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A MORTE COMO FACTOR BIOPOLITICO EM MICHEL FOUCAULT

Leandro Siviero Martins


Prof. Marcos Alexandre Gomes Nalli (Orientador)

Segundo o conceito formulado pelo filósofo francês Michel


Foucault, Biopolitica é o cálculo que o poder faz sobre a vida. Vida, que se
insere como objeto de poder, vida que passa pelo cálculo estratégico que
se estabelece afim de que se discipline, preserve e potencialize a própria
vida humana. Todavia, há algo ao qual invariavelmente toda vida se
direciona, a saber, a morte. A inclusão da vida humana nas estratégias
de poder remete à possibilidade de pensar, pois, qual o papel que a morte
assume quanto se pensa em um gerenciamento estratégico que visa não
só à disciplinarização da vida, como também sua preservação, sua
potencialização e majoração. A morte encontra na idéia de gerenciamento
estratégico da vida uma face eminentemente importante no contexto da
modernidade. Cabe adentrar nessa fenda aberta, perscrutar a
normatividade presente na idéia de preservar e majorar a vida, e estreitar
sua relação com a morte e seu funcionamento enquanto relacionada a
uma estratégia de poder.

Qual a relação que se estabelece entre a vida e morte nos dias


de hoje e qual o caminho que esta relação percorreu para que se
configurasse de tal modo que nós, ocidentais, tivéssemos uma
“colonização” da morte tal, que esta seja aquilo que nós a todo custo
queremos negar e evitar?

É necessário entender de que maneira a vida se tornou objeto de


poder no estado moderno, o caminho traçado por Foucault traz por inicio
a teoria clássica da soberania, cujo um dos primordiais atributos era o

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direito de vida e morte, delegado ao sobrano de um povo. Este detinha
em suas mãos o direito de vida e morte, mas, em que medida poderia o
soberano exercer poder sobre esses termos? Nas palavras de Foucault
(1999, p. 128): “O soberano só exerce, no caso, seu direito sobre a vida,
exercendo seu direito de matar ou contendo-o; só marca seu poder sobre
a vida pela morte que tem condições de exigir.”

Assim, neste contexto, a morte é sempre o limite do poder, é


neste limite que o poder do soberano se exerce. Todavia, no estado de
soberania, o exercício do poder pelo soberano tem uma função, este
poder age como um fator de coação direcionado aos súditos.

Para entender a função da morte, faz-se necessário entender


como ela era praticada pelo soberano. A morte praticada através do
suplício, era um espetáculo em praça pública mostrado aos súditos a fim
de funcionar como elemento de coação, como ameaça. Ela geralmente
falha em duas direções, ou é rápida demais, falhando ao ver a inutilidade
do suplício e utilidade enquanto mera execução, ou o suplício é lento
demais, e pode ser entendido como pura punição. Ou seja: ou não se
pune como se deve, ou se exagera na punição. O fato é que o poder do
soberano de agir sobre a vida dos seus súditos contendo-a, ou melhor,
tirando-a passará por transformações, sobretudo, no tangente ao
estabelecimento do poder do soberano e a maneira que ele era exercido.

“Essa transformação, é claro, não se deu de


repente. Pode-se segui-la na teoria do direito
(mas aí serei extremamente rápido). Vocês já
vêem, nos juristas do século XVII e, sobretudo
do século XVIII, formulada essa questão a
propósito do direito de vida e de morte.
Quando os juristas dizem: quando se contrata,
no plano do contrato social, ou seja, quando
os indivíduos se reúnem para constituir um
soberano, para delegar a um soberano um
poder absoluto sobre eles, por que o fazem?

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Eles o fazem porque estão premidos pelo
perigo ou pela necessidade, Eles o fazem, por
conseguinte, para proteger a vida. É para
poder viver que constituem um soberano...”
(FOUCAULT, 2002, p. 287).

Assim, o poder do soberano de reivindicar a vida de seus súditos


vai de encontro ao motivo que o instituiu enquanto tal, ou seja, a
preservação da vida. Ponto a salientar, é o fato de que a preservação da
vida é colocada em destaque quando se contrata em prol um soberano,
contudo este era omisso a este fato, para o soberano, o cuidado com a
vida dos súditos não influenciava em nada o seu poder, logo não havia
motivos para se preocupar com a qualidade da vida daqueles sob seu
poder.

Desdobramentos profundos nas estratégias do poder deslocarão


o foco de seu exercício, da morte exercida pelo soberano à vida. Em forma
de reclame, aqueles que antes coagidos pela morte através do suplício,
agora se apresentam pelo direito de preservar a vida e desenvolvê-la.

“Ora, a partir da época clássica, o Ocidente


conheceu uma transformação muito profunda
desses mecanismos de poder. O “confisco”
tendeu a não ser mais sua principal forma
principal, mas somente uma peça, entre
outras com funções de incitação, de reforço,
de controle, de vigilância, de majoração e de
organização das forças que lhe são
submetidas: um poder destinado a produzir
forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais
do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las.”
(FOUCAULT, 1999, p. 128).

A vida que reclama seu direito de preservação, e que se eleva


enquanto foco do poder cria uma demanda de instrumentos para torná-la
aquilo que ela almeja ser. Se a vida busca seu exercício pleno, assim
como um rio flui, é necessário algo que discipline, regre, assim como um

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rio tem suas margens, a vida, os indivíduos precisam de normas tais para
disciplinarização desse ímpeto potencializador que o poder traz às relações
com a vida.

Ao passo que o poder se debruça sobre a vida, ele se debruça por


discipliná-la, o poder não busca reprimir a vida, não busca dominá-la, o
poder quando foca a vida não é poder repressivo, mas é poder de
controle, vigilância, adestramento, treinamento. Assim, o que será, pois
objeto desta disciplinarização é nosso corpo, ele será objeto desta
disciplina aplicada aos indivíduos. Teremos a surgimento de uma série de
mecanismos e instituições disciplinares, reguladoras, normalizadoras,
dentre estes podemos citar os hospitais, manicômios, prisões,
mecanismos mais amplos, de produção fabril, educação, estes formam um
escopo de ação sobre os corpos dos indivíduos. É o que Foucault chama
de sociedade disciplinar, este conjunto de mecanismos que visam um agir
disciplinar, a saber, ela possui alguns fatores fundamentais sob os quais
estamos inseridos neste adestramento vigente.

Tempo: este nos condiciona a disciplina enquanto indivíduos,


enquanto corpos disciplinarizados pelo tempo, por exemplo, calculamos
diariamente nosso tempo, somos pontuais com nosso trabalho, levamos
em conta nosso deslocamento no trânsito, os indivíduos enquanto corpos
sofrem este influência do tempo.

Espaço: Há espaços designados para realização das atividades


sejam elas de trabalho, ensino, lazer, entre outras. No caso do ensino, por
exemplo, para se ter uma idéia de que maneira essa disciplinarização
atua, o aumento da demanda por educação levou a criação de espaços
escolares, salas de aula, foi necessário pensar estrategicamente o
acondicionamento do maior número possível de alunos, mas número

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suficiente para manter a ordem e disciplina. Percebe-se que há uma série
de saberes necessários aplicados ao poder disciplinar.
Ação: Advém do cumprimento dos fatores anteriores. As ações
passam pelo crivo da disciplinarização, da normatização da vida. O
individuo devidamente disciplinado produz ações disciplinadas, ações
dentro das normas.

Tudo aquilo que não facilite este processo deve ser extirpado. É a
sociedade da norma, e devemos evitar transgressões à norma. O motivo
disto é que se agora, o Estado é que tem o papel de gerir a vida de
maneira estratégica de modo a preservá-la. Sendo assim, aquilo que
transgride a norma que gerencia a vida acarreta um ônus ao Estado que
deve ser evitado.

A disciplina fabrica indivíduos, os molda, normaliza. As


estratégias de poder sobre a vida se encarregam do funcionamento desta
sociedade disciplinar que se vale de mecanismos do Estado, instituições
normalizadoras de adestramento dos indivíduos, escola, hospitais, polícia;
mas não só isso, possui instituições para aqueles que não foram
devidamente disciplinados e adestrados, como as prisões. Ao contrário do
que se pode pressupor, as prisões não possuem uma função punitiva, mas
meramente disciplinar. Um indivíduo que transgrediu a norma é porque
não foi devidamente disciplinado. Todos estes mecanismos visam à devida
preservação e potencialização da vida.

“Eram todos aqueles procedimentos pelos


quais se assegurava a distribuição espacial dos
corpos individuais (sua separação, seu
alinhamento, sua colocação em série e em
vigilância) e a organização, em torno desses
corpos individuais, de todo um campo de
visibilidade. Eram também as técnicas pelas
quais se incumbiam desses corpos, tentavam
aumentar-lhes a força útil através do
exercício, de treinamento, etc. Eram

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igualmente técnicas de racionalização e de
economia estrita de um poder que devia se
exercer, de maneira menos onerosa possível,
mediante todo um sistema de vigilância, de
hierarquias, de inspeções, de escriturações, de
relatórios...” (FOUCAULT, 2002, p. 288).

O que Foucault deixa claro, é que esta disciplina é aplicada sobre


o corpo, como já dito anteriormente, todavia, não se faz difícil perceber,
que quando o Estado se encarrega de cuidar da preservação da vida, ele o
faz pensando num nível populacional. O fato disto, é que o Estado
percebeu uma potencialidade na vida que é capaz de incrementar seu
próprio poder. A qualidade de vida de sua população é uma mola
propulsora do poder, e de suas relações. As relações de poder que
atravessam os indivíduos, ou como diz Foucault, as micro-relações de
poder, que estabelecemos em nosso cotidiano são reforçadas,
maximizadas de acordo com a qualidade da vida daqueles que as
exercem. Este talvez seja o ponto que o poder soberano deixou de fora
quando pensou em exercer seu poder sobre os indivíduos, mas que o
Estado moderno não deixou escapar de suas vistas.

“... A nova tecnologia que se instala se dirige à


multiplicidade dos homens, não na medida em
que eles se resumem em corpos, mas na
medida em que ela forma, ao contrário, uma
massa global, afetada por processos de
conjunto que são próprios da vida, que são
processos como o nascimento, a morte, a
produção, a doença, etc. Logo, depois de uma
primeira tomada de poder sobre o corpo que
se fez consoante o modo da individualização,
temos uma segunda tomada de poder que, por
sua vez, não é individualizante mas que é
massificante...” (FOUCAULT, 2002, p. 289).

As variáveis dessa massa populacional, e aí podemos citar outras


além das ditas, como migrações, velhice, epidemias, afetam diretamente
a potência dos dispositivos de poder. Com isso, a vida definitivamente

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rompe sua esfera particular e se insere num contexto público, ou melhor,
político, de forma produtiva, ou seja, positiva. É o gerenciamento político
da vida que se instaura, é a biopolitica.

Essa biopolítica se debruça em um primeiro momento,


justamente aos discursos, às produções de saberes realizado através dos
mecanismos já citados anteriormente, como hospitais, prisões, asilos.
Essas instituições, ao buscar seu aperfeiçoamento enquanto mecanismo
disciplinar e normalizador, se empenharam em uma produção de saberes,
discursos, dados sobre uma massa populacional, que foram úteis a essa
biopolítica que teve como seus primeiros alvos de controle, variáveis mais
diretamente ligadas à vida, como a natalidade, mortalidade, longevidade.
A biopolítica, no entanto, não vem em substituição a anátomo-política, a
política aplicada ao corpo e sua disciplinarização, mas em complemento,
pode-se dizer que uma assimila a outra sem excluí-la ou alterá-la. A
biopolítica surge sem exigir um estatuto independente, exclusivo ou em
sucessão a anátomo-politica, antes disso, ambas funcionam em conjunto
e buscam trabalhar os mesmos problemas em esferas complementares.

“Neste conjunto de problemas, o “corpo” –


corpo dos indivíduos e corpo das populações –
surge como portador de novas variáveis: não
mais simplesmente raros ou numerosos,
submissos ou renitentes, ricos ou pobres,
validos ou inválidos, vigorosos ou fracos e sim
mais ou menos utilizáveis, mais ou menos
suscetíveis de investimentos rentáveis, tendo
maior ou menor chance de sobrevivência, de
morte ou de doença, sendo mais ou menos
capazes de aprendizagem eficaz.” (FOUCAULT,
2007, p. 198.)

É visível que a qualidade da vida da população contribui para um


pleno exercício de relações de poder, para isso existem tantos
mecanismos de medição, detalhamento, estatística acerca da população,

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ou se preferirmos apontar um desses elementos de medição comum ao
nosso cotidiano, poderíamos citar, por exemplo, o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) de uma população, medido pela
escolaridade, condições de saúde, higiene, rentabilidade per capita, entre
outros fatores.

Os mecanismos biopolíticos têm peculiaridades se comparados


aos mecanismos disciplinares: aqueles visam tratar daquilo que afeta e
que se aparece no nível global, no nível da massa, intervir quando
necessário, mas antes disso, identificar acontecimentos aleatórios que
surgem nesta massificação dos indivíduos, buscar o estabelecimento de
providências que evitem resultados negativos destes fatos aleatórios. É
preciso garantir o funcionamento deste biopoder através de um equilíbrio,
mas um equilíbrio dotado de uma adaptabilidade aos fatos aleatórios.

É possível perceber que com o desenvolvimento desta relação


entre poder e vida, uma das variáveis incluídas no escopo da biopolítica, a
saber, a morte, tem tido um caráter de fonte de dados, mas ao contrário
do que era feito anteriormente, a morte agora é escondida, é ocultada, ao
passo que se alteram as estratégias do poder. Desde o soberano que o
exercia pelo poder de confisco da vida, ou seja, causar a morte, até ao
biopoder, que visa à maximização da vida e sua potencialidade enquanto
unidade produtiva.

“Ora, eu creio que a razão por que, de fato, a


morte tornou-se assim essa coisa que se
esconde não está numa espécie de
deslocamento da angústia ou modificação dos
mecanismos repressivos. Está numa
transformação das tecnologias de poder.”
(FOUCAULT, 2002, p. 295.)

O poder agora é muito mais um poder que gerencia a vida


estrategicamente a fim de levá-la ao seu ápice e consequentemente ao

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ápice do poder. Esta intervenção na vida quer ainda esticá-la,
encompridá-la, além de qualificá-la quanto possível, quer evitar que ela se
encerre. Podemos dizer que somos conduzidos por uma indústria da
medicina, por uma indústria da alimentação, por uma indústria da
estética. Não na condição de indivíduos alienados, mas na condição de
indivíduos que buscam a todo custo evitar a morte.

A relação que a morte estabelece nas estratégias deste biopoder


vai além de uma mera variável a ser considerada estatisticamente entre
outras. Se o poder se aplica a vida, o mesmo não pode ser dito quando
nos perguntamos sobre a morte. Em questão ao poder, a morte não está
dentro das esferas em que o primeiro é capaz de estabelecer relações.

“Ela está do lado de fora, em relação ao


poder: é o que cai fora de seu domínio, e
sobre o que o poder só terá domínio de modo
geral, global, estatístico. Isso sobre o que o
poder tem domínio não é a morte, é a
mortalidade. E, nessa medida, é normal que a
morte, agora, passe para o âmbito do privado
e do que há de mais privado.” (FOUCAULT,
2002, p. 296).

Contudo, se este biopoder não consegue estender suas


ramificações sobre a morte, e se ela é o limite da extensão de sua teia,
cabe ver que a morte ainda assim pode ser considerada um fator
biopolítico, um agente. Ainda que o poder não se estenda sobre a morte,
esta nos aparece como um momento de terror, de medo que a todo custo
queremos evitar. Nós recorremos aos nossos médicos, a tratamentos
estéticos, consultamos nossos nutricionistas sobre o que devemos ou não
comer, nós evitamos nossa morte, encompridamos a nossa vida.

As relações estratégicas do poder nos possibilitam o exercício de


nossa liberdade seja ela pela norma, ou contra ela, somos sujeito-objeto

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das relações de poder. Nessa relação nos construímos. Neste âmbito,
creio, a morte deve ser entendida como um fator da biopolítica ainda que
o poder não se exerça sobre ela. Nós ainda nos sentimos ameaçados pela
sombra da morte, não mais pelas mãos do soberano, mas, além da
fronteira das relações de poder nas quais estamos inseridos. Enquanto
estamos inseridos nelas, nos colocamos enquanto objetos do poder, mas
nos colocamos também enquanto sujeitos. Quando o poder não se exerce
mais sobre nós, nós não exercemos mais poder, a morte já nos chegou,
portanto, evitemo-la.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade, São Paulo; Martins Fontes,


2002.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade – A Vontade de Saber, Rio de


Janeiro; Graal, 1999

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder, São Paulo; Graal, 2007

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