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A Cidade e A Loucura PDF
A Cidade e A Loucura PDF
EM CUIABÁ
CUIABÁ
2006
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EM CUIABÁ
CUIABÁ
2006
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COMISSÃO JULGADORA
_______________________________________
Presidente: Prof.ª Dr.ª Ludmila de Lima Brandão
_______________________________________
Prof. Dr. Oswaldo Machado Filho (UFMT)
_______________________________________
Prof.ª Dr.ª Leny Caselli Anzai (UFMT)
_______________________________________
Prof. Dr. Robert Moses Pechman (UFRJ)
Cuiabá, de de 2006.
iii
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Robert Moses Pechman, pela forma carinhosa com que
aceitou o convite para participar da banca de defesa, mesmo tendo de encarar o calor de
Cuiabá, e também pela grande contribuição, já que sua escrita sensível contaminou meu
pensamento e também este trabalho.
Professores Doutores José Carlos Leite e João Carlos Barrozo, pela forma gentil com que
praticam a atividade docente e com os quais eu aprendi muito; ao Professor Doutor Carlos
Alberto Rosa, que me contagiou com a sua paixão pelos arquivos e que estimulou o meu
Doutora Regina Beatriz Guimarães Neto, por todas as recomendações, sugestões de leituras e
Ao grande amigo Júlio Coelho, que dividiu comigo dificuldades, leituras, reflexões e
muitas risadas, ajudando a aliviar as inseguranças que acomete quem faz o mestrado.
Ao Mário Leite, Gilbert, Dagoberto, Bosco, Hélio, Regiane, Fernanda, João Antonio,
Luiz Vicente, Sandrinha, Miriam, Antonio, João Carlos Bertoli, Carol, Acir, Inês, Domingos
Sávio e Clementino, Eduardo Ramalho, amigos e colegas com quem estreitei laços, como é o
caso dos antigos, e os vínculos que fiz, como é o caso dos novos, no convívio da sala de aula
do Mestrado em História, do MEL, do Núcleo de Estudos do Contemporâneo, na UNEMAT,
nos acervos consultados e em tantos outros lugares.
A Lucia Muller, que muito tempo atrás me incentivou a levar adiante a pesquisa
sobre a loucura num programa de mestrado.
Ao Astrogildo Settini, meu amigo, pelo ombro e também pelas rotas de fuga
ocasionais, tão necessárias para oxigenar o pensamento e enxergar outras direções.
vi
Aos amigos Yugi, Claudio Conte, Caia, Roberta, André Borges, Romyr e Elair, que
compartilharam este momento da minha vida com toda a solidariedade de que só os amigos
sabem dispor e de que me vali sempre que precisei.
transformou-se em um grande amigo, não apenas meu, mas de toda minha família.
Aos meus familiares de Mato Grosso, São Paulo, Campinas e Valinhos, por toda
ajuda material e emocional e pela tolerância com que me escutaram por tanto tempo, falando
Aos meus filhos, Mariana, José Rodolfo e Rafael, que encararam comigo a difícil
tarefa de vida de estudante, com dinheiro curto em plena adolescência e juventude, quando
comprar é o verbo preferencial da maioria, e que tiveram de engolir, muitas vezes quietos, a
constância da palavra não.
Grande paradoxo: para que eu pudesse estudar, minha filha teve de suspender
temporariamente o sonho de fazer uma faculdade para trabalhar e ajudar nas despesas da casa.
Mariana foi e tem sido, com certeza, a minha grande aliada neste caminho e a ela devo muito,
para não dizer tudo, e espero que este título valha todos os dias em que ela se levantou cedo
para trabalhar, todos os ônibus que ela pegou e todo sonho que ficou em suspenso.
vii
SUMÁRIO
RESUMO
Em 1890, realizou-se em Cuiabá, Estado de Mato Grosso, um recenseamento urbano que, pela
primeira vez, identifica, codifica e classifica isso que chamamos de loucura. Naquele
momento, podemos verificar que ela ainda gozava de certa liberdade, já que diversos são os
seus endereços. A identificação dos loucos da cidade foi, então, o primeiro passo dado pelo
Estado, para civilizar a cidade e inserir a capital mato-grossense no projeto de construção da
nação, em curso no País em fins do século XIX. Para empreender tal projeto, o Estado, não se
furtou em lançar mão de tecnologias de poder diversas. Passando pelo cuidado com o
indivíduo, pela disciplinarização e normatização dos cidadãos, a cidade pouco a pouco vai
revelando seus estriamentos e os perigos que a rondam, tanto por meio da adoção de inúmeras
práticas tidas como modernas, como no cerceamento de tantas outras, consideradas atrasadas
e nocivas ao sonho de progresso. É nesse contexto que vemos o recolhimento dos alienados
de Cuiabá pelas mãos da polícia, tanto à Cadeia Pública da capital como à Santa Casa de
Misericórdia. Entretanto, será com a instituição de uma outra tecnologia de poder — o
biopoder —, por meio de práticas de higienização e saneamento, que veremos a intensificação
do projeto civilizatório. Nesse quadro, a loucura passará a ser considerada como perigo social
iminente, e ao louco se atribuirá um novo status, o de doente mental, e um novo endereço, o
do hospício. A inauguração em Cuiabá, em 1928, do Pavilhão de Alienados encerra este
trabalho, quando, então, a cidade não mais expulsa os seus loucos: ela os aprisiona.
RÉSUMÉ
En 1890 a été réalisé à Cuiabá, État du Mato Grosso, un recensement urbain qui, par la
première fois, identifie, codifie et classifie ce que nous appellons folie. À ce moment nous
pouvons vérifier que la folie jouit encore d’une certaine liberté, une fois que ses adresses
étaient divers. L’identification des fous de la ville a été le premier pas donné par l’État pour
civiliser la ville et pour incluire la capitale du Mato Grosso au projet de construction de la
nation, en cours au pays à la fin du XIXème siècle. Pour entreprendre tel projet l’État a
employé plusieurs technologies de pouvoir. À travers le soin avec l’individu, l’attitude de
discipliner et de normatiser des citoyens, la ville, peu à peu, révèle ses fissures et les dangers
qui la rondent, par l’adoption de pratiques variées, dites modernes et par le la négation
d’autres, considérées dépassées et nocives au rêve du progrès. C’est dans ce contexte que
nous regardons le receuillement des aliénés de Cuiabá par les mains de la police, à la prison
publique de la capitale et à Santa Casa de Misericórdia. Toutefois, c’est à travers l’instituition
d’autre forme de tecnologie de pouvoir _ le biopouvoir _ par des pratiques d’hygienisation et
d’assainissement que nous regardons l’intensification du projet civilisateur. Dans ce cadre la
folie passe à être considérée como un danger social imminant. Le fou passe à la condiction de
malade mentale et son adresse passe à être l’hospice. L’inauguration, à Cuiabá, en 1928, du
Pavilhão de Alienados, renferme ce travail, au moment où la ville n’expulse plus ses fous: elle
les emprisonne.
INTRODUÇÃO
Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
Na pele, na palma, na pétala,
Luz do momento. . .
2
Paulo Leminski
Foi neste ambiente que ocorreu o meu contato com o tema da loucura e os estudos de
Michel Foucault. Lembro-me da primeira vez que entrei no Hospital Psiquiátrico Adauto
Botelho, em 1989, para entrevistar um médico da instituição1. Era final de uma manhã de
verão amazônico, quente e úmida. O mau cheiro do pátio central e as imagens que flagrei
permanecem até hoje na minha memória e suscitaram algumas questões: Como seres
humanos podiam ser tratados daquela forma? Quem os enclausurou? Quando surgiu o
hospício em Cuiabá? Que práticas foram adotadas e/ou interditadas que contribuíram para a
1
Esta entrevista foi realizada com o Dr. Zanizor Rodrigues da Silva, para atender às exigências da disciplina
Antropologia I, do curso de História, na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), ministrada pela
antropóloga Joana Fernandes. Um dos seus desdobramentos foi o trabalho de conclusão de curso A
institucionalização da loucura em Cuiabá na primeira metade do século XX. Cuiabá, 1993. UFMT.
2
DE CERTEAU, Michel. A operação historiográfica. In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2002. p 65.
3
apenas pelo ano. Nessa etapa do trabalho, a busca prescinde da paixão pelo tema, já que, às
vezes, demoram-se dias, às vezes semanas, até se encontrar alguma coisa que aponte pistas ou
sinais relativos à temática, remotos que sejam. Penso que talvez esteja no esforço realizável
da História (que não deve ser confundida com o cientificismo do século XIX), logo vemos
que isso não corresponde a nenhuma simplificação, ao contrário, a historiografia torna-se cada
vez mais complexa e, como toda ciência, prescinde de regras. O movimento de articulação
conjuga, a princípio, pelo menos duas destas regras: o lugar social e a prática.
outras tantas foram suscitadas. Destas, a questão da cidade adquiriu grande importância para o
meu olhar. A cidade como lugar do possível, como escreveu Peter Pál Pelbart4 como o lugar
mesma coexistência de cidadãos, mas múltiplas cidades em cada ponto de vista, unidos por
3
DE CERTEAU, Michel. A operação historiográfica. p. 65.
4
PELBART, Peter Pál. Cidade, lugar do possível. In: A vertigem por um fio: políticas da subjetividade
contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000. p. 43-49.
4
sua distância e ressoando por suas divergências”5. E aí rememoro meus tempos de criança,
quando, ainda morando em Campinas, meu pai nos levava de carro para conhecer lugares da
cidade. Pelos vãos de braços, cabeças e cotovelos, afinal éramos oito numa Rural Willys, eu
olhava atentamente para todas as ruas, lugares e pessoas de nosso trajeto e achava que
conhecia o mundo. Muitos anos depois, foi que me dei conta de que eu “conhecia” apenas
pedacinhos de mundo de uma cidade e daquilo que ela se permitia mostrar, mas aí eu já era
uma apaixonada pela cidade, pela em que nasci e por aquelas a que fui sendo apresentada no
decorrer da vida. Talvez isso explique, pelo menos parcialmente, a escolha da cidade como
um dos temas sobre o qual me debruço, por isso, se é que posso externar o sentimento
presente neste trabalho, ele é o da paixão. Todavia, esta escolha decorre também de questões
leituras que privilegiam a cidade como objeto de estudo, das quais uma percorre todo o
trabalho, aquela formulada por Angel Rama: quantas cidades existem numa cidade?
Chegaram-me, então, pelas mãos de minha orientadora, algumas obras que tratam da forma-
cidade, e foi assim que me apossei do “seu ex-livro” Cidades Estreitamente Vigiadas – o
Detetive e o Urbanista, de Robert Moses Pechman, entre outras obras, que analisam a questão
da cidade e que a tratam como o lugar privilegiado pelo Estado para interditar práticas e tentar
Assim, entre encontros e abandonos, redefini o meu tema, que trata da cidade e da
loucura. A construção do objeto, por sua vez, implica, entre outras práticas, na articulação
entre as leituras relacionadas à temática eleita e à pesquisa empírica, e deste ir-e-vir entre as
5
Ibid., p. 48.
5
extraordinário, como é o caso dos trabalhos de Michel Foucault6, que historicizou a loucura e
conceituais estão presentes nas obras A História da Loucura; Vigiar e Punir; Os Anormais e a
grandes referenciais teóricos deste trabalho, dadas a sua amplitude e densidade, já que
operados na cidade, por meio de inúmeras práticas e técnicas de poder utilizadas, para vigiar,
Robert Moses Pechman, Cidades Estreitamente Vigiadas8, cujo tema central é a questão
neste trabalho, já que ofereceram suporte necessário para proceder às análises realizadas. A
Roberto da Matta10, Carnavais, Malandros e Heróis, funcionaram como guias para percorrer
as ruas da cidade e os espaços públicos privilegiados. Serviram como percurso desta estrada.
6
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987; A história da loucura. São Paulo: Perspectiva,
1991; Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002; Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
7
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
8
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas: o detetive e o urbanista. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2002.
9
PESAVENTO, Sandra Jatahi. O imaginário da cidade: visões literárias (...) 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 2002.
10
MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis... 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
6
Os caminhos, por sua vez, estão sinalizados por meio das seguintes obras: A História do
Medo no Ocidente: 1300–1800, de Jean Delumeau11, que foi fundamental para compreensão do
medo então presente no imaginário coletivo cuiabano, em decorrência de vários fatores, mas,
sobretudo, da peste, o que será tratado ao longo do trabalho. Em O Espetáculo das Raças, de Lilia
mundo da ciência, e que, de certa forma se alia à obra de Serge Gruzinski13, Os Pensamentos
Mestiços, ao demonstrar, entre outras coisas, que o estranhamento do nosso olhar é construído
culturalmente.
da Fiocruz, cujos trabalhos voltam-se para as políticas de saúde mental no Brasil e os arquivos da
pensar nos rizomas e nos devires, conceitos que foram formulados por Gilles Deleuze e Felix
Guatarri e que ainda são tão desconhecidos, sobretudo por aqueles que os rejeitam.
11
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: 1300–1800 (...) São Paulo: Companhia da Letras, 1989.
12
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas (...) São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
13
GRUSINSKY, Serge. Os pensamentos mestiços. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
14
REZENDE, Heitor.Política de saúde mental no Brasil: uma visão histórica. In: Cidadania e loucura. Políticas
de saúde mental no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 16-69.
15
PORTOCARRERO, Vera. Arquivos da loucura. (...) Rio de Janeiro, Fiocruz, 2002.
16
CALIMAN, Luciana Vieira. Dominando corpos, conduzindo ações... 2001. Dissertação (Mestrado em Saúde
Coletiva) - Instituto de Medicina Social, UERJ, Rio de Janeiro.
17
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
18
BRANDÃO, Ludmila de Lima. A casa subjetiva: matérias, afectos e espaços domésticos. São Paulo:
Perspectiva; Cuiabá: Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso, 2002.
7
Hospital Psiquiátrico Juqueri, em São Paulo; também a de Yonissa Marmitt Wadi20, cujo
trabalho traz o contexto de construção do Hospício São Pedro, em 1870, em Porto Alegre,
além dos trabalhos que tratam deste tema na historiografia regional, como as monografias de
Loiva Canova21, Lisle Maria da Silva22, Aúrea Assis Lamber e Sueli B. Oliveira23, entre
outros de outras áreas, que, apesar de ser referências importantes, não foram utilizadas neste
dificuldade penso que foi superada com o auxílio daqueles que detêm tal domínio, os
escritores e poetas. Os literários, com sua potência criativa, enveredaram pela temática da
loucura muito tempo antes que nós, historiadores. O Alienista, de Machado de Assis25, o
todos publicados nos séculos XIX e XX, além de algumas obras de outros artesãos da palavra,
como Ítalo Calvino28, Edgar Allan Poe29, Franz Kafka30 e Charles Baudelaire31, foram como
19
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo. Juquery... São Paulo: Paz e Terra, 1986.
20
WADI, Yonissa Marmitt. Palácio para guardar doidos (...) Porto Alegre: UFRGS, 2002.
21
CANOVA, Loiva. A loucura é uma loucura: as representações sobre o louco e a ordenação do espaço urbano
em Cuiabá (1889–1931). Departamento de História - UFMT.2000.
22
SILVA, Lisle Maria da. Hospital de alienados: esboço para um enfoque histórico-social. UFMT - 1988.
23
LAMBER, Aúrea Assis; OLIVEIRA, Sueli B. História do atendimento ao doente mental no Estado de Mato
Grosso até 1970. Cuiabá, 1995. Monografia (Especialização em Enfermagem) - UFMT.
24
À exceção de informações contidas nas citadas monografias de Aúrea de A. Lamber e Sueli B. Oliveira.
25
ASSIS, Machado de. O alienista. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
26
BARRETO, Lima. Cemitério dos vivos. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1961.
27
ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos de aprendiz. 10. ed. São Paulo: José Olimpio; Civilização
Brasileira e Editora Três, 1973.
28
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
29
POE, Edgar Allan. Os melhores contos de Edgar Allan Poe. São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/d.
30
KAFKA, Franz. O Processo. Lisboa: Europa–América. S/d.
31
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
8
locais de visita permanente para que a minha mão, no decorrer da escrita, ainda que tremesse,
não se transformasse em chumbo, impossível de ser segurado, pelo seu peso, e, mais ainda, de
ser lido.
∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗
neste trabalho, para se percorrer o processo civilizatório. O marco temporal de seu início
intelectuais.
qual se ocuparam governantes, autoridades policiais e médicas, entre outros, e que, neste
Cuiabá, em fins do século XIX, é uma cidade com uma população urbana de pouco
mais de 9.000 habitantes34, marcada pela guerra, pela peste e pela fronteira. São marcas
indeléveis que os seus governantes tentarão apagar, pelo menos na parte que se traduz como
32
Há controvérsias a respeito da data de fundação, como observa Sandra Pesavento: “... todo ato fundador tende
a se sacralizar...” Assim, a data oito de abril, como data de fundação de Cuiabá, foi sacralizada no Governo de
Dom Aquino Corrêa, através da Legislação de Mato Grosso. Já o historiador Carlos Alberto Rosa rejeita essa
data e afirma que a Ata redigida por Pascoal Moreira Cabral em nenhum momento traz a palavra fundação;
esta Ata simplesmente oficializa o registro da descoberta de ouro na região, cuja atividade era realizada desde
1716. Jornal A Gazeta. 8/4/2002. p. 2.
33
A primeira capital de Mato Grosso foi Vila Bela da Santíssima Trindade, instalada em 1752 por Dom Antonio
Rolim de Moura, 1º Capitão General de Mato Grosso. A transferência de capital para Cuiabá ocorreu em 1832.
34
Censo 1890 – Arquivo Público de Mato Grosso (APMT).
9
pontos negativos. Ainda no período colonial, a guerra contra algumas etnias indígenas foi uma
de Sá35, o que implicava num ambiente de tensão permanente para os conquistadores, já que
final do século XIX e início do século XX, e concorre para a construção da figura mítica do
contra o Paraguai (1865-1870) foi o acontecimento que evidenciou, entre outras coisas, a
rio Paraguai, como Cáceres e Corumbá, tanto quanto o distanciamento desses locais com
A ocupação de Corumbá pelas tropas paraguaias, por sua vez, suscitou a discussão
em torno da condição de fronteira da província, tema que se tornou uma questão cara no
século XIX e adentrou o século XX. As fronteiras são pensadas, neste trabalho, como
conceitos múltiplos que servem para designar a linha tênue que separa civilização e barbárie,
os limites entre a razão e a desrazão e que, segundo a assertiva de Margarida de Souza Neves,
35
BARBOSA DE SÁ, José. Relação das povoações do Cuiabá e Mato Grosso, de seus princípios até os
presentes tempos. Cuiabá: UFMT, 1975.
36
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850–1888. p 42.
10
que, nessa situação, o encontro com outros povos ocorreria sob a égide da violência.
ocorrências nefastas. A enchente do rio Cuiabá, em 1867, trouxe a destruição para parte da
cidade de Cuiabá, a região do porto. A epidemia de varíola, no mesmo ano, produziu o que se
mais temia, a morte, que ceifou a vida de grande parte da população cuiabana38. Assim, a
elas integraram a representação mental da peste, uma vez que “é ao mesmo tempo identificada
como uma nuvem devoradora vinda do estrangeiro e que se desloca de país em país, da costa
para o interior e de uma extremidade à outra de uma cidade, semeando a morte à sua
“recorrente, a peste, em razão de seus aparecimentos repetidos, não podia deixar de criar nas
37
NEVES, Margarida de Souza. Fronteiras. A Gazeta, Cuiabá, 9 jul. 2002. p. 1E.
38
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão. p. 56-81.
39
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. p. 112.
40
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. p. 108.
11
mal, quando este se aproximava, como para combatê-lo, quando as evidências comprovavam
que este era um fato. Medidas inócuas, sob o ponto de vista contemporâneo, mas
compreensíveis para a época, se considerarmos que “até o final do século XIX, ignoraram-se
as causas da peste que a ciência de outrora atribuía à poluição do ar, ela própria ocasionada
por funestas conjunções astrais, seja por emanações pútridas vindas do solo ou subsolo”41.
É nesse ambiente marcado pelo medo que encontramos a cidade de Cuiabá, em fins
do século XIX, ainda mantendo a cartografia representada pela iconografia42, que mostra a
disposição de suas edificações sob a forma de uma muralha — ainda que não se trate, é claro,
das muralhas propriamente ditas, que, no período medieval, protegiam as cidades européias e
seus habitantes de possíveis ataques. Na iconografia do século XVIII, a cidade que vemos
assim construída sugere que caberia aos seus habitantes o papel de guardiões contra possíveis
ataques durante um longo período43. Todavia, na posterior cidade moderna, sob o efeito da
implantação de uma sociedade disciplinar, a própria cartografia será alterada e outros atores
constituída pelos processos de modernização (bem como constituidora), Peter Pál Pelbart alia-
fluidez, da exterioridade. Tudo que ela opera ou faz operar no oposto do movimento e da sua
41
Ibid., p. 110.
42
Pintura a/d. Expedição Alexandre Rodrigues. Acervo: Museu de Hamburgo/ Reprodução- IPHAN-MT.
43
Esta observação é apenas uma inferência que fazemos, já que neste trabalho não pretendemos realizar
nenhuma análise iconográfica ou iconológica das imagens que porventura sejam referidas.
12
É a partir deste ponto de vista que compreendemos a cidade como o local escolhido
pelo Estado — nunca ela em si mesma — para interditar práticas tidas como atrasada ou
práticas que tendem a escapar a qualquer controle (em geral umas e outras acabam sendo
obstam o desejo premente de construção da nação que querem para si. Entre essas práticas,
encontram-se aquelas que passaram a ser classificadas como “irracionais”, isoladas no âmbito
exclusão. Tomo de Peter Pál Pelbart45 a compreensão do “louco” “como esse personagem
social discriminado, excluído e recluso” e por “loucura”, que em trabalho anterior o autor
designou por desrazão, como “uma dimensão essencial de nossa cultura: a estranheza, a
ameaça, a alteridade radical, tudo aquilo que uma civilização enxerga como o seu limite, o seu
44
PELBART, Peter Pál. Cidade, lugar do possível. p. 46-47.
45
PELBART, Peter Pál. A utopia asséptica. In: A nau do tempo rei... Rio de Janeiro: Imago, 1993. p. 105.
13
censo, como também em outras fontes, foi apenas a primeira de uma série de medidas
corroborará para que a loucura seja percebida como o seu outro, o seu contrário, e que,
uma vez que, até essa data, não havia nenhum hospício ou espaço embrionário deste em Mato
Grosso. Mas o manicômio, no Brasil, em fins do século XIX, já não era uma novidade. O
primeiro deles — o do Rio de Janeiro, sede do Império —, foi inaugurado em 1852, batizado
com o mesmo nome do Imperador Pedro II, cuja localização na época foi cuidadosamente
escolhida, ou seja, bem longe do centro da cidade, na Praia Vermelha. A decisão de sua
criação reunia aspectos políticos e considerações científicas. Heitor Rezende salienta, todavia,
que tal base científica aportou no Brasil modificada46 e faz a seguinte consideração:
“Socialmente ignorada por quase trezentos anos, a loucura acorda, indisfarçadamente notória
e vem engrossar a leva de vadios e desordeiros nas cidades, e será arrastada na rede comum
Esse comentário revela várias questões relevantes, como uma percepção moral da
loucura, tal como apresenta Michel Foucault com relação à Europa no período que antecede o
46
REZENDE, Heitor.Política de saúde mental no Brasil (...) Petrópolis: Vozes, 1994.
47
Ibid., p. 35.
14
nação, civilização e identidade brasileira, que tem a cidade como vitrine para visualizar tal
O Hospício Pedro II foi construído para receber pessoas de todo o Império, com
capacidade para abrigar 350 loucos, mas, se na data de sua inauguração contava com 144
enfermos, pouco mais de um ano após a sua abertura, já estava com a lotação completa50.
apenas alguns casos isolados, no final do século XIX, conforme as fontes que serão
que acusavam o desejo de distanciamento dos republicanos de tudo que remetesse à época
anterior, a começar pelo nome: a instituição foi rebatizada com o nome de Hospício Nacional
de Alienados. A direção foi retirada das mãos das religiosas e passou a ser exercida por um
divisão por seções e classes e formas de encaminhamento de pacientes52. Mas, de acordo com
48
FOUCAULT, Michel. A grande internação. p. 45-78.
49
AMARAL, Maurília Valderez Lucas do. Razão de Estado e Estado de Polícia. In: Constituição do sujeito,
governamentalidade e educação. 1998. Dissertação (Mestrado em Educação) - UFMT, Cuiabá. p. 61-65.
50
REZENDE, Heitor. Política de saúde mental no Brasil. p. 37.
51
Relatório Ministerial. Ministério do Interior. Hospício Nacional de Alienados Rio de Janeiro, 1891. Neste
relatório é informado que o Hospício foi desanexado da Santa Casa de Misericórdia, pelo Governo Provisório,
em 11/1/1890, e que a retirada das irmãs de caridade resultou em escândalos, mas que a atual direção
encontrou inúmeros documentos que comprovam os maus tratos praticados pelas religiosas contra os
pacientes. A falta de pessoal com conhecimento técnico para prestar atendimento adequado, conforme o
relatório, implicou na contratação de 20 enfermeiras, formadas na Escola Municipal de Paris.
52
Instruções - Assistência Médico-Legal de Alienados. Rio de Janeiro, 1890. Caixa 1890. Fundo Saúde/APMT.
15
de Morel e Magnan, cujo pensamento, segundo Rodrigues “patejava neste estuário levadiço
das ‘degenerações’”53. Para Lopes Rodrigues, a psiquiatria científica só ocorreu no Brasil com
Juliano Moreira. Convém ressaltar que tal observação tem o intuito apenas de situar a
abordagem da loucura no Brasil, mais precisamente aquela preconizada pelo Estado e que foi
capitais — e demonstrar como a loucura foi percebida em Cuiabá no período anterior à sua
institucionalização.
Problema de difícil resolução esse das relações entre a cidade que se busca civilizar e
a loucura. Através das práticas de disciplinarização e higienização que neste trabalho são
percorridas, é possível perceber os deslocamentos, pelas mãos dos cronistas do período, dos
governantes, das autoridades e funcionários públicos. Com eles talvez possamos desencavar
os segredos da cidade, tentando uma aproximação com o que brilhantemente realizou Robert
Moses Pechman, como o detetive que segue pistas para desvendar o mistério que envolve a
cidade, desnudando-a naquilo que ela própria não se permite dizer. As práticas apresentadas e
analisadas nesta dissertação são pensadas não como produto, mas como terreno propício que
convergirá para a inauguração do Pavilhão dos Alienados, anexo à Santa Casa, em 1928,
como o primeiro passo para a transformação da loucura em doença mental, por meio da
No primeiro capítulo percorremos a cidade, seus lugares e personagens, com ênfase para
os alienados, tomando como referência o recenseamento de 1890 e outras fontes. Cuiabá, nesse
período, carrega as marcas da peste, da guerra e da fronteira, o que nos aproxima sobremaneira da
cidade de Porto Alegre, da obra de Pesavento. É digna de nota aqui, particularmente, a descrição das
ruas e seus respectivos nomes que evocavam sensações, que vão, aos poucos, sendo substituídos,
53
REZENDE, Heitor. Política de saúde mental no Brasil. p. 43.
16
como parte do projeto de modernização, por nomes que sugerem acontecimentos e construção de
civilização inscrito nas cidades modernas é, sem dúvida, uma referência presente neste e também
nos demais capítulos. A História da Loucura, de Michel Foucault, por sua vez, é imprescindível
sobre as práticas da Polícia explicitadas nos ofícios, relatórios e regulamentos. Essas fontes também
gradualmente desencobrem a cidade, expondo aquilo que ela tenta ocultar. A referência teórica mais
importante para a composição deste capítulo é a obra Vigiar e Punir, de Michel Foucault.
encarceramento dos loucos em espaços construídos especialmente para esse fim. A inauguração, em
1928, do Pavilhão dos Alienados, anexo à Santa Casa de Misericórdia, encerra este trabalho, quando
então o saber médico em Cuiabá já deu os primeiros passos, no sentido de tomar para si o alienado e
Três de fevereiro de 189055. A aurora já anuncia a sua chegada juntamente com o homem que
vem apagar os lampiões56. O cheiro da terra molhada misturada aos odores que exalam das imundícies
jogadas em qualquer lugar57 denuncia a chuva do início da madrugada que expulsou os freqüentadores do
batuque58 costumeiro das bandas do Baú59 e que quebram o silêncio noturno, a despeito de antigas
proibições60. A brisa fresca do princípio da manhã obriga o Senhor J.61 a ajeitar o paletó e o chapéu,
peças da indumentária escolhidas com apuro para a expedição que vai liderar, assim como as botas
possivelmente um pouco gastas pelo tempo, mas reforçadas o suficiente para o serviço. A comitiva,
composta de um amanuense62 e alguns ajudantes, aproxima-se do Senhor J. e confere o equipamento que
será utilizado: um grande livro de capa dura; tinta, tinteiro e pincel, tudo de boa qualidade trazidos do
estrangeiro por um dos muitos vapores que abastecem as casas comerciais locais. Essas casas, que já são
muitas por estas paragens, inundam o comércio de coisas variadas: maquinários, tecidos, azeites, vinhos,
cristais, pianos, drogas, perfumes, louças, ferramentas, livros, ferragens, sombrinhas, entre tantas outras
necessidades antigas e novidades – quinquilharias, algumas delas incorporadas ao repertório do consumo
local, já que despertaram o interesse de alguns, e em certos casos, acabaram virando “moda”. Nas ruas
ainda desertas de pessoas, animais de pequeno porte circulam à vontade, enganando facilmente qualquer
estrangeiro, já que de longe parecem cachorros, que também existem muitos pela cidade, sejam vira-
54
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 44
55
Este trecho não foi extraído de nenhuma fonte; trata-se, na verdade, de uma licença poética que a autora se
permitiu.
56
Indicador de Leis e Decretos. 1892. p. 1/APMT.
57
1844- Posturas Municipais. Título 1º Art. 1º Fica proibido lançar nas ruas e praças da Cidade, Arrayes
Adjacentes animais mortos e outra qualquer imundície. APMT.
58
Designação comum às danças negras acompanhadas de instrumentos de percussão. In: FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d. p. 193.
59
Denominação antiga do atual Bairro Lixeira existente em Cuiabá, localizado nas proximidades da Igreja do
Rosário.
60
Os batuques foram proibidos em 1844, conforme o artigo 10º do Código de Posturas Municipais.
61
O Senhor J., na verdade, é José Barnabé de Mesquita, responsável pela coordenação dos trabalhos de
recenseamento da população urbana de Cuiabá. Pai de José Barnabé de Mesquita, um dos fundadores do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, instalado em Cuiabá em 1919, é por isto citado na historiografia
como José Barnabé de Mesquita Sênior. Para evitar confusões, optou-se, nesta parte do trabalho, por tratar o
mesmo como Senhor J.
62
Funcionário público de condição modesta que fazia a correspondência ou registrava documentos. In:
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da língua portuguesa. p. 80.
18
latas e sejam os de raça63. Mas neste caso, são os porcos de sempre que as pessoas insistem em criá-los
soltos, ignorando por completo as reclamações do Intendente64. Diante do Palácio do Governo, o Senhor
J. transmite as últimas instruções desta expedição que nos próximos dias percorrerá todas as casas e
casebres localizadas nas ruas, travessas e becos dos dois distritos da cidade. Nenhum morador será
ignorado, do patrão ao criado de todas as moradias, todos os seus ocupantes serão identificados,
revelados, à exceção dos presos da cadeia e do corpo de soldados do Quartel, simplesmente porque,
estes, já se sabe quem são. O ranger de portas sendo abertas indica que a cidade já acordou, logo todo o
comércio estará aberto e os meninos seguirão para a escola65. O relógio de bolso avisa: é hora de
trabalhar. Daí a mais um pouco já se ouvem os sinos da Catedral.
∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗
dois livros66, que traça e desenha um quadro da população urbana de Cuiabá, dividida em
que adquire contornos mais bem definidos e consideravelmente distintos daqueles iniciados
63
1844 - Posturas Municipais. Título 2º Art. 9º “A ninguém se permite o ter cães soltos (exceto os de caça) nas
ruas, os quaes poderão, precedendo de qualquer Autoridade policial, ser mortos por qualquer pessoa do
povo...” APMT.
64
1844 - Posturas Municipais. Título 1º Art. 4º. APMT.
65
Código de Posturas de Cuiabá. 1832. “1º Todos os moradores desta cidade de qualquer condição que seja, que
tiverem Meninos livres em suas companhias de idade de seis a quatorze anos, da data desta em diante os
ponham nas Escolas Públicas, ou nas particulares...” APMT.
66
Recenseamento de Cuiabá em 1890 - 2 volumes. APMT.
67
O conceito de fundação aqui utilizado é o mesmo de que trata Flora Sussekind na obra O Brasil não é longe
daqui.
19
paisagem nacional se desvia das cenas primordiais da constituição da nação para repousar
necessidade de desnudar, retirando uma a uma as camadas que a encobrem e que apresentam
cartórios de registrar nascimentos, casamentos e óbitos, como também vão além destes, ao
anotar os nomes de todos os moradores da sua porção urbana, as respectivas idades, o estado
civil, profissão, raça, nacionalidade, religião, e se estes sabiam ou não ler, se freqüentavam ou
não a escola, além de registrarem algum defeito físico que porventura possuíssem.
Decorridos quatro meses e vinte e um dias, a tarefa de coleta de dados foi cumprida,
de amanuense e auxiliares abatidos pela epidemia de gripe que atingiu quase toda a população
de Cuiabá70, nesse período, felizmente sem nenhum óbito registrado,“por estar a cidade em
O censo é como um guia que nos conduz a inúmeros lugares, suscita questões e
mundo agrário e, sobretudo, ao processo de constituição de uma nova ordem social. É certo
68
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 16.
69
Ofício de José Barnabé de Mesquita ao Governador Antonio Maria Coelho. Caixa 1890. Fundo Saúde/APMT.
70
Ofício de 24/06/1890 de José Barnabé de Mesquita ao Governador de Mato Grosso Antonio Maria
Coelho.Caixa 1890- Fundo Saúde- Maço Estatística/ APMT.
71
Ofício de 10/06/1890 do Inspetor de Higiene ao Presidente do Estado. Caixa 1890. Fundo Saúde - Maço
Inspetoria de Higiene/APMT.
20
porção urbana.
Ruas, travessas, becos e praças, cujos nomes ainda permanecem inalterados em 1890, desde a
época colonial, evocando sentimentos ou indicando a localização de algum ponto importante ou endereço
de alguém, podem ser compreendidos como
72
A tese de que a estagnação e o declínio da atividade mineradora em Mato Grosso ocorreram somente no início
do século XIX — ao contrário da assertiva de muitos historiadores que datam esta ocorrência em meados do
século XVII — é defendida por Romyr Conde Garcia na tese de doutorado: Mato Grosso (1800–1840): crise e
estagnação do projeto colonial. São Paulo, 2003. USP.
73
PESAVENTO, Sandra Jatahi. O imaginário da cidade. Visões literárias do urbano (...) 2. ed. Porto Alegre: Ed.
UFRGS, 2002 p. 252.
21
tal qual a Rua dos Porcos, pelo grande número de porcos criados não apenas nos quintais, como também
soltos pelas ruas; ou a Rua da Misericórdia, por causa da Santa Casa de Misericórdia instalada no início
do século XIX74. Enigmas ainda não revelados sugerem perguntar o que teria ocorrido na Rua dos Aflitos?
Quantos desejos foram encerrados no Beco da Esperança? O que ou quem demorava na Travessa da
Paciência? Que práticas ensejavam os moradores e freqüentadores da Rua dos Prazeres?
Mas essas “palavras da cidade” de um período anterior encontravam-se com outras, batizadas
no período recente e que aludem a fatos, acontecimentos e pessoas que se deseja personificar, tais
como: Rua Barão de Melgaço, 13 de Junho, Comandante Antônio Maria, Rua 7 de Setembro e Travessa
Voluntários da Pátria, e muitos outros. Vê-se de imediato que se já não é uma outra cidade, já se trata
de uma cidade imaginada bem diversa da primeira; são outras as expectativas que se têm dela. Estes
nomes se reportam, na sua maioria, à Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai e passam, a partir de
então, a se constituir como uma das marcas que a cidade carrega.
A rua do Coronel Alencastro foi o local escolhido para iniciar o recenseamento e revela a época
de sua realização, uma vez que é nela que se concentram o Palácio do Governo, o Quartel General e a
Intendência Municipal, alguns dos principais organismos de poder da República recém-instaurada.
∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗
Este é o primeiro sinal dos muitos que virão a seguir que evidenciam as mudanças
que se operavam em Cuiabá naqueles tempos, tanto no que diz respeito às instituições de
quando a Igreja, o Senado da Câmara e a Cadeia eram os principais símbolos de poder vigente
—, como por meio da adoção de inúmeras práticas e representações que aqui se configuram
como o estabelecimento de um novo centro, ou o que pretendia se fosse reconhecido dali por
74
VOLPATO, Luiza Rios Ricci. Cativos do sertão: vida cotidiana e escravidão em Cuiabá em 1850–1888.
Cuiabá: Marco Zero e Editora da UFMT. 1993. p. 29.
75
Censo 1890/APMT.
22
quadra, que não era exclusivamente cívica — caso do Barão do Diamantino, então com 74
anos, nascido no finalzinho da Colônia, criado no Império, quando também se torna nobre;
vindo a morrer como um capitalista, na República76. A rua era ainda marcada pela mistura:
próximos do Barão, residiam o copeiro Benedicto de Faria, a professora Luisa Hans Jacob,
suíça, solteira e protestante, e Maria, lavadeira, preta, solteira, católica e brasileira; todos sem
apesar de almejar laicizar-se, mantém uma certa proximidade com a Igreja e reconhece nesta
Catedral da Sé, ainda em estilo colonial, com um grande sino em seu campanário, símbolo de
regulação do tempo78 que se deseja que se torne passado, e também o Quartel do Batalhão; em
anteriormente ocupado pela cadeia, quando a rua se chamava Bela do Juiz. É nesse quartel
que encontramos vários praças, dentre os quais o de nome Manoel Lourenço de Almeida,
considerado, em 1891, pelo Chefe de Polícia Emiliano Augusto de Matos, portador de “todos
Estado para que fosse submetido “a exame médico a fim de ser excluído da referida
que ressurgiu como ciência na segunda metade do século XVIII, pelas mãos de Johann Caspar
Lavater, fruto de mais um cruzamento entre “a história social e a história natural [que
76
Censo 1890/APMT.
77
Id.
78
A respeito das mudanças ocorridas na concepção de tempo, ver o trabalho de Edward Thompson.
79
Ofício do Chefe de Polícia ao Presidente do Estado. 28/02/1891. Fundo Saúde. Caixa 1891/APMT.
23
intentava seguir] a trilha de uma semiótica médica que (...) vasculhava a cidade à procura de
Segundo Pechman,
Deste modo, a cidade, pode ser entendida como um laboratório, cujos espécimes
Lavater, mas de muitos outros, como os de Césare Lombroso, com grande repercussão no
Brasil e sobre o qual se tratará mais adiante, mais precisamente no terceiro capítulo. Mas a
cidade é também “a realização do antigo sonho humano do labirinto”, como afirmou Walter
Benjamim82, e a massa humana é, por sua vez, o meio mais curto para alcançar o labirinto.
lançou mão. Esta é uma das possibilidades de compreensão do censo de 1890 na capital mato-
grossense e, por esta razão, prosseguimos, de certa forma, acompanhando o mapa inscrito
80
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 245, 285.
81
Ibid., p. 285.
82
Ibid., p 281.
83
A utilização dos conceitos de mapa e cartografia apóia-se nos trabalhos de Delleuze e Guattari.
24
cidades, vilas e povoações do interior da Província e também desta com outras províncias, a
uma circulação, cuja incumbência é fazer passar os fluxos”, conforme ressaltou Pelbart84, o
cuiabanos, cujas produções eram disseminadas nos periódicos locais, que viriam,
Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, instalados em 1919 por ocasião do bi-
comandados por negociantes, freqüentados por aqueles que podiam comprar, e visitados por
Assim, a cidade, nessa época já possuía alguns pontos delimitados e não podia mais
ser confundida com a cidade de Zoé, conforme Marco Pólo, que apresentou a seguinte
descrição:
84
PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio. p. 47.
25
em 1890; assim, tanto fazia ser domingo, feriado, ou terça-feira, todo tipo de comércio
permanecia aberto, pelo menos até 1893, quando foi determinada a proibição de abertura das
casas comerciais aos domingos. Essa medida provocou reações indignadas, a exemplo do que
fez o Intendente Municipal da capital em seu relatório anual, com críticas a tal determinação,
utilizando como argumento a Constituição Federal, naquilo que dispõe sobre o respeito a
qualquer religião, conforme artigo 148. O Intendente conclui então que “Assim é intuitivo que
não podemos obrigar o judeu, o luterano ou calvinista, o [...] e o budista a guardar o domingo,
como uma obediência a religião católica, apostólica romana[...]”86. Possivelmente essa reação
tinha mais relação com os interesses econômicos que estavam em jogo do que como forma
manifesta de repúdio à igreja católica. Mas, já que tal determinação não se aplicava a todos os
estabelecimentos comerciais, os demais, como barbearias e tavernas, estavam livres para abrir
suas portas diariamente, o que causava alívio aos seus proprietários, sobretudo àqueles
instalados nas cercanias das instituições de poder da capital, como era o caso do Senhor José
da Cruz Ferreira, brasileiro, casado com Dona Ana Maria da Cruz, pai de três filhos e
proprietário de uma taverna, situada na Rua Antonio João, 2673, local que também servia de
comitiva caminham por ruas estreitas e tortuosas, típicas das cidades mineradoras do período
colonial português, num padrão de plano urbano definido por Sérgio Buarque de Holanda
85
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. p. 34-35.
86
Relatório semestral da Intendência Municipal de Cuiabá. 1893/APMT.
87
Quadro geral da população urbana do 1º Distrito da capital de Mato Grosso. 1890./APMT.
26
Holanda,
[...] o traçado geométrico jamais pôde alcançar, entre nós, a importância que
veio a ter em terras da coroa de Castela: não raro o desenvolvimento ulterior
dos centros urbanos repeliu aqui esse esquema inicial para obedecer antes às
sugestões topográficas. A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que
norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua
atividade88.
logradouros89, mesmo na parte central do primeiro distrito no final do século XIX e início do
fevereiro, poças de água estagnada se formavam por toda parte, sobretudo nas proximidades
citadinos um aspecto macilento e era o maior inimigo das moças, já que era impossível
manter limpas as barras das saias e vestidos, como relata o cronista, por ocasião dos festejos
do Divino:
daquele elaborado por Mesquita, cruzando no caminho com alguns morféticos, confirmando o
que relatou o Provedor da Santa Casa ao Presidente do Estado sobre o fato de percorrerem as
ruas da capital alguns doentes que estavam recolhidos no Hospital São João dos Lázaros92, à
88
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 109.
89
Código de Posturas de Cuiabá, 1832. Art. 4º.
90
Ofício nº 46 do Inspetor de Higiene ao Secretario de Fazenda. Caixa 1912- Fundo: Saúde - APMT.
91
Jornal “O Comércio”. 12/05/1910. NDHIR-UFMT
92
A respeito da história do lazareto São João dos Lázaros, conferir: NASCIMENTO, Heleno Braz do. A lepra
em Mato Grosso: caminhos da segregação social e do isolamento hospitalar (1924-1941). Cuiabá, 2001.
Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Ciências Humanas e Sociais. UFMT.
27
procura de alimento para a sua subsistência, conforme noticiou o último número da Gazeta. O
A fuga para a rua daqueles que estavam proibidos de circular livremente era
justificada pelo Provedor, tanto pelo vício da bebida, como pelas precárias condições da Santa
Casa de Misericórdia e do Lazareto. Aliás, esse tipo de ocorrência servia de argumento para
Estado, que informa o atendimento ao pedido de aumento na subvenção da Santa Casa “para
doentes afetados pela epidemia reinante que para lá se dirigem em busca de tratamento”94.
Delícias que passavam sobre a cabeça dos inúmeros ambulantes, longe do alcance fortuito de
alguma mão ligeira, mas cujo aroma incitava o esticar de pescoços e o movimento de erguer
das cabeças, para olhar, apreciar e desejar deliciar-se com iguarias da culinária local. Tais
movimentos, que estabeleciam a quebra do fluxo contínuo do arrasto, eram facilitados pelo
retorno do tabuleiro vazio para casa ao fim do dia, ainda que o tempo idealizado pelo capital
fosse o da velocidade.
93
Ofício do Provedor da Santa Casa ao Presidente do Estado. Caixa 1890- Fundo: Saúde - APMT.
94
Ofício do Presidente Antonio Maria Coelho. Caixa 1890- Fundo Saúde- APMT.
28
Passos ligeiros eram o ritmo constante, mas não o único, tal qual o tique-taque do
relógio, que acelera quando se desloca da marcação das horas para minutos e destes para
moderna. Os bondes puxados a tração animal — cuja utilização era feita principalmente no
anunciava a chegada de algum vapor ao porto do rio Cuiabá — e os animais de montaria eram
os meios de transporte utilizados até o início do século XX. Ainda que não alcançassem a
rapidez almejada, eram mais rápidos, contidos e mais facilmente domesticáveis do que as
na paisagem citadina cuiabana como meio de transporte coletivo96. Os trens, por sua vez,
especificidades do capital, como agilidade e rapidez, mas também temos outros tempos
inscritos nesta paisagem, alguns valorizados e aclamados; outros passam a ser repudiados no
projeto de civilização.
quarteirão e outros.
95
Relatório do Tribunal da Relação. Caixa 1893. Fundo: Saúde/ APMT.
96
O presidente do Estado de Mato Grosso, Dom Aquino, informou a contratação do fornecimento do serviço de
transporte urbano automotivo na capital mato-grossense, por ocasião do bicentenário de Cuiabá. Mensagem
governamental relativa ao exercício de 1919.
29
por ocasião dos preparativos das festas religiosas, entre as quais se destacavam as festas de
Santo Antônio, São João, São Benedito e a festa do Senhor Divino, que aparece nos
periódicos locais como o principal evento dessa natureza no período, possivelmente por
e Raimundo Bastos registraram o movimento nas ruas cuiabanas nas décadas de 1910 e 1920,
sobretudo nos dias de festas, quando a população se vestia com o requinte que lhe era
Estamos em plenas festas! [...] Doidos pelas ruas correm velhos e matronas,
rapazes e moças, meninos e meninas, todos sobraçando embrulhos e caixas
com vestidos e fatiotas, chapéus e botinas para a festança do Divino e do
Janota.
As nossas ruas tornam-se deusadamente movimentadas e possuídas de um
aspecto mais alegre. E as festanças tem sido concorridas; o povo move-se em
massa para assistir as esmolas, as missas de madrugada e outros atos
religiosos. O leilão foi sublime! Imaginem quantos trabalhos bonitos não
houve por lá, trabalhos feitos pelas delicadas mãos de nossas patrícias! E
esses mimos arrematados por quaisquer vinte mil réis!
97
Jornal O Comércio. 07/04/1910. Núcleo de Informação Histórica e Regional (NDIHR)/UFMT.
30
Quantas brigas, arrufos e outras coisas não houve no dia do leilão, entre
namorados, noivos, visando estas discórdias para o coió não arrematar um
presentinho para a coióa? [...] Chega o domingo grandioso! Nesse dia, não
há nem cozinheira, nem lavadeira, nem pessoa alguma que queira perder a
missa de festa e procissão. Os rapazes no seu smartismo com a envergadura
de um terno novo, ficam a todo transe, querendo mostrar o talhe elegante que
o alfaiate lhes fez na roupa. As moças nesse dia, fazem a exposição dos seus
chapéus enormes, verdadeiros balaios, cheios de morangueiro e ramos de
São Caetano e dos ultra-magníficos vestidos de cores indescritíveis cheios de
enfeites, de nove horas e nós pelas costas [...]98
O movimento frenético de pessoas pelas ruas da capital, que a cidade atraía por conta
das festas religiosas, também ocorria no período eleitoral, mas este era um povo que diferia
que não surpreende, afinal, o direito ao voto estava ainda circunscrito aos homens de posse.
Assim, o cenário político se inscrevia com alguns traços característicos, quer pela ambiência
sobretudo, da negociata, já que o voto era encarado como mercadoria, passivo, portanto, de
econômico e “prestígio” político. Uma outra diferença que o cronista parece desejar
estabelecer é entre o homem citadino e aquele da porção rural. Nesta comparação, o vestuário
[...] nos dias próximos das eleições, as nossas ruas adquirem um regular
movimento: é gente que passa abarcando trouxas de roupas ou caixas de
chapéus de largas abas, tudo preparado para a votação. Os proprietários das
98
Jornal O Comércio. 12/05/1910. NDIHR/UFMT
31
nossas casas comerciais [...] tem sempre as suas lojas cheias de eleitores,
moradores, quase sempre, dos lugares afastados da capital, e que, por meio de
uma cabala desenvolvida ‘tout a fait’ admiravelmente, aqui vem receber os
seus respectivos quinhões para votarem no seu Herme ou Ruy. E estes
presentes consistem sempre em ternos de brim, camisas, botinas e algumas
vezes dinheiro que alegram o pessoal votante e os fazem fanáticos pela
candidatura que o comerciante lhes aponta. Então, no dia das eleições, como
dizem, a cidade move-se e as ruas regurgitam-se de povo; uns envergam
paletós muito largos com mangas curtas; outros tem as calças larguíssimas e
também curtas; outros trazem espaventosas de cores que simbolizam o partido
a que pertencem, ou enormes colarinhos que lhe ficam quase a desaparecer a
cabeça, ou também grandes chapéus enterrados até a nuca [...]99
Mas a multidão cuiabana (nos momentos em que ela surge em cena revelada, e de
forma aclamada, pelas mãos dos cronistas, como os mencionados anteriormente), em nada se
assemelha à multidão das cidades descritas pelos escritores do século XIX, como o fez Edgar
Allan Poe, no instigante conto O homem da Multidão100 ou aquela dos Quadros Parisienses,
partir deste Quadros que Walter Benjamim elabora a teoria do choque relativa à poética de
99
Jornal O Comércio. 17/03/1910. NDIHR/UFMT
100
POE, Edgar Allan. O homem na multidão. In: Os melhores contos de Edgar Allan Poe. São Paulo: Círculo do
Livro S.A. s/d. p 130.
101
Cf., a este respeito, BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Textos escolhidos. São
Paulo: Abril Cultural. 1980.
32
esconder sua repulsa —, a multidão cuiabana, ainda que não fosse uma paisagem que a cena
potencializava o frenesi das ruas, sobretudo nos dias de festa, e é sobre este estado de ânimo
que o cronista vai clamar: “Temos com as festas (...) bem boas diversões que nos vem tirar
desta frieza produtora de neurastenia, que é o estado normal desta nossa capital...”103
O cenário predileto do cronista é aquele que emerge por ocasião das festas, mas o
palco privilegiado para onde seu olhar se volta é o das ruas: a rua como o grande espetáculo,
ou, ainda, “a expressão”, como anunciou Sébastien Mercier, em fins do século XVIII.
Segundo Pechman, tal enunciado apresenta novidade e indica mudança, uma vez que elege
A multiplicidade de contextos que emergem nas cenas de rua serve como cenário
para os cronistas, pois aí desfilam personagens variados, com inúmeras nuances e que
implicam num novo aprendizado. Novamente se recorre a Pechman, para tentar penetrar
102
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. p. 319.
103
Jornal O Comércio. 23/06/1910. NDIHR/UFMT.
104
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 248.
33
Ora! Se era preciso reaprender a olhar, era necessário também elaborar outras
ambiente urbano das grandes cidades. A antropologia emerge neste contexto, como a ciência
do homem, para dissecá-lo, mas esta ciência, ainda que se volte a princípio para as chamadas
sociedades primitivas, vai muito além, quando afirma ser o próprio rosto moldado pelas
condições sociais.
Mas a nova sociabilidade inscrita nas ruas da cidade de Cuiabá é, para o Estado, um
em 1890, é uma grande ferramenta, ainda que não seja a única, de que o Estado dispõe para
105
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 249.
106
Ibid., p. 252-253.
34
desvendar os segredos da sua população, para liquidar, ou pelo menos tentar liquidar, com a
possibilidade das rotas de fuga que o labirinto apresenta, retirando as camadas que encobrem
diferenças para compor uma população como massa amorfa, e que necessitam ser reveladas,
identificadas, classificadas, para aí, sim, poder agrupar, isolar e excluir. Retoma-se, portanto,
Pátria, situa-se a residência do médico Augusto Novis, com idade de 51 anos, pai de Alberto
Novis, na época com 17 anos de idade, que seguiria a carreira do pai, vindo três décadas
depois ocupar o cargo de Inspetor de Higiene da capital107. Nessa casa, moravam também sua
mãe, Maria da Glória, os irmãos, a avó materna e a tia materna, Clementina C. Gaudie Ley.
Além dos laços de parentesco, muitos traços os aproximam e os inserem no mesmo grupo que
pela raça (conceito tão caro ao século XIX, sobre o qual este trabalho discorrerá no terceiro
capítulo), já que todos são brancos. São também católicos e brasileiros. As diferenças, por sua
vez, se inscrevem pelas vias do estado civil, dada a variedade de idade dos moradores, e pelas
ocorreria no Brasil décadas mais tarde108. Mas no sistema classificatório aplicado no censo em
questão, outro traço distintivo relevante são os defeitos físicos distinguidos com o auxílio das
distingue dos demais e se torna o seu outro. Clementina C. Gaudie Ley, a tia materna, branca,
107
Ofício nº 08 de 26/01/1920 - Do Inspetor de Higiene ao Secretário do Interior, Justiça e Fazenda. Comunica a
posse do Dr Alberto Novis como Inspetor de Higiene Pública da Capital interinamente conforme Portaria nº
110. Livro de Registro de ofícios expedidos pela Inspetoria de Higiene. APMT.
108
Cf. MULLER, Maria Lúcia Rodrigues. As construtoras da nação: professoras primárias na primeira
república. 1998. Tese (Doutorado em Educação) - UFRJ, a respeito da educação de massa no Brasil e mais
especificamente em Mato Grosso.
109
Quadro da população urbana da capital Cuiabá - 1º Distrito - 1890/APMT.
35
Mas a alienação de Clementina, tida e inscrita no censo como defeito físico, não é o
único tipo registrado no censo que marca a diferença entre as pessoas e que delimitam as
fronteiras entre o eu e o outro. Aliás, para Foucault, essa diferença consiste numa
pela maioria dos médicos europeus dos séculos XVII e XVIII, que carregam nesse período um
forte conteúdo de negatividade e que, no caso da demência, segundo Foucault, é a forma que
mais se aproxima da essência da loucura em geral, “da loucura experimentada em tudo aquilo
que pode ter de negativo: desordem, decomposição do pensamento, erro, ilusão, não-razão e
não-verdade”111.
No início do século XIX, Pinel, médico francês, elaborou outro conceito e salientou a
110
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva. 1991. p 184.
111
Ibid., p. 25.
112
Ibid., p 261.
36
Esses conceitos elaborados por Pinel apresentam uma novidade, se comparados com os da
época clássica, já que, lentamente, a demência vai sendo desvinculada da porção negativa e começa
Pinel, que viveu no período correspondente ao final do século XVIII e início do século
XIX, orgulhava-se de ter presenciado o contexto da Revolução Francesa — segundo ele, ocasião
A noção de loucura, tal como existe no século XIX, formou-se no interior de uma
consciência histórica, e isto de dois modos: primeiro, porque a loucura em sua
aceleração constante forma como que uma derivada da história; e, a seguir porque
suas formas são determinadas pelas temporalidades do homem: é assim que nos
aparece a loucura tal como ela é então reconhecida ou pelo menos sentida, bem
mais profundamente histórica, no fundo, do que ainda o é por nós.114
Hospital Geral, ou no Hotel de Dieux, e em vários outros estabelecimentos onde Pinel encontrou
Na Cuiabá do final do século XIX, vemos emergir lentamente, pelas mãos do amanuense,
uma população de alienados, idiotas e dementes esparramados pela cidade, protegidos ainda pelo
manto familiar, nesta cidade tão distante do litoral. Mas este é um cenário que não perdurará por
muito tempo; só terá uma duração maior se o compararmos aos do Rio de Janeiro, São Paulo e
Porto Alegre.
O manto familiar, cujo tecido é tido pelo Estado como frágil demais, será gradualmente
rasgado, esburacado, dilacerado, até chegar ao ponto em que restem apenas pedaços de retalhos,
fragmentos de fios tão podres e tão frágeis, que será necessário mais de meio século para elaborar
outros pontos, tecer outros fios, reuni-los em outra trama... mas essa é uma outra história. Nesse
113
FOUCAULT, Michel. História da loucura na Idade Clássica. p. 262.
114
Ibid., p. 375.
37
“outros”.
outros, irão integrar o universo comum de Clementina. O universo do não-lugar, o mundo dos
desarrazoados. É um mundo que atrai como ímã, da mesma forma e com a mesma potência
caminhamos uns poucos metros e logo chegamos a mais um endereço, onde diferentes se
anos, solteira, branca, de profissão agência115; Leocádia da Cunha, 60 anos, solteira, branca,
de profissão agência, e paralítica; o pequeno Martiniano, que com dez anos freqüentava a
escola, seguindo as determinações das Posturas municipais116, afinal, ainda que fosse de raça
preta, contava com o benefício da legislação. Era nessa mesma casa em que também morava
Maria Xavier da Cunha, possivelmente mãe de Martiniano, solteira, sem profissão, com 26
somente em 1893 sobre o córrego da Prainha, nas proximidades da rua da Emancipação117, chega-
se à Rua do Rosário, lugar descrito como sujo e infecto, conforme relata o Inspetor de Higiene
Pública:
O serviço de asseio e limpeza desta Capital é quase nulo, porque além de ser
costume antigo do povo mandar depositar nas margens do córrego da
Prainha e na maior parte das travessas todo lixo que diariamente junta em
suas casas, a própria carroça contratada com a Intendência para esse fim,
115
O termo agência aparece como profissão de inúmeros indivíduos, de ambos os sexos e idades, no censo de
1890. A repetição, entretanto, não implica em compreensão sobre o seu significado até este momento.
116
Posturas Municipais de Cuiabá. 1832. Art. 1º.
117
Relatório da Intendência Municipal de Cuiabá. 1893 - Caixa: 1893. Fundo: Saúde/APMT.
38
a capela de São Benedito, o santo negro, cuja devoção resultou na constituição da Irmandade
de São Benedito. Nessa rua, a do Rosário, mora o empregado aposentado Antonio Anastácio
Monteiro de Mendonça, de 53 anos, branco, brasileiro e casado, juntamente com sua esposa
Ignes e seus filhos, Nunon de 11 anos, Almiran, com 7, e Palmira, de 5 anos de idade. Do
Na mesma rua, em outra moradia, residia José Antunes Maciel, 45 anos, branco,
solteiro, brasileiro, católico, que sabia ler, mas era alienado. Próximo dali, na rua de São
Benedito, vivia a alienada Januária, com meio século de existência, que vem se juntar a esse
mundo dos diferentes, profissão: agência; e o pequeno Vicente de Carvalho, com apenas 9
idiotismo. Em outra casa da mesma rua, no 14º quarteirão, Mesquita revela Dona Dionísia
Gonçalo, viúva, brasileira, com 60 anos, preta, católica e alienada mental. Já em outra casa da
mesma quadra, o jovem Eduardo da Silva Daltro, outro alienado, como Dona Dionísia,
devoto, como forma de agradecimento, vivia Antônio Claudino de Siqueira, branco, solteiro e
118
Relatório da Inspetoria de Higiene Pública. Caixa - 1898. Fundo: Saúde/ APMT.
39
que, além dos paramentos da igreja que provavelmente carregava, quando solicitado, dali por
cidade pós-guerra. Os grandes pés-direitos desse novo modelo arquitetônico começaram a ser
copiados, ou melhor, improvisados, pelos proprietários das antigas construções coloniais, por
meio de arranjos, como a “maquiagem” nas fachadas, por meio da instalação de platibandas
dessas moradias para perceber que o interior delas continuava inalterado, mantendo uma
disposição de espaços fiel à época colonial. Tal mistura, ou combinação, podia ser visualizada
por toda a cidade e também nos hábitos da população urbana cuiabana, onde antigos e novos
modelos se misturavam.
decorrer dos anos seguintes, já que o aumento de circulação de pessoas pelas ruas da cidade, e
poderia transitar. Assim foi, com a construção do passeio público da Travessa do Palácio do
nivelamento de ruas119.
119
Relatório Semestral da Intendência Municipal de Cuiabá - 1893/APMT.
40
sociedade cuiabana, como foi a gradual transformação dos assim antigos largos em jardins e
praças, com direito à urbanização que uma capital merecia, ainda que, a princípio, tímida.
Em 1893, o jardim público da capital recebeu uma atenção especial, por meio da
recurso já utilizado anteriormente, mas, para frustração do Intendente da época, essas espécies
chegaram a Cuiabá quase todas mortas. A solução encontrada para embelezar o jardim foi a
e indicava o que poderia ser copiado e/ou importado de outros lugares. Os eucaliptos, por
toque e um aroma da civilidade que se tinha como modelo. Os cipestres, por sua vez, serviram
de nº 575, a senhorita Maria Silveira de Jesus, paralítica e demente; mais adiante, no número
578, Joana Anastácia Monteiro, 30 anos, analfabeta como Maria, que apesar do seu idiotismo,
cidade, em 1890. É ali que se encontram: Ana, brasileira e alienada; Josepha, alienada e
africana; Edwiges, brasileira como Ana e também como esta alienada mental e, finalmente, a
120
Relatório Semestral da Intendência Municipal de Cuiabá - 1893/APMT.
121
Ofício de 02/06/1890 da Secretaria de Polícia ao Presidente do Estado de Mato Grosso. Caixa 1890. Fundo:
Saúde/APMT.
41
paraguaia Gertrudes, também uma alienada mental. Endereço requisitado, sobretudo pela
espaço público, e também endereço provisório, já que a Santa Casa se recusava a manter esse
tipo de paciente por muito tempo. Na realidade, na maioria das vezes, a admissão de
122
Relatório apresentado em 1894 ao Dr. Manoel José Murtinho, Presidente do Estado de Mato Grosso, pelo
Chefe de Polícia Tenente Pedro Antunes de Souza Ponce, com dados relativos ao ano de 1893/APMT.
123
Ofício do Presidente da Sociedade Beneficiente da Santa Casa de Misericórdia, José Viegas de Brito, ao
Presidente Coronel Antonio Paes de Barros. (Respondido em 9-3-1904) - Caixa 1904- Fundo: Saúde/ APMT.
42
Santa Casa, com o restante da população, mencionados no ofício citado acima, apresentamos
outra opinião, que diz respeito tanto ao contingente populacional dos ditos doentes em Cuiabá
e também do restante do Estado de Mato Grosso: “[...] neste Estado, nunca houve asilo de
(transactas), alguns casos raros de alienação mental, sem tendências para aumento [...]”124
aquilo que estava em jogo naquele momento, a construção da cidade civilizada que tenta se
desvencilhar de qualquer indício de degenerescência que poderia ser suspeitada como inscrita
na fisionomia cuiabana.
A alienação mental era uma coisa ruim que vinha de algum lugar, fosse este lugar,
qualquer parte do Brasil ou do estrangeiro. Uma coisa porém era preciso dar como certa: a
alienação não era natural de Cuiabá. Para tanto, bastava confrontar com os registros do censo
Novos endereços da loucura vão, porém, brotando nas páginas dos grandes livros,
assim como a florada dos ipês roxos e amarelos, que parecem ignorar a época de seca do
cerrado.
Ah! A rua dos Prazeres! Ainda que se ignore o porquê de seu nome, ele evoca
desejos, que não se pode dizer se algum dia, na mocidade ou vida adulta, a menina Silvinia de
Araújo, com apenas 8 anos de idade, viesse conhecer, já que possuía o defeito do idiotismo
que, segundo Pinel, imobiliza os sentidos. Seguindo esta definição, talvez Silvinia se
124
Ofício nº 3 de 03/02/1905 - do Inspetor de Higiene Pública Dr. José Marques da Silva Bastos ao Presidente
Coronel Antonio Paes de Barros. Caixa 1905 - Fundo: Saúde/ APMT.
43
encaixasse melhor no endereço ocupado por Silvéria Ribeiro da Silva, brasileira, preta,
solteira, com 30 anos, profissão ajustes — ofício este exercido a despeito do seu idiotismo,
Clara, moradora de uma casa na Rua do Coronel Peixoto; Maria da Conceição e Justina, na
Travessa da Câmara; os idiotas Manoel e Maria Delgada Pinto, na Rua Barão de Melgaço;
Benedito Pinto de Moraes, na Rua do Diamantino; Júlia, na Rua Bela Vista, em casa
relativamente próxima àquelas ocupada por um grande número de pessoas da família Pinho,
mas que também residiam em outros endereços, como era o caso da família do empregado
aposentado Francisco Leite de Pinho Azevedo, com 50 anos, casado com Maria das Dores
Galvão, de 40 anos, e pais de Idalina, Nicanor, Amélia, Afra, Ana Georgina e Rachel de
Baptista, com 25 anos, morador na rua de Nossa Senhora da Guia; Jesuína Inocência do
Espírito Santo, com 60 anos de idade, que residia na Rua do Frei José, e Diocleciana
emergem. Seguindo pela Rua Barão de Melgaço, na casa número 422, morava a alienada
Maria da Glória, e, mais adiante, na mesma rua, no número 462, compartilhavam o mesmo
teto Maria Timóthea, solteira e alienada mental, e Anna Rosa, profissão agência, portadora de
idiotismo.
da Rua 13 de Junho, onde vivia o jovem João da Costa e Faria, 14 anos, brasileiro, pardo,
católico e com idiotismo e, na extensão da Rua Comandante Costa, Lucrécio Ramos da Costa,
20 anos, solteiro, profissão agência, cujo defeito era o idiotismo. Mais adiante, numa casa da
44
Rua da Varginha, habitava Joana Delfina da Conceição, mais uma idiota na relação de figuras
residia na casa de número 140 a alienada mental Rita dos Santos, com 50 anos; na Praça
Aquidaban, na moradia de número 335, vivia com seus familiares o menino Manoel Barboza,
cujo defeito físico era o idiotismo. Digna de nota era a Praça do General Miranda Reis, local
que fazia jus ao contexto de época, já que, com o advento da República, o exército adquiriu
Mais do que adentrar o interior do Arsenal, permanecer nele era o desejo da maioria
das famílias pobres cuiabanas, que vislumbravam nessa instituição algum futuro para os seus
meninos, por meio da Escola de Aprendizes e Artífices, que contava na época com cinqüenta
e cinco aprendizes, além de vinte e cinco praças de operários militares e também trezentos e
Nessa mesma praça estava instalada a Cadeia Pública de Cuiabá, num prédio onde
Na época do censo, a Cadeia contava com uma população de sessenta e sete presos,
alguns dos quais já haviam sido sentenciados e outros ainda não, situação que dificilmente poderia
significar alguma alteração para a população encarcerada, no que diz respeito à transferência
125
Quadro da população urbana da Freguesia de São Gonçalo, segundo distrito da capital. 1890/APMT.
126
Ofício de 05/11/1892 do delegado Elpidio Bem de Moura ao Presidente do Estado. Caixa 1890. Fundo:
Saúde/ APMT.
45
destes para outro estabelecimento, considerando que havia apenas doze cadeias em todo o Estado
de Mato Grosso naquele período, a despeito da constante reivindicação para transformar a cadeia
esforços para conseguir essa transformação, através da adoção de inúmeras medidas que
aparecem nos relatórios dos Intendentes Municipais, como também dos governadores, sob o título
de Melhoramentos Urbanos127.
127
A esse respeito Maria Stella BRESCIANI apresenta análise sobre alguns significados dos chamados
melhoramentos no artigo: Melhoramentos entre intervenções e projetos estéticos: São Paulo (1850-1950). In:
Palavras da cidade. Porto Alegre: Ed. UFRGS. 2001.
46
Chega de atraso. Bugres, bugres, não somos, mas bem possível é que lá
cheguemos.
É preciso a reação! Mudemos de rumo, sejamos unidos!128.
A partir dessas considerações indignadas, cabe salientar que em nenhuma das centenas
de páginas dos dois livros do quadro da população urbana de Cuiabá encontra-se uma única
referência a alguma etnia indígena domiciliada em qualquer endereço que seja na cidade. É
possível inferir que talvez este silêncio — que se prolonga até a década de 10 do século XX e um
pouco além dela — expresse o desejo de negar qualquer proximidade com etnias que carregam as
marcas da barbárie. Era preciso afastar do mato-grossense, mais ainda do cuiabano, qualquer traço
de bugre.
Ainda que nem todos os moradores da porção urbana representassem o ideário de
civilização desejado por alguns indivíduos, já que muitas práticas persistiram por muito tempo e
denotavam atraso, esta era uma preocupação que se voltava, sobretudo, para o espaço público da
cidade. Entre essas práticas, podemos citar a manutenção, por um longo período, do hábito de lançar
nas ruas as águas servidas; ou ainda, as práticas populares dos cururus, siriri e batuques,
freqüentados inclusive por aqueles que deviam vigiar a observância da moral nos costumes
citadinos, a polícia, por cujas mãos chegamos à cidade disciplinar, sobre a qual trataremos no
próximo capítulo.
∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗
128
Jornal O Comércio. 21/04/1910. Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.
47
2 A CIDADE DISCIPLINAR
Ninguém sabe precisar a que horas vieram buscá-lo, nem o que seria feito dali pra frente com
as crianças, seus filhos, todos menores de idade. Da mãe, ninguém falou se estava viva e por onde
andava. A taverna. Ah! Essa fazia algum tempo que não funcionava mais. Mas isso talvez não tivesse
importância. O que importa é que alguém deveria ter falado alguma coisa sobre ele, senão, por que a
polícia viria para buscá-lo? Não houve quem o acompanhasse, mas talvez tenha sido mais ou menos assim:
Ainda era dia quando os homens cruzaram o grande portão de madeira da Cadeia Pública e o entregaram
ao carcereiro, que o guiou ao interior do prédio. A porta da sala do Chefe estava aberta, mas seguiram
adiante, afinal não era caso de perder tempo com interrogatório, não havia nada para perguntar,
tampouco para ouvir, tudo já havia sido dito pelo vizinho dele, um funcionário público, e isso bastava.
Nenhuma conversa foi tabulada entre eles. Um conduzia, o outro se deixava conduzir. Ciente de sua
tarefa, o carcereiro seguia indiferente pelo corredor escuro, entremeado num e noutro ponto por réstias
de sol que entravam pelos buracos do telhado. Logo começaria o tempo das chuvas e os buracos
continuavam lá, aliás, a tendência desses buracos era só aumentar, assim como a população carcerária.
Era para lá que eram mandados criminosos de todo tipo e de todas as partes, à Cadeia Pública da Capital,
a melhor de todo o Estado. Indiferente aos murmúrios que se produziam por trás das portas fechadas, o
carcereiro prosseguiu à condução dele. Noutros tempos não teriam escutado quase nenhuma voz, já que
o lugar para onde se costumava levar gente como ele ficava do outro lado da Cadeia, mas o estrago que
um outro como ele havia feito na parede era tão grande, que tentar prender alguém ali era inútil. Para a
primeira seção, não podia levá-lo, ali ficavam os que esperavam julgamento; para a segunda, também
não, essa era para os condenados; na terceira, ficavam as mulheres. Postaram-se diante de uma porta,
finalmente tinham alcançado o recinto determinado para ele. O carcereiro escolheu uma dentre as várias
chaves que carregava na cintura, abriu a porta e o empurrou para seu interior. Ele ouviu o barulho da
tranca e demorou algum tempo para se acostumar à pouca luz da cela, para então poder enxergar o que
havia no seu interior. Primeiro viu o que pareciam sombras de corpos estirados no chão batido, depois
percebeu um grupo, amontoado num canto, muitos olhos arregalados olharam na sua direção, os corpos
quase nus, pois não podia chamar de roupa algumas tiras de pano sujo e rasgado. Ali estavam os seus
companheiros: os loucos.129
∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗
129
Esta narrativa de abertura é fictícia. Apesar de utilizar informações extraídas de vários documentos, não se
reporta a eles, que aqui serviram apenas como inspiração para introduzir o leitor no ambiente da cidade
disciplinar, diferente daquele de que tratamos no capítulo anterior.
48
Em 1894, José da Cruz Ferreira foi conduzido à cadeia pública da capital. Sua prisão
foi informada ao Governador do Estado Manoel José Murtinho, pelo chefe de polícia interino
Pedro Antunes de Souza Ponce, motivada pela denúncia feita pelo funcionário público
Antonio Modesto, que declarou na ocasião que José estava apresentando sinais de sofrimento
mental130.
Se o lugar não era adequado, pelo menos era melhor do que a Santa Casa de
Misericórdia, onde esse tipo de paciente era submetido aos piores tratamentos, e muitos deles,
ocasião em que verificou tantos maus tratos aplicados aos alienados que ali se encontravam,
que tratou de transferir para a cadeia o louco Antonio Antunes Ferraz, que por conta dos
Que crime José da Cruz havia cometido? Não, ele não tinha atirado em ninguém.
Tampouco havia jogado pedra. Nem esfaqueado quem quer que fosse.
Senão, vejamos. Em 1890, encontramos José da Cruz Ferreira como morador da casa número
2673, na Rua Antonio João, com os seguintes dados: 40 anos; taverneiro; raça parda; católico;
brasileiro; sabia ler, mas não freqüentava a escola; não possuía nenhum defeito físico, era
casado e pai de quatro filhos131. Todas essas informações foram registradas pelo amanuense
sob a coordenação de José Barnabé de Mesquita por ocasião do censo, que identificou,
entre outros portadores dos chamados defeitos físicos. A identificação de cada um de seus
130
1894, Dezembro, 21, Cuiabá. Ofício nº 97 do Chefe de Polícia interino Pedro Antunes de Souza Ponce ao
Presidente Manoel José Murtinho. Caixa 1894 Maço: Repartição de Polícia do Estado de Mato Grosso.
APMT.
131
Recenseamento Urbano da Capital Cuiabá. 1890. APMT.
49
nenhuma mudança ocorresse em relação aos mesmos. Mas, bastaram quatro anos, para
eleitas, se por um lado impossibilita que se conheça a intenção que facultara a sua produção,
traz como novidade a designação de algumas categorias que, ao que parece, foram julgadas
documento suprime o quesito escravidão para, em seu lugar, aparecer raça; assim, temos as
três raças que comporiam a identidade nacional: a branca, a preta e a parda. A escolaridade e
importância da escolaridade. O estado civil, por sua vez, remonta ao período colonial de
forma sofisticada e detalhada, uma vez que nos antigos mapas de população aparece o número
de fogos existentes em cada localidade. A religião recebe o mesmo grau de importância que
submissão desta ao Governo. Quanto à categoria defeitos físicos, esta reflete a importância
dos corpos sadios para o projeto de civilização em curso no país e vai mais além, uma vez que
não prescinde do saber médico para designar os respectivos defeitos dos indivíduos. Talvez
132
A expressão geração 70 é utilizada por Robert Pechman ao tratar da geração de intelectuais membros do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que defendeu a Proclamação de República e Abolição da
Escravatura. Esses intelectuais defendiam ainda grandes reformas e acreditavam que só com o auxílio da ciência
se poderia alcançar o progresso do país. PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p 350.
50
seja por essa via que temos a explicação para o diagnóstico feito por Antonio Modesto, o
denunciante, a respeito de José da Cruz Ferreira, prontamente aceito pela autoridade policial.
Misericórdia. A identificação, localização e fixação dos alienados, dementes e idiotas, por sua
vez, podem ser compreendidas tanto como a escolha de novos objetos de saber, como também
a dimensão de um território inscrito no corpo do indivíduo, que carregará, dali por diante, o
Em 1894, o amanuense saiu de cena para dar lugar à polícia, que passa a ser
solicitada para cumprir o seu dever: retirar do cenário das ruas e do convívio familiar aquele
que perturba a ordem pública, aquele que não pode mais gozar da liberdade: o alienado.
percepção da loucura como alienação mental, cujo diagnóstico podia ser feito por qualquer
que indica que o enclausuramento já era praticado como medida necessária à contenção desse
tipo de indivíduo. A terceira reporta-se ao papel desempenhado pela Polícia nesse período,
afinal, era a essa instituição que as pessoas começaram a recorrer para solucionar o problema,
o que nos sugere a idéia de que a loucura era caso de polícia. Mas do que tratava, afinal, a
instituições para controlá-los e, eventualmente, tratá-los? Ou ainda, por que teria o alienado,
133
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs (...). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v. IV. p. 122.
51
em Cuiabá, surgido na cena social como um problema, muito antes de as instituições que iam
Tomando por base a afirmação de Angel Rama, que disse que, dentro de cada cidade
sempre houve outra cidade, vejamos algumas possibilidades de se olhar para “as cidades” que
era uma cidade onde o viajante, depois de uma longa e fastidiosa viagem “sente-se alegre e
impressionado; porque contra toda a sua expectativa, encontra no meio de um sertão inóspito
tecendo elogios, descrevendo o cuidado com as vestimentas usadas pelos homens e mulheres
de posses e também sobre as formalidades presentes nas relações sociais destes. Sobre as
até a inexistência de iluminação pública, que fazia da capital, em épocas variadas, um lugar
fétido e lúgubre.
134
MOUTINHO, Joaquim Ferreira. Itinerário da viagem de Cuiabá a São Paulo. 1869. Mimeografado.
52
Mas é nos ofícios e relatórios policiais que temos uma espécie de escritura da cidade,
daquilo que ela mesma não se permite ver. Muito mais do que lixo, entulho, água fétida ou
edifícios modernos ao lado de antigas construções, o que irá brotar nesse texto da cidade são
fissuras, que tornam o espaço citadino um espaço estriado, pela interdição de práticas que
vamos tratar neste capítulo nada tem a ver com aquela da “cidade pestilenta atravessada
inteira pela hierarquia, pela vigilância, pelo olhar, pela documentação, a cidade imobilizada
no funcionamento de um poder extensivo que age de maneira diversa sobre todos os corpos
individuais, utopia da cidade perfeitamente governada”, como observou Foucault, que viu
nessa cidade [pestilenta] a projeção de recortes finos da disciplina sobre o espaço confuso do
internamento. Mas também considerou que a disciplina suscitada pela peste, ainda que fosse
contraditórias: por um lado, era temida pela iminente ameaça da morte, por outro, era
desejada pelos governantes, já que, sob o seu estado, a cidade era plenamente governada,
projetada, a princípio, como um novo modelo de prisão, escola, e outras instituições fechadas,
em que se prescindia da disciplina. Todavia, era muito mais do que isso. O panóptico estava
“destinado a se difundir no corpo social”, com função generalizada e papel amplificador. Para
Foucault,
época da escravidão no Brasil, quando assentar pelourinho era medida tão importante quanto
a construção de igreja, palácio de governo e Senado da Câmara — são deixados para trás
quando entram em cena formas sutis de vigilância permanente, hierarquizada, a que são
submetidas todas as pessoas, já que a tecnologia política tem este caráter de reverberação, e
vir de pessoas, de circulação de idéias, de fluidez e que tem o espaço público como o lugar
para onde as atenções se voltam e onde os dispositivos disciplinares poderão atuar sem
estardalhaço.
Não que tivesse ocorrido o fim das instituições fechadas. Em Cuiabá, no final do
século XIX, as escolas, a Santa Casa de Misericórdia, a cadeia, o Batalhão de Polícia Militar
135
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 181.
136
Ibid., p. 184.
54
Guerra. Mas o que nos interessa é voltar nosso olhar para outros lugares, mais precisamente
para aqueles lugares em que a disciplina parecia jamais poder alcançar, não fosse a adoção de
O espaço público tanto pode ser o lugar do trabalho, ou o caminho para este, como
pode ser o lugar onde a desordem pode reinar absoluta. O espaço público (a rua, neste caso), é
o lugar da imprevisibilidade, onde tudo pode acontecer e onde não se tem o controle de nada,
pelo menos não aparentemente. A rua parece indicar o mundo, seja pela novidade ou pelo
A cena das ruas é o lugar onde se pode tudo ver, sem ser visto. Espécie de espetáculo
a céu aberto — mas não o espetáculo dos teatros como o tinha sido na Antigüidade Clássica,
gladiador. Ou ainda, o espetáculo das touradas cuiabanas, quando uma arena era montada,
número de pessoas para assistir ao desempenho dos capinhas diante dos animais.138 Num ou
noutro caso, temos muitos olhares voltados para um ponto específico, um pequeno alvo, que é
temos um grande número de pessoas vigiadas, contínua e ininterruptamente, por uma única
137
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis (...). p. 91.
138
Cf., a respeito das touradas cuiabanas, a Dissertação do Mestrado em História, de Marisa de Oliveira
Camargo, pela UFMT, 2005.
55
Seguindo os preceitos de Bentham, qualquer um podia vigiar e ser vigiado, o que nos
remete à idéia de uma vigilância não identificável, ou invisível, ou ainda um olhar sem rosto,
de braço do rei, cujas funções não estavam muito claras à época de sua criação. Pechman situa
deu sem que houvesse um Código Penal que definisse com maior precisão o que era “crime e
excessos da nova sociabilidade que se instaura com a corte”139. Em 1894, esse argumento
ainda pôde ser utilizado, apesar da promulgação do primeiro Código Penal republicano
139
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 94.
140
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e Criminalidade. Estudo e análise da Justiça no Rio de Janeiro. (1900–
1930) Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1995. p 13.
56
disciplina — em especial o que ocorreu na França, onde esse mecanismo foi ocupado pela
polícia —, teremos diante de nós um sistema que se ocupa de tudo, um aparelho “coextensivo
ao corpo social inteiro, e não só pelos limites extremos que atinge, mas também pela minúcia
crime ou delito, como homicídio, furto, roubo, agressão física, entre outros, mas a polícia
também vai se ocupar de detalhes, de “tudo que acontece”. Seu objeto “são essas coisas de
No decorrer dos anos, outros dicionários são publicados, onde apareceram algumas
variações de significados para designar polícia, que tanto podia ser sinônimo de polidez, como
significado que abrangesse a complexidade de sua função, já que seu campo de atuação
fechadas, onde estas não podiam e nem podem intervir, como observou Foucault,
141
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 187.
142
Ibid., p. 188.
143
PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 69.
57
“disciplinando os espaços não disciplinares; mas que ela recobre, liga entre si, garante com
aqueles indivíduos que não estão sujeitos a nenhum mecanismo disciplinar: os loucos e os
vadios. É sobre os vadios que as Instruções Policiais de 1892 vão tratar de forma contundente,
uma vez que são tidos como criminosos em potencial. Esse perigo social iminente, o
vagabundo que transita pelas ruas, que circula por todos os lugares e que ameaça a ordem
pública, tanto pela sua presença, pelos atos que pode vir a cometer, como também pelo risco
de contaminar os demais indivíduos, deverá, a partir de então, ser contido pela polícia.
polícia, quando determina que ela, sem ultrapassar os limites de suas atribuições, pode e
deve, com energia e atividade, prestar reais serviços à causa pública. A polícia não pode
mais tratar com indiferença esse tipo de indivíduo (aqui, o vadio) que passa a ser considerado
“perigoso”, mas terá que atuar compenetrados do zelo, solicitude, critério e imparcialidade..
medidas que deveriam ser cumpridas, em todas as etapas, pela autoridade policial. Essas
medidas podiam ser resumidas em seis artigos normativos que tinham por finalidade reprimir
que circulavam pela cidade. O artigo segundo propunha a observação de todos os vagabundos
e ociosos, obrigados a arrumar algum serviço que lhes garantisse o próprio sustento de forma
lícita, com comprovação, para evitar a prática de algum crime. O artigo terceiro tratava da
sanção normalizadora, já que todo aquele que não arrumasse um serviço, por motivo frívolo,
144
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 189.
58
seria obrigado a assinar o “termo de bem viver”145. O artigo quarto estabelecia a assinatura de
contrato para aqueles que tivessem arrumado algum trabalho. A hierarquia, por sua vez,
estava assegurada no artigo quinto, pela atuação do subdelegado, figura esta a quem todos os
inspetores, por sua vez, seria afiançada pelos próprios subdelegados que proporiam a
nomeação de pessoas de sua confiança tanto para ocupar os cargos vagos, como para proceder
a substituição daqueles indivíduos que não lhes inspirassem crédito. Por fim, no sexto e
sociedade brasileira, moldada, segundo Buarque de Holanda147, por uma estrutura familiar
agrupamentos.
145
Segundo Pechman, Termo de Bom Viver era “o compromisso das pessoas que, quando convocadas eram
obrigadas a ir à sede da Intendência Geral de Polícia, para, em presença da autoridade, lá assinarem o tal
termo, se comprometendo a ‘bem viver’, isto é, a viver dentro dos parâmetros definidos como os da ordem”.
Cf. PECHMAN, Robert Moses. Cidades estreitamente vigiadas. p. 77-78.
146
Relatório da Força Pública. 1893. Secretaria de Policia da Capital Cuiabá. APMT.
147
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. p. 141-151.
59
as relações de trabalho, a observância às leis, o comércio, a higiene, a saúde já não podiam ser
tratados apenas no âmbito familiar, ou na esfera privada. O Estado passa a se ocupar dessas
citadino.
obrigatório o ensino primário em Mato Grosso, a partir de 1892. Mas esta determinação não
1894 e dos anos subseqüentes. A falta de professores e também de espaço físico destinado
para esse fim comprometiam a sua execução segundo o que determinava a Constituição
Estadual. Não que as crianças da capital não freqüentassem a escola nesse período. Segundo o
matricular os seus filhos nas escolas particulares existentes em Cuiabá, sobretudo pela baixa
qualidade de ensino ofertado pelas escolas Modelo e Liceu Cuiabano, mantidas pelo governo
estadual. Além disso, a capital carecia de mão de obra qualificada, o que demandava a
eram tão baixos que não atraíam a vinda desses profissionais para Mato Grosso. Apenas três
União.
A saúde pública começou a ser organizada nos primeiros anos da República. O medo
de epidemias — a exemplo da varíola, que, como peste, causara a morte de tantas pessoas em
Pública. Nos primeiros anos, sua atuação foi caracterizada pela adoção de algumas medidas
São João dos Lázaros eram os únicos hospitais existentes em Cuiabá destinados a prestar o
Polícia Militar, que, apesar de contar com um médico entre os seus integrantes, nunca possuiu
integrava o seu corpo era fixado anualmente e girava em torno de pouco mais de 300 pessoas,
se bem que, no decorrer das primeiras décadas da República, houve dificuldade para
Esse número era tido como insuficiente para cobrir a demanda de todo o Estado, por
isso houve algumas tentativas de atrair homens para integrar o Corpo de Polícia, por meio da
concessão de benefícios e prêmios — todas elas, porém, frustradas. As razões para essa
capital, que não percebiam que poderiam ser úteis para si e para os outros. O recrutamento no
interior também era difícil, por razão diferente daquela observada na capital. Conforme o
Governador Manoel José Murtinho, o maior obstáculo era a repugnância que os homens
instituição, mas que poderia ser superada por meio do esclarecimento aos refratários.
Enquanto isso não ocorria, o guarnecimento do interior era feito por meio do envio de homens
da capital. Solução paliativa que não resolvia o problema e comprometia ainda mais o
configurava, num primeiro momento, num arranjo perfeito, já que resolvia, numa só medida,
cujas práticas eram tidas como perniciosas, e que a educação fornecida pelo Exército trataria
de extirpar: “A caserna, nos tempos modernos, é também uma escola de educação intelectual,
moral e cívica onde o soldado pode adquirir as qualidades de um bom cidadão: alma sã em
corpo são”148.
O soldado que se buscava por essa época já não era o soldado pronto, aquele cujos
traços evidenciam a aptidão para o exercício do ofício, como no século XVII. Na segunda
metade do século XVIII, o soldado passou a ser algo que se fabrica pela disciplina, tal qual
conceituou Foucault: “como conjunto de métodos que permitem o controle minucioso das
operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhe impõe uma relação
de docilidade-utilidade”149.
O controle minucioso, por sua vez, deixa de lado a massa uniforme e se volta para o
indivíduo, o que evidencia a estreita ligação entre a disciplina e o detalhe, em que todos os
tratam de episódios envolvendo membros da corporação militar que não se submeteram, não
se deixaram disciplinar e que foram punidos com a expulsão, como podemos constatar no
ofício expedido pelo Diretor do Arsenal de Guerra ao Governador do Estado, que solicitou
148
Relatório Força Pública 1907 – Batalhão de Polícia Militar de Mato Grosso. APMT.
149
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 126.
62
completado a idade de 16 anos não mais poderá permanecer na Companhia a que pertence por
Outro episódio revela tipos de comportamentos que também não eram aceitos na Polícia
Militar, como foi o caso da expulsão de Benedito Pacheco da Silva, que adoeceu por causa do
Polícia Militar; na maioria das vezes ocorria, apenas, a abertura de algum inquérito disciplinar
Tiros, inquéritos, expulsão, prisão eram as medidas usuais para conter e punir os
indisciplinados — que não eram poucos —, mas havia também aqueles que se deixavam
disciplinar. Para esses, estavam reservados os elogios. Na Polícia Militar, o atraso de sete
meses no pagamento dos soldos não gerou nenhum murmúrio, muito menos revolta, conforme
150
1890, Setembro, 18, Cuiabá: Ofício do Diretor do Arsenal de Guerra ao Governador de Mato Grosso. Caixa
1890/ Maço Diretoria do Arsenal de Guerra. APMT.
151
1891, Cuiabá. Ofício do Comandante da Companhia Policial ao Presidente do Estado Manoel José Murtinho.
Caixa 1891- Maço: Quartel do Comando da Companhia Policial. APMT.
152
Esse foi o caso do Soldado Benedicto Antonio de Oliveira, que alcoolizado, abandonou o posto altas horas da
noite e foi espancado por dois homens. No processo do Conselho de Investigação, ao qual Benedito foi submetido,
o mesmo foi considerado culpado, mas não foi expulso da Companhia. Comando do Corpo de Polícia Militar.
Cuiabá, 5 de Junho de 1896. Caixa 1897 – Maço: Comando do Corpo de Polícia Militar. APMT.
153
Relatório Força Pública – Batalhão de Polícia Militar.1907. APMT.
63
necessários, entretanto, percebe-se também a tolerância para com todos aqueles que
O trabalho, nesse período, já não era visto como castigo, como o fora na época da
escravidão; passou a ser visto como uma solução, do tipo preventivo, para crimes e desordens,
pois a vadiagem aparecia como a causadora das desordens. É óbvio que não era o caso de
fazer todo mundo trabalhar — ao que parece, isso se restringiu à parcela pobre da população
—, posto que acreditavam nas autoridades, que lhes diziam que, pelo trabalho, é que se daria
A esse respeito, as instruções policiais de 1892 foram muito claras. Não se tratava
mais de expulsar, dos domínios da cidade, aqueles que não trabalhavam, para que levassem
dessa tecnologia política. Todos serão incitados ao mundo do trabalho, posto que o trabalho
hierarquia, a obediência às ordens. Neste mundo, outros atores podem ser agenciados para
disciplinar desse certo, então, uma alternativa começou a ser desenhada a partir de 1895.
154
Em 1890. Tendo o Delegado de Polícia do 1° Termo desta Capital enviado a esta Chefatura o individuo de
nome João Christiano Moreira, como vagabundo e desordeiro e sendo de grande e urgente necessidade fazer
retirar desta Capital o referido individuo o qual fazia parte do grupo que promovia conflito na noite de 5 para
6 do corrente e porque tal individuo esteja no caso de assentar praça no exército, onde ainda pode ser útil
faço por isso apresentar-vos com este, para o aludido fim.
64
a aprovação da Lei não significou a sua pronta execução; pelo contrário, muitos anos se
passaram, até que tivéssemos notícia da “famosa” Colônia por um periódico local:
Em Mato Grosso, em fins do século XIX, a lista de “espécimes” dos quais a polícia
Alguém que não pôde ser recolhido às fileiras do exército, nem à polícia militar, ao mundo do
período. Aquele que representa a imagem destorcida da sociedade, o seu espelho: o louco.
Este personagem, que pôde, durante muito tempo, gozar de uma certa tolerância
social e de uma relativa liberdade, teve, segundo Heitor Rezende, “esta liberdade cerceada e
que, por não conseguirem ou não poderem se adaptar a uma nova ordem social, se
155
Mensagem do Presidente do Estado de Mato Grosso, enviada à Assembléia Legislativa. 1896. Disponível em:
<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
156
Jornal O Comércio. 08/09/1910. Colônia Correcional Agrícola. Microfilme. Rolo 60. NDHIR/UFMT.
157
REZENDE, Heitor. Política de saúde mental no Brasil. p. 29.
65
especificamente na cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XIX, foram
precedeu a construção da idéia de desordem e da paz social ameaçada para justificar o próprio
nesse trabalho, os loucos, nos antigos leprosários “assinala o nascimento de uma ética do
trabalho em que este é moralmente concebido como o grande antídoto contra a pobreza [...]
as técnicas de poder, como as disciplinas foram adotadas ainda no Império, muito antes do
O Rio de Janeiro parece ter servido de modelo para Cuiabá e, possivelmente, para as
tornaram-se alvos privilegiados da ação dos governantes, que empreenderam uma verdadeira
varredura destes nos lugares públicos, já que se tornaram sinônimos da desordem urbana,
pobres da capital, vilas e povoações próximas. É esse o destino que começa a ser reivindicado
158
MACHADO, Roberto. Ciência e saber. A trajetória da Arqueologia de Foucault. 2. ed. Rio de Janeiro: Graal,
1981. p. 64.
159
Cf. FOUCAULT, Michel. História da loucura, em que o autor fala do Hospital Geral, uma instituição
francesa que abrigou todos os tipos que não se ajustavam à ordem, mas desprovida do caráter médico
terapêutico, onde a figura do médico era solicitada apenas nos casos de doença, quando esta configurava em
ameaça de epidemia.
66
para os alienados, que não pode mais usufruir o convívio familiar, em face de um
aceitação dos alienados na Santa Casa, por sua vez, se transforma em caso de polícia e
“intervenção” do Governo do Estado. Muitos dos pedidos feitos nesse sentido eram recusados
sob a alegação de falta de espaço e estrutura adequada para esse fim. Curioso notar é que os
medicalização, nenhuma terapêutica, e propõe somente que se retire de circulação aquele ser
estranho. Mas encontramos pelo menos um pedido que utiliza a expressão tratamento:
excludentes: a diferença entre uma e outra restringe-se apenas à nomenclatura, já que ambas
não passam de meros locais de aprisionamento, ainda que o simples fato de recolher os loucos
160
1891, Outubro, 9, Cuiabá.Ofício n.º 122 do Chefe de Polícia João Marino de Souza ao Presidente do Estado
Dr. Manoel José Murtinho.(providenciado em 09/11/1891). APMT.
67
seja o relevante indício de “uma condição quase-médica”161. Não é esse, porém, o ponto
por trás disso é a consciência que já se produziu da loucura. A cadeia pública e a Santa Casa
exclusivas da polícia. Nos casos envolvendo crimes ou delitos praticados por algum alienado,
determina a remoção do paciente da Cadeia Pública de Cáceres para o Hospício Nacional dos
Nesse e nos demais casos que envolviam crime ou delito, a internação recorria à
ciência médica apenas como acessório, espécie de ritual sumário, pois o exame médico
restringia-se tão-somente à aplicação de perguntas elaboradas pelo juiz. Nos demais casos, era
Demorariam ainda mais três décadas até que se construísse um local para
recolhimento dos alienados. Essa situação, aliada à resistência da Direção da Santa Casa em
capital, local este em que a distribuição interna de seus espaços já existia justamente para
161
FOUCAULT, Michel. História da loucura. p. 114.
162
Há alguns processos crimes do Tribunal da Relação de Mato Grosso que tratam de delitos ou crimes
praticados por alienados, no período compreendido entre 1890 e 1929, mas optei, neste trabalho, por não
enveredar por esse caminho, que trata da inimputabilidade etc.
163
Liminar do Tribunal da Relação-1921, Junho, 16, Cuiabá. APMT.
68
[...] Os presos acham-se ali divididos por classes e sexo, conforme preceitua
o Regulamento em vigor, servindo de prisão aos sentenciados o salão
denominado 1ª prisão e aos não sentenciados, a 2ª contígua a 1ª, ficando a 3ª
prisão desocupada por ter sido julgada sem segurança desde que foi
arrombada o ano passado pelo preso Luiz Marciano d’Alvarenga.
Há igualmente naquele estabelecimento mais duas prisões sendo uma para
mulheres e outra para presos correcionais, além da Custódia164 .
A divisão por classe e sexo abriu o caminho para que, tempos depois, se conjugasse
Quanto ao recolhimento de alienados à cadeia pública, esta era uma medida que não
significava a solução do problema. Muitas vezes, o que ocorria era a produção de um outro
problema, já que este tipo de preso poderia causar danos à edificação e implicava em aumento
manutenção da cadeia, que tinha como despesas a manutenção física do prédio e a provisão
(alimentação e vestuário) dos presos pobres. As condições destes eram tidas como deploráveis
e serviam de argumento para pedidos de verbas: “É lastimável o estado de alguns presos que
164
Relatório da Força Pública. 1893. Secretaria de Policia de Cuiabá. APMT.
165
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. p. 208.
166
1895, Abril, 1, Cuiabá. Ofício n.º 2 do Delegado de Polícia Agostinho [...] de Azeredo ao Presidente Manoel
José Murtinho. Caixa 1895 - Maço: Repartição de Polícia. APMT.
69
designação de uma pequena verba para atender a esse ato humanitário reclamado pela
higiene”167.
Entretanto, o custeio de presos ficou ainda mais complicado com a transferência para
relação aos gastos, apontava também para a questão da cidade e, nesse caso mais
precisamente, para a responsabilidade ou a despesa de cada cidade com relação aos seus
cidadãos: “Pesa este encargo sobre a municipalidade da Capital, não obstante a maior parte
dos municípios do estado mandarem para a cadeia desta cidade os seus presos e assim carrega
ela com despesas que em grande parte pertencem a outras Câmaras fazer”.
O recolhimento dos alienados à cadeia, no entanto, não era visto com bons olhos pela
[...] no meu relatório do ano passado tratei da edificação de uma casa própria
para receber esses infelizes, e hoje mais me convenço da necessidade
urgente dessa medida. Vós que tendes se mostrado solicito em promover a
felicidade desta Pátria, que vos viu nascer, não deveis cessar os ouvidos aos
gemidos dos que sofrem, assim pois, espero tranqüilo pelas vossas
providências, visto não poder esta Chefatura de pronto remediar o mal, a que
lamenta...168
alienados, cuja tutela, a ele conferida, parece não mais estranhar. Todavia, as opiniões
emitidas pelo dito chefe sugerem que ele já tivesse conhecimento sobre o destino adequado
167
Relatório da Força Pública. Cuiabá, 02/01/1900. APMT.
168
1894, Dezembro, 21, Cuiabá.Ofício n.º 97 do Chefe de Polícia interino Pedro Antunes de Souza Ponce ao
Presidente Manoel José Murtinho. Caixa 1894 - Maço: Repartição de Polícia do Estado de Mato Grosso. APMT.
70
O discurso do chefe de polícia parece ter brotado de páginas da literatura, já que este
reclama atenção do Governador com relação aos alienados, tanto quanto o Dr. Simão
Entre outros pecados [...] tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é
que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e, não
curado, mas descurado, até que a morte vinha defraudar do benefício da
vida; os mansos andavam à solta pela rua.170
A piedade também é recorrente no argumento usado pelo Dr. Simão Bacamarte para
obter a concessão de criação da Casa Verde, mas esta se restringe a mera retórica já que, no
conhecimento científico na área psíquica, recanto que, segundo este, é tão pouco explorado ou
Janeiro vivia um momento delicado. Houve mudança na direção do hospital, que ficou a
cargo de médicos, em substituição às freiras religiosas que foram afastadas. Tal mudança teve
científico, já que as aflições psicológicas eram doenças, e como tal assim deveriam ser
tratadas. A alienação mental passaria a ser problema da ciência e não mais da caridade. Além
disso, pesava sobre as freiras a acusação de praticarem barbaridades contra os internos, que
169
Dr. Simão Bacamarte é o personagem de Machado de Assis, o alienista criador da Casa Verde, um hospício
construído pelo mesmo em Itaguaí, para recolher todos os loucos da cidade. In: ASSIS, Machado de. O
Alienista. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
170
ASSIS, Machado de. O alienista. p. 9-10.
71
eram conduzidos pela polícia ao Hospício Nacional de forma tão indiscriminada, que não era
repulsivo no espaço público. Maltrapilho ou louco tanto faz; seu aparecimento nas ruas terá
curta duração, já que logo será dali retirado e trancafiado em algum lugar. Foucault observou
que, na França, logo após Revolução Francesa, foi no Hospital Geral e demais instituições
totais que Pinel encontrou todos os loucos e deu início à elaboração de uma classificação da
loucura. No Brasil, em fins do século XIX, a medicina psiquiátrica vai gradualmente se impor
como saber (com seus efeitos de poder), reivindicando a extensão de seus domínios e, por
conseguinte, a definição dos limites de atuação das várias instituições existentes no país,
A indiscriminação, erro, ou confusão cometida pela polícia, por sua vez, não cessou
com a mudança de direção, apesar dos protestos dos médicos e alienistas, que passaram a
exame médico. Tentava-se com isso impor o saber médico à ignorância da polícia, já que uma
servirá de modelo para as demais instituições psiquiátricas instaladas em todo país. Essa
triagem, até então feita pela polícia, que determinava quem deveria ser retirado da rua, passa a
ser realizada pelos médicos, que tomam para si aqueles que interessam à ciência, deixando os
demais sob a égide da truculência policial, nascida da ignorância, isso, é claro, na visão dos
detentores do saber.
171
Relatório Anual do Hospício Nacional dos Alienados. Ministério do Interior. 1891.
172
Cf., no terceiro capítulo, a respeito do nascimento da psiquiatria.
72
A polícia, não sei como e por que, adquiriu a mania das generalizações, e as
mais infantis. Suspeita de todo sujeito estrangeiro com nome arrevesado,
assim os russos, polacos, romaicos são para ela forçosamente cáftens; todo o
cidadão de cor há de ser por força um malandro; e todos os loucos hão por
ser por força furiosos e só transportáveis em carros blindados.
Os super-agudos homens policiais deviam perceber bem que há tantas
formas de loucura quanto há de temperamentos entre as pessoas mais ou
menos sãs, e os furiosos são exceção; há até dementados que, talvez, fossem
mais bem transportados num coche fúnebre e dentro de um caixão, que
naquela antipática almanjarra de ferro e grade173 .
O retrato da loucura que Lima Barreto apresenta no seu Cemitério dos Vivos é muito
mais esclarecedor do que a imagem equivocada da polícia, que, ao que parece, só entende a
loucura pelo bizarro, pela deformação e pela fúria, mas Barreto esclarece que havia também
possível que estudiosos tenham podido reduzi-las em uma classificação, mas ao leigo ela se
apresenta como as árvores, arbustos e lianas de uma floresta: é uma porção de coisas
diferentes”174.
É sobre os alienados que vagueiam sem rumo, ou num outro rumo, ritmo e tempo,
que a polícia será acionada. É ainda Lima Barreto quem nos dirá o que deve nos assustar na
loucura:
Vista assim de longe, a noção do horror que se tem da loucura não parte da
verdadeira causa. O que todos julgam que a coisa pior de um manicômio é o
ruído, são os desatinos dos loucos, o seu delirar em voz alta. É um engano.
Perto do louco, quem os observa bem, cuidadosamente, e une cada
observação a outra, as associa num quadro geral, o horror misterioso da
loucura é o silêncio, são as atitudes, as manias mudas dos doidos.
173
BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos. p. 151-152.
174
Ibid., p. 186.
175
Ibid,. p. 184.
73
Durante muito tempo, o louco pôde gozar do convívio da família, vagar pelas
estradas, circular pelas ruas das cidades e receber os cuidados da família e dos citadinos, sem
ser barrados por quem quer que fosse. Entretanto, no final dos oitocentos, em Cuiabá, essa
situação começará a ser alterada. Pesará sobre as famílias uma zona de silêncio. Ninguém
falará de seus loucos, afinal ele não é motivo de orgulho e, sim, de vergonha. Ele é o
obstáculo do progresso e da civilização. Isso não significa que não tivessem ocorrido
resistências e que todos os alienados tenham sido trancafiados na cadeia, na Santa Casa ou,
posteriormente, no Asilo dos Alienados. E esta é uma situação que pôde ser verificada na
capital mato-grossense no período, bastando, para isso, confrontar o nome dos alienados,
dementes e idiotas que aparecem no recenseamento de 1890, com os nomes dos alienados que
inferir que essa resistência foi muito maior que na capital, considerando que muitas famílias
tinham seus bobós integrados na vida doméstica, com suas próprias tarefas, e que alguns até
Este, porém, é um outro tipo de silêncio, diferente daquele tratado por Lima Barreto,
e que se abaterá apenas sobre as famílias dos alienados. A partir do recenseamento de 1890,
em que os alienados emergem como categoria defeituosa, outros textos farão menção de sua
existência incômoda, e transbordará nos ofícios, relatos e relatórios policiais, pelas desordens
que provocam nas ruas, nas atitudes estranhas, na explosão enfurecida, e que servirão de
176
Essas são as expressões populares empregadas em Cuiabá na atualidade, pelos cuiabanos quando querem se
referir a algum louco. No jornal O Comércio, de 21/04/1910, encontramos uma piada de época sobre as
touradas cuiabanas, onde uma garota se dirige à outra perguntando – Otê qui ocê tá falando, bobó?
74
É ainda Lima Barreto, quem nos vai apresentar a visão de alguns sobre a atuação da
polícia: “Não me incomodo muito com o hospício, mas o que me aborrece é essa intromissão
população para resolver casos corriqueiros, conforme noticiou o jornal O Comércio, sobre um
177
BARRETO, Lima. O cemitério dos vivos. p. 33.
178
Jornal O Comércio. Década de 1910. Na matéria, o redator parabeniza a postura da autoridade policial, “que
não se deixou sugestionar pela prática, entre nós muito comum, da polícia intervir em assuntos para o qual não
tem em absoluto competência” Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.
179
Jornal O Comércio, 30/06/1910. Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.
180
Jornal O Comércio, 26/05/1910. Microfilme. Rolo 60. NDIHR/UFMT.
75
Por estes episódios, é possível inferir que, para a população, a ordem pública e
intervenções da polícia já não eram mais compreendidas como intromissão, desde que se
polícia civil adentrava o interior de outras instituições, como foi o caso de um episódio
envolvendo as polícias civil e militar, isso provocava algumas rusgas no interior do aparelho
estatal, demonstrando que os conflitos sobre os campos de atuação não se restringiam àqueles
provocados pela arrogância do saber médico, tido como superior à polícia Foi isso que
181
Quartel do Comando da Companhia Policial Cuiabá, 2 de março de 1891 - do Capitão Comandante
José dos Santos Ferreira. Of. N.º 81. APMT.
182
RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. Cor e criminalidade (...) p. 36-37.
76
Conflitos à parte, o certo é que a polícia estendeu seu raio de ação para todos os
lugares. Cuidando dos vivos e dos mortos, zelando pelo estabelecimento da ordem, fosse por
Segundo Amaral, a “disciplina penetrara no exército, nas escolas, nas reflexões sobre tática,
A população, por sua vez, foi o seu grande alvo, e se nem todos se submeteram à
disciplina, não foi por falta do uso de tecnologia de poder, nem por ignorarem a
apelo humanitário e, sim, à sua importância para o fortalecimento do Estado. Por essa razão,
“todos os fenômenos a ela relacionados vão se constituir em objetos para o saber e alvos para
a relação de poder. Saúde, longevidade, natalidade, atitudes, produção, fertilidade, etc, serão
É Foucault quem nos demonstra que, ainda que o problema da população não seja
novo nas sociedades ocidentais, o século XVIII, na Europa, possibilitou sua generalização e
sua politização. No Brasil, um século depois, vemos que um poder sobre a vida, em seus
fenômenos de conjunto, passa a ser exercido, enquanto antes havia somente descontínuas
incitações para modificar uma situação pouco conhecida. Há a aplicação de novos tipos de
que se constitui como particularidade do final do século XIX. Emergência de novos tipos de
fenômenos, ou seja, tudo que possa ocasionar uma subtração de forças da população e,
conseqüentemente, do Estado.
183
AMARAL, Maurilia Valderez Lucas do. Constituição do sujeito, governamentalidade e educação. 1998.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Instituto de Educação, UFMT, Cuiabá. p. 44.
184
Ibid., p. 56.
77
a saúde da população, que privilegia o prolongamento da vida tanto quanto mais for possível e
É assim que chegamos ao conceito de biopoder, elaborado por Foucault, e que pode
Dizer que o poder, no século XIX, tomou posse da vida, dizer pelo menos
que o poder, no século XIX, incumbiu-se da vida, é dizer que ele conseguiu
cobrir toda superfície que se estende do orgânico ao biológico, do corpo à
população, mediante o jogo duplo das tecnologias de disciplina, de uma
parte, e das tecnologias de regulamentação de outro186.
As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois
pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização sobre a vida187.
técnicas de poder direcionadas aos indivíduos. É nesse contexto que vemos o saber médico —
além de outros não menos importantes, mas que não interessam neste trabalho —
desempenhar seu papel, e é sobre suas práticas que visam à higienização da cidade e sua
185
CALIMAN, Luciana Vieira. Dominando corpos, conduzindo ações: Genealogia do biopoder em Foucault.
Dissertação (Mestrado em Saúde Coletiva). 2001. Instituto de Medicina Social. Rio de Janeiro, UFRJ.
Disponível em <www.pepas.org.com>.
186
FOUCAULT, Michel. Aula do dia 17 de Março de 1976. In: Em defesa da sociedade. Martins Fontes. São
Paulo. 2002. p. 302.
187
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. 13. ed. Rio de Janeiro: Graal.1999. v. I, p. 131.
78
3 A CIDADE HIGIENIZADA
Sete dias de viagem e o paquete Rio Verde188 finalmente atraca no cais do Porto. Algumas
pessoas se aproximam, mas apenas o Chefe de Polícia sobe na embarcação. Conversa com o Comandante
e logo outro homem embarca também. É um médico. O Comandante informa os passageiros sobre a
inspeção de saúde. Medida desagradável, mas necessária, sobretudo por causa dos boatos de alguns casos
de varíola em Corumbá189. O médico inspeciona primeiro a tripulação e depois seus passageiros. A
presença das autoridades funciona como uma espécie de barreira, chamada pelos governantes de cordão
sanitário, que impede a saída e entrada de qualquer pessoa suspeita de contaminada dos vapores,
lanchas e chatas. Sinal de civilização, até parece o Rio de Janeiro... Lá fora, a cidade. Mas, da
embarcação, a única vista possível é a do Porto, espécie de pórtico da cidade, já que o rio é sua estrada
e o cais, parada obrigatória para todos os que chegam a Cuiabá. O Porto é um lugar mutante. De dia, o
ritmo frenético das trocas, movimento intenso, barulho... As pessoas cruzam os arcos do Mercado do
Peixe, um belo edifício neoclássico, carregando tudo quanto é tipo de mercadoria, inclusive o próprio
peixe, pescado ali mesmo, na barranca do rio Cuiabá ou em algum outro ponto de pesca do mesmo rio.
Nas imediações do mercado, as ruas estão enlameadas, bem diferentes daquelas do primeiro distrito,
calçadas com pedra cristal190, e que, quando molhadas, sob a luz do crepúsculo, adquirem a aparência de
pé-de-moleque recém saído dos fornos de fundo de quintal. Mas no Porto, com as chuvas, as ruas
parecem mesmo melado mole, circundando as casas de moradia, algumas tavernas e bolichos191. As
construções maiores e mais novas são, na sua maioria, filiais das casas comerciais de Corumbá e Cáceres.
No interior destas, homens de negócio, trajados com “smartismo”192, evidenciam a prosperidade da
atividade. Começa a escurecer. As portas das lojas são fechadas e o movimento desaparece. É como se a
escuridão tragasse de uma só vez o barulho, o movimento, as pessoas. O Porto da noite é um outro Porto.
Ás vezes, alguma sombra sugere a presença de alguém, mas quem se atreve a perambular em lugar tão
escuro e silencioso? Um ladrão? Um vagabundo? Ou um louco? Os postes de iluminação não passam de
enfeite dos tempos modernos, já que, desde que foram instalados, nunca funcionaram plenamente193 —
se bem que, nas principais ruas do primeiro distrito, a famosa iluminação elétrica mal dá conta de
188
“O viajante que partia de Corumbá, com destino à Capital da Província, encontrava como alternativa de
empresa a Cia. Lloyd Brasileiro [...] Normalmente, a duração dessas viagens era de seis a sete dias, podendo
levar até doze, caso o Rio Cuiabá apresentasse baixo volume de água.” In: REYNALDO, Ney Iared.
Comércio e navegação no rio Paraguai (1870-1940). Cuiabá: Editora UFMT, 2004. p. 109.
189
Ofício do Inspetor de higiene Dr. Dormevil José dos Santos Malhado ao Presidente do Estado de Mato
Grosso, em que informa a existência de dois casos de varíola em Corumbá. 07/12/1891. Caixa - 1891 - Maço:
Inspetoria de Higiene. Fundo: Saúde/ APMT.
190
No final do século XIX e início do XX, as ruas do primeiro distrito de Cuiabá receberam o calçamento de
pedra cristal. Lata 1911. APMT.
191
Pequeno comércio varejista, existente até hoje em Cuiabá, sobretudo nos bairros mais antigos, onde se podem
encontrar produtos variados.
192
Expressão inglesa utilizada para atribuir elegância ao vestuário.
193
As reclamações sobre a falta de iluminação nos arredores de Cuiabá aparecem com freqüência nos periódicos
locais da época, a exemplo da nota publicada na edição do dia 5/5/1910, pelo Jornal O Comércio, que diz o
seguinte: “a falta de iluminação tornam-nas (as ruas) intransitáveis a noite, a menos que o transeunte não se
arrisque a uma queda”. Microfilme Jornal O Comércio - Rolo 60. NDIHR/UFMT.
79
iluminar mais do que um metro além do poste. Alguém já sugeriu o retorno da iluminação a óleo de
peixe, mas dizem que quem pensa assim não quer o progresso. O silêncio do lugar só é quebrado pelo
barulho irritante dos mosquitos, que parecem reinar absolutos nas margens do rio em época de cheia.
Aliás, muito mosquito acaba sendo um bom aviso para a navegação: sinal de que o rio continua enchendo.
O único movimento que ainda persiste no Porto da noite é o do paquete. O Chefe de Polícia e o médico
encerram, satisfeitos, o trabalho, afinal não há ninguém doente, e se despedem do Comandante. A
embarcação está liberada, finalmente os passageiros poderão pisar em terra firme... Um alívio para
quem retorna para casa, para os que vieram a negócios ou ainda para aqueles que vêm embalados pelo
sonho de progresso, de fazer fortuna na terra que tudo dá e onde só faltam braços...
∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗
Falo em moda, porque a ciência não chegava em formato de teses ou artigos; ela
vinha mesmo na forma fast food, pronta para o consumo, embalada em manuais e conselhos,
194
Citado em SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças.
80
imediata, uma aceitação sem reservas, ou ainda uma ânsia de ficar em dia com mais um signo
[...] no caso brasileiro, a sciencia que chega ao país em finais do século não é
tanto uma ciência de tipo experimental [...] O que aqui se consome são
modelos evolucionistas e social-darwinistas originalmente popularizados
enquanto justificativas teóricas de práticas imperialistas de dominação195.
Nas grandes cidades a entrada desse ideário cientificista difuso se faz sentir
diretamente a partir da adoção de grandes programas de higienização e
saneamento. Tratava-se de trazer uma nova racionalidade científica para os
abarrotados centros urbanos, implementar projetos de cunho eugênico que
pretendiam eliminar a doença, separar a loucura e a pobreza196.
República? De que forma essas práticas estavam articuladas com o projeto civilizatório?
Sobre quais idéias essas práticas estavam alicerçadas? Quando a loucura ou o louco passa a
É sobre essas questões que iremos tratar neste capítulo, que está dividido em duas
capital, sobretudo aquelas que tratam das endemias, contidas nos relatórios, mensagens,
ofícios, atestados e alguns periódicos. A problemática da loucura, por sua vez, será tratada na
segunda parte.
195
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil. (1870-
1930). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 30.
196
Ibid., p. 34.
81
dificuldade e muitas resistências, considerando-se que nem toda “novidade” foi bem recebida
pelos cuiabanos. Nada que se compare, é claro, ao episódio de repúdio à vacinação no Rio de
Janeiro, no início do século XX, que ficou conhecido como Revolta da Vacina197.
para o problema da morbidade, ou ainda para o problema das endemias, conceituada por
Foucault como
mais centrada no corpo ou no corpo individual, como foi o caso da técnica de poder
disciplinar. Essa nova tecnologia não exclui a técnica disciplinar — sobre a qual já tratamos
no capítulo anterior —, mas a embute por várias razões, sobretudo porque a nova tecnologia é
“de outro nível, está noutra escala, tem outra superfície de suporte e é auxiliada por
vida dos homens, à multiplicidade dos homens, não do homem-corpo, como foi o caso da
disciplina, mas do corpo espécie, sujeito a todo tipo de processos próprios da vida, como o
nascimento, a morte, a doença etc. Ou, se preferirem, não se trata mais da anatomopolítica do
197
Cf., a respeito da Revolta da Vacina, SEVCENCKO, Nicolau. A Revolta da vacina. Mentes insanas em
corpos rebeldes. São Paulo: Scipione, 1993.
198
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 290-291.
199
Ibid., p. 289.
82
corpo humano, como tinha sido na Europa, em fins do século XVIII, mas, sim, de uma
biopolítica da espécie humana. Tecnologia esta que foi denominada por Foucault como
biopoder.
mais uma vez, a importância do recenseamento urbano de Cuiabá em 1890 —, mas não
apenas elas: o mapeamento dos nascimentos, os atestados médicos que informam sobre o
varíola, a sífilis, a febre amarela, a tuberculose, a ancilostomíase, a gripe, entre outras. Essas
[...] a introdução de uma medicina que vai ter, agora, a função maior de
higiene pública, com organismos de coordenação dos tratamentos médicos,
de centralização da informação, de normalização do saber, e que adquire
também o aspecto de campanha de aprendizado da higiene e de
medicalização da população201.
200
Isso não significa que, em Mato Grosso, o serviço de estatística estivesse funcionando plenamente. A esse
respeito, o Governador Pedro Celestino, em 1909, propôs a criação de uma seção especial de estatística a
cargo do Tesouro do Estado, sob o seguinte argumento: “O subsídio que a estatística presta a economia
política, e sem a qual não pode haver sistematização segura do comércio, industria e da higiene”. Disponível
em < www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
201
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 291.
83
Governo do Estado, através da Inspetoria de Higiene Pública202. Mas a medicina não atuava
de forma autônoma; volta e meia os médicos requeriam o auxílio do chefe de polícia para
exercer sua atividade, a exemplo das inspeções sanitárias nas embarcações oriundas de
mortalidade serão visadas pelo biopoder, que as elegerá como seu primeiro campo de saber e
domínio, já que muitos outros virão, no decorrer do século XX. A preocupação se voltará,
No conjunto desses domínios sobre os quais a biopolítica vai extrair seu saber e
definir o campo de intervenção de seu poder, Foucault observa algumas coisas importantes. A
tempo científico e político. A segunda é a natureza dos fenômenos, posto que estes
que têm certo número de funções muito diferentes que eram dos mecanismos disciplinares.
202
A Lei nº 18 de 09/11/1892 estabeleceu o serviço de higiene pública a cargo de um Inspetor Geral e de
Delegados, nos municípios de Mato Grosso. Indicador das Leis e decretos do Estado de Mato Grosso. (1890-
1935). APMT.
203
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 292.
84
mudar um determinado fenômeno ou um indivíduo, mas, sim, intervindo naquilo que são as
reguladores globais, em que pese sobre os indivíduos, não uma disciplina, mas uma
regulamentação. Essa nova tecnologia política não se volta mais, como a disciplina, apenas
para o corpo, mas também para a vida; uma tecnologia onde os corpos são recolocados nos
principalmente se considerarmos a teoria dos miasmas204, tão em voga à época. Nos relatórios
produzidos pela Inspetoria de Higiene, as críticas versam, em sua maioria, sobre o grande
número de buracos de tamanhos variados que “atravessam certas ruas desta cidade”, sobre a
servidas e putrefatas antes de terem saída para a rua”205 e, ainda, sobre a aparência, ou a falta
de higiene visível no espaço público da cidade. Aliás, a sujeira era outro item que constava
Nos relatórios, além das queixas contínuas sobre o estado sanitário da cidade, o
hábito das pessoas de lançarem às ruas as águas servidas, o lixo e os animais mortos; as
críticas voltam-se para a má localização do matadouro, para os animais soltos pelas ruas, as
edificações mal ventiladas e a ocupação espacial da cidade. Nesse aspecto, os médicos atuam,
até a primeira metade da década de 1920, quase como urbanistas, redesenhando o espaço
citadino e as ideais condições dos seus equipamentos. Nos ofícios, por sua vez, temos uma
maior riqueza de detalhes a esse respeito, se comparados aos relatórios, como o que tratou da
construção do Matadouro Público, onde o Dr. Dormevil José dos Santos Malhado traz ao
206
Relatório da Inspetoria de Higiene Pública. Fundo Saúde. Caixa 1898. Maço: Inspetoria de Higiene Pública.
APMT.
207
Ofício do Inspetor de Higiene Dr. Dormevil J. dos S. Malhado ao Presidente do Estado. Cuiabá, 10 de
Dezembro, 1891. Fundo: Saúde. Caixa: 1891. APMT.
86
Na relação homem e seu meio, temos assim uma grande lista de problemas a serem
A varíola, no final do século XIX, ainda provocava muitas mortes, mas, ao que tudo
domicílios onde a doença fosse detectada, teve como resultado o desaparecimento gradual da
Livramento Diamantino, Brotas, além da capital. Nesta cidade, criou-se um hospital208, nas
dependências da Santa Casa de Misericórdia, onde os doentes foram submetidos aos cuidados
dos médicos civis e militares. Instalava-se assim, na capital, uma espécie de operação de
guerra — a cidade ideal: a cidade em estado de peste — por meio de sua divisão em diversas
zonas e a designação de comissões de saúde (uma para cada zona), que tinham a incumbência
Sobre a vacinação da população urbana, vejamos o que informou o Dr. José Marques
208
A denominação hospital foi utilizada pelo Presidente do Estado de Mato Grosso, Generoso Ponce,
provavelmente para distinguir esse local, onde os infectados pela varíola receberiam atendimento médico, das
demais dependências da Santa Casa de Misericórdia, cuja administração estava a cargo de irmãs religiosas e
que tinha muito mais um caráter assistencialista do que médico-terapêutico.
209
Mensagem do Presidente de Estado Generoso P. L. de S. Ponce à Assembléia Legislativa. 1908. Disponível
em <http//www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
87
vacinação, era compreensível, afinal, a epidemia de 1867 ainda estava fresca na memória da
maioria da população cuiabana. Notícia de varíola, fosse ela boato ou não, significava risco de
morte, mas era apenas sob essas condições que a “população” procurava a vacina, o que a
transformava em ação isolada e pontual, totalmente desvinculada de outras práticas, ainda que
interrupção211.
Instituto Vacínico do Rio de Janeiro, mas inúmeras foram as reclamações do Inspetor de Mato
Inspetor de Higiene, Dr. José Marques da Silva Bastos, baseava-se tanto na demora no
denúncia:
210
Relatório da Inspetoria de Higiene Pública. Caixa 1897. Fundo Saúde. APMT.
211
Ofício do Dr. Dormevil José dos Santos Malhado ao Presidente do Estado. Cuiabá, 7 de Dezembro de 1891.
Fundo: Saúde. Caixa: 1891. Maço: Inspetoria de Higiene. APMT.
212
Ofício do Inspetor de Higiene Dr. José Marques da S. Bastos ao presidente do estado. Cuiabá, 12 de Maio de
1896. Fundo: Saúde. Maço: Inspetoria de Higiene. Caixa: 1896. APMT.
213
Oficio nº 508 do Diretor Geral da Secretaria de Justiça e Negócios Interiores Barão de Pedro Afonso ao
Presidente do Estado de Mato Grosso. Fundo: Saúde. Maço: Ministério da Justiça e Negócios Interiores.
Caixa: 1896. APMT.
88
tempo, se considerarmos que, em 1904, o Inspetor de Higiene de Mato Grosso não só criticou
Argentina e do Paraguai214.
aqueles que mantêm uma relação mais estreita com determinados setores da população, como
é o caso das escolas. A matrícula dos alunos na capital de Mato Grosso passa a ser
não vacinado, e se era, ou não, portador de moléstia contagiosa215. Mas, aos poucos, essa
medida caiu em desuso e só voltou a ser aplicada em 1923, como reprimenda do poder
público aos estudantes da capital que relutaram em ser vacinados, em 1922216. É certo que
essa não foi a primeira vez que os estudantes se rebelaram contra a vacinação. Em 1918, o
Inspetor de Higiene Dr. Mario Corrêa recorreu ao Secretário do Interior, Justiça e Fazenda,
Dr. Benito Esteves, para que este tomasse alguma providência contra as alunas do 4º e 5º ano
Quanto aos funcionários civis da União, estes passam a ter a respectiva saúde
epidemia na capital e também nos municípios do interior, como também as medidas adotadas
sofreram algumas variações. No final do século XIX, ainda era a varíola, enquanto no século
XX, cede-se lugar às afecções do aparelho digestivo e à peste branca220. Não que a incidência
de tuberculose em Cuiabá fosse muito alta221, como em São Paulo ou no Rio de Janeiro222,
mas um caso isolado que fosse era motivo de preocupação tanto dos governantes como das
E se a morte ceifava a vida de uma só vez, as endemias possuíam uma ação lenta, mas
ancilostomíase foi a que se multiplicou com maior voracidade em Cuiabá e nas cidades do
interior. Esse tipo de verminose era popularmente conhecido como “opilação”, e produziu,
nessas localidades, nas primeiras décadas do século XX, um grande número de opilados, que
219
Os atestados médicos estão arquivados nas inúmeras caixas do Fundo Saúde. APMT.
220
Peste branca: assim que era tratada a tuberculose na Primeira República.
221
À exceção do ano de 1925. Segundo o Governador Dr. Mario Corrêa da Costa, “a tuberculose pulmonar é a
maior devastadora humana, fazendo mais vítimas do que a verminose, a gripe, o alcoolismo e a sífilis
reunidas”. In: Mensagem de Presidente de Província – MT. Disponível em
<http//wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>.
222
Segundo Lilia Schwarcz, “de 1868 a 1914, tinha ocasionado 11.666 óbitos, número que transformava o Rio
de Janeiro na cidade com maior incidência de casos de tuberculose em nível mundial”. In: O espetáculo das
Raças. p. 225.
90
levavam a injusta pecha de preguiçosos. Como diria Monteiro Lobato: o mato-grossense não
era preguiçoso; era, sim, doente, o que exigia do Estado a adoção de algumas medidas.
O cuidado com a vida ou, como observou Foucault, o fazer viver – deixar morrer, no
qual se inscreve essa nova tecnologia de poder, o biopoder, que tem essa capacidade de
higienização e saneamento adotado pelo Poder Público e também pelos discursos proferidos
dois, proferidos em 1901 e 1902, pelo Governador Antonio Pedro Alves de Barros, que
consideramos exemplares:
[...] a vida humana representa por toda parte um capital precioso, confiado à
guarda dos governos e que esse capital sobe de preço naqueles Estados,
como o nosso, onde a população é escassa e o seu aumento é difícil
conseguir por meio da imigração. [...] Jules Rochard, no Congresso de Haia
em 1884, afirmou: 1º Toda despesa feita em nome da higiene é economia; 2º
Nada é mais dispendioso que a moléstia, a não ser a própria morte; 3º Para as
sociedades não há desperdício mais ruinoso do que da vida humana. (1901).
Como obtempera um distinto autor de direito administrativo, é tão atrasado o
ponto de vista de Rosseau como o de Spencer, um com a estipulação de seu
contrato e outro com a sua aplicação da lei da luta pela existência, quando
concluem ambos pela necessidade de abandonar o indivíduo ao seu próprio
destino, limitando-se ao Estado o papel de juiz do campo no grande torneio
da vida político-social para recolher os mortos e cumprimentar os vitoriosos.
Os próprios países onde mais predomina o espírito do individualismo é
nomeadamente a Inglaterra que é o tipo clássico do liberalismo mais
intransigente, ali estão todos, sem exceção de um só, a alargar cada vez mais
a esfera do poder político em todos os negócios da comunhão.223
Os Relatórios dos Inspetores de Higiene, por sua vez, atuavam como uma espécie de
eco dos governadores e forneciam munição a estes, tanto por meio da descrição detalhada do
estado sanitário da capital, principal foco de problemas a ser resolvido nos princípios da
223
Mensagem do Governador Antonio Pedro Alves Barros dirigida à Assembléia Legislativa em 1902.
Disponível em <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
91
República em Mato Grosso, como pelo pedido de atenção à saúde, por parte dos
São nos ofícios e atestados médicos, muito mais do que em relatórios e mensagens
faces encobertas da cidade, daquilo que este saber pretende sanear, higienizar, eliminar,
separar e regulamentar.
A desinfecção dos domicílios ocupados por alguma pessoa doente era uma medida
adotada desde o final do século XIX. Se, até então, em caso de epidemia, procedia-se à
1913, a desinfecção dos recintos, ocupados por infectados, será praticada com maior
serventes226.
224
Relatório da Inspetoria de higiene Pública. Cuiabá, 5 de Outubro de 1897. Fundo : Saúde. Caixa 1897.
APMT.
225
Neste caso, a doença era a temida varíola. A ultima epidemia que se tem registro na capital mato-grossense,
data do ano de 1907. As vítimas fatais que esta produziu foram sepultadas no cemitério Cai Cai, por ordem
do Governador. Ofício do Hospital Provisório do Isolamento ao Presidente do Estado Cel. Pedro leite Osório.
Caixa 1907. Fundo Saúde. APMT.
226
Ofício n.º 39 de 08/07/1913 do Inspetor de Higiene Dr. Marinho Rego onde o mesmo comunica ao
Governador de Mato Grosso a designação de um capataz e de dois serventes para o serviço de desinfecção.
Livro de Registro de Ofícios expedido pela Inspetoria de Higiene. Livro I. APMT.
92
Alguns ofícios são curiosos, como o que comunica ao intendente da capital a separação de
Além das endemias, dos hábitos considerados atrasados e/ou nocivos à saúde e da
falta de higiene da população, outra questão que afligia os médicos, nos anos 10 do século
XX, era o charlatanismo. Era uma época em que os médicos e farmacêuticos brasileiros
poderia curar a população doente e que remédio bom era aquele vendido em farmácias
A atividade dos charlatães também era considerado um grande problema (ou perigo),
porque o combate a essas práticas clandestinas exigia rapidez nas ações de reprimenda e o
charlatão era um tipo de criminoso que tinha, como uma de suas características, a mobilidade.
Theophilo Rodolfo de Carvalho foi, durante três anos, uma pedra no sapato da
Peitoral da Vida) e trabalhando sem autorização das autoridades sanitárias na Rua Joaquim
Murtinho, foi acusado de charlatanismo, intimado e multado várias vezes, entre os anos 1915
227
Ofício nº 132 de 05/05/1916. Do Inspetor de Higiene ao Intendente da Capital, em que solicita providências
no sentido de obstruir um bueiro existente na Rua Ricardo Franco “dando passagem, não só a imundície
como também a matéria fecal”. Livro II de registro de Ofício da Inspetoria de Higiene. APMT.
228
Ofício n.º 49 de 17/04/1917. Do Inspetor de Higiene interino Dr. Caio Corrêa ao Intendente Geral da Capital.
“...havendo verificado pessoalmente, que, na rua da Emancipação junto a ponte denominada do “Mundéo” e
também da que fica em frente da Travessa do Palácio, se deposita lixo, com manifesta transgressão das regras
de Higiene e atendendo a que as duas referidas pontes se acham localizadas na parte mais central da cidade,
venho solicitar de V. Excia., as necessárias providências no sentido de ser coibido semelhante abuso...”.
Livro II. APMT.
229
Ofício n.º 114 de 20/12/1913, em que o Inspetor de Higiene informa ao Intendente da capital que preservou
“cento e cinqüenta doses de strychinina a sete meio centigramas destinado a extinção de cães”. Livro II. De
registro de Ofícios da Inspetoria de Higiene. APMT.
93
mesmo ano, Theophilo voltaria à cena cuiabana. Seu nome só deixou de aparecer nos ofícios
da Inspetoria de Higiene em 1918, quando o caso foi parar nas mãos da polícia230.
diversificadas. Destas, podemos citar tanto aquelas que ficaram circunscritas a um número
reduzido de pessoas — o incentivo dos intendentes municipais concedido aos munícipes para
alcance: nesse caso estão incluídos a distribuição de folhetos às famílias das cidades e a
publicação de conselhos de saúde nos jornais locais, em especial na capital. Esses “conselhos”
eram importados de outros lugares; provavelmente vinham do Rio de Janeiro, não só por ser a
capital federal, mas também por sediar a Faculdade de Medicina, cuja política de prevenção,
portanto, de combate às doenças, distinguia-se daquela adotada pelos médicos baianos, que
consideravam que o doente é que estava em questão233. Dos inúmeros conselhos publicados,
Os Dez Mandamentos da Saúde é um dos que abarcam a maior variedade de temas, como
podemos observar:
I. Deves dormir sete a oito horas por noite, tendo um repouso perfeito e uma
vida sexual moderada;
II. Deves ser cuidadoso com a tua alimentação de modo que sejam os
alimentos puros bem preparados, tomados a horas certas em quantidade
suficientes, mas sem exageros
230
Ofícios n.º 28, 51, 55 de 1915; n.º 105, 110, de 1916; n 03, 38, 57, de 1917 e nº 50 e 92, de 1918. No ano de
1916, existem vários ofícios, multas, intimação, apreensão de drogas de Theophilo Rodolfo de Carvalho, que
se apresentava como farmacêutico diplomado, apesar de as averiguações comprovarem que ele não era
titulado. Livros I e II de Registro de Ofícios da Inspetoria de Higiene. APMT.
231
Resolução n.º 76 de 29/11/1911. Regulamenta por meio de sete artigos a isenção de impostos e a doação de
terrenos, para os cidadãos que construírem habitações higiênicas. Lata 1911/D. APMT.
232
Resolução nº 85 de 21/12/1912. Concede “ao cidadão João F. de C. Caldas, o auxilio anual de [...] para a
compra de medicamentos homeopáticos que o mesmo senhor vem filantropicamente distribuindo desde
muito tempo à população desprovida de recursos, desta capital”. Lata 1912/B. APMT.
233
A respeito da criação das faculdades de medicina no Brasil e as correntes teóricas das faculdades de medicina
da Bahia e do Rio de Janeiro, ver o trabalho de Lilia Moritz SCHWARCZ. O espetáculo das raças.
94
sexualidade aparece também como questão, ou ainda, como observou Foucault, como um
outro domínio do biopoder que, no século XIX, adquire grande importância. Tal importância,
ainda segundo Foucault, prende-se a várias razões, especialmente, “de um lado, a sexualidade,
234
Jornal O Mato Grosso. Edição n.º 1.816, de 22/10/1922. Cuiabá. APMT
95
hospitais) e de outro, pelos “seus efeitos procriadores, em processos biológicos amplos que
concernem não mais ao corpo do indivíduo, mas a esse elemento, a essa unidade múltipla
que encontramos a sexualidade, e é sobre os efeitos procriadores decorrentes dela, que vemos
emergir no Brasil, no início do século XX, a produção de discursos que alertam sobre o perigo
autoria do Prof. Dr. João Henrique, na revista semanal Brazil Médico237, evidenciava a
235
FOUCAUL, Michel. Em defesa da sociedade. p. 300.
236
Ibid., p. 301.
237
Revista semanal vinculada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, publicada pela primeira vez em 1887.
Sobre as tendências da publicação, cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças, a partir da p. 218.
238
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. p. 231.
96
Esse tipo de doutrina dividia opiniões no interior da área médica, já que havia, de um
lado, aqueles que defendiam a noção de contágio e, de outro, os que acreditavam na idéia de
[...] nota-se aí mesmo que de forma breve, uma tentativa de adaptação dessas
noções à realidade local: nesse caso aponta-se a correlação entre imigração e
a entrada de moléstias estranhas ao nosso habitat, vinculando assim a doença
a determinadas raças imigrantes239.
Por outro lado, estas idéias, ainda segundo Schwarcz, coadunavam com
reivindicações políticas dos acadêmicos da Faculdade de Direito de São Paulo, que buscavam
acreditavam ser necessário orientar os políticos na seleção das “boas raças”, o que na prática
significava “muita orientação a ser dada”, considerando o grande número de imigrantes que
do ódio ou desprezo de uma raça por outra, mas, sim, como nos indica Foucault, como
primeiramente, o mecanismo que opera o corte “entre o que deve viver e o que deve morrer,
[é] uma maneira de defasar no interior da população uns grupos em relação aos outros”. Tem
ainda uma segunda função, exemplificada por Foucault com a frase lapidar: “quanto mais
você matar, mais você fará morrer”, que não pode ser compreendida como uma relação
guerreira, mas de uma maneira que é inteiramente nova e que é compatível com o exercício
do biopoder, já que é uma relação biológica. Nas palavras de Foucault, “A morte do outro, a
239
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. p. 231.
97
morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal) é o que vai deixar a
possui, na mesma medida, ou com o mesmo poder, que anteriormente o soberano dispunha
sobre a morte. Curar enfermidades, intervir nos fenômenos, nem tanto para modificá-los, mas
para regular a sua intensidade. É sobre a vida que o Estado, por meio da articulação
240
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 305.
241
Relatório Anual da Inspetoria de Higiene Pública, relativo ao ano de 1912. Fundo Saúde. Caixa 1913. APMT.
98
Tirar a vida aqui, diz Foucault, não é pura e simplesmente assassínio direto, mas tudo
aquilo que pode ser assassínio indireto, como “o fato de expor a morte, de multiplicar para
alguns o risco de morte, ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição,
etc.”243.
Temos aí, um momento em que ganha força um racismo onde se estabelece uma
conjunto de noções como “hierarquia das espécies sobre a árvore comum da evolução, luta
pela vida entre as espécies, seleção que elimina os menos adaptados”, e que se tornou, em
poucos anos do século XIX, uma maneira de pensar várias coisas, dentre as quais, o fenômeno
da loucura, a partir do momento em que era preciso tornar possível, num mecanismo de
que começa a se constituir como um ramo especializado da higiene pública. Como observou
Foucault:
242
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. p. 306.
243
Id.
244
FOUCAULT, Michel. Os anormais. p. 148.
99
E para poder existir como saber, a psiquiatria teve de proceder a duas codificações
distúrbios, as manias, os desvios, as ilusões poderiam ser definidos como patológicos por
clínicas etc.), permitindo realizar uma aproximação entre essa higiene pública ou essa
precaução social com o saber médico. A segunda, necessária na constituição desse saber, foi a
codificação da loucura como perigo, ou como portadora de perigos, conforme diz Foucault:
a psiquiatria, por um lado fez funcionar toda uma parte da higiene pública
como medicina e, por outro, fez o saber, a prevenção e a eventual cura da
doença mental funcionarem como precaução social, absolutamente
necessária para se evitar um certo número de perigos fundamentais
decorrentes da existência mesma da loucura245.
Na Europa, essa dupla codificação vai ter, como salientou Foucault, uma história
longuíssima, no decorrer de todo o século XIX. A psiquiatria, por sua vez, atinge o seu ponto
forte com o encontro dessas duas codificações, que se desdobrarão em um só e mesmo tipo de
como perigo.
perigo social já codificado, que se torna doença de domínio exclusivo da ciência médica,
Europa, temos a noção de degeneração que vai ser diferente da noção de monomania. A
zona de perigo social e que receberá um estatuto de doença. Foucault considera que o século
245
FOUCAUL, Michel. Os anormais. p. 149.
100
XIX é o período forte da psiquiatria e é o período onde esses conceitos fracos foram
formulados.
nos atestados médicos emitidos em Cuiabá, em fins do século XIX e início do XX. O atestado
emitido em 1904, pelo Dr. José Marques da S. Bastos, médico da Polícia Militar diz:
Um outro episódio parece evidenciar ainda mais essa fraca formulação conceitual.
Foi quando o escrivão dos Feitos da Fazenda, Lourenço Justiniano de Oliveira, adoeceu
gravemente, segundo relatou sua esposa Joana Antunes de Oliveira, em requerimento dirigido
ao Presidente do Estado, em 1911, onde a mesma solicitou licença médica para seu marido247.
Vários atestados médicos foram produzidos pelo Inspetor de Higiene Dr. José Marques da
Silva Bastos, a partir deste requerimento. Curiosamente, temos, para a mesma pessoa, vários
diagnósticos, tais como: perturbação nervosa, nevralgia cerebral e sofrimento das faculdades
mentais.
higiene pública e a proteção social, sua ambição é encontrar “os segredos dos crimes que
podem habitar toda loucura, ou então o núcleo da loucura que deve habitar todos os
indivíduos que podem ser perigosos para a sociedade”, como observou Foucault.
246
Fundo Saúde. Caixa 1904 - Maço: Batalhão de Polícia Militar. APMT.
247
Requerimento de 12/6/1911. Maço: Fazenda Nacional. Caixa: 1911. Fundo: Saúde. APMT.
101
É nesse quadro que a psiquiatria procedeu a duas grandes operações, uma dentro do
processo semelhante, já que a psiquiatria também irá detectar o perigo que a loucura traz
consigo248, mesmo quando é uma loucura suave, mesmo quando é inofensiva, mesmo quando
autoridade que tem de justificar-se como intervenção científica e autoritária, uma vez que ela
pode identificar o perigo onde ninguém mais o percebe, e somente ela tem esta
É por essa razão que José da Cruz Ferreira, Balbino Antunes Maciel, Joana de tal e
alguns outros, serão recolhidos à cadeia pública de Cuiabá. Porque são loucos, logo, são
Nesse período, ainda não havia em Cuiabá nenhum alienista, porém, a grande
maioria dos médicos que residia na capital mato-grossense teve sua formação na Bahia ou no
Rio de Janeiro, e, em fins do século XIX, Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, e Nina
marco na psiquiatria, segundo alguns estudiosos das políticas de saúde mental no Brasil249,
não só pela introdução de tratamentos médicos aos loucos que ali eram recolhidos desde a
inauguração da instituição — época em que o único tratamento dispensado aos internos era o
248
A prerrogativa do saber psiquiátrico, na detecção da loucura perigosa, também vai ser o argumento utilizado
pelos psiquiatras frente aos juristas com relação aos criminosos que cometem algum crime sem motivo. No
Arquivo Público de Mato Grosso, existem processos crimes exemplares, especialmente no arquivo do
Tribunal da Relação, mas neste trabalho optamos por não utilizar essas fontes, por entender que implicaria
em procedermos também a outras análises.
249
Cf., a esse respeito, o trabalho de Heitor REZENDE, Políticas públicas de saúde no Brasil.
102
que foram remetidos a todas capitais do país, como esta circular de 1896:
A internação no Hospício Nacional, no final do século XIX, não se dava mais como
na época da sua inauguração (1852), ou seja, aberta para abrigar todos os loucos do Império e
subvencionada pelo imperador251; a partir dessa data, passa então a restringir a gratuidade
apenas aos alienados pobres da cidade do Rio de Janeiro; quanto aos demais insanos providos
de recursos, estes passaram a ter condicionada sua internação mediante o pagamento de diária
por parte do interno, através de sua família, ou a celebração de contrato entre a instituição e os
governos estaduais. Esta determinação, ao que parece, funcionou como uma espécie de
obstáculo para que ocorresse a transferência de alienados de Mato Grosso para o Rio de
250
Circular n.º 370 do Ministério do Interior ao Presidente do Estado. Rio de Janeiro. 1896. Fundo Saúde.
APMT.
251
ELIA, Francisco Carlos da Fonseca. Doença mental e Cidade: O Hospício de Pedro II. Fundação Casa de Rio
Barbosa. Ministério da Cultura: Rio de Janeiro, 1996.
103
Janeiro, salvo dois casos isolados localizados nas fontes consultadas por nós252, cujas diárias,
acautelamento dos bens deste, por determinação judicial, como foi o caso seguinte:
Quanto aos praças do exército, diagnosticados como alienados, esses deveriam ter
Geralmente, ele era simplesmente desligado das fileiras do batalhão, a exemplo do que
252
Em 1921, o Tribunal da Relação concedeu habeas corpus a Antonio Bernardino de Souza e determinou a
remoção do paciente da cadeia pública de Cáceres para o Hospício Nacional dos Alienados do Rio de
Janeiro. Não foi possível localizar o seu processo crime. Caixa 1921. Fundo: Saúde. APMT
253
Ofício do Juiz de Direito Vilela de Oliveira Marcondes de Cáceres ao Vice-Presidente do Estado de Mato
Grosso Coronel Antonio Cezario de Figueiredo, em 14 de fevereiro de 1898. Caixa 1898 – Maço: Juízo de
Direito. APMT.
254
Fundo Saúde. Caixa 1898 – Maço: Conselho de Guerra. APMT.
104
privado da capital, que podemos observar a utilização concomitante das tecnologias de poder
uma portaria que instituiu o serviço de inspeção médico-sanitária, valendo-se dos seguintes
argumentos:
mentais — alunos, professores e funcionários das unidades escolares —, foi a medida adotada
em Cuiabá, enquanto não houve um lugar destinado especialmente para esse fim. Afinal de
contas, nesse caso, enviar qualquer um destes para a cadeia pública ou para a Santa Casa de
Misericórdia seria capitalizar inimigos políticos, já que, para os adversários, tal decisão
poderia ser vista como a transposição para a realidade de uma atitude que só a literatura
255
Parecer nº 16 da Assembléia Legislativa, que institui o serviço de inspeção médico-sanitária nos
estabelecimentos de ensino. Maço: Assembléia Legislativa. Caixa 1918. Fundo: Saúde. APMT.
256
Seguir o exemplo de Simão Bacamarte, o alienista de Machado de Assis e criador da Casa Verde de Itaguaí,
era algo que não encheria de orgulho nenhuma autoridade.
106
encaminhou ofício ao Presidente do Estado Cel. Antonio Paes de Barros, em que “esclarecia”
asilo de alienados, era tema, volta e meia introduzido nos discursos de alguns governantes,
médicos e chefes de polícia, que “estavam em dia” com as novidades da ciência, mas sem que
nenhuma medida fosse colocada em prática. Esta, só começou a ser esboçada em 1911, no
anunciou:
Em 1913, não havia nenhum sinal de Pavilhão de Alienados, apenas uma Resolução
do Pavilhão de Cirurgia, que estava sendo construído em terreno anexo à Santa Casa de
Misericórdia259. Mas a notícia das obras do Pavilhão de Alienados nos chega em 1915, por um
para cumprimento da resolução Legislativa n.º 676 de [...] 1914, visto já estar quase concluída
a notícia e critica a prática de recolher os loucos na cadeia, por ele considerada “abusiva,
Contudo, ainda não seria dessa vez que Cuiabá anunciaria aos doutores da psiquiatria
1915 novamente acabaram tendo uma outra destinação. Dessa vez, funcionaria no espaço
marcado ora pelos tempos de chuva, ora pela seca; ora pelo frenesi das festas religiosas com
toda a programação pertinente — esmolas, procissões, leilões e touradas —, ora pela agitação,
fofocas e conchavos em épocas de eleições: disputas, alternância no poder de grupos rivais, etc.
258
Mensagem proferida pelo Governador Pedro Celestino Corrêa da Costa à Assembléia Legislativa em 1911.
Disponível em <wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>.
259
Resolução nº 624 de 1913. Maço: Assembléia Legislativa. Fundo: Saúde. APMT
260
Ofício do Tesouro do Estado de Mato Grosso. Maço: Tesouro do Estado. Caixa 1915. Fundo: Saúde. APMT.
261
Relatório Anual da Chefatura de Polícia referente ao ano de 1914. Caixa 1915- Maço Chefatura de Policia.
Fundo: Saúde. APMT.
108
Alencastro, já com o gradil de ferro instalado em seu entorno262, tornou-se o espaço público
mais freqüentado pela sociedade cuiabana, lugar onde as famílias se encontravam, casais se
musicais pela Banda de Música Municipal263 e que tinham sua segurança garantida por dois
guardas municipais, uniformizados e armados de sabre264. Mas havia também outras opções
de lazer nas cercanias do Jardim Alencastro, para aqueles que podiam pagar: a programação
ainda, assistir, no Cine Parisien, aos filmes Mulher Corsária; Última Aventura; Cawboy, o
Valentão; Violeta; ou Mentira, entre outros. Os famosos filmes mudos, que saíam das
máquinas de fazer cinema movidas a energia elétrica, chegaram à capital após a instalação,
coadunavam com o projeto de construção da nação e com o desejo de progresso. Assim foi
262
Ofício do Intendente Municipal de Cuiabá Avelino de Siqueira, 1911. Lata 1911/D. APMT.
263
Resolução n.º 93. Autorização para a criação de uma Banda de Música Municipal. Lata 1912/B. APMT.
264
Resolução nº 103. Intendência Geral do Município de Cuiabá. Lata 1912/B. APMT.
265
Resolução nº 75 de 1911. Autorização para a construção de dois edifícios, um para o Mercado Público e outro
para o Teatro Municipal. Lata 1911/D. APMT. Vale ressaltar, porém, que não houve construção do teatro,
mas, ainda assim, até o final da década de 1930, funcionou um teatro num barracão de zinco da sociedade
anônima Amor e Arte. In: ALENCASTRO, Anibal. Anos dourados dos nossos cinemas. Antigas salas de
projeções de Mato Grosso. Edição Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso: Cuiabá, 1996.
266
ALENCASTRO, Anibal. Anos dourados dos nossos cinemas (...)
109
inventar.
Inúmeros prédios públicos, por sua vez, receberam melhoramentos para os festejos
das freiras religiosas, para alegria do Governador Dom Aquino Corrêa, teve a fachada da
edificação reformada, ainda que nenhuma reforma como esta alterasse o quadro nosológico da
capital. A tuberculose, nesse mesmo ano, foi a principal causa de morte dos cuiabanos,
seguida das infecções do aparelho digestivo e respiratório. Mas havia um outro problema:
grande parte dos óbitos tinha causa ignorada, já que a emissão de atestados podia ser feita por
qualquer pessoa, com anuência do chefe de polícia, por falta de médico legista. Esse problema
seria resolvido, pelo menos na capital, por meio da Lei n.º 810, que fixou os vencimentos para
a contratação de um médico legista e que, também, tratou de outras coisas, como a expedição
Casa de Misericórdia267.
No ano seguinte, mais precisamente no dia oito de abril de 1920, foi lançada a pedra
Legislativa, ainda em 1920, “para melhorar e completar alguns serviços afeitos à Polícia”. Na
Gabinete Médico Legal e de um necrotério, para assegurar eficácia aos serviços do médico
267
Mensagem de Presidentes de Província do Estado de Mato Grosso. 1920. Disponível em:
<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
110
desviando de buracos, de cachorros... Os automóveis268, por sua vez, podiam dar-se ao luxo
de percursos mais longos e em menor espaço de tempo, rumo ao Porto, à espera de algum
vapor, ou para as bandas do Coxipó, para admirar a bela ponte de ferro sobre o rio do mesmo
nome.
Para as escolas da capital, novos mobiliários foram sendo adquiridos, cuidando para
que fossem os mais adequados, os mais modernos, os mais higiênicos, já que toda esta
aquisição passava pelo crivo do Inspetor de Higiene Dr. Alberto Novis269 que, como médico e
Inspetor de Higiene do Estado, dispunha de saber e autoridade para opinar sobre esse e
fossem elas.
Mas não apenas novos mobiliários eram introduzidos nas escolas da capital. Folhetos
explicativos sobre a ancilostomíase e outras endemias eram distribuídos aos professores que,
por sua vez, deveriam disseminar esses saberes entre os alunos. Era a ciência fazendo escola.
financeira, que determinou a suspensão das obras do novo e grandioso pavilhão dos alienados,
268
Segundo Anibal Alencastro, o primeiro automóvel de Cuiabá foi vendido em 1919 pela empresa dos Irmãos
Dorsa.
269
“Estudando detidamente o desenho do mobiliário escolar que me foi apresentado para dar informação sob o
ponto de vista higiênico, cabe-me o dever de discordar da disposição do encosto dos bancos obrigando o
aluno a uma posição de flexão forçado da coluna vertebral, o que não deixa de ser uma atitude viciosa
podendo causar deformação da mesma e aconselho, pois a dar esse encosto uma ligeira inclinação para traz
de acordo com o modelo adotado em Zurique pelos ilustres professores Hermam Meyer e Hormer e
estampado no tratado de higiene de Julio Amaral, 3ª edição, a página 1043, fig. 240 que a meu ver satisfaz
inteiramente as condições de integridade anatômica e fisiológica”. In: Ofício n.º 33 de 28/05/1920 - Do
Inspetor de Higiene Dr. Alberto Novis ao Secretario do Interior, Justiça e Fazenda. Livro II de registro de
Ofícios expedidos pela Inspetoria de Higiene. APMT.
111
alienação mental, visto não haver estabelecimento hospitalar destinado para esse fim”271 e, na
qual achava-se recolhida uma demente, [...] contíguo a esta casinha foi construído outro
quartinho onde , por carência de compartimento melhor, acha-se recolhido outra demente”272.
tantas vezes mencionada e subvencionada pelo Poder Público, ao que tudo indica, continuou
adiada, nos anos subseqüentes. A grande maioria dos alienados, por sua vez, continuava sendo
recolhida à cadeia pública da capital, e é sobre as condições deste lugar, que, em 1926, o
270
Mensagem de Presidente de Província de Mato Grosso. 1921. Disponível em
<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
271
Ofício do Chefe de Polícia Albano Antunes de Oliveira. Caixa 1921. Fundo: Saúde. APMT.
272
Relatório Beneficente da Santa Casa de Misericórdia. Cuiabá, 1923.
273
Mensagem do Presidente de Província. 1926. Disponível em <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
112
inexistência de uma Colônia Correcional Agrícola, para recolhimento dos vadios de ambos os
sexos, maiores de quatorze anos, apesar de ter sua criação autorizada desde 1895274.
considerando que as obras estavam chegando ao fim, conforme declarou o Governador Mario
Corrêa da Costa:
Instrução, o antigo muro de arrimo foi substituído por balaústres de alvenaria e fez-se a
jardins e alguns ornamentos, compondo dessa forma, na opinião do Governador Mario Corrêa
274
Mensagem de Presidente de Província. 1926. Disponível em: <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
275
A utilização da palavra hospício em lugar de pavilhão não significa, ainda neste caso, alguma mudança
efetiva com relação ao local designado para o recolhimento dos alienados da capital, apesar de não podermos
ignorar que a instalação de grades serviria para garantir o aprisionamento dos alienados, contudo, a
designação hospício parece indicar a simpatia do médico e Governador Mario Corrêa à introdução das novas
teorias psiquiátricas que circulavam no país no mesmo período, sobre as quais já trataremos.
276
Mensagem do Governador Mario Corrêa proferida à Assembléia Legislativa em 1927. Disponível em:
<www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
113
“apresenta atualmente um aspecto que ajudado pela magnífica e poderosa iluminação elétrica
impressiona bem e o coloca em situação igual às melhores praças dos grandes centros277”.
Mato Grosso em “pé de igualdade” com as grandes cidades do país, a conclusão das obras do
pavilhão de alienados, por sua vez, fez com que Cuiabá ficasse em dia com uma das últimas
construção, o Governo decidiu que os alienados da cadeia ocupariam apenas uma parte do
pavilhão, que foi dividido e destinado a outro fim, sob o argumento de que:
sobre outras formas de tratamento dos doentes mentais afastava-se cada vez mais do chamado
tratamento moral, praticado tanto na Europa, em fins do século XVIII, como no Brasil, mais
Teixeira Brandão, conforme acusou Lopes Rodrigues. Rodrigues sustentava que a psiquiatria
verdadeiramente científica não fez sua entrada no hospital e na assistência pública com a
simples tomada do poder pelos médicos. Segundo Heitor Rezende, para Rodrigues,
277
Mensagem de Presidente de Província. 1928. Disponível em: <www.crl.uchicago.edu/info/brazil>.
278
Id.
114
pesquisa o fulcro de sua mágica oficina, do escalpelo o silogismo, da lâmina a dialética [...]
em vez do livro, o doente”280. Data da mesma época, a nomeação de Oswaldo Cruz à frente da
direção dos serviços de saúde pública. Assim, a Saúde Pública e a Psiquiatria deram-se as
infecção que eram os cortiços, os focos de desordem que eram os sem-trabalho maltrapilhos a
infestar as cercanias do porto e as ruas do centro da cidade281”, ainda que nessa tarefa tenha
chamado open-door podem ser considerados como de valor terapêutico. Esses dois tipos de
Não que isso fosse uma novidade, afinal Pinel, um século antes, em visita feita a um
hospício de indigentes onde os doentes deviam trabalhar, comparou esse lugar e esses
pacientes ao ambiente onde eram internados os abastados, e observou que, no primeiro caso,
279
REZENDE, Heitor. Políticas de saúde mental no Brasil (...). p. 43.
280
Ibid., p. 44.
281
Ibid., p. 45.
282
Id.
283
Ibid., p. 46.
115
os pacientes lhe pareceram mais tranqüilos, o que levou Pinel a concluir pelo valor terapêutico
do trabalho284.
colônias agrícolas se deu tanto por exclusão das outras estratégias terapêuticas — cujos
resultados eram duvidosos — como por ter encontrado “ambiente político e ideológico
propício ao seu florescimento”, uma vez que “as necessidades do incipiente capitalismo
Em 1930, Cuiabá ainda era o mesmo caldeirão de problemas no que diz respeito
tanto à ocupação do espaço urbano286, quanto ao seu quadro nosológico, mudando apenas a
ordem das doenças causadoras de mortalidade, já que a tuberculose, nesse ano, alcançou o
Governador de Mato Grosso, Anibal de Toledo, manteve junto aos parlamentares estaduais as
relação aos alienados, por sua vez, a idéia de implantação de colônias agrícolas se coadunava
com a decantada vocação agrária brasileira, seguindo, talvez, o discurso de Júlio Prestes, no
284
REZENDE, Heitor. Políticas de saúde mental no Brasil (...). p. 47.
285
Id.
286
Ao assumir o Governo, Anibal de Toledo deparou-se com a possibilidade de mudança da cadeia pública da
capital do segundo distrito para um edifício, cujas obras estavam em fase de conclusão, localizado na Praça da
República. O Governador, no entanto, não concordou com a mudança e utilizou como argumento tanto as
objeções feitas pelos cuiabanos, como o modelo adotado em outras capitais do país, que instalava esse tipo de
instituição nos arredores da cidade, e não na sua porção central. In: Mensagem de Presidente de Província.
1930. Disponível em<www.crl uchicago.edu.info/brazil>.
116
ainda o lar brasileiro por excelência, onde o trabalho se casa com a doçura da vida e a
Diante de tal quadro, novos atores serão inseridos para dar cabo de solucionar tais
instalado em São Paulo, por Franco da Rocha —, conjugada com a introdução de um novo
campo de saber para ordenar o espaço citadino e regulamentar as práticas de sua população, o
O Asilo dos Alienados foi fundado em 1931289, quando foram para lá transferidos
terreno, próximo às margens do Rio Coxipó, “quase” nos remetem a outros tempos. Tempo
em que uma grande nau ia navegando ao longo de águas calmas, levando sua carga insana.
287
REZENDE, Heitor. Políticas de saúde mental no Brasil (...). p. 48.
288
Mensagem de Presidente de Província. 1930. Disponível em <wwwcrl.uchicago.edu/info/brazil>.
289
Relatório do Departamento de Saúde do Estado de Mato Grosso. 1945. APMT.
290
Isso não significa que a prática policial de recolher os loucos na cadeia tenha cessado com a inauguração do
Hospício de Cuiabá.
117
Mas, estes são outros tempos e, ao contrário da Nau dos Loucos, a cidade desse tempo não
∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗∗
118
CONCLUSÃO
percurso realizado com a utilização de escalas cujas variações, penso eu, ainda que não
cubram toda a superfície do tema — afinal, não se pretendeu aqui fazer a história de um
período e, sim, de um problema (e aqui, valho-me dos textos de Michel Foucault, em especial
A Poeira e a Nuvem, onde o autor explicita a diferença entre ambos) —, pelo menos revelam,
a cidade.
Destas questões, retomo pelo menos uma delas, ainda que sumariamente, nesta
XIX e primeiras décadas do século XX, inscrita em práticas que se constituem como
Esses conceitos, formulados por Michel Foucault, pouco a pouco iam brotando nas
apresentadas ao longo dos três capítulos, em decorrência das minhas escolhas, com todos os
erros ou acertos aí implicados, seja por julgá-las mais apropriadas, mais interessantes ou por
instalarem inúmeros pontos de dúvida. Paul Veyne já havia observado que, quando nos
deparamos com algo que mexe com as nossas certezas, podemos desconfiar: aí deve haver
algo interessante.
importância, principalmente para a construção do primeiro capítulo, já que nele eu podia ver
uma espécie de radiografia da cidade, com alguns dos estriamentos existentes, considerados,
119
naquele contexto, como as suas principais fissuras. O recenseamento funcionou como guia, e,
como flâneuse imaginária, conduzi-me por alguns dos trajetos percorridos pelo recenseador
José Barnabé de Mesquita e comitiva. Nesse caminho, visitei lugares da cidade, mas este não
foi um simples caminhar por ruas, travessas, praças e largos. A comitiva, ou o mapa por ela
produzido, proporcionou-me mais do que andar pela cidade, mais do que seguir seus passos
pelas ruas de Cuiabá. Com os recenseadores, uma a uma, vi abrirem-se as portas de todas as
casas e casebres da cidade, talvez sem a menor cerimônia, afinal, eles — os recenseadores —
não eram pessoas quaisquer: eram funcionários públicos, dispunham da autoridade conferida
pelo Estado para, por exemplo, entrar na casa das pessoas, interrogá-las/observá-las e
classificá-las segundo diversas categorias, na maioria das vezes indicando juízo de valor, e,
desse modo, exteriorizando (para felicidade do historiador) algumas das idéias veiculadas no
período.
temas nela contidos —, para este trabalho, indicou que a loucura em Cuiabá, a partir de 1890,
passou a ter nome, idade, endereço, estado civil, raça etc..., codificada como alienação mental,
Mas a eleição dos critérios utilizados no censo de 1890 apontava, também, para o
que estava em jogo naquele momento: a construção da nação, e a cidade adquire aí grande
importância, já que foi o lugar escolhido para veicular essa idéia. Todavia, a cidade que se
tem em fins do século XIX, no Brasil, é marcada pela rusticidade e pela “quase” ausência de
delimitações entre o ambiente rural e urbano. Outro problema se apresenta neste sentido: o
das populações da cidade. Era preciso civilizar esta população, torná-la cidadã, distanciando-a
diferenças entre o ambiente urbano e o rural, entre o homem da cidade e o homem do campo.
120
Tarefa difícil esta de construir uma nação num país onde havia tanto “atraso”,
com a Inglaterra e a França — as grandes referências do Brasil em fins dos oitocentos, para
designar avanços, desde o final do período colonial. Tarefa difícil também esta de civilizar um
povo, com tantas práticas arraigadas, tantos vícios, conforme os “conhecedores” da lei e da
disciplina; tantos maus hábitos, segundo os preceitos da higiene e da ciência. E já que não
havia ainda uma nação, nem cidade que pudesse ser assim designada, muito menos o povo
medidas foram tomadas para a realização deste ambicioso projeto. Adotaram-se tecnologias
foi sobre isso que os relatórios, ofícios, entre outras tipologias documentais da Chefatura de
Polícia de Mato Grosso, nos foram revelando, tirando as camadas encobertas da cidade,
tornando visível aquilo que ela própria queria esconder. Resistentes ao estabelecimento dessa
nova ordem, os loucos, pouco a pouco, são encarcerados, isolados e retirados da cena urbana.
Se, em alguns casos (talvez os primeiros), isso se deu com certa cerimônia, em outros,
possivelmente não, já que muitos dos alienados encarcerados na cadeia pública da capital nem
registro sobre os motivos do seu recolhimento mereceram: estavam presos e pronto; por ora,
isso bastava.
como um perigo social iminente, vai alicerçar-se em outras bases, quando entram em cena o
de tamanho projeto, o Estado lança mão da ciência, pela utilização tanto das disciplinas
121
quanto de outras tecnologias de poder, não mais voltada apenas para o indivíduo ou para o
pela ação humana —, endemias, sexualidade e raça são os temas dos quais a nova tecnologia
Mais do que uma simples dicotomia entre normal e anormal, a loucura é aquilo que
subverte a ordem, a regulamentação que o Estado, por meio das tecnologias de poder em uso,
ver, a loucura sai dos campos da desrazão e é classificada, codificada e aprisionada. Não
faltará quem a queira ter como seu domínio, para fazer dela o seu objeto. Assim, um novo
campo de saber é constituído para lidar com isso que, dizem, escapa à compreensão, como os
demais conjuntos de coisas imediatamente explicáveis. E se uma ciência é, com esse fim,
inventada — a psiquiatria —, seu objeto, a loucura, para e por ela é reinventada. Engana-se,
entretanto, quem pensa que esta invenção tenha significado o fim do aprisionamento dos
inauguração do Asilo dos Alienados — que se deu pouco mais de vinte anos depois da
primeira tentativa, em 1915, de se criar um lugar especialmente destinado aos loucos —, nem
na atualidade.
lista só faz aumentar, e temos, ao longo do século XX e início do século XXI, a invenção de
novos endereços da loucura, que não é mais loucura e, sim, doença mental, como também,
tryptanol, rohypnol e todas as rimas possíveis, existentes e que ainda virão a existir. Triste...
tudo muito triste, mas havia aqueles que escaparam e ainda há quem escape, na atualidade,
122
que não se deixa nem se deixou submeter, pelo menos até ser, de alguma nova maneira,
capturado...
Um homem nu rodopia, gira, salta, abaixa, levanta, corre, ri, até gargalha.
inesperado... Parece evocar alegria e liberdade... Parece até uma festa... Seu riso é pura festa...
de 2004, informa tratar-se de um insano que ziguezagueou nu por entre carros, em uma das
contemporâneos enaltecem as ações do policial que conduz o homem ao interior do carro, sem
saber para onde levá-lo. Nesse caso, talvez o louco, problema do início do século XXI nos
centros urbanos, ainda mantenha alguma proximidade com o louco do final do século XIX e
início do XX, afinal eis ainda a polícia se ocupando deles, mas a proximidade pára aí. Desde
perspectiva que podemos pensar nas grandes mudanças que se vêm operando desde então. No
belíssimo texto Um Desejo de Asas, Peter Pál Pelbart fala de anjos, da infelicidade dos anjos
de Win Wenders e do devir anjo, mas fala também da grande idéia elaborada por Félix
Guatarri, que propõe que a heterogeneidade precisa ser construída e, para se fazer isso, nas
palavras do próprio Pelbart, significa que não basta “reconhecer o direito às diferenças
identitárias, com essa tolerância neoliberal tão em voga, mas caberia intensificar as
diferenciações, incitá-las, criá-las, produzi-las”, e prossegue afirmando ser essa umas das
123
coisas mais fascinantes e difíceis de se fazer no trabalho com os psicóticos (e, penso eu, que o
mesmo fascínio e dificuldade estão inscritos também no nosso olhar em relação aos
época, foi anunciada pela imprensa local a extinção dos leitos credenciados pelo Sistema
descredenciamento, e comentou algo assim: “Olhe que tristeza ver isso tudo vazio”.
Não dá para ficar indiferente a episódios dessa natureza. Foi ainda Pelbart que, num
encontro sobre doença mental292, alertou que a desospitalização dos doentes mentais não
garantia o fim dos manicômios e mais, que era, e ainda é, necessário desmontar os
manicômios mentais. Grande desafio proposto por Pelbart, este de derrubar certezas e
desnaturalizar algo que está cristalizado. E foi estimulada por esse desafio que decidi estudar
291
PELBART, Peter Pál. Um desejo de asas. In: A nau do tempo rei. 7 Ensaios sobre o Tempo da Loucura. Rio
de Janeiro: Imago, 1993. p. 23.
292
PELBART, Peter Pál. Manicômio mental – a outra face da clausura. Texto apresentado no encontro em São
Paulo, em 18/05/1989, e organizado pelo Plenário de Trabalhadores em Saúde Mental, em comemoração ao Dia
da Luta Antimanicomial. In: Saúde e loucura 2. Direção de Antonio Lancetti. Hucitec: São Paulo, 1990.
124
a problemática da loucura em face da questão urbana, afinal toda cidade tem os seus outros,
os seus doidos, que, quando soltos pelas ruas, servem de chacota para as crianças e também
são usados pelos adultos para amedrontar a meninada em tom ameaçador: Lá vem o doido!
Além do mais, a temática da loucura levou muito tempo para que recebesse
haviam enveredado por este tema das mais diversas formas e isto explica as razões pelas quais
eu tenha me aproximado tanto de obras literárias e tenha feito delas o meu local de visitação
constante.
Assim, este trabalho vem com a “ambição” de tentar demonstrar que todo
estranhamento do nosso olhar em relação ao fim dos manicômios — a Rádio Tantã de Santos,
aos grupos teatrais como o Ueinzz do pessoal de A Casa de São Paulo e coordenado por Peter
Pál Pelbart, as residências terapêuticas em Cuiabá (com grandes inscrições sobre os seus
moradores pintadas em seus muros) e tantos outros — é um estranhamento que foi construído
histórica e culturalmente. O recorte temporal (1890–1928), por sua vez, deu-se igualmente
porque também (aqui imitando Pechman e sua posição com relação aos urbanistas) não tenho
Titãs - O Pulso293
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