partido de notáveis”.

3. Aponte as características do partido eleitoral de massa.


100 Fundamentos da Ciência Política

Gabarito
1. Porque é na modernidade que o consentimento aparece como fundamento do poder e a
participação do povo como fonte de legitimidade política. Nesse contexto, surge o problema da
mediação entre povo e Estado.

2. Era um eleitorado restrito que votava observando as qualidades pessoais do candidato: entre
elas, a confiança que ele inspirava. Não existia uma identidade entre eleitor e partido.

3. Mantém-se distante do cotidiano das massas, se concentra nas estratégias eleitorais, não tem
como objetivo transformar radicalmente a sociedade e não investe na construção da identidade
política.
A cultura e a política
Os estudos de cultura política
A cultura é um dos temas mais trabalhados nas Ciências Sociais, fato que lhe confere múltiplos
sentidos e aplicações. Para os propósitos deste estudo, a cultura será entendida como o conjunto de
normas, valores e símbolos que constituem uma tradição dentro da sociedade. Ou seja, as represen-
tações mais estáveis que os atores sociais têm de si mesmos e da comunidade em que estão inseridos
e que contribuem na formação de suas expectativas, tanto quanto na orientação de suas atitudes. A
herança cultural favorece a formação de padrões de comportamento no campo social e político, mas
não impede o surgimento de ações de resistência e de práticas inovadoras.
Duas dimensões se destacam nas análises de cultura política. O primeiro foco interessante de
estudos é o que toma como objeto a herança cultural da sociedade e o modo como essa tradição sim-
bólica afeta o processo político. Outro aspecto da investigação culturalista que merece ser sublinha-
do diz respeito à maneira como as pessoas, num determinado momento histórico, constroem suas
representações sobre as instituições políticas e sobre a prática associativa. As representações ajudam a
entender o comportamento político dos atores sociais e sua variação entre: o otimismo e o pessimismo,
a adesão às normas e a transgressão, enfim, entre o engajamento político e a apatia.
O formato das análises sobre a cultura política indica, portanto, uma preocupação com o bom
funcionamento da democracia. O ideal moderno de uma sociedade livre e igualitária não se realizou
plenamente. A efetivação do projeto democrático é ainda um desafio. O fato de os princípios políticos
do iluminismo terem avançado mais em algumas sociedades do que em outras, revelou a importância
dos estudos comparativos que partem da indagação sobre quais aspectos são mais relevantes para
a implementação da democracia. Os pensadores da cultura política acreditam que a eficiência das
instituições políticas não é suficiente para implementar o jogo democrático e também não satisfaz
como único critério explicativo sobre os avanços quanto à liberdade e à igualdade em alguns países.
Um importante estudo nesse campo foi o de Robert Putnam (PUTNAM, 1997) que em sua pesquisa
comparativa, entre cidades italianas que contavam com o mesmo aparato institucional, avaliou
a disparidade no funcionamento da democracia. Para esse pensador, o “capital social” é um fator
fundamental para a avaliação sobre o funcionamento das instituições democráticas. Por capital social
deve-se entender o conjunto de valores e procedimentos normativos sociais que geram confiança entre
102 Fundamentos da Ciência Política

os cidadãos. A confiança opera como elemento de agregação facilitando a cooperação entre os indivíduos
e multiplicando os laços associativos. Logo, confiança, cooperação e associação são ingredientes do
capital social e, quando são encontrados numa determinada cultura política, contribuem para o bom
funcionamento das instituições democráticas.
A partir de trabalhos como os de Putnam, inaugurou-se no campo dos estudos políticos um
debate intenso, entre os teóricos que enfatizam o peso das instituições na construção da democracia
e os pensadores que realçam o papel da cultura política nesse processo. É importante mencionar que
estas não são posições, necessariamente, excludentes.
Certamente não existe liberdade política sem uma constituição elaborada a partir do mais am-
plo debate. É importante para a política moderna que o aparato institucional legal esteja instalado e
funcione. A presença de um poder judiciário autônomo, o livre exercício de um poder legislativo for-
mado por representantes do povo escolhidos num processo eleitoral transparente e com disputa entre
posições divergentes, assim como a existência de um poder executivo com prerrogativas legítimas, são
condições necessárias para a construção da democracia, mas não são condições suficientes. Em muitos
países, a dimensão formal da democracia está instalada; entretanto, as desigualdades de acesso aos
recursos culturais e associativos excluem do processo decisório uma parcela significativa da população.
Logo, apresenta-se como fundamental para a política a construção de valores que correspondam aos
ideais democráticos, assim como a difusão de princípios que favoreçam a integração de todos ao jogo
democrático em igualdade de condições.
Para os pensadores mais exigentes, não basta que os procedimentos democráticos estejam
instalados na sociedade para considerá-la politicamente moderna. Contentar-se com a dimensão
procedimental da política significa aderir a uma concepção minimalista de democracia. Uma postura
contrária a esta exige a elevação da qualidade da democracia pelo incremento da cultura política. Trata-
se de um processo que promove a participação do cidadão e favorece a correção das desigualdades
sociais. É interessante pensar que a relação entre cultura e política forma um ciclo: quando o mesmo é
virtuoso a promoção de valores cívicos pelas instituições políticas possibilita a formação de cidadãos
com aguçado senso cooperativo e participativo. Quando, ao contrário, a cultura tradicional associada
à subserviência não encontra resistência, proliferam os valores individualistas e a apatia, e o mundo
político acaba sendo apropriado por interesses particulares.
Os estudos sobre cultura política ajudam-nos a pensar, portanto, em entraves e incentivos
à democracia. Nesta disciplina encontramos pesquisas sobre os valores dos indivíduos de uma
determinada sociedade, ou seja, medições feitas por pesquisas de opinião a partir das quais é possível
avaliar a evolução da cultura política e seus efeitos sobre a democracia. Encontramos também análises
sobre as mudanças nos valores políticos a partir de inovações institucionais.

A cultura política tradicional


O ideal da modernidade política presente no projeto iluminista ainda não se realizou plenamente,
seus avanços dependem do acúmulo de sucessos no desafio de vencer a herança da tradição. É uma herança
cultural que tem o peso histórico de muitos séculos e que está baseada em valores, crenças e costumes,
associados não à igualdade, à liberdade, e à razão, mas à hierarquia, à diferença e ao sobrenatural.
A cultura e a política 103

Ao longo da Idade Média, por exemplo, as relações sociais e políticas seguiam o princípio da superio-
ridade de alguns homens, os nobres, em relação aos outros, os camponeses. A crença nessa superioridade
estava baseada num valor divino. Deus teria feito os homens diferentes uns dos outros e predestinado
o caminho de cada um na Terra. Ainda que nem todas as sociedades tenham passado pelo feudalismo,
essa cultura tradicional se enraizou e tornou-se a referência no comportamento dos indivíduos em to-
dos os quadrantes do mundo.
O funcionamento do código tradicional criou e reproduziu uma rede hierárquica de relações
baseadas no mando e na subserviência. A nobreza e o clero, pela superioridade entendida como natural
e divina, detinha a posse das terras. Num gesto, que era lido como de bondade e favor, esses sujeitos
tidos como superiores, concediam o uso da terra aos senhores feudais que, por sua vez, faziam o mesmo
em relação aos camponeses. Junto com a concessão para o uso da terra, os grupos que ocupavam os
estratos mais baixos da sociedade recebiam a promessa, muitas vezes ilusória, de segurança e proteção
contra investidas estrangeiras. As relações estavam fundadas, então, no princípio da dádiva, do que
podemos chamar de uma solidariedade tradicional. Como contrapartida pelo favor concedido, os grupos
dominantes exigiam dos dominados, além de parte da produção (em taxas e produtos), a lealdade
e a fidelidade. Os dominantes esperavam o reconhecimento da sua bondade perante os dominados,
portanto, o respeito à hierarquia e o conformismo com as diferenças.
A rede de relações da sociedade tradicional operava na lógica do mando e da subserviência
legitimada não exclusivamente no princípio da força, mas, principalmente, numa cultura política que
incorporou o código da hierarquia construída como natural. Mesmo entre as elites, funcionava o jogo
que envolvia favor e lealdade. Esses comportamentos recíprocos se desenvolviam no campo privado:
eram regidos, então, por sentimentos como o de bondade, afetividade e, seus opostos, ódio e violência.
O imperativo do código privado ficava evidente, por exemplo, no critério adotado para a sucessão do
poder, qual seja, a herança sanguínea, a linhagem familiar. A rigor, o feudalismo não conhece uma clara
distinção entre o público e o privado. Tratava-se de uma engrenagem conservadora, na qual quase não
existia brecha para a ruptura, seja individual ou coletiva.
As representações modernas do mundo, idealizadas pela Filosofia, pela ciência e pela arte
desempenharam um importante papel na transformação da cultura da subserviência fundada em valores
tradicionais. Mas não se trata de um processo de contínuo avanço. Mesmo nos dias atuais, são comuns
reações ao horizonte teórico da modernidade. Como exemplo, podem-se citar as resistências que se
observam nos Estados Unidos à teoria evolucionista de Darwin sobre o surgimento do homem. Tem
se tornado comum, naquele país, com apoio inclusive de autoridades políticas, a reivindicação de que a
concepção criacionista1 seja introduzida no currículo escolar.
Ainda que vários estudos de cultura política venham demonstrando uma forte correlação entre
desenvolvimento econômico e comportamento social, esta baseada na confiança interpessoal e na
tolerância, não se deve estabelecer uma relação automática entre modernidade econômica e uma
cultura política marcada pela participação e pela cidadania. Aliás, é comum observarmos nos dias
atuais comportamentos modernos em termos de produção e consumo, ou seja, no que diz respeito ao
funcionamento da economia, operando lado a lado com práticas tradicionais no campo social e político.
O primeiro desafio da modernidade, então, é vencer a herança cultural da tradição. Desafio
tanto maior quando percebemos que a cultura é um bem de longa duração, ou seja, não se altera com

1 A teoria criacionista defende o princípio de que o homem surgiu de um ato divino, ou de uma vontade sobrenatural, e não como resultado
da evolução a partir do símio.
104 Fundamentos da Ciência Política

facilidade. Algumas nações parecem ter avançado bastante na substituição dos valores tradicionais,
outras nem tanto e, em alguns momentos, temos a impressão de que ocorreu um retrocesso cultural.
Mas, quais são as características de uma cultura política moderna?

A cultura política da modernidade


Os valores da sociedade moderna estão em oposição frontal àqueles do mundo medieval. Os
modernos partem do princípio de que os homens são iguais. Desse modo não existe justificativa de
ordem racional para que um domine o outro e o Estado é entendido como uma construção coletiva
diante da qual todos têm responsabilidades, deveres e direitos. Aliás, o princípio do direito é fundamental
para a vigência da cidadania. Uma sociedade na qual os menos favorecidos se vêem como inferiores
e se sentem agraciados com favores quando são alvo de uma política pública, por exemplo, é uma
sociedade que reproduz a lógica da hierarquia e da subserviência, valores muito presentes no chamado
“assistencialismo”2.
A cultura política moderna, ao menos em termos ideais, solicita uma valorização do público frente
ao privado. O espaço público é o lugar do exercício da cidadania. Ali os sujeitos se encontram para
atuarem de forma solidária, buscando o interesse coletivo, todos em situação de igualdade política. Os
direitos conquistados não geram dívidas de um para com o outro, e sim compromissos recíprocos de
fortalecimento da comunidade. Não se trata de condenar a solidariedade tradicional, mas de colocá-
la no devido lugar. A ação solidária caracterizada pela dádiva não é ação de cidadania. No Brasil, por
exemplo, é comum entender, equivocadamente, caridade como cidadania. A solidariedade tradicional
é importante para aliviar o sofrimento do próximo, mas a ação de cidadania opera noutra lógica, seu
registro é o do direito e, nesse caso, a solidariedade é política.
A solidariedade política é o apoio mútuo entre indivíduos com o objetivo de superar uma condição
subalterna, conquistando direitos. É a ação típica dos movimentos sociais. No quadro a seguir, é possível
diferenciar os dois tipos de solidariedade segundo suas principais características.

Solidariedade tradicional Solidariedade política


:: Ação que opera com princípios do campo privado. :: Ação que se desenvolve na esfera pública e
:: O fundamento da ação é afetivo/moral, a trabalha com valores do público.
comoção alicerça a prática solidária. :: Fundamento é racional estratégico. Os sujeitos
:: Envolve sujeitos em posições diferenciadas na se apóiam mutuamente para a conquista de um
sociedade. Ricos ajudam os pobres. direito.
:: A ação não muda a relação hierárquica. É uma :: Os sujeitos se colocam na mesma posição. Uma
prática conservadora. ação entre indivíduos que se vêem como iguais.
:: Opera na lógica da dádiva; logo, solicita :: A ação visa corrigir as injustiças, conquistar novos
contrapartida na forma de reconhecimento, patamares de igualdade. É um empreendimento
lealdade e fidelidade. transformador.
:: Não solicita contrapartida, o apoio mútuo atende
ao interesse comum.
2 Assistencialistas são as práticas de ajuda aos necessitados, governamentais ou não, que não têm por objetivo superar a condição de pobreza,
mas servem aos interesses de cooptação política.
A cultura e a política 105

A modernidade busca, então, uma cultura fundada no princípio da solidariedade política. No


Brasil – é importante registrar – encontramos dificuldades de implantar o princípio da cidadania, a
lógica da república, os valores do direito, pois resiste em nossa sociedade uma cultura política da dádiva
herdada do período colonial. Uma cultura perversa porque gera a ilusão de proximidade entre as classes,
mas reforça a hierarquia. Como agravante, a dádiva funciona sob a lógica das relações privadas, afetivas.
O mundo afetivo é o feito de amor, mas também de ódio. Quando as classes populares tentam sair do
registro da dádiva e buscam seus direitos como cidadãos, são vistos pelas elites como mal agradecidas,
desleais e perigosas. Para restabelecer a hierarquia usa-se a repressão, em geral fora da lei. Sem dúvida,
a cultura da dádiva nos ajuda a entender a forte presença da violência na sociedade brasileira.
A solidariedade tradicional rivaliza com o projeto político moderno, e este valoriza a combinação
entre liberdade e igualdade a partir da concepção de que os homens são racionais. Mas liberdade e
igualdade não representam valores em oposição? Ou seriam dimensões que se completam? A resposta
é difícil, mas é possível afirmar que se trata de um projeto tenso, uma vez que a liberdade pode favorecer
o individualismo, e a igualdade pode forçar uma integração absoluta do indivíduo ao social. O risco que
se apresenta ao ideal de liberdade é a valorização de um comportamento egoísta e até mesmo anti-
social, ou seja, disseminar uma cultura política individualista e consumista, marcada pela indiferença,
cinismo, dogmatismo. Além de criar uma postura não-participativa.
O problema a ser enfrentado pelo lado da igualdade é a formação de um comportamento
totalitário do coletivo. Ou seja, grupos que se vêem como “normais” podem querer impor “seu jeito de
ser” de forma autoritária, sobre as minorias. Nesse caso, o coletivo tende a solicitar a integração absoluta,
a normalização, dos indivíduos. Isso pode gerar uma cultura política da intolerância, da perseguição aos
diferentes. O desafio, então, é construir uma cultura política capaz de equilibrar liberdade e igualdade
gerando comportamentos marcados pela confiança, pela adesão voluntária ao social, pela busca do
interesse comum.

A construção da cultura política moderna


O ideal moderno objetiva a construção de uma “cultura política da participação”, o que significaria
a superação de uma “cultura política da sujeição”. O desafio das instituições políticas e sociais é favorecer a
integração dos indivíduos à sociedade sem quebrar o princípio da autonomia, ou seja, da liberdade
individual.
Uma das críticas que o projeto moderno tem recebido é que ao longo do tempo a tentativa de
implementá-lo fixou-se de forma radical na integração dos indivíduos à cultura nacional. Esse esforço de
construção de uma identidade nacional significou um desrespeito às diferenças, um desconhecimento
das especificidades de determinados segmentos da sociedade, enfim, uma subordinação e, até mesmo,
um bloqueio das identidades grupais.
Qual é a importância da identidade para a cultura política? A construção da identidade é o processo
interligado com a conquista da autonomia. Para o indivíduo, a construção da identidade é um processo
de auto-reconhecimento, no qual o sujeito retém alguns valores da sua herança afetiva e familiar e
rejeita outros. Na dimensão coletiva algo parecido acontece. É o processo de elaboração da identidade
política. Nesse caso, os indivíduos refletem sobre as características que os fazem semelhantes aos outros,
106 Fundamentos da Ciência Política

na justa medida em que percebem que essas características pesam no jogo social e político. Ou seja,
os indivíduos pensam sobre a herança cultural e social do grupo, ou dos grupos aos quais pertencem,
e decidem em que medida vão preservar essa herança ou contestá-la. Ao fazer isso, o grupo constrói
sua identidade e exercita a autonomia. É possível mencionar o caso dos movimentos feministas. Em
determinado momento, as mulheres perceberam que pertencer ao gênero feminino fazia diferença no
jogo político, social e até econômico. Passaram, então, a identificar-se, solidarizar-se e partiram para a
luta no espaço público pela conquista de direitos.
É certo que uma ênfase na identidade comunitária de determinados grupos pode dificultar a
construção da cidadania nacional, mas também é problemático imaginar que uma adesão livre à nação
aconteça quando os sujeitos não reconhecem sua posição no todo, ou seja, suas identidades parciais. A
construção da identidade nacional será muito mais eficiente se passar pela elaboração das identidades
dos diferentes grupos da sociedade, especialmente aqueles que estão em desvantagem no jogo político;
no caso brasileiro, afrodescendentes, mulheres, homossexuais, moradores da favela etc.
O desafio é canalizar a luta dos diferentes grupos para o campo político, num esforço para
construção do interesse comum, evitando assim a violência entre comunidades que se fecham sobre si
mesmas (REIS, 2002). Como vencer esse desafio?
Não por acaso, pensadores modernos como Rousseau e Locke se preocuparam com a educa-
ção. A construção do projeto moderno depende do esforço de uma variedade de instituições: o Estado,
os partidos, as associações, enfim, a comunidade em geral, mas a escola tem um papel especial nes-
se empreendimento. A idéia é que a cultura da cidadania pode ser disseminada na escola politizada.
Para que isso aconteça, a escola precisa se reconhecer como espaço público privilegiado para a constru-
ção da cidadania. A instituição escolar, seja ela privada ou estatal, deve estar voltada para o interesse do
público. Nesse sentido, a educação escolar poderia contribuir de forma fundamental na elaboração
das identidades dos jovens, no aspecto individual e, principalmente, na dimensão coletiva. O papel polí-
tico dos agentes da educação se completaria com a indicação da arena política como espaço adequado
para o questionamento das heranças sociais ligadas à subordinação. Trata-se do processo de empode-
ramento dos grupos em desvantagem no jogo político. A escola pode conclamar outras instituições
(como os conselhos tutelares, o Ministério Público, as associações comunitárias, as associações de pais, os
sindicatos) para alterar comportamentos, incutir a responsabilidade cívica, difundir a adesão social,
enfim, para a construção de uma cultura política capaz de equilibrar a autonomia individual e a integração
social. É fundamental que o sistema de crenças da sociedade democrática ultrapasse o nível ideal; caso con-
trário, o resultado será insatisfação, apatia e, até mesmo, atitudes anti-sociais. O desafio está colocado.

Atividades
1. Como o tema da “cultura política” se associa ao da democracia?
A cultura e a política 107

2. Por que o bom funcionamento das instituições políticas não garantem que uma sociedade seja
democrática?

3. Por que a solidariedade tradicional não deve ser considerada ação de cidadania?

Gabarito
1. Os valores de uma sociedade interferem no comportamento político dos indivíduos.

2. O capital social e a cultura política são elementos importantes para a efetivação da democracia.

3. Porque reproduz as desigualdades sociais, não modifica a situação dos assistidos e não opera na
lógica do direito.
Participação política
O que significa participar
Vale a pena participar politicamente? A participação política individual pode mudar alguma coisa
diante das pesadas estruturas políticas? O mais adequado é deixar a política para quem entende? É
mais eficiente o engajamento em grandes lutas ou nos embates localizados? São questões associadas à
temática da ação política, cujas respostas remetem a diferentes perspectivas teóricas. De todo modo há
um consenso no meio científico de que as mobilizações de massa de caráter libertário se tornaram raras
e, até mesmo, ausentes nas sociedades desenvolvidas. Nos dias atuais, o cenário político está marcado
pela apatia dos cidadãos. A sociedade tem guardado distância do mundo político tradicional. Contra
a maré individualista é possível identificar, entretanto, movimentos sociais com novas características,
voltados para questões mais pontuais. São mobilizações que reivindicam direitos, mas sem a pretensão
de ocupar posição na instituição estatal.
Os novos movimentos sociais atenuam a percepção pessimista dos observadores da política.
Nesse sentido, também é possível afirmar que, se as condições para a participação política são adversas,
sempre existe a possibilidade de uma militância voltada para a criação de um cenário favorável à
participação. Além do mais, é preciso reconhecer que a atividade política não se restringe à transformação
radical e total da sociedade por movimentos de massa; ações políticas localizadas também podem
cumprir um importante papel.
A análise do conceito de participação política pode nos ajudar no enfrentamento dos problemas
anteriormente enunciados.
É importante deixar claro o que é uma ação política. Não é incorreto vincular qualquer tipo de
ação social à dimensão do poder. Uma relação amorosa, por exemplo, pode envolver, em algum grau, a
disputa pela hegemonia entre o casal. Mas seria um exagero afirmar que o namoro é uma ação política;
ademais, ao contrário de contribuir com o esclarecimento do conceito, tal afirmação só confundiria. Para
evitar esse tipo de assertiva obscura, convém adotar um critério que defina quais ações são políticas.
Nesse sentido, é pertinente considerar política toda a ação pública que busca interferir, de algum modo,
na organização ou distribuição do poder do Estado. Esse tipo de ação compreende desde a participação
numa reunião de organização de um grupo até gestos de força que mudam uma realidade política ou
impedem tal mudança.
110 Fundamentos da Ciência Política

Deve-se salientar que a definição de participação política incorpora a abstenção. Por mais
paradoxal que possa parecer, uma recusa à ação, em certas situações, assume um caráter de participação
política. No caso de a abstenção, a não-ação, ser interpretada como um comportamento de resistência,
como um gesto de desaprovação, estamos diante de uma manifestação política.
Para tornar mais refinada a análise da participação política, a literatura científica elaborou uma
classificação dos níveis de participação política. A divisão das ações efetivas de participação política
compreende três níveis (SANI, 1993). O primeiro é o da “presença” política. Nesse nível estamos na
fronteira, ou seja, no limite do que pode ser caracterizado como participação política. Trata-se da atitude
de simplesmente se deixar expor às mensagens do mundo político. É a situação em que o sujeito não
contribui com o processo político. Por exemplo, quando ele assiste a um programa eleitoral na TV, ou
quando participa de uma reunião partidária.
No segundo nível encontramos a “ativação” política. Essa designação explica a atitude de um
indivíduo que assume determinadas tarefas políticas a ele delegadas. Tarefas dentro ou fora de uma
organização e que dizem respeito a coordenar um evento, realizar uma campanha eleitoral, planejar uma
manifestação de protesto, enfim, gestos que denotam algum envolvimento num procedimento político.
Num nível mais elevado de engajamento se reserva a denominação de “participação” política.
Esse termo designa os casos nos quais o sujeito tem uma contribuição direta ou indireta no processo de
tomada de decisão política. O processo decisório é fundamental no jogo político; quando ele envolve
poucas pessoas fica evidente o caráter elitista da organização. A ampla participação dos cidadãos nas
decisões políticas caracteriza as sociedades democráticas. Feito esse esclarecimento, cabe perguntar:
qual é o nível de participação política esperado ou desejado numa sociedade democrática?

A participação em sociedades democráticas


Alguns pensadores entendem a sociedade e, por extensão, a política como um sistema orgânico,
cujo funcionamento ideal requer um equilíbrio. Nessa perspectiva funcional, o equilíbrio oferece as
melhores condições para o desenvolvimento da sociedade e das instituições políticas. Em resumo,
para o bom desempenho institucional não é desejável que ocorram níveis exagerados de participação
política. Nesse ponto de vista a apatia é funcional, pois a presença constante e cotidiana de toda a
sociedade na esfera política tenderia a causar o caos. Uma disfunção, constatada pelos pensadores que
adotam essa perspectiva, caso os níveis de participação fossem exagerados, seria a necessidade de uma
multiplicação exagerada dos partidos políticos para atender uma grande demanda de representação.
A multiplicação e diversificação de agrupamentos sociais no campo político produziria uma infinidade
de interesses e pontos de vista, os quais precisariam encontrar canais institucionais de expressão, algo
tecnicamente difícil e politicamente indesejável. Sendo assim, certa apatia da sociedade seria salutar
ao bom funcionamento do mundo político, segundo pensadores que elegem o equilíbrio da sociedade
como o aspecto mais importante no equacionamento das instituições de poder.
Os adeptos do funcionalismo não ficam alarmados com o elevado grau de abstenção eleitoral
nos países nos quais o sufrágio não é obrigatório. Para eles, isso apenas demonstra a confiança do elei-
tor na estabilidade social garantida pela esfera política. Caso o modo de vida dessas nações estivesse
ameaçado por alguma corrente ideológica, dizem eles, certamente o grau de participação, a intensida-
de do debate, e a disputa política seriam muito maior.
Participação política 111

Adotando uma perspectiva oposta, alguns pensadores condenam a concepção funcional de


democracia e o critério que ela adota para avaliar a participação. O sociólogo alemão Jurgen Habermas,
por exemplo, observa que a postura funcional corresponde a uma concepção política liberal. Ou seja,
o liberalismo vê o Estado exclusivamente como instituição jurídica, como instância técnica a serviço
da proteção dos direitos individuais. Uma postura conservadora, portanto, que não reconhece para
o Estado o papel de transformar a sociedade no sentido de corrigir as desigualdades e viabilizar a
efetivação da democracia. A preocupação em conservar a sociedade, manter o status quo, é coerente
com a idéia de que a apatia política seria funcional. Habermas desqualifica o uso do equilíbrio como
critério para determinar o grau ideal de participação. Para ele, a democracia não pode ser reduzida
a um sistema técnico de consulta eleitoral que viabiliza o funcionamento de um Estado de direito
(HABERMAS, 1983).
Não se pode esquecer que a democracia, enquanto exercício e aprimoramento da soberania
popular, tem um compromisso com a construção da própria autodeterminação da humanidade. O exer-
cício democrático é condição para escaparmos da violência. É a participação política que possibilitará o
reconhecimento mútuo dos sujeitos e a construção do interesse comum. Desse modo, para Habermas,
a única avaliação possível da participação política é aquela que utiliza como critério a contribuição do
engajamento para o próprio fortalecimento do processo democrático. É desejável, é válida e deve ser
incentivada toda forma de participação política que fortaleça a democracia.
Pensadores como Habermas consideram que não pode ser funcional a apatia política, pois
a vontade política só pode ser construída com a manifestação dos múltiplos interesses no espaço
público. O equilíbrio não é capaz de construir o interesse coletivo, pois este resulta do conflito
argumentativo de sujeitos envolvidos pela ética da confiança. O equilíbrio produzido pela apatia só
pode gerar autoritarismo e desagregação social. A difusão de uma avaliação positiva da inércia diante
do mundo político reproduz o princípio elitista, segundo o qual a política é um campo complexo, cujo
exercício deve ficar a cargo dos especialistas.
Mas é importante reconhecer que o desinteresse pela política não resulta apenas da difusão de
idéias conservadoras. Os movimentos políticos libertários que mobilizaram a massa popular na primeira
metade do século passado também foram responsáveis pela promoção de um desinteresse político. Ainda
que tenham sido movimentos de contestação ao autoritarismo, surgidos num momento de avanço dos
princípios democráticos, suas práticas, muitas vezes, entraram em contradição com seus ideais.

As lições da história
Por mais paradoxal que possa parecer, agremiações que muitas vezes obtiveram sucesso na mo-
bilização política das classes populares, empunhando a bandeira da liberdade e da igualdade e utilizan-
do as vias institucionais, não necessariamente contribuíram com a formação de organizações democrá-
ticas. Dito de outro modo, instituições que promoveram a participação política dos trabalhadores com o
objetivo de transformar a sociedade acabaram, ao menos em parte, reproduzindo a dominação. Como
isso foi possível?
Essa situação contraditória foi o resultado da adoção, pelas agremiações que se diziam libertárias,
de uma participação política totalizante. Alguns partidos e organizações de esquerda, que atuaram
com vigor no início do século XX, cometeram o erro de excluir do seu ideário os ganhos da democracia
112 Fundamentos da Ciência Política

liberal. Se por um lado o liberalismo peca pelo teor conservador, por outro, ele fornece importantes ins-
trumentos políticos de preservação da autonomia individual. Ao descartarem apressadamente o libera-
lismo e se concentrarem no objetivo de construir a igualdade absoluta, essas organizações de esquerda
solicitaram aos seus militantes uma submissão total a uma concepção de igualdade previamente ela-
borada pela direção do movimento. Todos na agremiação deveriam referendar os saberes e as práticas
definidas de antemão como revolucionárias pela cúpula do partido. A vanguarda de dirigentes se viu
como diferente e superior em relação à massa popular, pois teria sido capaz de decifrar antecipadamen-
te o destino histórico a ser conquistado por todos.
Ora, a participação política só pode ser democrática se preservar a autonomia do indivíduo. Não
se trata de defender o individualismo, mas de garantir uma margem de manobra aos sujeitos políticos
diante da ameaça totalitária das instituições. A democracia exige que qualquer objetivo político seja
construído no decorrer da caminhada, com a participação de todos no processo decisório e respeitando
o princípio da pluralidade. Quando os dirigentes de uma agremiação acreditam ser portadores da
verdade única sobre o objetivo a ser alcançado, estão dadas as condições para a totalização das práticas
políticas e a para a dissolução do indivíduo no coletivo. Nessa situação, o militante acaba por desfazer-se
da sua autonomia e mergulha na homogeneidade da agremiação. Sua vida passa a ter o sentido dado
pela organização (LEFORT, 1990). A dedicação total à causa coletiva solicita o sacrifício da liberdade
individual e a adoção de um altruísmo radical.
O tema da militância política gerou acirrados debates na esquerda operária da Europa no início
do século XX. Como exemplo, podemos citar o embate entre Lênin (1870-1924), que defendia um
partido de massas dirigido pela vanguarda operária esclarecida, e Rosa Luxemburgo (1871-1919) que
criticava a formação de uma aristocracia partidária centralizadora. Lênin estava engajado no processo
revolucionário russo e adotou como pressuposto, na sua teoria sobre a mobilização dos trabalhadores,
que a massa popular que enfrenta a burguesia na luta por melhores condições de vida não teria
condições de formular a teoria revolucionária. Esta só poderia emergir da atividade da vanguarda do
partido (SOUZA, 1999). A conscientização da massa operária deveria ser feita por quem estava acima da
luta voluntarista. Um grupo homogêneo e centralizado na cúpula do partido, os militantes profissionais,
é que deveria conduzir o processo revolucionário.
A preocupação de Rosa era, justamente, de evitar que a luta por uma sociedade livre reproduzisse
formas de dominação. Nesse sentido, ela criticou a centralização do processo decisório num comitê
dirigente, pois o efeito seria a submissão cega da massa de trabalhadores. Contra o centralismo, Rosa
Luxemburgo defendeu a educação política dos trabalhadores elaborada na própria luta. A educação
política poderia preservar a autonomia daqueles que lutavam pela construção de uma sociedade de
homens livres e iguais.
A despeito dos alertas dados por Rosa Luxemburgo, a participação política em partidos totali-
zantes calçou o caminho para a construção de sociedades totalitárias no Leste Europeu. Nas sociedades
totalitárias ocorre, justamente, a invasão da sociedade pelo Estado que se torna absoluto. Apaga-se a
fronteira entre a política e a sociedade, pois o político ocupa todos os espaços, sem deixar brechas para
o exercício da autonomia dos indivíduos (LEFORT, 1990).
O filósofo grego Cornélius Castoriadis (1922-1997), ao analisar o processo de burocratização
dos partidos de trabalhadores, enfatizou o modelo de participação política adotado dentro dessas
organizações como responsável pela degenerescência da esquerda operária (CASTORIADIS, 1985). A
Participação política 113

formação de um militante que acreditava saber os destinos da história, um militante total, preparou o
caminho para a prática autoritária de condução dos trabalhadores. Os que se deixaram conduzir, por
sua vez, perderam a autonomia.

Novas formas de participação política


Como reação às práticas totalizantes, novas formas de participação política surgiram em meados
do século XX. Formas contestadoras de organização coletiva, mas que tentam preservar a autonomia
individual. Os chamados novos movimentos sociais se caracterizam, justamente, por questionar a de-
fesa de uma igualdade absoluta. São movimentos que abdicam da transformação total da sociedade e
promovem uma luta mais específica, mais localizada; associações que reivindicam direitos e influem no
jogo de poder, mas sem a pretensão de lutar pela conquista de posições no aparelho de Estado; associa-
ções, de um modo geral, avessas à participação política tradicional em partidos. O movimento negro, a
mobilização das mulheres, o movimento gay, para citar alguns exemplos, se caracterizam por empunha-
rem a bandeira da diferença. Suas ações objetivam, em primeiro lugar, o reconhecimento da identidade,
portanto da diferença e a construção da solidariedade política do grupo. Associado a esse objetivo, esses
novos militantes informam que a diferença não os faz inferiores, e por isso reivindicam os direitos da
diferença. Direitos associados a uma idéia de discriminação positiva. Ou seja, a leitura é de que a discri-
minação negativa que se construiu ao longo da história deve ser compensada, agora, por direitos que
corrijam, ao menos em parte, as limitações do passado e criem condições de igualdade. É o caso, bem
atual e polêmico, da demanda do movimento negro brasileiro por cotas nas universidades públicas para
os cidadãos afrodescendentes. Uma dimensão dessa polêmica aparece no argumento de que a discrimi-
nação no Brasil seria, principalmente, econômica, ou seja, contra os pobres de uma maneira geral.1
Independente de posições polêmicas, os novos movimentos sociais revelam uma participação
política com potencial democrático, pois não aceitam a idéia de que a sociedade esteja marcada por
um único conflito que oferece apenas uma saída. O enfrentamento entre explorados e exploradores,
trabalhadores e capitalistas, passa a ser visto como um confronto entre outros, evidenciando-se uma
recusa em aceitar o conflito como o principal. Também não existe mais concordância sobre a existência
de uma forma e um objetivo pré-determinado para a luta, e estes devem ser construídos no decorrer da
caminhada política. Do ponto de vista democrático, é desejável que essas novas formas de participação
política não almejem a secessão, ou seja, não proponham uma simples inversão da dominação, mas a
superação dela (REIS, 2002). Nesse sentido, espera-se, por exemplo, que o movimento feminista não lute
pela criação de uma sociedade de domínio feminino e sim por um mundo no qual o pertencimento a
um gênero não faça diferença na política, na economia e na ocupação das posições sociais.
Os novos movimentos sociais valorizam a pluralidade do jogo político, a diversidade dos conflitos,
elementos importantes do jogo democrático (LACLAU, 1986). E uma outra característica democrática
que parece ser preservada nessas novas formas de participação política é a autonomia do indivíduo
frente à agremiação.

1 A partir dessa constatação, algumas universidades públicas adotaram um sistema misto, reservando vagas para egressos do ensino público
e afrodescendentes.
114 Fundamentos da Ciência Política

O desafio apresentado aos agentes dessa nova forma de participação política é o de não conduzir
sua ação para o extremo oposto da totalização. Os novos movimentos sociais não devem empreender
uma luta de isolamento absoluto. Para escapar dessa armadilha, essas novas agremiações políticas,
precisam encontrar caminhos de preservação da identidade, mas, ao mesmo tempo, de valorização
do processo democrático. É um caminho que solicita alianças transversais entre os grupos e agentes
que participam politicamente. A estratégia das alianças transversais, evitando a hierarquização das
agremiações, ou seja, sem a eleição de confronto e/ou um grupo como principal, parece ser o caminho
mais indicado para vencer o desafio moderno de conciliar a luta pela igualdade democrática com a
preservação da autonomia individual.

Texto complementar
As dores do pós-colonialismo
(SANTOS, 2007)
O Brasil parece finalmente estar passando do período da pós-independência para o período
pós-colonial. A entrada neste último período dá-se pela constatação de que o colonialismo, longe de
ter terminado com a Independência, continuou sob outras formas, mas sempre em coerência com
o seu princípio matricial: o racismo como uma forma de hierarquia social não intencional, porque
assente na desigualdade natural das raças. Essa constatação pública é o primeiro passo para iniciar
a virada descolonial, mas esta só ocorrerá se o racismo for confrontado por uma vontade política
“desracializante” firme e sustentável. A construção dessa vontade política é um processo complexo,
mas tem a seu favor convenções internacionais e, sobretudo, a força política dos movimentos
sociais protagonizados pelas vítimas inconformadas da discriminação racial. Para ser irreversível, a
virada descolonial tem de ocorrer no Estado e na sociedade, no espaço público e no privado, no
trabalho e no lazer, na educação e na saúde. A modernidade ocidental foi simultaneamente um
processo europeu – dotado de mecanismos poderosos, como liberdade, igualdade, secularização,
inovação científica, direito internacional e progresso – e um processo extra-europeu – dotado de
mecanismos não menos poderosos, como colonialismo, racismo, genocídio, escravatura, destruição
cultural, impunidade, não-ética da guerra. Um não existiria sem o outro. Por terem sido concedidas
aos descendentes dos colonos europeus, e não aos povos originários ou aos povos para cá trazidos
pela escravatura (exceção ao Haiti), as independências latino-americanas legitimaram o novo
poder por via dos mecanismos do processo europeu para poder continuar a exercê-lo por meio
dos mecanismos do processo extra-europeu. Assim se naturalizou um sistema de poder, até hoje
em vigor, que, sem contradição aparente, afirma a liberdade e a igualdade e pratica a opressão e a
desigualdade.Assentes nesse sistema de poder, os ideais republicanos de democracia e igualdade
constituem hipocrisia sistêmica. Só quem pertence à raça dominante tem o direito (e a arrogância)
de dizer que a raça não existe ou que a identidade étnica é uma invenção. O máximo de consciência
possível dessa democracia hipócrita é diluir a discriminação racial na discriminação social. Admite
que os negros e os indígenas são discriminados porque são pobres para não ter de admitir que eles
Participação política 115

são pobres porque são negros e indígenas. Uma democracia de muito baixa intensidade. A sua crise
final começa no momento em que as vítimas da discriminação se organizam para lutar contra a
ideologia que os declara ausentes e as práticas que os oprimem enquanto presenças desvalorizadas.
Os agentes dessas lutas distinguem-se dos seus antecessores por duas razões. Em primeiro lugar,
empenham-se na luta simultânea pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença. Reivindicam o
direito de ser iguais quando a diferença os inferioriza e o direito de ser diferentes quando a igualdade
os descaracteriza. Em segundo lugar, apostam em soluções institucionais dentro e fora do Estado
para que o reconhecimento dos dois princípios seja efetivo. Daí a luta pelos projetos de Lei de Cotas
e do Estatuto da Igualdade Racial. O alto valor democrático desses projetos reside na idéia de que
o reconhecimento da existência do racismo só é legítimo quando visa a sua eliminação. É o único
antídoto eficaz contra os que têm o poder de desconhecer ou de negar o racismo para continuar a
praticá-lo impunemente. Esses projetos de lei, se aplicados, darão ao Brasil uma nova autoridade
moral e um novo protagonismo político no plano internacional. No plano interno, será possível a
construção de uma coesão social sem a enorme sombra do silêncio dos excluídos. Para que isso
ocorra, os movimentos sociais não podem confiar demasiadamente na vontade dos governantes,
dado que eles são produtos do sistema de poder que naturalizou a discriminação racial. Para que
eles sintam a vontade de se descolonizar, é necessário pressioná-los e mostrar-lhes que o seu futuro
colonial tem os dias contados. Essa pressão não pode ser obra exclusiva do movimento negro e
do movimento indígena. É necessário que o MST, os movimentos de direitos humanos, sindicais,
feministas e ecológicos se juntem à luta, no entendimento de que, no momento presente, a luta
pelas cotas e pela igualdade racial condensa, de modo privilegiado, as contradições de que nascem
todas as outras lutas em que estão envolvidos.

Atividades
1. Qual a definição de participação política?
116 Fundamentos da Ciência Política

2. Por que Habermas critica a perspectiva funcional?

3. Por que muitas organizações populares de esquerda não contribuíram com a participação política
democrática?
Participação política 117

Gabarito
1. Toda ação pública que visa influenciar o poder do Estado.

2. Para ele a perspectiva funcional adota princípios liberais. Ele vê a política tecnicamente e não
percebe que a democracia tem um compromisso com a autodeterminação da humanidade.

3. Porque formaram um militante total, adepto de uma igualdade absoluta, que se colocava acima
da massa popular acreditando ser o detentor da verdade sobre o destino da luta.
Anotações
120 Fundamentos da Ciência Política
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Filmes
A GUERRA do Fogo (La Guerre du feu) Direção de Jean-Jacques Annaud. França/Canadá: Wild
Bunch, 1981. 122 minutos.
DANTON, o processo da Revolução. Direção de Andrzej Wajda. França/Polônia: 1982. 132
minutos.

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