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de

mediação em museus: curadorias, exposições e ação educativa


Cadernos de diretrizes museológicas 2 : mediação em museus:
curadorias, exposições, ação educativa / Letícia Julião,
coordenadora ; José Neves Bittencourt, organizador. ---- Belo
Horizonte : Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais,
Superintendência de Museus, 2008.
152 p. : il.

Inclui bibliografia.
Acompanhado pelo DVD : mediação em museus: curadorias,
exposições, ação educativa.
ISBN : 978-85-99528-26-6

1. Museus. 2. Museologia. 3. Museus - Exposições. 4. Museus -


Acervo. 5. Museus - Pesquisa. 6. Exposições - Curadoria. I. Julião,
Letícia. II. Bittencourt, José Neves.

CDD 069
secretaria de estado de cultura de minas gerais
superintendência de museus

de
mediação em museus: curadorias, exposições e ação educativa

belo horizonte
2008
governador do estado de minas gerais

Aécio Neves

secretário de estado da cultura

Paulo Eduardo Rocha Brant

secretária adjunta de cultura

Sylvana Pessoa

superintendente de museus

Letícia Julião

diretoria de desenvolvimento de linguagens museológicas

Ana Maria Azeredo Furquim Werneck

diretoria de desenvolvimento de ações museológicas

Silvana Cançado Trindade

diretoria de gestão de acervos museológicos

Maria Inez Cândido

assessoria da superintendência de museus

Marcos Rezende

diretor do museu casa guimarães rosa

Ronaldo Alves de Oliveira

Caderno de Diretrizes Museológicas 2

Mediação em Museus: Curadoria, Exposições, Ação Educativa

edição:Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais|Superintendência de Museus|organização:José Neves


Bittencourt|revisão:Meire Bernardes|catalogação na fonte:Maria Célia Pessoa Ayres|projeto gráfico:Frederico

Sá Motta|produção Executiva:Gabriela Gontijo|gestão Financeira:Via Social

Vídeo
Mediação em Museus: Curadoria, Exposições, Ação Educativa

concepção:Letícia Julião|Silvana Cançado Trindade|Maria Inêz Cândido|Ana Maria Werneck|Marcos Rezende|José


Neves Bittencourt|direção:Marcos Rezende|Léo Alvim|edição:LéoAlvim|Marcos Rezende|produção executiva:Gabriela
Gontijo|gestão financeira:Via Social
V
VII
A Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais apresenta o Caderno de Diretrizes Museológi-
cas 2. Trata-se de projeto que se insere na linha de divulgação da Superintendência de Museus,
cujo primeiro volume – Caderno de Diretrizes Museológicas 1 – teve e ainda tem ressonância
entre a comunidade de estudiosos, profissionais e apreciadores de museus em todo Estado e,
também, em âmbito nacional.

O lançamento do número dois da série dá continuidade a ações que lograram êxito em anos
anteriores e que, por isso, não devem, de forma alguma, ser interrompidas ou paralisadas. De
outra parte, estão consubstanciadas as diretrizes de interiorização e descentralização ditadas
pelo Governo do Estado, as quais imprimem um traço de modernidade e arrojo à Administração
Pública.

Neste volume, a Superintendência de Museus associou-se a profissionais experientes e renoma-


dos, que desenvolvem trabalhos específicos da área. Em parceira com a Associação dos Amigos
do Museu Casa Guimarães Rosa, o Caderno 2 foi patrocinado pela Lei Estadual de Incentivo à

VIII
Cultura, com recursos da Companhia Energética de Minas Gerais – CEMIG, empresa que apóia
importantes projetos culturais, numa demonstração de cuidado e sensibilidade com o que é de
propriedade pública.

O Caderno 2 vem, portanto, ratificar o compromisso da Secretaria de Estado de Cultura em de-


senvolver projetos e ações de impacto, que gerem bons frutos, e cuja repercussão se estenda por
todos os municípios mineiros. Reafirma, por outro lado, o propósito de trabalhar em estreito e
constante diálogo com a comunidade museológica de Minas Gerais, com vista a implementar a
política de preservação e a promoção do patrimônio cultural do Estado.

Paulo Brant

Secretário de Estado de Cultura


Uma empresa que tem como princípio trabalhar em sintonia e se colocar a serviço da sociedade
da qual faz parte, deve estar atenta às necessidades do mundo contemporâneo.É esse o caso da
CEMIG – Companhia Energética de Minas Gerais.

É verdade que a expansão contínua, o bom atendimento aos cidadãos e a geração de riqueza e
empregos fazem parte dos objetivos da instituição. Foi seguindo esse caminho que a empresa
firmou sua imagem de uma das maiores concessionárias de energia elétrica do Brasil. Não se
têm dúvidas de que esses objetivos continuam - e continuarão - a ser perseguidos, inspirados
nos planos traçados há mais de meio século atrás pelo então governador Juscelino Kubitschek
de Oliveira.

Ao longo de sua história, a CEMIG tem acumulado outras funções e dá provas de estar em sin-
tonia com a modernidade.Voltando-se para projetos que se somam à tradicional prestação dos
serviços finalísticos da empresa, coloca-se como parceira nas ações de preservação e promoção
do Patrimônio Cultural mineiro.
VIIII

No ano em que comemora 56 anos de criação, a CEMIG apresenta o Caderno de Diretrizes Mu-
seológicas 2 e reposiciona-se, ao lado da Secretaria de Estado de Cultura / Superintendência de
Museus, com o propósito de contribuir para o estreitamento das relações e a profícua troca de
conhecimentos com a comunidade museológica de Minas Gerais.

CEMIG
Uma contribuição ao debate museológico

Curadoria: desafios contemporâneos é o tema escolhido para ser tratado no Caderno de Dire-
trizes Museológicas 2. As razões dessa escolha são basicamente de duas ordens. Primeiro por
ser assunto recorrente no mundo dos museus, que se soma aos do Caderno de Diretrizes 1 - ex-
periência bem sucedida da Superintendência de Museus/SUM - na sua missão de difundir con-
hecimentos e práticas no campo dos museus. Em segundo lugar e não menos importante, por
ser assunto relevante que ainda não mereceu uma publicação específica, o que confere aspecto
inédito à iniciativa.

Em que pesem o sentido de continuidade e de reafirmação dos propósitos institucionais da SUM,


o Caderno de Diretrizes Museológicas 2 apresenta um formato que difere do da publicação
predecessora. É dividido em duas partes, reservando-se a primeira para uma abordagem emi-
nentemente teórica e conceitual sobre a curadoria em museus. Na segunda, o tema é explorado
sobrediferentespossibilidades-curadoriadeacervosmuseológicos;deacervosdocumentais;de
processos educativos; de exposições científicas, históricas, de arte ou arqueológicas - que são
alinhados pelo viés da prática de profissionais experientes.

IX
A reflexão incitada pelo tema e os amplos conteúdos de conhecimentos tratados no Caderno
ganham uma nova linguagem e traduzem-se no CD que acompanha a publicação. Em imagem e
som, nele são reunidas entrevistas com curadores competentes e depoimentos de profissionais
que se dedicam ao trabalho de aprimorar os museus da SUM e de algumas equipamentos muse-
ológicas de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro.

Espera-se que o Caderno de Diretrizes Museológicas 2 possa, efetivamente, cumprir o seu papel
deatenderàsdemandasdacomunidademuseológicaemquestõessobrecuradoriasemmuseus
e contribuir para que, fortalecidos, os museus mineiros estejam qualificados para promover seus
acervos e conquistar novos públicos.

Letícia Julião

Superintendente de Museus
introdução
mediação, curadoria, museu

artigo
Uma introdução em torno de

artigo 6 artigo 9
definições, intenções e atores
José Neves Bittencourt 00
monografias tridimensionais:
a experiência curatorial nas Os caminhos do enquadramento,
Os caminhos do enquadramento,
exposições de média e curta tratamento e extroversão da

artigo 1
tratamento e extroversão da
do museu histórico abílio barretoherança patrimonial. - pág.95 herança patrimonial. - pág.143

3
Thaïs Velloso Cougo Pimentel
Thiago Carlos Costa

de objetos a palavras
Reflexões sobre curadoria de
exposições em Museus de História
artigo 4 artigo 7 artigo 10
Os caminhos do enquadramento, Os caminhos do enquadramento, Os caminhos do enquadramento,
Aline Montenegro Magalhães tratamento e extroversão da
tratamento e extroversão da tratamento e extroversão da
Francisco Régis Lopes Ramos herança patrimonial. - pág.113 herança patrimonial. - pág.09
herança patrimonial. - pág.61

artigo 2 artigo 5 artigo 8 artigo 11


por uma translucidez crítica
Pensando a curadoria Os caminhos do enquadramento, Os caminhos do enquadramento, Os caminhos do enquadramento,
de exposições de arte tratamento e extroversão da tratamento e extroversão da tratamento e extroversão da
herança patrimonial. - pág.79 herança patrimonial. - pág.135 herança patrimonial. - pág.09
Roberto Conduru
mediação, curadoria, museu

Uma introdução em torno de definições,


intenções e atores
José Neves Bittencourt
conceitos, definições

Este segundo “Caderno de Diretrizes Museológicas” tem uma temática complexa: “Mediação em museus”.
Como o leitor irá perceber, logo ao abrir a primeira parte, os textos giram em torno de uma questão, a da
curadoria. Esta, entretando, encontra-se, no título, colocada juntamente com “exposição” e “educação”.

É justo que o leitor se pergunte o motivo pelo qual foi feito assim. Poderíamos até dizer que a reflexão que,
esperamos, surja da leitura, começa com essa pergunta.

3 | Mediação, curadoria, museu. Uma introdução em torno de definições, intenções e atores


“Mediação”, segundo o “Dicionário da Academia das Ciências de Lisboa”, é o “ato ou efeito de mediar”1; ou,
de forma mais aprofundada,“ato de servir de intermediário entre pessoas, grupos, partidos, facções, países
etc., a fim de dirimir divergências ou disputas; arbitragem, conciliação, intervenção, intermédio”. A mediação
é, então, uma ação que se remete a sistemas de regulação instituídos para reduzir a dissonância, a incon-
gruência, a distorção. Esses sistemas, quando atuam no nível da aquisição de conhecimentos, costumam a ser
chamados pelos especialistas de“modelos de ordem”ou“modelos mediadores”2. Ou seja, a mediação busca,
formalmente,“estabelecer uma ordem“3. O mediador se coloca entre duas posições, de modo a esclarecê-las
uma em relação à outra.

Por outro lado, uma definição mais específica de “mediação” a coloca como “mediação cultural”, e a define
como“processos de diferente natureza cuja meta é promover a aproximação entre indivíduos e coletividades
e obras de cultura e arte”4. O autor dessa definição a remete à “ação cultural” e “agente cultural”.

Podemosdizerquenocruzamentodessasduasdefiniçõesde“mediação”,encontramosocurador.Esseagente
cultural faz com a exposição museal exatamente foi esclarecido: primeiro, ele a coloca entre o museu e suas
atividades, e os diversos públicos que podem procurar o museu; segundo, com esse ato, ele aproxima os públi-
cos da cultura. O que é dado como a função primordial dos museus.

O substantivo “curador“5, de acordo com o dicionário a que nos remetemos, tem sua raiz no latim cur, que
remete ao cuidado, ao zelo. O mesmo dicionário explica o significado do substantivo latino curátor “o que
cuida, o encarregado de zelar, comissário, tutor, rendeiro, caseiro”. Em todos os significados atribuídos à essa
palavra, está contido o sentido de “cuidar”, “tomar conta”.

1
PORTUGAL,AcademiadasCiênciasdeLisboa. DicionáriodaLínguaPortuguesaContemporânea.Lisboa:EditorialVerbo,2001.Verbete“Mediação”,
vol. 2, p. 2416.
2
Cf. SILVA, Benedito (coord.). Dicionário de Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Ed. da Fundação GetúlioVargas, 1982 (2v.).Verbete“Mediação”, vol. 1, p.
735.
3
Ibid.
4
TEIXEIRA COELHO. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: FAPESP/Iluminuras, 2ª ed., 1999. Verbete “Mediação cultural”, p. 248.
5
PORTUGAL, Academia das Ciências de Lisboa. Dicionário... Op. cit. Verbete “Curador”, vol. 1, p. 1046.
Estudar a etimologia das palavras – ou seja, a origem de um termo, na forma mais antiga conhecida, ou em
alguma etapa de sua evolução – nos ensina que o significado dessas unidades da língua escrita pode ir sendo
desdobrado, pode ganhar novos sentidos.“Curador”, a pessoa que exercita a atividade, por sua vez, resulta em
“curadoria”, a atividade do curador. A raiz latina do termo é a mesma que vimos acima. Entretanto, o signifi-
cado é mais estreito: “cargo ou função de pessoa que legalmente administra ou fiscaliza bens ou zela pelos
interessesdeincapacitadosoudedesaparecidosquenãotenhamrepresentantelegal”6.Todasasdefiniçõesde
“curadoria” contidas em dicionários de nossa língua apresentam o mesmo significado.
4 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Mas se examinarmos um pouco mais os verbetes de dicionários brasileiros e portugueses, aprenderemos que,
em certas regiões do Brasil,“curador”é um indivíduo que trata das pessoas mordidas por cobras venenosas,
e que, dada essa estranha arte, é respeitado por esses animais. A nós pareceu, dentre todos os significados
encontrados, o mais interessante. Afinal, uma pessoa que se torna tão hábil em uma arte qualquer deveria ser
sempre merecedora do respeito daqueles que com tal arte tomam contato.

O que nos leva a um terceiro significado que, embora não diretamente associado à curadoria, nos interessa
diretamente: no conjunto de acepções reunidas para a entrada“curar”, aparece, como brasileirismo,“preparar
a madeira, de modo a torná-la melhor para o uso”7. Algumas outras acepções trazem o sentido de“preparar”,
e visto o radical latino comum a essas podemos dizer que esse sentido tem certa importância da composição
dos desdobramentos de“curador”e“curadoria”:“curador”também poderia ser aquele que prepara alguma
coisa para ser usada.

Por outro lado, existe um sentido para os substantivos “curador” e “curadoria” que os léxicos portugueses e
brasileiros não trazem. É aquele sentido que identifica “curadoria” com o processo de organização e mon-
tagem da exposição pública de um conjunto de obras de um artista ou conjunto de artistas8. É interessante
que o significado desse conceito, conforme desenvolve o autor, remete-se à arte, e a nenhum outro ramo de
atividade. Temos que discordar: exposições públicas não são apenas aquelas que expõem arte ou“cultura”–
conceito este de definição complexa mas que, certamente, não se remete apenas à arte. A não ser que o autor
estivesse considerando “exposição” em si, como uma arte. Não parece ser o caso.

Um dicionário antigo nos dá uma definição de “exposição” que parece ser bem objetiva: “Uma mostra de tra-
balhosdearte,ciênciaouhistóriaemrecintoapropriado.Podeserpermanente(coleçõesdemuseus),temporária
(por tempo determinado), itinerante (em várias localidades), retrospectiva, comemorativa”9. Nota-se que é um
texto antigo: hoje em dia as exposições são de“longa duração”,“de“média duração”ou de“curta duração”, mas
continua valendo entender-se um evento desse tipo como uma“mostra de trabalhos”instalada em um recinto

6
Id., verbete “Curadoria”, vol. 1, p. 1046.
7
Id., verbete “Curar”, vol. 1, p. 1047.
8
Cf. TEIXEIRA COELHO. Dicionário crítico... Op. cit. Verbete “Curadoria”, p. 141.
9
REAL, Regina M. Dicionário de Belas-Artes: (Termos técnicos e matérias afins). Rio de Janeiro: Ed. Fundo de Cultura, 1962.Verbete“Exposição”, vol. 1,
p. 227.
apropriado. A questão é que, do ponto de vista museal, a definição de“recinto apropriado”se ampliou, e pode
estar delimitado pela musealização, ou seja, pela sistematização das propriedades comunicativas que têm as
construções humanas, sejam elas materiais ou imateriais: ecomuseus e museus “de região” ou “de território”
estendemsuaabrangênciaatéextensõesbemmaioresdoqueummeroespaçodelimitadoporparedes,muros
ou cercas.

Outra observação que parece ser interessante diz que“[as] exposições tem se tornado meio através do qual a
arte se torna conhecida. Não somente o número e alcance das exposições tem crescido de forma notável nos

5 | Mediação, curadoria, museu. Uma introdução em torno de definições, intenções e atores


anos recentes, como museus e galerias de arte tais como aTate, em Londres, e oWhitney [Museum of American
Art] em Nova Iorque agora apresentam suas coleções numa série de exposições de curta e média duração.”10

Embora a temática do livro a que nos remetemos sejam as exposições de arte, vale frisar dois pontos no curto
recorte acima: primeiro, que exposições são“o meio”(no sentido de“mídia”, ou seja,“elemento de produção
e suporte de dados e informações”) de fazer“a arte”se difundir. Diante dessa constatação – bastante precisa,
diga-se de passagem – o passo seguinte é considerar que exposições são um dos meios de se difundir todo e
qualquer fazer humano, seja ele da ordem da arte, das ciências, da tecnologia, da história.

Um leitor atento poderia, aqui, levantar a questão de que não apenas exposições são mídia para a divulga-
ção de fazeres humanos. Também poderia esse leitor apontar que outras mídias também se colocam como
mediação entre posições. Seriam ambas observações corretas: livros, jornais, cinema, a Internet, apenas para
citar alguns exemplos, também fazem as duas coisas, talvez com maior alcance que as exposições museais.
Entretanto, a exposição tem uma característica que não pode ser encontrada nessas outras mídias: frisar a
inter-relaçãoquearticulaasproduçõeshumanas.Épossívelveressasproduçõescomoentidadesrelacionadas
umas às outras, produtos de fazer e movimento históricos. Nas outras mídias, essa percepção, quando está
presente, nem sempre é imediata.

Não é que uma exposição museal sempre faça isso, até porque“ver”nem sempre é“conhecer”. A capacidade
de uma exposição em fazer o visitante entender seu conteúdo não é automática. O objeto musealizado ou em
sua vida comum, não possui propriedades intrínsecas que não sejam seus aspectos físico-químicos. Adiante
desses, tudo que dele se consegue extrair é sentido, é fazer significar alguma coisa. Deixemos bem claro: o ob-
jeto não fala. Quem fala, através dele, é o curador. Essa idéia, bem desenvolvida pelo teórico brasileiro Ulpiano
Meneses11, aponta, simultaneamente, a importância da exposição e da curadoria. E aponta para uma terceira
questão (e esta nos parece de grande importância): a curadoria exerce, no museu, um papel de mediação.

10
GREENBERG, Reesa; FERGUSON, BruceW.; NAIRNE, Sandy (eds.). Introduction. In: ___Thinking about Exhibitions. Oxon (Ingl.): Nova Iorque: Rou-
tledge, 1996. p. 2.
11
Para o aprofundamento da questão, cf. MENESES, Ulpiano T. B. de. Do teatro da memória ao laboratório da história: a exposição museológica e
o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista: História e Cultura Material (Nova série, vol. 2 - Jan./Dez. 1994). São Paulo: Museu Paulista da
USP, 1994; ___. O museu e o problema do conhecimento. In: IV Seminário sobre Museus-Casas: Pesquisa e Documentação. Anais... Rio de Janeiro:
Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002.
Amediaçãoexercidapelaexposiçãoapontaparaaimportânciadessamídiamastambémapontaosproblemas
nela contidos.“... trabalhar com as coisas, para por intermédio delas permitir entender muito mais do que elas
mesmas, demandaria domínio da linguagem das coisas e da linguagem museal. O historiador, o antropólogo,
o especialista em artes plásticas, etc., ao redigirem uma monografia, dispensam os documentos de que se
serviram e empregam apenas palavras. No museu, é com as mesmas coisas que o essencial (não a totalidade,
é claro) deve ser ´dito´. A linguagem, para tanto, não dispensa os auxílios de outra natureza – inclusive a
utilização de recursos virtuais – mas, para justificar a convocação do museu, é necessário que a linguagem
6 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

visual e espacial sejam prioritárias (no mínimo, de algum peso significativo).”12 Esse trecho relaciona alguns
dos aspectos mais problemáticos de se fazer exposições. Nas entrelinhas, pode-se pensar em outros. Fazer
mediação em museus é um desafio. A curadoria de exposições é um desafio.

No cruzamento desses dois desafios surge este novo volume da série Cadernos de Diretrizes Museológicas –
“Mediação em museus: curadorias, exposições e ação educativa”.

as intenções de um projeto

Nunca é demais lembrar qual a razão de ter sido o conceito “diretrizes” aposto ao título da série e, de certa
forma, lhe determinando o sentido. O significado da palavra esclarece o motivo:“linha básica que determina
o traçado de uma estrada; esboço, em linhas gerais, de um plano; diretiva; norma de procedimento, conduta”.
As“diretrizes museológicas”são, pois, o conjunto de diretivas que se imagina que poderão ajudar a esboçar
um projeto museológico, ou como no primeiro significado, o traçado de uma estrada, a linha ao longo da qual
se chega a um lugar. Embora as“diretrizes”aqui apresentadas não o sejam para impor qualquer obrigatorie-
dade, a complexidade do fazer museal, na atualidade, coloca a formação e o aperfeiçoamento como parte das
tarefas de todos os profissionais envolvidos nesse fazer – talvez a única “diretriz” obrigatória.

A formação aponta a necessidade de esclarecimento e reflexão em torno dos temas da área seja qual ela for. A
questãodasexposiçõesmuseaisedacuradoriacomo,porexcelência,atividadesdemediaçãomuseológica,pre-
sentesemqualquermuseu,independentedetemática,tamanho,localização,levouaumapergunta:estariam
osprofissionaisdemuseusatentosparaessasquestões?Provavelmentesim,vistoquefazerecuidarexposições
(enfim,ossentidosmaiscorriqueirosde“curadoria”,comovimosantes)sãoproblemascotidianos,paraaqueles
profissionais. Mas contam eles com ferramentas adequadas de esclarecimento e reflexão?

Esta preocupação se mostra mais objetiva. A apresentação da questão implica em um método que permita ao
interessado aprofundar-se na temática segundo suas necessidades, que, certamente, ssão diversas, de lugar
para lugar, de museu para museu. Neste sentido, pareceu adequado abordar a curadoria por dois ângulos: o

MENESES, Ulpiano T. B. de. O museu e o problema... Op. cit. p. 36.


12
primeiro apontando museus, exposições e curadoria como questões relacionadas; o segundo procura des-
construir a instituição museal pela via de suas ações: exposições, tratamento técnico de acervos, atividades
educativas. Seria uma forma de mostrar o museu seguramente formado por um conjunto de atividades que se
solidarizam umas com as outras, e, como diz Ulpiano Meneses,“... as variadas possibilidades devem se fertilizar
umas às outras.”13

Esses dois pontos de vista resultaram nas duas seções em que o volume está dividido:“Curadoria como con-
ceito”e“Curadoria como mediação”. A curadoria é posta em relevo por ser um conceito diretamente ligado à

7 | Mediação, curadoria, museu. Uma introdução em torno de definições, intenções e atores


mediação, como vimos acima. Dessa forma, na primeira parte encontra-se um estudo teórico, que gravita em
torno da definição de curadoria; na segunda parte, a “desconstrução”de que falamos acima apresenta as di-
versas mediações que a curadoria pode estabelecer. No entanto, vale à pena advertir que tal divisão não traduz
umapropostaqueindiqueainviabilidadedofuncionamentodosinúmerospequenosmuseusquepovoamoter-
ritóriobrasileiro.Pelocontrário.Nessemomento,convémlembraraobservaçãodeumteóriconorte-americano:
“Apessoaencarregadadeumpequenomuseu,cumprindosimplesfunçõesadministrativasdeveriaserchamada
de curador, ao invés de diretor. Um museu de maiores proporções terá um curador em cada uma das maiores
divisões, tal como um curador de história, um curador de arte, e assim por diante. Uma vez que os curadores
são chefes de departamento, parece conveniente dar o mesmo título a outros chefes de departamento. Assim,
temos o curador de exposições, o curador de atividades educativas, curadores de televisão, etc.”14

as estruturas e os atores de uma obra

A primeira parte constrói o tema de modo a apresentá-lo como questão complexa, de múltiplas abordagens
possíveis. Os três artigos são reflexões densas, que se complementam em deixar clara a curadoria como uma
questão do campo dos museus. O objetivo comum é indicar os caminhos que têm sido percorridos e possibili-
dades que se apresentam, em direção à definição conceitual desse tema.

O primeiro artigo, de autoria de Cristina Bruno, abre-se estabelecendo que o conceito de curadoria, nas pa-
lavras da própria autora,“tem uma trajetória de difícil mapeamento”. Navegando por três perspectivas, uma
histórica, uma contemporânea e uma processual, Bruno procura ver como as três delineiam tanto o perfil
profissional do curador quanto e as práticas curatoriais desenvolvidas pelos museus, sempre atendo-se ao
contexto dos museus, de seus acervos e coleções, pois nesses contextos que se irão desenvolver as relações
curatoriais e seus efeitos. As reflexões de Bruno interagem com a reflexão desenvolvida por Nelson Sanjad e
Carlos Roberto Ferreira Brandão. Esses dois profissionais, de longa experiência em museus de ciência, intro-
duzem“alguns pontos para a reflexão sobre a comunicação museológica em relação com a política curatorial
dosmuseus”.SanjadeBrandãoconsideramqueumapolíticacuratorialdependedacompreensão,pelosprofis-

MENESES, Ulpiano T. B. de. O museu e o problema... Op. cit. p. 22.


13

BURCAW, G. Ellis. Introduction to museum work. Nashville (EUA): American Association for State and Local History, 2a ed. 1983. P. 39.
14
sionais do museu, do desenvolvimento do acervo, que contém as transformações pelas quais os museus pas-
saram no tempo. Os dois autores usam esse atalho para chegar à exposição, que consideram como discursos
dirigidos aos variados públicos por um grupo específico.

O objetivo que, de forma transparente, atravessa o texto, é“ressaltar a necessidade de estudos que tenham no
horizonte todo o processo curatorial, ou seja, que investiguem e avaliem como ocorre a produção de sentido
nas exposições”. O criterioso levantamento que os autores fazem do“estado da arte”da produção nacional em
8 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

torno da questão indica a importância da relação entre políticas curatoriais e as leituras feitas pelo público
em torno das exposições. Essa seria a forma de“aperfeiçoar o processo”, e é uma sugestão que aparecerá em
diversos pontos do livro. O terceiro artigo, de certa forma, sintetiza e estende as intenções dos dois anteriores.
Analisa o museu como um fenômeno, a partir de sua origem mítica. A autora éTereza Scheiner, teórica e profes-
soraconhecidanacionalmente.Estabeleceomuseucomoprocesso,eindica,comclareza,queessasinstituições
tem alcance muito mais abrangente que os processos curatoriais. A idéia principal veiculada pelo texto é que
“não é possível tratar dos processos curatoriais sem definir que idéia de museu lhes serve de fundamento.”
Segundoa autora, a universalidade dos museus está muito além da presença de acervos, excelência técnica ou
interesse dos públicos: está na sua essência como representação simbólica, e na capacidade, que é intrínseca
à instituição de mover-se e se transformar. Um dos pontos fundamentais desse terceiro artigo – que, inclusive,
determinou sua posição no livro – são as observações sobre as relações entre museu e Museologia,“disciplina
cujos fundamentos teóricos vinculam-se ao reconhecimento do caráter plural do Museu; à percepção de que
ele se dá em processo; e à análise dos processos de musealização, sobre os quais se instituem os processos
curatoriais.”

A segunda parte do livro reúne oito artigos, que, como foi dito mais acima, buscam a curadoria como parte
constitutiva do fazer museal. As observações contidas nos três artigos da primeira parte – que, note-se bem,
não é considerada uma introdução ou apresentação do tema – servem para orientar a leitura de cada um dos
textos que se seguem, mas não são indispensáveis a essa leitura. Como foi esclarecido antes, toda a estru-
tura da obra está plantada na constatação de que diferentes museus, ligados a diferentes contextos, geram
necessidades diferentes.“Os museus brasileiros estão em movimento. Por isso interessa compreende-los em
sua dinâmica social e interessa compreender o que se pode fazer com eles, apesar deles, contra eles e a partir
deles, no âmbito de uma política pública de cultura.”15 A curadoria e os processos curatoriais se colocam
nesseamplocontexto,noqualosmuseuspodemsergrandes,pequenos,ricos,pobres,bemconhecidos,pouco
conhecidos. E os profissionais de museus, igualmente sintonizados a esse movimento dos museus, terão ne-
cessidades igualmente diversas.

Nesse momento, cabe advertir os leitores para a importância do vídeo que compõe esta obra. Esse produto faz
partedoconjunto,sendoimportanteobservarque,emboraestruturadoemoutramídiaeemoutralinguagem,

15
BRASIL,InstitutodoPatrimônioHistóricoeArtísticoNacional,DepartamentodeMuseuseCentrosCulturais.Veredaseconstruçõesdeumapolítica
nacional de museus. In. ___. Política Nacional de Museus: Relatório de Gestão 2003-2006. Brasília: MINC/IPHAN/DEMU, 2006. p. 13.
não é um“complemento”do livro. Deverá ser visto – em ambos os sentidos que esta expressão pode ter – como
uma terceira parte do “Caderno”, e não deverá dele ser separado. O fato do vídeo ter o mesmo nome deste
volume dos “Cadernos” é uma tática editorial que visa chamar atenção para a integralidade do conjunto.

E qual o conteúdo? Entrevistas com curadores, selecionados, num universo de nomes e práticas consolidadas
pela experiência. O vídeo coloca em palavras o conteúdo da segunda parte do livro. Permite que o leitor viven-
cie e, de certo modo, interaja com profissionais que vivem situações cotidianas, têm preocupações e sofrem
pressões e atritos que podem ser diferentes em volume e especificidade, daquelas situações, preocupações,

9 | Mediação, curadoria, museu. Uma introdução em torno de definições, intenções e atores


pressões e atritos por que passam os leitores, em seus museus maiores ou menores, mas tem a mesma na-
tureza. Porque a experiência do fazer museus, como nos ensina Tereza Scheiner,“celebra a aventura da vida
e valoriza o patrimônio material e imaterial, definidor de identidade dos diferentes grupos humanos. A partir
do reconhecimento das referências patrimoniais que as identificam, as sociedades criam museus. E como se
articulam de distintas maneiras, no tempo e no espaço, criam e desenvolvem diferentes formas de Museu”.

Os oito artigos da segunda parte falam, de certa forma, de diferentes formas de museu e de diferentes ex-
periências curatoriais. Pode ser dividida, embora essa divisão não seja marcada, em dois blocos. O primeiro de-
les fala da curadoria de exposições; o segundo, de algumas atividades museais. As exposições são de história,
de arte, de ciência e tecnologia, de arqueologia; as experiências são o fazer exposições de curta e média
duração em um museu de porte médio, proceder o tratamento técnico de acervos, elaborar ações educativas,
cuidar de acervos documentais.

Tanto num bloco quanto no outro, as abordagens e os pontos de vista são diversos. Aline Montenegro Maga-
lhães e Francisco Régis Lopes Ramos, profissionais com grande experiência em museus históricos, escolhem
para ponto de partida a constatação de que“museus de história relaciona-se uma preocupação: combater o
esquecimento.Vestígios de épocas mortas, quando são coletados, preservados e expostos ao olhar dos vivos,
podem abrir muitos espaços para o ato de lembrar... para a elaboração de problemáticas históricas sobre as
relações entre passado, presente e futuro”. Os artigos que se seguem, nesse bloco, de certa formam, seguem
o tom desse diapasão. Roberto Conduru, professor universitário e crítico de arte no Rio de Janeiro analisa a
exposição de arte como discurso“no qual todos seus elementos são constituintes de seus sentidos e, portanto,
precisam ser pensados pelos agentes e instituições envolvidos na realização do evento”. O autor considera
os objetos, os textos tanto da exposição quanto do material impresso, as imagens complementares, e até os
equipamentosdesegurança,mobiliárioearquiteturacomofatoresquenãopodemserdeixadosdeladoparaa
compreensão do processo curatorial. O artigo busca tornar“translúcida”a crítica de exposições, evidenciando
a curadoria como subsídio dos jogos entre artistas, obras de arte e público.Tanto Aline e Régis quanto Conduru
posicionam-sefirmemente,quandovêemaexposiçãocomoumaconstruçãointegral,daqualnenhumaparte
pode deixar de ser pensada. Cátia Rodrigues Barbosa optou por analisar as exposições de ciência e tecnologia
a partir da“multiplicidade caleidoscópica”em que se transmutou, na atualidade, o curador. O artigo da pro-
fessora Cátia examina as responsabilidades dessa figura multifacetada como condutor de um processo cujo
sucesso é em parte determinado por sua capacidade de administrar essas diversas figuras. O quarto artigo é
escrito por um historiador, Pablo Luís de Oliveira Lima, e dois arqueólogos, Gilmar Henriques e Márcio Castro. A
experiênciamúltipladessesprofissionaisreuniu-senomomentoemquesetornaramcuradoresdeumprojeto:
a implantação do Museu Municipal de Pains, pequena cidade em Minas Gerais. O artigo procura apresentar
a riqueza arqueológica da região, uma província arqueológica da região do Alto São Francisco como parte do
contexto social e político que leva à decisão de criar o museu.
10 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

O bloco apresenta quatro experiências de exposição, vividas a partir de posições que são diversas e comple-
mentares: o primeiro e o quanto artigos partem do interior da experiência museal; o segundo e o terceiro, de
uma posição em que a crítica – entendida como levantamento de problemas – examina a curadoria como uma
parte do processo. Mas pode-se observar uma convergência, resumida por Cristina Bruno, em seu artigo:“...
nas últimas décadas a definição de curadoria tem sido permeada pelas noções de domínio sobre o conheci-
mento de um tema referendado por coleções e acervos que, por sua vez, permite a lucidez do exercício do
olhar...”A observação de Bruno coloca a competência dos curadores como pré-condição para a competência
do olhar do público, ponto comum que pode ser observado nos quatro artigos.

O segundo bloco apresenta quatro artigos nos quais, de certa forma, as exposições foram deslocadas do cen-
tro do palco, dando lugar para as atividades dadas como“cotidianas”. São atividades que podemos encontrar
em qualquer tipo de museu, independente de onde ele esteja, qual seja seu tamanho e variedade. O primeiro
dessesegundobloco,escritoporprofissionaisdelongaexperiênciaemummuseudeportemédioegrandeim-
portância, situado em Belo Horizonte, procura situar claramente a curadoria de exposições de“curta e média
duração”– jargão que substituiu, a não muito tempo, a definição de“exposições permanentes e temporárias”.
Thaïs Velloso Cougo Pimentel e Thiago Carlos Costa constroem um texto de grande densidade teórica, cuja
finalidade éembasar a experiência prática, aquilo que temos chamado, para fins desta abertura, de“cotidiano”.
O texto de Pimentel e Costa aponta para diversas questões para as quais o profissional de museus, seja ele
curador ou não, deverá estar atento. Uma delas se sobressaí, conforme ensinam os dois: “A exposição, seja
ela de curta, média ou longa duração, surge da pesquisa curatorial, ou seja, da investigação voltada para o
adensamento do tema ou do conceito. Esse adensamento faz com que a exposição deixe de ser apenas idéia,
e tome forma na realidade institucional do museu. Esta é uma questão fulcral neste artigo, e que vaza para
todo o bloco, toda a segunda parte do livro e, finalmente, para todo o livro: a importância da pesquisa. Con-
formeapontaUlpianoMeneses,“aatuaçãodomuseusecomprometeforadouniversodoconhecimento.Além
disso, o museu opera com material que pode também ser trabalhado como fonte de informação para produzir
conhecimento.”16 Meneses refere-se, claro, aos acervos, a “herança patrimonial” que dá título ao artigo de
CristinaBruno.PimenteleCostamanejammagistralmenteessaquestão,aomostrarcomooacervopreservado
na instituição em que trabalham gera um tipo de conhecimento que eles denominam 'monográfico', ou seja,
as exposições elaboradas pela instituição.

MENESES, Ulpiano T. B. de. O museu e o problema... Op. cit. p. 34.


16
Os artigos seguintes tratam da curadoria de atividades especificamente museais: o tratamento técnico de
acervosmuseológicos,asaçõeseducativaseotratamentodeacervosdedocumentos.Foramescolhidosesses
tópicos poderiam ter sido muitos outros, visto que são múltiplas as atividades desenvolvidas no cotidiano de
um museu. Entretanto, nem todas estão presentes.Talvez de uma forma um tanto arbitrária, foi decidido que
seria muito difícil encontrar um museu sem acervos, de modo que a curadoria de acervos foi posta em evidên-
cia; também é muito difícil encontrar museus onde não seja consistente a idéia da importância das atividades
educativas;umtipodeacervoquequasesempreseencontraemmuseus,mesmodeportemuitoreduzido,são
os acervos de documentos sobre suporte-papel, as coleções arquivísticas. Como podemos ver, é uma seleção

11 | Mediação, curadoria, museu. Uma introdução em torno de definições, intenções e atores


arbitrária, como qualquer seleção...

Marcus Granato e Cláudia Penha Santos, abordando objetos museológicos, examinam não somente as ex-
posições, mas as ações que lhes dão origem, a partir dos objetos. Especialistas em um museu científico de
grandecomplexidade,partemda“divulgaçãoedisseminaçãodosacervos,pormeiodeexposiçõesoudeoutros
meios”passandopelas“açõesdepesquisa,coleta,documentação”echegandoatéa“conservaçãoeexposição”.
Segundo os dois autores, foi um modo de problematizar cada uma dessas ações. O artigo apresenta conside-
rações sobre o tema“curadoria”, procurando discutir algumas questões que dele decorrem, a começar pela
conceituação dos termos“curador”e“curadoria”desde um ponto de vista amplo até a situação da questão em
nosso país. Um dos pontos altos do texto é a reflexão que fazem sobre a relação entre curadoria e museologia.
Trata-se de uma reflexão bastante necessária, num momento em que a formação básica do profissional de
museus tem sido centro de diversos debates. A partir da perspectiva da criação, no Brasil, de uma série de
novos cursos de graduação, tanto de Museologia como de Conservação, Granato e Santos tentam vislumbrar
os desafios e perspectivas futuras. O artigo seguinte relaciona-se ao tema,“acervos museológicos”, e podemos
dizer que é um desdobramento dele: os acervos documentais.

Talvez esse tema não fosse relacionado, caso não tivesse sido feita a constatação de que todo museu tem
coleçõesdedocumentossobresuportepapel.Émuitocomumquepessoaspróximasàinstituiçõesmuseaislocais
acabemdoandoparaessasinstituições,documentospessoais,fotografiaseatéarquivoscompletos.Duastécni-
cas nessa especialidade foram convidadas a escrever sobre o assunto, a partir da perspectiva a atuação diária no
tratamentodecoleçõesdocumentaisnoambientemuseal:CéliaReginaAraujoAlveseNilaRodriguesBarbosa.
As duas autoras esclarecem que a curadoria de acervos documentais é uma atividade que permite um diálogo
interdisciplinarentreaHistória,aArquivologiaeMuseologia.Discutemtecnicamenteametodologiaparacura-
doriadedocumentostextuaiseiconográficos,queenvolveoprocessamentotécnicodascoleções,traduzidoem
pelomenostrêsaspectosbásicos:compreenderoprocessodeformaçãodacoleçãoemsi;retirarasinformações
das unidades documentais e, finalmente, gerar a documentação museológica. Alves e Santos esclarecem que
a curadoria desses acervos consiste na análise do conjunto documental de cada uma de suas unidades e na
elaboração de uma documentação que contem as informações levantadas pela atividade de pesquisa sobre a
documentação.Éprecisoconsiderarnessacuradoriaainfluênciadevertenteshistoriográficasàsquaisestejam
ligados a instituição e o responsável técnico em sintonia com os procedimentos de organização documental.
O último artigo trata de um tema que está ligado à instituição museal como um todo, e por esse motivo foi
posto na última posição – a questão da função educativa dos museus. Essa função é tradicionalmente identi-
ficada como afeita a essas instituições, de modo que sua colocação como“fecho”da obra busca apresentá-la
como relacionada a outro resultado da mediação (o primeiro, como vimos, são as exposições). Magaly Cabral e
AparecidaRangel,especialistasmuitoatuantesnessesetor,discutemopapeleducacionaldomuseu,qualquer
que seja seu tamanho, localização ou tipologia, afirmando que tal papel“não é somente importante, mas sim
12 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

detentor de uma ampla responsabilidade social, pois devemos reconhecer que o museu é uma organização
cultural situada numa estrutura contraditória e socialmente desigual. E é o Setor Educativo de um museu
que faz a ponte entre ele e o público.” Segundo as duas autoras, uma concepção de que a ação educativa
em museus requer que seja pensada com rigor até que se chegue à proposta de pensar a ação educativa em
museus em forma de curadoria. Partem do pressuposto que a área educativa deve estar presente em todas
as atividades do museu, principalmente na concepção e montagem de exposições, como forma de fazer com
que os processos educativos decorrentes da exposição museológica ocorram em alto nível. Trata-se de uma
reivindicação observada em todos os museus, o que pode significar que, apesar da aparente unanimidade em
torno das ações educativas, é possível que o lugar dessas atividades dentro dos museus ainda não tenha sido
exatamente determinado.

A apresentação dos temas, da estrutura da obra e dos artigos desse“Caderno de Diretrizes Museológicas 2”
busca frisar que, embora seja possível um passeio“sem programa”por suas páginas e suas imagens em movi-
mento (as do vídeo), não e esse, de forma alguma, o conselho que o grupo que o produziu daria ao leitor.

Certamente não é nosso objetivo esgotar o tema “curadoria”, nem sua relação como mediação e educação.
Essa ambição, por sinal, seria de realização impossível. Mas toda a estrutura baseia-se no trabalho presente e
passado de autores escorados em conhecimentos amplos, tanto do ponto de vista geral, dito teórico, quanto
em uma prática museal que tem como característica fundamental a solidez. É essa característica a “viga
mestra” dessa obra, e nela reside a possibilidade de que outras temáticas, não abarcadas nos limites deste
“Caderno”, possam também ser “fertilizadas”.

Mas é possível dizer ao leitor que faça como lhe seja mais útil ou lhe dê mais prazer: uma leitura sistemática
ou um passeio pelas páginas seguintes; comece pelo começo ou pelo fim; veja o vídeo antes ou depois. Não
importa. Independente de toda forma, é possível que um objetivo que articulou as intenções de organizador,
autoreseeditores,secumpra:apresentaramediaçãoeacuradoriacomoquestão,problemasepotencialidade
que merece a atenção dos profissionais de museus. Enfim, como um problema contemporâneo.
definição de curadoria
parte 1
Os caminhos do enquadramento,
tratamento e extroversão
da herança patrimonial
Maria Cristina Oliveira Bruno
A história de um conceito não é, de forma alguma, a de seu refinamento progressivo, de sua racio-
nalidadecontinuamentecrescente,deseugradientedeabstração,masadeseusdiversoscamposde
constituição e de validade, a de suas regras sucessivas de uso, a dos meios teóricos múltiplos em que
foi realizada e concluída a sua elaboração.

Georges Canguilhem,1990

17 | Os caminhos do enquadramento, tratamento e extroversão da herança patrimonial.


Oartigooraapresentadofoielaboradocomoobjetivodeindicaralgunscaminhosquetêmsidopercorridosem
direçãoàdefiniçãoconceitualsobrecuradoriaequeaproximamdiferentestemposhistóricos,distintoscampos
de conhecimento e múltiplos atalhos para seus usos.Trata-se, em especial, de um ensaio que busca desvelar a
teia de influências que ampara a utilização e os múltiplos impactos contemporâneos do referido conceito.

Definir um conceito com larga e difusa aplicação, como é o caso de curadoria, pressupõe enunciar as quali-
dades essenciais de algo que o singularize, mas também, limitar, demarcar, procurar razões e raízes, buscar
explicações e referendar constatações. É uma operação intelectual de mão dupla, pois, por um lado, há o
impulso para buscar razões precisas e marcas históricas contundentes, mas, por outro, emergem as forças que
valorizam a percepção em relação à multiplicidade de perspectivas, os usos como reflexo de expressiva mas-
sificação e os reiterados confrontos intelectuais em função das diversas aplicações conceituais.

Definir é, portanto, conviver com tensões, articular antagonismos para possibilitar esclarecimentos, permitir
avanços em campos de conhecimento, ter a liberdade para fazer opções e diminuir as distâncias entre aqueles
que sabem e ensinam e aqueles que aprendem e consomem. Definir é, também, determinar a extensão de um
conceito, indicar o seu verdadeiro sentido e mapear as suas aplicações, procurando decodificar os limites e reci-
procidadesemrelaçãoaosdiferentesusos.Definirimplica,ainda,emprocurarsedesvencilhardasarmadilhasque
as traduções dos distintos idiomas nos colocam quando tratamos com conceitos de aplicação universal.

A partir dessas considerações iniciais e compreendendo que o conceito de curadoria tem uma trajetória de
difícilmapeamento,esteensaioprocuraentrelaçartrêsperspectivas:algunsaspectosdopercursohistóricodo
conceito de curadoria que geraram heranças relevantes para a atual proposta de definição; os matizes de sua
aplicaçãocontemporâneaquepermitemobservarosreflexosdifusosdestaherançaeasrespectivasreciproci-
dadesentreodelineamentodoperfilprofissionaldocuradoreoessencialdoprocessocuratorialdesenvolvido
pelos museus. Cabe registrar que as reflexões aqui apresentadas privilegiam o contexto dos museus e as rela-
ções curatoriais que se estabelecem com os seus acervos e coleções.

Definiré,sobretudo,expressarumpontodevista,registrarumaanáliseresultantedeumaexperiênciaepropor
umcaminhodepercepçãoapartirdeumolharsubjetivoecontaminadopelasartimanhasdaprópriaformação
profissional.
A elaboração deste ensaio levou em consideração que curadoria é um conceito em constante transformação
com origem e longo caminho permeados por ações e reflexões relevantes para o cenário museológico, mas,
pelafortecapacidadedemigraçãoedepousoemdiferentescontextos,levouparaoutroscenáriososatributos
que caracterizam e valorizam as ações curatoriais inerentes aos acervos e coleções.

Nesse sentido, este texto está ancorado em uma perspectiva museológica e privilegia um olhar em relação
18 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

à aplicação do conceito de curadoria no contexto contemporâneo dos processos museológicos, a partir da


valorização de idéias e práticas pretéritas e da constatação de que se trata de um conceito que tem sido apro-
priado, ressignificado e utilizado pelos mais diferentes campos profissionais.

antecedentes: os percursos que contribuíram para


o desenho contemporâneo do conceito de curadoria

Ahistóriadosmuseustestemunha,pelomenosháquatroséculos,osurgimentodasatividadesdecuradoriaem
torno das ações de seleção, estudo, salvaguarda e comunicação das coleções e dos acervos.

Desde o início desse percurso, as ações curatoriais denotaram certa cumplicidade com o pensar e o fazer em
torno de acervos de espécimes da natureza e artefatos, evidenciando o seu envolvimento simultâneo com as
questões ambientais e culturais. Dessa forma, o conceito de curadoria tem em suas raízes as experiências
dos gabinetes de curiosidades e dos antiquários do renascimento e dos primeiros grandes museus europeus
surgidos a partir do século XVII.

Essas raízes desvelam facetas do colecionismo, das expedições, dos saques e dos processos de espoliação de
referênciaspatrimoniais,comotambémestãonaorigemdosurgimentodediversoscamposdeconhecimento
que se estruturaram a partir dos estudos das evidências materiais da cultura e da natureza. Cabe sublinhar que
a origem das ações curatoriais carrega em sua essência as atitudes de observar, coletar, tratar e guardar que,
ao mesmo tempo, implicam em procedimentos de controlar, organizar e administrar.

Essa teia de influências que chegou até nossos dias está impregnada, sobretudo, do exercício da capacidade
de olhar, entendendo que:

O olhar tem que ter os atributos principais: lucidez e a reflexidade.


Para ser lúcido, o olhar tem que se libertar dos obstáculos que cerceiam a vista; para ser reflexo, ele tem que
admitir a reversibilidade, de modo que o olhar que vê possa por sua vez ser visto.1

ROUANET, Sérgio Paulo. O Olhar Iluminista. In: NOVAES, Adauto. O Olhar. São Paulo: Editora Schwarcz, 1989. p. 131.
1
A extensa bibliografia sobre a história dos museus2 procura explicar as razões, as estruturas de longa duração
e os momentos de ruptura que têm envolvido o colecionismo e as entranhas dos processos institucionais que
são responsáveis pelo estudo, preservação e divulgação das coleções no âmbito dos museus. Essa mesma
bibliografia informa que, em sua origem, as ações curatoriais bifurcaram-se em duas rotas que têm sido
percorridas ao longo dos séculos, em alguns momentos cruzando-se, em outros distanciando-se e, ainda,
potencializando a geração de novos caminhos.

Por um lado, os acervos de espécimes da natureza necessitavam de ações inerentes a“proceder à cura”de suas
coleções e, por outro, os acervos artísticos exigiam ações relativas a“proceder à manutenção”de suas obras,

19 | Os caminhos do enquadramento, tratamento e extroversão da herança patrimonial.


impondoaçõesdiferenciadas,permitindoadiversidadedemodelosinstitucionais,potencializandoaespecia-
lização de museus e o surgimento de diferentes categorias profissionais: o curador e o conservador. Essa pers-
pectiva consolidou, por exemplo, as diferenças iniciais entre os perfis dos Museus de História Natural em rela-
ção aos Museus de Arte, e até o século XIX essa diversidade tipológica caracterizou o universo dos museus.

A grande diáspora museológica, ocorrida nesse período, que é responsável pelo surgimento de instituições
congêneres em todos os continentes, exportou a forma de trabalho curatorial como essencial para a atuação
dosmuseus.Apartirdessemomento,verifica-sequeoselementoseuropeusreferentesàorigemdoconceitode
curadoriaampliam-seemesclam-secomdistintastrajetóriaslocais,permitindoapercepçãodeoutrosmatizes
para a elaboração da definição de curadoria. É dessa forma que a potencialidade patrimonial do Brasil surge
para essa definição e o próprio conceito de curadoria envolve-se com a nossa realidade museológica.

Entretanto, essa diversidade não minimizou a importância do“estudo”para a definição das ações curatoriais,
permitindo cunhar no âmago do conceito de curadoria a perspectiva de produção de conhecimento novo a
partirdecoleçõeseacervosmuseológicos,reverberandoosreflexosdaimportânciadosmuseusnosmeiosdas
instituições científicas e culturais.

Assim, é possível constatar que o conceito de curadoria surgiu influenciado pela importância da análise das
evidências materiais da natureza e da cultura, mas também pela necessidade de tratá-las no que corresponde
à manutenção de sua materialidade, à sua potencialidade enquanto suportes de informação e à exigência de
estabelecer critérios de organização e salvaguarda. Em suas raízes mais profundas articulam-se as intenções
e os procedimentos de coleta, estudo, organização e preservação, e têm origem as necessidades de especia-
lizações,deabordagenspormenorizadasedotratamentocuratorialdirecionadoapartirdaperspectivadeum
campo de conhecimento.

A bifurcação acima referida influenciou, ainda, o surgimento de diferentes nichos profissionais no inte-
rior das instituições que têm sob sua responsabilidade coleções e acervos. Desta forma, os cuidados com a

2
Cf. Abreu, 1996; Barbuy, 1999; Benoist, 1971; Bittencourt, 1996; Bolaños, 2002, Bruno, 1999; Fernandez, 1999; Fontanel, 2007; Kavanagh, 1990,
Lopes, 1997; Pearce, 1994; Schaer, 1993. Para a referência complete, ver “Bibliografia”, ao fim deste artigo.
manutençãopermitiramodelineamentodeumarotaindependente,aindahojecomsingularimportância,que
acolheasatividadesdeconservaçãoerestaurodosbenspatrimoniais,amparandoaprofissãodeconservador-
restaurador e determinando a necessidade de formação específica.

Este ensaio está pautado, portanto, pela trajetória das ações curatoriais que subsidiaram a função do curador
edeseusrespectivos reflexos nos processos museais. A partir desse ponto de vista é possível reconhecer que as
20 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

raízes conceituais do conceito de curadoria, em especial, ramificaram-se nas estratigrafias dos solos das ins-
tituições museológicas dedicadas às ciências e só tardiamente, na segunda metade do século vinte, migraram
para as instituições dos campos das artes. Da mesma forma, as ações curatoriais até o período acima referido,
restringiram-seaosprocedimentosdeestudos(pesquisasdediferentescamposdeconhecimento)esalvaguar-
da(atividadesdeconservaçãoedocumentação)dascoleçõeseacervose,nacontemporaneidade,subsidiamos
processos de extroversão dos bens patrimoniais, consolidando ações de comunicação e educação.

Não foram somente as coleções e os acervos relativos aos ramos da História Natural, mas também aqueles
refe-rentesaosestudosantropológicos,arqueológicos,históricos,entreoutros,quesebeneficiaramdasnoções
edosprocedimentoscuratoriais,queconsolidaramaimportânciadosmuseus,contribuíramparaaelaboração
de metodologias científicas, definiram a hierarquia de campos profissionais e permitiram a preservação patri-
monial,umavezque“procederàcura”passouaserinterpretadocomoumconjuntodeprocedimentosinerentes
àseleção,coleta,registro,análise,organização,guardaedifusãodoconhecimentoproduzido.Trata-se de uma
articulação de procedimentos técnicos e científicos que têm contribuído sobremaneira para o nosso conheci-
mento relativo às questões ambientais e culturais de interesse para a humanidade. Nesse sentido, as noções
herdadas de“organização e guarda”ampliaram e particularizaram os aspectos constitutivos da definição de
curadoria e, ao mesmo tempo, consolidaram diversos campos de conhecimento. Essa definição, gradativa-
mente, passou a ser difundida a partir de publicações de periódicos especializados das mais variadas áreas
científicas, impregnou os textos dos trabalhos acadêmicos no ambiente universitário e sinalizou em relação a
sua expansão, nomeando os certames científicos.

De certa forma, as ações curatoriais que contribuíram para o delineamento do perfil das instituições mu-
seológicas e permitiram a emergência de áreas de conhecimento, evidenciam a importância da articulação
cotidiana de diferentes trabalhos, mas uma observação pormenorizada dessas instituições nos faz perceber
que essa herança chegou ao século XX permeada por ações isoladas, com pouca inspiração democrática e vo-
cacionadaaoprotagonismo.Nãosãorarososcasosqueemergemdabibliografiaespecializadaqueapontamo
curadorcomooresponsávelporumacervo,comooespecialistadeumcampodeconhecimento,comoaquele
profissional apto a assumir a direção de um museu.

Essas idiossincrasias, de alguma forma distanciam a definição de curadoria, que é compreendida como o con-
junto de atividades solidárias, em relação à definição de curador, quando esse é visto como um profissional
onipotente em relação à dinâmica institucional. Essa contradição também deixou marcas na organização dos
museus, na concepção dos cursos de formação profissional e contribuiu com a rápida migração para outros
contextos externos ao universo museológico.

Entretanto, é possível considerar que em sua origem remota a definição de curadoria, contextualizada pela
trajetória dos museus, está apoiada na constatação que os acervos e coleções exigem cuidados que, por sua
vez,sãoreconhecidoscomoprocedimentostécnicosecientíficosetêmsidoresponsáveispelaorganizaçãode
metodologias de trabalho de diferentes ciências.

21 | Os caminhos do enquadramento, tratamento e extroversão da herança patrimonial.


matizes da aplicação contemporânea das ações curatoriais:
os impactos da migração e da vulgarização conceituais.

As ações curatoriais, com distintos graus de especializações, alcançaram o século passado e encontraram
os profissionais de museus envolvidos em grandes confrontos, reconhecendo e valorizando inéditos recortes
patrimoniais, sofisticando os seus processos de trabalho, abrindo as suas portas para novos segmentos das
sociedades e constatando a necessidade do trabalho interdisciplinar. As heranças dos períodos anteriores
marcaram a definição de curadoria nos seguintes aspectos:
• valorização da especialização na formação acadêmica e no exercício profissional;
• importância da tutela, com vistas aos estudos, tratamento e extroversão dos acervos e coleções;
• relevânciaeindependênciadafiguradocurador,comooprofissionalresponsávelpeladinâmicainstitucional;
• projeção da importância dos museus nos circuitos universitários e culturais.

ApartirdasegundametadedoséculoXX,asanálisescríticas,sobejamentediscutidaspelasmaisdiferentescor-
rentesbibliográficas3,impulsionaramaexperimentaçãodeinéditosprocessosdeaçãomuseológica,valorizan-
doaparticipaçãocomunitárianoquetangeaosprocedimentosdesalvaguardaecomunicaçãoeestabelecen-
do uma nova dinâmica em relação às noções de acervo e coleções. Os impactos dessas críticas geraram, ainda,
novos modelos museológicos, como os museus comunitários e os ecomuseus e movimentos de profissionais
que, hoje, são reconhecidos como integrantes da Sociomuseologia. Nesse contexto, o conceito de curadoria
não encontrou eco e as metodologias de trabalho implementadas têm sinalizado para processos transdisci-
plinares, coletivos e de auto-gestão.

Nesse mesmo período, contraditoriamente, a figura do curador já contava com espaço central nas instituições
museológicas de caráter científico e se confundia com o único profissional apto a responder pelas coleções e
acervos de sua especialidade, em todos os níveis da ação museológica.

3
Cf., por exemplo, Chagas, 1999; Desvallées, 1992; Guarnieri, 1990; Hernández, 1998; Huyssein, 2000; Varine, 1996, entre muitos outros autores.
Para a referência complete, ver “Bibliografia”, ao fim deste artigo.
Da mesma forma, entrelaçado em contradições, o processo de trabalho curatorial passou a ser relevante para
as instituições com acervos – materiais e imateriais – artísticos, históricos, de cultura popular, entre muitos
outros e, ainda, ampliou os seus tentáculos atingindo outros modelos de instituição, como centros culturais,
centros de memória e galerias de arte. Esse movimento entre funções, responsabilidades e perfis profissionais
potencializou as atividades curatoriais, orientando-as também para as ações de exposição e de educação.
Entretanto, é possível constatar que o profissional curador e o conceito de curadoria ficaram delimitados aos
22 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

museus tradicionais, impregnados pela projeção das especializações, pela relevância dos profissionais e pela
potencialidade científico-cultural dos acervos e coleções.

Nesse percurso, o conceito de curadoria passou a desempenhar um papel central em relação ao estudo, orga-
nização e visibilidade dos acervos de arte e da produção artística, com especial ênfase para a produção con-
temporânea.Dessa forma, a definição de curadoria ganhou atributos novos que trouxeram para esse cenário a
super valorização das atividades expositivas das coleções e dos acervos, a possibilidade de articulação com os
próprios autores das obras e um protagonismo sem precedentes que se mistura com o mercado de artes, com
os canais de comunicação e com a projeção social. Enquanto a herança proveniente dos museus de ciências
valoriza o curador, que é o especialista de sua própria instituição e com enorme projeção interna no que diz
respeito aos destinos da instituição, os museus de arte não priorizam essas características e, muitas vezes,
abrigam trabalhos curatoriais externos ao seu universo profissional.

Assim, nas últimas décadas a definição de curadoria tem sido permeada pelas noções de domínio sobre o co-
nhecimentodeumtemareferendadoporcoleçõeseacervosque,porsuavez,permitealucidezdoexercíciodo
olhar, capaz de selecionar, compor, articular e elaborar discursos expositivos, possibilitando a reversibilidade
pública daquilo que foi visto e percebido, mas considerando que as ações de coleta, conservação e documen-
tação já foram realizadas. Para alguns, a implementação de atividades curatoriais depende especialmente
de uma cadeia operatória de procedimentos técnicos e científicos, e o domínio sobre o conhecimento que
subsidia o olhar, acima referido, é na verdade a síntese de um trabalho coletivo, interdisciplinar e multiprofis-
sional. Para outros, o emprego da definição de curadoria só tem sentido se for circunscrito a uma atividade
que reflita um olhar autoral, isolado e sem influências conjunturais que prejudiquem a exposição de acervos e
coleções, conforme os critérios estabelecidos em função do domínio sobre o tema.

O alcance do universo das artes, a resistência nos contextos das instituições científicas, a cumplicidade com os
meiosacadêmicose,maisrecentemente,aconvivênciacomoscenáriosdecomunicaçãodemassa,trouxeram
à definição de curadoria as perspectivas de popularização e de vulgarização que dificultam o mapeamento
contemporâneo sobre os limites desse alcance. Reconhece-se, entretanto, que essa definição já extrapolou e
muito o universo das instituições museológicas e tem sido aplicada em diversos contextos, onde os parâme-
tros de estabelecer critérios para seleção de referências de um universo referido, de organizar dados para a
realização de um processo comunicacional, de tutelar a guarda e extroversão de acervos são relevantes para
o desenvolvimento de projetos que têm caracterizado os campos das artes e das ciências.
Assim,osmatizescontemporâneosquepodemcolaborarcomodesenhodadefiniçãodecuradoriasãodifusos,
cada vez mais pulverizados em diferentes campos de atuação profissional e, muitas vezes, de difícil manejo
quandoconfrontadoscomalgunsparadigmascontemporâneosquepregamaimportânciadotrabalhointer-
disciplinar, que exigem das instituições científicas e culturais a possibilidade de participação comunitária em
suas decisões em relação aos acervos e coleções e que mobilizam diferentes estratégias para dar um sentido
social aos bens patrimoniais.

a importância dos processos museológicos para a definição de curadoria

23 | Os caminhos do enquadramento, tratamento e extroversão da herança patrimonial.


Definircuradoria,apartirdeumolharpermeadopornoçõesmuseológicas,permiteperceberaimportânciada
cadeiaoperatóriadeprocedimentosdesalvaguarda(conservaçãoedocumentação)ecomunicação(exposição
e ação educativo-cultural) que, uma vez articulados com os estudos essenciais relativos aos campos de co-
nhecimento responsáveis pela coleta, identificação e interpretação das coleções e acervos, são fundamentais
para o desenvolvimento dos museus e das instituições congêneres.

A definição contemporânea pode trazer parâmetros para outros contextos institucionais que têm utilizado o
conceito de curadoria, extrapolando a ação museológica, mas para os museus as pers-pectivas de“processo”
e de “cadeia operatória” são essenciais. Essas perspectivas, por sua vez, abrem caminhos para as exigências
relativasàsnecessidadesdeplanejamentoedeavaliaçãonoâmbitodosmuseuse,aomesmotempo,implicam
na assimilação de desafios inéditos no que tange à “qualidade técnica”, à “prestação de contas públicas” e à
“transparência nos procedimentos”.

A partir das heranças já mencionadas e da constatação dos insumos contemporâneos, essa definição deve
articular as noções de “olhar reflexivo”, ou seja, aquele que permite a percepção, a seleção, a proteção e a
exposição de evidências materiais da cultura e da natureza e o domínio sobre o conhecimento de coleções e
acervos,comasperspectivasde“açõesinterdependentes”queestabelecemadinâmicanecessáriaaosproces-
sos curatoriais. Essa articulação, por sua vez, aproxima as intenções e as idéias curatoriais das “diferentes
expectativas”que as sociedades projetam nas instituições patrimoniais. Essa definição contempla também a
função que os acervos, coleções e museus devem desempenhar na contemporaneidade.

Assim, refletir sobre a definição de curadoria permite reconhecer que para a efetivação dos processos curato-
riais é fundamental o exercício do olhar, a implementação de atividades solidárias e o respeito às exigências
socioculturais. Trata-se, em sua essência, de uma definição que não reserva espaço para ações isoladas, pro-
tagonismos individuais ou negligência em relação aos fruidores das atividades curatoriais.

Hoje, essa definição encontra maior aplicação e visibilidade no âmbito dos procedimentos expográficos das
instituiçõesmuseológicasemesmonosprojetosexpositivosquesãoviabilizadosemoutrosespaçospúblicos.
Os termos curadoria e curador têm sido utilizados com freqüência e de forma restrita para indicar o tipo de
trabalho e o perfil do protagonista, inerentes à concepção de discursos expositivos, ou seja: a realização de
umaexposiçãodependedodomíniosobreosacervosecoleções,dapotencialidadedeseleçãoedacapacidade
de elaboração de hipóteses para a constituição de discursos expositivos.

Astarefasqueenvolvemaextroversãoeotratamentopúblicodetemaseacervosrefletemgrandeafinidadecom
24 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

asatividadesmuseológico-curatoriais,têmsidoabordadasporcorrentesbibliográficasvinculadasaosaspectos
metodológicos da produção dos museus e dos processos museológicos (Cury, 2005; Fernandez & Fernandez,
1999; Gómez, 2005; Montaner, 1995; Rico, 2006;Thompson, 1992, entre outros autores) e podem ser resumidas
nas seguintes operações:
• delimitação do recorte patrimonial no âmbito das coleções e dos acervos, a partir de intenções pré-
estabelecidas;
• concepção do conceito gerador a partir da delimitação do enfoque temático e do conhecimento das
expectativas do público em relação à temática selecionada, valorizando as vocações preservacionistas e
educacionais dos discursos expositivos;
• seleção e enquadramento dos bens identificados como referenciais para a abordagem do tema proposto,
respeitando as articulações com os processos de conservação e documentação;
• conhecimento do espaço expositivo e de suas potencialidades públicas;
• definição dos principais objetivos do discurso expositivo e dos critérios para avaliação do produto ex-
pográfico, respeitando as potencialidades de ressignificação das coleções e acervos, as necessidades de
entrelaçamento com as premissas educacionais e a realidade conjuntural da instituição;
• concepção do roteiro do circuito expográfico, a partir do delineamento das questões de infra-estrutura e
das linguagens de apoio;
• elaboração do desenho expográfico, indicando as características técnicas da proposta expositiva e
• organização e realização do projeto executivo, considerando os parâmetros de produção, cronograma,
orçamento e avaliação.

As operações acima sintetizadas permitem avaliar o grau de interdependência entre as diferentes ações cura-
toriais e a relevância da noção de processo para a realização das atividades de curadoria. Englobam, em sua
dinâmica, a importância do conhecimento acumulado em diversos campos já estabelecidos, a expectativa da
produção de novas análises, o domínio técnico sobre os mais variados trabalhos e a consciência de que o resul-
tadodessasoperaçõesdeveserviràssociedades.Asatividadesmuseológico-curatoriaissão,imperiosamente,
açõescoletivasemultiprofissionais.Nessesentido,oprotagonismodocuradordeveseroreflexodesuacapaci-
dade de liderança e de sua compreensão em relação às reciprocidades entre as atividades acima indicadas.

Apesardascontradiçõesgeradasaolongodotempo,oconceitodecuradoriaaindaéreferencialparaaconcep-
çãoedesenvolvimentodosmuseuseinstituiçõescongêneres,éinspiradorparaasensibilizaçãodosestudantes
queprocuramespecializaçõesnessescamposprofissionais,édiscutidoemumavastabibliografiapontuadapor
distintas áreas científicas e ainda é potencializado pelos meios de comunicação de massa. São evidências, sem
dúvida, de sua atualização e relevância nos dias atuais.

Assim, pode-se considerar que curadoria é a somatória de distintas operações que entrelaçam intenções, re-
flexões e ações, cujo resultado evidencia os seguintes compromissos:
• a identificação de possibilidades interpretativas reiteradas, desvelando as rotas de ressignificação dos
acervos e coleções;
• a aplicação sistêmica de procedimentos museológicos de salvaguarda e de comunicação aliados às
noções de preservação, extroversão e educação e

25 | Os caminhos do enquadramento, tratamento e extroversão da herança patrimonial.


• a capacidade de decodificar as necessidades das sociedades em relação à função contemporânea dos
processos curatoriais.

Emumolharretrospectivoépossívelconstatarqueatrajetóriadadefiniçãodoconceitodecuradoriaevidenciaten-
tativasderefinamentoprogressivo,mastemsidopautadapelatensãoentreosdiferentescamposqueinteragemnos
museus,permeadospeloscaminhosdoenquadramento,dotratamentoedaextroversãodaherançapatrimonial.

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a exposição como processo
comunicativo na política
curatorial
Nelson Sanjad
Carlos Roberto F. Brandão
O conceito de curadoria de coleções desenvolveu-se empiricamente, antes de ser formalmente sistematizado.
Curadoriaé,portanto,umapráticageradapeloprocessodeinteriorizaçãonosmuseus,denormas,usoseobriga-
ções, tal como na perspectiva do habitus de Bourdieu1.Trata-se de um sistema de disposições, duráveis e trans-
poníveis,queintegratodasasexperiênciaspassadasequefuncionacomoumamatrizdepercepções,deaprecia-
ções e de ações. A construção do habitus curatorial exige não só o domínio individual da técnica, mas também, e
mais decisivamente, a inscrição coletiva em uma ética profissional no interior do microcosmo do museu.

Curadoria, ora entendida como a prática de organizar mostras específicas, ora como um conjunto de técnicas
objetivandoaconservaçãodeobjetos,édefinidaaquicomoociclocompletodeatividadesrelativasaosacervos,
compreendendoaexecuçãoouaorientaçãodaformaçãoedesenvolvimentodecoleções,segundoumaraciona-
lidadepré-definidaporumapolíticadeacervos;aconservaçãofísicadascoleções,implicandoemsoluçõesper-

27 | A exposição como processo comunicativo na política curatorial


manentesdearmazenamentoeemeventuaismedidasdemanutençãoerestauro;oestudoeadocumentação,
além da comunicação e informação, que devem abranger todos os tipos de acesso, divulgação e circulação do
patrimônioconstituídoedosconhecimentosproduzidos,parafinscientíficos,educacionaisedeformaçãoprofis-
sional (mostras de longa duração e temporárias, publicações, reproduções, experiências pedagógicas, etc.)2.

Essa definição ampla permite situar o papel de um programa de comunicação dos conhecimentos sobre os
acervos em uma política institucional abrangente. Nesse sentido, valoriza a comunicação museológica, re-
conhecendoariqueza depossibilidadesde construção de significadospelosmuseuseseus usuários.Também
promove o necessário balanço entre as várias formas de divulgação de acervos, incluindo as exposições, que
têm linguagem específica e podem ser focadas ou não em públicos previamente determinados.

Este capítulo pretende introduzir alguns pontos para a reflexão sobre a comunicação museológica em relação
com a política curatorial dos museus. Dentre as várias formas e possibilidades de comunicação entre os mu-
seus e a sociedade3, as exposições serão priorizadas em razão de constituírem etapa importante no processo
curatorial, embora esse não se esgote ou finalize na montagem de exposições. Dessa maneira, o capítulo di-
vide-se em três partes: a primeira abordará, de maneira bastante breve, a relação entre a história do museu e o
desenvolvimentodoacervo,cujacompreensãoébasilarparaodelineamentodeumapolíticacuratorial,desta-
cando como a composição dos acervos registra as transformações pelas quais os museus passaram no tempo,
seja em nível macro (transformações estruturais e epistemológicas) ou em nível micro (injunções políticas,

1
Cf. BOURDIEU, Pierre. The logic of practice. Cambridge: Polity Press, 1990 [1a Ed., 1980].
2
Esta definição é devedora do relatório preparado por comissão designada pelo reitor da Universidade de São Paulo (USP), José Goldemberg, e
presidida pelo professor José Jobson de Andrade Arruda, que discutiu o conceito de curadoria científica e seu papel organizador em um museu
universitário. Por sugestão dessa comissão, foram reunidosemumasóinstituição,o atualMuseu deArqueologia eEtnologia(MAE/USP),os acervos
do então MAE, os acervos similares do Museu Paulista, doInstitutodePré-HistóriaedoAcervoPlínioAyrosa,entãodepositadonoDepartamento de
Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas/USP (Brandão e Costa, 2007).
3
Algunsautores,comoCabral(Cf.CABRAL,Magaly.AlgumasreflexõessobreosprincípiosfundamentaisdaComunicaçãoMuseológica.In:Seminários
de Capacitação Museológica. Anais... Belo Horizonte: Instituto Cultural Flávio Gutierrez. p. 319-326.), têm chamado a atenção para as várias formas
decomunicaçãoqueosmuseusestabelecemcomosseuspúblicos.Incluemdesdeoserviçodeatendimentodechamadastelefônicasatéprogramas
educativos, passando pelos impressos e pela arquitetura do edifício.Todas essas formas de comunicação podem, inclusive, interferir na leitura e
apreciação que o público faz das exposições (Cf. HOOPER-GREENHILL, Eilean. Museums and their visitors. Londres: Routledge, 1994).
atuação de dirigentes e curadores, doações, prioridades de pesquisa, etc.). São apresentadas duas exposições
queexploraramessarelação,comoexemplosdaspossibilidadesexistentesparaacomunicaçãomuseológica.

A segunda e a terceira partes são complementares, pois abordam a exposição enquanto discurso e a recepção
(ou percepção) desse discurso pelos públicos. A intenção é ressaltar a necessidade de estudos que tenham no
horizonte todo o processo curatorial, ou seja, que investiguem e avaliem como ocorre a produção de sentido
28 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

nas exposições em relação com essa política e também como as leituras feitas pelo público podem contribuir
paraaperfeiçoaroprocesso.Parte-sedopressupostodequeessaspesquisaspodemsermaisdoqueferramen-
tas para avaliação de determinadas ações e para o conhecimento das motivações do público.

museu e acervo

Nos últimos dois séculos, os museus adotaram diferentes modos de organização e atuaram de acordo com ob-
jetivoseestratégiastambémdiferenciados,sendosucessivamenteadaptadosaopassodocontextopolíticoem
queestãoimersosedosavançosconceituaisnacompreensãoepráticamuseológica4.Nesseprocesso,osmuseus
ditosenciclopédicos,deorigemmaisantiga,fragmentaram-se,assumindocarátermaiscircunscritoeacompa-
nhandoaprópriaespecializaçãodasciênciasehumanidades5.Osmuseusdaatualidade,noentanto,reconstroem
aintegralidadedeoutrora,correspondendoeabarcando,nasoma,asgrandesáreasdeconhecimentonasquais
os acervos são imprescindíveis como substrato de pesquisa: História Natural, Arqueologia e Etnologia, Cultura
Material e Arte. Recentemente, os museus decidiram incorporar o patrimônio intangível, suscitando novos de-
safios conceituais, métodos de trabalho e formatos institucionais6.

A eventual perda de conexão de disciplinas, que o formato anterior permitia e que alguns museus contem-
porâneostentamretomardeacordocomnovosarranjosinstitucionais,vemsendoamplamentecompensada
pelocrescimentoexponencialdonúmerodemuseus,aindaqueconcentrados nasgrandescidades.Essanova
rede museal, fortemente cingida a temas e territórios (e não mais a disciplinas ou áreas de conhecimento),
ensejou a formação de uma multiplicidade de profissionais mais especializados, enriquecendo o cenário e
preparando os caminhos de novos e ainda mais importantes saltos qualitativos7.
4
Essas complexas transformações institucionais e epistemológicas não podem ser reduzidas ao modelo das três“gerações”de museus, proposto
por Mc Mannus (Cf. McMANUS, Paulette M. Investigation of exhibition team behaviors and the influences on them: towards ensuring that planned
interpretationscometofruition.),concebidodemaneiraevolucionista,eurocêntricaea-histórica pordesconsideraroscontextosondesurgemeas
forças políticas e sociais que atuam externa e internamente. Museus não são entidades imunes às contingências locais, ou que se reproduzem aqui
e alhures de maneira uniforme e sincrônica e também não desaparecem ou congelam no tempo quando surgem outros formatos institucionais.
Cabeaospesquisadoresbrasileiros(elatino-americanos)quetêmadotadoomodelonassuasanálisesexercerumpoucomaisdecríticaepromover
a reflexão sobre a viabilidade do próprio modelo. Sobre a relação entre museus e política, ver Santos (Cf. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Museus
brasileiros e política cultural.) e Sanjad (Cf. SANJAD, Nelson. A Coruja de Minerva: o Museu Paraense entre o Império e a República, 1866-1907).
5
O museu enciclopédico do século XIX norteou, no Brasil, a fundação dos primeiros museus de história natural: o Museu Nacional (1818), no Rio de
Janeiro, o Museu Paraense (1866), em Belém, e o Museu Paulista (1893), em São Paulo. Nos três casos esse formato foi substituído por enfoques
temáticos, mais objetivos, preponderantes no rol dos museus atuais, no Brasil e no mundo (Lopes, 1997; Sanjad, 2005).
6
Ver, por exemplo, Cabral (Cf. CABRAL, Magaly. Museus e o patrimônio intangível: o patrimônio intangível como veículo para a ação educacional e
cultural) e o conjunto de artigos reunidos em Bittencourt et al. (2007).
7
Tal multiplicação de interesses reflete-se na composição dos atuais 30 comitês internacionais temáticos do International Council of Museums
(ICOM),nosquaissãomatriculadososcercade25.000membrosdaorganização,de150países.Essesprofissionaissãoresponsáveispelasalvaguarda
Os acervos dos museus, tomados em conjunto, detêm um patrimônio cultural que, pela multiplicidade de
fruições e leituras que permite, constitui extraordinária ferramenta para a compreensão e documentação do
ambiente e da cultura dos povos. Mas, se tomado especificamente, o acervo de um museu reflete uma seleção
deliberada de objetos, em geral aleatória e circunstancial. Essa seleção depende dos objetivos do museu, do
que se deseja conservar (testemunho, modo de vida, tecnologia, informação, etc.) e, por que não, das crenças
e idiossincrasias dos dirigentes e curadores. Evidentemente, a forma de selecionar objetos (e desenvolver um
acervo) varia conforme o tipo de museu. Se as doações e compras são mais freqüentes nos museus de história
e de arte, nos museus de ciências o acervo é formado pela atividade de coleta regular, planejada e executada
conforme a problemática científica a que se dedicam. Nesse caso, a história da formação do acervo é indis-
sociável da própria história da pesquisa científica, pois o que é coletado e incorporado ao acervo depende, em
grande medida, do que se pesquisa e de como se pesquisa (Sanjad, 2007)8.

29 | A exposição como processo comunicativo na política curatorial


De maneira geral, o próprio desenvolvimento dos acervos – em quantidade de objetos e em diversidade de
materiais – determinou a reestruturação dos museus em diversos tipos, a criação das reservas técnicas e a
conseqüenteseparaçãoentreobjetosparaexposiçãoeobjetosparapesquisa.Contudo,essaseparaçãoéapenas
parcialmente verdadeira. Se para as ciências naturais ela ocorreu em função das necessidades de conservação
do material biológico, sobretudo os typus, nos casos da etnografia, arqueologia, história e arte ela não existe,
pois os objetos são únicos como artefato e manufatura, diferentemente de um animal taxidermizado, de uma
exsicataoudeumaamostramineralógica,querepresentamsériesespecíficasepodemsersubstituídos,nasex-
posições, por outros exemplares (o que se deseja mostrar não é o indivíduo, e sim a espécie, o táxon). Quanto aos
artefatos,senãofiguramnasexposições,sãomantidosemreservatécnica,umespaçoinventadopelosmuseus
nãoapenasparapropiciarmelhorescondiçõesdeconservaçãoparaosobjetos(emboraosafastandodasvistas
dopúblico),mastambémparasalvaguardarosobjetosque,pordiversosmotivos,nãotêmlugarnasexposições.
Oprópriodesenvolvimentodetécnicaseexigênciasexpográficastambémcontribuiupararelegaralgunsobjetos
às reservas técnicas.

Questões como a história da formação do acervo, os usos, as funções e a circulação dos objetos no interior de
ummuseu, são pertinentes a uma política curatorial. Por esse motivo, podem e devem ser exploradas na comu-
nicação museológica. Por exemplo, o Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) inaugurou, em 2006, a mostra de
longa duração“Reencontros: Emílio Goeldi e o Museu Paraense”, que trata basicamente das origens do acervo
e do perfil da instituição, ambas localizadas no final do século XIX, em um dado contexto político, econômico
e social. Ali estão expostos os primeiros exemplares do acervo, como a exsicata número um (atualmente são
mais de 190 mil) e a primeira urna arqueológica (atualmente são mais de 40 mil peças).Também são expostos
dostestemunhosqueasociedadeseleciona,estudaemantémparaasgeraçõesfuturas.Seutrabalhoenvolveaspectoscientíficos,técnicos,legaise
éticos, exigindo a concorrência e articulação de saberes de inúmeras disciplinas e incontáveis tecnologias.
8
Cf.SANJAD,Nelson.Olugardosmuseuscomocentrosdeproduçãodeconhecimentocientífico.Veja,porexemplo,ocasodascoleçõesetnográficas,
resultantes do colonialismo e do processo de apropriação do conhecimento oriundo das sociedades não européias. Com a crise desse modelo em
meados do século XX, no qual os museus tiveram papel central, os antropólogos viram-se compelidos a parar de coletar ou a negociar com os povos
que estudam a permissão para a coleta e a melhor maneira de fazer isso. Vale destacar, ainda, o estudo de Sanjad (Cf. SANJAD, Nelson. A Coruja de
Minerva... Op. cit) sobre o Museu Paraense Emílio Goeldi,onde foi demonstrado como o acervo dessa instituição desenvolveu-se, no final do século
XIX,conformeprojetocientíficopreviamentedeterminadoetambémconformeasdemandasestataisqueincidiramsobreosfuncionáriosdomuseu.
osnomeserostosdaspessoas,homensemulheres,queapostaramemumprojetodelongoprazo,dandoinício
aumaempresa coletiva que se perpetuaria no tempo e receberia contribuições de muitas gerações. O objetivo
da exposição é apresentar o museu como uma construção social e um processo histórico, reforçado pelo fato
da mostra ter sido montada em um prédio de meados do século XIX, símbolo de um estilo de vida que já não
existe, mas que, de certa forma, está na origem do próprio museu.

Por sua vez, o Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (MZUSP) mantinha, até o final dos anos 1990,
30 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

mostra permanente, tributária da exposição do Museu Paulista, que, em moldes tradicionais, apresentava um
catálogo de animais, organizado segundo determinada classificação. Apesar da inegável atração que o acervo
exposto exercia sobre um público fiel e cativo, a antiga exposição não espelhava a riqueza, a dinâmica e a atua-
lidadedaspesquisasrealizadasnosbastidoresdainstituição.Comofechamentodaexposiçãoaopúblico,dadas
às necessárias reformas internas pelas quais o MZUSP passou, visando à modernização de seus laboratórios e
coleções,foipossívelreorganizaromesmoacervo,aindaquedepurado,soboutroprisma.Anovamostradelonga
duração,inauguradaemsetembrode2002comotítulo“PesquisaemZoologia–abiodiversidadesoboolhardo
zoólogo”,permitesobreporaomuseu-catálogootrabalhodopesquisador,reversuahistória,delinearsuaforma-
ção e ideologia, sinalizando os meios da produção científica e apontando os rumos institucionais.

Ambososexemplospodemserconsideradostentativasdeintegraracomunicaçãomuseológicaaumapolítica
curatorial, pois propiciam a reflexão sobre o papel social dos museus a partir da história de seus acervos, da
forma como esses desenvolveram-se no tempo e dos motivos pelos quais foram e continuam sendo úteis à so-
ciedade(apesardeserem,algumasvezes,centenários).Exploram,paraconcluir,aquiloqueéprópriodosmuseus,
a atribuição de sentido aos objetos tendo em vista “a apropriação social de segmentos da natureza física” e a
“apreensão da dimensão material da vida social”9

exposição e discurso

Há, no Brasil, uma pequena, mas consistente produção intelectual sobre a relação entre o museu e seus
públicos. Alguns autores têm se esforçado para ampliar e consolidar esse campo de conhecimento, fragmen-
tado sob diferentes roupagens e técnicas, porém coerente no que diz respeito à preocupação com o“ponto
de contato do público com o patrimônio cultural musealizado”10. Contudo, os estudos de público são apenas
parte do processo de avaliação da comunicação museológica. O discurso manifesto nas exposições pelos
museus e seus porta-vozes é, também, tema passível de investigação, talvez até mais importante para se
compreenderaspossibilidadeselimitesdacomunicaçãonapolíticacuratorial11.Nessesentido,ainvestigação
9
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A exposição museológica e o conhecimento histórico. p. 18.
10
AlémdeCury(CURY,MaríliaXavier.Osusosqueopúblicofazdomuseu:a(re)significaçãodaculturamaterialedomuseu.p.93),osseguintesautores
fazembonspanoramassobreosestudosdepúbliconoBrasil,maiscomunsentreosmuseusditoscientíficos:Cazelli etal.(Cf.CAZELLI,Sibele;MARAN-
DINO,Martha;STUDART,DeniseCoelho.EducaçãoeComunicaçãoemMuseusdeCiência:aspectoshistóricos,pesquisaeprática.)eStudartetal.(Cf.
STUDART, Denise Coelho; ALMEIDA, Adriana Mortara;VALENTE, Maria Esther. Pesquisa de público em museus: desenvolvimento e perspectivas.).
11
McManus(Cf.McMANUS,PauletteM.Investigationofexhibitionteambehaviorsandtheinfluencesonthem:towardsensuringthatplannedinter-
pretations come to fruition. p. 182-189) ressaltou a necessidade de pesquisas sobre o processo de concepção de exposições, que tem recebido bem
menos atenção que as pesquisas de público. A abordagem feita aqui vai além da proposição feita pela autora, pois tem como fim entender como a
sobre a dinâmica da concepção de exposições, sobretudo a maneira como são negociados ou escolhidos os
temas e as abordagens, permite avaliar até que ponto a política curatorial de um museu é pensada de maneira
abrangente; incorpora a história e a função social dos museus entre suas preocupações manifestas; leva em
consideração o potencial do acervo como canal de comunicação entre a instituição e a sociedade; é com-
prometida com a reflexão crítica, com a transformação e a inclusão social (conceitos pouco claros, mas na
agenda dos museus atuais); e, no limite dessa análise, mantém-se aberta para demandas sociais, em um pro-
cesso de (re)construção permanente e (re)definição de prioridades.

NoBrasil,osestudossobreaconcepçãodeexposiçõesseresumemaalgumaspoucasexperiências.Porexemplo,
Marandino12analisouaconstruçãododiscursoexpositivoemmuseusdeciências,entendidocomooconjunto
de elementos (objetos, textos, vitrines, imagens, iluminação, modelos, réplicas, etc.) articulados em um deter-

31 | A exposição como processo comunicativo na política curatorial


minadoespaço,repletosdesignificadoseportadoresdeumaintenção.Segundoaautora,noprocessodecons-
trução desse discurso, saberes de diferentes naturezas (senso comum, científico, museológico, comunicação,
educação e outros) confrontam-se e são transpostos em uma síntese museográfica. O saber científico, geral-
menteosaberdereferênciaemmuseusdessegênero,érecontextualizadoetransformadoporoutrossaberese
também pelas disputas no interior do museu e pelas especificidades de tempo, de espaço e do acervo.

Com um recorte mais específico, Marandino13 analisou a produção de textos para exposições em museus de
ciências, abordando questões como linguagem, formato, extensão e articulação com imagens. Os resultados
apontamparaanecessidadedeaperfeiçoamentonaproduçãodostextos,quedevemlevaremconsideraçãoo
público alvo, a relação que mantêm com os objetos e a linguagem própria das exposições, isso é, a articulação
de diferentes elementos presentes no espaço expositivo. Ao final, a autora avança em direção a um ponto
essencial para este trabalho, embora não o desenvolva: a filiação dos textos às propostas conceituais que
fundamentam as exposições, sejam concepções científicas, museológicas ou educacionais. E, mais ainda, sua
associação com“um marco referencial político-institucional, o qual estabelece as diretrizes para as escolhas
realizadas no processo de concepção das exposições”(Marandino, 2002, p. 201). Ao que parece, nenhum dos
cinco museus visitados havia concebido suas exposições com essa perspectiva.

Outrapesquisa, também coordenada por Martha Marandino, foi realizada no Museu de Astronomia e Ciências
Afins (MAST). Ali foram analisados os processos de transposição museográfica de duas exposições, “Ciclos
Astronômicos e a Vida na Terra” e “Estações do Ano: a Terra em Movimento”, ou seja, como conceitos cientí-
ficos foram transformados em recursos museográficos e como esses mesmos recursos foram percebidos pelo
público (Marandino et al., 2003). Segundo Davallon (1999), autor utilizado como referência, trata-se de um
processoqueocorreemtrêsetapas,seguindooperaçõeslógicasdiferenciadas:osobjetivosquefundamentam
a exposição e a formulação do saber de referência (lógica do discurso), a concepção e realização da exposição
(lógica do espaço) e a interação do público com a mostra (lógica do gesto). Nesse processo podem ocorrer mu-

política curatorial interfere - interage - na comunicação museológica, e não apenas como tornar essa comunicação mais eficiente.
12
MARANDINO,Martha.Oconhecimentobiológicoemexposiçõesdemuseusdeciências:análisedoprocessodeproduçãododiscursoexpositivo.São
Paulo: Faculdade de Educação/USP, 2001. Tese de Doutorado.
13
MARANDINO, Martha. A biologia nos museus de ciências: a questão dos textos em bioexposições. p. 187-202.
danças de planos, conflitos e até mesmo desvios, como, por exemplo, o que se deseja mostrar e o que efetiva-
mentesemostra,ouoqueaexposiçãopossibilitacomointerpretaçãoeoqueopúblicoefetivamentereconhece
(ou não) como intenção. No caso da primeira exposição do MAST, a pesquisa detectou uma falta de sintonia
entre a primeira etapa e a segunda, levando os visitantes a construírem uma narrativa fragmentada, distante
dapretendidapelosidealizadores.Nasegundaexposição,oprocessodetransposiçãofoimaisbemsucedido,o
que foi confirmado pelas entrevistas realizadas junto ao público.
32 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Apesar de bem conduzida, a pesquisa não explorou o ponto central em discussão nesse trabalho, diretamente
relacionado à primeira etapa, que pode ser resumido em uma pergunta feita de diferentes maneiras: qual a
relação entre os temas abordados e os objetivos do museu, ou por que os temas foram escolhidos pelo mu-
seu ou, ainda, que tipo de valor, leitura ou visão de mundo o museu quer afirmar, apresentando explicações
científicasparafenômenosnaturais,perceptíveispelosensocomum?Essanãoéumaquestãosimples,pois,do
contrário, as mostras poderiam prescindir do museu e serem montadas em um shopping center, sem grandes
prejuízos para as expectativas dos idealizadores. O que fez, portanto, aquelas exposições serem consideradas
importantes para aquele museu? As razões certamente existem e podem até ser deduzidas pelos leitores, mas
foram manifestadas nas exposições e ficaram claras para o público?

Infelizmente, por diversos motivos, os museus brasileiros não incentivam esse tipo de pesquisa. Não há da-
dos disponíveis, portanto, para comparações e análises. Mas, pela experiência inovadora do MAST14, pode-se
argumentar em favor do ponto em discussão nesse trabalho, de que a escolha de temas e abordagens nas
exposições (o discurso) deve remeter, em primeiro lugar, para uma política institucional que dê sentido à
comunicação museológica ou, melhor dizendo, que a insira em um processo curatorial capaz de lhe atribuir
valor moral e político. Para isso, os museus devem ter claramente estabelecidos os seus princípios e os seus
objetivos, a partir dos quais a instituição pode planejar suas ações.

público e recepção

Os estudos sistemáticos sobre a relação entre museus e públicos, no Brasil, são relativamente recentes, tendo
iniciado há pouco mais de 15 anos. A produção científica é esparsa, não há periódicos especializados e nem
eventos acadêmicos regulares, o número de profissionais envolvidos é pequeno, são poucas as instituições ca-
pacitadas para desenvolvê-los e os estudos de caso são restritos a alguns museus, centros de ciências e centros
culturais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Ainda não há nada parecido, no país, com amostragens nacionais ou
comestatísticasgerais(econfiáveis)sobreopúblicovisitantedosmuseus,oquelimita,sobremaneira,qualquer
análise sobre o assunto, por falta de parâmetros, séries históricas e índices de referência.

14
Amesmapesquisafoidivulgadaemoutroartigo(Cf.Cazellietal.Comunicaçãoeeducação:exemplosdessaarticulaçãonoMuseudeAstronomiae
CiênciasAfins.),mascomumacaracterizaçãodoMASTenquantomuseudeciênciasecomumaanálisedaculturacientíficanasociedadecontempo-
rânea, dando ao estudo maior amplitude e densidade.
Contudo,ocampoestáemampliação,sobretudopelaqualificaçãodepesquisadoresemcursosdepós-gradua-
ção. Este é um aspecto particularmente relevante, pois é possível observar a fertilização do tema por distintas
disciplinas, como Educação, Comunicação Social, Ciências da Informação, Psicologia e Ciências Sociais15. Na
ausênciadeumarededeformaçãodepesquisadoresemMuseologia,osinteressadosbuscamdisciplinasafins
para,nainterseçãocomosassuntosmuseais,desenvolveremsuasinvestigações.Nessesentido,asabordagens
variam, estando algumas bem desenvolvidas no campo e outras ainda promissoras. As diversas pesquisas que
têm sido publicadas mostram que, por mais que o campo sofra um ajuste em um futuro próximo, o marco
conceitual e os métodos de pesquisa não serão (nunca?) uniformes.

Essa característica dos estudos de público não é, em si mesma, negativa ou prejudicial à consolidação do
campo. O problema aparece na falta de parâmetros para análise e formulação de recomendações, o que

33| A exposição como processo comunicativo na política curatorial


limita a própria avaliação e remete os pesquisadores para a literatura estrangeira, nem sempre compatível
com o contexto brasileiro e regional. Outro problema – central para este trabalho – é o fato de alguns estudos,
independentemente de sua filiação teórica, colocarem em cena o público fazendo o museu e a exposição desa-
parecerem.Nessescasos,sãorelatadosoperfilsocioeconômicodopúblico,ocomportamentodosvisitantes,suas
motivações, seus conhecimentos edesejos,sem,aomenos,serdescritooqueestásendoavaliadoeesclarecido
quaisoslimitesdeinterpretaçõespossíveis.Aexposiçãoqueestabeleceaprioriesseslimitesficaobscurecidanas
suas intenções e nos elementos que mobilizam o público.

Estudos com essa característica pouco têm a contribuir para o aperfeiçoamento de uma política curatorial. Para
tanto, seria necessário não omitir das análises o efetivo, o real, o constituinte papel dos museus de propor um
sentido, de interpretar – e como o público reage a essa provocação16. Uma avaliação deve considerar a interação
discursiva entre a exposição e o público, e não apenas o que o público tem a dizer sobre o museu (seja o que
for, o resultado já estará condicionado pelo ambiente onde ele se encontra). Isso não significa dar aos museus o
controleoumonopóliodosentido,esimreconhecerseupapelnoprocessocomunicacional.Osmuseusnãodevem
ser desqualificados enquanto instituições legitimadas pela sociedade para dizer algo sobre o universo material.
Pelocontrário,devemserinstados,cobrados,paraquemanifestemclaramente,emseusprogramaseducativose
exposições,oquedefendemoucomoseposicionamfrenteaquestõescomopoderedominação.ComodizMene-
ses,“umaexposiçãonãoseráautoritária,automaticamente,pelanaturezadequemaproduz,maspelatutelaque
pretenda exercer sobre o sentido produzido (em produção)”17.

Esse é um dos desafios das pesquisas de público em museus, em geral, e de recepção de exposições, em par-
ticular. Incorporar, nos seus métodos, estruturas conceituais e ferramentas que permitam, a um só tempo,

Cf. CURY, Marília Xavier. Os usos que o público faz do museu: Op. cit.
15

16
Cabelembrarqueopróprioconceitode“público”comocategoriauniversalizadaestásendodesconstruídoerepensadoemoutrosníveis,
a partir das estratégias que os museus utilizam para criar seu próprio público, da historicização do conceito e da diferenciação cultural e
sociológica dos distintos públicos aos quais os museus servem (Sobre o tema, cf, APPADURAI, Arjun; BRECKENRIDGE, Carol A. Museus são
bons para pensar: o patrimônio em cena na Índia. p. 12).
17
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A exposição museológica... Op. cit. p. 67.
inferir qualitativamente o discurso expositivo (que pode abranger não apenas a exposição, mas outras formas
de comunicação museológica) e medir, registrar, avaliar a efetividade desse discurso junto ao público (ou a
reação do público ao discurso, incluindo a construção de outros discursos). É nessa interseção que a política
curatorial de um museu pode ser atualizada, com base em pesquisas que forneçam dados sobre como ocorre
a produção de sentido em todo o processo curatorial, da seleção do acervo à interação do público com ele, in-
termediada pela exposição. A partir deste ponto seria possível promover ajustes para que o processo funcione
34 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

defato,(re)definirprioridadessobretemaseabordagenseentendermelhorcomorepercutemnasexposições
e no gesto do público as ações realizadas ao longo do processo.

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o museu como processo
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The ordinary moment
Holds extraordinary phenomena.
The future becomes past.
(The Temporary Museum of Permanent Change)

Falardemuseucomoprocessoleva-nosapensarqueprocessosseencontramenvolvidosnarealidadedosmuseus.
Umabreveconsultaàsfontesdisponíveisrevelaasmúltiplasdimensõesprocessuaisdagestãomuseológica,desig-
nadasapartirdasfunçõesbásicasdocuidadocommuseusinstituídos:processocriativo;processolegal;processo
documental;processodepesquisa;processodeconservação;processodecriaçãoedesenvolvimentodeexposições;
processoeducativo;processodeagregaçãocomunitária;processoderealocaçãodereferências–eassimpodería-
mosseguirlongamente,explicitandoasmuitasedetalhadasfacesdouniversocuratorial.Emsuaquasetotalidade,
osautoresquepretendemtratardomuseucomoprocesso1referem-seessencialmenteaosprocedimentosestraté-
gicosqueviabilizameotimizamagestãodopatrimôniomusealizado,permitindoumavisãoparticulardosmuseus
como‘objetosdereflexão,contemplaçãoediscussão’2evalorizandoos‘processosdere-presentação,socialização,
institucionalização e comoditização’3 neles desenvolvidos.

37 | O Museu como processo


Todos esses processos tratam de fazeres fundamentais à constituição de um certo tipo de museu e garantem
sua existência e estabilidade como agências culturais, instrumentalizando o trato das referências patrimo-
niais, musealizáveis ou já musealizadas. Ou seja, os processos existem para‘dinamizar’o museu – que, sem
eles, permaneceria inalterado pelo tempo, como um‘depósito de objetos’ou como espaço sagrado de con-
templação, de significado hermético para o grande público. E, quando o museu ainda não existe, é preciso
criá-lo, para permitir que tais processos, apropriadamente articulados, garantam a permanência no tempo
de referências tangíveis ou intangíveis de memória.

A menção a tais processos fundamenta-se numa idéia pré-concebida: a do museu enquanto realidade orga-
nizacional, enquanto todo instituído, espaço delimitado que abriga coleções e que se abre para um público
– experiência a que denominamos Museu Tradicional. Trata-se, assim, de iniciativas de estudo e adoção de
processos contemporâneos de gestão, que possibilitariam o desenvolvimento de padrões culturais, sociais e
estéticos cujo objetivo seria influenciar a percepção pública sobre determinados tipos de acervos, alterando
a forma como são percebidos a arte, a ciência e a técnica, e fazendo com que determinadas representações -
tais como o museu espetacular - sejam percebidas como paradigmas.

Alguns autores convidam a examinar criticamente, como processo, determinadas formas de museu - como
os museus de arte -, desconstruindo‘o que foi construído, desde a Renascença, como símbolo da sociedade
1
Como exemplo, ver JEFFERS, Carol S. Museum as Process. Disponível em http://muse.jhu.edu/demo/the_journal_of_aesthetic_education/
v037/37.1jeffers.html. Consultado em 12 de abril de 2008.
2
BOLIN,Paul;MAYER,Melinda.Artmuseumsandschoolsaspartnersinlearning, NAEAAdvisory,Spring(Reston,Va.:NationalArtEducationAssocia-
tion, 1998), 1, apud JEFFERS, Carol S. Op. cit.
3
Ibidem.
ocidental’4. Isso seria possível analisando-se o impacto desses museus sobre o seu publico, bem como a sua
representatividade e significação enquanto agências culturais. E também lançando um olhar crítico sobre o
contextohistóricoemqueseoriginaramedesenvolveramessesmuseus,bemcomosobreopapelqueexercem
ainda hoje, como símbolos de valores permanentes da cultura universal – representatividade que resulta de
uma tradição de educação sobre e para museus, desenvolvida pela cultura ocidental a partir do final do século
18, e que vem criando padrões e códigos definidores do que é relevante no ‘universo dos museus’.
38 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Não é mais possível pensar assim o museu. Ou melhor, não é mais possível pensá-lo apenas assim. E nem tratar
dos processos curatoriais – todos absolutamente legítimos e necessários, em determinadas realidades – sem,
entretanto, definir que idéia de museu lhes serve de fundamento. Pois o que move os museus no tempo e
lhes assegura a existência está muito além da presença de acervos, da excelência técnica ou do interesse dos
públicos: está na sua própria essência enquanto representação simbólica, e na sua intrínseca – e constante –
capacidade de transformação.

Museucomofenômeno: é assim que a teoria museológica vem tratando de estudar essa poderosa representa-
ção, que tem sua origem no universo simbólico de grupos sociais que serviram de matriz ao que se denominou
‘pensamentoocidental’.5EéassimqueprecisamoscompreenderoMuseu,sedesejamosverdadeiramentevê-lo
como processo.

museu: conhecer pela origem

Umadasmaisfascinantesrepresentaçõesdasociedadehumana,oMuseufoitradicionalmentecompreendido,
nasociedadedita‘ocidental’,comoinstituiçãopermanente-dedicadaaoestudo,conservação,documentaçãoe
exibiçãodeevidenciasmateriaisdohomemedoseuambiente.EssapercepçãolimitadadoMuseu,comoespaço
físico de guarda de objetos, originou-se provavelmente no pensamento europeu do século 16 e prolongou-se
na literatura ocidental, a partir da ênfase dada à atividade colecionista pela sociedade do Renascimento – uma
sociedade afluente, fundada no trabalho e na produção, circulação e acumulação de bens materiais. Parece
ter sido esse também o momento em que se passou a vincular a origem do Museu à palavra grega Mouseion,
ou“templo das musas”, freqüentemente confundido com o local (em Delfos) onde as musas falavam, pela voz
das pitonisas; ou com o Mouseion de Alexandria, primeiro centro cultural conhecido do ocidente, fundado no
século 3 a.C., para glória do mundo helenístico.

PensaraorigemdoMuseunotemplodasmusasimplicaria,entretanto,emimaginarsuaexistênciairremediavel-
mente vinculada a um local específico (templo) onde se guarda o sagrado (musas) – provável origem da idéia de

4
Eileen Hooper-Greenhill and Flora Kaplan, Museum meanings NewYork: Rutledge, 1997, resenha por George Hein, Learning in the Museum (New
York: Rutledge, 1998). Apud. JEFFERS, Carol S. Museum as process... Op. cit.
5
UsaremosaquiotermoMuseu,commaiúscula,paradiferenciarofenômenodequalquerumadesuasmanifestações,ouseja,demuseusespecíficos.
museucomoespaçosacralizadodeguardadamemória.Eremeteaumaculturagregajádetentoradeumsistema
filosóficodesenvolvido,ondepredominaarazãoeomundoépercebidosob“relaçõesdesimetria,deequilíbrio,
deigualdadeentreosdiversoselementosquecompõemocosmos”6.Nessacultura,osdiferentesplanosdoReal,
rigorosamente delimitados, afastam o mito e tendem a medir, pelo discurso, as diversas relações entre a lógica
do saber teórico e uma “lógica do verossímil ou do provável”7, fundamentada na experiência prática8.

Baseado nesse modo de pensar configura-se um modelo de Museu que denominaremos MuseuTradicional
- e cuja unidade conceitual é o objeto, fundamento de sua existência e instrumento primordial do trabalho
que sobre ele se desenvolve. É sobre o objeto que o museu tradicional constrói sua teoria: sem objeto não há
coleção, e, portanto, não há museu. Mas a natureza mesma desse trabalho é fragmentária porque, na maioria
dos casos, o museu retira do mundo esses objetos, remetendo-os a uma situação ou contexto artificial, onde a
realidade precisa ser“reinventada”. Lembremos aqui que o termo‘objeto’se aplica, no âmbito do museu tradi-
cional, tanto aos objetos fabricados como aos espécimes naturais ou fragmentos de natureza tratados como
exemplares‘colecionáveis’,porconstituirexemplosdeinteressecientíficooumeracurio-sidade.Osurgimento
dos museus exploratórios, nos anos 1950, amplia essas relações, ao alargar o conceito de objeto para incluir
osmodelosexperimentaisdefenômenoscientíficoscomoelementosconstituintesdosacervos–legitimando,

39 | O Museu como processo


dessaforma, a experimentação como essência do conhecimento científico, bem como o caráter relacional dos
processos pedagógicos.

O advento dos parques nacionais e dos museus a céu aberto9, na segunda metade do século 19, já havia permi-
tidopensaroMuseuparaalémdosespaçosconstruídosedosconjuntosdeobjetos,desvelandoapossibilidade
da sua existência sob a forma de áreas naturais10. Museus em áreas naturais multiplicam-se e pluralizam-se

6
Vernant, J. P. As origens do pensamento grego. Trad. de Isis Borges B. da Fonseca. RJ, Bertrand Brasil, 9ª ed. 1996. p. 6
7
Idem., p. 26
8
Admitir a origem do Museu no templo das musas significa percebê-lo essencialmente como experiência oracular, cuja função é a de ser agente da
Verdade: assim como as pitonisas, ele poderia recontar o passado, narrar o presente e prever, pela palavra, os acontecimentos. Como espaço físico,
estaria irremediavelmente vinculado à idéia de preservação: um templo é um relicário, um local de guarda das coisas sagradas, acessível apenas a
poucos; é solene, é o espaço do ritual - um espaço de reprodução, devotado muito mais à permanência do que à criação. Não é possível imaginar a
dessacralização do templo: sua própria existência se justifica pela mística do ritual. O templo é local de reverência, de ocultação do novo, de repeti-
ção do já experimentado. Aberto ao público, o templo é também umespaço impessoal, onde os“sacra”- objetos sagrados, símbolos religiosos – cuja
função primordial é a de serem vistos, transformam-se em espetáculo. Não há espaço para as Musas num lugar assim. A esse respeito, ver SCHEI-
NER,Tereza C. Apolo e Dioniso noTemplo das Musas. Museu: gênese, idéia e representações nos sistemas de pensamento da sociedade ocidental.
Dissertação de Mestrado. ECO/UFRJ, 1997. Cap. 01.
9
É com os museus a céu aberto que se faz a relação direta entre a cultura do homem do campo e a experiência patrimonial. Esses museus
desenvolvem-se a partir de reconstituições clássicas do séc. 18, tais como a‘bergerie’de Maria Antonieta, em Versailles, ou o museu de esculturas
deAlexandreLenoir,noElysée–ondehojeseencontraaescolanacionaldebelasartesdeParis.Sãocriadosprincipalmentenospaísesescandinavos,
a partir das experiências de Bygdoy, Noruega; de Arthur Hazelius - o Nordiskafolk Museum (1872) e Skansen (1891); do museu de Sorlgenfrï, em
Copenhague (1897 - hoje parte do Museu Nacional da Dinamarca); do Museu Norueguês de Arte Popular em Oslo (1902) e do museu Sandvig, em
Lillehamer(1904),ambosnaNoruega;oudomuseudeFölis,Finlândia(1908).Em1909aexperiênciadosmuseusacéuabertoestende-seaohomem
urbano, com a criação, em Jutland, Dinamarca, do Aarhus - primeiro museu a céu aberto com casas urbanas. Ver MAURE, Marc. Nation, paysan et
musée: La naissance des musées d’ethnographie danslespaysscandinaves(1870-1904).Disponívelemhttp://terrain.revues.org/document3065.
html#tocto2. Consultado em 15 de abril de 2008; tb. SCHEINER, Teresa. Apolo e Dioniso no Templo... Op.cit. cap. 3.
10
Museus em áreas naturais já existiam há alguns séculos: lembremos do Jardin des Plantes, criado em Paris por Guy de la Brosse, em 1626 e dos
parques renascentistas europeus. Mas é no século 19 que tais áreas são finalmente consideradas‘museus’. Nesse sentido, ver DAVALLON, Jena;
Grandmont, Gerald; Schielle, Bernard. L’environnement entre au Musée. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1992 (Collection Muséologies).
na primeira metade do século 20, assumindo diferentes formas e características11; mas é apenas na década de
60 do século 20 que, em conseqüência da evolução dos paradigmas científicos e da revalorização das teorias
‘holistas’, configura-se outro modelo de Museu: o Museu Integral – espaço ou território musealizado, no qual
sociedade,memóriaeproduçãoculturalformamumtodoindissolúvel.Nessemodeloabaseconceitualnãoéo
objeto,masoterritóriodoHomem,comsuascaracterísticasgeográficas,ambientaisedeocupaçãoeprodução
cultural. A idéia de objeto é superada pela idéia de patrimônio: trata-se aqui da apropriação simbólica de um
40 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

conjuntodeevidênciasnaturaisedeprodutosdofazerhumano,definidoresouvalorizadoresdaidentidadede
determinados grupos sociais.

Tais relações podem ser melhor compreendidas no âmbito de uma visão holística de mundo, segundo a qual
o universo é compreendido como um sistema relativo, do qual o humano não constitui o centro, mas mero
elemento. Sob esse paradigma, percebe-se que o Museu não trata apenas do humano e de sua produção, mas
da natureza em sua totalidade: aquilo que poderíamos denominar o patrimônio integral da humanidade.

Mas, se o museu integral constitui um avanço sobre a teoria do museu tradicional, ainda assim vincula-se à
presença de um espaço físico (ou território), deixando de lado outras dimensões do Museu, que só mais adi-
ante poderiam ser percebidas.

Pensar o Museu implicaria, portanto, em rever a própria gênese do conceito, pensar o seu início a partir de ou-
tras possibilidades que não a do templo das Musas, imaginar outras trajetórias que não aquela que deriva no
museu-instituição. E para isso é preciso conhecer algumas relações do Museu com o mito - pois por meio do
mito que ele surge, e é também pela fala mítica da sociedade burguesa que legitima um estatuto hegemônico
que vem tornando muito difícil que se lhe vejam as outras faces.

É a partir dessas percepções que se desenvolve a Museologia. Inicialmente compreendida como o conjunto
de metodologias e técnicas relativas aos museus como espaço físico, na sua forma institucionalizada, a Mu-
seologia vem ganhando forma e força, a partir dos anos 1970, como a área do conhecimento que identifica
e analisa a idéia de Museu em suas diferentes representações. Com o objetivo maior de constituir-se como
ciência, ou disciplina científica, a Museologia só se justifica como área do conhecimento na medida em que se
afasta da idéia e da imagem do museu-espaço-de-objetos, para entender o Museu para além de seus limites
físicos e o patrimônio nas suas dimensões material e não material. Esse é o movimento que nos permitirá
perceber a existência de outras manifestações do Museu, só possíveis de apreender quando se trabalha com
determinados paradigmas: a relatividade e o inconsciente (Museu Interior); as novas tecnologias (MuseuVir-
tual, Museu Global). E compreender, finalmente, que a origem do Museu não pode estar na Grécia clássica e
nem no templo.

Museus a céu aberto. Parques naturais musealizados – parques de caça, parques nacionais, monumentos naturais. Heimattmuseen (Museus de
11

história local) E finalmente, a partir dos anos 1960, os ecomuseus.


pensando a gênese do museu

Umdos caminhos possíveis para investigar a gênese do Museu é pensá-lo não como produto, mas como idéia –
ou como processo. Suponhamos, então, que a idéia de Museu tenha estado, desde a sua origem, relacionada à
idéiadeumespaçoperceptual,deumtempodepresentificaçãodasmusas;umtempoderevelação,decriação,
de celebração do humano sobre a natureza, a sua própria cultura e o universo. A origem do Museu seria, assim,
nãootemplo,masasprópriasmusas-umaorigemmítica,essencialmenteligadaaopensamentotradicionalde
uma Hélade arcaica, habitada por culturas ágrafas, e cujas matrizes culturais se articulavam na interface entre
pequenosagricultoresesociedadesguerreiras.UmaGrécialigadaaumpassadomicênicoecujavisãodemundo
ainda não tendia a opor os diferentes planos do real: passado e presente, vida e morte, homens e deuses; e onde
as antigas cosmogonias ainda não haviam cedido lugar às ‘sophias’: a Grécia anterior ao séc. 8 a.C.12

Lembremos que, nas sociedades arcaicas, o mito é dado como real, e que toda configuração cosmogônica
é de caráter mítico. E que as musas são as responsáveis, no panteão grego, pela manutenção da identidade
do seu próprio universo. Elas não são deusas, são as palavras cantadas - expressão criativa da memória via
tradição oral, trazidas á luz da consciência pela ação dos poetas, para tornar presentes os fatos passados e

41 | O Museu como processo


futuros, reinstaurando o tempo e o mundo a partir de sua origem13. Filhas de Zeus (criador do tempo) e de
Mnemòsyne (memória) revelam continuamente o que são e como se criaram todas as coisas, trazendo à luz
da presença o que se ocultava na noite do esquecimento (o não-ser), “no exercício mesmo de manter o ser
das moradas em que cantam”.14 É importante observar aqui que ter, em grego, significa também manter: e se
as musas cantam o espaço Olímpio, elas simultaneamente o mantêm (trazem) presente na memória.15 Não se
trata, portanto, de um território – mas de um espaço simbólico, presentificado pela palavra: as musas não têm
nenhum espaço que não seja o seu próprio espaço (abstrato) de manifestação. Nessa perspectiva, o nome das
Musasétambémoseupróprioser:elasexistemquandonomeadaseprecisamsernomeadasparaquepossam,
com o seu canto, recriar o mundo. E o fazem em processo contínuo e com a atualidade de um viver contínuo,
pois a memória não tem começo nem fim, e nem implica em cronologia: ela é a experiência, apreendida e
presentificada. Sem memória há o esquecimento, que equivale à morte (o não-ser).

Seria, então, equivocado julgarmos que a idéia de Museu se tenha originado a partir de um espaço físico especí-
fico onde habitassem as musas, um espaço possuído pelas musas ou a elas dedicado, e onde se manifestassem:

O que poderia ser o ‘templo das Musas’, senão o espaço intelectual possível de presentificação das idéias,
de manifestação da memória? Não seria o Mouseion (templo das Musas) uma interpretação equivocada do
12
Cf. SCHEINER, Tereza C. Apolo e Dioniso no Templo... Op. cit., cap. 1: tb. SCHEINER, Tereza C. As bases ontológicas do Museu e da Muse-
ologia.In:Museologia,FilosofiaeIdentidadenAméricaLatinayelCaribe/Museologia,FilosofiaeIdentidadenaAméricaLatinaeCaribe.VIII
ICOFOM LAM. Rio de Janeiro: Tacnet Cultural, 2000. CD. p. 138-183.
13
Cf.HESÍODO.Teogonia:Aorigemdosdeuses.Estudoetrad.JaasTorrano.RiodeJaneiro:Iluminuras,1991(BibliotecaPólen).Hesíodofoium
poeta arcaico, um dos que compuseram Teogonia para os gregos, dando nome aos deuses e identificando suas características.
14
Idem. p. 83-87.
15
Este seria um movimento similar ao do verbo inglês to be – que significa igualmente “ser” e ”estar”.
termo Mousàon ou Mousaion (pelas Musas) - das Musas como o veículo de expressão da criação mítica e da
concepção de mundo do homem grego? Se o Museu não é o espaço físico das musas, mas antes o espaço de
presentificação das idéias, de recriação do mundo por meio da memória, ele pode existir em todos os lugares
e em todos os tempos: ele existirá onde o Homem estiver e na medida em que assim for nomeado - espaço in-
telectualdemanifestaçãodamemóriadoHomem,dasuacapacidadedecriação.Ecomoopensamentogrego
estabelece, de uma ou de outra forma, o Homem como a medida de todas as coisas, o espaço primordial de
42 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

manifestação das Musas seria então o próprio corpo do Homem - este sim, o verdadeiro templo das Musas,
através do qual elas se manifestam pela palavra, pelo canto e pelos mitos de origem.16

Eis aí a essência mesma do Museu: a criatividade, a espontaneidade, a tradição oral. A origem do Museu não
está, portanto, sujeita a um lugar específico, nem a um conjunto específico de referências: ele é fato dinâmico,
eternamenteaconjugarmemória,tempoepoder,recriando-secontinuamentepara‘seduziroouvintepelasua
voz’. Podemos, então, percebê-lo como fenômeno, como algo que se dá em processo, essencialmente vincu-
lado à dinâmica dos processos culturais. E compreender que, como fenômeno, se manifesta e faz presente na
experiência humana de diferentes maneiras: o Museu se dá em pluralidade.

museologia e museu

Museué,pois,umnomegenéricoquesedáaumconjuntodemanifestaçõessimbólicasdasociedadehumana,
em diferentes tempos e espaços. As diferentes formas de Museu nada mais são do que representações (ou ex-
pressões)dessefenômeno,emdiferentestemposeespaços,deacordocomascaracterísticas,osvaloresevisões
demundodediferentesgrupossociais.EaMuseologianãotemcomoobjetodeestudoosmuseus,ouainstitui-
ção museu,mas sim a idéia de Museu desenvolvida em cada sociedade, em cada momento de sua história. Esse
movimentotorna-sepossívelpormeiodainvestigaçãodosdiferentesmodoseformaspelosquaisasociedade
humanapercebe o Real – traduzidos pela relação que se estabelece, em cada momento, entre indivíduo, socie-
dade e toda parcela do Real apreendida sob a forma de realidade, por um determinado grupo social.

Sociedades diferentes possuem diferentes visões de mundo – e a idéia de Museu é uma das muitas represen-
taçõessimbólicasdesenvolvidasporgrupossociaisespecíficos,emmomentosdeterminadosdesuatrajetória
no tempo. Podemos dizer, então, que a idéia de Museu desenvolvida em cada sociedade se fundamenta nas
relações que se estabelecem entre o humano e o meio natural, a cada momento de sua trajetória no plan-
eta – e que se traduz por meio de diferentes códigos e valores, específicos da cultura de cada grupo social. A
relação entre Homem, cultura e meio ambiente, em cada época, em cada lugar, é o que efetivamente constitui
o fundamento da idéia de Museu.
16
SCHEINER,Teresa C. Apolo e Dioniso noTemplo... Op. cit. Na mesma obra, na página 21, rodapé, verifica-se ainda o seguinte comentário:
“A origem do termo Museu poderia ainda ser Musaios, musico e poeta, filho de Selene e mestre de Orfeu, de qualquer modo associado à
atividade criativa do canto - talvez ele mesmo uma das muitas interpretações das musas na Grécia arcaica” [nota da Autora].
Este é o Museu que desejamos estudar: o museu fenômeno, o museu processo, o museu que independe de
um espaço e de um tempo específicos, mas que se revela de modos e formas muito definidas como espelho
e símbolo de diferentes categorias de representação social. Compreender que Museu (fenômeno) não é o
mesmo do que um museu (expressão limitada do fenômeno) permite-nos aceitar que ele assuma diferentes
formas; permite-nos, ainda, prestar atenção às diferentes idéias de Museu, presentes no universo simbólico
dos diferentes grupos sociais.

Apaixonado,contraditório,empermanenteprocesso,oMuseucelebraaaventuradavidaevalorizaopatrimônio
material e imaterial, definidor de identidade dos diferentes grupos humanos. A partir do reconhecimento das
referências patrimoniais que as identificam, as sociedades criam museus. E como se articulam de distintas
maneiras, no tempo e no espaço, criam e desenvolvem diferentes formas de Museu: o museu tradicional,
em suas várias representações (museu ortodoxo, museu exploratório, museu de vizinhança, jardim botânico,
zoológico, aquário, planetário); o museu de território – sob a forma do museu a céu aberto, do parque nacio-
nal, da cidade-monumento, do ecomuseu; o museu virtual - que só existe na tela do computador; o museu
global – memória da biosfera.

43 | O Museu como processo


Conhecer a trajetória do Museu no quadro simbólico das diferentes sociedades e compreender a sua relevân-
cia para a sociedade atual são tarefas da Museologia – o campo disciplinar que estuda o fenômeno Museu
e suas relações com o Real, no âmbito dos sistemas de pensamento. A percepção do Museu como fenômeno
ou manifestação cultural, capaz de assumir diferentes formas e apresentar-se de diferentes maneiras, de
acordo com os sistemas de valores priorizados em cada sociedade, configura bases de análise específicas da
Museologia – jamais, antes, abordadas por outros campos do conhecimento. Entre os fundamentos teóricos
da disciplina museológica, estariam:
• o reconhecimento do caráter plural do Museu (ele se faz representar sob diferentes formas, muitas das
quais coexistem no tempo e no espaço);
• a percepção de que ele é processo, e não produto cultural (e portanto, está em contínua mutação, dá-se
no instante, e se define na relação);
• Acompreensão de sua essencial liberdade (qualquer espaço, fato, fenômeno ou objeto é, potencialmente,
museu - se, quando e enquanto assim for nomeado; 17
• O estudo dos processos intrínsecos relacionados ao Museu - que têm como base o processo de musea-
lização, sobre o qual se constituem os processos curatoriais.

O estudo da trajetória do Museu como representação nos mostra que ele vem sendo entendido simultanea-
mente como: espaço físico ou geográfico (território, espaço aberto ou edificação), contendo registros mate-
riais (móveis ou imóveis) ou imateriais de patrimônio; espaço intelectual de criação e produção de cultura
(incluindo-se aqui os espaços imaginários, que configuram o que se poderia denominar o‘museu interior’); es-

17
VerSCHEINER,TeresaC.(coord.)-Interaçãomuseu-comunidadepelaEducaçãoAmbiental.RiodeJaneiro:TacnetCulturalLtda.,1991;___.
Repensando os Limites do Museu. Editorial. Boletim ICOFOM LAM, Ano III no. 6/7, dez. 92/abril 93, p. 1-2.
paçodeexploração, investigação e experimentação; espaço de preservação de registros da memória humana
e do planeta. Essas dimensões não são necessariamente consideradas ou trabalhadas em separado, podendo
articular-se das mais diversas formas, de acordo com cada representação do fenômeno. E levam-nos também
a verificar que a atividade‘museológica’pode desenvolver-se não apenas naqueles lugares tradicionalmente
reconhecidos como museus, mas também em qualquer espaço ou esfera simbólica onde o humano se haja
integrado à natureza, para produzir cultura.
44 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Nada no Museu é, portanto, absoluto – e nem poderia ser, à luz do conhecimento contemporâneo, que a
tudo relativiza.18 A negação de vínculos absolutos entre Museu e Museologia e a percepção de que podem
existir museus sem museologia – e museologia sem museus – permite explicar as diferenças de qualidade de
inúmerasinstituiçõesdenominadas‘museus’,bemcomoaexistênciadeumavigorosaprodução‘museológica’
fora dos limites dos museus instituídos – por exemplo, nas universidades.

TrabalharoMuseunassuasdiversasmanifestaçõesajudaaindaapercebercomocertassociedadesconstroem
a sua auto-narrativa: como elas se colocam no mundo, como vêem o mundo, e qual é esse mundo que vêem.
O Museu seria, assim, espelho e síntese de um Real que se nos apresenta em multiplicidade: enquanto sub-
stância (domínio da filosofia), matéria (domínio da física) ou instância relacional (domínio da comunicação)
– aquilo que o conhecimento contemporâneo reconhece como o Real complexo. É importante fazer aqui uma
distinção conceitual entre real e realidade, lembrando que o termo Real, na filosofia, remete à percepção de
um todo unívoco e não separável, do qual se destaca a realidade“como local, atual, pontual, como a‘aparên-
cia’ do real, a versão do real no instante presente”19. E como tudo se transforma continuamente, “o sentido
não está, nem por um momento, nas coisas - está na relação.”20

Eis como deve ser percebido, hoje, o Museu: enquanto dobra (do Real), fenômeno, processo – livre, plural, em
permanente e continuada mutação. É esse o Museu em que acreditamos: o que se dá no instante, em todas as
suas formas, em todas as suas manifestações, também chamadas“museus”: a praça, a aldeia musealizada, a
cidade-monumento, o jardim botânico, o zoológico, o aquário, o parque nacional, o centro de ciência e técni-
ca, a galeria de arte contemporânea, o ecomuseu. E também o museu-tesouro, o templo, e o museu virtual - só
existente na tela do computador. E o museu-relicário, museu interior, síntese das nossas pequenas (e grandes)
experiências pessoais. O museu integral, a grande memória da biosfera. Cada dobra analógica ao modelo, mas
ainda assim única, enquanto individuação. Cada uma com seu próprio espaço, seu próprio ritmo, seu próprio
tempo... como o quadro de Deleuze,“que se torna belo aos nossos olhos‘quando se sente que o movimento,
que a linha que está emoldurada vem de fora, que ela não começa no limite da moldura’”21.

18
-___-OnMuseum,CommunitiesandtheRelativityofitAll.In:ICOM/ICOFOM.SymposiumMuseumandCommunityICOFOMStudySeries
no. 25, II. Stavanger, Norway: July 1995. p. 95-98
19
Martins, André. Esboço de uma filosofia ética. Dissertação de Mestrado. RJ: UFRJ/ECO, 1990. xerox. Introdução.
20
Ibid. In Op. Cit, p. 35-36.
21
Gilles Deleuze apud Hainard, Jacques; Kaher, Roland. Objets prétextes... Op. cit.p. 184
Falemos, então, aqui, de duas dimensões do Museu: o museu em potência e o museu manifesto. Potencial-
mente, o Museu pode existir em qualquer lugar - nos raros lugares do planeta apenas tocados pelo humano,
e onde os processos naturais encontram-se ainda quase totalmente preservados; ou mesmo nos múltiplos
universos, reais ou simbólicos, até onde pode ir a mente humana: do‘museu interior’, onde complexos proces-
sos da memória, da mente e dos sentidos configuram um‘patrimônio mental’muito específico, à biosfera, ao
universocosmológico;dosterritóriosgeográficosaouniversoditovirtual.Énesseincomensuráveluniversode
possibilidadesqueasdiferentesmanifestaçõesdoMuseuvêmserealizando,pelotempo:docantoditirâmbico
ao Mouseion de Alexandria; dos tesouros nos claustros e catedrais aos rituais pagãos de um medievo pleno de
contradições; do gabinete de curiosidades às feiras populares; das coleções reais ao museu da Revolução; do
museu tradicional aos museus de território; das coleções de arte contemporânea ao ecomuseu; dos parques
naturais musealizados ao museu virtual22 – cada expressão ou representação de Museu trazendo sempre a
marca de seu criador, e do tempo e lugar onde foi criada.

Museu Tradicional, Museu Integral, Museu Virtual, Metamuseu: espelho de muitas faces, cada uma delas in-
teragindo de formas específicas com o corpo social, numa relação de extrema complexidade. Este é o Museu
que se dá na relação: cada indivíduo ou grupo social o define para si mesmo - não sendo nenhuma forma de

45 | O Museu como processo


museu, em nenhuma circunstância, melhor do que a outra. À Museologia cabe atuar o Museu nas suas dife-
rentesmanifestações,tratandode compreenderemprofundidadequaisoscontextos,razõesepropósitosque
as fundamentam, e buscando identificar como algumas delas se realizam hoje na sociedade contemporânea.
Esse é um movimento importante para fortalecer o Museu como síntese das múltiplas realidades sociocul-
turais do passado e do presente; e como instância de legitimação e reconhecimento da diferença, da empatia
e da participação social. Difícil missão, impregnada de sutilezas éticas: museólogos, hoje, devem atuar como
mediadores entre as várias manifestações do Museu e a sociedade, usando os museus como agências de
formação e de transformação; devem elaborar um discurso que permita aos distintos grupos sociais maior
compreensão sobre seu lugar no mundo, seus direitos e suas responsabilidades para com o meio ambiente. E
também, quando necessário, utilizar a Museologia como instrumento contra a face perversa da globalização
– a favor da pluralidade cultural e social, das liberdades políticas e filosóficas e da paz. Mas essa é a prática
museológica apenas possível quando se percebe o Museu em processo, jamais como coisa dada - e quando se
admite o Museu em pluralidade.

museu como processo: desafios contemporâneos

AsmuitasdimensõesdoMuseuquesedelineiamhoje,comopresença,podemserfacilmenteapreendidaspelo
pensamento contemporâneo, que percebe a realidade de forma plural, ainda que submetida aos imperativos
do individualismo. E como hoje as coisas já não são vistas como dadas, mas sempre em processo, não é im-
possível imaginar o Museu em processo também. E um processo sobre o qual podemos ter interferência: pois
Cf. SCHEINER, Teresa C. Apolo e Dioniso no Templo... Op. cit.
22
já não mais queremos ser apenas o espelho do mundo, mas sim agentes de criação de um mundo que nos é
todo particular, e que seja o prolongamento de nossa própria experiência. Nesse novo ambiente perceptual,
ondejánãopensamosoacontecimentoemhistoricidade,ou numcontinuumpresente-futuro,masemtempo
real, é importante analisar o Museu não como algo que é, mas como algo que está sendo – movimento que
só é possível se mergulharmos no Museu como experiência. É importante também reconhecer a presença e
a influência avassaladoras das novas tecnologias – não como acessório técnico, mas como instância de pos-
46 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

sibilidades, como abertura para novas expressões e realizações do Museu, nos múltiplos universos paralelos
tornados possíveis pela realidade virtual.

Muito se escreve sobre o MuseuVirtual, como expressão mais contemporânea do fenômeno Museu ou sobre
as infinitas possibilidades de captura, codificação e interpretação de um ‘patrimônio digital’. Mas pouco se
investiga e se experimenta a potência do Museu em relação a esses universos paralelos, onde se abrem as
mais infinitas possibilidades de criação, desvelamento e entrecruzamento de experiências. E é exatamente aí
neste ambiente, onde se diluem as diferenças entre comunicação e conhecimento e onde o indivíduo perde
seus limites, imerso numa imensa malha de produção transindividual, que reside a potência maior do museu
contemporâneo: a de alternar mudança e permanência, de maneiras totalmente inusitadas.

Lembremos que hoje o pensamento é apreendido em processo e não produto, e também que o exercício do
poder, que na Modernidade vinculava-se à identidade, agora dá-se como informação. Como afirma Serres23,
somos todos mensageiros, habitamos espaços de comunicação, difíceis de representar pelos sistemas e códi-
gos tradicionais. Nesse ambiente sem território todos os lugares estão no mesmo lugar: centro e circunferên-
cia. É como se o mundo não existisse sem“esse tecido complexo de relações continuamente entremeadas”24,
onde as próprias coisas prolongam os lugares até o universo. Construímos simulacros para que pensem por
nós, para nós e através de nós.

ÉprecisoentãobuscarcompreendercomooMuseuestásendonesteambienteculturalquenoscircundaequais
osmovimentosqueoidentificam,comovozdacontemporaneidade.Descobriremos,semmuitadificuldade,que
oMuseusenosapresenta,hoje,fundamentalmente,comoinstânciaimagética:sejanavirtualidade,sejanoes-
petáculo.E,aindaqueaimagemnãopossajamaissubstituiroobjeto,oumesmoasexpressõesdevidaexistentes
numterritório,éinegávelaforçaquetemaimagéticaderetere,aomesmotempo,modificarosregistrosdoReal
(nãoapenasdo‘realexterior’,mastambémdasrepresentaçõesdonossomundointerior-nossouniversosimbóli-
co).Temosassimailusãodesermossenhoresdenossasprópriaslembranças,desermoscapazesdemanipulara
memória em sua totalidade, como produto e como processo. Que outra ilusão justificaria as infinitas experiên-
cias de captura do patrimônio em sucessivos bancos de dados25, ou a existência de projetos como a‘Memória

SERRES, Michel. Atlas. Lisboa: Inst. Piaget, s/d (Col. Epistemologia e Sociedade).
23

Idem. p. 132
24

Cf. SCHEINER, Tereza. Imagens do Não-lugar: Comunicação e os Novos Patrimônios.. Rio de Janeiro: ECO/UFRJ, 2004. cap. 3 (Tese de
25

Doutoramento).
do Mundo’26, estabelecida pela UNESCO para documentar, preservar e disseminar o patrimônio contido nos
arquivos e bibliotecas de todo o mundo (incluindo arquivos fonográficos, imagéticos e digitais), protegendo-
nos ‘da amnésia coletiva’?

Como as antigas musas, as novas expressões do Museu visam trazer à nossa presença aquilo que, sem elas,
seriaesquecimento;epretendemnãoapenaspresentificaromundonoMuseu,mastambémpresentificar,em
processo, o Museu no mundo. Os próprios museus tradicionais tornam-se espaços multifacéticos, incorpo-
rando as tecnologias digitais de modo a reinscrever-se no âmbito do ‘maravilhoso’.27

Presentificação e documentação por meio das tecnologias digitais... Mas seria isto a virtualidade? Não neces-
sariamente, pois o uso dos multimeios e das novas tecnologias em espaços musealizados em nada modifica o
fato de que esses museus serão, ainda assim, representações de modelos instituídos na moder-nidade...

Como já havíamos afirmado em trabalhos anteriores, Museu virtual é o que ganha corpo e forma na tela
do computador, e tanto pode ser resultado do trabalho de um só autor ou de uma colagem multiau-

47 | O Museu como processo


toral. O importante é perceber, aqui, uma nova forma de potência: a de permitir que cada indivíduo pos-
sa ter consigo a síntese do Museu desejado: não apenas a recriação virtual de um objeto ou coleção, mas
também a fachada de um museu, ou o percurso de uma exposição. “Desterritorializado, este é o museu
do não-lugar – e simultaneamente, de todos os lugares, pois entra em rede e alcança o mundo em tem-
po real”28. Ele é a antítese da cultura de massa, pois acessá-lo é um ato isolado, que depende dos tempos
e espaços perceptuais de cada indivíduo; mas permite uma forma inusitada de ligação: a do indivíduo com a
sua própria capacidade criativa. Permite, ainda, que se vivencie o museu como processo, facilitando a percep-
ção das demais expressões do fenômeno Museu.

Entre os exemplos possíveis nenhum parece ser mais adequado para exemplificar esse caráter processual
do que o MuseuTemporário da Mudança Permanente (TheTemporary Museum of Permanent Change),29 um
projeto participativo de base comunitária desenvolvido na cidade de Salt Lake City, Utah, Estados Unidos

26
UNESCO.MemoryoftheWorld.Disponívelemhttp://portal.unesco.org/ci/en/ev.php-URL_ID=1538&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html.
Em 16.04.2008.
27
Lembramos, aqui, que o advento do museu virtual não diminui a importância cultural dos outros modelos: ao contrário, uma das marcas da con-
temporaneidadeéofortalecimentodomuseutradicionalenquantomodelomítico,maisquenuncarepresentativodapotênciadocapital.Notempo
da imagética, o museu tradicional seduz pela presença do objeto. Na sua forma mais estável (as mostras‘permanentes’), é um espaço de encontro,
de congregação de pessoas, de reunião; e também o cenário privilegiado da novíssima burguesia - que, não tendo palácios onde congregar sua
corte, realiza no museu seus ritos sociais: formaturas, aniversários, casamentos, saraus. Na sua forma deambulatória, multiplica-se em exposições
itinerantes,simulacrodaculturadesterritorializadadosnossosdias:protegidospelatecnologia,acervoscruzamomundo,ehojeépossívelmostrar,
simultaneamente, Monet no Rio de Janeiro e o índio amazônico em Paris. Assume, ainda, seu lado dionisíaco, fazendo-se perceber como espaço de
desordem – através de instalações, representações efêmeras, ou mesmo pela incorporação do que a Psicologia entender por ‘temas malditos’.
28
Omuseuvirtualnãotemmodelo,eleserecriacontinuamente,acionadopelavontadedeseuscriadores.Podeaindaexistirnospequenosaparatos
individualizados da‘realidade virtual’- que, colocados na cabeça de um indivíduo, literalmente o projetam para dentro da imagem. Existir na ima-
gem,serelemesmoumcorpovirtual,estarnumnão-tempo,numnão-lugar-eisodesejoabsolutodohomemcontemporâneo.Poisestarnomundo
absurdo do simulacro representa a imortalidade. SCHEINER, Tereza. As bases ontológicas do Museu ... Op.cit.
29
Disponível em http://www.museumofchange.org/ Consultado em 16 de abril de 2008.
para abordar o contínuo processo de mudança que ocorre no meio urbano. É um museu plural em todos os
seus aspectos: articula produção de vídeos, arte visual, arqueologia urbana, história e antropologia locais, ex-
posiçõesderua,bemcomoprocessosdeconstruçãoedesconstruçãoarquitetônica,“numcontinuadoesforço
para administrar e celebrar a mudança”30.

Nãotemendereçoespecífico,constituindo‘umapanhadodeidéias’representativasdosprocessosdemudança
48 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

da cidade, veiculadas essencialmente em meio virtual; mas suas‘pegadas’se encontram no centro urbano da
cidade. Com um discurso atualizado e pleno de charme, o museu estende a todos um convite:“Sempre mu-
dando – sempre aberto – veja você mesmo”31. E sugere que façamos o download de um tíquete de entrada. Ao
fazê-lo, lemos o termo de admissão: “admitimos temporariamente a sua paixão pela mudança...

Percebemos, aqui, o Museu na sua face mais verdadeiramente contemporânea: a que o instaura como sistema
semiológico, ou acontecimento – essencialmente vinculado à irrupção do novo, sem que necessariamente
aconteça enquanto forma (pré)dada, representação no tempo ou presença materializada no espaço. Ou algo
que pode ser simultaneamente todas essas coisas.

E como ficariam os processos curatoriais frente a essas realidades? Ora, onde sempre estiveram: no lugar de
dispositivos técnicos, segundo os quais se realizam as funções intrínsecas a cada um desses tipos de Museu.
São eles que garantem a sua existência e legitimidade, e através deles podemos reconhecer como os museus
evoluem no tempo – mesmo que seja em tempo real. No museu tradicional (qualquer seja a sua forma), esses
processos estarão sempre sob o controle absoluto do especialista e terão como ‘norte’ um público conhe-
cido pela estatística; nos museus comunitários, ou ecomuseus, serão objeto de infinitas negociações entre
especialistas e comunidades, usuárias, elas mesmas, desses museus; nos museus virtuais serão o resultado
de interessantes e complexas interfaces entre especialistas, comunidades localizadas no espaço geográfico e
indivíduosque atuarão simultaneamente como criadores e usuários, como parte da incomensurável comuni-
dade que acessa a rede.

Por trás de todos esses processos, de todas essas dinâmicas, permanece o movimento que deu origem ao mito
das Musas, e que é a essência do próprio Museu: a necessidade de presentificar a experiência humana, para
que ela não caia na noite do esquecimento.

Referências Bibliográficas

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Ibid.
30

No original: “Always changing – always open – see for yourself.”


31
http://terrain.revues.org/document3065.html#tocto2. Em 15.04.2008
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49 | O Museu como processo


de objetos a palavras

Reflexões sobre curadoria de


parte 2
exposições em Museus de História

Aline Montenegro Magalhães


Francisco Régis Lopes Ramos
... porque se os mortos não estiverem no meio dos vivos acabarão
mais tarde ou mais cedo por ser esquecidos...
José Saramago.1

Àinstitucionalizaçãodosmuseusdehistóriarelaciona-seumapreocupação: combateroesquecimento.Vestí-
gios de épocas mortas, quando são coletados, preservados e expostos ao olhar dos vivos, podem abrir muitos
espaços para o ato de lembrar. Por outro lado, esses indícios do passado devem servir, no nosso entender, para

51 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


a elaboração de problemáticas históricas sobre as relações entre passado, presente e futuro.

Expor ao olhar está entre as principais funções de um museu. Por meio das suas mostras, temporárias ou de
longa duração, o museu oferece ao público o contato com os vestígios do passado. Esse contato pode ser
realizado de várias formas, que vão desde a experiência sensível até a construção da consciência histórica,
podendopassar pelo espetáculo, pela chamada“interatividade”e pela crítica, dependendodo tom que é dado
àtradução de um conceito, uma idéia ouuma determinada abordagem da história em uma narrativa tridimen-
sional que combina imagens, objetos, textos e outros recursos. Nessa perspectiva, pretendemos refletir sobre
algumas questões que envolvem o trabalho de curadoria2 de exposições em museus de história. Uma delas diz
respeito à própria historicidade do ato de expor sobre o passado; outra se refere aos objetivos a serem alca-
nçados quando pensamos em uma exposição de história, o que, necessariamente, implica uma preocupação
de caráter educacional. Por fim, buscamos interpretar certas relações de poder entre a palavra impressa e o
objeto exposto no ambiente museológico.

exposições sobre o passado e sua historicidade

A seleção de objetos antigos e sua organização em exposições possuem uma historicidade. Outras formas de
acesso ao passado, antes da configuração da História como campo específico do saber, mobilizaram a orga-
nizaçãodemuseus. Entreoutras,podemos citar asensibilidadedos antiquários doséculo XVIII3,que, ao“salvar”
fragmentosmateriaisdetemposlongínquos,desejava“ressuscitar”arealidadevividanaquelesperíodosemque
os objetos foram produzidos e tiveram uma função social, seja por sua utilidade ou por seu pertencimento. As-
sim, antiquários, como Bryan Fausssett e Alexandre du Sommerard4, criaram museus, nos quais os fragmentos

1
SARAMAGO, José. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 208.
2
Segundo Solange Ferras de Lima eVânia Carneiro de Carvalho,“a prática curadorial consiste na produção de um sistema documental, de conheci-
mento na área da cultura visual e de obras dedicadas ao público de um museu de história”. Cf. LIMA, Solange Ferraz de. CARVALHO,Vânia Carneiro
de. Cultura Visual e curadoria em museus de história. Estudos ibero-americanos. Porto Alegre, PUCRS, v. 31, n. 2, p.53-77, dez. 2005.
3
BANN, Stephen. Visões do passado: reflexões sobre o tratamento dos objetos históricos e museus de história. In:___. As invenções da história:
Ensaios sobre a representação do passado. São Paulo: Unesp, 1994.
4
Citamos esses dois antiquários como exemplo por terem sido analisados em ensaio do historiador Stephen Bann. O inglês Bryan Faussett
(1720-1776) não criou propriamente um museu, mas sim pavilhão de fragmentos históricos onde expunha sua vasta coleção de antiguidades. Já o
francês Alexandre du Sommerard (1779-1842) criou o Museu de Cluny em Paris onde expunha suas coleções de objetos da Idade Média e do Renas-
cimento. Cf.: Bann, Stephen. Visões do passado... Op.cit.
históricos – mais valorizados por seu valor de época do que pelo seu valor histórico5 – eram acumulados de
formaaocupartodososespaçosdisponíveiseprovocarossentidos,oenvolvimentodoobservadorcompreté-
rito“visualizado”. Nessa perspectiva, os objetos, por si, deveriam proporcionar uma experiência sensorial com
pretérito representado. As inscrições impressas em placas ou legendas cumpriam a função de potencializar a
capacidade dos objetos “falarem” sobre o passado, ou melhor, trazerem o passado para o presente.
52 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Essa atitude antiquária para com o passado foi apropriada pela História como parte de seus procedimentos
científicosquandoanovadisciplinapassaavalorizarapesquisasistemáticasobredocumentoshistóricos,como
forma de provar a existência do pretérito.Tais documentos são encarados como testemunhos das realidades
estudadas. Entretanto, após essa inspiração na erudição antiquária, a História passa a deslegitimá-la como via
deacessoaopassado,configurandoumaquerelaentredoiscamposautônomosdosaber,naqualaspráticasdos
antiquários acabaram subordinadas à História como suas“auxiliares”.6 Afinal, os objetos não falavam mais por
si sobre os homens e acontecimentos remotos, e a escrita textual foi a que ocupou esse lugar de fala.

Segundo Stephen Bann, a atitude antiquária também“contribuiu poderosamente para o mito dominante da
historiografia romântica – a de que o passado seria “ressuscitado”7. Nessa perspectiva, o historiador alemão
LeopoldVonRankeprocuroudevolvervidaàsexperiênciasremotaspormeiodesuaescrita,dedicadaàreconsti-
tuição“rigorosa”decomoosfatoshistóricosefetivamenteteriamacontecido8.Assim,ocrescenteinteresseque
opassadodespertavanoperíodomotivoupoetaseromancistasdoséculoXIXaescreveremsobrepersonagense
tramas históricos em textos impressos, relegando aos fragmentos materiais um papel de ilustração, figuração.

Os antiquários davam valor a objetos históricos, e não é anacrônico sugerir que este valor era do terceiro tipo
mais tarde teorizado por Riegl, nem artístico, nem, propriamente falando, histórico no tipo, mas identificado
comossinaisvisíveisdevelhiceedecadência.Masospoetas,romanciamente,historiadores,queeramungidos
pela sensibilidade antiquária, foram capazes de levar mais longe suas intuições, articulando novas narrativas
pitorescas e dramáticas de um passado até então abandonado. Na medida em que essa narrativa assumia o
papelprincipaldeservircomoum‘ícone’doprocessohistórico,elatendia,inevitavelmente,aesvaziaroobjeto
e a imagem de seu papel catalítico.‘visualizar o passado’não era mais uma questão de mediação através da
representação visual, ou pelo menos não predominantemente: o público leitor podia imaginar um reino rico
e pitoresco, agudamente diferenciado do mundo de hoje, simplesmente através da mediação da palavra im-
pressa.(...)Nãoobstante,pareceválidoargumentarqueoestímulooriginaloferecidopelaimagemtendeaser
anulado pela existência de uma narrativa forte, que a relega a um papel meramente decorativo.9

5
Seguimos as considerações do historiador da arte Alois Riegl ao falarmos dos valores de época, histórico e artístico. Cf. RIEGL, Aloïs.Le culte moder-
ne des monuments. Paris: Seuil, 1984.
6
Cf.GUIMARÃES,ManoelLuizSalgado.Memória,Históriaemuseografia.In:BENCHETRIT,SarahFassa;BITTENCOURT,JoséNeves;TOSTES,VeraLúcia
Bottrel. História representada: O dilema dos museus. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2003. p. 75-96. GUIMARAES, Manoel Luiz Salgado.
Vendo o passado. Anais do Museu Paulista (V.15, n. 2, jul-dez 2007. p. 11-30) São Paulo: Museu Paulista/USP, 2007..
7
Idem. p. 162
8
BANN, Stephen. The Clothing of Clio: A study of the representation of history in nineteenth-century Britain and France. Cambridge: Cambridge
University Press, 1984. p. 22.
9
BANN, Stephen. Visões do passado... op.cit. p. 163/164.
Anarrativasobreopassadobaseadaempesquisasdedocumentos–sobretudoaquelesemsuportedepapelvistos
como mais confiáveis do que os fragmentos materiais – teve peso significativo na cientifizaçãoa História. Parecia
que só por meio de sua trama era possível ter uma apreensão“total”do passado; ter o conhecimento sobre como
teria sido.10 A força do discurso histórico acabou por influenciar a organização dos objetos antigos nos museus
históricos, uma vez que as exposições de antigüidades passaram a se submeter à lógica cronológica, temática
e teleológica da História. As exposições deixam de ter uma organização que os historiadores consideram como
caótica11,impregnadadepeçasportodososladosepassaaseguirumcircuitonarrativo,demodoqueavisualiza-
ção do passado passa a ser uma leitura da História. Os vestígios que sobreviveram ao tempo ficam subordinados

53 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


à palavra impressa que se impõe em forma de legendas e explicações de paredes. Deixam de fazer sentido em si
mesmos e passam a compor textos tridimensionais: “como um livro de memórias que se lê com o coração”12.

As exposições museológicas sobre o passado, a partir do século XIX, tendem a ficar atreladas à lógica his-
toriográfica, sendo muitas vezes representações tridimensionais dos discursos produzidos nas academias e
nas universidades. Podemos citar o Museu Histórico Nacional, criado em 1922, como um exemplo de como
a organização dos objetos deixaram de seguir uma lógica antiquária para se adequar a um modelo narrativo
próprio da História.

Até1930, as exposições montadas pelo diretor Gustavo Barroso seguiam a lógica colecionista. Cada galeria era
denominadasegundotrêscritérios,encerrandoemsiarepresentaçãodopassado.13Oprimeirocritérioeraquan-
do a denominação da sala referia-se à principal coleção, formada segundo a tipologia ou utilidade dos objetos.
NaArcadadosCoches,porexemplo,estavamexpostos8meiosdetransportesterrestresde“todasasépocas”.Na
Arcada dos Canhões, havia 18 peças de artilharia de“todas as épocas”. O segundo critério era quando o nome se
relacionava a um tema ou personagem da história ao qual as coleções se referiam diretamente, como aSala dos
Ministros, que guardava 311 objetos relativos aos Ministros da Guerra e à história militar de“todas as épocas”,
comoarmasbrancaseretratos;SalaOsório,queabrigavaobjetosquepertenceramaoalequedeveriamseremeter
à Guerra do Paraguai, somando 116 itens entre os quais o busto do militar, artigos de viagem e indumentária. O
terceirocritérioemergiaquandoonomenãoexpressavaumarelaçãoimediatacomosobjetosexpostos,como
a Escadaria dos Escudos que apesar do nome, era composta em sua maioria por retratos, mas guardava tam-
bém fragmentos de construção e brasões e a Sala dos Capacetes, que continha objetos das“épocas colonial,
Brasil-Reino, Independência e Regência”. Ressalta-se que só havia quatro capacetes de bronze da Imperial
Guarda de Honra e uma diversificada coleção de outros objetos, como quadros, documentos textuais, frag-
mentos de arquitetura, armaria, porcelanas, livros, oratórios etc., que somavam 328 peças. A denominação
dessa sala parecia atribuir uma hierarquia aos itens em exposição. Apesar de pouco numerosos, os capacetes

10
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Memória, história e historiografia. In: BENCHETRIT, Sarah Fassa, BITTENCOURT, José Neves,TOSTES,Vera Lúcia
Bottrel. História representada: o dilema dos museus. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, p. 75-94, 2003. p. 90
11
Aos olhos dos antiquários essa organização fazia sentido e era legitimada pela idéia de experiência com o passado pelos sentidos, como a visão e o
olfato. Via-se o passado; respirava-se o passado e esse contato gerava a idéia de que o passado revivia naquele lugar.
12
RIBEIRO, Adalberto. O Museu Histórico Nacional. Revista do Serviço Público, fev. 1944.
13
BARROSO, Gustavo. Catálogo Geral – Primeira Secção: Archeologia e História. Rio de Janeiro, 1924.
devem ter sido eleitos como relíquias mais valiosas do que as outras do mesmo espaço.14 A partir dessa carac-
terização da exposição museológica do MHN de 1924 percebe-se que, em certo sentido, o tempo linear não
foi o fio condutor da exposição. Havia outras maneiras de estabelecer contatos com o pretérito, parâmetros
que misturavam perspectivas nacionalistas com a sensibilidade antiquária.

A partir de 1930, a exposição ganha uma configuração cronológica e temática, enfatizando personagens
e acontecimentos em um sentido linear. Parece assumir um caráter de texto tridimensional, sistematizado
54 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

segundo os paradigmas historiográficos oficiais do século XIX, especialmente os estabelecidos pelo Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. O circuito feito para os visitantes ficou assim organizado: Arcada dos Desco-
brimentos (no Pátio de Minerva, logo à entrada do Museu); Colônia (Sala D. João VI); 1º e 2º Reinados (res-
pectivamente Pedro I e Pedro II); Marinha (Tamandaré); Paraguai (Duque de Caxias); Osório, Miguel Calmon,
Jóias (Guilherme Guinle); Sala da Nobreza Brasileira e Getúlio Vargas, entre outras.15 Nesse caso, a História é
contada pela lógica biográfica ao enaltecer os heróis e os estadistas, sendo que o tempo torna-se o principal
fio condutor da narrativa.

Vale destacar a especificidade das publicações que apresentavam as exposições do Museu Histórico Nacional
ao público, nos diferentes momentos aqui analisados. A primeira exposição é tratada no catálogo de 1924,
cujas páginas trazem todas as salas de exposição com uma fotografia e todos os seus objetos, que somavam
um total de 2.486. Cada item da sala era listado e acompanhado das seguintes informações: denominação,
pequeno histórico, origem e forma de entrada no MHN – doação, compra, transferência, recolhimento etc. Na
“Sala dos Tronos”, por exemplo, havia um“Pancho de S. A. I. o Sr. Conde d’eu usado na Guerra do Paraguai com
sinais de balas. Procedência: oferta de S. A. o Príncipe D. Pedro ao Museu Histórico”.16

Já a exposição configurada a partir de 1930 não possui um catálogo. Ela pode ser conhecida por meio de um
guia do visitante, cuja edição é de 1955, onde, embora as salas sejam apresentadas, há pouca preocupação
com o conjunto dos objetos, uma vez que raros são os citados no corpo de um texto que procura orientar o
visitante em um circuito narrativo e cronológico. Os objetos citados, quando citados, são aqueles eleitos como
principal atração em uma galeria de heróis ou de grandes acontecimentos:

Entra-se no Museu pelo Portão da Minerva, num pátio que tem sob as arcadas várias maquetes representan-
do vultos históricos (...) Nas paredes vêem-se os brasões de D. Manuel, o Venturoso, Pedro Álvares Cabral,
Pero Vaz de Caminha e os capitães da armada que descobriu o Brasil, daí se chamar essa dependência“Ar-
cada dos Descobridores”. (...) Segue-se a“Sala dos Donatários”(...) sua decoração é feita com os brasões dos
Donatários das antigas Capitanias (...) Começa a coleção de porcelanas do Museu na“Sala Brasil-Portugal”
com as louças pertencentes a D. João VI e segue-se pelas salas dos Vice-Reis e da Nobreza Brasileira...17
14
Cf. MAGALHÃES, Aline Montenegro. Culto da Saudade na Casa do Brasil: Gustavo Barroso e o Museu Histórico Nacional. (1922-1959). Fortaleza:
Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. (Coleção Outras Histórias). p. 49-66.
15
Sobre as primeiras exposições do Museu Histórico Nacional Cf. BITTENCORT, José Neves. Cada coisa em seu lugar. Ensaio de interpretação do
discurso de um museu de história. Anais do Museu Paulista. São Paulo. Nova Série. v. 8/9. p. 151-174. 2000-2001. Editado em 2003.
16
BARROSO, Gustavo. Catálogo Geral... op.cit. p. 139.
17
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Museu Histórico Nacional. Guia do Visitante. Rio de Janeiro, 1955. p. 17-21
Sala dos Troféus | Fonte: Catálogo..., 1924.

Sala Caxias | Fonte: Guia do visitante de 1955. p. 24

55 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


Por essa diferenciação na forma de apresentar as exposições ao público por meio de uma publicação é possível
inferir o quanto a tradição antiquária se impunha na primeira forma de organização dos objetos nas galerias do
museu.Osvestígios materiais eram tão valorizados que o visitante deveria saber todas as informações a eles rela-
tivas, independente da narrativa histórica que se constituiria a partir de seus estudos ou de sua organização no
circuitomuseológico.Ocatálogoeraumdosprincipaismeiosdesistematizaçãodasinformaçõessobreascoleções
que os antiquários dos séculos XVII e XVIII utilizavam. Certamente, Gustavo Barroso partilhava dessa prática.
56 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

No Guia do visitante (1955) o que sobressai é a escrita da historia formada pelos objetos, de modo que o público
deveriacomeçarsuavisitapelosdescobrimentosefinalizá-lanoperíodorepublicano,conformecuidadosamente
era orientado na publicação. Caso essa orientação fosse ignorada ou desrespeitada, ou seja, caso o visitante
optasseporpercorrerdeformadiferenciadaocircui-to,acreditava-sequeasexposiçõesnãofariamsentido,con-
seqüentementeovisitantenãoiriaentenderamonumentalhistóriadoBrasilfazendocomquesuaidaaomuseu
nãocumprisseoobjetivoesperado:oaprendizadosobreosvultosilustreseosgrandesacontecimentoshistóricos.
MiriamSepúlvedadosSantosemseutrabalhoAescritadopassadoemmuseushistóricosanalisaasexposições
do Museu Histórico Nacional e do Museu Imperial de Petrópolis, buscando identificar os diferentes discursos
produzidos ao longo da trajetória dessas instituições. Em relação ao MHN, infere que a exposição museológica
organizada por Gustavo Barroso em 1924 caracterizava-se como a de um “museu-memória”:

... o forte simbolismo ou carisma atado às peças remete não a elas próprias, mas a uma realidade maior, da
qual os objetos são apenas um fragmento. O MHN de 1922, portanto, trabalhava com amostras do passado,
e não com exemplos. Fazia alusão ao passado e não procurava demonstrá-lo.18

A autora não analisa as exposições museológicas organizadas a partir de 1930. Sua linha de estudos dá um
salto para as exposições atuais do MHN, especialmente a denominada“Colonização e Dependência”, inaugu-
rada em 1987 e que é considerada como a de um“museu-narrativa”, uma vez que“o acervo não é mais quem
dita a exposição; ele aparece como auxiliar na narrativa”,19 na escrita da História. Essa exposição parte de um
conceitual, as relações de colonização e dependência que marcam a trajetória nacional para representar a
história do Brasil por meio de textos e objetos. Seu discurso não é mais o dos vultos ilustres e grandes acon-
tecimentos, mas sim articulado a uma perspectiva historiográfica que valoriza os ciclos econômicos e a forma-
ção das sociedades a partir das relações de trabalho e da exploração de riquezas. Produzido em um momento
político considerado divisor de águas entre o regime ditatorial e a abertura democrática, procura desconstruir
heróis, inserir as minorias na representação histórica e denunciar as relações de exploração colonial no Brasil,
desde o seu sentido político e econômico até a esfera cultural.

A abordagem do atual circuito expositivo do MHN, ao tratar a História do Brasil a partir de um problema
historicamente fundamentado, traz diferentes agentes sociais, como os negros, os índios e os imigrantes. Sua

SANTOS, Myrian Sepúlveda. A escrita do passado em museus históricos. Rio de Janeiro: Garamond, MinC, Iphan, Demu, 2006. p. 21.
18

Idem. p.69.
19
concepçãopartiudeestudosediscussõesinterdisciplinaresquecontaramcomprofissionaisdediversasáreas
doconhecimento,comosociólogos,antropólogos,historiadores,arquitetosemuseólogos.Poroutrolado,sua
museografia procura uma adequação às orientações da Mesa Redonda de Santiago do Chile, realizada pelo
Icom (ICOM - International Council of Museums) em 1972, onde surgiu a declaração da Nova Museologia que
foi referendada e ampliada no encontro de 1984 na Declaração de Quebec.

A Nova Museologia tem essencialmente por missão favorecer por todos os meios, o desenvolvimento da
cultura crítica no indivíduo e o seu desenvolvimento em todas as camadas da sociedade como melhor remé-

57 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


dio para a desculturização, a massificação ou a falsa cultura (...) Dependendo do tipo de instituição na qual
opera, a nova museologia, utiliza, então as culturas etnológicas e as culturas eruditas para proporcionar o
desenvolvimento desta cultura critica que permite adquirir o sentido da qualidade, libertar-se dos estereó-
tipos e portanto, assegurar ao maior número uma estratégia de vida individual e coletiva do mesmo modo
que uma identidade mais forte.20

Nessaperspectiva,épossíveldizerqueapreocupaçãocomaformaçãoeodesenvolvimentosocialformaumdos
pilaresdaNovaMuseologia,umavezqueosmuseus“podemedevemdesempenharumpapeldecisivonaeduca-
çãodacomunidade”.21Nãoqueaeducaçãonãoestivessenaordemdodiadosditos“museustradicionais”,masna
perspectivadasnovasdiretrizesmuseológicasessepapeleducativotorna-semaisamploemaisatuante,visando
contribuirdiretamenteparaodesenvolvimentosocial,conformeasconsiderações deMariaMadalenaCordovil:
“o museu tradicional produz-se num edifício, com uma coleção e para um público determinado.Trata-se agora
de ultrapassar estes princípios substituindo-os por umterritório, um patrimônio integrado e uma comunidade
participativa”.22 Assim, como as exposições de história podem ser pensadas no sentido cumprir essa orientação
junto ao seu público?

curadoria de exposições:
entre a história problema e o consumo do passado.

ComoressaltaJoséAméricoPessanha,éprecisoentenderosmuseusnoconceitodas“instituiçõesargumentativas”:

(...) mais do que em discursos museais, eu falaria em argumentos museais. Os museus, a meu ver, e não só
os museus, mas as ciências humanas também, e não só as ciências humanas, a filosofia também, nós todos
no dia-a-dia somos seres fundamentalmente argumentativos, persuasivos, o que é uma maneira de dizer
quesomosseressedutores.Pretendemoscativarparanossasidéias,nossopontodevista,nossacausa,nosso

20
MuseologieetCultures.apudCORDOVIL,MariaMadalena.NovosMuseus.Novosperfisprofissionais.Cadernosdemuseologia(N.3,1993).Lisboa:
Centro de Estudos de Sociomuseologia, 1993 p. 14.
21
ICOM. Mesa-redonda de Santiago do Chile, 1972.
Disponível em <http://www.revistamuseu.com.br/legislacao/museologia/mesa_chile.htm> Ultimo acesso em 27 abr. 2008.
22
CORDOVIL, Maria Madalena. Novos Museus.... Op.cit. p. 13 [grifos da autora]
programa, nosso partido, nossa religião, nossa mercadoria, nosso produto, nossa empresa, nossa pátria,
nossa causa política, enfim, o tempo todo estamos não simplesmente nominando coisas – água, água, copo,
copo, caneta, caneta, não importa –, nós não estamos dizendo às crianças“pedra”,“lago”,“árvore”, mas“não
suba na pedra”, “não meta o pé no lago (...). 23

Atualmente, os debates sobre o papel educativo do museu afirmam que o objetivo não é mais a celebração de
58 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

personagens ou a classificação enciclopédica da natureza, e sim a reflexão crítica. Se antes os objetos eram
contemplados, ouanalisados,dentro da suposta“neutralidade científica”,agoradevemserinterpretados.Mu-
dam, portanto, os“argumentos museais”, e entra em voga a discussão sobre as tensões entre o“museu-templo”
e o “museu-fórum”, termos que ficaram no vocabulário museológico a partir das considerações de Duncan
Cameron no início dos anos 70.24

Para assumir seu caráter educativo, o museu coloca-se, então, como o lugar onde os objetos são expostos para
comporumargumentocrítico.Semproblemáticashistoricamentefundamentadasnãoépossívelproduziruma
exposição histórica com qualidade de reflexão crítica. A problemática é a possibilidade de negar as perguntas
tradicionais,asindagaçõesquesolicitamdadosouinformaçõessobredatas,fatosoucertaspersonalidades.Por
exemplo: quando foi proclamada a República? Quem proclamou a República? E assim por diante... No caso do
Museu: quais as peças expostas? Qual a data de tal quadro? A quem pertenceu certa cadeira?... Tais interroga-
çõesinclinam-separaoreflexocondicionado,gerandocomoresultadoumacoleçãodedatasefatos,umalinha
cronológicapontuada de acontecimentos, sem relação dialética com o presente – emerge um passado morto.

Lucien Febvre explica que “pôr um problema é precisamente o começo e o fim de toda a história. Se não há
problemas, não há história. Apenas narrações, compilações”.25

Um princípio básico que constitui a “história-problema” é a sua íntima relação com o conhecimento crítico
enredado na própria historicidade das várias dimensões constitutivas da vida social. A “história-problema”
enxerga o passado como fonte de reflexão acerca do presente, indagando as inúmeras tensões e conflitos que
se fazem em mudanças e permanências. Assim, a história deixa de ser uma sucessão de eventos e assume a
condição de pensamento sobre a multiplicidade do real.

Sem problemáticas historicamente fundamentadas no sentido de produzir o saber crítico, a visita se torna um
ato mecânico. Ainda é muito comum o professor de história exigir dos alunos o famigerado“relatório da visi-
ta”. Aí, vemos uma legião de estudantes desesperados, copiando as legendas rapidamente, para fazer a tarefa
exigida. Nessa atividade, baseada no reflexo e não na reflexão, o visitante chega ao ponto de perder o que há

23
PESSANHA, José Américo. O sentido dos museus na cultura. In: O museu em perspectiva. Rio de Janeiro: Funarte, 1996, p. 33. (Série Encontros e
Estudos, v. 2).
24
CAMERON, Duncan. Le musée: un temple ou um forum (1971). In: Desvallées, André. Vagues: Une anthologie de la nouvelle museologie. Paris:
Éditions W.M.N.E.S., v. 1, 1992, p.77-86.
25
FEBVRE, Lucien. Combates pela história. Lisboa: Presença, 1989. p. 31.
de mais importante: o contato com os objetos. Na corrida contra o tempo, os alunos procuram transcrever
tudo, mas nunca conseguem fazê-lo. E aí tudo pode acontecer: os que copiam“extintor”, ou“proibido fumar”,
ou aqueles que chegam a usar suportes e vitrines como mesa para apoiar o caderno. Seguindo os passos da
“educação bancária”, como diz Paulo Freire, o museu é transformado em fornecedor de dados.

Em uma exposição historicamente fundamentada, entra-se em contato mais direto com o que é exposto na
medida em que se olha com o olhar eivado de questões. O desafio, portanto, é potencializar o campo de per-
cepção diante dos objetos, por meio da“pedagogia da pergunta”, como diria Paulo Freire. Aprender a refletir a

59 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


partir da “cultura material” em sua dimensão de experiência socialmente engendrada.26

Ao assumir seu papel educativo, comprometido com o ensino de história (de modo formal ou informal), o
museu histórico pressupõe que o ato de expor é um exercício poético a partir de objetos e com objetos – cons-
trução de conhecimento que assume sua especificidade. A peculiaridade do museu se realiza plenamente em
múltiplas interações: com tramas estéticas e cognitivas, em análises e deslumbramentos, na dimensão lúdica
e onírica dos fundamentos historicamente engendrados que constituem o espaço expositivo.27

O ato de expor nunca se deve negar enquanto atitude, postura diante e dentro do mundo histórico. Desde os
seus primórdios como instituição pública até hoje, o museu põe em jogo uma questão crucial: a metamorfose
dos objetos no espaço expositivo. Ao tornar-se peça do museu, cada objeto entra em uma reconfiguração de
sentidos.Paraconduzirtalprocesso,amuseologiahistóricatemocompromissoéticodeexplicitarseuspróprios
parâmetros e, por conseguinte, seus desdobramentos educativos, em contraponto com outras experiências.

(...) quando entramos nos museus, entramos no tribunal, onde várias falas se apresentam, várias vozes silen-
ciosas, fortíssimas e eloqüentes se apresentam, há réplicas e tréplicas, há a possibilidade o tempo todo de
uma altercação, e tem-se, de alguma maneira, que tomar posição. (...) para que ele (o público) seja levado
a tentar tomar posição e ganhar essa autonomia de quem toma posição, que é o grande papel educativo
que as instituições culturais podem ter, a própria instituição tem que assumir esse papel pedagógico, nesse
sentido não-totalitário, não-autoritário, não-monológico, e tem que abrir o espaço para a dialogia, em todos
os recursos possíveis(...) 28

Qualquer exposição é sempre uma leitura a partir de determinados parâmetros e, por isso mesmo, nunca
pode assumir a condição de conhecimento acabado, para (con)vencer o visitante. A partir de problemáticas
históricas, que se fundamentam em certos critérios de interpretação, não há“dados”expostos e sim modos
de provocar reflexões.

26
Sobre essa abordagem, ver: RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: O museu no ensino de história. Chapecó: Editora Argos, 1994.
27
Garcia Canclini argumenta que“o museu e qualquer política patrimonial tratam os objetos, os edifícios e os costumes de tal modo que, mais que
exibi-los,tornaminteligíveisasrelaçõesentreeles,propõemhipótesessobreoquesignificamparanósquehojeosvemosouevocamos.”(CANCLINI,
Néstor Garcia. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Ed. USP, 1998. p. 202).
28
PESSANHA, José Américo. O sentido dos museus... Op. cit. p. 37.
Nesse sentido, o Museu do Ceará abraçou como meta o desafio de representar a história do Estado e da cidade
de Fortaleza a partir das reflexões da História Social da Memória em conexão com princípios da pedagogia de
Paulo Freire e da Nova Museologia. Abrindo mão de um modelo expográfico que valorizava as personalidades
do Ceará e as suas coleções, o museu implementou, a partir do ano 2001, um projeto de pesquisa que gerou
uma nova proposta expositiva, dentro de perspectiva plural, conforme o próprio nome da exposição sugere:
Ceará: História no plural. Esse projeto propõe a existência de módulos que não se ligam por um sentido
60 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

cronológico. Cada um trata de um determinado problema, com uma narrativa específica estabelecida pelos
diálogosentretextoseobjetosemtornodeumadeterminadaquestãohistoricamentefundamentada.Osoito
módulos são assim denominados:“Memórias do Museu”,“Povos indígenas entre o passado e o futuro”,“Poder
das armas e armas do poder”, “Artes da escrita”, “Escravidão e Abolicionismo”, “Padre Cícero: mito e rito”,
“Caldeirão: fé e trabalho” e “Fortaleza: imagens da cidade”.29

Entre os módulos gostaríamos de aproximar nosso foco sobre “Poder das armas e armas do poder”30. Além
dos diferentes tipos de armas utilizadas na“violência física”, como espingardas e revólveres, a exposição traz
outros objetos que dizem respeito à“violência simbólica”, como retratos de membros da elite local, mobiliário,
dinheiro,espadasdofinaldoséculoXIXemedalhas,entendidoscomoarmasdopoder.Odiálogotravadoentre
os objetos e entre esses e o público remete a uma série de reflexões sobre as formas pelas quais o poder se
constrói. Nesse sentido, o texto de abertura desse módulo ressalta:“Afinal o poder não é natural, precisa ser
construído. E nessa construção os objetos ocupam significativo papel”.31 Em outros textos explicativos (e pro-
vocativos), há sugestões de reflexão sobre o acervo, a partir do problema proposto. Citamos, como exemplos,
alguns pedaços dessa condução textual diante dos objetos expostos:

Entre a força da lei e a lei da força, as armas criaram, prolongaram e encurtaram conflitos, por vários motivos:
posses, heranças, terras, moedas, famílias, casamentos, religiões, políticas, traições, fidelidades, desafetos...
Mas nunca é demais lembrar que a violência física tem inúmeros e inesperáveis cruzamentos com a violên-
cia simbólica, que se faz em vários objetos, com fardas, cadeiras, bandeiras, medalhas. Confeccionados nos
séculosXIXeXX,osobjetosdessemóduloapresentamalgumaspistassobremudançasepermanênciasentre
o passado e o presente nosso de cada dia. (...)
No furo das balas ou no corte das lâminas, vários foram os poderes das armas: matar ou intimidar, dar cora-
gem ou medo, defender ou atacar, prender e soltar. São artefatos que podem tirar dos pobres ou aumentar a
fortuna dos ricos. De modo explícito ou não, são componentes da luta de classes. (...)
As armas são sempre enfeitadas com alguns detalhes, que não se limitam ao valor prático. Assim, mostram,
mais uma vez, que não é possível separar o poder das armas das armas do poder. Serviram a cangaceiros e
coronéis do sertão, a pistoleiros e policiais. Continuam servindo para muita coisa, inclusive no esporte ou

29
O projeto foi coordenado por Régis Lopes e Antônio Luiz Macedo e Silva Filho, com a participação do Núcleo Educativo do Museu do Ceará. Sobre
o roteiro desse projeto, ver: Museu do Ceará 75 anos. Fortaleza: Associação Amigos do Museu do Ceará/Secretaria da Cultura do Estado do Ceará,
2007. p. 453-458.
30
Idem. p. 455.
31
Idem.
na diversão. Mas, nunca se deve esquecer que carregam o poder de aumentar a legião dos mutilados e a
procissão dos ausentes.32

Com base no problema da relação entre poder e violência, sejam eles físicos ou simbólicos, a exposição pos-
sibilita uma reflexão crítica sobre essa temática, no passado e no presente. Ao visitante cabe costurar essa
narrativa aparentemente desconexa, criando sentidos para os objetos a partir de questionamentos baseados
em uma determinada questão histórica. Na forma pela qual o projeto foi montado, está em pauta inegociável
uma pedagogia da pergunta, um questionamento a partir da construção de problemas históricos. Nesse sen-

61 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


tido, o projeto (que ainda não foi completamente executado) é fruto da própria política educativa que o museu
vemdesenvolvendodesde2001,apartirdepesquisassobreoacervoedaestruturaçãodeumnúcleoeducativo
responsável pelo atendimento aos grupos de estudantes.

Módulo 3 da exposição do Museu do Ceará,“Poder das Armas e armas do poder.”

Paralelamente a essas iniciativas comprometidas com a formação crítica da consciência histórica existem,
atualmente, outras propostas. Em muitos casos há inovações que apresentam uma mudança de perspectiva
em relação ao dito “museu tradicional” de forma totalmente ilusória, pois se faz a partir de certo tipo de
cenografia desprovida de fundamentação histórica, na qual a solução mais recorrente é a simples reprodução

32
Idem. p. 455 e 456.
de “ambientes típicos”, numa mistura de Disneylândia com o historicismo do século XIX e sua proposta de
“contemplar o passado”. A idéia de construir a “história crítica” perde-se na falta de parâmetros teóricos,
caindo em posturas que, no final das contas, atiram para todos os lados e não cumprem o papel de produzir
conhecimento reflexivo.

O entusiasmo em torno da reprodução de ambientes passou pela cópia de edifícios e chegou até a reconstitui-
62 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

ção de cidades. Como lembra Ulpiano Bezerra de Meneses, o novo projeto encontrou inicialmente grande res-
sonâncianosEstadosUnidosepaulatinamenteespalhou-sepelomundo.Omodeloganhoufôlegoechegouao
ápice com a“reprodução de situações e ações, com a completa teatralização da exposição”. Há, por exemplo,
museus que funcionam com guias vestidos a caráter, que“podem aparecer fabricando velas com tecnologia e
materiais antigos (as quais serão depois vendidas, obviamente a preços atualizados) ou ministrando aulas de
música em cravos originais ou reproduzidos”.33

Antes de tudo, a reprodução cenográfica é inconsistente porque copia, de modo grosseiramente feérico, teo-
rias de historiadores do séc. XIX, como a de resgate do passado tal como teria acontecido. Ao contextualizar
os objetos com a reprodução de cenários, a museologia pressupõe que o passado é dado, ou melhor, um dado
espetacular e aberto para a aceitação de estereótipos, esvaziando a proposta de colocar a história como lugar
de juízo crítico, de problematização a partir do presente. Elimina-se, na reprodução, o labor interpretativo das
problemáticas historicamente engajadas. Para Gadamer, a reconstrução das condições originais é uma“em-
presaimpotente”,namedidaemquesimplificaarelaçãoentrepassadoepresente,deixandootempopretérito
como algo congelado, “apenas num sentido morto”.34

O conhecimento histórico que fundamenta a exposição se faz no presente e pelo presente que interpela o
passado. Não é mais possível pensar na possibilidade de colocar o historiador no terreno da época estudada,
como se fosse plausível penetrar em tempos pretéritos por meio da“máquina de voltar o tempo”. Como res-
salta Gadamer,“o tempo não é um precipício que devamos transpor para recuperarmos o passado; é, na reali-
dade, o solo que mantém o devir e onde o presente cria raízes.”35 Os temas e as problemáticas historicamente
fundamentadas vão ao passado na medida em que esse passado desperta interesse para os desafios contem-
porâneos. Implica em tomada de posição no presente, que dialoga com o passado para questionar o rumo
dosnossospredecessores, aprofundando nosso entendimento sobre as vias que se mostram na atualidade e o
compromisso com as escolhas que fazemos.

É certo que a“reprodução cenográfica”guarda uma inconfessável relação com a perversidade da sociedade de
consumo. Mas a questão não se resume a isso. Além de ser mais um produto da“cultura-mercadoria”, como diria
Guattari,a“reprodução”inverteosentidoeducativoqueomuseudeveriaassumir.Emoutrostermos:trata-sede
33
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A exposição museológica e o conhecimento histórico. In: FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves; VIDAL, Diana
Gonçalves (Orgs.). Museus: dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2005, p. 42.
34
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 266.
35
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 67.
uma prática que, além de mercantilizar a cultura, ainda tenta se mostrar como avanço nas políticas educativas,
queevidenciamevalorizamachamada“identidadecultural”oua“históriadocotidiano”.Masoresultadodesem-
boca em um espetáculo de estereótipos, produto de consumo rápido, sem substância interpretativa.

Ao estudar a proliferação de museus que, nos Estados Unidos, lidam com a reprodução de objetos e cenários,
Umberto Eco chega a dizer que, em tal procedimento expositivo,“o desejo espasmódico do QuaseVerdadeiro
nasce apenas como reação neurótica ao vazio das lembranças, o Falso Absoluto é filho da consciência infeliz
do presente sem consistência”.36 Argumenta-se que a reprodução cenográfica tem um papel lúdico e que

63 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


o museu não pode abdicar do seu caráter de entretenimento. Isso ninguém pode negar. Há, inclusive, uma
questão política nisso tudo: uma das formas de enfrentar a maldade dissimulada da economia de mercado é
exatamente o ato compartilhado de reanimar, cada vez mais, a educação lúdica.

Por outro lado, é mister considerar que há uma armadilha nesse argumento a favor da“reprodução”: seu lado
saudávelescondeadimensãoanti-educativa,quenegaafundamentaçãodoconhecimentohistórico,oumel-
hor, que despreza a reflexão sobre a complexidade do tempo no qual vivemos, com o qual devemos dialogar
e sobre o qual faremos nossas opções. Ao invés de desenvolver técnicas de reprodução, que a rigor seguem
lógicas mecânicas, devemos constituir bases teóricas e metodológicas para dar vez ao ato criador, à potência
estética de inventar o novo a partir dos objetos.

Ao fim das contas, a montagem reprográfica do passado é aviltante, porque não só anula a distância tem-
poral mas também joga o visitante em um misto de equívoco camuflado (ou abstenção de pensamento) e
propaganda enganosa. O sentido metafórico mobiliza um conceito menos dogmático de verdade enquanto
correspondência pura entre discurso e ação. Fornecer somente dados é eliminar o processo educativo, assim
como negar o lúdico é deixar a educação carente de ânimo criativo. Saindo do caminho mais fácil, que é a via
da “reprodução”, fica então o enorme desafio: fazer exposições atraentes e educativas. Tarefa difícil porque
aindaestamospoucopreparadosparadesvincularaeducaçãodaseriedaderepressiva,dapedagogiadomedo
e das mecânicas de avaliação. O mais comum é cair numa relatividade frouxa e enredada nas inconfessáveis
relações com a“sociedade de consumo”. Sem reflexão sobre os objetos, esmigalha-se o potencial inovador
e criativo do museu histórico. O museu que não tem compromisso educativo transforma-se em depósito de
objetos, ou vitrines de um shopping center Cultural.

O museu não deve, portanto, ser parte constitutiva da “sociedade de consumo” e sim tratá-la como objeto
de estudo. Ressaltamos, nesse sentido, as propostas elaboradas por Ulpiano Bezerra de Meneses, que partem
exatamente de problemáticas historicamente fundamentadas diante dos artefatos:

Um museu de cidade, por exemplo, pode contar com uma coleção de relógios de rua. E pode ampliar tipo-
logicamente tal coleção e também expô-la tipologicamente, em paralelo a várias outras classes de objetos,

ECO, Umberto. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 40.
36
cada uma em seu segmento taxonômico. Pouco conhecimento se terá da cidade, salvo numa escala pontual
e limitada. Sequer ficariam claras as funções desse tipo de monumento urbano. No entanto, caso se parta
de um problema (que própria coleção de relógios pode sugerir), como a do tempo enquanto forma de con-
trole social no espaço urbano, já se pode montar uma estratégia e mobilizar outras coleções existentes ou
definir uma política de coleta. Assim, a partir do relógio de rua, como referência que projetava no espaço
urbano as significações do tempo enquanto fator de organização e convergência, numa sociedade em pro-
64 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

cesso rápido de fragmentação, buscar-se-iam relações com outras formas de controle social por meio dos
objetos pertinentes. Como, por exemplo, a domesticação do tempo natural pelas exigências da produção,
quenossasociedadeimpõe.Aproduçãorequercontinuidade,masotemponaturalapresentarupturascomo
a alternância dia/noite. Daí ser adequado incorporar à exposição coleções de equipamentos de iluminação
(doméstica,industrial,derua),capazesdepermitiroentendimentodestedomíniosobreotempo.Outrarela-
ção poderia ser com o domínio da duração das coisas, da vida útil dos objetos reduzidos a mercadoria, a fim
de que elas circulem mais rapidamente (é, portanto, a mesma matriz). Assim, a exposição contaria também
comumacoleçãodeobjetosdescartáveis,comoembalagens,copos,porexemplo,ououtrosobjetosmarca-
dospeloefêmerooupelaobsolescênciaprogramada.Poderiaparecerumaexposiçãocompósita,eclética.De
fato, mas nisso mesmo ela remete às múltiplas malhas da interação social, sem a qual escaparia o sentido
histórico dos diversos tipos de objetos exibidos.”37

Ao enfrentar o desafio de realizar uma exposição atraente e educativa, abordando um tema ins-tigante da
nossa contemporaneidade, o Museu do Ceará inaugurou no dia 12 de junho de 2004 – não por acaso o dia dos
namorados – sua mostra de curta duração,“Coisas do Amor, objetos e imagens do romantismo”. Organizada
pela professora Kênia Rios, com a participação de uma equipe de alunos do Curso de História da Universidade
Federal do Ceará (UFC), a exposição teve como principal objetivo provocar o debate sobre a materialização
do amor em nossa sociedade, por meio de diferentes objetos, como fotografias, cartas, móveis etc. Objetos
do acervo do museu dialogaram, então, com imagens e objetos pessoais cedidos pelo público. Diante da sua
repercussão e dos diversos questionamentos incitados a partir da leitura dessa narrativa expositiva, a mostra
ficou em cartaz por mais de um ano. Eis algumas partes do texto de abertura:

Afinal, que dizer do amor? Loucura, repressão, (des)encontro, liberdade, censura, dor, felicidade, saudade,
declarações públicas, segredos íntimos ou inconfessáveis. (...)
Antes de tudo é um sentimento que precisa ganhar forma para ser visto, sentido e provado. O amor se faz
existência e se transforma em pedaços de memória: baús, caixinhas, cartas, bilhetes, poemas, flores, per-
fumes, fotografias, pinturas, móveis, jornais e santos.Vestígios que podem alimentar a imaginação dos que
perseguem a história nas múltiplas dimensões da vida e da morte. (...)
O amor carrega as marcas do espaço e do tempo. Papéis culturais de homens e de mulheres, relações
econômicasefamiliares,religião,trabalhoesociedadedeconsumosãoalgunsdostemasquepodemsugerir
nas linhas de uma carta. (...)

MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A exposição museológica.... Op.cit., p.24


37
A exposição“Coisas do amor”junta objetos e imagens dos séculos XIX, XX e XXI, na tentativa de abordar as
mudanças e permanências das relações românticas, numa fascinante história das provas de amor.38

Urso de pelúcia na exposição “Coisas do amor...”

65 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


Em um dos módulos foi colocado um urso branco de pelúcia, do tipo que se vende no dia dos namorados, que
segura um coraçãozinho vermelho no qual se vê:“I Love You”. O objeto, comprado por R$ 20,00 em uma loja
perto do museu, apareceu como indício da sociedade de consumo. O urso foi inserido na qualidade de criatura
e criação das relações amorosas. Não foi tratado como simples ilustração de uma situação e sim na qualidade
um artefato que pode provocar reflexões sobre a configuração dos objetos no capitalismo, sobre a relação
entre amor e comércio. Ao lado dele ficou um texto sobre a invenção do dia dos namorados, as propagandas
para esse dia, as liquidações, as promoções para presentes do amor. Nessa perspectiva, o urso foi exibido numa
caixa com espelhos internos. Espelho na base, em cima, no fundo e nos lados. O efeito é conhecido, até porque
esse não é um recurso cenográfico novo: o bichinho foi reproduzido infinitamente. Ficou, no final das contas,
um urso fabricado em série, preso no consumo de sua própria materialidade.

Em outra parte, haveria um conjunto de artefatos de uma loja de produtos eróticos, coisas com pilha, sem
pilha, para muitas situações. Mas, sob a coordenação da professora Kênia, a equipe concluiu que, se o museu
simplesmente exibe esses instrumentos da vida privada, entra-se no jogo do sensacionalismo mercantil. Por
outro lado, uma exposição daquela natureza não poderia excluir os objetos partícipes de certas histórias de
amor. Então, depois de se discutir muito, de ver possibilidades, veio a idéia: foi colocada em uma parte da ex-
posição uma porta cenográfica, com um buraco de fechadura. O orifício não era tão pequeno, mas escondia o
que estava lá dentro. E, lá de dentro, veio uma luz para chamar a atenção dos visitantes. Na parede do fundo,
foi impressa uma frase do Drummond. Quem olhava pelo buraco, esperando revelar o velado, via o texto:“O
que acontece na cama é segredo de quem ama”.39
Museu do Ceará 75 anos... Op. cit. p. 380 e 381.
38

Sobre a experiência de coleta de acervo, pesquisa e montagem da exposição“Coisas do Amor”, ver o livro: RIOS, Kênia Sousa. Coisas do Amor:
39

Memórias de uma exposição no Museu do Ceará. Fortaleza: Museu do Ceará / Secretaria da Cultura do Ceará, 2004.
Assim, é preciso levar em consideração que expor significa repor, recolocar o objeto. Para se mostrar um objeto
no museu é preciso levar em consideração a sua“ex-posição”, a posição anterior, quando ainda“funcionava”.
Na verdade, os prefixos latinos que indicam anterioridade ou movimento para trás são“ante”,“pré”,“retro”.“Ex”
comporta um sentido mais radical, pois faz referência a movimento para fora (daí expor, exibir, extrair, êxodo),
separação e transformação. Portanto, quando se fala ex-ministro, não se indica apenas que se foi ministro
antes, mas que entre o passado e o presente se gerou uma diferença, uma transformação: aquilo que um dia
66 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

foi, já não é mais! Isso também vale para “exposição”, que vista superficialmente passa a idéia de posiciona-
mentodecorrido;examinadadeperto,contudo,sugereessemover-separaoexterior,irromperemmeioauma
circunstâncianão-familiar,estranha,daíporqueabuscadareproduçãodeambientes,queprometeumabrigo
seguro para o objeto, transparece como operação redutora e equivocada, pois expor é, por definição, separar
para mostrar, ou tornar algo passível de mostra por seu desarraigamento do lugar de origem.

No dicionário percebe-se que, além de apresentar, revelar, trazer a público, pôr à vista ou conhecimento dos
outros, expor significa também contar, narrar (expor um fato), explicar, interpretar (expor os motivos de uma
ação) e pôr em perigo, arriscar (expor a vida). Essa variedade de operações que desinstalam lugares estáveis e
sentidoscristalizadosemergemprecisamentenoobjetoque,aoperdervalordeusonaexposição,setransfigura
emobjetonarradoe,dependendodaexposição,emobjetonarrador...Eessapotêncianarrativaarticula-secom
o caleidoscópio de usos pelos quais os artefatos ganhavam vida cotidiana, antes de ir para o museu. Na varie-
dade de usos, os objetos não estão simplesmente localizados dentro de uma finalidade preestabelecida. Há o
jogo entre locação e deslocamento na forma pela qual se constitui a vida social dos objetos. Artefatos mudam
orumodasutilidadesoriginaisaosabordascircunstâncias,sobretudonassociedadesindustriais,ondeotermo
“reciclagem” faz grande sucesso. Mas nada é muito programado: é na própria vivência cotidiana que se faz
o “consumo não autorizado”, como diria Michel de Certeau. “Caça não autorizada”, modos de transformar e
inventar “artes de fazer”, que estão em íntima relação com as “artes de utilizar”40.

ComoressaltaUlpianoMeneses,umaexposiçãohistoricamentefundamentadanãopodesimplesmentepassar
a verdade sobre o passado, mas isso não significa cair no relativismo:

Não sendo a História um conjunto a priori de noções, afirmações e informações – mas uma leitura que ela
mesma institui, em última instância, aquilo que pretende tornar inteligível – ensinar História só pode ser,
obrigatoriamente, ensinar a fazer História (e aprender História, aprender a fazer História). Por isso, a diretriz
(obviamentenãoexclusiva,masnecessariamentepresente)deummuseuhistóricoseriatransformar-senum
recurso para fazer História com objetos e ensinar como se faz História com os objetos. Assim, numa mostra,
suponhamos,sobreaRevoluçãoConstitucionalistade1932,nãosedeveriaprocuraraversão“maiscorreta”ou
“adequadaaoestadodadisciplina”,poisissoserásemprefeitomelhorecommuitomaiorcompetêncianuma
monografia. Antes, do museu espera-se que acompanhe como uma revolução se transforma em memória e,
nesseprocesso,qualopapeldesempenhadopelosobjetos:comoumarevoluçãoviracoleção.Reitere-seoque

Cf. Certeau, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
40
já se afirmou: ao museu não compete produzir e cultivar memórias, mas analisá-las, pois elas são um com-
ponentefundamentaldavidasocial.Ecomoestamemóriamultifacetadaesocialmentelocalizada(doscom-
batentes em ambas as trincheiras, das mulheres e das crianças, dos políticos, dos fabricantes de armas e dos
comerciantes,doshistoriadoreseliteratos,dostecnólogosebanqueiroseassimpordiante),aexposiçãonão
deveriamanter-seunilinear(...)Assim,porquenãoorganizarduasexposiçõesparalelasexplorandoomesmo
tipodematerialmaschegandoapontosdivergentes?Oobjetivonãoseriarelativizaroconhecimentohistóri-
co, mas demonstrar quais de seus ingredientes e processos constitutivos e, portanto, medir seu alcance.41

67 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


Nunca é demais pesquisar a própria tessitura de acontecimentos que vai da“exposição”do objeto até ao movi-
mentoqueinstituiaexposiçãomuseológica.Afinal,omuseuinstitucionalizaumgrandemovimentodelocação
dos objetos. Portanto, sempre vale a pena perguntar: por que certo objeto foi parar em determinado museu?

Com essa orientação teórica e metodológica de pesquisa poderíamos dar um grande passo para a construção
do museu educativo. Na condição de lugar de expor artefatos, o museu deve ser tratado como objeto de ex-
posição, aberto para gerar vias de reflexão sobre a nossa historicidade. Em outros termos: é preciso lidar com
a história do objeto antes e depois de sua entrada no espaço museológico. Só assim é que o saber da história
começa a ser “desnaturalizado” para tornar-se saber da história que, antes de tudo, é histórico.

Como já foi dito, não se trata de colocar o objeto no museu tal como seria sua existência anterior, inserindo-o
numa“ambientaçãotípica”oudando-lheestatutounívoco.Objetodemuseuésempreobjetorecolocado:não
podenem deve ter a condição anterior. O objeto deve necessariamente participar de um jogo que o transporta
da vivência no cotidiano para o espaço da pesquisa histórica, com recortes e problemáticas. Como ressalta
Ulpiano Bezerra de Meneses, é uma ingenuidade inútil pensar que o chamado“museu vivo”pode trazer“vida”
para dentro do espaço de atuação do museu:“Museu vivo (...) é aquele que cria a distância necessária para se
perceber da vida tudo que a existência cotidiana vai embaçando e diluindo”.42 Criar distância: eis uma questão
central. Fazer distância entre a vida cotidiana do objeto, que é produto e produtor de relações socialmente
engendradas, e a“vida museológica”do objeto. Confusões entre essas duas condições reduzem o museu a um
espaço de imitação grosseira, morte do conhecimento e, portanto, declínio vertiginoso do sentido educativo.

sobre o poder da palavra

Em uma exposição podem existir variados elementos significativos que interagem com os objetos: cores,
luzes, percursos, sons, cheiros, textos, recursos eletrônicos, expositores, vitrines, imagens cinematográficas,
“jogos interativos”. Sem desprezar a importância da interação entre essas várias dimensões constitutivas de
uma exposição, as quais em certo sentido já foram tratadas aqui, no decorrer das nossas argumentações,
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A exposição museológica ... Op. cit. p. 49.
41

BEZERRADEMENESES,Ulpiano.Omuseueoproblemadoconhecimento.IVSemináriosobreMuseus-Casas:pesquisaedocumentação.Anais...Rio
42

de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002. p. 23.


enfocaremos agora um aspecto mais específico: o texto. Isso significa reconhecer que desafio teórico e met-
odológicoparaaconstruçãodeexposiçõeshistoricamentefundamentadaspassanecessariamentepelasmúl-
tiplas relações entre os objetos e as palavras. É claro que as condições de possibilidade para a existência desses
relacionamentos não podem ser interpretadas como algo natural ou eterno. E, nesse sentido, nunca é demais
salientar que não se pode falar em uma relação e sim em várias maneiras de compor pontes e abismos entre
a materialidade das coisas e a materialidade da escrita. De qualquer modo, o fundamental é problematizar
68 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

essas tensões sem esquecer que foram se constituindo alguns poderes verbais diante das coisas, que foram se
compondo relações de dependência entre o mutismo dos utensílios e o falatório das letras. Estamos diante de
uma longa tessitura de convênios e quebras de contrato, um jogo de concórdias e querelas, uma infinidade de
fidelidades e traições.

Para discutir esse aspecto serão citados dois casos, não da teoria da história ou da museologia, mas sim da
literatura.Primeiro, Gabriel Garcia Márquez em Cem anos de solidão, depois Mia Couto em Cada homem é uma
raça. Tudo indicava que a vida ficaria maior, porque todos teriam mais tempo com a falta de sono. A doença
da insônia foi bem vinda e Buendia chegou a dizer:“se a gente não voltar a dormir, melhor”. Melhor porque a
vida, sem o intervalo da noite e sem o cansaço do dia, seria mais longa. É por isso que a “peste da insônia”foi
bem vinda em uma das passagens de Cem anos de solidão.43

Comoemváriosoutrostrechosdolivro,GarciaMárquezenfrentavaaquestãodotempoedamemória.Aausên-
cia do sono, que trouxe generalizada alegria,“porque havia então tanto o que fazer em Macondo”, começou a
trazerproblemas,namedidaemque“trabalharamtantoquelogonãotiverammaisoquefazer”.Asmadrugadas
insones “com os braços cruzados” vieram acompanhadas de algo muito mais grave: o esquecimento.

Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que havia de defendê-los, durante vários meses, das evasões da
memória.Descobriu-aporacaso.Insoneexperimentado,portersidoumdosprimeiros,tinhaaprendidocom
perfeição a arte da ourivesaria. Um dia, estava procurando a pequena bigorna que utilizava para laminar os
metais, e não se lembrou do seu nome. Seu pai lhe disse: ‘tás’. Aureliano escreveu o nome num papel que
pregou com cola na base da bigorninha: tas. Assim, ficou certo de não esquece-lo no futuro. Não lhe ocor-
reu que fosse aquela a primeira manifestação do esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de
lembrar. Mas poucos dias depois, descobriu que tinha dificuldade de se lembrar de quase todas as coisas do
laboratório. Então, marcou-as com o nome respectivo, de modo que bastava ler a inscrição para identificá-
las. Quando seu pai lhe comunicou o pavor por ter-se esquecido até dos fatos mais impressionantes da sua
infância, Aureliano lhe explicou o seu método, e José Arcádio Buendía o pôs em prática para toda a casa e
mais tarde o impôs a todo o povoado. Com um pincel cheio de tinta, marcou cada coisa com o seu nome:
mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, panela. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca,
cabrito, porco, calinha, aipim, taioba, bananeira.”44

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, 1995. P. 47.
43

Idem. p. 50
44
Está aí uma questão fundamental: a letra como instrumento de memória. Não é sem propósito imaginar
que as plaquetas de identificação de peças expostas em museus guardam certa semelhança com a solução
encontrada por Buendía. Em museus ou no povoado de García Márquez, a escrita procura suprir a carência
de memória. Mais do que isso, porque, diante das coisas, as palavras não são apenas informativas, pois a
nomeação dá sentido (e existência) ao que é nomeado. Em uma sociedade com memória coletiva comum,
compartilhada, não haveria necessidade de peças identificadas, ou melhor, não existiria a necessidade de
identificar o que já era conhecido.

69 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


A narrativa continua e mostra que o remédio das plaquetas não foi suficiente. Quando tudo parecia estar
resolvido diante da peste do esquecimento, veio outro problema. A doença aumentou e ninguém se recor-
dava mais da utilidade das coisas. A solução foi complementar os textos. As inscrições, além da identifi-
car, começaram explicar. Na vaca, por exemplo, ficou pendurado o seguinte letreiro: “esta vaca, tem-se que
ordenhá-la todas as manhãs para que produza o leite e o leite é preciso ferver para misturá-lo com o café e
fazer café com leite”.45

A situação, pouco antes da chegada de uma substância milagrosa, ficou tão crítica que Buendía passou a
imaginar a construção da máquina da memória, uma espécie de dicionário giratório, para exibir noções gerais:
“A geringonça se fundamentava na possibilidade de repassar, todas as manhãs, e do princípio ao fim, a totali-
dade dos conhecimentos adquiridos na vida”.46

Está em jogo, portanto, o poder das palavras diante das coisas, o direcionamento de sentido promovido pela
escrita. O escritor, no calor da ficção, faz uma reflexão sobre seu ato de escrever, seu poder de nomear. E
reconhece, ao mesmo tempo, a fragilidade das inscrições. Ora, é nesse caleidoscópio de poder e fraqueza, de
abundância e necessidade, que vai se compondo a trama de (de)pendências entre a palavra e o objeto.

No terceiro conto do livro Cada homem é uma raça, do moçambicano Mia Couto, há, também, situações nas
quais o poder da escrita é posto em cena. A personagem central é Rosalinda, a“nenhuma”. Na juventude, ela
era daquelas mulheres que “explicam o amor”. Mas, depois do casamento, ficou feia, desconjuntada, triste.
Apanhava do marido, que, além de beber muito e ter outras, chegou a lhe dizer: “Teu nome, Rosalinda, são
duas mentiras. Nem rosa, nem linda”. Quando se tornou viúva, percebeu, nas visitas ao cemitério, que final-
mente realizava o verdadeiro casamento com Jacinto. Sentia que ele era somente seu, exclusivo. E assim pas-
sou a viver, “em subterrâneo namoro”.

Pode-se dizer que Rosalinda encontrou, ao seu modo, um jeito de“usar o passado”. Como era de se esperar, ela
não sustentou por muito tempo a leveza de sua memória. Veio a surpresa, exatamente quando ia, mais uma
vez, acomodar flores no túmulo do esposo. Apareceu, de repente, uma moça“bela e ligeirenta”:“- Essa deve ser

Idem p. 51
45

Ibidem.
46
Dorinha,aoutra última dele”. A solução que Rosalinda encontrou para provocar novas utilizações no espaço do
patrimônio tumular foi a seguinte:

Rosalinda se decidiu, pronta e toda. Dirigiu-se ao serviço funerário e solicitou que mudassem o lugar do
caixão, trocassem o ‘aqui jaz’.
— A senhora pretende transladar os restos mortais?
70 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

E, logo, o funcionário lhe mostrou os longos papéis que a superavam. A viúva insistiu: era só uma mudan-
çazita, uns metritos. O empregado explicou, havia as competências, os deferimentos. A viúva desistiu. Mas
apenas se fingiu vencida. Pois ela se enchera de um novo pensamento.Voltou à noitinha, trazendo Salomão,
o sobrinho. Às vistas da intenção, o miúdo se assustou:
— Mas, tia, é para fazer o quê? Desenterrar o titio Jacinto?
Não, sossegou ela. Era só para trocarem as inscrições dos vizinhos túmulos. (...)
Jacinto, translapidado, devia de se admirar daquelas andanças. Agora, só eu sei qual é sua verdadeira tabu-
leta, malandro. Rosalinda sacudiu as mortais poeiras, se administrou o devido perdão. Que esse gesto de
aldrabar a intrusa lhe fosse minimizado por Deus. A outra paraviúva, que dedicasse seus ranhos ao vizinho,
o de morte anexa. Porque aqueles olhos de Jacinto, aqueles olhos que a terra se abstinha de comer, só a ela,
Rosa e Linda, estavam destinados.”47

Rosalinda voltou a se reconciliar com uma memória sustentável. A tática de Rosalinda se fez no aperto do
cotidiano, em nome do presente vivido. Ela manipulou a capacidade de ver da“ligeirenta”, que invadia o seu
museu particular de fantasias. Rosalinda fez a sua“assepsia”na calada da noite, porque os mecanismos mais
profundos de manipulação do passado não costumam se expor na luz do dia, não estão nos deferimentos da
burocracia.

Túmulos, monumentos, peças de museus, estátuas em praça pública, tudo isso depende de placas informa-
tivas? Hoje, é possível pensar em patrimônios sem placas? Tudo indica que não. Tudo indica que há uma
dependência da escrita para se chegar a certos sentidos do objeto.

Não se defende, com isso, uma centralidade inevitável e teleológica da escrita, até porque imagens e objetos
possuem linguagens que são peculiares, com potências específicas.Trata-se de perceber que, entre palavra e
imagem, foram constituídas muitas articulações e conflitos em uma complexa rede de dependências. E, nesse
sentido, a pequena placa de identificação em um museu (ou qualquer outro lugar de memória) é muito mais
do que uma informação. Trata-se de uma maneira de delimitar campos de sentido, que além de direcionar
leituras, é o indício da própria relação de dominação da letra diante do artefato.

Fala-se, atualmente, em discurso museológico, textos feitos não com palavras e sim com objetos, luzes, músi-
cas, ambientações, cenografias. Mas tudo sempre vem de mãos dadas com as identificações emplacadas.
COUTO, Mia. Cada homem é uma raça. Lisboa: Editorial Caminho, 1990. p. 53.
47
Nomes e mais nomes, a começar pelo nome do museu e da exposição. Isso não é inocente. O ato de nomear
se faz em determinadas opções.

Por diversas razões vinculadas sempre a certos posicionamentos políticos e procedimentos interpretativos o
destino atual do patrimônio é ser cada vez mais emplacado. Em lugares de memória, a imagem, com todo seu
podermonumental,continuacarecendodoalfabeto.Estáemjogo,então,aimposiçãodapalavranaexposição
de objetos, a proposição da escrita para posicionar restos e vestígios em espaços de lembrança.

71 | De objetos a oalavras. Reflexões sobre a curadoria de exposições em Museus de História


Francis Ponge costumava dizer que sua poesia vinha do mutismo dos objetos. É como se eles necessitassem
da palavra, assim como ele mesmo necessitava desse mutismo ambulante, essa falta de fala que seduz de
maneira completamente peculiar:

... o que me sustenta ou me empurra, me obriga a escrever, é a emoção provocada pelo mutismo das coisas
que nos cercam. Talvez se trate de uma espécie de piedade, de solicitude, enfim, tenho o sentimento de
instâncias mudas da parte das coisas, solicitando que finalmente nos ocupemos delas, que as digamos... 48

Para Francis Ponge, o objeto é um abismo. É diante desse perigo de queda no vazio, dessa ameaça de descon-
trole, que a palavra vem para organizar, domesticar. Por outro lado, não se pode negar que, nos atos nomi-
nativos, há também uma abertura para o senso reflexivo. E a abertura deve ser politicamente norteada. Entre
textos ditos“informativos”, por que não escrever palavras provocativas sobre o objeto? Por que não colocar
questionamentos acerca do que está exposto, levando o visitante à reflexão?

Tudo isso quer dizer que, diante da enorme complexidade que há nas relações entre as coisas e as palavras, o
trabalho com objetos sugere vias que procuram contribuir para a reafirmação do significado insubstituível do
ensino de história na composição do juízo crítico diante do mundo em que vivemos e pelo qual somos respon-
sáveis.Trata-se de um posicionamento diante do ato educativo que queremos construir. E, como lembra Paulo
Freire,“é tão impossível negar a natureza política do processo educativo quanto negar o caráter educativo do
ato político.”49

PONGE, Francis. Métodos. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1997. p. 85.


48

Freire, Paulo. A importância do ato de ler: Em três artigos que se completam. São Paulo: Cortez, 1982, p. 23.
49
por uma translucidez crítica

Pensando a curadoria
de exposições de arte
Roberto Conduru
Sepensarmos a exposição como um discurso, logo iremos concluir que, assim como em um texto escrito (frase,
carta, livro etc.) todos os elementos – letras, palavras, espaços, sinais gráficos, autores, leitores, meios; sons e
silêncios, produtores e receptores, lugares da escrita – são constituintes de seus sentidos. Em uma exposição
todos os seus elementos são integrantes do seu discurso: os objetos em exibição, os textos de apresentação
deseus realizadores (curadoria, dirigente institucional) e patrocinadores, bem como os explicativos (textos de
núcleos temáticos, legendas das peças), as imagens complementares, a ficha técnica, o aparato de segurança
das peças e do público (tanto os equipamentos quanto o pessoal), o mobiliário, o edifício, os agentes envolvi-
dos (curadores, técnicos e demais autores), as instituições que realizam, promovem e patrocinam a mostra.

73 | Por uma translucidez crítica. Pensando a curadoria de exposições de arte


arte como paradigma

Assim,éinteressantelembraranomenclaturaquevemseconsolidando,distinguindomuseografiaeexpogra-
fia, para diferenciar os modos de enunciar da instituição (museu, centro cultural, galeria de arte, escola ou
outro tipo) e os meios de enunciação da exposição, do evento. É importante pensar que a arte é um dos para-
digmasdessesmodosdeescrever.Alémdedurantecertoperíodotersidoomodelodosdemaisobjetoseações
humanas, a obra de arte também se configurava como exemplo máximo dos modos de exibição, de dar a ver.
Obviamente, com as transformações da modernidade, na medida em que a arte se alterou, e se transformou o
seu estatuto social, também foi mudando o discurso da exposição. Novas conjunturas sociais, novas idéias e
práticas em arte propiciaram e exigiram novas instituições e novos modos de expor.

Um dos traços característicos da modernidade é a substituição do modo artesanal de fabricar o ambiente


da vida humana pela tecnologia industrial. Passagem do artesanato à indústria que implicou mudanças não
só no fazer artístico, nos modos de representar e no surgimento de outros tipos de obra artística, como
também, sobretudo, na redefinição do estatuto da arte. A partir do campo artístico, depois de tantas re-
sistências, projetos, tentativas, fracassos e desilusões relativas à possibilidade de reverter ou de redirecionar
esse processo, mais do que a troca de um modo de fabricar por outro, o que se verifica é a crise no âmbito
da produção do real. Diante do declínio incontornável do artesanato e da impossibilidade de a indústria
prover uma lógica minimamente aceitável de gestão do ambiente para a vida, a arte passa a funcionar
não mais como exemplo para as demais ações, coisas e lugares, e sim como paradigma crítico dos modos
de agir e de pensar humanos. Não pode, portanto, ser entendida como uma unidade formal que identifica
artefatos e culturas; em uma palavra, como um estilo. Ao contrário, constitui-se como conjunto nada coeso
de respostas de vieses artísticos aos problemas postos socialmente. Longe de serem modelos de ideação e
fazer para outros objetos, espaços e ações, modernamente as obras de arte e o seu“vir a ser”são referências
problemáticas para os demais artefatos e práticas humanas. Aprofunda-se, portanto o significado crítico da
arte, radicalizando sua função negativa no campo cultural.
Na modernidade, tempo de tantas mudanças, novidades e acúmulos, não causa surpresa a ânsia por docu-
mentar e arquivar, o contínuo proliferar de instituições de guarda, conservação, estudo e divulgação da arte.
Em período no qual as destruições não são menores, ganham força as instituições produtoras de memória e
história relativas ao patrimônio artístico-cultural, tanto o antigo quanto o moderno. Sendo os processos de
constituição em arte diversos e inusitados (obras efêmeras e virtuais, por exemplo), novos desafios são postos
continuamenteparaaspráticasdecolecionar,arquivar,preservar,descartar.Frenteaovolumedoqueégerado
74 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

e descartado e à inexistência de parâmetros definitivos, com os quais julgar o que é proposto como arte,
multiplicam-se os meios tanto de registro e informação quanto de disputa, balizamento e valoração do que
é produzido: jornais, revistas, catálogos e livros, impressos, meio eletrônico ou disponíveis na rede mundial
de computadores, entre outros formatos.Verdadeiros oceanos de informação e juízo que, por vezes, parecem
mais confundir do que esclarecer.

Circulação intensa de dados e idéias que fazem lembrar como no passado as obras de arte viviam circunscri-
tas, muitas vezes em segredo, não plenamente acessíveis, presas que estavam a sítios sagrados, a câmaras
mortuárias, altares em templos e recintos palacianos, enquanto na modernidade foram conquistando outros
lugares para sua ação. Na modernidade, liberando-se dos enquadramentos monárquicos e religiosos, a arte
passou a vislumbrar a possibilidade de experimentar uma condição efetivamente própria e pública no rede-
senho do circuito de arte, que foi se adaptando às demandas e particularidades da produção artística.

museus e exposições

Entre os espaços desenvolvidos na modernidade especialmente para atender aos fins e meios da arte destaca-
se o museu. Ainda que suas referências remontem à Antigüidade e não seja uma instituição exclusiva ao
campo artístico, o museu é a instituição por excelência da arte na modernidade. A princípio, no museu de arte
não estaria a arte mais a serviço de instituições não artísticas (políticas, religiosas, econômicas). A instituição
deveria ser pensada em função da arte, ou, melhor, do jogo da arte, da interação entre o público e as obras de
arte, sendo propriamente uma instituição artística. A arte não abandonava sua condição ritualística e espe-
tacular, mas as redirecionava para si: o espetáculo e o ritual da arte. Nesse sentido, é impossível não perceber
os esforços do sistema de arte para se adaptar às demandas e particularidades da arte na modernidade. Se,
inicialmente, os museus dedicaram-se a colecionar e exibir as obras de arte do passado, consideradas então
como os modelos que deveriam orientar a nova arte, logo foram criados museus dedicados especialmente à
produçãocontemporânea.TendocomoreferênciaoMuseudeArteModernadeNovaIorque,surgirammundo
afora museus de arte moderna e, depois, quando se sentiu a própria modernidade recomeçando, museus de
arte contemporânea, ou com designações semelhantes.

Em paralelo aos museus – espaços de fixação da arte, de eleição e oferecimento de exemplos, paradigmas e
modelos, de cristalização de narrativas espácio-temporais – desenvolveram-se os Salões, especialmente os
da França, e as Bienais (primeiramente a de Veneza, na Itália, criada em 1896). Se os valores da arte eram
consolidadosnascoleçõesenasexposiçõespermanentes(lógicaesintomaticamentehojedenominadascomo
exposições de longa duração) dos museus e revistos nas exposições retrospectivas dos grandes mestres e
de escolas regionais ou nacionais, a emergência crítica do novo acontecia nos Salões e Bienais. Entretanto,
a liberdade da arte foi breve, - se é que, de fato, algum dia chegou realmente a existir-, pois logo, museus,
salões e bienais mostraram-se abrigos dúbios, instituições próprias à arte, mas, também, de enquadramento
e domesticação.

Basta pensar na barraca armada por Gustave Courbet, no Salão dos Independentes e nos eventos das van-
guardas artísticas do início do século XX, que são referências até hoje para os artistas, críticos e instituições

75| Por uma translucidez crítica. Pensando a curadoria de exposições de arte


avessos ao conservadorismo, para concluir que as exposições temporárias se insurgiram como exercícios de
mobilidade, como tentativas de escape ao controle, como táticas contra as estratégias de dominação de mu-
seus, coleções, salões, bienais, galerias, escolas. Nos museus, de acordo com a lógica de seus departamentos,
em consonância com os vícios das teorias e da historiografia da arte, a produção artística acabava (em muitos
casos, ainda assim persiste) enquadrada em seções tipológicas, geopolíticas e/ou cronológicas. Nos salões,
essa produção artística deve ser submetida aos parâmetros previamente estabelecidos por júris e pela lógica
de competição, práticas no mínimo estranhas à arte na modernidade. Nas bienais, seguindo o modelo das ex-
posições universais adotado pela Bienal deVeneza, é difícil escapar das representações nacionais, ou seja, da
visãodaartecomoconstrutoradeidentidadesgeopolíticas.MesmoqueapartirdoexemplodaDocumentade
Kassel, criada em 1955, tenham surgido outros tipos de eventos artísticos que procuram escapar dos antigos
e novos dispositivos de enquadramento do sistema de arte, a idéia do efêmero como instante crítico das ver-
dadesestabelecidassemostrou,ironicamente,tambémefêmera.Tornadaumamanobrarotineira,reiterativa,
a mobilidade contemporânea transforma a exposição eventual em outro momento e lugar da domesticação
da obra de arte, sobretudo no formato das grandes exposições. Sucedâneas atuais das pirâmides, templos e
palácios, as grandes mostras de arte têm enfrentado situações de grande questionamento dos seus modelos,
mas também de expansão, com a explosão das bienais desde meados do século XX (São Paulo, Sidney, Havana,
Istambul e Joannesburgo, entre muitas outras) e de outras sucedâneas.

expografia: da transparência à opacidade

Especificação das práticas institucionais da arte que conduz à questão da expografia. Se o aparato expositivo
é inerente a muitas instituições, artísticas e não artísticas, existem diferenças nas intenções que determinam
modos distintos de expor. De uma transparência inicial, quando pouco era visto e quase nada dito sobre as
práticas expositivas, pode-se falar na opacidade atual, quando as obras de arte pouco interessam diante do
que podem render como elementos de outra obra – a exposição. Um meio específico de enunciação crítica da
arte e da cultura, a exposição de arte deve ser pensada não como um simples dispositivo de amostragem de
obras, mas como uma obra em si, uma unidade construída com diferentes tipos de objetos, cujos significados
estão além da mera soma dos mesmos e que deve ser analisada em suas particularidades discursivas e ritu-
alísticas. No limite, é possível falar em uma ‘arte de expor’.

No que tange à linguagem, inicialmente a expografia era informada pelos princípios da arte anterior, pré e pós-
renascentista–oobjetoíntegroemumcampohomogêneo,afiguraemumfundo,ambosentendidosenquanto
totalidadesindependentes.Masdesdeomodernismo,asdiversasexperiênciasartísticascriaramnovosparadig-
76 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

mas de exposição. Seja na incorporação da moldura e do pedestal às obras, como nas telas de George Seurat
e nas esculturas de Constantin Brancusi, ou em sua eliminação, como nos relevos de Vladimir Tatlin, seja nas
apropriaçõesdeobjetosestranhosaomundodaarte,comonascolagensdePicassoenosreadymadesdeDuch-
amp,iniciaram-seoquestionamentoearenovaçãodosmodosdeexpor.DeMerzbaudeKurtSchwitterzaosseus
desdobramentosrecentes,ainstalaçãotornou-seumgênerocaracterísticodaartecontemporâneae,também,
um novo princípio de exposição que permite a articulação ampliada de conceitos, objetos, lugares e sujeitos.

A polaridade atual de paradigmas expográficos mantém estreitas relações com essas conquistas artísticas,
além de explicitar o caráter artificial da exposição. O princípio do cubo branco baseia-se no ascetismo e
no purismo geométrico da arquitetura e do desenho industrial racionalistas, apostando na força das ações
redutoras frente à saturação imagética da modernidade. Valorização do objeto e abstração de suas relações
com o mundo que também é do tipo expográfico oposto: a caixa preta, a indefinição do negrume espacial
no qual se destacam peças intensamente iluminadas. O que se convencionou denominar como cenografia e
que poderia ser qualificado também como ambientação expositiva rompe com o purismo formalista e com os
gêneros tradicionais da arte, baseando-se na heterogeneidade, procurando soluções mais ou menos figurati-
vas e literárias, excessivas ou não, evocando imagens e narrativas que sejam capazes de seduzir a audiência e
de gerar retorno na mídia. Contudo, a esse respeito, sempre vale citar Adorno:

A um bem intencionado que lhe recomendou escurecer o salão durante o concerto, para que se obtivesse
uma‘atmosfera’adequada, Mahler respondeu com razão que uma apresentação diante da qual não se es-
quecesse o ambiente não teria nenhum valor.1

Tantos os modos simétricos, claro e escuro, de configurar uma neutralidade supostamente capaz de poten-
cializar os mais diferentes tipos de obra de arte, quanto as simulações cenográficas, que tentam direcionar
a fruição da arte para os fluxos da vida, são indiferentes ao contexto físico e institucional da exposição,
como se os recintos expositivos fossem neutros, isentos de memórias e histórias, e estivessem passivamente
disponíveis às mais diversas manipulações de curadores, cenógrafos e designers. Assim, tentam apagá-
lo, seja com a sua neutralização, seja com o seu encobrimento. Contra isto, vale tomar como referência a
proposta de arte para sítios específicos, bem como a diferenciação entre a noção abstrata de
espaço e a especificidade contida na configuração do lugar, incorporando à expografia uma visada crítica e
sensível de cada ambiente físico e institucional, uma inteligência do lugar.
ADORNO, Theodor W. “Museu Valéry Proust”. In: __. Prismas. São Paulo: Ática, 1998, p. 173-174.
1
agentes e agenciamentos

Com relação ao público, na sociedade de massas, a questão não é propriamente a quantidade das pessoas que
podem interagir com as obras de arte, não é a extensão sem precedentes do público, pois a arte sempre se
pensou universal, dirigida a todos, independente de escala. O problema é qualitativo, está nas diferenças do
público em relação às missões que se tentam atribuir à arte e às exposições de arte.

Mas as discrepâncias entre segmentos eruditos e não eruditos do público não implicam necessariamente
formar contingentes massivos de especialistas, multidões de connoisseurs. Ao contrário, parece mais interes-
sante pensar como a nova arte vem sendo vista e lida com outros olhos, corpos e sentidos. Comparado com

77 | Por uma translucidez crítica. Pensando a curadoria de exposições de arte


a presença respeitosa de fiéis e súditos nos templos e palácios anteriormente, o comportamento dos novos
espectadores da arte pode parecer um indício do terror que ronda e ameaça as instituições na modernidade.
É necessário, entretanto, pensar os fluxos das pessoas nos museus, centros culturais e galerias em relação aos
seus hábitos em centros comerciais, supermercados, estações de trem, ônibus e metrô; vale a pena ouvir os
rumores do novo público da arte, observar seu bailado aparentemente errático, ver a voracidade com que re-
processa o que por vezes nem enfrenta a olho nu ou sabe que incorporou à sua cultura. As liberações da arte
na modernidade constituem o argumento primeiro contra a defesa de modos de receber e experimentar im-
unesaossolavancosdamodernidade,poistalvezestejamapenascomeçandonovasmaneirasdeinteragircom
a obra de arte, as quais, a princípio, podem parecer mais bárbaras, mas que são certamente menos elitistas.
Não se pode, entretanto, em nome da ampliação da audiência da arte, esquecer o equilíbrio que deve existir
entre conhecimento e prazer no jogo da arte.

Longe dos palácios e templos, a arte não visa mais configurar aparatos físicos e simbólicos de governos e
religiões e engendrar os rituais das instâncias de poder. Essas não deixam de prever novas funções para a arte,
querendo domesticá-la de modo a controlar as massas por meio da formação dirigida e do entretenimento,
cujas metas resvalam não raro para a alienação e o controle social. Em permanente conflito com as instâncias
de poder, a arte tem procurado diferenciar-se das manobras para instituí-la como simples lição ou espetáculo,
vem tentando escapar aos pólos redutivos da pedagogia e do divertimento. Se a qualidade formativa da arte
pode participar do processo rumo à sociedade ideal por meio da transformação dos indivíduos em cidadãos
críticos e sensíveis, também pode ser distorcida com a arte restringida a ser mera ferramenta educacional. Sua
excepcionalidadetantopodefuncionarcomocomponentecapazdeproduzirreflexõesemudançasindividuais
e coletivas que levem a pensar o cotidiano, o dia-a-dia, quanto ser convertida em simples passatempo, que
faz da arte uma modalidade do lazer.

Se o jogo da arte começa com a relação do artista com sua obra, só prossegue com a interação entre o público,
a obra e, por meio dessa, o artista, com as intervenções dos demais membros do sistema de arte. Entre a obra,
oartista e o público sempre houve outros agentes: patronos, colecionadores, comerciantes, cronistas, críticos,
historiadores.Namodernidadenãoédiferente.Esseseoutrostiposdeinterventorescontinuamintermediando
as relações entre as obras, os artistas e os públicos.
Nessa estratificação dos agentes do campo artístico, têm ganhado destaque as ações dos curadores. O sub-
stantivo curador e o verbo curar são designações relativamente novas, associadas há pouco tempo à nova
produção artística e realça as especificidades que se foram explicitando na prática de expor obras de arte
e acompanhar seus caminhos. Inicialmente, os curadores cuidavam da preservação, do estudo e da exibição
das obras nos museus, sendo especializados por tipos de objetos, períodos temporais ouregiões geopolíticas,
conformealógica de estruturação dessas instituições por departamentos. Ultimamente, quando ganhou evi-
78 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

dência o fato de a exposição de arte ser uma obra em si, com autorias, teorias, práticas e histórias, passou a
ser necessário distinguir e valorizar a função autoral na exposição de maneira a expor os múltiplos partici-
pantes do jogo da arte. Deve haver equilíbrio entre a exposição como obra e as obras de arte exibidas, entre
o curador e os demais autores envolvidos – artistas, colecionadores, indivíduos, grupos, instituições – já que
se a curadoria consiste, muitas vezes, em uma assinatura crítica fundamental (a esse respeito, cabe destacar
nomes relevantes no campo da curadoria de arte na modernidade: Willem Sandberg, Pontus Hulten, Harald
Szeemann, Catherine David, Okwui Enwezor2).

Contudo,emoutrassituações,amãoexcessivamentepesadapodeatenuarapotênciadeartistaseobrasdearte
ao submetê-los ao processo atual de absorção pela cultura, de redução de toda e qualquer ação ou obra de arte
à esfera da cultura, tomando essa esfera como essência artística em vez da arte como ruptura cultural, ou seja,
apostando mais nessa e menos naquela, o que enfraquece tanto o discurso da arte quanto a exposição de arte.

desafios na “era das exposições”

Em 1975, E. H. Gombrich já falava na“era das exposições”e protestava contra as constantes transformações
das exposições permanentes (ou de longa duração) dos museus.3 Mais de três décadas depois, as exposições
tornaram-se um verdadeiro negócio que ganhou o mundo. Após o“efeito Beaubourg”, sobretudo nos anos
1990, o meio de arte assistiu à proliferação dos centros culturais e ao enquadramento de muitos museus como
centrosculturais,onde,muitasvezes,sãopriorizadosexposiçõeseoutroseventostemporáriosemdetrimento
da constituição, do aprimoramento e da dinamização de acervos, que são mantidos nas reservas técnicas ou
viajando, e de exposições de longa duração. Sejam museus ou centros culturais, em sua maior parte as insti-
tuições correm riscos ao se tornarem meras hospedeiras de exposições montadas por firmas ou produtores
independentes, muitas vezes alhures, sobre artistas e temas variados, desvinculados de suas coleções ou
campos de ação. De tal modo que fica difícil definir um caráter próprio com a série de exposições temporárias
que montam ou recebem.

2
Sobre curadoria de arte na modernidade, ver: SEROTA, Nicholas. Experience and Interpretation:The Dilemma of Museums of Modern Art. London:
Thames Hudson, 1996.
3
GOMBRICH, E. H.“The museum: past, present and future”. In: __. Ideals & Idols. Essays onValues in History and in Art. London: Phaidon Press Limited,
1994, p. 189-204.
A eficácia das exposições não pode ser medida apenas pelas regras dominantes do marketing, onde o que
interessa é o rendimento na mídia. Se é correto afirmar que as exposições são muitas vezes lugares de sacra-
lização, cabe perguntar: do quê? De obras de arte e artistas ou de si mesma, da instituição e seus curadores,
cenógrafos e patrocinadores? O que importa discutir é se a exposição cumpre o seu objetivo de propiciar a
experiência artística renovada a uma audiência ampliada e irrestrita.

A opacidade facilmente perceptível no campo das exposições de arte, atualmente, não deve gerar lamento
nem resignação, seja porque as exposições parecem ser o habitat da arte hoje, seja porque há muito tempo a
arte vive com a consciência do cerco crítico e institucional. E pode-se acrescentar que, como os artistas muitas
vezes venceram com sucesso o peso do sistema de arte, podem também enfrentar a conjuntura, sobretudo

79 | Por uma translucidez crítica. Pensando a curadoria de exposições de arte


se pensarmos que a figura do artista tem redefinido-se como a de um pensador da arte, de seu sistema e de
sua situação no quadro sócio-cultural, cujo papel é, sem abandonar a dimensão poética, questionar, criar
dúvidas e polêmicas, intervir, chegando a ser quase um ativista. Frente à transparência da irreflexão anterior
e à opacidade discursiva contemporânea, pode-se defender uma translucidez crítica – a evidência do aparato
expositivo que subsidia os jogos entre artistas, obras de arte e público. E pretender, assim, que as exposições
alcancem uma condição translúcida, a mais cristalina possível, a mais próxima do paradoxo da transparência
opaca.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor W. “Museu Valéry Proust”. In: __. Prismas. São Paulo: Ática, 1998, p. 173-174.
DAMISCH, Hubert. L’Amour M’Expose. Gand: Yves Gevaert Éditeur, 2000.
DEL CASTILLO, Sonia Salcedo. Cenário da Arquitetura da Arte. Montagens e espaços de exposições. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
DUNCAN, Carol.“Art Museum as Ritual”. In: PREZIOSI, Donald (editor).The Art of Art History: a Critical Anthology. Oxford; NewYork: Oxford
University Press, 1998, pp. 473-485.
KRAUSS, Rosalind. “The Cultural Logic of lhe Late Capitalist Museum”. In: KRAUSS, Rosalind et alii editors October, The Second decade
1886-1996. Cambridge: The MIT Press, 1996, pp. 222-255.
O’DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo Branco. A ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
PREZIOSI,Donald.“Evitandomuseucanibalismo”.In:PEDROSA,Adriano(organizador).NúcleoHistórico:AntropofagiaeHistóriasdeCaniba-
lismos. São Paulo Fundação Bienal de São Paulo, 1998, pp. 50-56.
SEROTA, Nicholas. Experience and Interpretation: The Dilemma of Museums of Modern Art. London: Thames Hudson, 1996.
as diversas faces do curador
de exposições científicas
e tecnológicas

Cátia Rodrigues Barbosa


a revolução e o caleidoscópio

Uma nova revolução da ciência e da técnica manifesta-se em nosso tempo. No futuro, possivelmente, o con-
junto de eventos que formam essa nova revolução a tornarão tão marcante (ou, quem sabe, mais...) quanto a
Revolução Industrial do século XVIII. Não é uma idéia exagerada: essa“nova revolução”, centrada na produção
edisseminaçãodeconhecimentos,guardarelaçãodiretacomaamplificaçãodasdiversasatividadeseconômi-
cas, mas ao contrário da “outra” revolução a que nos referimos, toca também, e de forma diretamente rela-
cionada, as atividades do setor que costuma ser dado como “da Cultura”.

Um dos aspectos dessa“nova revolução”da ciência e da técnica que merece destaque é uma mudança per-

81 | As diversas faces do curador de exposições científicas e tecnológicas


ceptível no comportamento de homens e mulheres, tanto em suas vidas profissionais quanto em suas vidas
privadas. A facilidade de acesso tanto à formação quanto à informação cria e modifica as possibilidades de
conhecimentodomundo,nosdiversosmodosemquesemanifestatalconhecimento:criaçãoartística,desco-
berta científica, condições de produção.

A disseminação de redes de comunicação de alcance mundial também tem que ser apontada. Em condições
capitalistas globais , essa disseminação é tornada possível a partir da vulgarização das chamadas“Tecnologias
de Informação e Comunicação”(TIC) baseadas na Informática e naTelemática1. Produtores de conhecimento
científico, ou de qualquer outro caráter, passam a ter acesso a um mercado de novo tipo: o mercado de infor-
mações. Esse mercado consubstancia-se nos grandes bancos de dados postos à disposição de cada produtor,
individualmenteouemgrupos,acessoqueampliaexponencialmenteascapacidadesdecadaumdessesagen-
tes. Por outro lado, tal acesso, amplo e aberto, traz o risco de que a criatividade, fator indispensável à produção
de conhecimento e cultura, acabe subordinada às demandas desse mercado de dimensões globais.

Tomar consciência dessa revolução deve ser um dos maiores objetivos dos atores e autores da cultura cientí-
fica, técnica e industrial; difundir os resultados dessa tomada de consciência, outro. Em função desse objetivo,
instituições de sociabilidade, possíveis lugares de aproximação de potenciais produtores, bem como dos con-
sumidores dessas informações, assumem novo papel. Falamos de bi-bliotecas, de arquivos e, principalmente,
por ser o tema deste ensaio, de museus. E, particularmente, de museus científicos e tecnológicos, em função
da importância que adquire no contexto dessa “nova revolução” a “educação em ciências”.2

As exposições científicas e de tecnologia deverão desempenhar função destacada nesse processo. Museu e
exposições científicas e de tecnologia passam a deter a responsabilidade de representar toda uma gama de
1
«Telemática» é o campo do conhecimento humano resultante da junção entre conceitos, métodos e recursos das telecomunicações (telefonia,
satélite, cabo, etc.) e da informática (hardware, softwares e sistemas de redes). O aperfeiçoamento dessa área, após a Segunda Guerra Mundial,
possibilitouoprocessamento,compressão,armazenamentoecirculaçãodegrandesquantidadesdetexto,imagemesom,sobaformadedados,em
velocidade muito alta, entre usuários localizados em qualquer ponto do planeta. Cf. BRETON, Philippe. História da informática. São Paulo : Ed. da
UNESP, 1991. p. 148-149.
2
Cf.CAZELLI,Sibeleetal.Tendênciaspedagógicasdasexposiçõesdeummuseudeciência.In:GUIMARÃES,VanessaFernandes;SILVA,GilsonAntunes
da(org.).Implantaçãode CentroseMuseus deCiência.RiodeJaneiro:UFRJ,ProgramadeApoioaoDesenvolvimentodaEducaçãoemCiência,2002.
p. 208-217..
conhecimentos. Decodificam e, dessa forma revelam (literalmente,“retiram o véu”), do“fazer ciência”, most-
rando como o conhecimento científico3 é uma forma de conhecimento, e apontando para o fato de que é
“outra” forma de conhecimento, mas não única, e nem necessariamente a definitiva.

Juntamente com bibliotecas e arquivos, os museus podem ser relacionados dentre as mais consistentes e rep-
resentativasinstituiçõescriadaspelodesenvolvimentodoOcidente.Essasinstituiçõesguardaramporséculos
82 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

a trajetória ocidental, política, intelectual e técnica. Originados pela civilização clássica4, museus, arquivos e
bibliotecas mostraram-se vigorosos o bastante para se expandir, junto com a Europa, pelo mundo. Guardam e
tornam visíveis, ora com clareza, ora nem tanto, a construção e trajetória dos diversos conhecimentos da reali-
dade, a consolidação desses conhecimentos e sua superação.

Como a observação do presente e do passado, a valorização do patrimônio científico, técnico e industrial pode
esclarecer sobre a situação atual? Como distinguir, expor e explicar os objetos produzidos pela cultura cientí-
fica, tecnológica e industrial da nossa sociedade?

Nossa proposta neste artigo é abordar a curadoria das exposições científicas e tecnológicas como uma função
caleidoscópica. Partindo do pressuposto que as exposições museais são, independente de seu caráter, instru-
mentos de comunicação, tentaremos discutir as diversas figuras assumidas por essa função caleidoscópica e
indispensável às exposições científicas e de tecnologia.Tentaremos estabelecer esses papéis, como organiza-
dores e animadores dessas exposições. Em nosso escopo, entretanto, não estarão as estratégias de conserva-
ção das coleções científicas e tecnológicas, objetos nessas exposições; nem tão pouco temos como proposta
descrever o perfil e os requisitos do especialista dessa área. Já existem publicações, em nossa língua, que
apresentam tanto essas estratégias quanto os perfis e requisitos necessários aos profissionais dessa área.5

curador-guia: abrindo caminhos

Em resumo: o curador estabelece e desenvolve o tema da exposição, indicando as linhas gerais do que será
exposto. O curador, em conjunto com a sua equipe de trabalho define a exposição como um percurso:“o quê”
e “porquê” expor, e para qual público é idealizada a exposição. Nesse sentido, o curador deve ser capaz de
orientar e esclarecer sua equipe de trabalho sobre as linhas gerais que foram estabelecidas, e, em combinação

3
Segundo Araújo e Oliveira, conhecimento científico“é um conjunto de conhecimentos metodicamente adquiridos, organizados e suscetíveis de
seremtransmitidosporumprocessopedagógicodeensino.Trata-seporseconstituirdeumsaberordenadologicamente,formandoumsistemade
idéias (teorias). Pretende ser verificável, objetivo e comunicável. Objetiva explicar racional e metodicamente a realidade.”In: OLIVEIRA, Marlene de
(coord.). Ciência da Informação e Biblioteconomia: Novos conteúdos e espaços de atuação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. P. 28.
4
Para boa introdução à problemática da origem dos museus, cf. SUANO, Marlene. O que é Museu? São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 4-10 (Coleção
PrimeirosPassos);paraumaprofundamentodotema,cf.SCHEINER,TerezaC. ApoloeDionisonoTemplodasMusas:Museu:gênese,idéiaerepresen-
tações nos sistemas de pensamento da sociedade ocidental. Dissertação de Mestrado. ECO/UFRJ, 1997.
5
Ointeressadopoderáconsultar,porexemploBITTENCOURT,JoséNeves;GRANATO,Marcus;BENCHETRIT,SaraFassa(org.).Museus,ciênciaetecnolo-
gia.RiodeJaneiro:MuseuHistóricoNacional,2007;BRASIL,SuperintendênciadeMuseusdeMinasGerais. CadernosdeDiretrizesMuseoloógicas-1.
Belo Horizonte: SUM-MG, 1ª. ed. 2001.
com tais linhas, sobre a seleção do acervo. Ou seja, ele é uma espécie de guia, aquele que concebe, organiza e
supervisiona a montagem de uma exposição.

Mapearoespaçocompreendidopelosmuseuscientíficosedetecnologiaepelasexposiçõesdeciênciaetecno-
logia, de modo a estabelecer um trajeto, seja de fatos científicos ou tecnológicos, seja do passado da ciência e
da tecnologia, é o papel do curador como guia. No mapa resultante dessa exploração estará marcada a valori-
zação do patrimônio científico, técnico e industrial como ferramenta de esclarecimento sobre a situação atual
do conhecimento. O trajeto estabelecido – assim podemos entender, em última análise, uma exposição –abre
caminho para a compreensão de como processos observáveis na natureza e na vida cotidiana se desdobram e
refletem em conseqüências que, mesmo pouco perceptíveis, afetam a vida6.

83 | As diversas faces do curador de exposições científicas e tecnológicas


Os curadores que produzem exposições científicas e de tecnologia para um museu ou um centro de cultura
precisam assumir a preocupação ética de apresentá-las como um campo de informação crítica, revelando, no
processo, uma relação entre termos de conhecimento: os artefatos, sejam eles representações de fenômenos
ouelementostecnológicos,estãopostosparaseremconhecidos;ovisitanteosconhecerá;aexposiçãofavore-
cerá a apropriação e reapropriação de uma cultura científica. O visitante, a partir de suas vivências, poderá
construir outras vivências, apoiado em cada instrumento, equipamento ou experimento científico exposto e
da exposição como um todo, estabelecendo vínculos com o conhecimento científico, encontrando um lugar
próprio para ele na história e na cultura científica.

curador-administrador: estabelecendo interações

A valorização crescente do patrimônio científico e tecnológico que se manifesta no aumento do número de


museuseexposiçõescientíficasedetecnologiafazcomqueafiguradocuradorseja,freqüentemente,associada
à imagem de um administrador. Nesse sentido, o papel do curador desliga-se da exposição e passa a ser o de
responsávelpordeterminadosnúcleosdeacervos,pelodirecionamentodorecolhimento,daslinhasdepesquisa
e da temática das exposições.

HeloísaBarbuy,aotratardosmuseusuniversitários,discuteaquestãodacuradorianumaperspectivahistórica,
a partir de mudanças ocorridas no próprio conceito de museu. Segundo essa autora,“Embora o termo [cura-
doria] varie de país para país, a idéia de responsáveis por determinados núcleos de acervo e, sobretudo, pelo
direcionamentodecoletas,pesquisaseexposiçõesenvolvendoessesacervos,estátotalmenteemvigor.Resta

6
“...omuseudeciênciacontemporâneoabrigariaduasfunções:amanutençãodascoleçõescomomissãodegarantir aherançadopatrimôniodacul-
tura científica, acoplada à missão de difusão do conhecimento científico. O desafio, então, seria o de alcançar o equilíbrio entre as duas, executando
cada uma das tarefas de forma eficaz, e buscando sua interligação na prática cotidiana. GUIMARÃES,Vanessa Fernandes; SILVA, Gilson Antunes da
(org.). Implantação de Centros... Op. cit. p. 325.
compreender então o que define esta responsabilidade.”7 Barbuy associa essa responsabilidade a uma busca
de identidade dos museus e continua:“E isto se associa, exatamente, às propostas científicas de cada museu,
mesmo nos museus não-universitários. E as propostas científicas de um museu, por sua vez, são definidas em
função da disciplina ou das disciplinas básicas às quais ele se dedica. Parece-me assim, que o curador é, ou
deve ser, preferencialmente, um especialista na disciplina ou em uma das disciplinas de base do museu”.8
84 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Embora a autora não estivesse pensando em nenhuma categoria de museu em particular, suas reflexões dão
interessantespistasparaacuradoriadeexposiçõescientíficasedetecnologia.Aconcepçãodessasexposições
dá-se no âmbito de uma equipe de trabalho, cujo primeiro passo objetivo será a pesquisa do acervo que se
pretende exibir, pesquisa essa que envolve análise histórica e dos dados intrínsecos do objeto (sua estrutura
material), o que implica, da parte do curador, certo conhecimento especializado, mas sobretudo, capacidade
de estabelecer a quantidade de informações a serem aproveitadas na exposição. Trata-se, pois, de uma ca-
pacidade administrativa. Essa capacidade torna-se indispensável, visto que será a ponte entre a pesquisa e os
responsáveispelaexpografia(atécnicadeexpor).Nessemomentoéestabelecidoomododeinteraçãoobjeto-
visitante,etambémomododeinteraçãocomosconservadoresecomasestratégiasdepreservaçãodoacervo.
Segundo essa linha de raciocínio, o curador é aquele que administra todas essas interações, mas também
estabelece o alcance e os limites dessas interações. O curador assume, pois, o papel de um“administrador de
especialidades”, de modo que a segmentação profissional que na atualidade caracteriza os museus, não se
torne um problema, mas ajude a“melhor cercar as necessárias passagens entre as funções, as recuperações,
as ´praias´ comuns, só elas, permitindo o trabalho coletivo e, portanto, o sucesso da tarefa global.”9

Esse“curador-administrador”encontra-se em diversos tipos de museus e exposições museais. Nos museus


de empresas e centros de memória das indústrias e nas exposições científicas e tecnológicas de indústrias
e empresas do ramo da ciência e tecnologia, são responsáveis por acervos e exposições, em função da alta
especializaçãoqueessestemasgeralmenteexigemdoresponsável,mastambémpelacapacidadedeentender
acervosquenem sempre estão totalmente disponíveis, mas dispersos por seções e divisões.Também são figu-
ras comuns nas exposições científicas e tecnológicas realizadas por laboratórios universitários e instituições
de pesquisa científica10.

curador-comunicador: estabelecendo afinidades

“... nos dias de hoje, a capacidade profissional chave em uma galeria de um museu é a habilidade de se comu-
nicar E boa comunicação implica uma afinidade com o receptor da mensagem. Não é suficiente dominar o as-
7
BARBUY, Heloisa. Curadoria e curadores. In: Brasil, Universidade de São Paulo: I semana dos museus da Universidade de São Paulo. Anais... São
Paulo: Universidade de São Paulo: 1999.p. 59.
8
Ibidem.
9
Elizabeth Caillet, apud BARBUY, Heloísa. Curadoria… Op. cit. p. 60.
10
Sobre esse assunto, cf. RIBEIRO, Heloisa e BLANCO, Enrique. Um espaço para ciência e tecnologia no cotidiano do Rio de Janeiro. Anais do Museu
Histórico Nacional (Vol. 35, 2003). Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2003. p. 165-174.
suntotratadonaexposição,deve-setambémcompreenderosvisitantesesaberenvolvê-los.”11Asobservações
indicamocaminhorecomendávelparaumacuradoriaeficientedasexposiçõescientíficasetecnológicas:uma
curadoria eficiente deve sempre, a priori, buscar comunicar o acervo. E comunicar o acervo significa, antes
de mais nada, interpretá-lo, ou seja, construir cruzamentos que façam o público concentrar-se no tema e nos
seus desdobramentos,convencendo-o da importância do tema.

Um bom curador não pode deixar o público sentir-se passivo, esperando que os objetos falem por si mesmos.
Assim, uma das funções do curador, a partir do entendimento de que a grande maioria do público é constituída
por leigos no assunto, deve ser estabelecer quais são os objetivos da exposição, o que se pretende que a ex-
posição faça. O projeto da exposição deve ser claro para quem a exposição se dirige, visto que uma exposição,

85 | As diversas faces do curador de exposições científicas e tecnológicas


recebe leigos de idades muito diferentes: adultos e crianças. E a comunicação pensada para se alcançarem
adultos e crianças é bastante diferente.

Esses dados deverão estar presentes no pré-projeto e amadurecidos no projeto, para que a exposição, depois
da abertura, funcione. Passa a existir um investimento técnico para a constituição das coleções. Assim, quando
falamos de ação curatorial, não se trata apenas de estudar as coleções, mas de dar um sentido a elas; esta-
belecer uma identidade para o acervo. Quando essa identidade é bem trabalhada, as exposições científicas e
tecnológicas passam a ser agentes de informação para o público visitante. A identidade que faz o público se
reconhecer na exposição possibilita a criação de afinidades, ou seja, que o observador se sinta ligado ao objeto
que lhe caí sob o olhar.

A exposição intitulada “SPEED: A arte da velocidade na Casa Fiat”12, realizada entre 2006 e 2007, na Casa
FIAT de Cultura, instituição situada na cidade de Belo Horizonte, ilustra a intenção dos curadores de inserir os
visitantes em um lugar onde ciência, arte, técnica, tecnologia não só estão presentes, mas são identificados
pelos visitante como partes de sua vida. Essa exposição apresentou um diálogo entre obras de arte, projetos
de design, fotografias e outros suportes bidimensionais, bem como uma série de objetos tridimensionais:
automóveis de diferentes épocas, motores de avião, bicicletas, velocímetros.Também mobilizava outras mí-
dias, como filmes apresentando linhas de montagens de automóveis e aviões. A idéia do desenvolvimento da
técnica era abordada na exposição por sua dimensão estética, incorporou a idéia da tecnologia como fonte
de beleza. Assim, o visitante era colocado diante de sentidos que, embora lhes fossem totalmente familiares,
surgiam a partir de pontos de vista inusitados. Os curadores dessa exposição foram bem sucedidos em impul-
sionar a revisão de significações e, assim, arrancá-las do contexto cotidiano.

Osobjetoscientíficosetecnológicostêmcapacidadescomunicativasquedevemserdescobertaseexploradas
pelocurador.Umexemplobastanterepresentativodessaqualidadedosobjetoséaexposição“BeloHorizonte:
11
CLARK, Giles. As exposições vistas pelos olhos dos visitantes – a chave para o sucesso da comunicação em museus. In: GUIMARÃES,Vanessa Fer-
nandes; SILVA, Gilson Antunes da (org.). Implantação de Centros e Museus... Op. cit. p. 123.
12
Speed: A arte da velocidade na casa FIAT de cultura. Exposição temporária aberta de 13 de junho a 30 de setembro de 2007. Belo Horizonte. Ideali-
zação e organização Contemporânea Progetti S.r.l., Florença, Itália. Possui catálogo.
tempo e movimentos da cidade capital”, exposição de longa duração do Museu Histórico Abílio Barreto13, na
cidade de Belo Horizonte. Na parte externa do museu, os visitantes encontram-se com grandes objetos, os
quais buscam retratar diversas época da cidade: um bonde elétrico, uma locomotiva a vapor, uma prensa, uma
cabinedeelevadoreumcarrodeboidesmontado.Todosessesobjetosencontram-seinstaladosemexpositores
de vidro que facilitam a aproximação, tanto física quanto afetiva. Essa concepção museográfica chama aten-
ção do observador para a importância dos objetos tecnológicos no cotidiano da cidade e de seus habitantes.
86 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Essa coleção de objetos tecnológicos aponta para o espaço museal como espaço de interações. Um carro de
boi, artefato característico da vida rural mineira, encontra-se desmontado, junto aos monstros de metal da
eraindustrial.Aintençãodeprovocarestranhamentoéquaseevidente;desmontaresseestranhamentoéuma
forma de mostrar aos visitantes que um artefato tem estruturas-entranhas. O curador-comunicador deve ter
em mente que acervos assim podem encantar e que, quando encantam, comunicam.

curador-educador: atendendo demandas

Os educadores em ciências têm enfatizado, ao longo das duas últimas décadas, o papel dos museus de ciência
e tecnologia para a alfabetização científica de populações cada vez mais envolvidas com os produtos da era
industrial. Isso pode ser traduzido como demanda pelo estabelecimento de uma“pedagogia museal”, pela
qual se introduza não só a discussão sobre a ciência e a tecnologia, mas também a discussão das implicações
sociais da ciência. curador.

O curador das exposições científicas e tecnológicas deve ter sempre em seu foco que as exposições, indepen-
dente do tema, têm fins educativos e assim devem ser organizadas. público que lhe foi confiada, por isso cabe
ao curador ter um conhecimento dos objetos das coleções científicas, tecnológicas e industriais, pelas quais
ele ficou responsável.

Nessadireção,exposiçõespoderãosercitadascomomuitobemsucedidas,casoapresentemdeformadescompli-
cadaeeficienteospatrimônioscientíficos,tecnológicoseindustriaisreunidosemsuascoleções.Exemplodisso
seriaaapresentaçãodasdimensõesculturais,tecnológicas,históricasecientíficasdaeletricidade,temabastante
comumnaatualidade.Noqueserefereàcuradoriadecoleçõesdeobjetosrelativosàeletricidadeeàssuasaplica-
ções,emgeraloprogramacientíficoeculturaldessesmuseustemáticosoptaporcolocaracoleçãonocentroda
propostamuseológica,eassimresponderàsdemandasdopúblicoemtornodesseelementovitalàvidamoderna.
Em museus de eletricidade o objeto desempenha dois papéis importantes: primeiro, ele é testemunha de um
patrimônio passado e presente ligado à história da eletricidade e de nossa sociedade. Nesse caso é primeira-
mente um objeto de coleção; segundo, o objeto materializa o “fluido” invisível e impalpável que constitui a
eletricidade. Nesse caso, ele se aproxima do público, é o meio privilegiado para a compreensão da história das

BeloHorizonte:TempoemovimentosdaCidade-Capital.ExposiçãodeLongaDuraçãoinauguradaem12dedezembrode2005noMuseuHistórico
13

Abílio Barreto. Curadoria de Thaïs Velloso Cougo Pimentel. Possui catálogo.


ciências e das técnicas. Aqui o objeto é mediador. Ele apresenta, também, uma iconografia muito rica tirada
dos arquivos do museu e de sua coleção de cartazes relacionados à eletricidade.Tomaremos como exemplo o
Museu da Eletricidade - Centro de Eficiência Energética da Companhia de Energia Elétrica do Estado da Bahia
(COELBA)14, situado em Salvador, Bahia. A proposta do museu, ao reunir cerca de sessenta experimentos que
utilizam energia elétrica e eletromagnetismo, é possibilitar aos visitantes conhecer, de forma lúdica, os princí-
pios básicos da eletricidade. Postos esses princípios, também foi instalado o“Memorial da Energia Elétrica”,
que aborda desde a descoberta do fogo até o núcleo atômico, além de um panorama da evolução da eletrifica-
ção no Brasil e na Bahia, a história da eletricidade e métodos para economia de energia. Os visitantes contam
com o auxílio de monitores, que também informam sobre os princípios de geração, transmissão, distribuição
e utilização da eletricidade de forma eficiente e segura.

87 | As diversas faces do curador de exposições científicas e tecnológicas


O conceito do Museu da Eletricidade da COELBA aproxima-se do conceito de“playground da ciência”15, inven-
tado em 1982 na Índia, e consiste na reunião de experimentos ao ar livre, que proporcione a aprendizagem de
forma atraente para crianças e adultos. No caso do“Museu da Eletricidade”, foi adaptado um prédio histórico
para receber o circuito de exposição, mas o princípio é o mesmo do aplicado à um “playground da ciência”.

Apresentada da maneira certa, a ciência deixa de ter a aura que a faz misteriosa para os não-iniciados. Se-
gundonotasdaépoca16,umdosexperimentosdoMuseuquechamouatençãodopúblicoinfantilfoioGerador
deVan Der Graaf – uma esfera metálica que produz energia eletrostática capaz de arrepiar os cabelos durante
o toque. O experimento foi testado por diversos estudantes de uma escola municipal, cujas idades variavam
de 7 a 10 anos. “Achei muito legal porque fiquei com o cabelo igual ao de um porco espinho”, brincou uma
estudante. Esse tipo de museu tem por missão “estimular o visitante a ensaiar o ato de fazer ciência, exer-
citando seu raciocínio lógico, sua capacidade de observar e levantar hipóteses, , com uma preocupação em
sensibilizar para as ciências...”17

o caleidoscópio revelado
a recepção das exposições de ciência e tecnológica

Nas exposições, a experiência revela-se bem ou mal sucedida conforme a reação do público. A recepção do
público expõe a comunicação entre o sujeito e o objeto. Nesse momento, a expografia – a técnica e a arte de

Cf.MuseudaEletricidadepromoveráciênciacominteratividadedopúblico.Disponívelem:http://www.coelba.com.br/aplicacoes/menu_
14

secundario/sala_imprensa/prre_set.asp?cod=1979&c= Consultado em 2 de maio de 2008.


Teste de Nervos, Bicicleta Geradora, Anel Saltante, Casa Energizada, e computadores com jogos interativos são alguns dos equipamentos
que permitirão aos visitantes experimentar os princípios básicos da eletricidade, segundo informações da própria instituição.
15
Cf. FRIEDMAN, Alan J.; MARSHALL, Eric. D. Playgrounds de ciência: ampliando a experiência dos centros de ciência para espaços abertos. In: In: GUI-
MARÃES, Vanessa Fernandes; SILVA, Gilson Antunes da (org.). Implantação de Centros e Museus... Op. cit. p. 151-152.
16
“Inaugurado ontem, o Museu da Eletricidade da COELBA mostra da descoberta do fogo até o núcleo atômico.”Correio da Bahia, 17 de agosto de
2007.
17
BONATTO, Maria Paula. Parque da Ciência da Fiocruz: construindo a multidisciplinaridade para alfabetizar em ciências da vida. In: GUIMARÃES,
Vanessa Fernandes; SILVA, Gilson Antunes da (org.). Implantação de Centros e Museus... Op. cit. p. 139.
criar ambientes expositivos – pode ser considerada“limite-elo”: é limite no que se refere a uma compreensão
de um discurso científico; é elo por abrir possibilidades de apresentação do discurso buscado pelo curador.
Por meio da apresentação, o curador propõe provoca cada visitante e cada curador. Na própria concepção
museográfica de uma exposição existe uma tensão da estética como“limite-elo”entre a coleção de aparatos
técnicos e tecnológicos que estão sob a tutela de um curador e a musealização desses aparatos em uma de-
terminada expografia, que também é coordenada e muitas vezes decidida pelo curador.
88 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

O grande teste começa com a experiência do efeito da recepção do visitante: como a exposição o surpreende.
Inicia-se, portanto, na contemplação, na fruição, na experiência estética. Interessa aqui destacar o circuito da
visita, situação em que o visitante é engajado no percurso da intenção do curador. Nesse momento, o curador
é guia, e a exposição, o mapa oferecido ao visitante.

Entrevistas realizadas com curadores de exposições científicas e tecnológicas, em uma pesquisa realizada no
período de 2001 a 2005, na região de Paris18, apontaram a preocupação desses profissionais em inserir o visi-
tante no percurso da exposição, imergindo-o no tema proposto por meio de expografias altamente teatrali-
zadas. Imaginavam assim levar aqueles curadores de exposições científicas e tecnológicas a compreenderem
a intenção da exposição. A definição do espaço físico e a preparação do trajeto e do circuito da exposição
subordinavam-se a propostas expográficas cada vez mais estetizadas, cuja primeira categoria comunicativa
parecia ser a beleza do conjunto. Nas entrevistas, os curadores foram unânimes em apontar a estética atrativa
como critério para a seleção de objetos técnicos e tecnológicos. Essa questão revela o curador como adminis-
trador, visto que o critério“atratividade estética”certamente não seria o único a ser mobilizado. Entretanto,
o curador teria de administrar as indicações de suas equipes, aplicando um critério que, provavelmente, o
especialista-pesquisador não teria em mente. Nesse momento, ocorre uma curiosa inversão: o curador-admi-
nistrador torna-se visitante de sua exposição. Ele a“visita”durante a criação. Abertas as portas, os visitantes,
nomomentoemquecompreendemaproposta,estabelecemcomocuradorumaespéciedecumplicidade.Se,
por um lado, este idealiza sua própria obra, por outro os visitantes, ao reconhecerem os objetivos buscados,
aderemàidealização.Reveladopelaexposiçãodeciênciaoudetecnologia,ocuradorsurge,fortemente,como
comunicador. E persiste nesse papel, na medida em que os visitantes imaginam, encantam e reconstroem o
percurso da exposição.

Um dos curadores da exposição temporária intitulada “A bússola e a orquídea – Humbold e Bonpland: uma
aventura na América espanhola”19 realizada no Museu de Artes e Ofícios de Paris entre os anos de 2003 e 2004,
em sua entrevista ao falar da opção expográfica, pontuou: “Esses painéis são iluminados para simular a al-
ternância dia/noite e evocar a duração da viagem de cinco anos (...)”Foi justamente esse aspecto que pareceu

18
Para os trechos de entrevista (aspeados), cf. BARBOSA,Cátia R. La mise en scène des musées scientifiques et techniques à l’epreuve de la phenome-
nologie. Parias: Muséum nacional D’Hishoire naturelle et Centre A. Koyré, Paris,2005. Th.Doc.Muséologie. Tradução pela autora.
19
Laboussoleetlaorchidée:Uneexperiencesavant,HumboldtetBonplandauxAmériques (1799-1804).Expositionouvertedu2décembre2003au
31 mai 2004, du mardi au dimanche inclus, de 10h à 18h au Musée des arts et métiers. Disponível emhttp://boussole-orchidee.arts-et-metiers.net/
info.html Consultado em 03 de maio de 2008.
tocar um dos visitantes. Perguntado sobre suas impressões sobre a exposição, responde:“Na exposição, esses
grandes painéis com o jogo de luzes que criaram uma impressão de movimento e vida”. O curador continua
a falar sobre a idealização dessa exposição: “(...) tudo depende do tema a ser tratado. Para esta exposição,
nós achamos importante que o visitante apreenda claramente o percurso, o trajeto da exposição (...) antes da
viagem,apreparação,oencontro,depoisoperíododaviagem,queéverdadeiramenteapartecentraldestaex-
posição (...) e enfim após a viagem, o que eles apreenderam, o que eles trouxeram, o que eles publicaram, etc.”

O curador continuou a falar a respeito da concepção da exposição:“(...) quando eu li pela primeira vez a apre-
sentação geral do projeto [da] exposição sobre Humboldt e Bonplant, eu tive a impressão que uma tradução
cenográfica imersiva se impunha, algo não muito enquadrado, rígido para fazer surgir essa idéia de viagem,

89 | As diversas faces do curador de exposições científicas e tecnológicas


de trabalho em movimento, de descoberta (...)”. Foi essa noção de trabalho em movimento, de descoberta, que
um dos visitantes entrevistados apontou, depois de perguntado sobre o motivo de visitar a exposição: “Por
acaso (...) eu vi bem todo esse trabalho de pesquisa que eles fizeram e ao mesmo tempo o que é grandioso,
eles descobriram tudo. Para eles deve ter sido uma viagem extraordinária (...) É formidável agora para nós
aproveitar e viver um pouco esta aventura no tempo”.

Aqui, o curador está entre a trama e o espaço físico, entre esse invisível e esse outro de quem tem o desejo que
os visitantes possam ter surpresas. A trama-tema da exposição é sempre a origem da intencionalidade, jamais
o seu objeto. E, nesse momento, quando o visitante se torna uma espécie de parceiro do curador, acrescenta-se
a figura do educador, fixado no visitante que“aproveita”uma experiência – ou seja, absorve as informações e
se sente possuidor de algo que antes não detinha: o conhecimento.

considerações finais

Buscamosnesteartigoabordaralgunsaspectosqueacuradoriadasexposiçõescientíficasetecnológicasabarca,
partindodopressupostodequeasexposiçõesmuseaistécnico-científicassãoinstrumentosdecomunicação.

Os objetos científicos, tecnológicos e industriais, mesmo retirados do seu contexto e submetidos à reclassi-
ficação pelo curador, segundo modernos critérios adequados, orientados pela cultura científica e técnica em
museus, readquirem“mistérios”, para determinado público de museu. O projeto curatorial de uma exposição
científica e tecnológica deve criar condições que visam uma nova contextualização da coleção pela qual o
curador ficou responsável.

Nesse sentido, o curador orienta, esclarece sua equipe de trabalho sobre as linhas gerais que foram tomadas
e sobre a seleção do acervo. Ou seja, ele é o administrador, aquele que zela por uma coleção ou a concebe,
organiza e supervisiona a montagem de uma exposição.
Ocuradordasexposiçõescientíficasetecnológicasdeveteracapacidadedeorganizarcomfinscomunicativos
umaapresentaçãodascoleçõesouapresentaçõesaqueopúblicotenhaacesso.Cabeaocurador,pois,serguia:
ter um conhecimento dos objetos, das coleções científicas, tecnológicas e industriais e da ambiência, ou co-
ordenarconhecimentosdistribuídosporsuaequipe.Pode-sedizerqueocuradornãoéapenasguiadopúblico,
mas de sua própria equipe.
90 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

A recepção pelo público revela o curador como comunicador , criando elos entre sujeito e objeto. E, na medida
em que fixa no sujeito valores pertinentes e pertencentes a ele mesmo, pela via do objeto abordado, revela-se
como educador.

São, pois, as faces caleidoscópicas do curador de exposições de ciência e tecnologia. Faces mutantes de um
mesmo agente, participante, com incontáveis outros, do processo de abrir à consciência – a própria e a de
milhões de outros – da revolução em que estão todos envolvidos.

E, afinal, o que é um caleidoscópio? Possivelmente, objeto da“exposição de memórias”dos curadores e de seus


visitantes. Trata-se de um aparelho ótico formado por um tubo que contém espelhos e pequenos fragmentos
multicoloridos,devidroouplástico.Osfragmentossoltosrefletem-senosespelhos,quesãomontadosdentrodo
tubo, com inclinação de 45 graus, de modo a formar um triângulo. Numa das extremidades, o tubo é fechado;
na outra, um pequeno orifício permite espiar o interior. Movimentos circulares fazem com que os fragmentos de
movimentem, criando combinações variadas e agradáveis. Ao olhar pelo orifício, voltando a outra extremidade
para alguma fonte de luz, será possível ver belas imagens que nunca se repetem.

Referências Bibliográficas

BARBOSA,Cátia R. La mise en scène des musées scientifiques et techniques à l’epreuve de la phenomenologie.


Parias:MuséumnacionalD’HishoirenaturelleetCentreA.Koyré,Paris,2005.Th.Doc.Muséologie.Traduçãopela
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SCHEINER,TerezaC.ApoloeDionisonoTemplodasMusas:Museu:gênese,idéiaerepresentaçõesnossistemas

91 | As diversas faces do curador de exposições científicas e tecnológicas


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SUANO, Marlene. O que é Museu? São Paulo: Brasiliense, 1986.
pré-história, arqueologia
e história no século XXI:
a curadoria na implantação
do museu municipal de pains

Gilmar Henriques
Pablo Luís de Oliveira Lima
Márcio Castro
O Município de Pains, no centro-oeste de Minas Gerais, está realizando aquilo que é um sonho para
a maioria das cidades brasileiras com menos de 10 mil habitantes: constituir seu primeiro museu.
Este acontecimento que marca a história da cidade é resultado da confluência e colaboração entre
diferentes setores da sociedade civil e órgãos públicos. Este artigo busca analisar a dimensão do
trabalho curatorial presente desde a concepção do Museu até o processo de implantação física e
institucional.

93 | Pré-história, arqueologia e história no século XXI: a curadoria na implantação do Museu Municipal de Pains
A política nacional de museus implementada no Brasil desde 2003 tem como um de seus objetivos
promoverosmuseuscomo“agentesdemudançasocialedesenvolvimento”–lemada6a SemanaNa-
cionaldeMuseus1.Paraalcançaressa meta estratégica, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) tem empreendido ações voltadas para a descentralização dos recursos públicos,
focando esforços no incentivo à implantação de museus em regiões distantes dos grandes centros
urbanos.TaléafunçãoprimordialdoProgramaMaisMuseus,destinadoàimplantaçãodemuseusem
cidades com até 50 mil habitantes2.

A Prefeitura Municipal de Pains contribuiu decisivamente para tornar viável o espaço físico do mu-
seu, localmente conhecido como“casa da Dona Ziza”(Anexo I). Trata-se de uma pequena fazenda
que foi englobada pela malha urbana da cidade de Pains. Na condição de proponente deste projeto,
a prefeitura forneceu ainda toda a documentação necessária para a efetivação de um convênio com
o IPHAN. Assim, o Museu Municipal de Pains (MMP) é uma instituição que nasce graças à soma de
esforços por parte de cientistas que pesquisam a pré-história e a história regional, bem como dos
governos federal e municipal.

Na prática, a construção concreta e simbólica do Museu de Pains confirmou o pressuposto de que a


curadoria em um museu é uma atividade que envolve“todos os aspectos do desenvolvimento, estu-
do, preservação e interpretação de um acervo”3. Muito além, portanto, da maneira de se exporem
os artefatos nas exposições, a curadoria antecede e orienta a realização do Museu e a reprodução
diária de suas funções. No caso de Pains, a curadoria liga-se desde a manutenção da edificação até
a organização de uma política de acervo.

O Museu Municipal de Pains parte de uma concepção curatorial que o compreende, acima de tudo,
como um museu de ciência e centro de pesquisa. É a partir da pesquisa arqueológica sobre o acervo
que a curadoria do Museu orienta sua articulação com a academia. Com esse diálogo, o projeto
museológico e museográfico articulará uma equipe multidisciplinar, envolvendo museologia, ar-
queologia, história e arquitetura, em um processo curatorial caracterizado por um “ciclo de re-
1
Maiores informações no endereço eletrônico: http://www.museus.gov.br/vi_snm_programa/index.htm
2
Maiores informações no endereço eletrônico: http://www.cultura.gov.br/site/?p=9018
3
NICKS, John. “Curatorship in the exhibition planning process” In: LORD, Barry; LORD, Gail (Eds.) The manual of museum exhibitions. New York:
Altamira Press, 2005, p.345.
sponsabilidades solidárias”4, cujo resultado é a própria produção do Museu e de sua função pública
primordial: as exposições. No caso de Pains, a curadoria trabalha com três ritmos de exposições:
de longa, média e curta duração. A implantação do Museu, por sua vez, engloba inicialmente ap-
enas o projeto museológico e a montagem da primeira exposição de longa duração, prevista para o
quadriênio2009-2012.Otemadessaprimeiraexposiçãoéavalorizaçãodopatrimônioarqueológico
de Pains e região. Sua concepção e expografia fundamentam-se, portanto, em um trabalho focado
94 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

nos artefatos da cultura material de culturas pré-históricas que ocuparam a região durante milhares
de anos. Essa opção tem motivos bastante precisos.

Há mais de uma década, uma equipe de arqueólogos vem pesquisando a região em que o municí-
pio está inserido, denominada em seus trabalhos como Província Cárstica do Alto São Francisco. A
composição mineral local é caracterizada pelo predomínio do calcário, fator que resulta em uma
paisagem com peculiares formações rochosas e inúmeras cavernas. O calcário é uma rocha alcalina,
o que contribui para a preservação dos vestígios arqueológicos, em especial os materiais orgânicos.

Devido a esses fatores, muitos sítios arqueológicos vêm sendo registrados no município, levando
à formação de um acervo de objetos de cultura material de povos “pré-históricos” em contínuo
processo de ampliação. Esse é o principal pilar do Projeto de Implantação do Museu Municipal de
Pains. Sua curadoria é, nesse sentido, marcada por uma preocupação em difundir o conhecimento
produzido por pesquisadores da arquelogia que atuam há anos na região de Pains e que coletaram
a maior parte do acervo do Museu.

ÉnecessárioexplicitarqueporartefatosdaPré-históriacompreendemosobjetosdaculturamaterial
de povos nativos que não mais guardam uma ligação simbólica ou funcional direta com a cultura
brasileira atual. São vestígios das ações humanas sobre o espaço brasileiro datados entre 11.000
e 500 anos atrás. São, portanto, de “culturas pré-cabralinas” sem sistemas de linguagens gráficas
inteligíveis e, nesse sentido, pré-históricas. Mas não são objetos de culturas sem história. Enquanto
traços das atividades humanas, são objetos que, ao serem analisados por meio dos métodos da
ciência arqueológica, contribuem para que possamos conhecer as histórias; ou seja, dados sobre o
desenrolar da vida dessas sociedades distantes no tempo.

Obviamente, não é a distância cronológica a causa da ruptura no âmbito da memória entre tais
populações pré-históricas e a sociedade moderna. Essa fissura é devida à própria história do pro-
cessodeconquistaecolonizaçãodasAméricasesuasconseqüênciasparaospovosindígenas.Assim,
em sintonia com uma preocupação em também pesquisar a história da região, o Museu Municipal
dePainsbuscaserumlugardeproduçãodeconhecimento,ondeaarqueologiapossaconstituiruma
ponte entre o universo da pré-história e a história.
SARIAN, Haiganuch. “Curadoria sem Curadores?”. In: Anais I Semana de Museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1999, p. 33.
4
as pesquisas arqueológicas na região de pains

Desde o ano de 1999, o projeto Pré-história da Província Cárstica do Alto São Francisco empreende um levan-
tamento sistemático de sítios arqueológicos no âmbito de uma área com cerca de 1.500 km2, que já resultou
em duas dissertações de mestrado e em um projeto de doutorado5. A região estudada engloba a totalidade dos

95 | Pré-história, arqueologia e história no século XXI: a curadoria na implantação do Museu Municipal de Pains
municípiosdePainseDoresópolis,alémdepartesdosmunicípiosdeArcos,CórregoFundo,Formiga,Iguatama,
Pimenta e Piumhí (Mapa 1). Essa região é caracterizada por um relevo cárstico, com suas feições respectivas: for-
mação de cavidades como abrigos e cavernas, ocorrência de dolinas, lagoas, vales cegos e maciços rochosos6.

Olevantamentoarqueológicotemcentradoesforçosemtrêsdosprincipaistributáriosdamargemdireitadoalto
curso do Rio São Francisco: a sub-bacia do Rio São Miguel, a do Ribeirão dos Patos e a do Córrego Mineiro e
Atalho.Nessastrêssub-baciasencontra-seumamiríadedemaciçoscalcáriosgeologicamentepertencentesao
SupergrupoBambuí7.Oendocarsteregionalémuitodesenvolvido,apresentandoinúmerascavernas,condutos
e corredores de diáclase que, muitas vezes, formam verdadeiros labirintos no interior dos maciços calcários.
Esses são freqüentemente “atravessados” de uma extremidade a outra. Em 2001, Pizarro, Frigo e Campello já
haviam compilado 437 cavernas. Seu inventário preliminar das principais cavidades listava:“2 cavidades com
desenvolvimentoslinearessuperioresa1.000metros,2cavidadescomdesenvolvimentoslinearessuperioresa
500metros,110cavidadescomdesenvolvimentoslinearessuperioresa100metros”8.Orestanteécompostopor
cavidades com desenvolvimento linear menor que 100 metros.

A peculiaridade do relevo regional é o fato de ser marcado por intensa drenagem fluvial na superfície. Isso o
diferencia do relevo de outras regiões cársticas que também fazem parte da Bacia do Rio São Francisco, como
a de Lagoa Santa, no centro do Estado de Minas Gerais, ou a do vale do rio Peruaçu, no Médio São Francisco.

O mapa 1 mostra um traçado da hidrografia, bem como da delimitação dos principais conjuntos de maciços
calcários que dominam a área estudada, nele está assinalada a localização de alguns sítios arqueológicos com
presença de material cerâmico pré-histórico presente na sub-bacia do Rio São Miguel.

A curadoria do processo de implantação do Museu Municipal de Pains leva em consideração, portanto, o fato
de a Província Cárstica do Alto São Francisco possuir centenas de locais que guardam vestígios arqueológicos
de culturas pré-históricas. Esses vestígios, quando analisados a partir de uma escala regional, possuem uma
série de aspectos comuns, representada no material lítico, na pintura rupestre e, sobretudo, na cerâmica. Até

5
Estes projetos de pesquisa vêm se desenvolvendo no Programa de Pós-graduação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São
Paulo (MAE-USP).
6
BIGARELLA, J. J.; BECKER, R. D. & SANTOS, G. F. Estrutura e origem das paisagens tropicais e subtropicais: fundamentos geológicos-geográficos,
alteração química e física das rochas, relevo cárstico e dômico. v. I. Florianópolis: Ed. UFSC, 1994, 425 p.
7
ALKMIM, F. F. & MARTINS-NETO, M. A. “A bacia intracratônica do São Francisco: arcabouço estrutural e cenários evolutivos” In: PINTO, C. P. &
MARTINS-NETO, M. A. Bacia do São Francisco: geologia e recursos naturais. Cap. II. Belo Horizonte: SBG/MG, 2001, p. 9-30.
8
PIZARRO,A.P.;FRIGO,F.J.G.&CAMPELLO,M.S.UpdatingthecavesdistributionofArcos-Pains-Doresópolisspeleologic-carbonaticprovince.In: The
13th International Congress of Speleology – Speleo Brazil. XXVI CBE/XIII ICS. Vol. I. Brasília: SBE, 2001.
o momento já foram levantados 188 sítios arqueológicos, sendo que cerca de 118 deles foram identificados
por nosso projeto de pesquisa9. Quando o projeto teve início, o Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do
IPHAN continha cerca de 70 registros de sítios arqueológicos, resultado das pesquisas realizadas pelo IAB-RJ
e pelo Setor de Arqueologia da UFMG nas décadas anteriores.

Os tipos de locais em que ocorrem os sítios arqueológicos foram inicialmente divididos em três categorias,
96 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

segundo sua exposição ao ambiente externo; são elas: cavernas, abrigos e sítios a céu aberto.

Há grande ocorrência de sítios arqueológicos a céu aberto, em vertentes suaves à beira de córregos, com
centenas de fragmentos cerâmicos e artefatos líticos, fabricados tanto pela técnica do polimento quanto pela
do lascamento. A região constitui, assim, um repositório de material arqueológico que, com a implantação do
Museu, poderá ser analisado e contribuir para a produção de conhecimento a ser difundido a partir da própria
região. Repositório instável - deve-se ressaltar- por estar sujeito à atividade agrícola. O Museu objetiva ser,
assim, uma entidade que contribua para a valorização e preservação do patrimônio arqueológico regional.

Mapa 1. Mapa da Província Cárstica do Alto São Francisco, com distribuição hidrográfica, limite entre as bacias e sub-bacias, localização
das sedes municipais, traçado das estradas, delimitação dos maciços calcários e distribuição de sítios arqueológicos na sub-bacia do rio
São Miguel.
9
KOOLE, Edward. Pré-História da província cárstica do Alto São Francisco, Minas Gerais: a indústria lítica dos caçadores-coletores arcaicos. Disserta-
ção de Mestrado. São Paulo: MAE-USP, 2007, p.65.
É importante destacar que dois terços do conjunto total de sítios arqueológicos são compostos por aqueles
que ocupam cavidades naturais em maciços rochosos de calcário, alguns de difícil acesso. Os vestígios arque-
ológicos são encontrados em abrigos, diáclases e até mesmo em zonas afóticas de cavernas10. Algumas têm
todo o piso coberto por fragmentos cerâmicos, como nos casos da Gruta do Capoeirão e do sítio arqueológico
Mané do Juquinha.

97 | Pré-história, arqueologia e história no século XXI: a curadoria na implantação do Museu Municipal de Pains
A proporção entre tais categorias foi equilibrada (Graf. 1), o que se deve ao alto nível de intervenção humana
na região, decorrente da alta fertilidade dos solos e de uma agricultura de pequenas e médias propriedades
rurais que exploram intensivamente a suave topografia dos montes locais, que são praticamente destituídos
de vegetação de porte. Sazonalmente estruturas arqueológicas são expostas pela ação do arado e serão, gra-
dativamente, fragmentadas e carreadas com o passar dos anos, caso nada seja feito para seu resgate.

Gráfico 1. Gráfico 2.
Tipos de locais dos sítios arquelógicos identificados Materiais presentes nos sítios arqueologicos levantados

Os dados apontam para uma correlação espaço-temporal entre as categorias de materiais arqueológicos en-
contrados nos sítios. Sítios arqueológicos que ocupam abrigos e apresentam a presença única ou majoritária
de material lítico lascado ou de grafismos rupestres estariam vinculados a ocupações de grupos de caçadores-
coletores, que povoaram a região a partir de 11.000 anos AP até cerca de 3.000 anos AP.11 No entanto, sítios ar-
queológicosqueocupamcavernaseterrenosacéuaberto,compresençaexclusivaoumajoritáriadecerâmica,
conjuntacomartefatoslíticospolidosoulascados,estariamvinculadosaocupaçõesdegruposdehorticultores-
ceramistas, que teriam ocupado a região a partir de 2.000 anos AP até cerca de 500 anos AP.

Essa generalização tem se confirmado naqueles sítios arqueológicos estudados e datados por nosso projeto.
O material lítico lascado coletado no abrigo Lagoa do Peixe, no município de Doresópolis, apresentou indícios

10
KOOLE, E.; HENRIQUES, G. & COSTA, F. Archaeology and Caves in the Carstic Province of Arcos–Pains–Doresópolis, Minas Gerais – Brazil. In:The 13th
International Congress of Speleology – Speleo Brazil. XXVI CBE/XIII ICS. Vol. I. Brasília: SBE, 2001.
11
AP é uma siga utilizada de forma corrente em arqueologia, representa a exp
ressão “antes do presente”, sendo que o “presente” é indexado no ano de 1950.
de produção de artefatos bifaciais, além de uma técnica de lascamento unipolar desenvolvida, semelhante
em alguns aspectos a materiais líticos do Médio São Francisco, cujas datações estão entre as mais antigas da
bacia. No entanto, no estudo do Sítio Lagoa do Peixe não foram obtidas amostras para datação12.

Foi Koole quem esclareceu o recorte temporal das ocupações de caçadores-coletores na Província Cárstica.
Seu estudo dos Sítios Arqueológicos Loca do Suim, no município de Pains, e Gruta do Marinheiro, no municí-
98 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

pio de Pimenta, estabeleceu os primeiros marcos cronológicos para a ocupação humana regional no período
Arcaico13. Na Loca do Suim foram datados fragmentos de ossos humanos provenientes de um sepultamento.
As datas recuaram as ocupações para mais de 7.000 anos AP. Na Gruta do Marinheiro, pacotes arqueológicos
com um grande número de pontas de projétil, líticas, foram datados em mais de 9.000 anos AP, nivelando
cronologicamente esse sítio com os mais antigos da bacia do Rio São Francisco.

Cercade85%dossítiosarqueológicoslevantadospossuemfragmentosdevasilhamesouutensílioscerâmicos
ainda inteiros, tais como: vasilhas, urnas, cachimbos e fusos (Graf. 2). A dissertação de Henriques foi impor-
tante no sentido de detalhar os marcos temporais para as ocupações de horticultores ceramistas 14. Os estudos
anteriores haviam obtido duas datações radiocarbônicas, ambas provenientes de um único sítio, com um
desvio padrão muito amplo15.

Foi registrada uma alta taxa de variação nas formas de vasilhames, tendo sido reconstituídos pequenos potes
globulares de formas fechadas, muitos com gargalo, até grandes vasilhames piriformes, também de forma
fechada, com paredes espessas e diâmetro de bojo oscilando em torno de 1 metro. Existem ainda aqueles de
forma aberta, grandes potes com bases semi-cônicas esféricas, “bacias” com bases globulares, e “tigelas”.

Foi comprovada também a existência de sítios de ocupação temporária na zona afótica de cavernas, pelo
estudo do Sítio Arqueológico Mané do Juquinha. Nele foram encontrados pacotes de fragmentos cerâmicos
que poderiam ser vinculados às tradições Una e Sapucaí, o que levantou dúvidas sobre os significados sobre a
separação entre essas duas tradições.

No Sítio Arqueológico Engenho de Serra, no município de Pains, foi comprovada a relação entre a tradição Sa-
pucaíeestruturasarqueológicasdenominadas“casas-subterrâneas”,fossoscircularesqueforamescavadospor
indígenaspré-históricos.Aescavaçãodeumadessasestruturasencontroufragmentosdevasilhamescerâmicos
e carvões que foram queimados no século XIII DC.

12
HENRIQUES, G.; COSTA, F. & KOOLE, E. Análise tecnológica do material lítico de um sítio de caçadores-coletores localizado na“Província Cárstica
deArcos-Pains-Doresópolis”,MinasGerais.Comunicaçãoapresentadano XICongressodaSociedadedeArqueologiaBrasileira.RiodeJaneiro:SAB,
Set./2001. 17 p. [manuscrito]
13
KOOLE, Edward, Op. cit., 2007.
14
HENRIQUES, Gilmar, Op. cit., 2006.
15
DIAS JR., O. & CARVALHO, E.“A fase Piumhy: seu reconhecimento arqueológico e suas relações culturais”. Revista Clio. n°. 5. Recife:UFPE, 1982, p.
05-43.
Datas Radiocarbônicas da Província Cárstica do Alto São Francisco

Tabela 1. Seqüência de datações radiocarbônicas de sítios


Amostra Data radiocarbônica Anos Calêndricos Sítio Arqueológico Município Instituição

Beta 193754 450 ± 60 1.420 a 1.470 DC Mané do Juquinha Pains MAE-USP

Beta 193755 600 ± 50 1.300 a 1.410 DC Mané do Juquinha Pains MAE-USP

99 | Pré-história, arqueologia e história no século XXI: a curadoria na implantação do Museu Municipal de Pains
Beta 210727 830 ± 40 1.230 a 1.280 DC Engenho de Serra Pains MC Consultoria Ltda

SI 2.368 1.000 ± 90 - Buracão dos Bichos Piumhí IAB-RJ

arqueológicos da Província Cárstica


Beta 210726 1270 ± 40 690 a 780 DC Loca do Suim Pimenta MC Consultoria Ltda

SI 2.369 1.840 ± 120 - Buracão dos Bichos Piumhí IAB-RJ

Beta 230979 3.080 ± 50 1.440 a 1.250 AC Loca do Marinheiro Pimenta MAE-USP

Beta 210400 7.440 ± 50 6.410 a 6.220 AC Loca do Suim Pains IB-USP

Beta 210401 7.530 ± 50 6.450 a 6.250 AC Loca do Suim Pains IB-USP

Beta 230980 9.620 ± 60 9.240 a 8.790 AC Loca do Marinheiro Pimenta MAE-USP

da coleção arqueológica ao acervo do museu

Os materiais coletados nesses sítios arqueológicos, bem como todos os dados que foram levantados durante
seu estudo, constituem o núcleo principal do Museu. Os objetos pré-históricos escavados na região de Pains
vêm sendo guardados e analisados no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-
USP). O primeiro desafio curatorial do Museu de Pains é constituir seu próprio acervo a partir dessa coleção de
objetos no MAE. A sua implantação marcará o início de uma nova fase na pesquisa da pré-história regional,
pois todo o acervo arqueológico que vinha sendo remetido para a reserva técnica do MAE poderá agora retor-
nar e permanecer em sua região original.

Pretende-seaindacriarainfra-estruturanecessáriaparaodesenvolvimentodepesquisascientíficasqueutilizem
oacervoarqueológicoparaaproduçãodeconhecimento.Serãoadquiridosequipamentoseconstituídososespa-
çosnecessáriospararealizaçãodeexposições,atividadesdecuradoriaeanálisedeartefatosserãoorganizadosde
acordo com suas características formais e físicas.

O projeto curatorial do Museu orienta que o seu acervo seja organizado em uma Coleção Arqueológica que,
por sua vez, seja subdividida em cinco categorias de objetos: 1) artefatos líticos polidos; 2) artefatos líticos
lascados; 3) artefatos de cerâmica; 4) restos humanos; e 5) artefatos fabricados sobre material orgânico.
1. Artefatos líticos polidos
Os artefatos líticos polidos estão ligados a populações indígenas que habitaram a região entre os séculos I
e XVI DC, e são achados com muita freqüência, seja nas áreas de lavoura, seja nas cavidades naturais. Ao
longo de quase dez anos de existência, o projeto conseguiu reunir uma quantidade considerável de lâminas
de machado polido.
100 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Tais artefatos possuem um grande apelo visual e didático, característica que justifica sua exibição com mais
destaque. Sabemos que uma gama variada de matérias-primas, geralmente rochas básicas, foi utilizada para
confecção dessas ferramentas. As jazidas naturais de algumas delas podem ser rastreadas, reconstituindo as
rotas de circulação de objetos nessas sociedades passadas. Essas informações deverão ser colocadas à dis-
posição dos usuários do Museu por meio das narrativas expositivas.

Nesse sentido, a concepção curatorial do Museu tem a missão de divulgar o rico conhecimento em per-
manente processo de construção, acúmulo e consolidação, pelas pesquisas arqueológicas sobre a região de
Pains. A idéia é difundir a discussão sobre hipóteses, como a de que algumas lâminas eram produzidas pela
alternância de atividades de lascamento, picoteamento e polimento. Pela ação de seixos ou blocos de rochas
eram reduzidos a um objeto de formato retangular, com um gume extremamente polido, lustroso em alguns
casos. Um número considerável desses artefatos foi encontrado no interior de cavernas e será incorporado
pelo Museu. No Sítio Arqueológico Gruta do Capoeirão foi encontrada uma lâmina de machado parcialmente
coberta por uma capa estalagmítica de cor esbranquiçada (foto 1).

Conjunto de 18 lâminas de machado provenientes de diferentes


sítios da região.
Esse tipo de artefato aparece no registro arqueológico vinculado à cerâmica que, por sua vez, tem seu
aparecimento ligado ao aumento quantitativo dos sítios arqueológicos e ao adensamento material do reg-
istro arqueológico. Uma hipótese levantada por essas pesquisas e que contribui para o processo curatorial
do Museu é a de que a grande ocorrência desse tipo de artefato arqueológico reflete o aumento de atividades
ligadas ao processamento de madeira entre os séculos IX e XVI DC. Essas atividades podem ter se material-

101 | Pré-história, arqueologia e história no século XXI: a curadoria na implantação do Museu Municipal de Pains
izado na derrubada de florestas para o estabelecimento de aldeias e roças de plantio, bem como na fabricação
de estruturas habitacionais e mobiliário.Tal dado será abordado na primeira exposição de longa duração do
Museu, de acordo com o seu projeto curatorial.

É interessante notar que a maior parte dos machados denota grande esmero por parte dos artesões que os
fabricaram. Via de regra, são perfeitamente simétricos, apresentando ambas extremidades - talão e gume -
perfeitamente formatadas para suas respectivas funções, a de gerar um encaixe perfeito do machado com o
cabo de madeira e a de cortar por meio de percussão.

2. Artefatos líticos lascados


Oacervodeartefatoslíticoslascadoséemgrandeparteprovenientedesítiosarqueológicosformadosporpopu-
lações de caçadores-coletores que habitaram a região há mais de 9.000 anos AP.

Existeumagrandequantidadedepontasdeflecha,fatopoucodocumentadoemsítiosarqueológicosdoEstado
de Minas Gerais. Os trabalhos no Sítio Arqueológico Gruta do Marinheiro revelaram mais de 60 pontas de fle-
cha, coletadas mediante cuidadosas medidas de registro e armazenamento16.

A coleção é formada ainda por milhares de lascas, fragmentos, instrumentos retocados das mais variadas for-
mas e técnicas de execução, coletados nos trabalhos de coleta e escavação do abrigo Lagoa do Peixe, Loca do
Suim e Gruta do Marinheiro. Esses conjuntos trazem consigo informações sobre as técnicas de fabricação de
ferramentas de rocha lascada, que vigoraram na região ao longo do início e metade do holoceno.

3. Artefatos de cerâmica
As datas obtidas até o momento permitem situar as ocupações pré-históricas de grupos horticultores-cera-
mistas no início da era cristã, há dois mil anos. O ápice da produção de artefatos cerâmicos, no entanto, se
daria entre os séculos X e XVI.

O acervo cerâmico reúne uma quantidade enorme de fragmentos cerâmicos, o tipo de vestígio mais comum na
região, seja nas áreas a céu aberto, seja nas cavidades naturais, como abrigos e cavernas.

Nesse conjunto destacam-se as bordas de vasilhames cerâmicos. Sua importância é enorme, pois funcionam
como balizadores do processo de reconstituição da forma e volume dos vasilhames pré-históricos. As bordas
KOOLE, Edward. Op. cit., 2007.
16
encontradas no Sítio Arqueológico Mané do Juquinha apresentam-se em ótimo estado de conservação, pois
estavam protegidas no interior de uma ampla caverna.

Os fragmentos de paredes e bases trazem ainda informações sobre as técnicas de fabricação dos vasilhames,
bem como ajudam a delimitar as fronteiras tecno-estilísticas que separam os conjuntos cerâmicos do Alto São
Francisco de conjuntos cerâmicos de outras regiões.
102 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Conjunto de 18 lâminas de machado provenientes de diferentes sítios da região.


A curadoria do MMP prevê que essas peças serão trazidas para o Museu, para serem guardadas, pesquisadas,
exibidas e utilizadas em estudos futuros. Serão ainda utilizadas em exposições e para estudos de reconstitu-
ição de vasilhames cerâmicos pré-históricos. Tais estudos podem contribuir para a formação de oficinas de
cerâmica que deverão ser ministradas no Museu, voltadas, principalmente, para o público estudantil.

103 | Pré-história, arqueologia e história no século XXI: a curadoria na implantação do Museu Municipal de Pains
Existem ainda artefatos cerâmicos inteiros que resistiram ao passar dos séculos e das intempéries. Em toda
região foram encontrados urnas funerárias, pequenos vasilhames, fusos cerâmicos, além de outros artefatos
de função ainda desconhecida.

Montagem com fotos de Cyro Soares e desenhos de Marcos Britto. Extraído de Koole (2007:110)

Uma preocupação central da curadoria relaciona-se à seleção de objetos da coleção acumulada de material
arqueológico para serem incorporados pelo Museu de Pains, passando definitivamente a constituir seu acervo
tombado,organizadonaColeçãoArqueológica.Algunsartefatoscerâmicosinteiros,quepossamconstituirtes-
temunhosdosparâmetrosdeformaevolumequenorteavamastécnicasdefabricaçãodecerâmicanaregiãoao
longodosdoisúltimosmilênios,atendemaosinteressesdoMMPdevidoaopotencialdepesquisaeexibição.Es-
sas peças ainda balizam as reconstituições formais e volumétricas realizadas a partir de fragmentos de bordas.
Vasilhame cerâmico encontrado no interior de
uma caverna do município de Pains.
4. Restos humanos
Osossoshumanos reunidos pelo projeto provêm de cinco sítios arqueológicos. Na Loca do Suim foram escava-
dos vários sepultamentos, sendo que um deles foi diretamente datado em mais de 7.000 anos AP. Na Gruta do
Marinheiro também foi escavado em sepultamento. No Abrigo da Lucélia e no Abrigo do Lucélio foram encon-
trados sepultamentos não enterrados. Na Loca dos Ossos foram coletados vários ossos humanos fragmentos,
resultantes de um sepultamento que fora desagregado, não sabemos ainda se por alguma pessoa ou animal.
104 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Fato extremamente raro, não só na região do Alto São Francisco, como também no âmbito da Arqueologia
Brasileira, é um sepultamento exposto localizado no Sítio Arqueológico Lucélio. O sítio ocupa um abrigo
rochoso situado no fundo de uma dolina. Os ossos de um indivíduo adulto do sexo masculino foram deposi-
tados em um nicho natural do abrigo que, com a inserção do sepultamento, assumiu a feição de uma cripta
mortuária.

Os ossos foram depositados em um nicho natural do abrigo Detalhedocrâniodoesqueleto.Ocrâniofoipreviamentecate-


e não foram enterrados. gorizadocomomongolóide,oindivíduoeradosexomasculino.

O sepultamento é do tipo secundário, ou seja, o cadáver foi enterrado e, depois de decomposto, foi desenter-
rado, os membros desarticulados sendo que as partes moles foram separadas dos ossos.

O conjunto de ossos separados dessa exumação foi então depositado na gruta, provavelmente com a rea-
lização de outra cerimônia funerária. Uma estrutura semelhante jaz no Abrigo da Lucélia, onde os ossos
de um indivíduo foram depositados nos nichos naturais formados por um paleo-piso, que se encontra na
entrada de uma pequena gruta. O crânio do indivíduo, que parece ser do sexo feminino, foi depositado em
um nicho separado dos outros ossos. Novamente vê-se que o enterramento foi feito de forma secundária:
o cadáver foi enterrado e assim foi mantido até que os tecidos mole apodrecessem, depois foi exumado
sendo que os ossos foram reagrupados e depositados na gruta.

Dada sua raridade e fragilidade, tais estruturas funerárias ainda se encontram in situ. Planeja-se equipar o Museu
MunicipaldePainscomascondiçõesnecessáriasparareceberessetipodevestígio.Casovenhamasercoletados,
taisvestígiosserãoestudadoseguardadosemsegurança,vistoquehácertoriscodessasestruturasseremimpac-
tadas por pessoas que desconheçam seu valor científico.

A curadoria do Museu pretende abordar e difundir os dados destes sepultamentos por meio da exposição dos
ossos,assimcomoporestratégiasexpositivasquevãoalémdareconstituiçãodosepultamento,apresentando

105 | Pré-história, arqueologia e história no século XXI: a curadoria na implantação do Museu Municipal de Pains
dados de maneira didática e com apelo visual para serem interpretados pelos próprios usuários.

5. Artefatos fabricadas sobre material orgânico


Uma das grandes vantagens de ambientes cársticos, do ponto de vista do arqueólogo, é a capacidade de con-
servarvestígiosorgânicosdeocupaçõesantigas.Talfatoépraticamenteimpossívelemterrenosdesedimento
ácido ou que estejam expostos às intempéries.

Foram encontrados mais de 60 exemplares dessa pequena conta de colar de formato circular feita de osso. O
“pingente”, com dois orifícios, foi fabricado sobre a concha de um molusco bivalve de água doce.

OprojetocuratorialdoMuseuconseguiureunirumconjuntoconsideráveldeartefatosfabricadossobremate-
riais orgânicos, ainda que a maioria deles esteja vinculada às ocupações mais recentes, vinculadas aos grupos
de horticultores-ceramistas. Foram encontrados vestígios variados, tais como: pontas de flecha de osso, con-
tas de colar, instrumentos fabricados sobre valvas de moluscos, espátulas e agulhas de osso.

No Sítio Arqueológico Cerâmica Pintada, recentemente trabalhado, foi encontrada uma espécie de pingente,
feito a partir de uma concha de molusco bivalve de água doce, comum nos rios e córregos da região. A matéria
prima tem um aspecto de “madre-pérola”, brilhante e liso. Foram feitas duas perfurações em uma de suas
extremidades para ser pendurado no colar. Suspeitamos que esse pingente compunha um colar com mais de
seis dezenas de contas de osso, pois foram achados na mesma caverna.
política de acervo e curadoria

Como dito anteriormente, o primeiro passo da política de acervo do museu será a formação de um acervo
museológico, a partir do acervo arqueológico reunido ao longo de quase dez anos de pesquisas. Esse processo
requer estudos técnicos e científicos que embasem a seleção de objetos arqueológicos para a composição
do acervo arqueológico. A principal característica dessa coleção arqueológica é o fato de estar em contínua
106 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

expansão por meio da coleta de campo. Os desafios apresentados, nesse sentido, são: 1) o gerenciamento
apropriado e eficiente do material e dos dados que se avolumam; 2) a organização de um arquivo que garanta
a guarda da documentação produzida pelo próprio Museu (Fundo MMP) a longo-prazo; 3) e a existência e
manutenção de instalações de reserva técnica adequadas17.

Organizado, catalogado e adequadamente acondicionado, o acervo arqueológico passará por uma segunda
etapa de seleção, propriamente curatorial, voltada para a elaboração da primeira exposição. No caso da ex-
posiçãodelongaduração,acuradoriacompreendeoconjuntodeatividadesteórico-conceituais,metodológi-
cas e técnicas que permitam a exploração científica, pedagógica e cultural do acervo arqueológico.

O grande desafio é elaborar e montar uma exposição de longa duração que consiga proporcionar aos usuários
do Museu uma experiência dinâmica, interativa e construtiva, permitindo a realização do potencial comu-
nicativo de um acervo que conta muito sobre a história dos povos que nos antecederam. Essa preocupação
liga-se à questão, também crucial, relacionada ao público do Museu. Por público entende-se o“o conjunto de
usuários de um serviço. No caso específico dos museus, os usuários são todos aqueles que utilizam um serviço
posto à disposição pela instituição museu”. Assim, o público dos museus corresponde não só aos seus visi-
tantes(“pessoasqueentramouentraramnomuseu”),mastambémaosindivíduosque,mesmoindiretamente,
“sem uma relação presencial no museu, usufruíram dos serviços ou bens por ele postos à disposição”, como
exposições itinerantes e ações pedagógicas realizadas em escolas18.

É interessante, portanto, pensar em dois tipos de público: o público real e o público potencial. No caso do
MMP, o público real imediato é a população de Pains e região, especialmente os alunos de nível fundamental
e Médio. Seu público potencial, devido à particularidade de seu acervo principal, pode ser considerado como
compostoporpesquisadoresdaculturamaterial,principalmenteosarqueólogoseestudantesdegraduaçãoe
pós-graduação interessados na pré-história do Alto São Francisco.

O MMP tem o objetivo de conectar a comunidade aos resultados das pesquisas arqueológicas. Por isso, sua
curadoria e atuação devem mirar projetos de exposição interativa, ações educativas e de extensão, com uma

17
GALLOWAY, P.; PEEBLES, C.S.;“Notes from underground: archaeological data management from excavation to curation”. In: Curator 24/4, 1981,
p.226 apud MORAIS, José; AFONSO, Marisa. “Arqueologia brasileira no MAE/USP: pesquisa, ensino, extensão e curadoria” In: Anais I Semana de
Museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1999, p.37-42.
18
MOREIRA, Fernando. A questão do público em museus locais. In: Musas – revista Brasileira de Museus e Museologia. Ano 3. No. 3. Rio de Janeiro:
IPHAN, 2007, p.101.
abordagem de recreação cultural, mas sempre à luz da ciência. O objetivo do Museu é transcender o modelo
expositivoinertedecoleções,mirandoemumafunçãosocialdedevoluçãoàpopulaçãodoconhecimentogerado
por projetos de pesquisa científica. Um museu de portas abertas, inserido na comunidade e ativo no registro e
divulgação de sua cultura e memória.

107 | Pré-história, arqueologia e história no século XXI: a curadoria na implantação do Museu Municipal de Pains
Umdosinstrumentosseráacriaçãodeumaexposiçãodelongaduraçãopelaqualovisitantepossaconhecerapré-
história do Alto São Francisco e a atividade arqueológica, com destaque para as pontas de flecha com 11 mil anos
AP. O museu buscará ser um espaço estimulante para a cultura local.

Como todo museu, o MMP buscará criar sua própria espetacularização19, ou seja, a utilização de recursos
visuais em busca de exposições-espetáculo, como forma de realçar o acervo exposto. Design criativo, ambien-
tações, banners com fotos, padronização da logomarca, cartazes, são meios de captar a atenção do visitante
para o museu e seu acervo.

Para alcançar esses objetivos, será fundamental criar parcerias com as ONGs da região que atuem em setores
sócio-ambientais,buscandoacontribuiçãodeentidadesnodesenvolvimentodomuseu,principalmenteações
de educação e extensão. Crucial também será a interação do público com o material exposto. O contato direto
com as peças líticas e cerâmicas permite ao público ampliar as possibilidades de levantamento de informa-
ções, na medida em que pode tocar e sentir, aproximando-o do museu e seu acervo.

Outra vertente será a realização de oficinas de lavagem e triagem de material arqueológico. Nessas atividades,
coordenadas pelo corpo técnico do Museu, alunos voluntários aprenderão os métodos de limpeza e triagem
dos artefatos arqueológicos. Dessa maneira seriam formados estagiários para futuras etapas de escavação e
análise de material no laboratório do Museu.

Essas metas podem ser alcançadas por meio das visitas regulares de alunos das escolas públicas do ensino
fundamentalemédioquandoatividadesespecíficasforemrealizadas,utilizandoomuseucomoumambiente
culturalmente instigante. Atividades direcionadas com a terceira idade devem ser desenvolvidas também
como forma de atrair a comunidade aos museus.

Devido a seu potencial para pesquisas, o MMP buscará também parcerias com pesquisadores convidados. O
desafiodeimplantarumMuseuatuantenacomunidadeecientificamenteestimulantesópodeservencidocom
umaequipemultidisciplinarqueestejaenvolvidaemaçõesefetivas.Porisso,pesquisadoresatuantesnaregião
devem ser convidados para palestras e oficinas.

SCHEINER,Tereza C.T. P. Formação de Profissionais de Museus: Desafios para o próximo milênio. In: Anais da II semana dos museus da Universidade
19

de São Paulo. São Paulo: USP, 1999, p. 87-100.


Para conduzir essas ações e principalmente a política de acervo, sugerimos que, nesse caso, o conceito cura-
dor-professor20 utilizado para museus em universidades onde a educação deve preponderar, deve ser substi-
tuídopeloconceitodecurador-pesquisadoroucurador-arqueólogo.Esseprofissionaltemoimportantepapel
de aproximar as exposições, temporárias ou não, dos últimos resultados das pesquisas em andamento. A ar-
queologia é uma disciplina acumulativa de conhecimentos e esse processo é dinâmico. Ou seja, a velocidade
comquesurgemnovashipótesesousedescartamoutrasnaspesquisasarqueológicasdeveestarrepresentada
108 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

nas exposições do museu, o que nem sempre acontece.

Em suma, o Museu Municipal de Pains tem como objetivo maior difundir as pesquisas e os vestígios ar-
queológicos que nos remetem a uma história de longa duração, com rupturas e hiatos: desde os primeiros
caçadores-coletores com datas do pleistoceno tardio (11.000 anos AP) até os grupos de ceramistas presentes
edo início da era cristã (séc. II DC) até o contato com o processo colonial, no século XVI DC. Obviamente, todo
este esforço deve levar em consideração o déficit na educação formal da população brasileira como um todo,
multiplicado,quando observamos a ausência do tema arqueologia brasileira na grade curricular. Assim, trans-
formar essa realidade, tornando a arqueologia mais difundida entre a sociedade brasileira, é um dos grandes
desafios do Museu.

AimplantaçãodoMuseuMunicipaldePains,processoqueestáprevistoparaserconcluídonosegundosemes-
tre de 2008, inaugura uma nova etapa dos estudos da pré-história da Província Cárstica do Alto São Francisco.
Além de se configurar como uma instituição de pesquisa, atuando diretamente na coleta de dados, o MMP
também atuará na divulgação e educação dos cidadãos sobre a importância de sua região, que apresenta
alguns dos mais antigos registros arqueológicos da ocupação humana no Brasil.

Anexo I - Estado da futura sede do Museu Municipal de Pains

A casa destinada a ser a sede do museu é uma antiga sede de fazenda, cuja construção data de meados do
século XX. A edificação da casa ocupa uma área de 132 m², o terreno em torno da casa possui cerca de 4
hectares de área, contando com afloramentos rochosos, amplo espaço gramado, áreas de bosque, além da
nascente de um pequeno regato. A edificação está em bom estado de conservação, como pode ser visto nas
fotos abaixo, necessitando de reformas centradas no acabamento, a fim de eliminarem pequenas rachaduras
e fissuras no reboco (foto 3). Será feita ainda toda a pintura do imóvel.

A base da edificação possui um porão em ótimo estado com 63 m² (foto 7) que será destinado à reserva
técnica do museu, onde serão mantidos os materiais arqueológicos que não estiverem em exposição. O porão
sofrerá uma reforma para que agentes de infiltração e umidade sejam afastados. Após essa reforma, equipa-

20 SARIAN, Op. cit., 1999.


109 | Pré-história, arqueologia e história no século XXI: a curadoria na implantação do Museu Municipal de Pains
mentos para leitura da temperatura e umidade relativa do ar, além de aparelhos de ar condicionado e desu-
midificadores serão naquele local instalados .

A parte superior da edificação ocupa uma área de 132 m², com as seguintes divisões: Um alpendre (fotos
1 e 3), duas salas de estar, uma copa, uma cozinha, dois banheiros e sete quartos. Esses compartimentos, à
exceção do alpendre, serão utilizados para abrigar espaços para exposição do acervo arqueológico e adminis-
110 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

tração do museu. Serão providenciados uma sala de reuniões, uma sala de projeção de material audiovisual,
duas salas administrativas, um almoxarifado, despensa e copa. Grande parte do mobiliário e do equipamento
a ser adquirido ficará neste nível superior da edificação: mapotecas, armários, computadores, equipamentos
de exposição e ensino, ar condicionado, mesas e cadeiras.

Agradecimentos
As fotos deste texto foram produzidas pelo fotógrafo Cyro José Soares. A foto 5 foi feita por Jader Caetano de
Oliveira. Os desenhos de pontas de flecha foram feitos por Marcos Eugênio Britto.

Referências Bibliográficas

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SARIAN, Haiganuch. “Curadoria sem Curadores?”. In: Anais I Semana de Museus da Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 2001, p.
33-7.

111 | Pré-história, arqueologia e história no século XXI: a curadoria na implantação do Museu Municipal de Pains
SCHEINER, Tereza C. T. P.“Formação de Profissionais de Museus: Desafios para o próximo milênio”. In: Anais da II semana dos museus da
Universidade de São Paulo. São Paulo: USP, 1999. p. 87-100.
em torno da curadoria
deacervos museológicos,
poucas (mas úteis) considerações

Marcus Granato
Cláudia Penha dos Santos
Nossoobjetivonessetextoéapresentaralgumasconsideraçõessobreotemacuradoriadeacervosmuseológicos,
aproveitandoparadiscutirquestõesqueconsideramospertinentes.Aprimeiradasquestõesrefere-seaopróprio
títulodotexto:oqueentendemosporcuradoriadeacervos?Conceituarcuradoriadeacervosnãoétarefatrivial,
pois a própria expressão traz em si palavras com significados não muito precisos, a despeito de serem ampla-
mente utilizadas. Além da própria palavra curadoria, estamos nos referindo ao termo acervo, que na literatura
inglesa aparece como coleção. Apesar de não ser nosso objetivo abordar a noção de curadoria ou de curador,
temas que deverão ser abordados em outro texto nesta mesma publicação, citaremos algumas definições, de
forma a situar o leitor em relação à perspectiva sobre a qual discorreremos. Procuraremos dar ao leitor uma
visão ampla sobre o tema e, para tanto, utilizaremos referências bibliográficas disponíveis tanto em língua es-

113| Em torno da curadoria de acervos museológicos, poucas(mas úteis) considerações


trangeira, como textos de autores nacionais, não sendo nosso objetivo fazer uma revisão bibliográfica.

É importante ressaltar também que não é objetivo do presente trabalho a discussão sobre curadoria de acervos
noâmbitodosmuseusdearte,nemdiscutirsobrecuradoriasdecoleçõescientíficasnãomuseológicas,massim
problematizar o que denominamos de curadoria de acervos museológicos.Relacionada à primeira questão já
colocada para nortear nossas reflexões, surge uma pergunta correlata: o conceito de curadoria de acervos
museológicos refere-se apenas ao gerenciamento de coleções ou existem outros sentidos para o conceito?

conceituando curador e curadoria

Nostextospesquisados,buscamosquasesempreoconceitodecurador,poisjulgamosqueessadefiniçãoestá
diretamenterelacionadacomaconceituaçãodecuradoria.Nosdicionárioseenciclopédias,muitosdisponíveis
na Internet, a quase maioria das definições refere-se a curador como o profissional que lida diretamente com
coleçõesmuseológicas,comacervosmusealizados.Naquasetotalidadedostextospesquisados,persisteuma
visão tradicional de museu, na qual os objetos são o ponto central, a partir do qual o campo dos museus é
definido, assim como suas respectivas atividades.

Na conceituação encontrada na The National Trust1, curadores são profissionais que cuidam de coleções,
estando envolvidos com as ações de apresentação e de exposição, pesquisa, catalogação, aquisição e ma-
nutenção, além da coordenação da equipe de voluntários. É importante que o curador tenha qualificação,
podendo ser um título de Doutor em Filosofia (na abreviatura em inglês, Ph.D.), em áreas como estudos mu-
seológicos, arqueologia, história ou arte. Alguns tipos de curadoria, em especial a das coleções científicas,
exigem conhecimento em áreas específicas, como por exemplo, Botânica, Zoologia ou Geologia. Nessa con-
cepção, as carreiras relacionadas à de curador seriam a de conservador, a de arquivista e a de arqueólogo.

1
Fundadaem1895,naInglaterravitoriana,TheNationalTrustéumainstituiçãodecaridade,nãogovernamental,quevivededoaçõeserecur-
sos de seus associados e que tem por objetivo proteger as construções, o litoral e a área rural da Inglaterra, Irlanda e País de Gales. Contando
com 3,5 milhões de membros e 43 mil voluntários, a instituição protege cerca de 300 casas e jardins históricos, além de 49 monumentos
industriaisemoinhos.Disponívelem:http://www.nationaltrust.org.uk/main/w-chl/w-places_collections/w-collections-main/w-collections-
recent_work/w-collections-curatorship.htm. Acesso em: 21 de Mar. 2008.
Para BURCAW2, o termo curador refere-se ao profissional que é responsável pelas coleções museológicas e
que, em grandes museus, deve existir um profissional para cada uma das suas princiais divisões, por exemplo:
curador de história, de arte, de exposições, de educação.

Em alguns dos textos3 pesquisados, verifica-se que há uma semelhança na definição de curador, como o
profissional responsável pelas coleções institucionais, com elevado título acadêmico e responsabilidade de
114 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

produção de conhecimento em sua área de atuação. Contudo, percebemos a existência de uma mudança de
foco no papel de curador, cuja ênfase está se movendo de uma função puramente de pesquisa acadêmica em
direção a áreas de enfoque mais amplo, como apresentado no trecho a seguir:

Recentemente, a complexidade crescente de muitos museus e organizações culturais e o correspondente


surgimento de programas profissionais em áreas como Estudos Museológicos, Artes, Administração, e
História Pública, encorajaram o desenvolvimento de curadores com treinamento em áreas não acadêmicas
como a administração sem fins lucrativos, o levantamento de recursos financeiros e a educação pública.4

Para traçar esse breve panorama foram consultadas também publicações do Conselho Internacional de Mu-
seus – ICOM, mais especificamente textos produzidos no âmbito do Comitê Internacional para oTreinamento
de Pessoal - ICTOP. Um documentos editado por esse comitê em 20085, espécie de guia que tem entre seus
objetivospromoveroreconhecimentonacionaleinternacionaldosprofissionaisdemuseuseareflexãocrítica
sobre a natureza especial do museu como instituição. Nesse guia são definidas três áreas principais nas
quais as atividades dos museus são delineadas: coleções e pesquisa; serviços para visitantes; e administração,
gerenciamento e logística. As profissões que nos interessam mais diretamente são as relacionadas à área de
Coleções e Pesquisa, pois entre elas aparecem as figuras do curador e do assistente de curadoria.6 Cabe ao
curador, que por esse documento deve ter um título de mestre em ciências, a responsabilidade pelas coleções,
incluindoasatividadesdeplanejamentoeimplementaçãodoprogramadeguardaecatalogação;asupervisão
dosprocedimentosdeconservação;oestudodacoleção,definindoeconduzindoprojetosdepesquisa;oaten-
dimentoàcirculação da informação nos sistemas de documentação das coleções e exposições; a contribuição
paraoplanejamentoeorganizaçãodeexposiçõespermanentesoutemporárias,publicaçõeseatividadespara
o público; o gerenciamento dos recursos e da equipe do museu, sob a supervisão do diretor. Notamos que as
funções do curador propostas pelo guia não diferem muito das demais noções já apresentadas, exceto pelo
fato do curador ser o responsável pelas coleções na ausência do diretor do museu, explicitando, assim, o seu
papel de responsável legal.

2
BURCAW, Ellis G.. Introduction to Museum Work. Nashville (EUA): American Association for State and Local History,1983. p. 39
3
Disponívelem:http://www.prospects.ac.uk/cms/ShowPage/Home_page/Explore_types_of_jobs/Types_of_Job/p!eipaL?state=showocc&pageno=1&id
no=363. Acesso em: 22 de Mar. 2008.
4
Disponível em: http://www.answers.com/curator . Acesso em: 28 de Mar. 2008.
5
RUGE, Angelika (ed.). Museum Professions: A European frame of reference. ICTOP. Paris: ICOM, 2008. Disponível em: http://ictop.f2.fhtw-berlin.de/
content/blogcategory/35/62/. Acesso em: 28 de Mar. 2008.
6
Asdemaisprofissõeslistadasnessaáreasão:coordenadordeinventário,registrador,conservador,gerentedocentrodedocumentação,curadorde
exposições, designer de exposições.
EmoutrapublicaçãodoICOM7 encontramosumarecomendaçãosobreanecessidadedotrabalhoemmuseus
serdesenvolvidodeformacooperativa,aspectoqueconsideramosfundamentalparapensaraquestãodacura-
doria de acervos. Nas palavras de seu editor e coordenador Patrick J. Boylan existe a necessidade“(...) de que
a equipe de cada museu coopere entre si e trabalhe de forma articulada e de rapidamente desenvolver uma
compreensão sobre o trabalho e sobre as responsabilidades de cada pessoa que trabalhe no museu”tradução
dos autores).8 Desse manual, destacamos também o capítulo“Gerenciamento de Coleções”(Collections Man-
agement), de Nicola Ladkin, no qual encontramos a seguinte definição para gerenciamento de coleções:

(...) termo aplicado aos diversos métodos legais, éticos, técnicos e práticos, pelos quais as coleções muse-

115 | Em torno da curadoria de acervos museológicos, poucas(mas úteis) considerações


ológicas são agrupadas, organizadas, pesquisadas, interpretadas e preservadas. (...)Tem relação com aspec-
tos da preservação, do uso das coleções, e manutenção dos registros, assim como com a forma pela qual as
coleções embasam a missão e o propósito do museu. 9

Os destaques revelam aspectos que precisam ser considerados ao pensarmos em curadoria de acervos: o
carátercooperativodasatividadesdequalquermuseu,asquestõeséticasrelacionadasàaquisiçãoeutilização
das coleções e à necessidade constante de reflexão sobre a relação entre coleção e a missão e os propósitos
da instituição museu.

Um último aspecto que merece ser destacado é o caráter social da prática curatorial. Diferente da maioria das
noções encontradas, Christina Kreps aponta, em seu artigo, para a questão social, além de propor que o debate
acerca da orientação dos museus e da curadoria, focado nas pessoas ou nos objetos, seja superado.

Museus e o trabalho museológico não existem no vácuo, mas são partes de sistemas sócio-culturais que in-
fluenciam como e porquê o trabalho curatorial é realizado. Como a curadoria não pode ser separada desses
contextos,pareceapropriadoquepesquisadoreseprofissionaisdemuseusestejamredefinindoacuradoriade
forma a reconhecer as dimensões cultural e social, tanto para os objetos como para o trabalho curatorial. (...)
Objetos em museus somente têm significado e valor quando relacionados a pessoas. O que precisamos é uma
abordagem do trabalho curatorial que reconheça o inter-relacionamento dos objetos, pessoas e sociedade, e
expressem essa relação em contextos sociais e culturais. 10 )

Encontramospoucostextosbrasileirosreferentesaotema,comexceçãodaquelesdedicadosàquestãodacura-
doria em museus de arte, que não é o nosso foco. Nas recentes publicações do Departamento de Museus e
Centros Culturais (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Ministério da Cultura - IPHAN/MINC),11
7
Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001410/141067e.pdf. Acesso em: 25 de Mar. 2008.
8
BOYLAN, Patrick (org.) Running a Museum: A practical handbook. França: ICOM, 2004, 235p. p. vii. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/
images/0014/001410/141067e.pdf. Acesso em: 25 de Mar. 2008 (tradução pelos autores).
9
NICOLA, Ladkin. Collections Management. In: BOYLAN, Patrick (org.) Running a Museum: a Practical Handbook. Paris: ICOM, 2004. Disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0014/001410/141067e.pdf. Acesso em: 25 de Mar. 2008. Tradução e grifo dos autores.
10
KREPS, Christina. Curatorship as a social practice. Curator, 46/3, July, p. 311-323, 2003 p. 312 (tradução dos autores).
11
Os documentos consultados foram: Política Nacional de Museus (Memória e Cidadania), Política Nacional de Museus (Relatório de gestão
nãoencontramosreferênciaaotermocurador,curadoriaoucuradoriadeacervos.Umapossívelexplicaçãotalvez
se deva ao fato de, no Brasil, algumas das funções tradicionalmente exercidas pelo curador serem normalmente
atribuições do museólogo.

O curso mais antigo de formação profissional na área de museus data de 1932, tendo sido criado como um
curso técnico para atender às demandas do Museu Histórico Nacional, do Arquivo Nacional e da Biblioteca
116 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Nacional e, ao longo de sua trajetória, o profissional por ele formado recebeu diferentes denominações: con-
servador,museologistaoumuseólogo.12Apesardasváriasmudançasnagradecurriculardocursodeformação
deBacharelemMuseologia,13 podemosperceberqueasdiversasdisciplinasministradasnessecursoguardam
um caráter que as aproxima muito do trabalho com a curadoria de acervos museológicos.

A partir das reflexões de Peter van Mensch, podemos entender as mudanças ocorridas no campo dos museus e
da Museologia, assim como a alteração no perfil do profissional denominado curador. No período que o autor
denomina de“primeira revolução dos museus”(1880-1920), surgem as primeiras organizações profissionais
nacionais, o primeiro código de ética e é estabelecido o primeiro programa de treinamento profissional. Para
o autor“Dentro desse contexto o termo‘museologia’foi introduzido para identificar essa perspectiva profis-
sional emergente”14 No início, a Museologia estava dominada pelas disciplinas especializadas e esse conceito
refletia-se na estrutura organizacional tradicional dos museus, estando na base dessa estrutura o conceito de
“curadoria”.“O curador arquetípico é treinado como um especialista e, assim, responsável pela totalidade das
atividadesmuseológicasdentrodeummuseu(pesquisa,documentação,conservação,exposição,educação)”.15
A partir de 1960, no período denominado“segunda revolução dos museus”, a organização dos grandes mu-
seusmostraumasubdivisãobaseadaemáreasfuncionais,comoeducação,comunicaçãoegerenciamentodas
coleções. As estruturas organizacionais baseadas nas especializações diminuem e a figura do curador desa-
parece.“Está claro que nesse novo modelo o curador não é mais o centro do universo. Em realidade, nesse novo
modelo, estritamente falando, não há mais curador”.16 Para o autor, testemunhamos, no momento, a terceira
revolução dos museus, resultado da introdução de uma nova forma de compreender e dirigir a instituição
“museu”,queésintetizadapelotermogerenciamento(management).Compreendemosqueoautorreferiu-se
à necessidade cada vez maior do profissional de museus se debruçar sobre áreas como a captação de recursos
e o gerenciamento financeiro, tornando-se a administração eficaz dessas instituições um ponto central para
sua sobrevivência.

2003/2004), Programa de Formação e capacitação em Museologia Projeto, 1º Fórum NacionaldeMuseus,ObservatóriodeMuseus e CentrosCultu-


rais,PolíticaNacionaldeMuseus(RelatóriodeGestão2003/2006)ePolíticaNacionaldeMuseus.Disponívelem: http://www.museus.org.br. Acesso
em: 20 de Mar. 2008.
12
SÁ, Ivan Coelho de; SIQUEIRA, Graciele Karine. Curso de Museus – MHN, 1932-1978: Alunos, graduandos e atuação profissional. Rio de Janeiro:
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007. p. 15
13
Estamos utilizando como referência o curso de Bacharel em Museologia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro- UNIRIO.
14
MENSCH,Petervan.Museologyandmanagement:enemiesorfriends?CurrenttendenciesintheoreticalmuseologymanagementinEurope.Dispo-
nívelem:http://.www.icom-portugal.org/multimedia/File/Y%20jornadas/rwa_publi_pvm_2004_1.pdf.Acessoem:28deMar.2008(Traduçãodos
autores).
15
Ibid. p.4.
16
Ibid. p.5.
o colecionismo, as coleções, os acervos museológicos

As coleções e os acervos museológicos advêm, obviamente, do fenômeno do colecionismo. Contemporâneo


da necessidade dos homens primitivos de agrupar objetos utilitários, o colecionismo pode ser definido como
a prática de selecionar, agrupar, organizar e guardar objetos e, a partir desses conjuntos, passar à troca e à
exibição dos mesmos, ou de parte deles.

Apartirdosobjetosutilitários,ohomemestendeuseumovimentodecolecionismoparaobjetosdeusoreligioso

117 | Em torno da curadoria de acervos museológicos, poucas(mas úteis) considerações


e, aos poucos, aos evocativos. Na maioria das vezes, são os interesses pessoais que movem as pessoas dentro
desseuniverso,seguindonecessidadesourefletindomoçõesmuitasvezesinconscientes.Noentanto,ésempre
do espaço simbólico que estamos tratando,“de apropriação do invisível”17, pois essas ações humanas têm um
significado,eosimbolismoqueasrevesteétransferidoparacoisas,objetospalpáveis,agoranodomíniodoreal.
Francisco Marshall vai mais além, em seu estudo epistemológico sobre o colecionismo, como vemos no trecho
aseguir:“Consideradoemsuadimensãoordenadora,ocolecionismodespontacomoumdosfundamentoscul-
turais de mais profundo enraizamento e de mais amplas conseqüências em toda a trajetória humana”.18

O mesmo autor traça uma relação profunda entre o coletar e o comunicar, que embasa as afirmações anteriores.

Colecionar, do latim collectio, possui em seu núcleo semântico a raiz leg, de alta relevância em todos os
falares indo-europeus - e mesmo antes, pois esta raiz está entre as poucas que conhecemos do proto-indo-
europeu, há mais de 4 mil anos atrás, com sentidos ordenadores. (...) Nesta família lingüística, aparece o
núcleo semântico e significativo do colecionismo: uma relação entre por em ordem - raciocinar – (logeín) e
discursar (legeín), onde o sentido de falar é derivado do de coletar: a razão se faz como discurso. O discurso
morada da razão. Ordenar, colecionar, narrar.19

O colecionismo ligou-se, desde a origem, à idéia de posse, e a posse tornou-se manifestação de poder. Pouco
a pouco, as grandes coleções vão se formando e se relacionam aos donos do poder, suzeranos, reis e im-
peradores, mas, em paralelo, relacionam-se ao desejo genuíno de conservar, para repassar o patrimônio às
gerações futuras.

São as coleções que muitas vezes vão dar origem a museus e, por outro lado, às vezes, coleções inteiras são
incorporadasaessasinstituições.Passamentãoaserreconhecidascomopartedoacervomuseológico,aquele
pertencente ou sob a guarda dos museus e, por isso, condicionado a uma série de procedimentos e valorações
específicos a esse espaço simbólico. No entanto, o colecionismo continua como movimento que se desen-
volve até os dias de hoje, tanto nos museus, como colecionismo institucional, como entre as pessoas, como
17
SEPÚLVEDA, Luciana, Coleções que foram museus, museus sem coleções, afinal que relações possíveis? In: GRANATO, Marcus; SANTOS, Claudia
Penha dos. Museu Instituição de Pesquisa. MAST Colloquia, v. 7, Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, p.65-79, 2005.
18
Marshall, Francisco. Epistemologias históricas do colecionismo. Episteme, n. 20, p. 13-23, jan./jun., 2005. p. 13
19
Ibid. p.15.
colecionismopessoalouparticular,aindareflexodossentimentosoriginaisjámencionados.SegundoKrysztof
Pomian, em sua clássica definição, a coleção é:

(...) um conjunto de objetos artificiais ou naturais reunidos, coletados, mantidos, temporária ou perma-
nentemente, fora do circuito de atividades econômicas, submetidos a uma proteção especial em local
fechado,destinado a esta finalidade (...).20
118 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Para esse autor, os objetos pertencentes às coleções possuem uma natureza similar, todos fariam pontes entre
dimensõesdiferentes,seriamobjetosportadoresdesentidos,símbolos;portanto,viasdeacessoentretempos
e realidades diversas, semióforos.

Nos museus, os acervos museológicos, objeto de nosso interesse nessa reflexão, podem ser abordados de
diversasformas. Recentemente, Suzanne Keene21 apresentou quatro perspectivas diferentes para análise dos
acervos museológicos: relacionados às artes, aos objetos funcionais, os chamados pela autora de arquivos de
pesquisas e os acervos relacionados às pessoas e a lugares. Entre eles existem diferenças específicas relacio-
nadas ao seu propósito, ao número de objetos colecionados, à proporção deles que é exposta, a quem utiliza
essas coleções e a seus usos potenciais ou reais.

Um dos propósitos principais de alguns acervos é seu apelo estético. Nesses acervos, os objetos em geral
são em número mais reduzido, mas de alto valor embutido, especialmente pela concorrência existente com
colecionadores e instituições privadas no mercado internacional da arte. A grande maioria dos objetos está
em exposição, seja permanentemente, seja em exposições ou exibições temporárias, ou por empréstimo a
outras instituições. Um modelo para isso pode ser representado pelo acervo do Museu Nacional de Belas Artes
(MNBA), no Rio de Janeiro,22 que conta com cerca de 20.000 peças, entre obras de pintura, escultura, desenho
egravurabrasileira e estrangeira dos séculos anteriores até a contemporaneidade, além de reunir um segmen-
to significativo de Arte Decorativa, Mobiliário, Glíptica, Medalhística, Arte Popular e um conjunto de peças de
Arte Africana. Nesse caso específico, em condições normais de funcionamento, cerca de 10%23 das obras está
em exposição permanente, em vista da escassez de espaço necessário para ampliar esse percentual.
Objetos funcionais nos acervos são aqueles que causam uma expectativa no público do modo que foram
feitos para funcionar, assim demonstrando sua função original. As coleções científicas e tecnológicas são
representativasdessetipodeperspectiva,incluindoveículos,instrumentosmusicais,instrumentoscientíficos,
utensílioseequipamentosagrícolas,etc.NoBrasil,umexemplopodeserencontradonoMuseudeAstronomia
e Ciências Afins (MAST)24, onde o acervo museológico conta com várias coleções, sendo a de instrumentos
científicos a principal, com mais de 2.000 objetos, incluindo instrumentos de astronomia, engenharia nuclear,

20
POMIAN, Krysztof. Collectionneurs, amateurs et curieux, Paris, Venize: XVIo-XVIIIo siécle. Paris: Galimard. 1987 (tradução dos autores).
21
Cf. KEENE, Suzanne. Fragments of the world: Uses of Museum collections. Elsevier Butterworth-Heinemann: Oxford (UK), 2005.
22
Disponível em: http://www.mnba.gov.br. Acesso em: 21 de Mar. 2008.
23
Informação obtida em entrevista com a diretora do MNBA, museóloga Mônica Xexéu, em 02 de abril de 2008.
24
Disponível em: http://www.mast.br. Acesso em: 21 de Mar. 2008.
tecnologia mineral, química, topografia, dentre outras tipologias. Alguns objetos desse tipo de coleção pos-
suemvalordemercadoelevado,porsuararidadeousimbolismohistórico,masamaioriadosobjetosapresenta
valor muitas vezes relacionado apenas ao custo de sua remoção de seus locais de origem. Como já discutido
por um dos autores desse texto25, colocar esses objetos para funcionar, mesmo que para isso seja necessária
uma restauração intervencionista em grande escala, é um tema com duas claras vertentes, uma a favor e outra
contra, mas ainda hoje uma discussão não finalizada. Especialmente na Inglaterra, onde, em 1989, Peter Mann
defendiaqueosmuseusdeciênciaapresentariamumaéticadiferenciadadosdemaismuseus,ondeoobjetivo
primordial seria a exploração do artefato para benefício do público, em detrimento da preservação de evidên-
cias materiais. E, mais recentemente, podemos ver o mesmo debate retomado por Suzanne Keene.26

119 | Em torno da curadoria de acervos museológicos, poucas(mas úteis) considerações


Numaterceiragrandeclasseestãoosacervosmuseológicosqueseconstituem,fundamentalmente,emfontes
primárias de pesquisa. O número de objetos é freqüentemente muito elevado, como as cerca de 20 milhões
de peças do Museu Nacional27, pertencente à Universidade Federal do Rio de Janeiro, envolvendo itens das
coleções científicas conservadas e estudadas pelos Departamentos de Antropologia, Botânica, Entomologia,
Invertebrados,Vertebrados,GeologiaePaleontologia.Nãoéfunção,emgeral,dessascoleçõesseremexpostas
aopúblico.Talvezumapequena partedosobjetos,consistindo deespécimesilustrativosoudecaráterexótico,
seja apresentada ao público, mas o destino da grande maioria é permanecer na reserva técnica, preservada
para possíveis estudos futuros. As coleções arqueológicas e de história natural são típicas desse grupo.

A quarta tipologia de acervos é mais difícil de delimitar. De certa forma, inclui itens das três anteriores.
Os acervos relacionados a lugares e a pessoas compreendem a maioria dos objetos dos museus (coleções
históricas, etnográficas, militares, de objetos domésticos, de arte decorativa, etc) e, em sua maior parte, os
objetos estão guardados nas reservas técnicas. São desses acervos os objetos que se relacionam à memória
coletiva ou social, às comemorações de fatos e eventos históricos, ou que representam as raízes culturais
de indivíduos e grupos sociais. Com freqüência, esses acervos estão organizados e documentados de forma
inadequada e, portanto, pouco acessíveis. Isso ocorre, especialmente, nos casos onde os acervos se ampliam
rapidamente em número de objetos e onde os recursos, sejam financeiros ou de pessoal, são escassos. Muitas
das vezes, os recursos existentes ou captados são priorizados ou estão disponíveis apenas para as exposições
e não para os objetos acondicionados em reservas técnicas.

Comobrevementediscutido,osacervosapresentamparticularidades,muitossãohomogêneos,enquantoout-
ros têm uma grande diversidade de tipologias de objetos, tudo isso interferindo no trabalho de curadoria. Por
outrolado,asinstituiçõesqueosdetêmsãotambémdiversasecomproblemasvariados,quetambémrefletem
na atuação da curadoria desses acervos. Esses fatos determinam uma grande diversidade da forma de atuação
do curador.
25
GRANATO,Marcus.Restauraçãodeinstrumentoscientíficoshistóricos.In:GRANATO,Marcus;SANTOS,ClaudiaPenhados;ROCHA,ClaudiaRegina
Alves da. Conservação de Acervos. MAST Colloquia, v. 9, Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins, p.121-144, 2007. p. 133.
26
KEENE, Suzanne. Fragments of the world... Op. cit. p.28.
27
Disponível em: http://www.museunacional.ufrj.br. Acesso em: 21 de Mar. 2008.
curadoria de acervos no brasil

No Brasil, as questões referentes à curadoria de acervos são objeto principalmente dos trabalhos publicados
pelosprofissionaisdosmuseusuniversitáriosdaUniversidadedeSãoPaulo(USP).Nessasinstituições,umtema
unificador das pesquisas é a cultura material, como destacado por Brandão e Costa.28 Ressaltamos, a seguir,
alguns textos relacionados que consideramos relevantes para pensar a questão da curadoria de acervos.
120 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Em artigo que tem como foco os acervos têxteis que hoje integram as coleções da USP, Teresa Cristina Toledo
de Paula29 apresenta algumas características das práticas curatoriais do século XIX para esses acervos. As seis
características apresentadas em seu artigo são pontos importantes de reflexão para a curadoria de acervos na
atualidade: a instabilidade na formação e na movimentação das coleções, provocando“a ruptura e a perda de
sentido”;asuperficialidadenadocumentaçãodascoleções;aimpermanência,referenteàmáconservaçãodos
acervos; a indiferença, que diz respeito aos diferentes graus de importância dos objetos componentes de um
acervo; o exagero, referente à ausência de critérios de coleta; e a inquietação, talvez a única das características
que pode ser considerada positiva, pois carrega em si um potencial de transformação.

Compreendemos que essas características se aplicam a muitos acervos museológicos, mas uma das mais in-
teressantes apontadas pela autora refere-se à instabilidade na formação e na movimentação das coleções. E
algunsacontecimentosrecentes,relacionadosdiretamenteàgestãopolíticaeadministrativadasinstituições,
nos fazem acreditar que esse aspecto ainda é recorrente no universo dos museus brasileiros. À guisa de ex-
emplo, relatamos a difícil situação política pela qual passou o Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST/
MCT), cuja existência foi ameaçada há alguns anos, no âmbito de um processo coordenado pelo Ministério
da Ciência e Tecnologia, para junção do museu a um outro instituto de pesquisa, o Observatório Nacional.
Felizmente, a junção não foi consolidada, mas durante um bom tempo as atividades relacionadas à pesquisa
e documentação do acervo museológico, assim como as atividades de coleta, foram interrompidas. Outro
exemplo que merece ser citado é o do patrimônio ferroviário proveniente da antiga Rede Ferroviária Federal
S.A. (RFFSA) que, com a privatização, pulverizou-se, com sério risco de perda. Esperamos que a incorporação
do acervo da Rede pelo IPHAN amenize, pelo menos em parte, os danos já produzidos.

Na Semana de Museus realizada em 2004 na Universidade de São Paulo (USP), a questão da curadoria foi de-
batida em uma mesa-redonda intitulada“Processo Curatorial: Metodologias deTrabalho”. Entre os trabalhos
apresentados, destacamos os de Fabíola Andréa Silva do Museu de Arqueologia e Etnologia - MAE/USP, ref-
erente à curadoria da coleção etnográfica Kayapó-Xikrin, e o de Solange Lima, sobre a noção de curadoria no
Museu Paulista - MP/USP. No primeiro texto, a autora relata a experiência de curadoria a partir da visão das
diversas pessoas envolvidas no processo:
28
BRANDÃO, Carlos Roberto Ferreira; COSTA, Cleide. Uma crônica da integração dos museus estatutários à USP. Anais do Museu Paulista, janeiro-
junho, v. 15, n. 1, p.207-311, 2007.
29
Cf. PAULA,Teresa CristinaToledo de.Tecidos no museu: argumentos para uma história das práticas curatoriais no Brasil. Anais do Museu Paulista
(Vol.14, n.2 jul-dez, 2006). p. 253-298.
(...) Nosso maior desejo era que esse trabalho de curadoria fosse uma tentativa de estabelecer um diálogo
interdisciplinar em termos de curadoria, onde se pudesse ver o ponto de vista do coletor, dos pesquisadores,
dos produtores desses objetos e dos curadores do museu.30

No segundo texto, Solange Lima discute sobre os desafios enfrentados na política de acervo, com destaque
para a relação do Museu Paulista com seus doadores. Apresenta também a noção de curadoria estabelecida
no momento de transformação do museu em um museu exclusivamente histórico, em 1989, na gestão do
professor Ulpiano de Meneses.

121 | Em torno da curadoria de acervos museológicos, poucas(mas úteis) considerações


(...) entender a curadoria como um ciclo, conjunto de atividades solidárias que abarca desde a documenta-
ção, organização, estudo científico das coleções, formações e sua ampliação, até a comunicação e difusão
desse conhecimento, produzidos sobre as coleções, fundos, enfim o acervo em geral.31

AnoçãodecuradorianoMuseuPaulistaéabordadatambémporoutrosautores32,queressaltamaimportância
do acervo ser o ponto central, ao redor do qual as ações curatoriais são articuladas e desenvolvidas. Para os
autores, as funções curatoriais são o estudo e a documentação dos acervos; a formação, ampliação, conserva-
ção e restauração das coleções; a difusão dos acervos e dos conhecimentos produzidos.

Os mesmos autores destacam ainda que“(...) seus curadores não são apenas animadores culturais e sim pesqui-
sadores universitários, com responsabilidades na produção de conhecimentos novos.” 33

Ao tentarmos definir curadoria de acervos, focando as atividades curatoriais em acervos institucionalmente


constituídos, não estamos em absoluto defendendo a reprodução de práticas que sacralizem ou fetichizem
os objetos de museu. Entendemos esses objetos como suportes de informação e que os museus constituem-
se no locus ideal para o debate e reflexão sobre a relação homem-cultura material. Como afirma Peter van
Mensch:

Basicamente, museologia e o trabalho em museus tratam da interação entre nós (como pessoas, como
comunidade, como sociedade) e‘nosso’ambiente material. Nessa inter-reação, damos forma ao nosso am-
biente de acordo com as nossas necessidades. Assim, nosso ambiente se torna cultura material.34

30
SILVA, Fabíola Andréa. Processo curatorial: metodologias de trabalho. In: BRUNO, Maria Cristina (org.).V Semana dos Museus da Universidade de
São Paulo. São Paulo: USP, 2007, p. 1-9. p. 9
31
LIMA, Solange. Processo curatorial: metodologias de trabalho. In: BRUNO, Maria Cristina (org.). V Semana dos Museus da Universidade de São
Paulo. São Paulo: USP, 2007, p. 1- 13. p. 2
32
BARBUY,Heloisa;LIMA,SolangeFerrazde;CARVALHO,VâniaCarneirode;ALMEIDA,AdilsonJoséde;RIBEIRO,AngelaMariaGianeze;MAKINO,Mio-
ko; BERALDO, Luciano Antonio. O Sistema documental do Museu Paulista: a construção de um banco de dados e imagens num museu universitário
em transformação. In: OLIVEIRA, Cecilia Helena de Salles; BARBUY, Heloisa (orgs.); Imagem e produção do conhecimento. tradução Jean Briant. São
Paulo: Museu Paulista – USP, 2002. p. 15
33
Ibid. p.16.
34
MENSCH, Peter van. Museology and management… Op. cit. p. 5.
Portanto, entendemos por curadoria de acervos museológicos o processo que se inicia com a coleta, até a divul-
gaçãoedisseminaçãodosacervos,pormeiodeexposiçõesoudeoutrosmeios,englobandoasaçõesdepesquisa,
coleta,documentação,conservaçãoeexposição.Acreditamos,ainda,queariquezadesseprocessoresidenaca-
pacidade de problematização de cada uma dessas ações.

Com relação ao processo de coleta, além dos critérios tradicionalmente utilizados, como raridade, estado
122 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

de conservação, risco de perda, procedência, período, entre outros, devemos refletir sobre o porquê de tal
procedimento. Assim, toda coleta deveria estar embasada num projeto de pesquisa do museu, considerando
também a missão, finalidade e objetivos da instituição e a possibilidade de utilização dos objetos em progra-
mas educativos. Como os museus não podem coletar todos os objetos existentes, é importante assumir o seu
caráter seletivo, assim como considerar a importância social dessa atividade. A curadoria deve considerar a
possibilidadededemocratizaçãodasdecisões,pelaparticipaçãodemembrosdacomunidadeedeespecialistas
convidados, tendo como base de reflexão uma política de aquisição de acervos.35

Um dos problemas específicos no Brasil, que se manifesta faz anos, é a falta de políticas claras de aquisição de
acervos e de uma ação organizada nesse sentido pela maioria dos museus, o que acaba gerando a formação de
coleçõesmuseológicassemcontinuidadee,àsvezes,certaincoerência,constituindo-senumprimeirodesafio
a ser enfrentado. José Neves Bittencourt36 já mencionava esse fato, em palestra proferida em evento realizado
pelo MAST em 2004, abrindo apenas um parêntese para os museus de arte, os de valores e os museus de
ciências. Por outro lado, existe também a necessidade de avaliação das coleções existentes e a necessidade de
decisões estratégicas, no que concerne ao descarte de objetos ou sua melhor alocação em outras instituições
museológicas. Essa iniciativa poderia propiciar a formação de coleções mais coerentes e a abrir espaço para a
aquisição e a guarda, em melhor situação, de novos objetos.

Por outro lado, é preciso abordar um problema que provavelmente será, ou já está sendo, enfrentado nos
grandes museus nacionais. Como continuar o processo de coleta na atualidade e suas perspectivas futuras
frente à avalanche de objetos que produzimos? Como prever a continuidade desse processo, frente a uma civi-
lização, cuja produção de objetos é crescente e em espiral, e de produtos cada vez mais descartáveis? E ainda,
em diversidade cada vez maior de materiais, cuja conservação torna-se um mega-desafio?

Outra ação da curadoria de acervos é a documentação museológica, que se inicia no momento da coleta e vai
fundamentar as demais ações do museu. Esse caráter da documentação dos acervos implica na necessidade
de elaboração e manutenção de sistemas documentais eficientes. Nessa área, destacamos alguns autores

35
No MAST, no âmbito da Comissão de Aquisição e Descarte de Acervo, está sendo elaborada uma política com a participação de especialistas das
diversas áreas do museu.
36
Cf.BITTENCOURT,JoséNeves.Apesquisacomoculturainstitucional:objetos,políticadeaquisiçãoeidentidadesnosmuseusBrasileiros.In:GRANA-
TO, Marcus; SANTOS, Claudia Penha dos. Museu Instituição de Pesquisa. MAST Colloquia, v. 7, Rio de Janeiro: Museu de Astronomia e Ciências Afins,
p.37-51, 2005.
que desenvolveram trabalhos que são referências no Brasil e apresentam visões diferentes da documentação
museológica. Para Fernanda Camargo-Moro, autora de um livro muito utilizado no Brasil, a documentação
do museu é o“1) Processo de organização dos diversos elementos de identificação do acervo; 2) Conjunto de
conhecimentos e técnicas que têm por fim a pesquisa, reunião, descrição, produção e utilização dos docu-
mentos sobre as coleções.”37 Já para Helena Ferrez,38 além de um sistema de recuperação da informação, a
documentação museológica“(...) é o conjunto de informações sobre cada um de seus itens e, por conseguinte,
a representação destes por meio da palavra e da imagem (fotografia).”
Rosana Nascimento apresenta um elemento novo de reflexão, ao propor que a documentação museológica
não seja entendida como um produto acabado, mas como:

123| Em torno da curadoria de acervos museológicos, poucas(mas úteis) considerações


(...) ação que vai fundamentar o fazer museológico das outras ações no interior do museu, não deve ser enten-
didacomoaprincipal,ouamaisimportante,masconcebidacomoumprocessoeducativoqueestaráengajado
aumaconcepçãodeEducaçãodainstituiçãomuseu,nãosendoassim,continuarácomoumbancodedadosde
itens que nada comunicam a não ser o que menos se necessita para a compreensão do objeto museal. 39

Temos também o trabalho de Suely Cerávolo40, que aponta duas tendências para a documentação de museus:
uma tecnicista e outra reflexiva. Na primeira tendência, os procedimentos seriam eminentemente técnicos e
voltados para a própria instituição, enquanto a segunda está embasada na idéia do museu como um centro
de documentação, mais voltado para o usuário externo. Acreditamos tratar-se de um tema interessante para
uma linha de investigação.

Ainda no caso da documentação museológica, precisamos considerar também o seu caráter interdisciplinar,
pois as contribuições de diversos profissionais enriquecem a qualidade das informações processadas. Um úl-
timoaspectorefere-seànecessidadedeouviraspessoasquesempretrabalharamcomosconjuntosdeobjetos
antes da institucionalização dos mesmos. No MAST, a experiência de documentação de parte de seu acervo
museológico contou, desde o início das atividades, com a colaboração de um ex-funcionário do Observatório
Nacional, que durante seus depoimentos, além das informações de natureza técnica, relatava suas experiên-
cias sobre a natureza do trabalho técnico, em contraposição às atividades de pesquisa, e a sua própria visão
da história da instituição, diferente em muitos momentos da história institucionalizada.

A conservação de acervos museológicos é outra atividade curatorial que vem sendo motivo de reflexões e
debates ao longo das últimas décadas. Ainda, no fundo, inspiradas pelas correntes filosóficas antagônicas
37
CAMARGO-MORO, Fernanda. Museus: aquisição/documentação. Rio de Janeiro: Eça, 1986. p. 239
38
FERREZ, Helena Dodd. Documentação museológica: teoria para uma boa prática. Cadernos de Ensaio (n. 2, Estudos de Museologia), Rio de
Janeiro:MINC:IPHAN, p. 64-74, 1994. p. 65
39
NASCIMENTO, Rosana. O objeto museal, sua historicidade: implicações na ação documental e na dimensão pedagógica do museu. In: Cadernos
deSociomuseologia,n°11,1998.p.94.Disponívelem:http://cadernosociomuseologia.ulusofona.pt/Arquivo/sociomuseologia_1_22/Cadernos%20
11%20-1998.pdf. Acesso em: 10 de Mar. 2008.
40
CERAVOLO,Suely.Osmuseusearepresentaçãodoconhecimento:umaretrospectivasobreadocumentaçãoemmuseusnoprocessodainforma-
ção. In:VIII Encontro Nacional de Pesqusia em Ciência da Informação, 2007, Salvador. Anais eleltrônicos doVIII Encontro Nacional de Pesquisa em
Ciência da Informação. Salvador : ANCIB, 2007. v. 1.
de Ruskin41 e Viollet-le-Duc42 e, a partir delas, por muitas variações, a conservação tem discutido interven-
cionismos e metodologias mais e menos invasivos e modificadores e, no entanto, uma outra questão vem se
mostrando cada vez mais imediata. É preciso refletir seriamente e com certa rapidez sobre o que devemos e
queremos guardar, pois em futuro breve teremos uma situação em que não poderemos mais garantir a pre-
servação desses acervos, pois os investimentos e os custos de manutenção serão demasiadamente elevados.
Como resultante desse processo, poderemos ter coleções abandonadas, com mais sério risco em países com
124 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

menos recursos e menor tradição de preservação.

Nesse panorama de acúmulo de bens a serem conservados e enormes gastos relacionados à sua conservação,
uma estratégia tem se destacado como forma mais sustentável de conservação – a conservação preventiva.
A conservação preventiva reduz os riscos e diminui a deterioração de coleções inteiras e, por essa razão, é a
pedra fundamental de qualquer estratégia de preservação, um meio mais econômico e eficaz para preservar a
integridade do patrimônio, minimizando a necessidade de intervenções mais profundas em objetos específi-
cos, de risco muito elevado, além de mais caras e complexas. Por outro lado, mesmo utilizando essa estratégia,
aindanosdeparamoscomumfuturodifícil,aperspectivadeincrementocontinuadodosacervos.Aposturado
curador, nesse caso, deve ser pró-ativa, procurando a discussão intra e extramuros, como meio de obter uma
direção clara quanto ao que deve ser conservado.

Escolhemos a pesquisa para encerrar essa parte do artigo, destacando o seu papel no processo curatorial,
uma vez que é basilar em qualquer instituição museológica.43 Consideramos a pesquisa imprescindível para
todas as etapas do processo curatorial, devendo orientar e embasar desde a coleta até a exposição, além de
alimentarosistemadocumentaldainstituição.Existemdiversasmodalidadesdepesquisa,desdeapesquisade
conteúdo voltada para um objetivo específico, como uma exposição, uma publicação ou mesmo o preenchi-
mento de fichas de registro ou catalogação, até a pesquisa de cunho acadêmico sobre temas pertinentes ao
campo museológico, como a musealidade dos objetos, a natureza dos acervos, as linguagens expositivas, a
educação em espaços não formais, dentre outros. A pesquisa que se refere à constituição do próprio acervo
institucional é também fundamental para entender a própria instituição, pois compreender as características
e especificidades desse processo significa repensar o próprio papel social da instituição.

A título de exemplo, a Coordenação de Museologia do MAST desenvolve há algum tempo o projeto de pes-
quisa interdisciplinar“Objetos de Ciência &Tecnologia como Fonte Documental para a História da Ciência”44,

41
JohnRuskin.BiographicalMaterials.TheVictorianWeb:literature,history,cultureintheageofVictoria.NationalUniversityofSingapore.Disponível
em http://www.victorianweb.org/authors/ruskin/ruskinov.html. Acesso em: 19 de Mar. 2008.
42
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Coleção Artes & Ofícios. Cotia (SP): Ateliê Editorial, 2000.
43
Sobre pesquisa em museus ver: Granato, Marcus; Santos, Cláudia Penha dos (org.). Museu Instituição de Pesquisa. Rio de Janeiro: Museu de
Astronomia e Ciências Afins –MAST/MCT, 2005.
44
Esse projeto é desenvolvido no âmbito do Grupo de pesquisas“Preservação de Acervos Culturais”, cadastrado pelo MAST no sistema de Grupos de
Pesquisas brasileiros (CNPq) e coordenado por Marcus Granato. Para os primeiros resultados ver: GRANATO, Marcus; SANTOS, Claudia Penha dos;
FURTADO, Janaína Lacerda; GOMES, Luis Paulo. Objetos de Ciência eTecnologia como fontes documentais para a História das Ciências: Resultados
parciais. In:VIII Encontro Nacional de Pesqusia em Ciência da Informação, 2007, Salvador. Anais eleltrônicos doVIII Encontro Nacional de Pesquisa
em Ciência da Informação. Salvador : ANCIB, 2007. v. 1.
que tem como objetivo principal pesquisar a natureza e o valor histórico dos objetos de ciência e tecnologia,
utilizando como referencial os diversos tipos de objetos provenientes de alguns institutos de pesquisa do
MinistériodaCiênciaeTecnologia.Osresultadosobtidoscomodesenvolvimentodesseprojetoapresentaram
uma série de possibilidades metodológicas e de abordagens para os objetos de C&T serem trabalhados como
fonte documental, além de ampliar o conhecimento sobre o patrimônio científico brasileiro e terem sido
utilizados como subsídios para a montagem de uma exposição temporária no MAST, denominada“Objetos de
C&T: trajetórias em museus”, inaugurada em dezembro de 2005.

125 | Em torno da curadoria de acervos museológicos, poucas(mas úteis) considerações


desafios e perspectivas na curadoria de coleções museológicas

Uma mudança nas perspectivas dos futuros profissionais de museus respalda-se na ampliação da oferta de
cursos de graduação em Museologia no Brasil.45 Verifica-se claramente um movimento recente e intenso de
ampliação da oferta de possibilidades de formação em Museologia no país, inclusive com um melhor quadro
de regionalização desses cursos. Além dos já criados, outros46 estão em avançada discussão para organização,
constituindo um panorama renovado para a formação do museólogo e um amplo potencial de alteração no
desenvolvimentodasatividadesnosmuseus,emespecialadecuradoriadeacervosmuseológicos.Aindanesse
contexto, foram criados os primeiros cursos de graduação em conservação de acervos culturais no país.47

Esse movimento parece se relacionar estreitamente com as novas políticas estabelecidas para a área, a partir
da atuação do Departamento de Museus e Centros Culturais do IPHAN/MINC. Além do estímulo à criação
de novos cursos de formação, percebe-se também um grande movimento de qualificação e treinamento dos
profissionais de museus, a partir de um programa amplo de oficinas que vem trazendo resultados alentadores
para a área. Nesse panorama, propício ao desenvolvimento e reflexão das atividades e do papel das institu-
ições museológicas, sejam elas de qualquer tipo, inserem-se as questões relacionadas à curadoria de acervos
museológicos. O advento de um Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, realizado em par-
ceria entre a UNIRIO e o MAST, constitui um espaço adequado para essas reflexões.

Questões relacionadas à função social e à forma de utilização dos acervos museológicos devem ser motivo
de reflexão para os profissionais de museus e, em especial, devem constituir temas para desenvolvimento de
pesquisas nos cursos de pós-graduação da área, de forma que novas visões e soluções possam ser vislumbra-
das para o futuro.
45
Atualmente, estão formalmente criados cursos nas seguintes instituições: Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (Rio de
Janeiro, mandato universitário em 1951); Universidade Federal da Bahia - UFBA (Salvador, Bahia, criado em 1969); Fundação Educacional Barriga
Verde - UNIBAVE (Orleans, Santa Catarina, criado em 2004); Universidade Federal do Recôncavo Bahiano - UFRB (Cachoeira, Bahia, criado em 2006);
Universidade Federal de Pelotas - UFPel (Pelotas, Rio Grande do Sul, criado em 2006); Universidade Federal de Sergipe - UFSE (Laranjeiras, Sergipe,
criado em 2006); Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP (Ouro Preto, Minas Gerais, criado em 2007); Universidade Federal do Rio Grande do Sul
– UFRGS (Porto Alegre, criado em 2008).
46
Por exemplo: na Universidade Federal de Minas Gerais e na Universidade Federal do Pará.
47
No Rio de Janeiro, a Universidade Estácio de Sá criou um curso de graduação tecnológica em conservação e restauração de bens culturais; em Belo
Horizonte, a Universidade Federal de Minas gerais criou um curso de graduação em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis.
Quanto ao crescimento continuado dos acervos museológicos, além de uma política efetiva de descarte de
objetos sem real interesse para preservação, uma possibilidade seria criar centros de guarda regionais para
objetos. Por outro lado, isso poderia deixá-los ainda mais no esquecimento, perdidos em regiões afastadas,
sujeitos ao corte dos recursos para sua permanência. Contudo, ainda assim, é possível pensar em soluções, e
umapossibilidadeseriaautilizaçãodopotencialeducativodosobjetos,tornandoessescentrosregionaisatra-
tivos para excursões escolares e familiares, que poderiam até motivar o turismo em regiões pouco conhecidas.
126 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Obviamente, as coleções locais devem permanecer em seus locais originais, especialmente se constituírem
símbolos culturais e identitários para a comunidade.

Umaalternativa para socializar melhor os acervos museológicos é abrir as reservas técnicas à visitação pública.
Essa iniciativa pode ser otimizada em reservas novas ou renovadas, que podem ser projetadas especialmente
para permitir o fluxo de público sem prejudicar as coleções ou a atividade dos profissionais que ali atuam.
Acervos que, a princípio, não têm muito apelo junto ao público, como instrumentos cirúrgicos ou cepas de
bactérias ou fungos, seriam alvo de montagens expográficas mais elaboradas baseadas em pesquisas sobre
os acervos.

A pesquisa tem o potencial de ampliar o conhecimento sobre os objetos, a partir de questionamentos e aná-
lises, além de possibilitar uma ampliação de seu uso nos processos educativos, mesmo no ensino formal, o que
é pouquíssimo explorado até o momento. Ampliar o número de usuários dos acervos museológicos seria um
alvo interessante para uma política museológica nacional. Para isso, é preciso que os profissionais de museus
mostrem como os objetos podem ser explorados em infinitos vieses e procurem se articular mais freqüente-
mente com profissionais de outras áreas.

Umacoisaécerta,éprecisoumcompromissodosresponsáveispelosacervosedetodososoutrosprofissionais
de museus para um uso mais intensivo e mais útil dessas coleções, de forma a justificar os recursos cada vez
maiores para sua preservação, em tempos em que esses serão cada vez mais restritos.

considerações finais

Aolongodoartigoapresentamosopiniõesformuladaspordiversosautoressobreopapeldocuradoredacura-
doria de acervos. Agora, embasados por todas essas reflexões, retornamos à questão colocada no início deste
artigo: o conceito de curadoria de acervos museológicos refere-se apenas ao gerenciamento de coleções ou
existem outros sentidos para o conceito? Como constatamos, o tema está longe de ser esgotado e co-existem
desde visões que focam a curadoria de acervos no gerenciamento de coleções, até propostas mais inovadoras
queentendemessacuradoriacomoumprocessoqueperpassatodasasatividadesdomuseu.Contudo,fugindo
das visões que ora focam o processo curatorial nos objetos, ora no público, acreditamos que os acervos muse-
ológicos são a base sobre a qual os museus constroem e reforçam o seu papel social. Permitem redescobrir os
povos, as migrações, os movimentos e as idéias que criaram e deram forma às diferentes sociedades humanas.
Registram e preservam as suas criações estéticas e científicas e fornecem bases para novos desenvolvimentos.
Inspiramumsentimentodepertencimentoecompreensãomútuosentretodososhabitantesdeumgrupoou
país, fornecendo instrumentos para o entendimento das transformações sociais. Para nós, a noção de curado-
ria de acervos, portanto, não se restringe apenas ao gerenciamento de coleções.

O papel dos museólogos e dos demais profissionais de museus é crucial para todo esse processo e sua compre-
ensão. Formar profissionais, que possam atuar de forma competente e eficaz em todas as frentes a que a ação
curatorial está relacionada, é um passo importante, e é também necessário que essa formação esteja muito

127 | Em torno da curadoria de acervos museológicos, poucas(mas úteis) considerações


ligada à realidade do país e mesmo da região onde se encontra o curso. Por outro lado, é importante tomar
posição frente a outros desafios que se apresentam para o futuro. A criação de um fórum de discussão que
realmente funcione e que possa servir para a troca de idéias e experiências sobre o tema seria extremamente
salutar. O intuito seria de, pragmaticamente, discutir a função social dos acervos museológicos e a sua conse-
qüente preservação e servir como orientação para a maioria dos museus brasileiros.

Percebemos que no Brasil o papel de curador confunde-se muitas vezes com o de museólogo, já que suas
atribuições são muito semelhantes. À medida que novos cursos de graduação em museologia são criados e
de forma mais bem distribuída regionalmente, uma nova situação poderá ocorrer, e o papel do curador, onde
aindaestápresente,poderá,poucoapouco,irdandolugaraodemuseólogo.Essemovimentopoderádetermi-
nar outra modificação, agora no panorama da formação profissional, exigindo a disponibilidade de cursos de
especializaçãonasdiversasáreascobertaspelaaçãodecuradoria,48deformaapermitiroaprofundamentodos
conhecimentos necessários para o desenvolvimento das atividades necessárias à prática curatorial.

48
Umexemploéocursodepós-graduaçãolatosensuemPreservaçãodeAcervosdeCiênciaeTecnologia,criadopeloMASTerecentementeaprova-
do pelo Ministério da Educação. O edital de seleção da primeira turma será lançado ainda nesse semestre e o início das aulas será em março de 2009.
monografias tridimensionais:
a experiência curatorial nas
exposições de média e curta
do museu histórico abílio barreto

Thaïs Velloso Cougo Pimentel


Thiago Carlos Costa
Afinal, o museu é um dos locais que nos proporcionam a mais elevada idéia do homem.
Mas, os nossos conhecimentos são mais extensos do que os nossos museus [...]
André Malraux – O museu imaginário (1952, ed. 2000).

129 | Monografias tridimensionais: a experiência curatorial nas exposições de média e curta duração do Museu Histórico Abílio Barreto
objetos em exposição – equívocos e potencialidades

Prática central da vida dos museus, as exposições são atividades que reúnem e consolidam todos os trabalhos
que caracterizam a vida dessas instituições. Por meio das exposições, os museus se dão a conhecer pelo
público em geral e se tornam por esse público conhecidos.

O tipo de museu que estamos acostumados a visitar, hoje em dia, descende diretamente da instituição que
se consolidou nos meados do século XIX e expandiu-se no século XX. Esse período de uns 90 anos, mais ou
menos, costuma a ser chamado“a grande era dos museus públicos”1. Essas instituições tiveram, durante esse
tempo, papel fundamental no surgimento, consolidação e expansão de uma nova sociabilidade pública, com
seus sistemas de hierarquia e exclusão.

O modelo de exposição museal ainda hoje praticado originou-se e desenvolveu-se nesse espaço de tempo, ao
longo do qual“arte e cultura foram apartadas da função de surpreender o público e, ao invés, colocadas como
elementosdecontroledapopulação,provendo-acomrecursosecontextosnosquaissetornoupossívelqueela
se auto-educasse e auto-regulasse.”2 Exposições nas quais o público visitante era colocado diante de objetos
exemplarmentedidáticos,ligadosapersonagensigualmenteexemplares.Afunçãodidáticadessespersonagens
significavaqueomuseupúblicoatribuíaaosobjetosquelheshaviampertencidoumstatustotalmentedistinto,
por exemplar3. Essa exemplaridade tinha, entretanto, um efeito curioso, ainda hoje observável nas exposições
museais: a criação, pelo público, de laços afetivos com os objetos expostos nas galerias.

Esse aspecto cria uma característica basilar das instituições museais: serem sedes de uma dupla gama de
usos e funções. Parte desses é programática (ou seja, estabelecida de forma racional e sistemática, por es-
pecialistas); outra parte é criada pelas “expectativas e práticas dos usuários”.4 Essa “criação de expectativas”
se faz sobre os objetos, que se tornam para os visitantes suportes de representações subjetivas abrangentes.
Esse jogo de sentido, que ainda hoje se dá intensamente no interior da exposição, pode ser de identidade, de
trajetos, de experiências, e faz o visitante situar os artefatos expostos em sua própria vida, além de considerar
que eles, como referências, devem permanecer para sempre onde estão. Isso explica porque é comum que os
visitantes retornem ao museu na expectativa de rever, no mesmo lugar, um objeto do acervo que, em especial,
tivesse capturado sua atenção e afeto5.
1
Cf. RIPLEY, Dilon. The sacred grove: Essays on museums. Washington: Smithsonian Institution Press, 1978. Cap. 1.
2
BENNETT, Tony. The birth of the museum: history, theory, politics. New York: London: Routledge, 1995. p. 40.
3
Anthony VIDLER, The writing of the walls... p. 165. Apud BENNETT, Tony. Op. cit. p. 28
4
MENESES, UlpianoToledo Bezerra de. O museu e o problema do conhecimento. In: BRASIL, Fundação Casa de Rui Barbosa. Anais do IV Seminário
sobre Museus-Casas: Pesquisa e Documentação. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2002. p. 18.
5
Para um relato desse fenômeno, cf. BITTENCOURT, José Neves. Uma exposição e suas teses. Anais do Museu Histórico Nacional (vol. 35, tomo espe-
cial, 2004 – Memória compartilhada). p. 14-19.
Essa característica surge muito fortemente, quando consideramos uma exposição, e merece ser destacada. A
exposição,tantoquantoomuseu,érepresentação:acadamomento,constróiereconstróiomundo,ajudandoa
torná-locompreensível.Issonãoéomesmoquedizerqueosmuseusreproduzamavidaouotempo.Nomuseu,a
vida não se torna refém dos artefatos lá reunidos. Perder essa dimensão é incorrer na“fetichização”do objeto.

Trata-se de uma expressão utilizada por Ulpiano Meneses em artigo bastante difundido. Segundo esse autor,
130 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

a fetichização“[está] inserida numa dimensão de fenômenos históricos ou sociais [...] tem de ser entendida
comodeslocamentodeatributosdoníveldasrelaçõesentreoshomens,apresentando-oscomoderivadosdos
objetos, autonomamente, portanto ‘naturalmente’.”6

“Naturalmente”porque, retirado do ritmo da história, resta ao objeto ser naturalizado, tornado uma espécie
de continuação da natureza por ser portador de uma“humanidade imanente”7. Essa característica é equivo-
cadamente atribuída por aqueles que tentam entender o artefato não a partir de um processo histórico que o
gera e lhe confere sentido, mas a partir de características que o tornam uma espécie de continuação física de
seu produtor, dos talentos, das habilidades físicas, das qualidades morais ou intelectuais daquele. Assim natu-
ralizado, o artefato torna-se fonte de sentido de um“museu-fetiche”, equipamento de uma alta cultura“que
podeserusadapararegularocampodocomportamentosocialdotandoosindivíduoscomnovascapacidades
de auto-monitoramento e auto-regulação, que o campo da cultura e as formas liberais de governo, muito
caracteristicamente, inter-relacionam.”8 Essa utilização dos museus e da cultura, que, ao longo de muito
tempo,determinoutantooconteúdoquantofinalidadesdasexposiçõesmuseais,foiagudamenteobservada
pelo teórico norte-americano Marshall Berman. Segundo ele, para avançar na compreensão da sociedade
moderna é preciso“uma visão aberta e abrangente da cultura; é muito diferente a abordagem museológica
quesubdivideaatividadehumanaem fragmentos e osenquadra emcasos separados,rotulados emtermos de
tempo, lugar, idioma, gênero e disciplina acadêmica.”9

Para os museus da atualidade, superar essa característica tem sido um desafio constante. Uma das facetas
desse desafio é a revisão das exposições, encarando-as como espaços para além da simples contemplação,
seja“científica”(como nas exposições dos museus de caráter enciclopédico), ou meramente“cultural”(epíteto
aplicado aos museus de história e de arte). Uma das formas de enfrentar essa revisão é aprofundar o exame do
processo dialético da concepção e origem dos objetos recolhidos às coleções e da formulação das exposições
como produtos intelectuais. Esse duplo exame busca problematizar a criação, função, uso e procedência dos
objetos musealizados, cruzando seu valor de uso com seu valor de representação10. Ampliando o conteúdo

6
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A exposição museológica e o conhecimento histórico. In: FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves; VIDAL, Diana
Gonçalves (orgs.). Museus: dos gabinetes de curiosidades à museologia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2005. p. 34.
7
A expressão é tomada a Meneses, op. cit. p.35. Por“imanente”entende-se algo pertencente à interioridade ou estrutura essencial de outra coisa, e,
portanto, sem nenhuma autonomia.
8
BENNETT, Tony. The birth... Op. cit. p. 20.
9
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.11
10
Sobreessesconceitos,cf.POMIAN,Kryztoff.Coleção.InROMANO,Ruggiero(dir.).EnciclopédiaEinaudi(Vol.1.Memória-História).Lisboa:Imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1a ed. 1983. p. 51-86.
de informação do artefato museal, recolocando-os em um circuito do qual foram retirados, essa abordagem
acrescenta-lhes sentido e, dessa forma, rompe o círculo do“objeto-fetiche”. Rompido o círculo, existe a pos-
sibilidade que o objeto apareça aos olhos do visitante como portador de sentido, criando questões para esse

131| Monografias tridimensionais: a experiência curatorial nas exposições de média e curta duração do Museu Histórico Abílio Barreto
usuário sobre os museus. Ou, como sugere Ulpiano Meneses...

Relíquias, semióforos, objetos históricos: seus compromissos são essencialmente com o presente, pois é no
presentequeelessãoproduzidosoureproduzidoscomocategoriadeobjetoeéàsnecessidadesdopresente
que eles respondem.11

É no presente que acontece a exposição museal. Mas qual a função de uma exposição?

Comecemos dizendo, claramente, qual não é sua função: aparecer como o produto final ou a finalidade dos
museus. Mas, como afirmou um autor, poucos anos atrás – e com boa dose de perspicácia –, “[as] pessoas
vão aos museus para ver exposições – não importa que essas sejam mostras de coleções permanentes ou
exposições temporárias reunindo os trabalhos de um artista, os artefatos de uma civilização, os espécimes de
um continente ou o aparato interativo de uma ciência. Exposições parecem ser para os museus o que são as
peças para os teatros. Elas são o que essas instituições culturais apresentam ao público como sua principal
atração e seu principal benefício.”12 Entretanto, ainda no perspicaz entendimento desse mesmo autor, “em
anos recentes, as exposições têm dominado a percepção do público dos museus quase ao ponto de excluir
qualquer outra forma de vida museal.”13 É preciso frisar que os museus têm, como afirma Ulpiano Meneses,
uma multiplicidade de funções, que devem ser articuladas solidariamente, de forma que umas fertilizem as
outras14. A exposição, apesar de ter uma dessas funções, atravessa todas as outras, tornando evidente a“ar-
ticulação solidária”de que nos fala Meneses.“Acredito que a solidariedade, no museu, pode ser referenciada
por um tripé de funções: as de natureza científico-documentais, as educacionais e as culturais. As primeiras
têm alvos cognitivos, as segundas respondem pela formação e equipamento intelectual e afetivo, as últimas
se referem ao universo de significações e valores.”15

Nesse sentido, uma resposta possível à pergunta que nos colocamos é que a função de uma exposição museal
seja chamar a atenção dos visitantes do museu para o estado das outras funções matriciais cumpridas por
essas instituições e, dessa forma, colocar o museu dentro de uma dinâmica histórica.

As exposições museais são como se fossem o resultado de um “relatório de atividades”. A “atividade” é uma
construção, que se inicia com um corte contido na temática do museu e, a partir desse, mobiliza todas as

11
MENESES, UlpianoToledo Bezerra de. Memória e cultura material: documentos pessoais no espaçopúblico.Estudos Históricos ( vol 11,n. 21, 1998)
Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1998.
12
LORD, Barry.The purpose of museum exhibitions. In: LORD, Barry; LORD, Gail Dexter (eds.).The manual of museum exhibitions.Walnut Creek (CA):
AltaMira Press/Rowan & Littlefield, 2002. p. 13.
13
Ibid.
14
Cf. Meneses, Ulpiano Toledo Bezerra de. O museu e o problema... Op. cit. p. 22.
15
Ibidem.
funções institucionais. Deve buscar, pela via da fruição, despertar no visitante a questão de que o museu não
envolve uma única atividade e nem é um percurso natural. O visitante deve perceber que o acervo, disposto
ao longo do espaço e articulado a textos, legendas e outros recursos comunicativos, não está lá para legitimar
um discurso do qual tanto museu quanto visitante participam como sujeitos passivos. A exposição deve, as-
sim, ser planejada levando em conta que o visitante inscreverá nela suas vivências, tendo o tempo ordenado
pelo presente como mediador. Essa mediação trará à cena as questões da vida cotidiana, da sociedade e da
132 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

memória que, necessariamente, estão presentes no acervo do museu.

Assim, é possível focalizar uma perspectiva oposta àquela que naturaliza e, portanto, “fetichiza” o objeto:
partir do artefato para o visitante (ou seja, para a sociedade), sem colocar artefatos como relíquias16, mas os
trazendo para o cotidiano do indivíduo. A exposição poderá, nessa perspectiva, tornar-se o“laboratório da
história”, fazendo a mediação entre o contexto do objeto e o do indivíduo. “Ao invés de fazer a história das
armas, por exemplo, dar a ver a história nas armas: expor as relações do corpo com a arma, como mediações
para definir o lugar do indivíduo (armas brancas), do grupo (armas de fogo, padronizadas, disciplina)[...]”.17

Decisões curatoriais: duração e pesquisa

Assim, as exposições se tornam, por excelência, os suportes pelos quais os acervos museais podem ser coloca-
dos em perspectiva como portadores de sentido. Sejam esses acervos de museus históricos, sejam de museus
decidade,dearte,científicos,oudequalqueroutratemática,sãoeles,acervos,constantementereconstruídos,
conforme as equipes curatoriais e de pesquisadores os abordam, no sentido de fazer-lhes perguntas e usá-los
como respostas. Atualmente as instituições museais procuram dinamizar suas atividades, e isso significa mo-
bilizar os acervos para fins de pesquisa, de educação e de fruição. Deve-se, entretanto, observar que, quando
se fala em acervo, não se deve imaginar que esse esteja restrito ao conjunto de artefatos recolhidos ao con-
forto das reservas técnicas. Os museus têm, na atualidade, a responsabilidade de se expandir, abrangendo o
universo material que pulsa fora de suas instalações: as ruas, as cidades, os territórios.

Abordar tal variedade de objetos implica em um planejamento, que nem sempre é de execução simples, e em
certaquantidade de questões que deverão ser formuladas e respondidas, e que geralmente se cruzam. É nesse
ponto que se coloca a questão da curadoria.

Esse não é um conceito novo. Já no século XIX, o teórico William Henry Flower, diretor do Museu Britânico
a partir de 1884, esclarecia o que entendia por “curador”: “... você deve ter seu curador. Ele considerará,
16
“... o conceito de relíquia, no campo religioso [...] [ressalta] a necessidade de contigüidade, contato com um transcendente, para que o objeto pro-
longue esse transcendente, seja, entre nós, o que dele ficou (relicta).Todosfuncionamcomofetiches,significantescujosignificadolheséimanente,
dispensando demonstração: as relíquias do Santo Lenho, por exemplo, impunham credibilidade, não pela autenticidade de suas origens, mas pelo
poder manifestado.” (MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. Memória e cultura material ... Op. cit. p. 32.)
17
CARVALHO, Vãnia Carneiro de. A história das armas ou a história nas armas? In: BRASIL, Museu Paulista USP. Como explorar um museu histórico.
São Paulo: Museu Paulista/USP, 1992. (11-14) p. 11.
cuidadosamente, o objeto do museu, a classe e as capacidades das pessoas que deverão ser lá instruídas e o
espaço disponível para o cumprimento de suas funções.”18 Como se pode observar,“curadoria de museus”é
um conceito amplo, relacionado com todos os aspectos do desenvolvimento, pesquisa, preservação e inter-

133 | Monografias tridimensionais: a experiência curatorial nas exposições de média e curta duração do Museu Histórico Abílio Barreto
pretação dos acervos sob guarda de um museu19. O curador é, geralmente, um profissional capaz de formular
e responder questões que tenham os acervos como objeto. Não é que um profissional de museus, para ser
curador,tenhaquesabertudo,cadamínimodetalhesobreosartefatospostossobsuaresponsabilidade.Oque
ele deve é ser capaz de apontar as potencialidades que estão contidas no acervo.

Ou seja: o curador é aquele capaz de formular, a partir dos ajuntamentos de objetos preservados, o conceito,
a idéia central ou a tese de uma exposição. É essa sua responsabilidade básica, embora seja cada vez mais
freqüenteadivisãodessaresponsabilidadecomoutrosprofissionaisdomuseu,eatémesmocomprofissionais
não integrados à equipe.Tendências mais recentes indicam que, em certos casos, até mesmo o público pode
serconvocadoaopinarsobrequeexposiçãogostariadevermontada.Iniciativastornam-seindispensáveisem
casos nos quais o tema da exposição envolva sujeitos que sejam de difícil representação pelo curador, como
por exemplo, exposições sobre povos indígenas ou sobre práticas religiosas muito específicas20.

A decisão sobre qual será a exposição implica em outras decisões que estarão na origem do sucesso
ou do fracasso do processo. Podemos adiantar duas dessas decisões: o tempo de duração do pro-
cesso e a pesquisa curatorial.

A primeira decisão estabelecerá, em última análise, o tempo em que a exposição ficará montada. Atualmente,
as exposições dividem-se em“de longa duração”,“de média duração”e“de curta duração”, terminologias que
substituíram, nos anos 1990, as designações“permanente”e“temporária”. Não é fácil estabelecer exatamente
o que significa cada uma dessas categorias. A mais complicada é, sem dúvida, a exposição“de longa duração”.
A mesma“exposição de longa duração”, em um museu de grande porte, envolvendo quatro ou cinco grandes
galerias e várias centenas de documentos museológicos, talvez venha a ocupar um período de tempo maior
que um museu de menor porte. Entretanto, por uma série de razões, seja em um grande museu, seja em um
pequeno,asexposiçõesprecisamsermudadasdetemposemtempos:osobjetosemexposiçãosãosubmetidosa
umdesgastemaiordoquequandoemreservatécnica;omeiodaexposiçãosedegrada:vitrinasenvelhecem,re-
cursosauxiliaressedesgastameopróprioprédiotemquepassarpormanutenção,periodicamente.Assim,não
é aceitável que exposições fiquem montadas durante décadas, como se observava até poucos anos atrás21.

Já as exposições de “média duração”e “curta duração”nos parecem mais fáceis de serem estabelecidas: são
exposições que podem estender-se entre 30 e 120 dias, no caso das primeiras, e entre 12 e 24 meses, no
18
William Henry Flower, 1898. Apud BENNETT, Tony. The birth.. Op. cit. p. 42.
19
A curadoria de museu relaciona-se com todos os aspectos do desenvolvimento, estudo, preservação e interpretação das coleções de um museu.”
(NICKS, John. Curatorship in the exhibition planning process. In: LORD, Barry; LORD, Gail Dexter (eds.). The manual... Op. cit. p. 345).
20
Cf. NICKS, John. Curatorship... Op. cit. p. 346.
21
Nãoexistebibliografiaemnossalínguaqueaprofundeessetema.AssugestõesrelacionadasforamlevantadasemSERRELL,Beverly.Payingatten-
tion: Visitors and museum exhibitions. Washington DC: American Association of Museums, 1998.
último caso. É claro, podem ser considerados esses espaços de tempo aleatórios, mas, como veremos mais
adiante, existem motivos para que os citemos.

A segunda decisão curatorial, que podemos adiantar como crucial é a pesquisa. Um autor ao qual temos recor-
rido com certa freqüência faz, sobre o tema, essa afirmação:“Uma exposição poderosa e significativa começa
com uma idéia poderosa e significativa. Entretanto, a possibilidade de sua realização depende, em grande
134 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

medida, da qualidade da pesquisa curatorial que desenvolve e apóia a tese, e das coleções e outros materiais
que formarão a exposição.”22

A pesquisa é parte integrante das responsabilidades do curador do museu, e de modo algum deve ser pensada
como afeita apenas às iniciativas de exposição. De fato, pressupõe-se que as autoridades da instituição (dire-
tor, supervisor, ou qualquer outra forma administrativa adotada) e o curador ou curadores deverão gastar
parte de seu tempo para formular uma política de pesquisa. Esta“deve estabelecer o compromisso do museu
com a pesquisa, determinando a quantidade de tempo, recursos financeiros, pessoal e equipamentos serão
dedicados a essa atividade, de modo a adequá-la à missão institucional.”23

Fica clara a importância da pesquisa para o desenvolvimento do ambiente museal. Podemos entender“pes-
quisa”como“umprocessoqueconsistenainvestigaçãodealgumacoisa”.24 “Pesquisar”é,pois,fazerperguntas
minuciosas e estabelecer respostas as mais precisas possíveis em torno de um recorte da realidade. Consider-
emos,então,que um desses recortes pode ser definido como o acervo de um museu. Não tentaremos aprofun-
dar a definição porque essa nos é perfeitamente adequada.

A exposição, seja ela de curta, média ou longa duração, surge da pesquisa curatorial, ou seja, da investigação
voltada para o adensamento do tema ou do conceito. Esse adensamento faz com que a exposição deixe de
ser apenas idéia, e tome forma na realidade institucional do museu. Podemos dividir as ações dessa pesquisa
em duas categorias que são interligadas. A pesquisa temática (também chamada, por alguns autores, de
“conceitual”) cria a base de informações que terão utilidade para o desenvolvimento da estrutura e da sub-
stância do roteiro da exposição; a pesquisa do acervo estabelece trabalhos de arte, artefatos, espécimes, bem
como materiais gráficos e audiovisuais, com os quais a exposição será criada25.

Nossa meta neste texto é apresentar um museu como centro e suporte de experiências curatoriais voltadas
para o acervo e para exposições. É o momento de esclarecer o leitor que a reflexão apresentada nas páginas
anteriores foi elaborada com base em vivências concretas: aquelas que têm acontecido ao longo de nossa per-
manência como técnicos e diretora do Museu Histórico Abílio Barreto, o museu da cidade de Belo Horizonte.

22
NICKS, John. Curatorship... Op. cit. p. 346.
23
LORD, Barry. Planning for exhibition research. In: LORD, Barry; LORD, Gail Dexter (eds.). The manual... Op. cit. p. 29.
24
Mário Bunge, Ciência e desenvolvimento, ed. 1980. Apud BITTENCOURT, José. O caminho da pesquisa em um museu. Anais do Museu Histórico
Nacional (vol. 33, 2001).155-159. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2001. p. 156.
25
Cf. NICKS, John. Curatorship... Op. cit. p. 347.
Um museu e sua trajetória: o MHAB na capital de Minas

“Desfetichizar” os objetos, recolocando-os na perspectiva da temporalidade, ou seja, da história, é um dos

135 | Monografias tridimensionais: a experiência curatorial nas exposições de média e curta duração do Museu Histórico Abílio Barreto
objetivos dentre outros que têm sido buscados desde que o Museu Histórico Abílio Barreto foi reformulado, a
partir de 1993.

Fundado em 1941 pelo jornalista e historiador Abílio Barreto e aberto ao público em 18 de fevereiro de 1943
como Museu Histórico de Belo Horizonte, o objetivo principal do MHAB era perpetuar e dar a conhecer a
história da cidade de Belo Horizonte. Pelo que era entendido na época, “guardar a história” significava re-
alizar, cotidianamente, duas ordens de ações: a primeira, praticar o recolhimento sistemático de objetos que
remetessem à história da“nova”capital de Minas – levando-se em consideração que a história de Belo Hori-
zonte era uma continuação da trajetória do extinto Arraial do Curral Del Rei26. A segunda seria expor essas
coleçõesdeobjetosnonovomuseu,cujassalastinhamsidopensadasparacompreenderatemáticadomuseu;
ou seja, as referências, expressas no acervo, à cidade de Ouro Preto, antiga capital do estado, ao extinto Ar-
raial, e ao planejamento e construção da nova capital, Belo Horizonte.

As salas utilizadas para as exposições foram nomeadas como salas “Curral Del Rei”, “Ouro Preto” e “Belo
Horizonte”. Cada uma delas expunha objetos museológicos que remetiam às temáticas propostas pela de-
nominação. Essa primeira exposição foi instalada no“Casarão da FazendaVelha do Leitão”27.Vale lembrar que,
em diversos momentos, a exposição sofreu modificações ou esteve fechada para trabalhos de restauração da
edificação.

Barreto foi diretor do MHAB até 1946, ano em que, destacado para uma Secretaria de Governo, deixou o cargo.
FoisubstituídoporMárioLúcioBrandão28,queempreendeumudançassignificativasnamuseografiaelaborada
por Barreto. Em 1957, Brandão optou por sublinhar a função original da edificação como sede de fazenda.Três
novas salas foram inauguradas, respectivamente denominadas“Quarto de moça na Fazenda Velha”e duas,
“Quarto de casal na Fazenda Velha”. É possível que o diretor pretendesse dividir a atenção do público entre a
“grande história”visada por Barreto e uma “história comum”dos habitantes do Curral Del Rei. O fato é que o
público criou laços afetivos com essa exposição, e durante anos e anos visitou uma representação de residên-
cia rural, que mais remetia a um imaginário idealizado que à vida rústica da antiga povoação.

26
Fundado em 1711 pelo bandeirante João Leite da Silva Ortiz, o Arraial do Curral Del Rei existiu, como área periférica da região mineradora, desde o
início do século XVIII, tendo testemunhado o apogeu e a decadência das Minas. Em 1893, a pequena sede de uma das freguesias da comarca de Sa-
bará foi escolhida pela Comissão Construtora da Nova Capital(CCNC)comosítioparaaimplantaçãodanovasedeadministrativaestadual.Em1896,
sobsupervisãodosengenheirosearquitetosdaCCNC,órgãoque gerenciouaedificaçãodanovacidade,opequenoarraialfoitotalmentedemolido.
A nova capital do estado foi inaugurada em 1897.
27
Essa edificação abrigou o Museu Histórico de Belo Horizonte, e sua escolha consolidava o papel simbólico do novo museu, de guardar a história da
cidade. Construído em 1883 por José Cândido da Silveira, em estilo colonial-rural, a pequena sede de fazenda resistiu à construção da nova capital e
se tornou um ícone, último remanescente arquitetônico do antigo Arraial do Curral Del Rei.
28
Para maiores informações sobre a gestão de Mário Lúcio Brandão, cf. ALVES, Célia Regina Araujo. Entre a invenção e as descobertas: 60 anos do
MHAB. In: BRASIL, Museu Histórico Abílio Barreto. MHAB: 60 anos de história (Caderno 2). Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2003.
Simultaneamente, começaram a ser empreendidas por Brandão exposições temporárias e itinerantes. “A
história em fotografias”, entre dezembro de 1957 e fevereiro de 1958, comemorou os 60 anos de fundação de
Belo Horizonte; “A imprensa em Belo Horizonte” durou de março a abril de 1958, expondo jornais e revistas
publicadas desde a época do antigo Arraial até a Belo Horizonte daquele momento, e objetos e fotografias
sobre a imprensa na capital;“Bueno Brandão, Senador da República”, celebrou o centenário de nascimento
desse político e ficou montada de julho a agosto de 1958. Essa última exposição, composta por fotografias,
136 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

cartazes, charges, documentos e objetos referentes ao personagem, foi aberta em Ouro Fino, cidade natal
de Brandão, onde permaneceu por quatro dias. É curioso que, apesar da boa repercussão dessas iniciativas,
elas não tiveram continuidade, possivelmente devido à sistemática falta de recursos e apoio das autoridades
municipais.

Mesmo enfrentando problemas crônicos, o MHAB realizou, ao longo de 60 anos, vinte e seis exposições ditas
“temporárias”. Até o início dos anos de 1990, a curadoria e museografia eram, em geral, atribuições do próprio
diretor da instituição. As temáticas do Museu e das exposições quase sempre coincidiam, girando em torno
das origens e do desenvolvimento da capital de Minas Gerais. As exposições buscavam referendar teses daí
decorrentes29.

O Museu cativou o público ao longo de décadas, entendido por três gerações de visitantes como lugar de uma
“memória afetiva” da cidade. A instituição fez o que pôde para sustentar esse lugar no imaginário coletivo,
e teve certo sucesso. O público que visitava as exposições do MHAB sempre deu mostras de seu apreço pelo
que a instituição guardava e não tinha por hábito questionar a maneira como eram realizados os trabalhos de
conservação e exposição do acervo do Museu.

Não é de se estranhar, portanto, que até a década de 90 do século passado, o MHAB lidasse com seu único
e valorizado espaço de exposições – o“Casarão”oitocentista – como a sede de uma casa de fazenda sobre a
qual quase nada se sabia. A falta de informações não chegava a atrapalhar a exposição dos objetos, reunidos
no acervo sobre o qual fora criado o Museu. A idéia de que os objetos eram“exemplares”e mereciam ser vistos
justificava-se pelo fato de estarem nas dependências de um museu, e isso parecia bastar tanto para o público
quanto para os poucos servidores que geriam o museu. Dessa forma, por muitos anos, caminharam juntas a
precariedade do espaço, das informações sobre ele e a singeleza das exposições, sugerindo que à rusticidade
do espaço tornado museu na cidade de Belo Horizonte associavam-se o precário, o tímido, o incipiente.

29
As teses do museu eram, em linhas gerais, as de Abílio Barreto, que era, desde 1936, o historiador oficial de Belo Horizonte. O MHBH (cujo nome
foi mudado, em 1969, para o atual) estruturou-se em torno da tese que colocava o Arraial do Curral Del Rei como antecedente de Belo Horizonte.
Essa tese, exaustivamente documentada, foi publicada pela primeira vez em 1936. Embora hoje em dia seja alvo de fortes críticas, formuladas prin-
cipalmente em torno do amadorismo da prática historiográfica de Barreto, a obra, em dois volumes, ainda é o mais completo levantamento factual
tanto sobre o antigo arraial quanto sobre a nova capital. Uma edição recente é facilmente encontrada. (BARRETO, Abílio.Belo Horizonte: Memória
histórica e descritiva - história antiga e história média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro. Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995.
2 - 1a ed. 1936).
Planejamento e estruturação do novo espaço museal

No que tange a Minas Gerais, o processo de reestruturação do MHAB, que começou a ser executado a partir de

137 | Monografias tridimensionais: a experiência curatorial nas exposições de média e curta duração do Museu Histórico Abílio Barreto
umgrandeeambiciosoprojeto,conhecidopelosagentesinstitucionaiscomo“processoderevitalização”,guar-
dou, conduzido da maneira como foi, certo ineditismo30. A implantação da“ciência dos museus”, a Museologia,
eoaprofundamentodacompreensãodoespaçoedalinguagemmuseológicossãorelativamenterecentes,no
Brasil, datando da segunda metade dos anos 1970. Seguiu-se, na década posterior, a reestruturação de alguns
museus, em diversos níveis, no Rio de Janeiro e em São Paulo, em museus de grande porte, geralmente da
esfera federal ou universitários. A partir principalmente da Constituição de 1988 é que a história das comu-
nidades, o poder local, o patrimônio das pequenas cidades e de seus habitantes ganharam algum destaque e
passaram a merecer a atenção e a curiosidade tanto dos gestores públicos como das próprias comunidades.

O “processo de revitalização” teve, desde o início, dois grandes objetivos: primeiro, tirar do “Casarão”, de
estrutura construtiva bastante frágil e área de cerca de 420m2, o conjunto das atividades museais que nele
disputava espaço físico, sem possibilidades de expansão: este objetivo implicava na construção de um novo
prédio; segundo, dar nova configuração às atividades museais como um todo, o que implicava na reestrutura-
ção de processos, tanto técnicos como administrativos.

Concebido e projetado a partir de um plano diretor cuja elaboração data de 1993, o novo prédio foi idealizado
em torno de uma grande sala de exposições, base de um programa permanente de exposições de média dura-
ção. Esse conceito foi gradativamente ajustado, pois não havia experiência anterior, mesmo considerando as
então quase seis décadas de funcionamento do Museu.

A construção do novo prédio, com área total de 1.812,83m², possibilitou a expansão dos serviços prestados ao
público pela instituição. De início, duas grandes áreas de exposição foram redefinidas: O“Casarão”, esvaziado
de praticamente todos os serviços incompatíveis com sua estrutura física, tornou-se espaço de exposições,
apenas permanecendo, em duas salas de seu andar térreo, o serviço educativo. No novo prédio outra área de
exposições, uma sala com 240,74 m², de solução arquitetônica arrojada, em forma de“L”invertido e pé-direito
equivalente a três andares (quase 11 metros de altura). Separada do corpo principal do edifício por um ”pano
de vidro” em arco, essa sala pode ser vista do mezanino e do segundo piso, onde se encontram instalações
técnicas e de convivência. Entre 1998 e 2008, nesse local, o MHAB apresentou ao público treze exposições de
média duração.

O uso da nova sede levou à definição de duas outras áreas de exposição: no piso térreo, um espaço de 40,55
m², situado no foyer (ante-sala) do auditório; no hall do mezanino, entre os espaços onde se encontram insta-
lados um café e a biblioteca institucional. A definição desses dois espaços como áreas de exposição aconteceu

30
Umamemóriabastantedetalhadado“processoderevitalizaçãopodeserconferidaemPIMENTEL,ThaïsVellosoCougo(org.).ReinventadooMHAB:
O museu e seu novo lugar na cidade: 1993-2003. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2004.
em função do entendimento de que a instituição deveria combinar suas atividades museológicas com as ativi-
dadesoferecidaspelanovaconfiguraçãodoMuseu,comoosprogramasculturaisimplementadosnoauditório,
e o novo espaço de convivência situado no mezanino, onde foi instalado um bar-café.

A reestruturação institucional e as atividades expositivas


A expansão dos serviços prestados pelo MHAB teve então, como centro, a reestruturação do espaço físico.
138 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Tal expansão implicou em outras ações, que visavam reestruturar também as atividades museológicas. Al-
gumas dessas ações iniciaram-se antes mesmo da construção do novo prédio e se estenderam até depois de
sua inauguração. As principais delas podem ser relacionadas à pesquisa curatorial. Embora a instituição não
tivesse designado um curador geral, profissionais altamente qualificados e experientes treinaram e coorden-
aramequipesdepesquisadoresquepromoveramumcompletoinventáriodoacervopreservado,realizadoem
paralelo a um processo de aperfeiçoamento da catalogação dos objetos e documentos. Atualmente, a equipe
institucional tem clareza de que esse trabalho, cuja realização, inicialmente, tomou cerca de sete anos, foi a
base para as atividades museológicas desenvolvidas desde então.31

A importância do processo de pesquisa, realizado entre 1993 e 2000, é hoje bastante clara. As atividades mu-
seais não poderiam ter se expandido sem sua realização, e a própria equipe técnica que hoje em dia povoa o
Museucomeçouaseestruturarapartirdostrabalhosdeprocessamentotécnico.Foitambémoprocessamento
técnicoque“[confirmou]anecessidadeurgentedesepromoverumaamplareformulaçãonaspolíticasdeação
do MHAB, inclusive em sua Linha de Acervo, elegendo áreas prioritárias de produção de conhecimento dentro
da Instituição, de modo a permitir uma abordagem mais dinâmica e abrangente às suas práticas culturais.”32

Novos desafios curatoriais: exposições de média duração


Feitas todas as considerações anteriores, falaremos aqui principalmente das experiências vivenciadas pela
equipe do MHAB no tocante às exposições a partir de 2001. Nesse período, o Museu adquiriu notável expertise
curatorial, que decorre, em primeiro lugar, da existência de uma equipe capacitada e treinada nos processos
de elaboração e acompanhamento do projeto museológico.

A reestruturação do espaço físico, por um lado, e a pesquisa curatorial e o aperfeiçoamento dos processos e da
equipe técnica, que dela resultaram, por outro, tornaram possível o início da elaboração de exposições, cujos
conceitos foram se tornando cada vez mais refinados. Deve-se dizer, entretanto, que durante certo tempo,
por falta de experiências mais sólidas, a atribuição curatorial era um tanto vaga. A equipe envolvida tinha,
de fato, uma coordenação, que podia ser da Direção ou de um profissional por ela designado. Cada exposição
planejada no MHAB se valia da experiência anterior para se tornar, de fato, uma nova experiência. Na medida

31
Existeumadescriçãobastantedetalhadadessaação.Cf.BRASIL,MuseuHistóricoAbílioBarreto.Memóriadescritivadoprocessamentotécnicodo
MHAB; 1993-2000. Belo Horizonte, [2000?] (MHAB, Arquivo Administrativo.). 44 p. ms; para um resumo crítico, cf. CÂNDIDO, Maria Inez,TRINDADE,
Silvana Cançado. O acervo de objetos do MHAB. Formação, caracterização e perspectivas. In: PIMENTEL,ThaïsVelloso Cougo (org.). Reinventado o
MHAB... Op. cit. p. 146-162.
32
BRASIL, Museu Histórico Abílio Barreto. Memória descritiva... Op. cit. p. 1.
em que o novo tema a ser abordado exigia pesquisa específica, a coordenação ou curadoria estabelecia as
diretrizes que a equipe técnica iria seguir para a construção do projeto museológico, a partir do qual outros
atores – muitos dos quais vêm, desde então, se especializando em tarefas específicas devido à oportunidade

139 | Monografias tridimensionais: a experiência curatorial nas exposições de média e curta duração do Museu Histórico Abílio Barreto
criada pela demanda do museu – somaram sua competência intelectual, sua capacidade técnica e sua cria-
tividade para garantir a qualidade do resultado final.

A escolha do museógrafo é uma questão que deve ser considerada separadamente.Vale dizer que até o início
dos anos 2000, ao dar início aos trabalhos para uma nova exposição, eram poucas as opções para o desenvol-
vimentodaetapamuseográfica.Essadisciplinapodeserdefinidacomo“atécnicadeapresentaçãodomaterial
expositivo, objetos e documentação, que permite que o conteúdo museológico seja comunicado, de forma
racional e emotiva, articulada com o edifício que aloja o museu e assegurando a preservação dos bens patri-
moniais expostos.”33 Basicamente, espera-se do museógrafo que organize o espaço existente como lugar de
umaexposiçãomuseal:suaspotencialidades,asmelhoresformasdeexporacervos,levandoemconsideração
a comunicação, conservação e segurança.

Amuseografiaé,então,“aresposta,noespaço,dapropostaformuladanoprojetomuseológico[...]Senãoexiste
projeto, a museografia dificilmente poderá dar resposta coerente a uma proposta de exposição.”34 No MHAB, o
projetomuseológicoéresponsabilidade,sempre,daequipetécnicadainstituição,quetrabalhasobcoordena-
ção do diretor, ou de um curador designado por ele. A questão da curadoria, tem se desenvolvido a partir dessa
designação.Entretanto,noperíodoinicialdesseprocesso,erampoucos,nacidade,osprofissionaiscomforma-
ção que possibilitasse assumir tal responsabilidade. A essa limitação somavam-se as dificuldades administra-
tivas características do serviço público, que criavam entraves para a solução de problemas característicos do
processodemontagemdeexposições(porexemplo,acontrataçãodeprofissionaiscomhabilidadesespecíficas,
de empresas, processos de licitação para contratação de serviços com melhores preços, etc.)35.

O Museu tem buscado diversificar o elenco de profissionais com que trabalha. Partindo de um universo
bastante restrito, onde eram poucos os profissionais existentes em Belo Horizonte, visto a ausência tanto de
cursos de formação específica, como de demanda real, em função, na cidade, do que se poderia chamar uma
“cultura insipiente de museus”. Nesse período, a instituição mobilizou, para atender as exposições realizadas
na Sala Usiminas, quatro profissionais diferentes, três deles com formação em Arquitetura e o quarto em
Desenho Industrial.
33
PERICHI, Ciro Carabalo. O que é a museografia? In: ARNAUT, Jurema Kopke Eis, ALMEIDA, Cícero Antônio Fonseca de (orgs.). Museografia: A lingua-
gem dos museus a serviço da sociedade e de seu patrimônio cultural. Rio de Janeiro: IPHAN/OEA, 1995. p. 22.
34
Idem. p. 29.
35
Fato importante neste processo é a presença efetiva da Associação dos Amigos do Museu Histórico Abílio Barreto – AAMHAB – entidade do tercei-
ro setor, sem fins lucrativos, criada para apoiar e incentivar as ações do Museu. A Associação, por meio de seus sócios e das empresas interessadas
no marketing cultural, viabilizou a efetiva participação da sociedade civil no Museu. A AAMHAB tornou-se parceira no cotidiano da Instituição, em
especial quando são propostas novas exposições. Dada à especificidade deste tipo de ação, o Museu e a AAMHAB propuseram à então Secretaria
de Cultura (atualmente Fundação Municipal de Cultura) da Prefeitura de Belo Horizonte, no início dos anos 2000, a elaboração de um convênio que
permitisse o repasse de verbas já anteriormente previstas em orçamento. A AAMHAB, por meio da apresentação de um plano de trabalho, ficaria
responsável pelo detalhamento administrativo e financeiro da exposição a ser realizada no Museu. Para maiores informações sobre a AAMHAB, cf.
CARNEIRO, Edilane Maria de Almeida. Amigos do museu, amigos da cidade. In: PIMENTEL,ThaïsVelloso Cougo (org.). Reinventado...Op. cit. p. 59-69.
Para a equipe institucional, a convivência com profissionais de formação variada tem se constituído espaço
de troca e aprendizado. Ao olhar do historiador, do educador, do conservador, atentos ao acervo e a seus sen-
tidos, somam-se o olhar do arquiteto e do designer, que melhor compreendem o espaço, a luz e a imagem.
Entrecruzam-se impressões, conhecimento específico, sensibilidades, e as exposições podem ser entendidas
como fruto desses entrecruzamentos.
140 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Naperspectivamuseográfica,oprojetodasnovasexposiçõesdoMHABpassapelasseguintesetapas:primeira,
apresentação do tema da exposição; segunda: estudo do espaço físico e proposta de circulação; terceira:
definição do cronograma de montagem da exposição; quarta: levantamento e pesquisa em torno do acervo
a ser envolvido; quinta: posicionamento do acervo e detalhamento expográfico; sexta: preparação da sala de
exposição; sétima: preparação e produção de textos e materiais gráficos; oitava: inauguração da exposição.

O MHAB realizou entre 2001 e 2008 sete exposições de média duração na“Sala Usiminas”, com duração mé-
dia de nove meses, depois de, em média, quatro a seis meses de preparação. Esse prazo pode variar em função
datemáticaescolhida,dasdificuldadesencontradaspelapesquisaqueirásubsidiaroprojetomuseológico,da
existência ou disponibilidade de acervo, dos cuidados exigidos pelo setor de conservação, das exigências do
museógrafo, entre outros motivos.

As exposições dos últimos anos refletiram ao mesmo tempo a capacidade de trabalho crescente da instituição
e o aperfeiçoamento de seu diálogo com o público. O acervo institucional – alvo maior da atenção da equipe
– é quase sempre a riqueza patrimonial a ser exibida. Ao revelar para o público o acervo preservado, algumas
exposições mostraram-se ações importantes no que concerne ao recolhimento de acervo pela instituição. É o
caso, por exemplo, de duas exposições exibidas no MHAB na última década:“Juscelino Prefeito”e“De outras
terras, de outro mar... Experiências de imigrantes estrangeiros em Belo Horizonte”. Nesses dois casos a decisão
de realizar as exposições foi motivada principalmente por situações outras que não a existência de acervo
significativo sobre o assunto nas reservas técnicas do MHAB.

Pode-se afirmar que, além da própria construção das exposições, os dois eventos foram importantes ex-
periências de identificação e recolhimento de acervo pela instituição. No primeiro, foram convidados para a
curadoria especialistas das áreas de história, museologia e museografia. A construção do problema, base para
a elaboração do projeto museológico, possibilitou intensa troca intelectual e técnica entre o conjunto dos
envolvidos no processo. O catálogo36 dessa exposição, expressão do intenso trabalho de pesquisa curatorial,
tornou-se publicação de referência sobre os anos 1940 e o período de Juscelino Kubitschek na prefeitura de
Belo Horizonte.

36
Para maiores informações sobre processo, cf. BRASIL, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Museu Histórico Abílio Barreto. Juscelino Prefeito:
1940-1945. Catálogo da exposição de média duração realizada no Museu Histórico Abílio Barreto em 2002. Curadoria de Eneida Maria de Souza,
Heloísa Maria Murgel Starling, Paulo Rossi e Thaïs Velloso Cougo Pimentel.
No segundo caso, não foram recrutados curadores externos, assumindo a Direção do MHAB o papel de co-
ordenação do processo. A equipe de pesquisa do Museu acabou sendo responsável pela elaboração da pro-
posta conceitual, que, visto sua complexidade e a ausência notável de acervo sob guarda da instituição, en-

141 | Monografias tridimensionais: a experiência curatorial nas exposições de média e curta duração do Museu Histórico Abílio Barreto
volveu problemas variados. Apesar de todas as dificuldades, a exposição“De outras terras de outro mar...”teve
repercussãomuitopositiva:muitobemaceitapelopúblico,emocionou,crioupolêmica,possibilitoudoaçõese
gerou um catálogo37 de excelente qualidade.

Nos anos 2005, 2006 e 2007, a “Sala Usiminas” recebeu as exposições “Como se fosse sólido... Pensando o
patrimônio cultural em Belo Horizonte”,“Ver e lembrar – Monumentos em Belo Horizonte”e“Novos acervos
MHAB – 2003-2008”. Em seu conjunto elas ressaltam o traço que, nos últimos anos, caracteriza as ações
institucionais: tomar a cidade de Belo Horizonte como construção permanente dos diversos agentes sociais,
econômicos e políticos que a formam. O Museu, por muitos anos, abordou a cidade principalmente por meio
de registros oficiais, exemplares, preciosos. A reestruturação institucional dos últimos anos possibilitou uma
compreensão mais abrangente, democrática e plural da cidade, em sua diversidade e complexidade.Temas
variados têm sido trabalhados nas exposições de modo a refletir as preocupações que norteiam a reflexão
sobre a história e a memória, o passado e o presente, a dinâmica atual e o futuro de nossa cidade.

Essa diversificação de reflexões tem influenciado fortemente o recolhimento de acervos. Essa ação, até 2003
totalmente passiva, é agora fortemente influenciada pela pesquisa curatorial, seja ela voltada para exposições
ou para o processamento técnico.

Outra importante decisão tomada nos últimos anos pelo Museu foi a de“ganhar as ruas da cidade”. Partindo-
se do pressuposto de que são poucas as chances de expansão em seu próprio sítio depois das obras do“pro-
cesso de revitalização”, e ciente, ao mesmo tempo, do intenso crescimento da cidade e de sua população,
a instituição resolveu ampliar seu raio de ação em Belo Horizonte, com a realização de projetos e ações
extramuros. Alguns deles se dão em torno da elaboração de exposições de média duração, periodicamente
instaladas em mobiliário urbano especialmente projetado. Esses projetos exigem cuidadosa articulação com
o poder público, visto que os suportes das exposições exigem intervenção no espaço urbano. Essa articulação
determinou os diferentes locais escolhidos para receber os equipamentos. A pesquisa curatorial estabeleceu
os temas e conteúdo que falam da cidade para uma parcela da população, que nem sempre encontra tempo
ou tem oportunidade para visitar o Museu.

Desafios curatoriais – exposições de curta duração


O“projeto de revitalização”do MHAB também buscou conceituar outras formas de difusão do acervo. Chama-
remos a atenção para duas ações que, por suas características curatoriais, parecem interessantes para a dis-
cussão que desenvolvemos neste texto: são, por excelência, exposições de “curta duração”.
37
BRASIL, Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Museu Histórico Abílio Barreto. De outras terras, de outro mar... Experiências de imigrantes
estrangeirosemBeloHorizonte.CatálogodaexposiçãodemédiaduraçãorealizadanoMuseuHistóricoAbílioBarretonosegundosemestrede2004.
Curadoria de Luiz Henrique Assis Garcia, Nico Rocha e Thaïs Velloso Cougo Pimentel.
O projeto“Peça do Mês”iniciado em meados do ano de 2002 visa divulgar, de forma diferenciada, um objeto
ou conjunto de objetos do acervo do museu, em um espaço que não foi, inicialmente, projetado como espaço
expositivo. Foi escolhido um espaço cuja principal característica é o grande trânsito de público eventual: um
corredor do mezanino do Edifício-Sede do Museu, situado entre a Biblioteca e um café operado por terceiros.

Não se trata de uma exposição formal. Um objeto é mostrado de forma individualizada, juntamente com as
142 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

informações técnicas levantadas pela pesquisa curatorial. O texto-legenda da exposição de curta duração
“Peça do Mês”, curto e objetivo, apresenta dados estruturais e históricos do objeto exposto.

Essa instalação acontece no corredor de um dos andares mais movimentados do Edifício-sede do MHAB, área
de passagem utilizada pelos usuários da biblioteca do Museu que, para acessarem a mesma são forçosamente
obrigados a passar pela“Peça do Mês”. O mesmo acesso é utilizado pelo público freqüentador do café insta-
ladonasdependênciasdoMuseu,chamandoaatençãodosfreqüentadoresdesseespaçodeconvivênciapara
a instituição e suas atividades.

O projeto“Peça do Mês”foi iniciado em maio de 2002, e já expôs, aproximadamente, oitenta objetos do acervo
museológico,sempremobilizadoitensarmazenadosnasreservastécnicasdoMuseu.Sãoobjetosque,deoutra
forma, talvez não fossem acessados pelo público, por não terem sido listados em exposições recentes: escultu-
ras, rádios, placas, insígnias, objetos de uso pessoal, de trabalho, fragmentos de construção, entre outros. Um
exemplo dessa linha curatorial foi o objeto denominado Monumento às Mães, maquete de uma estátua insta-
lada em Belo Horizonte. Esse objeto, no acervo do Museu desde 1959, só havia entrado em duas exposições
até então: uma em 1998 e outra em 2003.

Outra experiência a ser ressaltada é o espaço do“foyer do auditório”, situado no andar térreo do Edifício-sede
do MHAB. Esse local foi tornado espaço para exposições de curta duração pela Direção do Museu em 2001.
Desde então, ali montadas nove mostras, com base em acervos do MHAB e de terceiros. Nesse último caso, a
disponibilização do espaço pela instituição obedece a uma avaliação da pertinência, do tema e das dimensões
da proposta, já que se trata de área de trânsito.

As exposições montadas no foyer do auditório do museu geralmente retratam algum trabalho que esteja
sendo desenvolvido por pesquisadores do corpo técnico. Em 2001, por exemplo, acabava de ser restaurada a
“Maquete do largo da Matriz no Arraial do Curral Del Rei”, realizada nos laboratórios do Centro de Conserva-
ção e Restauro (CECOR) da UFMG. Dois anos antes, o Museu havia concluído um projeto de exposição externa
de longa duração na Catedral de Nossa Senhora da Boa Viagem38, na qual foram relacionados o“Lavabo”e o
“Retábulo”, ambos provenientes da antiga edificação religiosa, demolida em 1922. A temática pareceu uma

38
O“Projeto de Extensão do MHAB – Catedral de Nossa Senhora da BoaViagem, inaugurado em 1999, instalou, na referida edificação, dois impor-
tantes objetos do acervo, que, de outra forma, dificilmente sairiam das reservas técnicas da instituição. Para maiores detalhes, cf. LACERDA, Daniela,
et al. Ação cultural do Museu Histórico Abílio Barreto. In: In: PIMENTEL, Thaïs Velloso Cougo (org.). Reinventado o MHAB... Op. cit. p. 108.
boa oportunidade de chamar a atenção do público usuário do Museu não apenas para um dos mais signifi-
cativos itens do acervo, como também inteirar esse público sobre certa categoria de atividades museológicas
que dificilmente chega ao conhecimento dele.

143| Monografias tridimensionais: a experiência curatorial nas exposições de média e curta duração do Museu Histórico Abílio Barreto
Outro projeto situado nessa linha de atuação foi a montagem, em 2004, de mostra de cartazes utilizados em
campanha de divulgação do museu, em abrigos de ônibus na Praça Sete de Setembro. Essa campanha, en-
campada pela Prefeitura de Belo Horizonte, baseava-se em exposição de fotos da Praça, todas pertencentes
ao acervo do Museu. Essa mostra realizou-se a partir da conclusão das obras que reestruturaram, urbanistica-
mente, a região, concluídas, em setembro de 2003. Do ponto de vista curatorial, o objetivo do projeto era con-
trastar formas diferenciadas de apresentação do acervo, disseminando a nova proposta de atuação do Museu
na cidade. Após permanecerem durante alguns meses no espaço público, os cartazes foram novamente insta-
lados no foyer, de forma que permitia a manipulação dos objetos pelos visitantes que quisessem fazê-lo.

Outras exposições de curta duração foram realizadas no foyer do auditório, nenhuma delas tendo duração
maior do que 120 dias. Os temas sempre abordavam questões ligadas à cidade, procurando-se ver como o
acervo respondia a tais questões. A primeira delas teve como tema as comemorações do Cinqüentenário de
Belo Horizonte em 1947. Em seguida privilegiou-se o tema“higiene e saúde”na cidade, na primeira metade
do século XX. A exposição seguinte abordou as “representações do negro no acervo do museu”.

Para observarmos um exemplo, mais de perto, tomemos a exposição “Higiene e saúde em Belo Horizonte,
1897-1950. Os objetos que compuseram essa mostra eram todo do acervo preservado pelo MHAB. Inclusive
possível foi percorrer subtemas como a construção da cidade higiênica, a saúde pública, a higiene pessoal e
consolidação da higiene como um hábito pessoal cotidiano a partir da segunda metade do século XX. Foram
mobilizadositenspertencentesàsquatrocategoriasdeacervodainstituição:objetostridimensionais,fotográ-
ficos, textuais-iconográficos e bibliográficos. Causou excelente impacto uma série de reclames extraídos de
revistas populares, publicadas entre as décadas de 1920 e 1950, que ajudaram a amarrar a idéia da construção
da relação entre higiene e saúde. O cruzamento de imagens e objetos tridimensionais, de uso individual no
ambiente privado, ampliou a leitura da questão da saúde pública, saneamento de cidades e higiene pessoal. A
linhadepesquisapermitiuquealgunsobjetoshámuitonãoexpostossejuntassemanovosacervos,adquiridos
recentemente pela instituição.

A exposição de curta duração seguinte, inaugurada em setembro de 2007, teve por título“Uma questão de
raça: representações do negro no museu da cidade”. Com curadoria da própria equipe técnica do MHAB, o pro-
jeto lançou um olhar aguçado sobre o acervo do museu ao buscar perceber o tratamento da questão do negro
e das relações raciais ao longo dos 65 anos de existência da instituição. O resultado mostrou como a pesquisa
curatorial, articulando o tema com o acervo, pôde recuperar objetos tradicionais e dar-lhes um novo sentido.
Considerações finais: a curadoria como ferramenta institucional

Ao refletir sobre o Museu Histórico Abílio Barreto ao longo de seus 65 anos de existência, criado quando Belo
Horizonte ainda não completara 50 anos, a experiência de trabalho acumulada é proporcional à visibilidade
conquistadanos últimos anos. A cada dia é possível perceber a ampliação do reconhecimento da comunidade
pelotrabalhodesenvolvido,sejapormeiodemanifestaçõesavulsas,sejapormeiodemecanismosquebuscam
144 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

aferir a aceitação do público em relação ao esforço empreendido pela instituição. Pois, como afirma Mário
Chagas,“é nesse encontro entre“logia”(museologia) e a“grafia”(museografia) nos museus que nos permite
compreendê-los como centros interpretativos, campos discursivos e arenas políticas. ”39

Ao compreender a cidade e não apenas a sua história como fato museal e como alvo da ação curatorial, o
MHAB ampliou sua ação expositiva tanto em seu sítio histórico e sua nova sede, como nas praças, ruas e
escolas de Belo Horizonte. A maior presença do museu na cidade, garantida pelo dinamismo institucional, por
uma linha curatorial que se consolida a cada projeto de exposição proposto pelo museu, bem como pela busca
de parceiros, acaba por resultar na crescente importância atribuída pela população ao seu museu histórico e,
por extensão, aos espaços de memória em que se constitui a cidade em que todos vivemos.

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uma experiência sempre em processo

A curadoria de acervos documentais


Célia Regina Araujo Alves
Nila Rodrigues Barbosa
As questões que discutimos nesse texto têm origem nas atividades práticas de avaliação, organização e trata-
mentotécnicodasinformaçõesdeacervosformadospordocumentoscujosuporteéopapel,observando,tam-
bém, a conservação física dos mesmos. Esse trabalho vem sendo desenvolvido no âmbito do Museu Histórico
Abílio Barreto, MHAB, unidade integrante da Fundação Municipal da Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte,
instituição na qual temos exercido a curadoria dessas fontes primárias. É, antes de tudo, uma oportunidade
para que possamos refletir sobre a prática profissional de organização de acervos públicos e privados, em
espaço museal, contribuindo para a sistematização da memória do belo-horizontino, bem como da memória
social do próprio documento.

147 | Uma experiência sempre em processo. A curadoria de acervos documentais


A metodologia utilizada no MHAB para a curadoria de documentos textuais e iconográficos envolve o proces-
samento técnico das coleções que se traduz, no mínimo, em três aspectos básicos: compreender o processo
de formação da coleção em si; retirar as informações das unidades documentais e gerar a documentação
museológica.

A curadoria não é somente o processamento técnico dos acervos documentais, mas uma atividade que pos-
sibilita um diálogo interdisciplinar entre a História que, desde a revista “Annales d’histoire économique et
sociale” (1929), instalou a ampliação da noção de documento, o que tem permitido uma seleção inusitada
de documentação no MHAB, haja vista a valorização de fontes que exprimem“tudo o que, pertencendo ao
homem,dependedohomem,serveohomem,exprimeohomem,demonstraapresença,aatividade,osgostos
e as maneiras de ser do homem”1 e a Arquivologia que fornece o referencial teórico-metodológico para a
organização dos conjuntos documentais e o tratamento das informações neles contidos.

A presença de documento nas várias modalidades de papel é comum aos museus, muito embora não repre-
senteamaioriadosacervosconstituídosporobjetosbidimensionaisetridimensionais.Durantelongoperíodo
foramentendidoscomomanuscritos,papéisoriundosdeinstituiçõespúblicas,oupapéispessoaisdeindivídu-
os com relevância social. Os arquivos pessoais ou manuscritos privados tiveram dificuldades de recolhimento
por parte dos arquivos públicos voltados para uma documentação de cunho administrativo e, por isso, foram
aceitos em bibliotecas ou mostraram-se significativos aos olhos de organizadores de museus. Em geral, eram
valorizados como documentos antigos, cuja característica fundamental seria portar a autenticidade e, por
isso,“definitivamenteseparadosparapreservação,tacitamentejulgadosdignosdeseremconservadosporseu
criador ou legítimo sucessor como testemunhos escritos de suas atividades no passado”2, o que garantiria a
comprovaçãodeumdeterminadopassado,selecionadoparafigurareminstituiçõesmuseais.Aautenticidade
era atribuída, sobretudo, aos documentos originais, provenientes do mundo oficial.

1
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: UNICAMP, 1992, p. 540.
2
Para maior detalhamento sobre as propriedades dos documentos contemporâneos (autenticidade, imparcialidade, naturalidade, inter-relacio-
namento e unicidade), cf.: DURANTI, Luciana. Registros documentais contemporâneos como prova de ação. Estudos Históricos, (v. 7, n. 13, 1994,
p.46-64). Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1994.
ApartirdoséculoXIX,algunsmuseusbrasileirosforamorganizadosemumaperspectivaetnográficaeenciclo-
pédica3, como o Museu Nacional, o Museu Paulista e o Museu Paraense Emílio Goeldi. Em fase mais madura,
naúltimadécadadomesmoséculo,essesmuseusdestacaram-sepelapresençadeprofissionaisnotratamento
de suas coleções. Na primeira metade do século XX, houve expansão dos museus históricos. As elites políticas
perceberam a importância desses museus para a elaboração de um passado homogêneo, no qual as“elites
brancas e aristocráticas tiveram um papel de destaque”4. Nesses museus, os documentos em papel foram co-
148 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

lecionados junto a outros acervos museais e designados como relíquias do passado e antigüidades.

Em 1922, o paradigma de histórico foi traçado com a criação do Museu Histórico Nacional. A categoria tradição
passou a ser o contraponto necessário ao conceito de moderno, proposto pelos intelectuais do movimento
modernista. Daí em diante, o passado do país passou a ser pensado como uma possibilidade de patrimônio
histórico e artístico, entendido sob o prisma da identidade nacional. Esse ideal marcou a política do Estado, por
meio do SPHAN, criado em 1937. Dessa forma, a concepção museológica etnográfica do século XIX, ancorada
em uma orientação enciclopédica, exaltadora das várias riquezas de uma nação ou de determinado Estado
nacional, foi superada pela criação das tradições e pela exaltação moral e patriótica do passado.

No âmbito de Minas Gerais, essas observações podem ser constatadas nos artigos da Lei n° 528 de 20 de set-
embrode1910,queorganizavaoMuseuMineiro5.Inicialmente,estavamprevistasseçõescontendotipologias
diversas de acervo fundamentadas na história natural, na etnografia e nas antigüidades históricas, em uma
perspectiva enciclopédica. Na tentativa de se efetivar tal dispositivo legal e já passados dezessete anos de sua
decretação, Gustavo Penna, na sessão do dia 27 de novembro de 1927 do Instituto Histórico e Geográfico de
Minas Gerais, enfatizou a necessidade de um museu em Minas Gerais de caráter histórico, para guardar as
relíquias históricas do passado. Essa proposta não se efetivou, ainda, naqueles anos.

Outra iniciativa de preservação histórica se deu com a criação do Museu Histórico de Belo Horizonte, por meio
do decreto n° 91, de 20 em maio de 1941, com a instalação da Seção de História da Cidade, ligada, naquela
época, ao Arquivo da Prefeitura de Belo Horizonte.

Nos museus históricos, os manuscritos eram entendidos como antigüidades, portadoras do valor de época:
“um valor atribuído aos signos visíveis de era e decadência”6. Ao apresentar essas qualidades, a documentação
também expressava a autenticidade. Sobre esse atributo recaía a concepção da raridade, difícil de ser encon-
trado,oquedemandavaenormepaciênciaporpartedosorganizadoresdosmuseusoudospesquisadorespara
defrontá-la e comprová-la. O valor da antigüidade estava em sua ancianidade, posta nas perdas materiais e
3
Sobre os museus etnográficos ver: SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930.
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 67-98.
4
BITTENCOURT, José Neves. Sobre uma política de aquisição para o futuro. Cadernos Museológicos., (n. 3, 1990). Rio de Janeiro: Fundação Nacional
pró-Memória - Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, 1990. p. 31.
5
JULIÃO, Letícia. Colecionismo mineiro. Belo Horizonte: Secretaria de Estado da Cultura - Superintendência de Museus, 2002. p. 19- 39.
6
RIEGL apud BANN, Stephen. As invenções da história: Ensaios sobre a representação do passado. São Paulo: Editora da Universidade Estadual
Paulista, 1994,
p. 157-159.
na decomposição da forma e na mudança da cor, tanto do papel como da tinta, embora aceitas como algo
natural. Ou seja, a eficácia estética da antigüidade trazia em seus traços a sensação do tempo transcorrido e
podiaserentendidatantopelosespecialistas,comopelosleigosqueimediatamenteaassociavamaopassado.
Mas essas antigüidades, acervos de museus, destacavam-se pelo valor testemunhal: fonte histórica autêntica
e, por isso, verdadeira. Eram testemunhos que valorizavam os feitos das elites políticas, importantes para uma
única versão oficial da história a ser contada pelos museus.

Amanutençãodosdocumentosescritosnosmuseushistóricoserafundamentalparaametodologiacientífica,
versão historiográfica do século XIX, que vigorou no Brasil até o século passado. Ela valorizava a documenta-

149 | Uma experiência sempre em processo. A curadoria de acervos documentais


ção escrita de cunho oficial, base para o estudo da história. Acreditava-se que a verdade do passado estaria
nos próprios documentos. Uma vez encontrados em instituições como os arquivos e museus era possível re-
constituir o passado. Aceitava-se, dessa forma, que a história permitia conhecimento objetivo, constituído por
meio de provas localizadas nos documentos manuscritos, portadores de dados naturais e verdadeiros.

Atualmente, entendemos que os acervos documentais são, antes de tudo, artefatos de registros, pessoais ou
públicos, sempre derivados de uma atividade.Terry Cook7 chama atenção para a dualidade que se criou entre
acervospúblicos–como“acumulaçõesnaturaisenecessárias,orgânicas,arbitrárias,inocentesetransparentes”,
versus os acervos pessoais, “artificiais, arbitrários, parciais”. Esse autor não só critica a diferença muitas vezes
aplicada para o tratamento desses acervos, como enfatiza que tal divisão é falsa: ambos acervos nunca foram
“completamente verdadeiros”. São produtos de seu próprio tempo e é necessário entendê-los no contexto em
queforamcriados.Daíanecessidadedeseanalisaremosprocessosdacriaçãodocumental,umadasatividades
da curadoria, para se entender as propriedades de evidência confiável que possuem os documentos.

Entendemos, ainda com Cook, que, ao lidar com o arranjo dos documentos, o curador insere os seus sentidos
de valor, dados por sua formação e filiação teórica. O documentalista“neutro, objetivo e passivo”sucumbiu
aos novos conhecimentos elaborados pela história junto ao“caráter da memória”, o que exige ação oposta à
idéia tradicional de isenção, na avaliação, organização e descrição documental8.

Emnossaanálise,umdosentendimentospossíveissobreacuradoriadeacervosdocumentaisfundamenta-se
justamentenapossibilidadedepesquisaparaquesecompreendaoprocessodecriaçãodosdocumentose,daí,
organizá-los fisicamente e deles extrair dados informacionais. Em outras palavras, do texto registrado em seu
suporte, um artefato de registro com suas características, ao contexto de sua produção, fundamentado nos
atos e nas ações relacionados ao mundo oficial, como também, ao cotidiano de todos os sujeitos da sociedade.
Dessa forma, o museu não é visto como uma simples reunião de objetos ou de papéis, transformados em ob-
jetosmuseológicos,retiradosdesuafunçãooriginal,isoladosedescontextualizados.Nosmuseus,osartefatos
colecionados, fragmentos da cultura material, permitem a indagação e o estudo do passado, desde que haja
7
COOK,Terry.Arquivospessoaisearquivosinstitucionais:paraumentendimentoarquivísticocomumdaformaçãodamemóriaemummundopós-
moderno. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1998. p. 129-149.
8
Ibidem. p. 132.
uma organização de seus conjuntos. As coleções são formadas pela procedência, categoria ou função do ob-
jeto. No MHAB, os acervos documentais são organizados pela procedência e não somente pelo seu suporte.

De acordo com Bittencourt,“os museus não devem somente expor os objetos, função em geral associada a
tais instituições, mas criar métodos e mecanismos que permitam o levantamento e acesso às informações das
quais os objetos são suportes”9. É necessário que os museus organizem as informações que possuem sobre os
150 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

objetos e conjuntos documentais. A curadoria de acervos documentais requer uma seleção compatível com a
noção ampliada de documento, uma organização e um tratamento das informações afixadas nesses suportes
documentais. As características dos registros documentais revelam o cotidiano e o dispositivo de hierarquiza-
ção social inscritos nas unidades documentais.

Uma vez tratadas as informações, o acesso, por meio de consulta a instrumentos de pesquisa e de catálogos
disponibilizados em formato manual ou virtual, possibilita obter as informações sobre a coleção. A pesquisa
poderá ser realizada pelos técnicos das instituições e pelos consulentes externos. No MHAB, os acervos docu-
mentais são tratados por meio de arranjo em séries que recuperam as tipologias ou as funções exercidas por
instituições ou pessoas.

O Museu Histórico de Belo Horizonte,


o Museu Histórico Abílio Barreto e a nova gestão dos anos 90

Abílio Barreto havia completado, em 1928, a redação de uma história da nova capital, que intitulou “Belo
Horizonte: memória histórica e descritiva: História Antiga”. Ao organizar e dirigir o Museu Histórico de Belo
Horizonte (MHBH), entre 1941 e 1946, passou a selecionar, além dos objetos oriundos das elites belo-horizon-
tinas e mineiras, os documentos escritos e produzidos por autoridades, para que esse acervo servisse de tes-
temunho da história contada por aquele Museu. A exposição inaugural, implantada no casarão da Fazenda do
Leitão, sede do MHBH, explicitava, em uma versão cronológica e em uma visão teleológica, a erradicação do
“rústico”arraial do Curral del Rei dos tempos coloniais, à construção da nova capital de Minas Gerais, marca
damodernidadeesinônimodoprogressocontemporâneo,erguidaemespaçourbano,planejadoeconstruído
de forma científica. A exposição inaugural“tinha como prioridade instruir o cidadão para valores cívicos, do
progresso e da civilização”, interesse que se traduzia, também, nas visitas realizadas pelos estabelecimentos
de ensino10.

Em 18 de fevereiro de 1943, na administração do então prefeito Juscelino Kubitscheck, foi inaugurado o


MHBH. Uma parte de seu acervo foi constituída por objetos transferidos da Prefeitura para o museu. A esse
núcleo inicial, formado por itens de tipologias, suportes e conteúdos diferenciados, acresceu-se uma gama
variada de doações de terceiros e aquisições feitas pela própria instituição, graças ao trabalho de pesquisa
9
BITTENCOURT. Op. cit. n. 4, p.30.
10
Sobre a organização do Museu, ver: CÂNDIDO, Inez. MHAB: 60 anos de história. Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2003, p. 9-30.
realizado por funcionários do Museu. Esses, além de visitarem as repartições administrativas do Estado, pro-
curavam conhecer as coleções particulares de terceiros, com possibilidade de doação.

Abílio Barreto adquiriu, durante os anos em que esteve como organizador do Museu, uma série de objetos
e documentos para os quais foi dada uma ordenação temática e cronológica. Assim, o acervo da instituição
conformou as seções referentes ao antigo Arraial do Curral del Rei, ao Arraial de Belo Horizonte, à Comissão
Construtora da Nova Capital, á Cidade de Belo Horizonte. Essa divisão constituía o próprio percurso da ex-
posição inicial, formada por todos os objetos selecionados.

151 | Uma experiência sempre em processo. A curadoria de acervos documentais


Todavia, essa ordenação inicial do acervo não foi preservada em sua integridade. Pode-se perceber que, nas
subseqüentesadministrações,adisposiçãodasseçõesqueconformavamascoleçõesfoisendo,gradualmente,
desfeita. Ainda assim, é possível afirmar que a obra, iniciada por Abílio Barreto, marcou significativamente a
trajetória do Museu. A forma de registrar, inventariar e descrever o acervo permaneceu sendo feita segundo
as concepções de história, memória e patrimônio que orientavam o seu fundador. A figura marcante de Abílio
Barreto, na conformação do MHBH e na escrita da história da cidade, foi decisiva para a criação da Lei 1391
de 1 de agosto de 1967 que alterou o nome do MHBH, para Museu Histórico Abílio Barreto, em homenagem
ao seu organizador.

Em 1993, o MHAB é assumido por uma nova gestão preocupada em revitalizá-lo e dinamizá-lo como um novo
espaço cultural para a cidade.Tratava-se de imprimir ao Museu uma concepção museológica contemporânea
que enfatizasse seu papel como meio de informação, pesquisa, educação;em suma, portador de uma ação
cultural em diálogo com a cidade. Conforme salienta Thaïs Pimentel...

De um lugar que sacralizava uma única memória da cidade, o Museu passaria a ser visto como um desafio:
precisava urgentemente ser transformado em referências para todos, o que significa que seu objeto – a
memória da cidade – teria que ser buscado na multiplicidade das experiências dos cidadãos.
(...) O Museu passaria a ser visto como uma instituição sintonizada com uma multiplicidade de abordagens
e interpretações. Isso numa perspectiva onde tanto o objeto do trabalho da Instituição – a memória – como
a forma de difusão desse trabalho – a exposição – deveriam ser revistos em seus conceitos, de modo que o
Museu pudesse representar não uma, mas várias memórias contidas na experiência da cidade11.

A iniciativa de revitalização do Museu partia de um conceito da história e da memória para além das ações
fundadoras e celebrativas de cunho oficial. Um entendimento da história, como interpretação e explicitação
deconflitosedopatrimônioemsuasdimensõesdematerialidadeedesociabilidade,permitindorelaçõesentre
o sujeito do presente e as interpretações sobre os elementos patrimoniais da cidade. Pretendia-se estabelecer
um diálogo com a população de Belo Horizonte que permitisse ao Museu se constituir como museu de cidade,
com um significado amplo e com a representação de identidades das pessoas que habitam o espaço da capital
11
Sobre o processo de revitalização do MHAB, ver Crônica da revitalização de um museu público. IN: Reinventando o MHAB: o museu e seu novo
lugar na cidade: 1993-2003 (Org). Belo Horizonte: Museu Histórico Abílio Barreto, 2004, p. 13-33.
mineira. Essa nova compreensão possibilita ao MHAB a entrada de novos acervos provenientes de segmentos
sociais amplos. Um diálogo entre museu e cidade que se faz também, mediante o processamento técnico,
entendido como um dos aspectos da curadoria.
A curadoria desses acervos consiste na análise do conjunto documental e de cada uma de suas unidades e na
elaboraçãodeumadocumentaçãoquecontémasinformaçõesfornecidaspeloestudoanteriorsobreosdocu-
mentos do conjunto. É preciso que se considere, nessa curadoria, a influência de vertentes historiográficas às
152 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

quais estejam ligadas a instituição e o responsável técnico, em sintonia com os procedimentos de organização
documental. Enfatizamos que na atualidade o museu não é um mero conservador de objetos, na medida em
que dialoga com doadores, pesquisadores e, principalmente, com os titulares que acumularam a documenta-
ção. Busca-se compreender as escolhas que esses últimos realizaram e que são, muitas vezes, instigantes, ora
incômodas para aqueles que, no presente, reorganizam e reinterpretam o acervo de documentos.

A curadoria de acervos documentais em museus históricos, um trabalho constante com“objetos vivos”, é uma
análise constante de papéis. Essa atividade gera arranjos seriais e instrumentos de pesquisa. Esses expõem,
emumadescriçãoobjetiva,dadosinformativosqueauxiliamopesquisadoraselecionarosdocumentosquese
abrirão às inúmeras leituras interpretativas e nas narrativas históricas.

Quando se trata de organizar um conjunto documental lidamos com a pergunta inicial: arquivo ou coleção?
Para o tratamento das unidades documentais, orientamo-nos por alguns conceitos arquivísticos, de acordo
comoDicionáriodeTerminologiaArquivística12.Entendemosporarquivostodadocumentaçãoquepossuiuma
relação orgânica entre si, produzida, acumulada e utilizada por um indivíduo, família ou instituição no decurso
de suas funções. As coleções são compreendidas como uma formação progressiva, uma reunião não orgânica
dedocumentos,masqueapresentamalgumacaracterísticacomum.Percebemosqueaprocedênciasustentaa
organização dos acervos documentais. Em outras palavras, a sua proveniência deve ser mantida. Dessa forma,
a primeira constatação é observamos se os documentos são originários de uma instituição ou de uma pessoa
física. Os conjuntos documentais não são misturados a outros de origens diversas.

As informações contidas nas unidades documentais são tratadas mediante a leitura individual dos docu-
mentos. O registro é feito em fichas elaboradas com campos específicos que distinguem alguns dados sobre
os documentos textuais e outros relativos aos documentos iconográficos. Dessa forma, para os documentos
textuais consideram-se, entre outros, os campos: tipo de documento, autoria, data, conteúdo e, no caso da
correspondência, o destinatário. Em se tratando da documentação de cunho iconográfico, como projetos
técnicos, arquitetônicos e mapas, a leitura passa pela autoria, data, escala, dimensão, técnica de elaboração e
outros. O campo de notas explicita a bibliografia consultada para o entendimento do conteúdo a ser descrito.
Há, ainda, campos para a notação: o número do documento na seriação, bem como o local em que se encontra
o documento nas caixas guardadas nas reservas técnicas.

12
CAMARGO,AnaMariadeAlmeida.BELLOTTO,HeloísaLiberalli.(Coord.)DicionáriodeTerminologiaArquivística.SãoPaulo.AssociaçãodosArquivis-
tas do Brasil – Núcleo regional de São Paulo. Secretaria de Estado da Cultura – Departamento de Museus e Arquivos. 1996.
Como exemplo da prática exercida no tratamento dos acervos documentais, textuais e iconográficos, com
base em uma ação de curadoria, passaremos a analisar dois conjuntos documentais: a Coleção Comissão
Construtora e o Arquivo Privado Abílio Barreto, acervos do MHAB. Mencionamos que, embora o Fundo MHAB,
formado por documentos permanentes, não faça parte da discussão tratada nesse texto, é mantido na própria
instituição. Possui arranjo documental que abriga documentos produzidos a partir de 1941.

O tratamento de um acervo: a Coleção Comissão Construtora13

153| Uma experiência sempre em processo. A curadoria de acervos documentais


A Comissão Construtora da Nova Capital, CCNC foi criada em 1893 pelo Art. 2o da Lei No 3, adicional à Con-
stituição do Estado de 17 de dezembro do mesmo ano. Órgão vinculado à administração estadual, a Comissão
Construtora gozava de autonomia para construir a capital, entre 1894 a 1897.

A Coleção Comissão Construtora foi organizada com base em um tratamento no qual se privilegiou a pro-
cedência desse conjunto documental, o que significou não misturá-lo a outros papéis em respeito a sua
proveniência. Os documentos foram arranjados em séries e a essas se incorporaram os tipos documentais
levantados nesse mesmo conjunto. A denominação Coleção Comissão Construtora, apresentou-se como a
mais apropriada, uma vez que o MHAB possuía apenas uma pequena parcela (1.174 itens) dos documentos
produzidos por aquela Comissão e selecionados, na maior parte, por Abílio Barreto e alguns doados por ter-
ceiros, ainda na formação original do acervo do MHBH.

No MHAB, até 1993, o acervo documental da Comissão Construtora14 apresentava-se misturado a diversos
documentos,sobretudoàdocumentaçãoiconográfica(cartográficaeprojetosarquitetônicos),econfundia-se
com papéis de procedências diversas. Eram guardadas em uma mapoteca de aço bastante danificada, com
presença de ferrugem e vedação comprometida.

Amaior parte dos documentos da CCNC é composta por papéis administrativos, os documentos textuais. Out-
ra parcela, as cadernetas de campo contêm as anotações e estudos sobre a demarcação de terras. Em número
muito expressivo, aproximadamente de 750 cadernetas, estavam em várias caixas de papelão, sem condições
de manuseio. O restante da documentação textual era formado pela correspondência de algumas Divisões da
CCNC, encadernada em 8oito volumes: os“códices”da Comissão Construtora, como eram chamados, em uma
compilação artificial. Essa encadernação foi realizada em uma das administrações posteriores a Abílio Bar-
reto, visando agrupar e preservar os documentos. Entretanto, não havia uma seqüência lógica e sequer uma
ordemcronológica.Suaconservaçãoestavacomprometidadevidaàpresençadecolainadequada,dobraduras,
13
Parte da reflexão sobre a Coleção Comissão Construtora foi apresentada, em forma de comunicação, no XI Congresso Brasileiro de Arquivologia/
Rio de Janeiro, entre 21 a 25 de outubro de 1996, com o título Arranjo e Descrição dos Documentos da Comissão Construtora da Nova Capital, por
Célia Regina Araujo Alves e Silvana Gomes Resende.
14
Na cidade de Belo Horizonte, os documentos da CCNC estão localizados em três instituições: Arquivo Público Mineiro, Arquivo Público da Cidade
de Belo Horizonte e Museu Histórico Abílio Barreto. Atualmente, graças a um projeto financiado pela FAPEMIG, essa dispersão foi superada por um
acessodigitalquepossibilitaacessarencontrartodososdocumentosemqualquerumadessasinstituições.Portanto,épossívelrecuperarnaíntegra
esse importante conjunto documental.
sujidadeserasgos. Após algumas consultas técnicas com profissionais ligados à área de conservação de papel,
foi proposta uma operação de “desmonte” para os volumes encadernados.

Paralelo a esses trabalhos de reconhecimento da documentação, iniciou-se uma pesquisa sobre a estrutura
organizacional da Comissão Construtora. O engenheiro Aarão Reis, que chefiou inicialmente a Comissão,
organizou-a em seis Divisões15. Mais tarde, em 1895, quando a chefia da Comissão foi assumida por Francisco
154 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Bicalho, sua estrutura foi modificada e reorganizada em dez Divisões. Algumas funções que estariam a cargo,
em especial, da 6ª Divisão foram desmembradas em outras, além de terem sido criados os Serviços Municipais,
estabelecidos na 3ª Divisão16.

As Instruções Regulamentares para o Funcionamento das Divisões da CCNC, documento descrito no livro de
Barreto17, foram elaboradas por Aarão Reis e postas em vigor em 8 de outubro de 1894. Não nos foi possível
localizar outra que a tenha substituído, na ocasião em que Francisco Bicalho assumiu a chefia da CCNC. As
Instruçõessesubdividiam em outras relativas a cada uma das Divisões. As Instruções Regulamentares demon-
stram, ainda, a atenção especial dada pela Comissão Construtora à execução da documentação, o seu trâmite
e a organização de seus arquivos18.

Organizar essa documentação passou a ser um desafio devido à preocupação da CCNC em preservar para o fu-
turo,emdetalhes,assuasatividades,comoregistrooficialdaconstruçãodacidade.Nãopretendíamosevidenciar
naorganizaçãoapenasoscaracteresexternos,classificandosomentequantoàclassetextualougráfica,suporte,
formato e forma. Nem tão pouco seria possível recuperar a organização inicial, pois se tratava de uma pequena
parceladaquelespapéisproduzidospelaCCNC.Assimsendo,umarranjoparaosdocumentosdaComissãoCon-
strutora com base na tipologia documental apresentava-se como a melhor forma de organização.

1 Divisão: Administração Central; 2a Divisão: Contabilidade; 3a Divisão: EscritórioTécnico; 4a Divisão: Estudo e Preparo do Solo; 5a Divisão: Estudo
15 a

e Preparo do Subsolo; 6a Divisão: Estudo e Preparo da Viação, das Edificações, das Instalações Elétricas e mais Trabalhos Acessórios.
16
1ª Divisão: Administração Geral; 2ª Divisão: Contabilidade; 3ª Divisão: Serviços Municipais; 4ª Divisão: EscritórioTécnico; 5ª Divisão:Viação Férrea
e Eletricidade; 6ª Divisão: Arruamento, Calçamentos, Parques e Jardins; 7ª Divisão: Edificações Públicas; 8ª Divisão: Abastecimento de Água; 9ª Divi-
são: Esgotos; 10ª Divisão: Edificações Municipais, Casas para Funcionários e Empregados.
17
BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva: História Antiga. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos
Históricos e Culturais, 1995, 122-163.
18
Nos diversos Capítulos das Instruções Regulamentares para a Execução dos Serviços a cargo desde 1ª à 6ª Divisões vê-se a menção quanto à
organização de arquivos nos vários segmentos da CCNC. Nas Instruções da 1ª Divisão, Capítulo III, Da Secretaria, enfatizava-se que essa teria a
responsabilidade de todo o trâmite documental interno e externo, bem como ficou expressado no seu Artigo 8º, a presença do“arquivo geral dos
papéis”.OArtigo16domesmoCapítuloafirmavaqueo“arquivoseráorganizadoemcoleçõescorrespondentesàsdiversasdivisõesporqueseacham
distribuídos os serviços da Comissão, tendo além dessas, uma para os papéis diversos, e mais uma destinada à guarda dos documentos”.
Nas Instruções da 2ª Divisão, em seu CapítuloVI, Disposições Gerais,oArtigo37 determinavaque“oarquivamento dospapéis será feitoporcoleções
mensais ou anuais, distintas, consoante a natureza daqueles, em ordem de datas, recebendo cada um, no dorso, um número de ordem igual ao que
tiver recebido na respectiva coluna do protocolo de entrada e o assunto abreviado em uma ou mui poucas palavras”.
Nas Instruções referentes às 3ª, 4ª, 5ª e 6ª Divisões elaboradas em conjunto para essas Divisões, ficou determinado no Capítulo I, Atribuições Gerais
das Divisões, no Artigo 11 que a 3ª Divisão teria um arquivo técnico encarregado da guarda dos originais. O Capítulo IV, Atribuições Especiais dos
Funcionários de Cada Divisão, em seu Artigo 33, determinava que“aos escriturários das divisões competirá”, parágrafo 2º: o“arquivo metódico
da correspondência”. Nesse mesmo Capítulo, o Artigo 39 impunha que“ao arquivista técnico competirá: §1º) organizar o arquivo metodicamente,
registrandoemprotocoloespecialtodosospapéisquereceber,demodoquesetornemfáceisaspesquisas;§2º)manteroarquivosemprenamelhor
ordem, não deixando sair nenhum documento sem o competente recibo e ordem superior; §3º) requisitar do primeiro engenheiro as providências
que forem mister para a regularidade do serviço a seu cargo; §4º) apresentar ao primeiro engenheiro relatórios mensais, trimestrais e anuais de
movimento e estado do arquivo.
Partiu-se,portanto,doentendimentodequeatipologiadocumentalcaptaaespéciededocumento(suaforma
e sua finalidade) e a função que o gerou. Os“estudos dos distintos tipos documentais, a análise de suas carac-
terísticas permite (...) dar informação sobre a origem, conteúdo, importância quantitativa e qualitativa dos
fundos”19. Por meio da organização, com base na tipologia documental, foi possível recuperar as duas áreas
básicas da Comissão Construtora: administrativa e técnica.

O arranjo contemplou duas séries: documentos administrativos e documentos técnicos. A organização dos
documentos nas séries se deu pela da tipologia dos documentos, em ordem cronológica. Foram levantados
alguns tipos documentais produzidos pela CCNC20.

155 | Uma experiência sempre em processo. A curadoria de acervos documentais


Finalmente,salientamosqueoacondicionamentodosdocumentosconsiderouosseusgênerosdocumentais,
iconográfico ou textual, e suas dimensões. Os documentos da Coleção Comissão foram higienizados, alguns
restaurados e acondicionados de acordo com normas técnicas de conservação desses suportes.

Uma coleção especial: O Arquivo Privado Abílio Barreto

O acervo particular de Abílio Barreto seguiu um percurso específico, foi doado por familiares ao Arquivo
Público da Cidade de Belo Horizonte, APCBH e depois transferido para o MHAB, em 25 de janeiro de 1995.
Trata-se de um conjunto de documentos com 12.644 itens, formado, em grande parte, pelos manuscritos de
Barreto: textos sobre a história de Belo Horizonte, conferências, discursos, inúmeras pesquisas e anotações
sobre a cidade. Além desses papéis, em seu acervo existem fotografias, correspondência, vários recortes de
jornais com assuntos relacionados a Belo Horizonte e às suas publicações, uma pequena parcela de sua bib-
lioteca e uma coleção de jornais encadernados.

FoidenominadoArquivoPrivadoAbílioBarretoporqueospapéisproduzidos,utilizadoseguardadosporBarreto
entre 1910 a 1958, um ano antes de sua morte, apresentavam uma organicidade, evidenciando as estratégias
e as práticas de suas relações sociais como historiador de Belo Horizonte. Assim, demarcávamos também uma
diferença de esferas de produção, privada e pública. O MHAB congrega um relevante número de documentos
produzidos institucionalmente por Abílio Barreto como organizador do Museu Histórico de Belo Horizonte.
Barreto pode ser entendido como um historiador voltado para a história no sentido da memorabilia: vale à
história enaltecer os grandes feitos do poder político.Também pode ser lido como um memorialista porque,
se de um lado sua obra se esforça para escrever o passado segundo a historiografia metódica, na qual as
provas documentais são a base da escrita da história, de outro lado o seu arquivo pessoal guarda não só os
seus escritos sobre aquele passado, como enfatiza as suas memórias como valor de depoimento. Ele procurou
articulá-las aos fatos oficiais relacionados à construção de Belo Horizonte.
19
BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva: História Média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos
Históricos e Culturais, 1995, p. 6.
20
Ver ANEXO para consultar a seriação a partir das tipologias documentais da CCNC.
De acordo com Maria Auxiliadora Faria, Barreto foi um “historiador autodidata preocupado, através de sua
escrita, em descrever as características do antigo arraial e do processo de edificação da nova capital”21. Seu ar-
quivo expressa esse interesse. As inúmeras anotações sobre a cidade por meio de um banco de dados temático
eostextosredigidos,algunsmanuscritoseoutrosdatilografados,espelhamocompromissoemescreversobre
o passado de Belo Horizonte articulado ao bandeirantismo paulista, como também sobre os fatos que lhe
foram contemporâneos: as efemérides. Verifica-se sua intenção em completar a obra que havia escrito Belo
156 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

Horizonte: memória histórica e descritiva, História Antiga e História Média.

A historiografia metódica à qual Barreto foi adepto é oriunda da Europa do século XIX. Esse método de escrita
vigorou no Brasil até o século passado. De acordo com essa metodologia, a história deveria se ancorar em uma
comprovadadocumentaçãoparaquea“verdade”relativaaopassado,demonstradaeexpostanosprópriosdocu-
mentos, fosse conhecida. Por esse motivo, Barreto colecionava muitos dados sobre o passado por meio de ano-
tações,recortesdejornaiserevistas,documentosantigosefotografias.Mantinhaumaatividadememorialística,
entendida na manutenção da“qualidade da memória”, no sentido de recordar os grandes feitos políticos. Uma
seleção de documentos com o intuito de promover um registro histórico, privilegiando o poder oficial.

Por outro lado, o arquivo privado e pessoal de Abílio Barreto encerra uma“coleção de si”, conceito cunhado
por Renato Janine Ribeiro, no sentido de guardar“a melhor recordação de si próprio”22.Tal atitude significou,
não só para Barreto, mas para todos os colecionadores que passaram a arquivar a sua vida, uma seleção e
guarda de documentos, como também o esquecimento de alguns papéis que não estivessem de acordo com
a identidade a ser preservada. Um reconhecimento de suas vidas expresso no desejo de prestígio vinculado à
produção de seus trabalhos.

A curadoria optou por um arranjo documental do Arquivo Privado Abílio Barreto23, organizando as séries de
acordo com a acumulação do titular: desde a produção intelectual, passando pelas atividades funcionais do
escritor e pesquisador da história da cidade. A tipologia do documental – espécie aliada à sua função - foi
contemplada na série Correspondência. A seriação possibilitou, ainda, a classificação dos itens nas outras
séries:DocumentaçãoFuncional;DocumentaçãoPessoal;ProduçãoIntelectual.AbílioBarretoorganizousuas
fotografias, jornais e revistas. Uma parcela de sua biblioteca compõe o seu acervo. Essa organização foi man-
tida. O seu acervo inclui, ainda, alguns itens reunidos por sua família após a sua morte, originando uma série
complementar post-mortem.

A subsérie Memórias, relativa à série Produção Intelectual, revela suas memórias como valor de depoimento.
Barreto conta como foi a mudança de sua família da cidade natal Diamantina, para o Arraial do Bello Horison-
te, antigo Arraial do Curral del Rei, na época em que este desaparecia nos canteiros de obra da CCNC. Apesar
21
FARIA. Belo Horizonte – memória histórica e descritiva: à guisa de uma análise crítica, IN. BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e
descritiva: História Antiga. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro - Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1995 p. 27-28.
22
RIBEIRO, Renato Janine. Memórias de si ou... . Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 1998, p. 38.
23
Ver ANEXO para verificar o Quadro de Arranjo do Arquivo Privado Abílio Barreto.
de expor muitas dificuldades vivenciadas, deu à sua narrativa o cunho de fidedignidade: lembrava com detal-
hes não só de seu passado, como o articulava aos fatos políticos notórios relativos à construção da cidade

A série Correspondência permite observar o cuidado de Barreto com a produção de suas obras, sobretudo na
época dos lançamentos. A imprensa de Belo Horizonte noticiava e Barreto recortava e guardava. Em 1928,
quando lançou Belo Horizonte: memória histórica e descritiva colecionou vários recortes de jornais e revistas.
AbílioBarretoselecionou,também,ascartasdeagradecimentopeloenviodesuaobraafigurasderenomadore-
conhecimentonaáreadosestudoshistóricoseailustrespersonalidadespolíticas.Aqueleselogiaramasuaobra,
justamente pela pesquisa e comprovação documental.Trocou cerca de onze cartas com Afonso deTaunay, nas

157 | Uma experiência sempre em processo. A curadoria de acervos documentais


quais procurou confirmar algumas questões sobre o bandeirante João Leite da Silva Ortiz. Segundo Abílio Bar-
reto, esse bandeirante teria sido o responsável pelo início do povoamento do antigo Arraial do Curral del Rei.

O mesmo procedimento adotou com o lançamento de obras literárias como “Lys”, “Chromos” e “A Noiva do
tropeiro”, lançadas e relançadas entre as décadas de 1910 a 1940. As cartas e os recortes de jornais e revistas
foram colados em álbuns, compondo um dossiê informativo.

O Arquivo Privado Abílio Barreto demonstra um colecionismo voltado para a produção histórica, haja vista o
grande número de anotações sobre o passado, e denota, ainda, uma preocupação em preservar para o futuro
não só o reconhecimento de seu trabalho como historiador, como uma seleção de alguns acontecimentos
contemporâneos de ordem oficial para não serem esquecidos. O passado foi anotado e informações retiradas
de documentos pesquisados foram transcritas, em um procedimento metódico de valorização das fontes.
Essas, conforme o seu pensamento proporcionava um conhecimento objetivo: naturalmente, a verdade dos
acontecimentos estaria nos próprios documentos. O cuidado em selecionar e guardar os discursos e palestras
proferidos em diversas instituições proporciona entender uma das atividades do historiador.

Considerações finais

No MHAB, a curadoria de coleções pressupõe a análise da documentação em seu conjunto, para que se
compreendam o processo da formação da coleção e o seu significado no âmbito do acervo do próprio Museu.
Sabemos que tanto as ações públicas como as vivências privadas de sujeitos sociais estão expressas nos pa-
péis e em seus conjuntos documentais. Nas coleções são igualmente visíveis as condições de sua formação
no decurso do tempo. As ações - públicas e privadas - devem ser compreendidas no âmbito das vertentes
historiográficas de Belo Horizonte e na totalidade do acervo do MHAB.

Em termos gerais, curadoria é uma prática que diz respeito a uma forma de lidar com o patrimônio. Está li-
gada à atuação cotidiana de instituições que tendem a trabalhá-las por meio de um recolhimento constante,
tratamento técnico e acesso. O curador certamente não será somente o guardião de coleções, mas aquele
que mobiliza acervos e aciona o seu conteúdo para o olhar do espectador (visitante e pesquisador) para uma
nova percepção que pode, inclusive, contrapor-se à sua expectativa inicial, quanto ao museu e à exposição
daqueles objetos.

Por esses motivos, a curadoria pode promover um fluxo contínuo e dinâmico de circulação de conhecimentos.
No caso do MHAB, a curadoria de acervos documentais segue essa lógica e trabalha com a perspectiva de
158 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

circulação de novos conhecimentos e novas formas de abordagem de sujeitos da história da cidade.

Na trajetória do MHAB é possível notarem-se formas diferenciadas de curadoria quanto aos documentos cujo
suporte é o papel. Abílio Barreto, organizador do museu, recolhia e processava os documentos que tivessem o
valordetestemunhofidedignodahistóriaoficial.Essaabordagemperdurouapósasuasaída,porlongotempo.
A partir de 1993, com o período de revitalização, houve uma ruptura na instituição e passou-se a recolher e
processar tecnicamente acervos, cujos conteúdos dissessem de outros sujeitos sociais, para além das person-
alidades políticas e intelectuais.

Atualmente, o recolhimento é formalmente efetivado a partir de uma entrevista com o doador, na qual se as
condições de formação da coleção e os dados pessoais do titular são averiguados. Isso permite que a ligação
entre o ambiente social, onde a coleção foi formada, não se dilua no ambiente museal, no qual será tratada
tecnicamente. Após esse procedimento, tanto a entrevista como os pareceres técnicos a respeito dos itens a
serem doados são submetidos à Comissão Permanente de Política de Acervo. Assim, realiza-se uma curadoria
dos acervos documentais que aborde, pelo menos, parte das características do ambiente social anterior, em
sintonia com outros atores e coleções do MHAB.
A curadoria do acervo documental não finda com a organização da documentação e a acessibilidade às in-
formações.Elaécontínuaeenvolveavaliaçõesdosprocessos,permitindonovasperguntasdeterminadaspela
interpelação dos problemas históricos analisados pela instituição.

Quadro de Arranjo da Coleção Comissão 1.19 Subsérie Requerimento 1.2 Subsérie Correspondência Recebida
Construtora 1.20 Subsérie Tabela 2) Série documento funcionais
1. Série Documentos Administrativos: 1.21 Subsérie Termo 2.1 Subsérie Diretor do Arquivo
1.1 Subsérie Abaixo-assinado 2. Série Documentos Técnicos: 2.2 Subsérie Organizador do Museu Histórico de
1.2 Subsérie Boletim diário 2.1 Subsérie Álbum Belo Horizonte
1.3 Subsérie Carta 2.2 Subsérie Caderneta de Campo 2.3 Subsérie Secretário da Prefeitura
1.4 Subsérie Circular 2.3 Subsérie Demonstrativo 3) Série Documentos Pessoais
1.5 Subsérie Contrato 2.4 Subsérie Instruções 4) Série Produção Intelectual
1.6 Subsérie Dossiês 2.5 Subsérie Listagem 4.1 Subsérie Conferências, Discursos e Palestras
1.7 Subsérie Listagem 2.6 Subsérie Mapa 4.2 Subsérie Dicionário Temático
1.8 Subsérie Livro-caixa 2.7 Subsérie Parecer 4.3 Subsérie Efemérides
1.9.Subsérie Livro de Pedidos ao Almoxarifado 2.8 Subsérie Projeto 4.4 Subsérie História contemporânea
1.10 Subsérie Memorando 2.9 Subsérie Projeto Arquitetônico 4.5 Subsérie Memórias
1.11 Subsérie Ofício 2.10 Subsérie Regulamento 4.6 Subsérie Memória Histórica e Descritiva
1.12 Subsérie Ordem de Pagamento 2.11 Subsérie Relatório 4.7 Subsérie Notas Históricas
1.13 Subsérie Ordem de Serviço 2.12 Subsérie Revista Geral dos Trabalhos 4.8 Subsérie Pesquisa Temática
1.14 Subsérie Petição 2.13. Subsérie Tabela 4.9 Subsérie Resumo Histórico
1.15 Subsérie Processo Quadro de Arranjo do Arquivo Privado Abílio 4.10 Subsérie Textos Literários
1.16 Subsérie Recibo Barreto 5) Série Complementar Pós-Mortem
1.17 Subsérie Regulamento 1) Série Correspondência 6) Coleções Complementares: fotografia, jornais
1.18 Subsérie Relatório 1.1 Subsérie Correspondência Expedida e livros
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159 | Uma experiência sempre em processo. A curadoria de acervos documentais


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Letras, 2000.
a curadoria de processos
educativos de ações esparsas
à curadoria

Magaly Cabral
Aparecida Rangel
Antecedentes

Asaçõeseducativasnosmuseussãoconsideradasimportanteshámuitosanos.Aoanalisarmosahistóriadode-
senvolvimentodainstituiçãomuseuperceberemosqueapreocupaçãocomaeducaçãosempreestevepresente.
Embora, etimologicamente, os termos museu e educação sejam os mesmos, ambos foram se modificando ao
longo do tempo, assumindo características compatíveis com a época vigente. Assim, desde a sua origem clás-
sica que remonta à Grécia antiga, o Mouseion, templo voltado para o saber filosófico que objetivava inspirar
o pensamento humano permitindo a contemplação e a potencialização da criatividade e da sabedoria para
o campo das artes e das ciências, possuía uma preocupação com a educação. O mouseion de Alexandria, no
século II a C., pretendia dar conta, por meio da presença dos objetos mais diversos, de um saber enciclopédico.

161 | A curadoria de processos educativos de ações essparsas à curadoria


Em alguns momentos os centros de ensino e os museus pareciam estar envolvidos na mesma questão, ou seja,
“educar”o povo dando-lhe um pouco de refinamento. Por outro lado, a“falta de educação”também permeou a
problemáticadosmuseus.Segundoalgunsestudiosos,arestriçãodevisitaçãoaosmuseus,permitidaapenasa
alguns segmentos da sociedade, entre os séculos XVII e XIX, tinha como um dos motivos o péssimo comporta-
mento das pessoas. Em 1773, um jornal em língua inglesa publica uma nota onde retrata este fato:

Isto é para informar o Público que, tendo-me cansado da insolência do Povo comum, a quem beneficiei com
visitas ao meu museu, cheguei à resolução de recusar acesso à classe baixa, exceto quando seus membros
vierem acompanhados com um bilhete de um Gentleman ou Lady do meu círculo de amizades. E, por meio
deste eu autorizo cada um de meus amigos a fornecer um bilhete a qualquer homem ordeiro para que ele
traga onze pessoas, além dele próprio e, por cujo comportamento ele seja responsável, de acordo com as
instruções que ele receberá na entrada. Eles não serão admitidos quando Gentleman e Ladies estiverem no
museu. Se eles vierem em momento considerado impróprio para sua entrada, deverão voltar em outro dia1.

Se entendermos que as ações educativas propostas nas instituições museológicas visam, em última análise,
potencializar a comunicação com o público, podemos perceber na nota acima, guardadas as devidas propor-
ções, uma ação educativa em curso. Para Sir Ashton de Alkrington Hall, autor da mesma, cabia a ele oferecer
aos seus visitantes instruções sobre o comportamento adequado naquele recinto.

Muitospensadores,naAntigüidade,percebiamopotencialeducativodomuseuesonhavamcomespaçosdifer-
entes daqueles existentes. Exemplo disto é o frei dominicano e filósofo Tommaso Campanella que, no século
XVII,escreveuaobraAcidadedosol.Nessacidadefictíciahaveriaummouseion,sededopensamentocientífico,
sem paredes, onde as crianças aprenderiam brincando todas as ciências e artes2. Em 1857, John Ruskin, crítico
dearteinglês,apresentouumprojetoàcomissãoparlamentarparaquesedesseumafunçãomaiseducativaao
museu, sugerindo que os objetos fossem apresentados com uma visão crítica e não apenas expositiva.

1
Citado por SUANO, MARLENE. O que é museu. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. p. 27.
2
SUANO, MARLENE. O que é museu. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986. p. 25.
Tanto o Museu Nacional quanto o Museu Histórico Nacional, ambos na cidade do Rio de Janeiro, na dé-
cada de 20 do século passado, já apresentavam seu interesse pelo desenvolvimento de ações educativas. Em
1926, Roquete Pinto, então diretor do Museu Nacional, descreveu em sua publicação“A História Natural dos
Pequeninos” sua impressão sobre uma visita escolar à instituição:

“...andando,olhando,passando...comoumfiod´águapassanumalâminadevidroengordurada,umatristeza
162 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

de se ver “3.

Em 1930, com a criação do Ministério da Educação e Saúde e a atuação de educadores como o acima citado
Roquette Pinto e Anísio Teixeira, houve uma boa contribuição para valorizar o papel educativo dos museus.
Na década de 50, dois importantes encontros redimensionaram a relação museu e educação: o I Congresso
Nacional de Museus e o Seminário Internacional sobre o Papel Pedagógico dos Museus. O primeiro foi rea-
lizado em 1956, na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, sob a regência de Rodrigo Melo Franco de Andrade.
O segundo encontro, o Seminário Internacional sobre o Papel Pedagógico do Museu, foi realizado em 1958,
no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, promovido pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM), e
coordenadoporGeorgesHenriRivière,primeirodiretordoICOM(1946a1962).Comapresençadeeducadores
de,aproximadamente, vinte países latino-americanos, e especialistas de outras partes do mundo, esse encon-
tro pode ser considerado um marco nos avanços conquistados pela área da educação em museus. Como em
umadasrecomendações encaminhadas pelos presentes consta a indicação de que o trabalho educativo fosse
confiado ao“pedagogo do museu”, ou ao serviço pedagógico e, onde não existisse o pedagogo, que coubesse
ao conservador desempenhar suas funções

Mas foi somente nas duas últimas décadas que os responsáveis por ações educativas em museus começaram
a apresentar uma maior reflexão sobre sua atuação. Nesse período, oficinas, encontros, seminários e con-
ferências sobre educação em museus vêm sendo realizados e diversos profissionais concluíram mestrado e
doutorado na área, conferindo a esse campo do conhecimento um caráter mais científico. Não podemos“pre-
scindir da ciência, nem da tecnologia, com as quais instrumentalizamos melhor nossa luta”4; não basta que
tenhamos boa vontade, é fundamental que tenhamos conhecimento acerca dos nossos objetos de estudo. É
assim, portanto, a partir de uma concepção de que a ação educativa em museus requer que seja pensada com
rigor no que tange a perguntas do tipo“como? por quê? para quem?”que chegamos a essa proposta: pensar
a ação educativa em museus em forma de curadoria.

Mas antes de irmos adiante, é necessário apontar que o papel educacional do museu, qualquer que seja seu
tamanho, localização ou tipologia, não é somente importante, mas sim detentor de uma ampla responsabili-
dade social, pois devemos reconhecer que o museu é uma organização cultural situada numa estrutura con-
traditória e socialmente desigual. E é o Setor Educativo de um museu que faz a ponte entre ele e o público.

3
Idem, p. 47.
4
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. p.22.
Processos Educativos

Denise Grinspum, em sua tese de doutorado5, propõe o conceito de“Educação para o Patrimônio”, que con-
templa as práticas educacionais de museus de qualquer natureza, e que pode ser entendido como:

formas de mediação que propiciam aos diversos públicos a possibilidade de interpretar objetos de coleções
dos museus, do ambiente natural ou edificado, atribuindo-lhes os mais diversos sentidos, estimulando-os
a exercer a cidadania e a responsabilidade social de compartilhar, preservar e valorizar patrimônios com
excelência e igualdade.

163 | A curadoria de processos educativos de ações essparsas à curadoria


Somos constantemente lembrados que a tríade - preservação, investigação e comunicação (aqui incluída a
ação educativa) - forma o pilar de sustentação do Museu. Nossas ações são desenvolvidas com vistas a preser-
var o bem-cultural, no sentido de retardar o processo natural de sua destruição física que, por outro lado,
por meio da investigação, terá sua vida informacional preservada. Essas duas ações são complementadas pelo
processo de comunicação com o público, fundamental para que a ação museológica cumpra sua função de
valorização e revitalização do patrimônio cultural, participando, assim, de uma construção conjunta que nos
leva, enquanto cidadãos, ao nosso desenvolvimento sociocultural.

São diversas as ações ou práticas educativas que podem ser desenvolvidas num museu, as quais se traduzem
em formas de mediação que possibilitarão a interpretação dos bens culturais. Elas vão desde a tradicional6
visita “orientada”, “guiada”, “monitorada”, passando por encontros com professores, projetos específicos a
serem desenvolvidos com escolas, ateliês, programas para famílias, oficinas de férias, salas ou espaços de
descoberta,áreasoumódulosdeanimação,jogos,publicações,maletaspedagógicas,exposiçõesitinerantes,
filmes, vídeos, audioguia (audioguide), cd-roms, site etc. As mesmas podem acontecer isoladamente, como
ações,ouestarinseridasemprojetoseprogramascomo,porexemplo,programasparaportadoresdedeficiên-
cias, programas para inclusão sociocultural.

As formas de mediação estarão baseadas no tipo de bem cultural com que se trabalha — a abordagem em
um museu de arte é diferente num museu de história, que é diferente num museu de ciências e, estão, ainda,
vinculadas às correntes pedagógicas adotadas. Se trabalhamos com a PedagogiaTradicional, a metodologia
decorrente de sua concepção tem como princípio a transmissão de conhecimentos por meio da aula do edu-
cador de museu. Se trabalhamos, por outro lado, com a Pedagogia Crítica, sabemos que o conhecimento é
construído a partir da ação do sujeito sobre o objeto de conhecimento, interagindo com ele, sendo as trocas

5
GRINSPUM, Denise. Educação para o patrimônio: Museu de arte e escola − Responsabilidade compartilhada na formação de públicos. 2000.
131 p. Tese (Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.
6
Tradicional no sentido de ser, talvez, a mais antiga prática educacional nos museus ou, de acordo com o educador e pesquisador canadense
Michel Allard, a“natureza de uma atividade pedagógica museal”. (ALLARD, Michel; LAROUCHE, M.; MEUNIER, A.; THIBODEAU, P. Guide de plani-
fication et d’évaluation des programmes éducatifs: lieux historiques et autres institutions muséales. Québec: Les Éditions Logiques, 1998, p. Mas
não no sentido de ser aquele tipo de visita em que o educador apenas informa sobre o acervo, sem dar voz ao visitante.
sociais condições necessárias para o desenvolvimento do pensamento. O educador de museu problematiza
o conhecimento, utiliza o diálogo crítico e afirmativo, argumenta em prol de um mundo qualitativamente
melhor para todas as pessoas.

Ao afirmar que as“... formas de mediação que propiciam aos diversos públicos a possibilidade de interpretar
objetos de coleções dos museus, do ambiente natural ou edificado, atribuindo-lhes os mais diversos senti-
164 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

dos...”, Grinspum nos aponta que sua proposta não está baseada na PedagogiaTradicional, na qual, em geral,
se interpreta o bem cultural para o público. Devemos oferecer possibilidades de interpretação ao indivíduo
em contato com o bem cultural, porque, queiramos ou não, ele interpreta o bem cultural, ou seja, ele constrói
significados usando uma série de estratégias interpretativas. Isso porque ele é “ativo”: a partir das suas ha-
bilidades,conhecimentoeagenda(seussistemasdeinteligibilidade,suasestratégiasinterpretativas),constrói
significado e atribui sentidos ao bem cultural.

A interpretação é o processo de construir significado, é o processo de fazer sentido da experiência, de explicar


o mundo para nós mesmos e para os outros. Contudo, essa construção depende:
• de conhecimento prévio
• de crenças e valores
• de como relacionamos passado/presente

E, por isso, toda interpretação, necessariamente, é historicamente situada, uma vez que o significado é cons-
truído na e através da cultura. Seguindo a mesma linha de raciocínio, o significado que construímos está
permeado de valores, podendo ser:

Pessoal – relacionado a construções mentais existentes e ao modelo de idéias nas quais baseamos nossas
interpretações de experiência de mundo.
Social – influenciado pelos outros significantes (família, grupos, amigos) – comunidade a que pertence.
Político – significados pessoais e sociais surgem como resultado das chances na vida, experiência social, co-
nhecimento e idéias, atitudes e valores.

Além de compreendermos que o significado que construímos é pessoal, social e político, nós, educadores,
devemos estar cientes de que os efeitos de classe, gênero e etnicidade atravessam esses significados. A inter-
pretação é, entretanto, um processo contínuo de modificação, adaptação e extensão que permanece aberto
às possibilidades de mudança. Daí, concluímos que o indivíduo, em contato com o bem cultural, vai construir
significado relevante a partir das oportunidades oferecidas, e não das interpretações que nós educadores
façamos para ele.

A mediação entre o indivíduo e o bem cultural se dá por meio de um mecanismo de comunicação que chama-
mos de interpessoal, face a face, direta, que permite a interpretação por meio de experiência compartilhada,
modificação ou desenvolvimento da mensagem à luz das respostas no momento e envolve muitos suportes
decomunicação(movimentoscorporais,repetições,mímicas,etc).Quandomencionamosaexperiênciacom-
partilhada, estamos nos referindo a uma comunicação diferente, portanto, da forma conhecida como aproxi-
mação por“transmissão”, em que o educador fala e o indivíduo ouve. Falamos de uma comunicação conhecida
como aproximação“cultural”, uma comunicação compreendida como um processo de divisão, participação e
associação, em que o significado é adquirido por processos ativos mútuos: todas as partes trabalham juntas
para produzir uma interpretação compartilhada; crenças e valores são compartilhados. Não há análise de
podernessemodelo,nãoexisteocomportamentodepensarque“eu,educador,seimaisdoquevocê,indivíduo,
e, portanto, eu comunico e eu interpreto, e você, indivíduo, ouve e aprende.”

165 | A curadoria de processos educativos de ações essparsas à curadoria


Vale a pena lembrar que o indivíduo é sempre “ativo”, mesmo quando não o ouvimos ou quando ele não se
expressa. Esse“ativo”pode se manifestar por meio de atitudes de desinteresse que resultarão em frases nega-
tivas, tais como não entendi, não gostei do museu, evitarei o museu. Na pesquisa piloto realizada, em 2006,
pelo Observatório de Museus e Centros Culturais, com onze instituições museológicas do estado do Rio de
Janeiro, foi constatado que a principal fonte de divulgação destes espaços é a recomendação de outras pes-
soas, ou como denominados vulgarmente,“o boca-a-boca”. Assim, quando um visitante tem uma experiência
negativa em relação à instituição ele influenciará todo seu capital de relações.

Se, como sinaliza Paulo Freire, é na palavra que o homem se faz; então o diálogo é o caminho que se impõe
para a Educação, para o Patrimônio Cultural e para a Educação em Museus, sobretudo porque dialogar faz
parte da natureza histórica do ser humano. Este campo do conhecimento que se fundamenta na educação
dialógica,partedacompreensãodequeosindivíduostêmsuasexperiênciasdiárias.Ofereceapossibilidadede
se começar do concreto, do senso comum, para se chegar a uma compreensão rigorosa da realidade. É ouvir
os indivíduos falarem sobre como compreendem seu mundo e caminhar junto com eles no sentido de uma
compreensão crítica e científica dele.

Freire afirma, ainda, que o professor conhece o objeto de estudo melhor do que os alunos, pelo menos quando
o curso começa; mas re-aprende o material por meio do processo de estudá-lo com os alunos. A capacidade
do professor em conhecer o objeto de estudo refaz-se, a cada vez, pela própria capacidade de conhecer dos
alunos, do desenvolvimento de sua compreensão crítica. O diálogo, diz ele, é a confirmação conjunta do pro-
fessor e dos alunos no ato de conhecer e re-conhecer o objeto de estudo. O mesmo se aplica na relação entre
educador e indivíduo nas ações educativas desenvolvidas no museu.

A noção de educação bancária7, criticada pelo educador, não deve permear nossas ações. Nossos esforços
precisam se direcionar para a educação libertadora, que se orienta no sentido da humanização de educando
e educador, com uma ação infundida da própria crença nos homens, no seu poder criador, com um pensar
7
Denominação dada àquela prática onde“educar é o ato de depositar, de transferir, de transferir valores e conhecimentos dos que sabem aos que
não sabem... onde a única margem de ação que se oferece aos educandos é a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los.”(Freire, 1987: 58)
autêntico. A questão, entretanto, chama ele a atenção, é que“pensar autenticamente é perigoso.”Por outro
lado, afirma que“existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua
vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. Não é no silêncio que
os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão.”

Fazendo um paralelo do pressuposto acima com o pensamento de Grinspum, a Educação para o Patrimônio
166 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

e para a Educação em Museus, quando desenvolvida com compromisso e seriedade, caminhará junto com os
membros de uma sociedade

“... estimulando-os a exercer a cidadania e a responsabilidade social de compartilhar, preservar e valorizar


patrimônios com excelência e igualdade.”

Interessante notar que a autora não fala em formar cidadãos, mas sim em exercer a cidadania. Isso porque
tem ciência de que somos todos cidadãos desde que nascemos. O que a educação e, nesse caso, a educação
para o patrimônio ou educação em museus deve ter por objetivo é ser uma prática para o exercício pleno
da cidadania, que por sua vez implica em exercer a responsabilidade social. Mais uma vez nos utilizamos de
Paulo Freire para lembrar que quanto mais nos capacitamos como profissional, quanto mais sistematizamos
nossas experiências, quanto mais nos utilizamos do patrimônio cultural, que pertence a todos, mais aumenta
nossaresponsabilidadecomoshomens.Eesseéumpressupostoqueprecisamostersempreemmentenomo-
mento de definirmos nossas ações e desenvolvermos nossos projetos. Nossa responsabilidade é com o outro,
com o público que nos visita e merece nosso respeito. Não podemos nos descuidar do nosso compromisso de
preservar e comunicar este patrimônio cultural, que temporariamente é nosso instrumento de trabalho, da
melhor forma possível. A experiência recente da criação do Museu da Maré, no Rio de Janeiro, enche-nos de
ânimo, pois materializa esse ideal. Esse museu de muitos donos surgiu do desejo de um grupo de moradores
em recuperar a história local numa tentativa de elevar a auto-estima de uma comunidade degradada pela
violência imposta pelo tráfico de drogas. Hoje o Museu é um ponto de agregação e vem realizando com as
escolaseoutrosgruposaçõeseducativasdegrandevalor,fatoquetemdadoàinstituiçãoprêmiosimportantes
e, principalmente, muito orgulho.

Curadoria de Processos Educativos

“Cur”é o antepositivo do latim cura, ae e significa cuidado, preocupação, administração, direção. A curadoria
define-se como a função de conceber, desenvolver e supervisionar um processo, em todos os seus aspectos.
Entretanto, podemos e devemos, ainda, acrescentar uma função à curadoria: avaliar.

Podemos pensar, na área da Educação em Museus, a presença da Curadoria em dois níveis: o primeiro, de
abrangência mais geral, pois compreenderá o Programa Educativo e Cultural da instituição. O segundo nível
refere-se à curadoria dos Processos Educativos definidos no Programa e contemplará os projetos, as ex-
posições, as ações, enfim, todas as estratégias propostas para atingir as metas e os objetivos institucionais.

Curadoria do Programa Educativo e Cultural

Conceber, desenvolver, supervisionar e avaliar o Programa Educativo e Cultural8 do museu é a primeira e


necessária curadoria de qualquer Setor Educativo de uma instituição museológica. É também uma curadoria
que deve fazer parte, igualmente como as demais curadorias presentes nessa publicação, do Plano Diretor ou
Plano Museológico9, ou, ainda, se quisermos adotar o tema geral do Caderno de Diretrizes Museológicas, da

167 | A curadoria de processos educativos de ações essparsas à curadoria


“Curadoria do Museu”. É necessário que a direção do museu reconheça a função educativa como fundamental
e forneça os subsídios necessários ao desenvolvimento desse trabalho.

Trata-se, na verdade, de uma curadoria que possui um responsável – integrante da instância diretiva do
museu,preferencialmenteumespecialistaemeducaçãoemmuseus(naimpossibilidade,buscartreinamento
específicooucontarcomconsultoriaprofissional)–pelaconcepção,desenvolvimento,supervisãoeavaliação
do Programa Educativo e Cultural e do plano de trabalho, mas que inclui também outros “curadores”, pois
todos os integrantes do Setor Educativo devem participar da construção dessa ferramenta – um documento
estratégico – que vai nortear as ações a serem desenvolvidas, que vai orientar o desenvolvimento de um plano
de trabalho detalhado. Uma curadoria que não dispensa, ainda, a participação dos demais profissionais do
quadro institucional, pois devemos buscar saber de que maneira as demais atividades do museu podem con-
tribuir para o papel educacional da instituição.

O primeiro passo nessa tarefa é a realização de um diagnóstico da situação atual, definindo os pontos posi-
tivos e negativos. Ter clareza e estabelecer com que conceito de educação, corrente pedagógica e teoria(s)
educacional(ais) se deseja trabalhar é fundamental na construção de um programa mais sólido. Partindo-se
do princípio que esse Programa é parte integrante do Plano Diretor e Museológico da instituição, as metas e
os objetivos a serem propostos devem ser compatíveis entre si.

A seguir, pensar no “público do museu” em suas diversas vertentes e identificar quais públicos se pretende
atingir10, buscando saber suas necessidades e expectativas – fazer consultas freqüentes aos públicos é im-
portante. Devemos ser realistas quanto a recursos humanos e financeiros, mas podemos pensar em atingir os
variados públicos a curto, médio e longo prazos e perseguir essas metas. Articulações com outras instituições
podem favorecer esse processo. As estratégias de ação – programas, projetos, ações, etc. – agora podem ser
definidas, de acordo com os públicos identificados.
8
DenominaçãoadotadanaPortariaNormativanº1,de5dejulhode2006,publicadanoDOUde11/07/2006,quedispõesobreaelaboraçãodoPlano
Museológico dos museus do IPHAN.
9
Idem.
10
De preferência, todos os tipos de público, inclusive o que poderíamos chamar de“não-público”, aquele que não nos visita quem é? Por que não
visita? ─ e de “público invisível”, aquele formado por funcionários terceirizados, como os da limpeza, segurança, etc e seus familiares.
Com o Programa Educativo e Cultural pronto, é hora, então, de convertê-lo num plano de trabalho, esta-
belecendo as metas, um cronograma, os recursos humanos e financeiros para as ações a curto, médio e longo
prazos. A avaliação é uma etapa que não pode ser esquecida, pois ela permitirá mensurar os resultados, anal-
isar as estratégias utilizadas e reestruturar o trabalho, se necessário.

Um outro ponto fundamental a ser considerado é a preparação da equipe que compõe o Setor Educativo para
168 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

cumprir suas responsabilidades educacionais, pois sabemos que nem sempre ela é composta de profissionais
com formação específica para as atividades educativas. Assim, treinamentos, leituras de textos e sua dis-
cussão, análise de materiais educativos em equipe são meios que colaboram na preparação.

Um Setor Educativo com plano de trabalho bem formulado, bem estruturado, bem preparado, e equipe bem
formada, tem condições e competência para demonstrar que a contribuição da área educativa é necessária
emtodasasatividadesdomuseue,principalmente,naconcepçãoemontagemdeexposições,temaabordado
mais adiante.

Curadoria de Processos Educativos

Serãováriososcuradoresdosprocessoseducativos,dependendodasestratégiasdeaçãopropostaspelaequipe
naformulaçãodoPlanoEducacional,dosProgramasEducativoeCulturaledaCuradoriadaAçãoEducativa.Cada
profissionaldaequipedoSetorEducativoquetenhapropostoouseresponsabilizadoporumprograma,projeto,
ação a ser desenvolvido vai seguir a mesma regra: concepção, desenvolvimento, supervisão e avaliação.

Novamente, o curador dessas ações educativas deve ter presente, na concepção, o conceito de educação, a
corrente pedagógica e teoria(s) educacional(ais) que o Setor Educativo assumiu como norteadores de sua
atuação, pois é a partir deles que os objetivos de determinada ação serão traçados e, mais ainda, no seu de-
senvolvimento, a metodologia a ser desenvolvida.

Fazemos um parêntese aqui para afirmar que não existe uma única metodologia a ser adotada. Elas serão
diversas, de acordo com o tipo de ação. Mas elas são pautadas a partir exatamente do conceito de educação,
da corrente pedagógica e da(s) teoria(s) educacional(ais) adotados.

Se a ação, o programa e o projeto são desenvolvidos por pessoas contratadas, o curador tem a responsabili-
dadedesupervisionarotrabalho,além,eprincipalmente,deavaliá-lo.Sefordesenvolvidodiretamenteporum
profissional da equipe, o Coordenador do Setor Educativo — o Curador da Ação Educativa — tem a obrigação
da supervisão e de participar da avaliação mais diretamente.
Curadoria de Processos Educativos (na) Exposição Museológica

Conforme afirmado anteriormente, a participação da área educativa é necessária em todas as atividades do


museu e, principalmente, na concepção e montagem de exposições.Tradicionalmente, o Setor Educativo era
chamado após a inauguração, de certa forma com o“se vira”embutido na chamada, pois a ação educativa não
era problema do curador de exposição –“se vira”com os textos, com o espaço, etc, pois a partir da exposição
montada cabe ao Setor Educativo fazer a ponte entre ela e o público. A esse setor era designado o papel de
contactar as escolas e trazer os estudantes para as mostras com o claro objetivo de aumentar o quantitativo
de visitantes.

169 | A curadoria de processos educativos de ações essparsas à curadoria


Não se pode mais compreender o Setor Educativo assim atuando, desde que efetivamente estruturado con-
forme já sugerido com exaustão. Dessa forma, para que os processos educativos decorrentes da exposição
museológica ocorram em alto nível, com qualidade – visitas orientadas, encontros com professores, cadernos
de apoio ao professor, cadernos dirigidos aos escolares, salas de animação, etc. – é fundamental a participação
do Setor Educativo desde o primeiro momento em que a exposição museológica começa a ser concebida.

Há algum tempo esta mentalidade vem se modificando de forma muito positiva. Profissionais de educação
começam a compor as equipes de planejamento das exposições, fato que trouxe uma nova dinâmica às mes-
mas. No momento da concepção de uma dada mostra, o papel do curador da educação, ou seja, do respon-
sável pelas questões relacionadas à educação, será contribuir para que a exposição cumpra seu objetivo de
comunicação com o público. Nas palavras de Marcio Tavares D´Amaral, linguagem e comunicação são uma
e a mesma coisa. Comunicar é a essência do homem. O homem é social porque se comunica11. A exposição
atua como um emissor, um canal de comunicação da instituição com o seu público, e, portanto, pressupõe um
receptor.Acuradoriadosprocessoseducativosaseremdesenvolvidosnamesmadevegarantirqueestacomu-
nicação ocorra de forma legível sem a necessidade de tradutores. Embora tenhamos clareza que o processo de
construção de significados é individual e, como dissertamos anteriormente, dependerá de aspectos pessoais,
sociais e políticos, a curadoria educativa buscará minimizar os possíveis ruídos entre as partes interessadas e
avaliar como a mensagem está sendo imitida, transmitida e recebida.

A comunicação, como se sabe, só se efetiva quando o código utilizado pelo emissor, passando pelo canal
e superando a contaminação e o ruído, é descodificado pelo receptor. Contudo, se a não-compreensão,
por parte do receptor, do discurso articulado pelo emissor pode ser para este uma maldição, ela pode ser
também para aquele uma espécie de bênção, na medida em que abre a possibilidade do diálogo com o
imprevisível12.

D´Amaral, Márcio Tavares. Filosofia da comunicação e da linguagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, MEC, 1977. p. 31.
11

CHAGAS, Mario. O museu-casa como problema: comunicaçãoeeducaçãoemprocesso.In:AnaisdoSegundoSemináriosobreMuseus-Casas, Rio


12

de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1998. p. 190.


Dessa forma, também é atribuição da curadoria educativa da exposição estabelecer os critérios para avaliação
por meio da pesquisa de público. Essa servirá como um termômetro e, por meio das respostas será possível
medir o nível de satisfação e entendimento dessa ação. São nas exposições e nas ações educativas, de uma
forma geral, que o compartilhamento das experiências é vivenciado. É nesse momento, portanto, que colo-
camos em prática toda a teoria“museológico-educacional13”apreendida e desenvolvida ao longo do nosso
percurso. São nessas ações que demonstramos que o Museu caminhou muito no sentido de se aproximar de
170 | Caderno de Diretrizes Museológicas 2. Mediação em museus: curadorias, exposições, ação educativa

seupúblico,estandodistantedaquelasinstituiçõesconhecidascomodepósitodeobjetosvelhossemnenhuma
preocupaçãocomoqueestáemtornodeleecomopresente,comoosensocomumidentificava.Nãopodemos
mais continuar acreditando que a experiência dentro do museu se encerra no que pode ser visto pelo público,
mas ao contrário, entender que o mais importante não é o que vemos, mas que possamos construir um modo
de olhar em que razão e sensibilidade aliadas teçam uma maneira crítica e sensível de ver as coisas e de com-
preender suas histórias14.

À curadoria educativa, portanto, caberá não somente o desenvolvimento de materiais complementares des-
tinados a segmentos específicos de público, como também o processo de avaliação. A exposição deve ser um
ponto de partida e não de chegada, na forma de comunicação com o público.

Ao longo deste texto, por diversas vezes, reafirmamos a importância do diálogo nas ações a serem desenvolvi-
das e, aqui, corroboramos essa linha de pensamento ao lembrar que a comunicação interna se faz primordial
noprocessodecuradoria.Oscuradoresenvolvidosnaconstruçãodeummesmotrabalho,sejaaelaboraçãode
uma exposição ou de um Plano, precisam dialogar para que o produto final tenha clareza e coerência.

13
Na inexistência de um termo semelhante, o neologismo foi a alternativa.
14
KRAMER, Sônia. Produção cultural e educação: algumas reflexões críticas sobre educar com museu. In: KRAMER, S. e LEITE, Maria Isabel F.
P.(orgs.). Infância e Produção Cultural. Campinas, SP: Papirus, 1988. p. 210.
Sobre os autores
José Neves Bittencourt | Graduado em História, Doutor em História pela Uni- AbílioBarreto-MHAB,emBeloHorizonte,MinasGerais,desde2006.Membro
versidadeFederalFluminense-UFF.TécnicodoInstitutodoPatrimônioHistóri- do Conselho Curador do Museu Municipal de Pains, Pains, Minas Gerais.
co e Artístico Nacional – IPHAN desde 1986. Pesquisador do Museu Histórico Márcio Castro | Graduado em História, Mestrando do Programa de Pós-Gra-
Nacional – MHN, no Rio de Janeiro, entre 1986 e 2004. Coordenador técnico duação do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo
do Museu Histórico Abílio Barreto – MHAB, em Belo Horizonte, Minas Gerais, –MAE/USP,MembrodoConselhoCuradordoMuseuMunicipaldePains,Pais,
desde 2004. Membro do Conselho Internacional de Museus - ICOM. Minas Gerais.
Maria Cristina Oliveira Bruno | Licenciada em História, especialista em Thaïs Velloso Cougo Pimentel | Graduada em História, Doutora em História
Museologia pela FESP-SP, doutora em Arqueologia pela FFLCH-MAE-USP. pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Professora adjunta do
Livre-docente em Museologia pela Universidade de São Paulo.Desde1979é Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Professora-AssociadadoMuseudeArqueologiaeEtnologiadaUniversidade UFMG – FAFICH-UFMG. Diretora do Museu Histórico Abílio Barreto - MHAB,
de São Paulo - MAE-USP, São Paulo, capital. Membro do Conselho Consultivo emBeloHorizonte,MinasGerais,entre1999e2008.Coordenadoraexecutiva
do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus - ICOM. do Centro UFMG-TIM do Conhecimento, em Belo Horizonte, Minas Gerais,
Nelson Rodrigues Sanjad | Graduado em Comunicação Social. Doutor em desde 2008.
História das Ciências pela Casa de Oswaldo Cruz-FIOCRUZ.Tecnologista do Thiago Carlos Costa | Graduado em História pela Pontifícia Universidade

171| A curadoria de processos educativos de ações essparsas à curadoria


Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, Pará. Desde 2005Coordenador de Católica de Minas Gerais – PUC-MG.Técnico de Acervos do Museu Histórico
ComunicaçãoeExtensãodessainstituiçãodepesquisa.Professordocursode AbílioBarreto–MHAB,emBeloHorizonte,MinasGerais,desde2004.Curador
LicenciaturaemBiologiadoCentroUniversitáriodoPará,ondeministraadis- do Acervo de Objetos Tridimensionais do MHAB desde 2005.
ciplina História da Ciência. Marcus Granato | Graduado em Engenharia Metalúrgica e de Materiais, Dou-
Carlos Roberto Ferreira Brandão | Graduado em Ciências Biológicas, Doutor tor em Engenharia Metalúrgica e de Materiais pela Universidade Federal do
emCiênciasBiológicas(Zoologia)eLivres-docentepeloInstitutodeBiociên- Rio de Janeiro-UFRJ.Tecnologista sênior do Museu de Astronomia e Ciências
cias-USP. É professor titular e curador da coleção de insetos Hymenoptera do Afins - MAST, no Rio de Janeiro, onde atualmente é Coordenador de Museo-
Museu de Zoologia da USP, em São Paulo, capital, do qual foi Diretor entre logia e Coordenador do Curso de Especialização em Preservação de Acervos
2001 e 2005. Atualmente, é presidente (2006-2009) do Comitê Brasileiro do deCiênciaeTecnologiadamesmaInstituição.ProfessordoMestradoemMu-
Conselho Internacional de Museus - ICOM. seologiaePatrimônio–UNIRIO/MAST.Consultorad-hocdoCNPq,daFAPESP
Tereza Cristina Scheiner | Bacharel em Museologia, Licenciada e Bacharel e da FAPERJ.
emGeografia,DoutoraemComunicaçãopelaUniversidadeFederaldoRiode ClaudiaPenhadosSantos |BacharelemMuseologiapelaUniversidadeFede-
Janeiro-UFRJ. Professor Associado 1 da Universidade Federal do Estado do ral da Cidade do Rio de Janeiro UNIRIO, especialista emTeoria da Arte (Facul-
Rio de Janeiro - UNIRIO. É coordenadora do Programa de Pós-Graduação em dadedeEducação/UERJ),MestreemHistóriadasCiênciaspelaCasadeOsvaldo
MuseologiaePatrimônio-UNIRIO/MAST.MembrodoConselhoExecutivodo Cruz/FIOCRUZ.TecnologistaplenodoMuseudeAstronomiaeCiênciasAfins
Conselho Internacional de Museus - ICOM. –MAST,noRiodeJaneiro,ondeéresponsávelpeloNúcleodeDocumentaçãoe
Aline Montenegro Magalhães | Graduada em História, Doutoranda em Conservação do Acervo Museológico/Coordenação de Museologia.
HistóriaSocialpelaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro-UFRJ.Pesquisadora Célia Regina Araujo Alves | Graduada em História. Mestre em História pela
doMuseuHistóricoNacional,noRiodeJaneiro,desde1999.Editoradarevista UniversidadeFederaldeMinasGerais.TécnicadeAcervosdoMuseuHistórico
Anais do Museu Histórico Nacional. AbílioBarreto–MHAB,emBeloHorizonte,MinasGerais,desde1993.Curadora
Francisco Régis Lopes Ramos | Graduado em História, Doutor em História de Acervos Textuais e Iconográficos do MHAB desde 1994.
Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. Professor Nila Rodrigues Barbosa | Graduada em História. Especialista em Organiza-
adjunto da Universidade Federal do Ceará. Diretor do Museu do Ceará, em ção de Arquivos pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Especilista em
Fortaleza, Ceará, desde 2003. Estudos Africanos e Afro-Brasileiros pela Pontifícia Universidade Católica de
Roberto LuísTorres Conduru | Graduado em Arquitetura e Urbanismo , Dou- MinasGerais-PUC-MG.TécnicadeAcervosdoMuseuHistóricoAbílioBarreto
toremHistóriapelaUniversidadeFederalFluminense-UFF.Professoradjunto –MHAB,emBeloHorizonte,MG,desde2003.CuradoraassistentedeAcervos
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Atualmente é diretor do Textuais e Iconográficos do MHAB.
Instituto de Artes dessa universidade. Membro e atual presidente do Comitê Magaly de Oliveira Cabral Santos | Graduada em Museologia, Mestre em
Brasileiro de História da Arte – CBHA e membro da Associação Nacional de Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ.
Pesquisadores em Artes Plásticas. Diretora do Museu do Primeiro Reinado, no Rio de Janeiro, entre 1987 e 1991
Cátia Rodrigues Barbosa | Licenciada em Matemática, Doutora em Museo- e do Museu Casa de Rui Barbosa entre 1994 e 1997. Diretora do Museu da
logia pelo Museum National d´Hisoire Naturelle (Paris, França). Professora República, no Rio de Janeiro, desde 2006. Membro do Comitê Internacional
do Centro federal de EducaçãoTecnológica de Minas Gerais - CEFET-MG. Co- para Educação e Ação Cultural -CECA, do Conselho Internacional de Museus
ordenadora do Grupo de Pesquisa e Estudos em Museologia – Arte – Estética - ICOM. Membro da Rede de Educadores em Museus do Rio de Janeiro – REM-
naTecnologia, Educação, e Ciência - MUSAETEC/CEFET-MG. Membro do Co- RJ desde 2003.
mitê Internacional para Educação e Ação Cultural – CECA, do Conselho Inter- Aparecida Marina de Souza Rangel | Graduada em Museologia, Mestre em
nacional de Museus - ICOM. Memória Social e Documento pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Gilmar Henriques | Graduado em História, Doutorando do Programa de Janeiro – UNIRIO. Museóloga da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de
Pós-GraduaçãodoMuseudeArqueologiaeEtnologiadaUniversidadedeSão Janeiro, desde 2002. Membro da Associação Brasileira de Museologia ABM.
Paulo-MAE/USP. Diretor do Museu Municipal de Pains, Pains, Minas Gerais. MembrodaRededeEducadoresemMuseusdoRiodeJaneiro–REM-RJdesde
Pablo Luís de Oliveira Lima | Graduado em História, Doutor em História pela 2003.
UniversidadeFederaldeMinasGerais-UFMG.PesquisadordoMuseuHistórico

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