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ERNEST KEVAN

“Guia-me pela vereda dos teus mandamentos,


pois nela me comprazo.” , Salmo 119:35
Ia Edição:
Junho de 2000
2.000 exemplares

É proibida a reprodução total ou parcial desta publicação, sem


autorização por escrito dos editores, exceto citações em resenhas.
Traduzido do original em inglês:
The Moral Law
Traduzido por:
Denise Pereira Meister

Edição:
Editora Os Puritanos
Telefax: (011)6957-3148
Site: www.puritanos.com.br
e-mail: facioligrafic@osite.com.br

Impressão:
Facioli Gráfica e Editora Ltda
Telefax: (011) 6957-5111
CONTEÚDO
Capítulo 1 - Introdução........................................................... 7
Capítulo 2 - A Perfeição da L ei............................................... 11
Capítulo 3 - Como a Lei Deve Ser Usada.............................. 23
Capítulo 4 - As Boas Obras do Crente...................................... 33
Capítulo 5 - A Lei e o Homem Justo....................................... 39
Capítulo 6 - A Lei Escrita no Coração.................................... 45
Capítulo 7 - Capacidade Humana............................................ 57
Capítulo 8 - A Lei Moral e Sua Relação com os Crentes...... 63
Capítulo 9 - A Espiritualidade da Lei e Seu Uso Como Meio
de Conversão....................................................... 73
Capítulo 10- A Lei Não Revogada por Cristo aos Crentes .... 85
Capítulo 11 - A Lei Como um Pacto....................................... 99
Capítulo 12- A Oposição Entre a Lei e o Evangelho.............105
Capítulo 13 - Cristo Como o Fim da L ei............................... 113
Capítulo 14 - Epílogo............................................................. 117
Apêndice A - Sobre Anthony Burgess.................................. 123
Apêndice B - Uma Exposição do Décimo Mandamento por
Lancelot Andrewes..........................................129
Prefácio
No seio da igreja evangélica brasileira, onde lei e graça são en­
tendidos conforme o ensino do dispensacionalismo e a lei é tida
como um elemento obsoleto do período do Antigo Testamento, o
trabalho de Kevan se toma obra de fundamental importância. Sua
obra sobre a Lei Moral esclarece qual o papel da lei de Deus para a
vida do crente, e como esta lhe serve no revelar a vontade perfeita
de Deus. A lúcida exposição de Kevan mostra ao leitor como a lei
nos auxilia no caminho da santificação.
Longe de qualquer legalismo, Kevan mostra como a lei de Moisés
é nada menos do que a lei de Cristo e que esta lei, observada debai­
xo da graça, é fator de bênção para o crente, assim como, quando
não observada, resulta em censura da parte de Deus. Assim sendo,
a lei de Deus serve para a instrução do crente, para que ele saiba
como viver e agradar a Deus. Por outro lado, pela operação do
Espírito Santo, o crente ao ser confrontado com a lei descobre
suas faltas e recorre ao Senhor para o perdão.
Kevan é, no sentido mais claro da expressão, um amante da lei
de Deus conforme expressa no Antigo e Novo Testamentos (Sal­
mo 119.97). Só pode amar a lei de Deus aquele que verdadeira­
mente conhece a sua graça. É esta a perspectiva que o leitor vai
encontrar na obra de Kevan. É com alegria que apresentamos esta
obra ao leitor brasileiro interessado em conhecer mais sobre a lei e
a graça de Deus.
Mauro Meister
Capítulo 1
Introdução
O propósito deste volume é apresentar uma discussão do valor
da Lei de Deus na vida do crente, um assunto importante e urgente
nos dias de hoje. Em vários períodos na história da doutrina cristã,
tomou-se necessário reafirmar a verdade de que o ministério da lei
foi divinamente ordenado como um meio de graça para a
santificação e caminhada piedosa do crente. Isso, naturalmente,
não nega que o único poder suficiente para a santificação é a habi­
tação de Cristo no crente por meio do Espírito Santo: isso é
santificação pela fé, e uma das grandes glórias do Evangelho Cris­
tão é o fato de que ele não somente diz aos homens para serem
bons mas os capacita para assim o serem.
Mas a concessão do poder para uma vida santa precisa ser acom­
panhada pela instrução no seu modelo. Em que consiste o compor­
tamento santificado? Consiste em agradar a Deus. O que agrada a
Deus? Que sua sua vontade seja feita. Onde a sua vontade pode ser
discernida? Em sua santa Lei. A Lei, então, é a regra de vida do
cristão e o crente encontra o seu prazer na Lei de Deus segundo o
homem interior (Rm 7.22). O cristão não está sem lei, “mas debai­
xo da lei de Cristo” (1 Co 9.21). O pecado é a ilegalidade e a
salvação consiste em levar o ilegal para sua verdadeira relação
com Deus, dentro da bênção da sua santa Lei. A Lei de Moisés é
nada menos do que a Lei de Cristo.
O fato de que pela graça um homem não rouba, não mente ou
não comete adultério, não destrói, de forma alguma, o fato de que
ele não deve fazer isso e o cristão que faz qualquer uma dessas
coisas se toma condenado pela Lei como um pecador. Visto ser ele
um crente justificado, este seu pecado não o leva à condenação
etema, mas certamente o conduz à censura do Senhor. O fato de
Deus não ver pecado no crente é verdadeiro no que diz respeito à
sua posição (justificação), mas uma proposição completamente
incorreta quanto ao seu estado (santificação). A Lei de Deus, por
essa razão, não somente instrui o crente quanto ao tipo de vida que
agrada a Deus, mas também é um instrumento de humilhação pelo
qual o Espírito Santo leva o crente a descobrir suas faltas, lasti­
mar-se por tê-las cometido e a arrepender-se delas e, assim, recor­
rer ao Senhor Jesus Cristo, o único no qual a graça da santificação
pode ser encontrada.
Haveria menos tragédias morais entre os cristãos professos se a
instrução salutar da Lei de Deus fosse atendida cuidadosamente.
Que o crente possa olhar exclusivamente para Cristo na busca do
poder capacitador de uma vida vitoriosa - como de fato deve -
mas que ele, ao mesmo tempo, se lembre que a vida santa não
consiste em prazer emocional, mas sim em cumprir os mandamen­
tos de Deus.
Insistir nessa função da Lei de Deus na vida do crente não é se
tornar legalista. O legalismo é um abuso da Lei: é uma confiança
no cumprimento da Lei para aceitação perante Deus, e o cumpri­
mento de leis, seja orgulhoso ou servil, não é elemento da graça
de Deus. No entanto, a obediência de amor rendida alegremente
é algo completamente diferente e faz parte da própria essência da
vida cristã. Não é legalismo um homem obedecer a Deus porque
ele ama agir assim; isso é liberdade: mas, lembre-se, ainda é obe­
diência.
A Lei de Deus tem seu lugar na experiência cristã porque, em­
bora seja por causa de um amor profundo por Deus que o crente
faz o que agrada a Deus, ele está, ao mesmo tempo, fazendo aquilo
que Deus o manda fazer. Se a má vontade de um homem em obe­
decer não invalida o mandamento - e isto é admitido por todos -
então o mesmo é válido para sua prontidão. A Lei não termina
quando um homem se regozija em obedecê-la: ainda existe para
ser honrada e gozada na obediência a ela. Um soberano não é me­
nos soberano porque seus súditos o amam. Deus não cessa de ser
Deus assim que seu povo é reconciliado com ele. Ele não fica pri­
vado de todos os direitos de comando tão logo as pessoas come­
cem a amá-lo. Conseqüentemente, não existe incompatibilidade
entre amor e obediência; pois na vida verdadeiramente santificada
existe a obediência em amor e o amor obediente.
Esta verdade talvez possa ser mais facilmente alcançada se ilus­
trada com relação à Lei positiva, como distinta da Lei moral. Um
dos exemplos excepcionais da Lei positiva na vida do filho de Deus
é, naturalmente, a ordenança da Ceia do Senhor. Um crente irá
alegremente cumprir esse mandamento de Cristo, mas nunca vai
pensar em dizer que ele assim age meramente porque gosta, não
porque o Senhor mandou. Se falasse assim, ele, então, se tomaria
uma lei para si mesmo. O crente dirá que ama cumprir cada manda­
mento sagrado de Cristo e, ao afirmar isso, reconhece o lugar do
mandamento. A verdadeira santidade não se detém para conside­
rar meramente as qualidades intrínsecas do bem ou mal, mas dará
atenção unicamente à vontade daquele que proferiu os mandamen­
tos. Não há santidade onde não há sujeição a Deus: toda bondade
deve ser por causa de Deus, não motivada por si mesma. As boas
obras do crente não são meramente boas, são boas pelo fato de
serem devidas. A obrigação da obediência é perpétua e pertence à
relação da criatura com Deus, e um dos mais ricos frutos da graça
é o fato de a alma regenerada poder dizer, “Quanto amo a tua lei!”
(SI 119.97). A doutrina bíblica da santificação, então, não é “con­
fie e relaxe” mas “confie e obedeça”. O ensino puritano evita o
ativismo pelagiano de um lado e o passivismo quietista do outro, e
no lugar de ambos, afirma a necessidade da obediência da fé.
O propósito adicional deste volume é apresentar a discussão da
Lei 1 por.meio de uma das mentes mais privilegiadas do período
Puritano, a saber, a de Anthony Burgess.
Muito do bom pensamento puritano é encontrado não apenas
nos escritos de homens mais conhecidos como John Owen e Thomas
Goodwin, mas também na obra daqueles que são menos familiares
hoje em dia. Eles permaneceram desconhecidos grandemente por
causa do estilo literário de suas épocas, que os leitores modernos
encontram dificuldade em seguir, mas eles foram homens de per­
cepção teológica, de intelecto brilhante, pensamento claro e argu­
mento invencível. Anthony Burgess foi um desses.
O tratamento atual do assunto é baseado nos pensamentos e
material desse distinto pensador encontrados na sua notável obra
intitulada, Vindiciae Legis; ou A Vmdication of the Moral Law.
Dessa forma, espera-se que, em alguma extensão, a grande contri­
buição feita por Anthony Burgess possa ser salva e que receba seu
lugar no pensamento de hoje.
Capítulo 2
A Perfeição da Lei
O estudo da Lei de Deus na vida do crente não tem sido feito
sem dificuldades mas, em alguma extensão, isso é devido a uma
falta de atenção a certas considerações básicas. Conseqüentemen­
te, há vários princípios básicos orientadores importantes a serem
lembrados na exposição da doutrina da Lei.
O primeiro deles tem a ver com o significado da palavra “lei”. A
confusão surge se a palavra é considerada apenas no seu uso em
inglês, ou se seu significado é restrito às palavras grega e latina
nomos e lex, que significam um código autoritário de dever. A
palavra do Antigo Testamento torah inclui muito mais do que es­
sas idéias e significa não somente o que deve ser feito mas também
o que deve ser conhecido. Ela representa a instrução divinamente
revelada, quer seja na forma de doutrina, exortação, promessa ou
mandamento. Esta é a razão pela qual a Lei Mosaica pode ser cha­
mada de pacto e, inversamente, a razão pela qual o Pacto Mosaico
pode ser chamado de Lei. É nesse sentido amplo também que Pau­
lo é capaz de usar o termo em uma expressão tão figurativa como
“lei da fé” (Rm 3.27).
Há outros significados da palavra “lei” que pertencem não à sua
derivação mas ao seu uso. Algumas vezes significa qualquer parte
do Antigo Testamento, como nas palavras de Cristo que, em uma
referência particular a um salmo (SI 82.6), diz, “Não está escrito
na vossa lei: Eu disse: sois deuses?” (Jo 10.34). Algumas vezes, a
frase “a lei e os profetas” (Mt 7.12; Lc 16.16) é usada para indicar
todos os livros do Antigo Testamento. Ocasionalmente, a palavra
“lei” é usada apenas para os aspectos cerimoniais da adoração como
na expressão, “Ora, visto que a lei tem sombra dos bens vindou­
ros” (Hb 10.1). Em alguns lugares, ela é usada para a auto-revela-
ção de Deus, conforme ele deu particularmente aos israelitas, como
por exemplo, nas palavras, “Porque a lei foi dada por intermédio
de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo”.
(Jo 1.17); e ainda em outras passagens é usada como uma descri­
ção dos judeus na sua condição sem Cristo, um uso que Paulo faz
nas epístolas aos Romanos (3.19) e aos Gálatas (3.10; 4.21).
Antes que qualquer discussão válida sobre a doutrina possa acon­
tecer e, certamente, antes que quaisquer argumentos possam ser
levantados contra a Lei, deve ser mostrado em que sentido a pala­
vra está sendo usada, uma vez que Paulo questiona a Lei em um
sentido e a defende em outro.
Um segundo princípio orientador é a necessidade de se reco­
nhecer que não há contradição em se fazer algo por amor e tam­
bém em obediência à Lei. Ocasionalmente é dito que a obediência
à lei é subserviência, ao passo que o crente é movido por amor e
não necessita de lei. Isso naturalmente contém uma contradição
lógica além de ser totalmente falso na experiência. E falacioso co­
locar causa e efeito em oposição. Sugerir que há uma contradição
entre o motivo pelo qual o crente agrada a Deus e as coisas que em
si mesmas são agradáveis a ele é ilógico, uma vez que o Espírito de
Deus move o coração para o amor e para o prazer naquilo que ele
manda. Adão é um exemplo disso, uma vez que enquanto não ha­
via caído, ele obedecia por amor e também por causa da ordem. Os
anjos obedecem aos mandamentos de Deus (caso contrário os an­
jos apóstatas não poderiam ter pecado), contudo eles fazem todas
as coisas em amor.1 O exemplo supremo de tudo é o próprio Cris­
to, sobre o qual um mandamento foi colocado, porém ele o cum­
priu por amor.2 Por essa razão, a conclusão a ser tirada é que fazer
algo por obediência a uma ordem simplesmente porque é uma or­
dem não implica necessariamente ausência de amor. A obediência
de um servo não precisa ser obediência servil.
Em terceiro lugar, deve-se observar cuidadosamente que a obe­
diência completa de Cristo à Lei para a justificação dos pecadores
não isenta o crente da obediência a ela para outros fins que não a
justificação. Uma das verdades básicas do Evangelho é que ne­
nhum homem pode oferecer suas boas obras como base para a sua
justificação, mas é um grande erro concluir que porque as obras da
Lei não justificam, elas são desnecessárias. Este seria um raciocí­
nio razoável se um crente obedecesse à Lei pela mesma razão que
Cristo o fez, mas isso é impossível. Uma analogia pode ser feita a
partir da experiência cristã do sofrimento. Cristo sofreu enquanto
sustentou a maldição da Lei e, desse modo, libertou o crente de
todo o castigo; todavia o crente pode suportar sofrimento para
outros fins. Da mesma forma pode ser argumentado que o crente
efetua as obras da Lei de Deus para fins diferentes do que os de
Cristo, e a obrigação que jaz sobre o crente de efetuar atos de
obediência não deve ser interpretada de modo a constituir um apoio
para uma doutrina da justificação pelas obras.

1A mãe de Moisés é uma ilustração humana terna, uma vez que ela cuidou de
seu filho por causa do amor materno mas também em obediência às ordens da
filha de Faraó.
2 Algumas vezes, esta última sentença é contestada e surge a questão sobre se
o Pai havia lançado uma ordem sobre Cristo; mas a resposta completa a isso é
dada na Escritura que provê a evidência disso em várias passagens. De fato, se
a ordem não tivesse sido lançada sobre Cristo, não seria possível falar sobre a
obediência de Cristo, porque obediência se relaciona a uma ordem.
Um quarto princípio orientador na estruturação da doutrina da
Lei de Deus na vida do crente é a necessidade de se fazer uma
distinção entre o crente e seus atos pessoais. Embora seja verdade
que a Lei não condena o crente, em vista do seu ser em estado de
graça, os pecados que ele comete são condenados e merecedores
da ira de Deus. Consequentemente, é uma comparação tola dizer,
como um dos escritores antinomianos antigos, que um homem de­
baixo da graça tem tanto a ver com a lei quanto um “inglês com as
leis da Espanha”. Embora cada crente esteja no estado da graça,
sendo sua pessoa justificada, enquanto comete pecados, estes são
tão condenados nele como o são em outros. Pode haver a aceita­
ção da pessoa pela graça de Deus, embora ao mesmo tempo há a
reprimenda das coisas que ela pratica.
Um princípio final a ser lembrado é que a lei não deve ser rejei­
tada porque o homem não tem poder para cumpri-la. Quando a
rejeição da Lei é questionada sobre esta base, freqüentemente se
esquece que o homem, similarmente, não tem poder para obedecer
ao Evangelho. O mandamento para crer é tão impossível quanto o
mandamento para obedecer e, assim, o Evangelho parece falar de
coisas tão impossíveis quanto a Lei. A ausência de capacidade não
implica ausência de obrigação.
Ao tornar claras essas importantes considerações, é possível
exibir a bondade da Lei. Se Deus é bom, sua Lei deve ser boa. Esta
é a experiência do salmista quando exclama, “Quanto amo a tua
lei!” (SI 119.97), e esta, igualmente, é a convicção de Paulo quan­
do diz a Timóteo, “Sabemos, porém, que a lei é boa” (1 Tm 1.8).
A bondade da Lei de Deus se mostra de várias formas, como
um breve levantamento mostrará.
Primeiramente, a Lei de Deus é boa em seu conteúdo, isto é, no
seu significado espiritual. Não pode haver dúvida que é bom amar
a Deus e confiar nele; e isto é precisamente o que é mandado na
Lei. Toda a bondade é sumariada na Lei, e não há nada que possa
ser concebido como bom que não esteja contido nela.
Segundo, a Lei de Deus é boa na sua autoridade divina. É esta
autoridade divina que a une aos homens. A autoridade de Deus
está na Lei de duas formas: primeiro, na justiça do que ele deseja,
e segundo, no seu ato de desejar as coisas que são certas. Se as
coisas mandadas na Lei forem examinadas, será visto que a justiça
de algumas se originam do simples fato de que Deus as deseja; isto
é, as coisas, em si mesmas, podem não ter qualquer evidência de
serem intrinsecamente boas ou más, mas são assim promulgadas
por Deus. As coisas ordenadas dessa forma são usualmente descri­
tas como pertencentes ao que é conhecido como Lei positiva. Há
outras coisas mandadas por Deus que são, em si mesmas, justas e
Deus as deseja por essa razão. A justiça dessas coisas, naturalmen­
te, não deve ser tida como se fosse uma qualidade que se encontra
acima de Deus e fora dele; em si mesma, não é nada mais do que a
perfeição manifesta do próprio Deus. A qualidade de ser justa des­
sas coisas justas que Deus deseja provém da conformidade com a
bondade e justiça eterna que estão em Deus. Por causa disso, é
impossível que essa Lei divinamente autoritária deva ser revogada,
pois isso seria negar a justiça e a bondade de Deus. A obrigação
que vem pela lei é eterna e imutável a tal ponto que se toma uma
contradição absoluta dizer que pode haver justiça no homem à par­
te da submissão ao comando de Deus. A essência da bondade da
lei é a sua relação com a autoridade de Deus.
Em segundo lugar, tem de ser dito que a Lei é boa em seu uso.
Ela tem um uso duplo uma vez que o Espírito Santo a usa como
um instrumento para a conversão de pecadores e como meio de
despertar o coração do crente para a sua obrigação (SI 19.7-11;
119.93). Algumas vezes se faz objeção a essa verdade sobre o uso
da Lei, baseando-se no fato de que a palavra “lei” nem sempre
significa os Dez Mandamentos e freqüentemente é usada de forma
mais abrangente para o ensino que a Palavra de Deus contém. Isso
naturalmente é verdadeiro, mas essa admissão não envolve a ex­
clusão das injunções da Lei moral, uma vez que elas eram as mais
importantes de todas. A maioria das objeções levantadas contra a
utilidade da Lei é baseada no erro de se pensar na Lei como se esta
operasse sozinha e, então, obter um contraste entre o poder decla­
rado do Evangelho e a fraqueza da Lei. Mas conceber a Lei à parte
do Espírito de Deus e, então, compará-la ao Evangelho é algo irra­
cional uma vez que se o próprio Evangelho — mesmo as suas
promessas de misericórdia e perdão — fosse considerado à parte
do Espírito, nada alcançaria; de fato, por si mesmo, seria letra morta
tanto quanto a Lei. Mas nem a Lei nem o Evangelho são letras
mortas uma vez que o Espírito Santo usa a ambos de uma forma
salvadora.
Além disso, a Lei é boa nas sanções pelas quais é fortificada.
Ela é sustentada pelas promessas de Deus que não são apenas tem­
porais, como no Quinto Mandamento, mas também espirituais,
como no Segundo Mandamento. Naturalmente ninguém irá ques­
tionar que a justiça da Lei e do Evangelho diferem amplamente
entre si e que as suas delimitações são uma das tarefas mais difíceis
da teologia, mas isso não justifica a negação das bênçãos verdadei­
ramente espirituais que estão sob a Lei. É um erro dizer que a Lei
possui apenas bênçãos materiais e promessas para este mundo pre­
sente,3 uma vez que é evidente no Antigo Testamento que os cren­
tes daqueles dias tinham, em essência, a mesma fé que o crente
cristão de hoje. Se, no entanto, Lei e Evangelho forem considera­
dos de forma artificial de modo que todos os mandamentos, em
qualquer parte que sejam encontrados, sejam atribuídos à Lei, e
todas as promessas, tanto no Antigo como no Novo Testamento,
sejam atribuídas ao Evangelho, então a Lei não pode ter sanção
3 Este foi o erro dos maniqueístas e dos marcionitas.
por meio da promessa. Mas essa definição arbitrária não é vista na
Escritura, uma vez que a Lei é sempre um instrumento de graça e
suas demandas tem a sanção das promessas misericordiosas.4
Assim, a Lei é boa em suas funções. Essas funções incluem a
declaração do que é a vontade de Deus; o mandamento da obedi­
ência à sua vontade; o convite por meio da promessa; a coerção
por meio da advertência; e a condenação daqueles que a transgri­
dem. A Lei exerce essas funções contra o ímpio e algumas delas
não podem ser negadas até mesmo com respeito aos piedosos. No
interesse da negação das reivindicações da Lei na vida do crente,
algumas vezes é dito que a Lei deve sempre condenar e que esta é
uma condição sine qua non da Lei. Mas essa é uma afirmação
surpreendente pois como isso pode ser aplicado à Lei dada a Adão
no período da sua inocência? Os anjos também devem ter estado
sob uma Lei, doutra sorte nãò poderiam ter pecado; contudo não
era uma Lei condenatória.antes da queda. Se a condenação for tida
como potencial, então, é verdade, a Lei é sempre condenatória
mas, de fato, não é assim sempre. As funções da Lei são boas em si
mesmas e não devem, de qualquer modo, ser limitadas à condena­
ção do pecador.
Finalmente, a Lei é boa em seu fim. É sua intenção conduzir a
Cristo (Rm 10.4), e encontrar seu cumprimento nele.
Esta pesquisa da bondade da lei conduz, por uma transição natu­
ral de pensamento, a uma inquirição quanto aos propósitos da Lei.
Estes propósitos se relacionam tanto ao ímpio quanto ao crente.
4 Quando se fala da sanção da Lei pela promessa, a referência é quanto à
administração Mosaica evangélica e não como foi dada a Adão, com a pro­
messa da vida eterna sob a condição da obediência perfeita. Expressões apos­
tólicas como, “ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e sim
como dívida”, e “os que praticam a lei hão de ser justificados” devem ser
entendidas com relação à Lei dada a Adão, não ao Pacto Mosaico.
Quanto aos ímpios, a Lei tem dois propósitos: primeiro, conter
o pecado, e segundo, condenar o pecador. Quanto ao primeiro,
não é possível chegar a dizer que a Lei é capaz de mudar o coração
dos homens, todavia realiza um serviço valioso como um instru­
mento exterior pelo qual eles são mantidos em um tipo de confor­
midade visível ao que é certo. Por intermédio da sua instrução po­
sitiva e advertência solene, ela detém os homens de muito mal fla­
grante, e foi este uso da Lei que fez o apóstolo dizer que ela “foi
adicionada por causa das transgressões” (G13.19). O segundo pro­
pósito da lei, quanto aos ímpios, é condená-los por sua transgres­
são a ela. A maldição da Lei é o desprazer ferido de Deus, e isso
acompanha cada quebra da mesma.
O propósito da lei para o crente é quádruplo. Ela estimula a
resistência ao pecado, revela a corrupção interior, destrói a hipo­
crisia e aumenta a estima a Cristo.
Embora seja verdade que “a lei não se promulga para quem é
justo (lTm 1.9), todavia, porque nenhum crente é perfeitamente
justo e porque não há quem não precise confessar a fraqueza do
seu amor por Deus e a debilidade do seu prazer pelas coisas santas,
toma-se um fato da experiência espiritual que a Lei de Deus, por
meio dos seus mandamentos, estimula o crente a uma resistência
ao mal e a uma busca zelosa pela santidade. Tanto o potro indomado
como o cavalo treinado precisam de freios e rédeas; do mesmo
modo, não só o ímpio mas também o piedoso, cujo coração foi
quebrado e humilhado, necessita de rédeas, a fim de que não rejeite
o Espírito de Deus. Qualquer um que se considere tão estabelecido
nas coisas espirituais a ponto de dizer que não precisa disso, é
ignorante sobre si mesmo. Ele fala assim, não porque não precise
da lei - sendo que ele é quem mais precisa - mas porque não está
ciente dessa necessidade.
Paulo escreve aos Romanos (7.7-25) sobre a corrupção contí­
nua no coração do crente, e explica que em seu próprio caso, des­
cobriu isso quando a luz da Lei brilhou nos lugares mais secretos
do seu coração. O coração pecaminoso, até mesmo do crente, é
tão cego que nunca pode chegar a conhecer a profundidade do
pecado original e de todos os desejos pecaminosos que fluem dele,
exceto por meio da Lei. Foi por essa razão que Paulo escreveu,
“Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da
lei” (Rm 7.7), querendo dizer com isso que a Lei da Natureza esta­
va tão obscurecida que não poderia mostrar ao homem nem a me­
nor parte da corrupção do seu coração. A Lei é o espelho pelo qual
é permitido ao crente ver-se.
Os efeitos da revelação, ao crente, da pecaminosidade do seu
próprio coração são vistos em um senso profundo de vergonha e
humildade. Quando o crente percebe que o seu melhor feito não
alcança os requerimentos da Lei, que a terra não é mais distante do
céu do que ele mesmo da justiça, isso o faz abandonar toda a con­
fiança no seu desempenho de boas obras religiosas. Paulo
exemplifica isso quando diz que aprova a Lei e se compraz nela,
mas que não pode alcançar a sua justiça e, assim, exclama, “Des-
venturado homem que sou!” (Rm 7.24). Quão aptos são, mesmo
os melhores dos homens, a serem orgulhosos e seguros, como Davi
e Pedro, mas uma lembrança das santas demandas da Lei irá fazer
com que o crente se mantenha humilde. É completamente errado,
então, dizer que a pregação da lei conduz os homens a confiarem
em si mesmos e a aderirem à sua própria justiça, uma vez que não
há um meio mais certo de levar os homens a verem a sua pobreza
espiritual e sua culpa do que mostrando a eles as demandas rigoro­
sas e severas da Lei.
Na maravilhosa sabedoria de Deus, a Lei é um instrumento de
graça, e o Espírito Santo, por meio da Lei, reduz o crente a esta
profunda vergonha e humilhação tão somente para conduzi-lo a
valorizar ao máximo a pessoa e obra do Senhor Jesus Cristo. É a
este lugar que Paulo é levado em grande agonia de luta com a
corrupção interior do seu coração, e chora triunfantemente, “Gra­
ças a Deus por Jesus Cristo” (Rm 7.25). É verdade que algumas
vezes um senso avassalador do pecado parece destruir toda a espe­
rança no coração condenado do crente, mas este é somente um
efeito temporário da Lei e não sua intenção final. A Lei constante­
mente despe o crente da sua hipocrisia e, assim, aumenta a sua
estima pela justiça que é encontrada em Cristo (Fp 3.9).
Um verdadeiro entendimento do que é a Lei de Deus, junto com
uma apreciação da sua bondade intrínseca e de seu propósito divi­
no, irá forçar o reconhecimento do valor da Lei.
O valor espiritual da Lei de Deus não pode ser negado. Pode-se
dizer que porque a Lei não é boa para a justificação, ela não é boa,
em nenhum sentido, para qualquer outra coisa? O ouro é inútil
porque o homem não pode comê-lo? O requerimento de fé do Evan­
gelho pode servir como uma ilustração disso. Se a fé for conside­
rada como uma “obra”, ela não justifica; mas porque a fé conside­
rada dessa forma não justifica, o ato de crer deve ser rejeitado?
Certamente não! De forma similar não deve haver destituição do
valor contínuo da Lei de Deus, embora nenhum pecador possa es­
perar justificação por meio dela.
A Lei tem valor como meio de graça, e destruir a Lei é destruir
a graça de Cristo. É absolutamente errado supor que exista qual­
quer tipo de oposição entre eles.5 Quem estima mais a cidade de
refúgio do que o pecador perseguido pela culpa? Quem deseja a
serpente de bronze como aquele que foi picado pela serpente furi­
osa? Se Cristo é o fim da lei, no sentido do seu cumprimento, como
ele pode ser considerado contrário a ela? Além disso, se a Lei de
Deus e a graça de Deus podem coexistir sob o Antigo Pacto, por

5 A justificação pela Lei e a justificação pela graça são certamente opostas, mas
esse é um assunto completamente diferente da oposição entre Lei e Graça.
que não sob o Novo? A oposição entre a Lei e a graça só surge
quando há abuso de uma ou de ambas. Não há dúvida de que se um
homem usa a Lei de uma maneira diferente da que Deus apontou,
ele não deve se surpreender se ela se tomar prejudicial a ele; mas se
ele usa a Lei de modo que Cristo se toma mais e mais sua confian­
ça, e a graça se toma cada vez mais bem-vinda a ele, então ele faz
bem.
Sem medo de contradição, portanto, pode ser afirmado que a
perfeição sublime da Lei apresenta ao crente um desafio ao seu
pensamento, uma reivindicação sobre suas afeições e um direito à
sua obediência.
Capítulo 3
Como a Lei Deve Ser Usada
É possível usar a Lei de forma errada e Paulo chamou a atenção
sobre isso quando completou sua sentença sobre a bondade da Lei
adicionando, “se alguém dela se utiliza de modo legítimo” (lTm
1.8). A bondade da Lei é experimentada somente quando ela é
usada de modo adequado e quando é vista em relação ao fim para
o qual foi dada, uma vez que ela se torna tudo menos boa quando
usada de forma errada. Ela se toma um fardo muito pesado de
carregar e finalmente uma maldição, por exemplo, para o homem
que busca justificação no esforço em cumpri-la. Por causa das con­
cepções erradas do propósito da Lei, algumas vezes pensa-se que
ela é um mal do qual o homem precisa libertar-se, ao passo que
Cristo redime o crente não da Lei mas da “maldição da Lei”. Cristo
liberta o pecador não das obrigações espirituais da Lei santa de
Deus, mas do mal que ele trouxe sobre si mesmo por tê-la usado de
de forma errada.
O abuso fundamental do homem quanto à Lei é colocá-la em
oposição a Cristo para a justificação e considerar o seu cumpri­
mento como uma base alternativa de aceitação diante de Deus.
Este foi o erro básico daqueles judeus nos tempos do Novo Testa­
mento que se ocupavam em “estabelecer a sua própria justiça” (Rm
lO.ls). A tentação que sobreveio aos gálatas foi fazer um tipo de
compromisso confiando não somente na obra salvadora de Cristo,
mas também nas suas próprias boas obras religiosas. Mas colocar
uma alternativa ao lado daquele que é declarado como sendo o
único caminho da salvação é colocá-lo em oposição. Não pode
haver dois caminhos para a justificação do mesmo modo que não
pode haver dois sóis no céu. A Lei e Cristo não são sócios na
justificação do pecador, nem devem ser igualmente unidos uma
vez que a Lei é subordinada a Cristo. Se nos lembrarmos que a Lei
é relacionada ao Evangelho como os meios se relacionam com o
fim, então a verdadeira função da Lei será não somente vista mas o
erro de colocar a Lei acima do seu uso adequado será evitado.
O homem natural não encontra nada mais fácil do que este abu­
so da Lei; na verdade, é uma das evidências da corrupção do cora­
ção do homem o fato de ele ter o hábito inveterado de alterar cada.
dom de Deus para propósitos errados. Consequentemente, há a
necessidade da renovação da mente do homem para capacitá-lo a
perceber que a Lei não pode, de forma alguma, fornecer um cami­
nho de aceitação do homem perante Deus.
Sérias conseqüências advêm dessa forma de abuso da Lei, umas
das principais sendo a destruição da natureza da graça. A justifica­
ção pela graça exclui completamente o mérito das boas obras: ex­
clui não somente as obras da Lei, as quais o homem pode tentar
realizar em sua própria condição pecaminosa, mas também aquelas
que são realizadas pelo crente por meio da graça de Deus. Há uma
incompatibilidade total entre o princípio das obras e o princípio da
graça e Paulo não permite nenhuma modificação disso mesmo no
interesse das pretensas obras meritórias da graça. Além disso, o
fato de que as obras legalistas são opostas à graça é claro a partir
do uso da palavra graça na Escritura para o favor imerecido de
Deus. A falha em distinguir entre a graça de Deus que aceita o
pecador e os efeitos dessa graça na vida do pecador, conduz ao
erro de enfatizar a santidade interior como se esta possuísse algu­
ma virtude salvadora. Ao mesmo tempo, no domínio da experiên­
cia espiritual, uma confusão desse tipo ocasiona muita angústia ao
crente contrito que sabe não ser tão santo como desejaria.
Uma segunda conseqüência desse uso errado da Lei é que ele
nega a suficiência da obra de Cristo. Foi dessa forma que aqueles
que perturbaram os gálatas anularam a Cristo e o abandonaram (G1
5.4). Algumas vezes é feito um esforço para enfraquecer o argu­
mento de Paulo contra as obras de Lei afirmando-se que ele estava
falando apenas da Lei cerimonial; mas esse raciocínio não resiste a
um exame. É verdade que as primeiras discussões do Conselho de
Jerusalém (At 15.1-41) foram sobre a necessidade das cerimônias
judaicas tais como a circuncisão; mas nas cartas aos Gálatas (3.6-
9) e aos Romanos (4.1-8), Paulo vai além desses ritos cerimoniais
a todas as obras e prossegue excluindo da justificação até mesmo
as obras de Abraão e Davi. Cristo não seria Cristo se as obras
fossem a base da justiça; porque a justiça “que é mediante a fé em
Cristo” é colocada por Paulo contra a sua “própria justiça” (Fp
3.9) e é chamada de “justiça de Deus” (Rm 10.3). Se as boas obras
justificam o homem, qual é a necessidade de um salvador? A sufi­
ciência de Cristo para a salvação é diretamente repudiada por qual­
quer confiança na Lei para a justificação.
Segue-se do precedente que qualquer apelo ao mérito do cum­
primento da Lei destrói a doutrina verdadeira da justificação. Este
não é o lugar para expor esta doutrina em detalhes, mas deve ser
lembrado que a Escritura fala de justificação não como uma infu­
são no homem do que é perfeito, mas como uma aceitação do
homem - embora pecador em si mesmo - por causa da justiça de
Cristo. A linguagem de Davi expressa isso com perfeição e é ado­
tada por Paulo: “Bem-aventurado o homem a quem o SENHOR
não atribui iniqüidade” (SI 32.2; Rm 4.7,8). Há alguma diferença
de opinião entre os teólogos sobre a imputação da justiça ativa
de Cristo ao crente, e isso não precisa sustar a discussão agora;
mas não há dúvida de que, na Escritura, a justificação, negativa­
mente expressa, é o ato de Deus pelo qual ele não computa os
pecados do homem contra ele. É também perfeitamente claro, a
partir da Escritura, que a justificação não é a aceitação da santi­
dade do pecador, mas a declaração por Deus ao pecador de que
seus pecados foram postos de lado. Certamente o homem não é
justificado por uma justiça própria inerente uma vez que isso le­
varia a uma extremo perfeccionismo ou a um estado de coisas
nas quais um homem nunca saberia ser justificado até estar mor­
to. A justificação se confunde com santificação quando se diz
que é baseada na justiça inerente; e, além disso, é completamente
errado dizer que porque o pecado é coberto pelo ato justificador
de Deus, logo não há pecado a ser achado no crente. Argumentos
como esses são completamente destruídos por Paulo (Rm 7.7-
25). O revestir do pecado na justificação se refere à sua culpa,
mas a santificação tem que ver com a quebra do seu poder domi­
nante. Além disso, a justificação pelas obras ou por uma justiça
inerente de qualquer tipo deve considerar o homem justificado
como piedoso no momento do ato divino da graça ao passo que a
Escritura fala dele como ímpio (Rm 4.5).
Também é evidente que a confiança nas obras da Lei destrói o
lugar da fé na justificação. Quando a suficiência de Cristo é des­
prezada e a graça nulificada, então a fé justificadora também deve
ser anulada. Há três causas essenciais de justificação que operam
juntas: a graça de Deus como eficiente, o sangue e justiça de Cristo
como meritórios, e a fé como instrumento; e embora seja errado
colocar a fé do pecador no mesmo nível do mérito do Salvador,
ambos são igualmente necessários para efetuar a justificação do
pecador. A afirmação de que a fé é causa instrumental da justifica­
ção pode ser considerada verdadeira, uma vez que seria um lapso
na doutrina da justificação pelas obras considerar a fé como a cau­
sa efetiva e muito mais considerá-la como a causa meritória. O
valor da fé como um instrumento de justificação é estabelecido
pelo fato de que uma preposição instrumental é usada com ela em
frases como “mediante a fé” (Rm 3.25) e “Justificados, pois, medi­
ante a fé” (Rm 5.1), e requer seja observado de passagem que nun­
ca é dito por causa da fé, como se houvesse dignidade ou mérito
nela; mas sempre mediante a fé.
O uso da Lei para a justificação tem também más conseqüências
de um tipo prático, uma vez que a crença na justificação pelas
obras cria uma ufania pecaminosa no homem. O homem pode ex­
cluir Cristo de sua alma não somente pelo que é reconhecido
comumente como pecado mas também pela autoconfiança. “Vós
sois os que vos justificais a vós mesmos” foi a acusação que Cristo
levantou contra os fariseus (Lc 16.15). É impossível não ver o quan­
to Paulo temia ser encontrado em sua própria justiça, e foi isso que
fez Lutero dizer, “Cuidado, não somente com os teus pecados,
mas também com as tuas boas obras”. Paulo deixa claro que a paz
com Deus vem somente por meio da justificação mediante a fé, e
nenhuma quantidade de paciência, ou arrependimento, ou sofri­
mento, ou boas obras podem obtê-la. Aquilo que condena o ho­
mem não pode salvá-lo, nem aquilo que o perturba pode trazer-lhe
conforto. Destruir a fé é destruir a esperança e esperança é a base
forte de um cristão. Se a esperança for colocada em Cristo e nas
promessas, ela é tão firme quanto a fé, e por esta razão Paulo es­
creve, “a esperança não confunde” (Rm 5.5); mas se a esperança
do homem for em si mesmo, quão freqüentemente ele estará
desencorajado!
Finalmente, e mais sério, este abuso autoconfiante da Lei tira a
glória devida a Deus. Foi a fé de Abraão que deu glória a Deus. O
homem não renovado não pode ver qualquer relação entre crer em
Deus e glorificar a Deus; mas a verdade é que toda a atividade
religiosa do homem reunida não pode dar mais glória a Deus do
que quando ele verdadeiramente deposita sua confiança Nele.
Há uma perfeita harmonia entre a graça salvadora de Deus e as
boas obras do crente, mas a exposição desta harmonia constitui
um dos problemas da teologia cristã. Não é fácil insistir na graça
de Deus sem dar algum tipo de fundamento à acusação de que a
doutrina é licenciosa ou antinomiana; também não é fácil afirmar a
necessidade das boas obras sem provocar o clamor de que a graça
de Deus está sendo destruída.
A primeira destas dificuldades pode ser ilustrada historicamente
por um estudo dos Cânones de Trento, que revelam um mal enten­
dimento completo da doutrina da justificação mediante a fé, e que
acusam as doutrinas da graça como sendo antinomianas. Seguem-
se alguns anátemas.
Cânon 19. Se algum homem disser que os dez manda­
mentos não pertencem deforma alguma aos cristãos, seja
amaldiçoado.
Cânon 20. Se algum homem sustentar que uma pessoa
justificada não está obrigada à observância dos Manda­
mentos, mas somente a crer, seja amaldiçoado.
Cânon 21. Se algum homem sustentar que Jesus Cristo é
dado aos homens como um Redentor em quem devem confi­
ar, mas não como um doador da Lei a quem devem obede­
cer, seja amaldiçoado.
O segundo problema também pode ser historicamente ilustrado
e, neste caso, é encontrado nas visões de um dos primeiros grupos
antinomianos na Europa, chamado flacianos, que chegaram ao ponto
de repudiar as boas obras. Consequentemente, ao invés de manter
a posição escriturística de que as boas obras eram necessárias à
salvação,1 eles sustentavam que as boas obras eram perniciosas à
1 Em um sentido a ser adequadamente definido.
salvação. A má interpretação centrava-se na necessidade aqui de­
clarada e foi isso que os flacianos criticaram severamente. Melancton
e outros, no entanto, não tiveram dificuldade com esta declaração
e entenderam-na como sendo uma necessidade não de mérito mas
de presença, Eles sustentavam que ninguém, em cuja vida não hou­
vesse a evidência de boas obras, estaria em um estado de salvação.
Seria mais seguro dizer que se toda a controvérsia que se seguiu
foi inspirada só pelo desejo de deter os homens de colocarem sua
confiança em suas boas obras, teria havido pouca causa para ansi­
edade mas, infelizmente, as declarações antinomianas atingiam
muito mais do que uma súplica excessivamente zelosa pela doutri­
na da graça. Havia muito mais nas conclusões do que linguagem
imprudente e as conclusões que os antinomianos tiraram da sua
interpretação peculiar da doutrina da justificação pela fé foram in­
juriosas ao extremo.
Vários princípios vitais do Evangelho estavam em jogo nessa
controvérsia, um dos mais importantes tinha a ver com o lugar da
obediência e das boas obras na vida do crente. Os antinomianos
negavam que as boas obras tinham tal lugar e usaram abundante­
mente declarações paulinas como “o homem é justificado pela fé,
independentemente das obras da lei” (Rm 3.28). Eles sustentavam
que, por meio dessa declaração, Paulo não somente excluía as
obras de terem qualquer poder para justificar o pecador, mas que
ele as repudiava completamente. Essa negação dos antinomianos
era, por sua vez, ocasionalmente deturpada pelos puritanos orto­
doxos que os acusavam de quererem dizer que havia um perdão
geral para os homens mesmo quando estes se propunham a conti­
nuar em seus pecados. Mas esta acusação era um tanto injusta,
uma vez que um exame cuidadoso dos escritos dos autores
antinomianos revela que a sua principal preocupação era exaltar a
graça de Deus e não admitir lugar para o suposto mérito das boas
obras. Na sua correta exaltação da graça livre, eles suspeitavam de
qualquer insistência no arrependimento e na fé como pré-requisi-
tos para a justificação, e essas eram as boas obras que eles exclu­
íam do ato de Deus de justificar o pecador.
Uma segunda negação antinomiana era de que qualquer ganho
ou perda pudesse sobrevir ao crente por meio das boas obras. A
doutrina antinomiana declarava que “embora houvesse pecados
cometidos, todavia não havia paz quebrada, porque a violação da
paz é quitada em Cristo; há uma reparação do dano antes que o
próprio dano seja cometido”; e novamente, “se um homem espe­
ra ganhar algo por meio de seus favores, ele nada terá a não ser
repreensão”. Todos concordam, e isso não precisa ser discutido,
que se um homem espera merecer o céu ou assegurar perdão por
qualquer arrependimento ou pela sua própria virtude, isso irá
mostrar que ele é totalmente inconsciente da imperfeição de to­
das as virtudes humanas e ignorante quanto à grandeza da mise­
ricórdia Divina.
A raiz do problema está na possibilidade de se pensar sobre o
significado das boas obras de uma forma dupla, e os oponentes
nesta controvérsia parecem ter usado os mesmos termos em dois
sentidos. O antinomiano estava certo quando negou diligentemen­
te que havia qualquer valor nas boas obras como uma causa contri­
buinte da aceitação do pecador diante de Deus, e o puritano orto­
doxo concordou com isso sem reservas. Ao mesmo tempo, o orto­
doxo afirmou que nenhuma pessoa justificada poderia ser indife­
rente às boas obras e que, embora essas boas obras não pudessem
ter lugar como a causa da justificação do pecador, eram esperadas
como resultado dela. Eles sustentavam que embora as boas obras
não dispusessem de mérito, elas davam evidência certa de que o
pecador se encontrava diante de Deus. O valor dessa evidência e o
que ela representa para quem essa evidência é submetida, constitu­
em questões adicionais, mas a insistência do ortodoxo na necessi­
dade das boas obras ao crente justificado foi importante por sua
própria razão. Seus protestos eram contra o que hoje poderia ser
chamado de um “creísmo” fácil. Os argumentos apresentados fo­
ram encontrados primeiramente nas ameaças severas e agudas que
a Escritura expressa mesmo aos piedosos quando eles negligenci­
am o arrependimento ou quando prosseguem no pecado, por exem­
plo, “Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a mor­
te” (Rm 8.13). Se a Escritura ameaça dessa forma os homens que
vivem no pecado, certamente é também verdade que se eles não
pecarem, podem encontrar conforto; em outras palavras, eles po­
dem perceber alguma evidência da obra da graça em seus cora­
ções. Isso é o que se queria dizer ao afirmar que as obras santas do
crente continham nelas uma promessa de perdão e vida eterna; não
por causa de seu próprio valor, mas por causa daquilo que sua
presença testemunhava. Por essa razão, eles sustentavam que o
piedoso podia se regozijar quando as encontrava em si mesmo.
Os antinomianos se opuseram a isso com uma terceira negação,
a saber, que as boas obras fossem sinais e testemunhos da graça.
Seu argumento era de que a única evidência que o crente poderia
ter era dupla: a revelação do Espírito Santo e o receber a Cristo
pela fé. Qualquer outra evidência de segurança buscada, diziam,
era corrompida pela possibilidade de auto-ilusão e do fato da obra
da santificação no crente ser incompleta. Mas as duas evidências
apresentadas pelos antinomianos não estavam livres do perigo da
subjetividade e, algumas vezes, a primeira delas foi tão simboliza­
da que atingiu “revelações” completamente independentes da pa­
lavra escrita. Quanto à evidência ser derivada do receber a Cristo
pela fé, um homem poderia também facilmente se iludir sobre isso
tão sinceramente quanto com relação às suas boas obras.
A base para a negação do valor evidenciai das boas obras foi
buscada em várias passagens da Escritura tais como a epístola aos
Romanos, por exemplo, onde é dito que Deus justifica os ímpios
(Rm 4.5). A resposta à inferência antinomiana desta sentença foi
que o homem que é justificado está sendo considerado no estado
em que Deus o encontra, não no estado ao qual ele o conduz. O
homem que em si mesmo é ímpio, é justificado baseado no mérito
de Cristo e, então, é também feito piedoso; apesar de essa piedade
não o justificar. O adjetivo “impiedoso” se relaciona ao crente como
ele é na sua própria natureza corrupta, mas nada indica com rela­
ção à obra da graça de Deus: ele meramente realça a verdade de
que o objeto da santificação é o pecador. Quase a mesma resposta
foi dada ao argumento baseado nas palavras, “nós, quando inimi­
gos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Fi­
lho” (Rm 5.10), porque é claro que quando um pecador crê, ele
não mais permanece em inimizade com Deus. Novamente, é dito
em outra parte que o Salvador recebe “homens por dádivas, até
mesmo rebeldes” (SI 68.18); mas aqui, também, é óbvio que o pro­
pósito das palavras é mostrar que até mesmo os homens mais re­
beldes podem ser convertidos.
Que a Lei de Deus seja usada “legitimamente”, e não somente
que Deus seja glorificado em todos os seus caminhos, mas que o
filho de Deus também possa encontrar conforto e força.2

2 O Antinomianismo nunca se organizou como uma forma eclesiástica como


outros grandes alinhamentos teológicos, mas ainda é extremamente vocal em
círculos onde um tipo de biblicismo não teológico prevalece. No entanto, esses
temas podem ser melhor discutidos por meio da referência à escola de pensa­
mento antinomiana como surgiu no período Puritano.
Capítulo 4
As Boas Obras do Crente
Em que o povo de Deus deve se basear para ser zeloso nas boas
obras? Embora o homem natural ache muito difícil fazer boas obras
sem pensar em si mesmo como estando fazendo-as para o propósi­
to da justificação, é verdade que a execução, pela graça, das boas
obras da Lei é perfeitamente compatível com a doutrina do Evan­
gelho da justificação pela fé.
A expressão “boas obras” não se refere meramente às ações
exteriores da religião: ela representa os dons do Espírito de Deus
no crente e as ações que fluem dele. Consequentemente, é claro
que, completamente à parte de quaisquer considerações de perfei­
ção, existe muita necessidade da atividade do Espírito Santo até
mesmo para o início da ação piedosa. Um dos elementos indispen­
sáveis de uma ação verdadeiramente piedosa é que ela deve ser
ordenada por Deus; ela deve ser realizada no crente por meio do
Espírito de Deus; deve fluir de um princípio interior.de graça por
meio do qual o homem é uma nova criatura; e o fim deve ser a
glória de Deus. O melhor que o homem mais purificado pode fazer
é apenas brilhar como um vagalume, não como uma estrela; assim,
a ação é boa somente quando, de acordo com a regra, é de Deus,
por intermédio de Deus e para Deus.
Infelizmente, não é possível prosseguir muito além no estudo das
boas obras sem encontrar outro dos paradoxos antinomianos. Algu­
mas vezes eles falaram sobre as boas obras de uma forma pejorativa
e consideraram o esforço de encontrar evidências espirituais na vida
como algo inútil de se fazer. Em outras ocasiões, os antinomianos
exaltaram tanto as boas obras que, por causa da justiça imputada de
Cristo, consideraram perfeitas todas as obras do crente e, assim, apli­
caram as Escrituras que falam da Igreja como “sem mácula nem
ruga” (Ef 5.27) à vida presente. Eles falaram não somente de uma
justiça ou justificação por imputação, mas também de santidade por
meio dessa obediência de Cristo: e era por essa razão, diziam, que
Deus não via pecado nos crentes. Ambos os extremos paradoxais
devem ser rejeitados como não verdadeiros.
Quando se diz que as boas obras são necessárias, é importante
definir o objetivo pelo qual a necessidade é afirmada. Deve-se fa­
zer uma distinção cuidadosa, por exemplo, entre a declaração de
que as boas obras são necessárias para os crentes, e a declaração
de que as boas obras são necessárias para a justificação e salvação.
Embora esta segunda proposição seja verdadeira num certo senti­
do, todavia, porque as palavras são propensas a dar a impressão de
que a santidade tem alguma influência direta sobre a justificação e
salvação do homem, provavelmente é mais sábio não usá-la.
As boas obras são necessárias ao crente por quatro razões. Pri­
meiro, elas são necessárias como o dever do crente para com Deus.
A obrigação da obediência é perpétua não só por causa da Lei
eterna de Deus, mas por causa do débito do crente com a sua gra­
ça. A Lei de Deus ainda permanece como uma regra e diretriz para
a vida do crente e o homem piedoso se compraz nela (Rm 7. 22).
Se Cristo afirma que qualquer um que quebrar o menor manda­
mento deve ser o menor no reino do céu (Mt 5.19), o ensino que
advoga a abolição de todos eles deve ser considerado completa­
mente indesculpável. Essa necessidade do dever se relaciona à gló­
ria de Deus, uma glória que é manifestada na obediência de suas
criaturas. Deus se agrada das ações piedosas do crente - embora
imperfeitas - e é glorificado por elas.
Em segundo lugar, as boas obras são necessárias como evidên­
cia do crente para si mesmo sobre a realidade da sua salvação,
“...procurai, com diligência cada vez maior, confirmar a vossa vo­
cação e eleição”, diz Pedro (2-Pe 1.10). As boas obras, desse modo
encorajadas, não são em si mesmas evidências da graça, mas assim
se tornam por meio do Espírito de Deus que as usa enquanto
“testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus”. As boas
obras são uma condição sem a qual o homem não pode ser salvo.
Isso quer dizer que embora o homem não possa, pela presença das
boas obras, inferir que seja salvo, ele pode concluir a sua condena­
ção pela ausência delas. Consequentemente, é completamente fal­
so dizer que as boas obras não beneficiam o crente e nem que elas
sejam um empecilho uma vez que a Escritura diz tão claramente o
contrário. “Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a
morte”, disse Paulo (Rm 8.13), e o escritor aos Hebreus os cons­
trange a “seguir...a santificação, sem a qual ninguém verá o Se­
nhor” (Hb 12.14).
As boas obras, assim, são um tipo de defesa do crente, e algu­
mas delas são representadas como uma couraça e um escudo (Ef
6.14,16). Conquanto seja verdade que Paulo fala do poder do Se­
nhor nesse contexto e insista em que a oração seja unida a essas
coisas, isso não nega o valor do que é instrumental na defesa do
crente. É por essa razão que na epístola aos Romanos, as boas
obras são chamadas de armadura ou armas da luz (Rm 13.1-14).
Lutero observa, “Ele não chama as obras da escuridão, ‘armas’ da
escuridão; mas as boas obras ele chama de armas porque devemos
usá-las como armas para resistir a Satanás”. Há também, natural­
mente, um tipo de adequação das coisas existentes entre as boas
obras de um lado e a fé e o Espírito Santo do outro, e é a partir
desse contexto profundo que Paulo é capaz de falar da “fé que atua
pelo amor” (G15.6).
Algumas vezes se pensa que é uma contradição dizer que o pe­
cador é justificado pela “fé somente” e que, a não ser que a fé seja
operante, ela não pode justificá-lo, mas não há contradição quando
essas coisas são corretamente entendidas. Paulo e Tiago não são
divergentes, uma vez que Tiago apresenta a mesma passagem para
provar que Abraão não foi justificado somente pela fé (Tg 2.21-
24) enquanto Paulo a apresenta para provar que ele foi (Rm 4.1-
22). A explicação é que um pretende mostrar que a fé de Abraão
era uma fé operante, e o outro que a fé sozinha foi eficaz para
justificar. Nesse sentido pode-se aprovar a.afirmação de um autor
desconhecido de que “as boas obras são necessárias para preservar
o homem no estado da justificação, embora elas não a produzam
diretamente”, e também as palavras de John Huss que disse, “Onde
as boas obras não são vistas no exterior, a fé não pode estar no
interior”.
Consequentemente, pode-se dizer que as boas obras são uma
fonte de conforto para o filho de Deus. É verdade que considerar
as boas obras de forma a colocar confiança nelas ou tirar conforto
delas como uma causa é impossível, uma vez que ninguém pode
considerar qualquer coisa que faz com essa ousadia. Nenhum ho­
mem piedoso já satisfez seu próprio coração com algo que fez,
muito menos pode satisfazer a vontade de Deus. No entanto, essas
boas obras, embora imperfeitas, podem ser um grande conforto
para o filho de Deus como o testemunho do amor eterno de Deus
para com ele. O crente tira conforto das suas boas obras não para
descansar nelas, mas para encontrar sinais da graça de Deus em
sua vida.
Em terceiro lugar, as boas obras são necessárias como o teste­
munho do crente aos outros. O Senhor disse, “Assim brilhe tam­
bém a vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas
obras e glorifiquem a vosso Pai que está nos céus” (Mt 5.16). Aqui
ele não está encorajando a vangloria, mas apresentando o verda­
deiro objetivo da santidade visível do crente. A piedade, sendo luz,
não deve ser colocada debaixo do alqueire: ela deve ser vista por
outros para que, desse modo, possam glorificar a Deus no céu.
Como quando um homem vê um excelente quadro louva mais o
artista que o pintou do que o quadro em si, aqueles que percebem
a vida piedosa do crente serão constrangidos a glorificar ao Deus
que o transformou pela sua graça.
Finalmente, as boas obras são necessárias como a salvação com­
pleta do crente. Os pecados do homem lhe acarretam uma maldi­
ção dupla: a culpa e a poluição. Isso significa que, da mesma for­
ma, a salvação do pecado será dupla: porque se Cristo redime o
crente da culpa dos seus pecados, ele também o purificará da con­
taminação deles. Além disso, há uma consistência entre libertação
do poder do pecado no presente e libertação da presença dele no
futuro; em outras palavras, há uma compatibilidade entre boas obras
e glória. Por essa razão é que a santidade, tendo sido apontada
como o fim, origina uma relação entre um e outro. Deus apontou o
caminho da justificação pela fé até que, tendo conduzido o crente
para a glória eterna, conceda uma santidade inerente perfeita a ele.
Na glória o crente será aceitável por causa da santidade inerente
forjada nele pela graça transformadora da glorificação. Natural­
mente não seria impossível para Deus fazê-lo aceitável para si mes­
mo pela concessão dessa santidade inerente perfeita mas, em sua
sabedoria, Deus escolheu o caminho da justificação pela fé para
que, desse modo, o pecador possa ser humilhado e sua graça
magnificada.
É possível superestimar o valor das boas obras. Algumas vezes,
elas são grandemente estimadas e recebem um tipo de causalidade
na justificação e salvação completamente contrária ao propósito
divino. Esta supervalorização das boas obras é feita mais particu­
larmente em conexão com a fé que é, de fato e em si mesma, uma
boa obra espiritual; e reivindicações que vão muito além do ensino
da Escritura são feitas pela fé como uma causa da justificação. A fé
como um meio de salvação não é introduzida no mesmo sentido
em que as obras são rejeitadas: ela não é apresentada como outra
forma de boas obras como se, de uma forma oblíqua, fosse uma
causa eficiente de salvação. Ela tem seu lugar na salvação do peca­
dor somente na forma de causa instrumental, como a mão que se
estende para receber o presente.
Outra visão importante do valor das boas obras é que, embora
elas não mereçam a vida eterna, uma vez que isso é totalmente
adquirido na morte de Cristo, a piedade pode obter certos graus de
glória. Isso pode ser tido como verdadeiro desde que seja reconhe­
cido que as recompensas são recompensas da graça; isto é, embora
essas recompensas tenham alguma relação com as boas obras, a
sua causa meritória é a graça capacitadora de Deus.
Talvez seja necessário dizer no fim de um capítulo deste tipo
que o fato de as boas obras serem necessárias para o crente não
quer dizer que o Pacto das Obras tenha sido reintroduzido, mesmo
que de forma modificada como a encontrada no sistema arminiano
de doutrina. A aceitação diante de Deus não é baseada em qual­
quer boa vontade por parte de Deus em aceitar uma justiça sincera,
embora imperfeita, no lugar da perfeita justiça. O pecador não é
perdoado dos seus pecados passados e então devolvido para os
seus melhores esforços para alcançar sua justificação final e abso­
luta. Nunca será demais reiterar que embora as boas obras sejam
um requisito para o homem salvo ou justificado, a base da sua
aceitação é a graça.
Que o crente, por esta razão, mantenha as boas obras e, ao
mesmo tempo, concorde com o que Paulo disse, “Mas, pela graça
de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida, não se
tomou vã; antes, trabalhei muito mais do que todos eles; todavia,
não eu, mas a graça de Deus comigo” (ICo 15.10).
Capítulo 5
A Lei e o Homem Justo
Em vista da bondade da Lei e da relação que mantém com a
glória de Deus e as boas obras do crente, é um pouco assustador
encontrar a declaração de Paulo que “não se promulga lei para
quem é justo” (1 Tm 1.9). No entanto, o problema não é tão gran­
de quanto parece a princípio. A dificuldade se resolve quando lem­
bramos que Paulo não está fazendo aqui uma exposição teológica
do uso da Lei, mas está simplesmente fazendo uma observação
que deve ser entendida no contexto do seu propósito imediato.
Este propósito imediato parece ser mostrar que o objetivo primá­
rio da Lei é lidar com o pecador.
A questão crucial que se encontra no cerne de algumas das
diversidades das visões modernas sobre a santificação pode ser
colocada como se segue. A Lei faz demandas ativas sobre o ho­
mem, ordenando e requerendo obediência, ou é correto imaginar
que o homem justo realiza essas coisas contidas na Lei mas sem
qualquer consciência do comando ativo da Lei? A questão, por­
tanto, pareceria ser não se as ordenanças da Lei são cumpridas
pelo crente, mas se quando essas ordenanças são cumpridas, o
são da forma instruída e comandada pela Lei de Deus. Os
antinomianos do séc. XVII foram um pouco inconsistentes, algu­
mas vezes admitindo que a Lei era uma regra e em outras negan­
do que assim o fosse. Eles achavam difícil conceber que a Lei
deveria regulamentar, se não reinar também, pelo que pretendi­
am dizer que se a Lei comandasse, deveria também, e necessari­
amente, condenar. Consequentemente, concluíram ser impossí­
vel que o poder condenatório da Lei fosse inseparável dela. Sua
questão comum era “Você pode colocar sua consciência sob o
poder mandatório da Lei, porém protegê-la do poder de conde­
nação da mesma?”.
O argumento antinomiano, mesmo nos dias de hoje, é que o
homem está sob cada um desses aspectos da Lei ou sob nenhum
deles. Se um homem vive sob o mandamento, diz-se, também vive
sob a condenação; mas, inversamente, como o crente não está sob
condenação, assim ele não está mais sob o mandamento. Esta é
uma visão seriamente equivocada e sua fraqueza pode ser exami­
nada.
Pode-se admitir, sem dúvida alguma, que um homem bom não
se sinta sujeito à Lei e, de fato, freqüentemente pode agir justa­
mente sem referência consciente à Lei. Há prazer na obediência.
Mesmo escritores seculares, embora reconheçam completamente
o valor das leis, afirmam que um homem bom faz o que é certo não
por medo da punição mas por amor à justiça. Assim Sêneca diz
que ser bom somente de acordo com a lei é algo pobre, e Aristóteles
mostra como um homem justo seria bom mesmo se não houvesse
lei e Platão afirma que não é adequado ordenar ou fazer leis para
aqueles que são bons. Essas afirmações, naturalmente, embora não
sejam completamente verdadeiras, contêm algum tipo de verdade.
Visões similares são expressas por alguns dos escritores cristãos
primitivos. Jerônimo, por exemplo, pergunta, “Que necessidade
tem a Lei de dizer ao homem justo, ‘Não matarás”, quando não é
permitido a ele nem mesmo ficar irado?” Crisóstomo escreve, “Um
homem justo não precisa da Lei, nem requer ensino ou admoesta-
ção; na verdade, ele despreza ser advertido por ela e ele não espera
ou suporta aprender dela. Assim como o músico ou gramático,
que têm essas artes dentro de si, desprezam a idéia de consultar as
regras ou a gramática, assim acontece com o homem justo”. Isso,
naturalmente, é uma forte hipérbole e deve ser entendida com cui­
dado; porque que homem piedoso não precisa da Lei de Deus como
uma luz para guiá-lo ou como estímulo para movê-lo? Não é argu­
mento dizer que no céu os piedosos não precisarão de Lei, porque
também não precisarão do Evangelho. Consequentemente, pode-
se concluir que o Evangelho não é útil a eles agora? Da mesma
forma não se pode admitir que a Lei não tenha lugar na vida do
crente.
Em que sentido, então, Paulo ensina que a Lei não foi feita para
o homem justo? Há três interpretações muito próximas umas das
outras, sendo que todas elas auxiliam consideravelmente no enten­
dimento do que ele quis dizer. Uma delas é que a Lei não é um
fardo para o homem justo. Esta interpretação coloca uma ênfase
na palavra “feita”. Ela não foi feita como um fardo para o homem
piedoso, mas é um prazer para ele; ele não é guiado pela Lei, mas
atraído por ela. O homem justo está mais propriamente na Lei do
que sob ela, o que não acontece com o ímpioAcujo desejo constan­
te é que não houvesse Lei.
Outra interpretação é que Paulo quis dizer que a Lei não conde­
na o homem justo. Isso refere-se à declaração mais particularmen­
te quanto ao aspecto condenatório da Lei e entende que as pala­
vras significam que o poder de condenação da Lei não se relaciona
ao crente. Isso é o que é indicado por Paulo em outras passagens
quando ele diz que o crente não está sob a Lei. Sem dúvida, é
verdade que os filhos de Deus são, em si mesmos, merecedores da
maldição da Lei, mas pela virtude da morte de Cristo que suportou
os pecados, eles não experimentam a sua maldição real e a conde­
nação. Não se segue, por essa razão, que não há Lei porque não há
maldição; e, assim, não é necessariamente contraditório dizer que
a Lei pode relacionar-se ao crente sem condená-lo.
Uma interpretação adicional é que a Lei não é dirigida ao ho­
mem justo; isto é, a Lei foi feita não por causa dos homens justos
mas por causa daqueles que eram iníquos. Se Adão tivesse conti­
nuado na inocência, não teria havido uma declaração solene da Lei
por Moisés, uma vez que ela estaria escrita no coração dos ho­
mens. Consequentemente, embora Deus tenha dado uma Lei posi­
tiva a Adão, para testá-lo quanto à sua obediência e expressão da
sua deferência, ele não a deu dessa forma visível e formal. A frase
de Paulo é assim considerada como tendo o significado do provér­
bio, “Boas leis se originam das más condutas”; e certamente é ver­
dadeiro que as leis, no poder de repressão e mudança que têm
sobre a vida dos homens, não são para aqueles que já são justos
mas para aqueles que precisam ser feitos justos.
Essas interpretações recebem algum suporte na Escritura. Na
epístola aos Gálatas, Paulo lista as virtudes da piedade e, então,
diz, “Contra estas cousas não há lei” (G1 5.22-23); pelo que ele
quis dizer que a Lei não foi feita por causa dessas coisas e ela não
as condena. No entanto, é claro que o que foi dito das ações piedo­
sas pode ser dito das pessoas piedosas. Outra passagem relaciona­
da a isso é encontrada na epístola aos Romanos, “Porque os ma­
gistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando
se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás
o louvor dela” (Rm 13.3). Similarmente, mostrando o quanto os
tessalonicenses eram dominados pelo amor, Paulo diz, “No tocan­
te ao amor fraternal, não há necessidade de que eu vos escreva,
porquanto vós mesmos estais por Deus instruídos que deveis amar-
vos uns aos outros” (1 Ts 4.9). Sua própria fala, “não há necessida­
de de que eu vos escreva”, foi em si mesma um escrito; assim suas
palavras significam não mais que o piedoso, na medida em que
está regenerado, se deleita na Lei de Deus e não a receia.
A esta altura surge o perigo de uma falsa inferência sobre a
autoridade governadora da Lei. O argumento elaborado é que por­
que o crente se deleita em fazer o que é bom, ele não precisa da Lei
para dirigir ou regular o seu comportamento. A falácia dessa
inferência pode ser facilmente vista no que se seguiria igualmente,
que porque a fé é implantada no coração do crente, ele também
não precisa do Evangelho que o exorta a crer. Historicamente, esse
falso argumento foi aceito por alguns1que, baseados no fato de
que os piedosos eram feitos santos em si mesmos, negaram que
qualquer parte da Escritura era necessária ao homem que tinha o
Espírito. O que os antinomianos limitaram à Lei como “letras mor­
tais”, esses outros aplicaram a toda Escritura; e, na verdade, dada
a premissa antinomiana, seu argumento é inevitável. Mesmo nos
primórdios da Igreja, não havia escassez dos que caíam nesse erro.
Crisóstomo, cuja extravagância sobre a Lei foi mencionada acima,
fala da mesma forma sobre a própria Escritura e ressalta, “Temos a
obrigação de ter a palavra de Deus tão gravada em nossos cora­
ção, que não deveria haver necessidade da Escritura”, e Agostinho
fala de alguns que alcançaram uma santidade tal que podiam viver
sem a Bíblia. A falácia óbvia de tal conclusão prova também a
falácia das premissas; isto é, a natureza completamente errônea da
opinião antinomiana sobre a Lei.
A Lei tem poder direcionador sobre o homem piedoso por duas
razões. A primeira tem a ver com direção para a adoração, um
aspecto que foi um ponto particularmente doloroso no séc. XVII.
Foi discutido que a verdadeira adoração a Deus não poderia ser
diferenciada da superstição e da idolatria exceto pelos dois primei­
ros Mandamentos. Muitos lugares na Escritura falam contra a falsa
adoração; mas a habilidade em discernir o que é falsa adoração
requer a direção do Segundo Mandamento.
Uma segunda demonstração da necessidade da Lei para o ho­
mem justo surge da comparação entre a altura da Lei e a profundi­
1 Os Schewenkfeldianos
dade do pecado. Os padrões de espiritualidade e santidade coman­
dados na Lei de Deus são muito mais altos do que cada homem
pode alcançar; consequentemente, ele deve estudar cada vez mais.
O salmista orou, “Desvenda os meus olhos, para que eu contemple
as maravilhas da tua lei” (SI 119.18), embora ele fosse, então, um
homem piedoso e seus olhos já tivessem sido, em grande medida,
abertos pelo Espírito de Deus. Assim como há uma altura na Lei,
assim há uma profundidade no pecado original; há muito mais
corrupção no coração do homem do que é percebido pelos ho­
mens, uma vez que “quem há que possa discernir as próprias fal­
tas? Absolve-me das que me são ocultas” (SI 19.12). Havendo tal
corrupção no coração do homem, há uma necessidade tremenda
da Lei santa e espiritual para fazê-lo ver-se assim poluído. No que
diz respeito ao crente, não pode haver dúvida de que parte do seu
crescimento espiritual é causado pela própria descoberta de um
orgulho, de uma indiferença e impureza de coração de que ele não
tinha idéia.
Então, qual é a utilidade da palavra de Paulo quanto à Lei não
ter sido feita para o homem justo? É claro que, quando entendida
corretamente, esta passagem deve ser usada para estimular o cren­
te a orar por esse amor a Deus, para que a Lei de Deus, longe de
ser um terror para a sua consciência, possa ser doçura e luz. “Amo
a tua lei”, diz o salmista (SI 119.113), e novamente, “Consumida
está a minha alma por desejar, incessantemente, os teus juízos” (SI
119.20); e Jó diz que ele estima o mandamento mais do que seu
alimento necessário (Jó 23.12). Tal deve ser a afeição filial do crente
a Deus e à sua vontade, a ponto de ele ter a obrigação de amar e se
deleitar em seus mandamentos, simplesmente porque eles provêm
dele. “Guia-me pela vereda dos teus mandamentos, pois nela me
comprazo” (SI 119.35).
Capítulo 6
A Lei Escrita no Coração
A familiaridade com a Lei moral que é revelada na consciência
de todos os homens em todos os lugares tem sua explicação na
existência da Lei natural. Este conceito de Lei natural baseia-se
nas palavras que Paulo escreveu: “Quando, pois, os gentios, que
não têm lei, procedem por natureza, de conformidade com a lei,
não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a
norma da lei gravada no seu coração” (Rm 2.14,15). A regra moral
de Deus é uma e a mesma em todos os lugares e em todas as cir­
cunstâncias. Consequentemente, há uma unidade fundamental en­
tre a Lei moral, formalmente promulgada nos Dez Mandamentos,
e a Lei encontrada na constituição moral do homem. O grau de
conhecimento da Lei natural é tão extenso como a raça humana,
uma vez que o termo “gentio” usualmente significa aqueles que
não possuem a Lei de Moisés. Isso é claramente o que Paulo quis
dizer na passagem citada acima, uma vez que seu propósito é
substanciar a acusação que ele faz contra toda a humanidade, que
ambos, judeus e gentios, estão por natureza totalmente no pecado
e que Deus, não fazendo distinção de pessoas, julgará tanto um
quanto o outro. Para que ninguém pense que as ações de Deus
foram excessivamente severas sobre os gentios, Paulo estabelece a
verdade de que eles também não estavam sem conhecimento al­
gum da sua vontade, uma vez que a Lei está “gravada no seu cora­
ção”. Com essa frase ele chama a atenção aos remanescentes do
conhecimento da Lei de Deus encontrados na razão natural e na
consciência. Não é contradição o fato de Paulo também os descre­
ver como “não tendo lei”. Ele quis dizer que eles estão sem a Lei
no sentido de não tê-la na forma declarada e publicamente escrita
tal como os judeus a possuíam.
Três questões preliminares pedem resposta a esta altura. A pri­
meira é, Em que sentido é dito que os gentios procedem, por natu­
reza, de conformidade com a lei? Essas palavras obviamente não
se aplicam a toda a massa de gentios, uma vez que Paulo já havia
indicado, em capítulos prévios, que a maioria deles vivia em
desconsideração completa da Lei de Deus. Além disso, a expres­
são “de conformidade com a lei” não pode se referir à natureza
interior da Lei, mas somente a certos atos exteriores que parecem
se conformar a ela. Um homem não- regenerado não pode fazer
coisa alguma que seja moralmente boa, uma vez que cada ação
moral deve ter a glória de Deus como seu objetivo, e isso o homem
natural não almeja. A distinção feita algumas vezes entre o que é
moralmente bom e o que é teologicamente bom não pode ser
substanciada, uma vez que cada bem moral tem a obrigação de ser
teológico, isto é, deve ser bom não somente no que é feito, mas na
razão pela qual foi feito; não somente na sua importância mas no
seu motivo. Deve ser dito, então, que o homem não regenerado é
incapaz de fazer qualquer obra moralmente boa porque falha no
motivo qualificador. Também é claro que, ao dizer que esses pro­
cedimentos exteriores de conformidade com a lei foram feitos “por
natureza”, o apóstolo quis dizer que eles foram realizados por meio
da luz natural da consciência.
A segunda questão é, De que modo pode ser dito que a Lei está
“gravada no coração”? Seria um erro identificar essa expressão
com a promessa dada porjntermédio de Jeremias, na qual Deus
encarrega-se de escrever sua Lei no coração de seu povo (Jr 31.33),
porque algo muito maior do que o meramente natural é sugerido
por essas palavras. O escrito da Lei de Deus no coração dos ho­
mens deve, assim, ser reconhecido de uma maneira dupla. A pri­
meira forma de escrito tem a ver com o conhecimento e com a
razão, por meio dos quais os homens são dotados com uma capa­
cidade para discernir entre o bem e o mal; a segunda forma de
escrito tem a ver com a vontade e as afeições e é encontrada na
concessão ao homem de um prazer na Lei de Deus e de uma força
justamente para cumpri-la. É a primeira dessas formas que deve
ser entendida nas palavras de Paulo sobre os gentios.
A questão final a ser respondida refere-se ao modo pelo qual os
gentios revelam essa Lei escrita em seus corações. Eles fazem isso
de duas formas: mostram-na exteriormente pelo modo como fa­
zem boas leis e se empenham em viver de acordo com elas; e reve-
lam-na interiormente na quietude ou inquietação de suas consciên­
cias.
A evidência obtida na resposta a essas três questões provê o
material para um profundo desafio da visão que repudia a Lei na
vida do cristão. Se há uma Lei da Natureza escrita no coração dos
homens dessa forma, e se ela continua a exercer sua autoridade
com tal persistência que um crente é obrigado a seguir a sua dire­
ção, como é possível se pensar que o aspecto obrigatório da Lei
moral pode cessar?
Já foi chamada a atenção sobre a negação da continuação do
poder de condenação da Lei, a qual é baseada na opinião de que,
onde quer que esteja o ato de comando da Lei, deve também estar
seu ato de condenação. No entanto, isso é uma falácia, uma vez
que confunde a essência da Lei com o que é somente acidental.
Comandar pertence à essência da Lei, mas condenar é apenas aci­
dental, sendo um efeito da lei que é contingente na suposição da
transgressão. No exemplo dos anjos que nunca pecaram, a Lei nunca
exerceu seu poder de condenação, mas é perfeitamente claro que
os anjos estavam sob seu poder de comando porque, caso contrá­
rio, eles não poderiam ter pecado, “porque onde não há lei, tam­
bém não há transgressão” (Rm 4.15).
A Lei da Natureza se revela nas impressões religiosas comuns
encontradas em todos os homens e em todos os lugares. Assim
como os primeiros princípios ou axiomas da ciência, nenhuma ra­
zão pode ser dada a elas: são reconhecidas como evidentes por si
mesmas.1 No entanto, deve-se reconhecer que a Lei da Natureza
existia diferentemente em Adão e em sua posteridade. Em Adão,
era perfeitamente conhecida, mas somente uma mera sombra dela
é encontrada nos homens hoje. O todo da Lei da Natureza, conten­
do a ciência perfeita da vontade de Deus, foi dada a Adão primei­
ramente: e embora lhe tenha sido dado a dádiva subseqüente da Lei
positiva, para testar sua obediência, isso de forma alguma invali­
dou ou diminuiu o valor e o significado da sua doação original da
Lei da Natureza. No princípio, Adão foi feito à imagem de Deus,
em justiça e santidade; caso contrário ele teria sido destituído da
luz da razão e sem consciência.
O que a Lei da Natureza cobre é difícil de se determinar, uma
vez que o que alguns consideram ser condenado pela Lei da Natu­
reza, outros pensam ser aprovado por ela. Consequentemente, ela
tem sido definida de quatro formas, (a) Tem sido equiparada aos
instintos naturais pelos quais homens e animais se igualam, tais
como autodefesa e desejo pela vida; mas isso é claramente insufici­
ente, porque excluiria as coisas naturais como honestidade natural
' Crisóstomo observa que quando Deus proibiu o assassinato, ele não apresen­
tou razões porque as proibições eram naturais; mas quando ele ordenou a ob­
servação do sétimo dia, ele deu uma razão, a saber, porque o Senhor descansou
no sétimo dia. Isso, naturalmente, não implica que o mandamento sobre o
sábado não seja moral: a diferença é que os outròs são naturalmente morais e
este é positivamente moral.
e justiça, uma vez que um animal não é capaz de qualquer pecado
ou de obrigação a uma lei. (b) Tem sido definida em termos de
costume geral; mas isso é tão diversificado que_o que é pecado
para alguns, pode ser virtude para outros, (c) Tem sido considera­
da como co-extensiva à razão de cada homem; mas isso, também,
é muito incerto, porque a razão de um homem é contrária à de
outro e a consciência de um homem é mais sensível do que a de
outros, (d) Tem sido identificada com a vontade declarada de Deus;
e esta definição parece ser a mais satisfatória.
A obrigação da Lei da Natureza deriva de Deus que é o seu
autor. Seu poder de obrigação não deriva da sua congruência com
a razão ou consciência do homem, mas do fato de que é vice-re-
gente de Deus e um comando seu. Consequentemente, ela é perpé­
tua e não pode ser revogada. Esta declaração imediatamente le­
vanta a questão sobre se a Lei da Natureza obriga ou não o cristão.
Colocada de outra forma, um cristão deveria escutar a voz da cons­
ciência? A resposta certamente deve ser que o cristão deve se re­
frear de cometer um ato de pecado, não meramente por causa do
mal intrínseco ou do prejuízo circunstancial daquilo, mas também
porque a proibição está dentro dele na forma de Lei e mandamento
de Deus. Naturalmente, não há dúvida de que há uma diferença
entre a forma da Lei da Natureza e a da dos Dez Mandamentos;
mas elas estão de acordo nisto, elas são uma regra de obrigação
perpétua e imutável. O cristão não deve pensar que porque Cristo
morreu para libertá-lo da maldição da Lei, ele está livre da obedi­
ência à Lei da Natureza como a própria Lei de Deus gravada nele.
O conhecimento moral fornecido pela Lei da Natureza é algu­
mas vezes chamado de luz da natureza, ou razão natural. Mas esse
é um conceito que precisa ser usado com cuidado porque não é
difícil ver que, embora a razão seja necessária para que o homem
conheça a Deus, é, ao mesmo tempo, insuficiente para todas as
suas necessidades espirituais. A razão, por si mesma, não conduz o
homem a Cristo.
Há três coisas a serem ditas sobre a luz da natureza no homem
caído. Em primeiro lugar, a luz da natureza deve ser considerada
como um remanescente da imagem de Deus no homem. Por mais
que se mantenha corretamente que a imagem de Deus consistia
primariamente em justiça e verdadeira santidade, é igualmente ver­
dadeiro que, em segundo lugar, também incluía as faculdades do
homem como criatura racional. A razão pela qual se diz que a ima­
gem de Deus ainda permanece no homem é que ele continua a
possuir os poderes da razão. Comparada com a fé, naturalmente, a
luz da razão é excessivamente fraca, porém ainda há alguma luz, e
Paulo não hesita em usar a palavra “verdade” para descrevê-la (Rm
1.18). Este luar, ou brilho fraco, que a razão fornece tem sua utili­
dade na conduta disciplinada da sociedade, no estímulo da prática
da virtude moral e na remoção de todas as desculpas daqueles que
não glorificam a Deus de acordo com o conhecimento que possu­
em (Rm 1.20).
Mas, em segundo lugar, o fato de a luz da natureza ser obscure-
cida pelo pecado não deve ser ignorado. Na distorção do conheci­
mento que o pecado trouxe, a luz da natureza é não somente inútil
com relação às coisas que são espiritualmente boas, mas é inimiga
delas. A situação extraordinária nesse caso acontece no fato de
que quanto maior razão natural há em qualquer opinião ou ação
particular, maior oposição a Deus é provável que haja. Isso foi o
que aconteceu com todos os grandes filósofos naturais: eles se tor­
naram vaidosos em seus raciocínios; e quanto mais inquiriam e
pesquisavam, mais se afastavam da verdade (Rm 1.21,22). “Ora, o
homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque
lhe são loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem
espiritualmente” (1 Co 2.14).
Em terceiro lugar, no entanto, a luz da natureza não deve ser
sumariamente repudiada meramente porque é fraca, ou porque o
pecado a fez inimiga de Deus, pois ela é capaz de ser iluminada
pela Palavra de Deus. Quando essa iluminação divina lhe é conferida,
a razão natural do homem não precisa ser desprezada ou rejeitada.
A relação entre razão e fé tem, algumas vezes, sido comparada
com o solo pobre da raiz de uma árvore infrutífera e o adubo que o
jardineiro usa. Que o solo seja primeiramente removido e o adubo
jogado nele, então possa o solo ser recolocado na raiz da árvore,
onde irá agora ajudar tanto quanto obstruiu anteriormente. Se a
razão for subordinada primeiramente e a verdade recebida pela fé,
então a razão pode utilizar completamente a verdade e isso será
útil para o fortalecimento do crente. Conquanto a luz da natureza
não seja a regra, mas ela mesma seja governada e testada pela Pa­
lavra de Deus, ela não pode enganar.
A luz da natureza - entendida no sentido de ser o remanescente
da imagem de Deus no homem - é necessária no domínio religioso
e moral, a despeito da sua insuficiência; e isso é mostrado em duas
direções. É necessária primeiramente como uma qualificação pas­
siva no homem como o objeto da fé. Um animal não pode exercer
fé religiosa porque ele não tem razão: é a razão, consequentemente,
que coloca o homem numa capacidade passiva para receber a gra­
ça, embora ele não tenha habilidade ativa para isso. Em segundo
lugar, ela é necessária como um instrumento de fé. Um homem não
pode crer a não ser que tenha algum entendimento ou inteligência
a respeito do que ele deve crer. Na Escritura, o conhecimento é,
algumas vezes, colocado no lugar da fé porque um conduz ao ou­
tro reciprocamente e “pela fé entendemos” (Hb 11.3). A razão,
consequentemente, é necessária como um instrumento da fé.
Uma inferência significativa do argumento precedente é que nada
na doutrina cristã pode ser verdadeiro se contradisser a verdade de
Deus como encontrada na imagem de Deus no homem. Diante de
doutrinas como a da Trindade e a da Encarnação - doutrinas que
parecem paradoxais à razão - pode parecer difícil defender tal de­
claração; porém, ao ver o apóstolo chamar o conhecimento natural
do homem de “verdade”, sendo que toda verdade vem de Deus,
qualquer que seja o meio pelo qual ela surge, não pode haver con­
tradição definitiva entre a verdade adquirida pela natureza e a ver­
dade dada por revelação. As doutrinas da Trindade e a da
Encarnação devem ocupar seu lugar entre as coisas que estão aci­
ma da razão mas que, de forma alguma, a contradizem. Também
deve ser observado que o mesmo objeto pode ser conhecido por
meio da luz da natureza e por meio da luz da fé. Isso pode ser
facilmente exemplificado: um homem pode saber, por meio da luz
da natureza, que há um Deus e também pode crer porque a Escri­
tura assim o diz. Similarmente, um homem pode, pela fé, entender
que o mundo foi criado (Hb 11.3) e, ao mesmo tempo, pelo racio­
cínio, saber que ele foi feito. A fé e a luz da natureza,
consequentemente, contribuem para o conhecimento do mesmo
fato de formas diferentes: a fé assim o faz por causa do testemunho
e da revelação de Deus; e a luz da natureza por causa das razões no
próprio fato.
Uma vez introduzidas essas duas fortes alegações em prol da
razão, uma terceira observação deve ser feita, a saber, que embora
a luz da natureza seja necessária, não é juiz em assuntos de fé. O
Racionalismo exalta demasiadamente a razão, uma vez que a faz
não somente um instrumento mas um juiz e, por causa disso, rejei­
ta os maiores mistérios do Evangelho. Tem-se tentado muitas ve­
zes mostrar que a “religião é a mais alta razão”, e tem havido ten­
tativas brilhantes de provar a verdade da religião cristã por meio da
razão; mas é impossível não ver o quanto a razão é incerta em
comparação à fé. Consequentemente, ao dar um lugar corretamen­
te importante ao entendimento no que diz respeito às coisas espiri­
tuais, deve-se tomar cuidado a fim de que não haja uma confusão
entre instrumento e juiz: verdades santas são verdades escriturísticas,
embora, subseqüentemente, elaboradas pela razão. O ourives pega
a chapa de ouro e bate nela, moldando-a como deseja; todavia, seu
martelo não a transforma em ouro, mas somente a modela. Da
mesma forma acontece com a função da razão: ela não cria uma
verdade divina, mas somente a exibe e a declara como tal.
Intimamente conectados com a Lei escrita no coração, porém
vastamente distintos dela, estão os mandamentos da Lei positiva.
A Lei positiva é encontrada no próprio início da história humana
nas palavras de Deus aos progenitores da raça, e elas estão
registradas no primeiro livro da Bíblia. “Mas da árvore do conheci­
mento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela
comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17). A Lei positiva de Deus,
aqui enunciada a Adão, é algumas vezes também chamada de man­
damento simbólico, porque a obediência a ela era um símbolo, ou
um sinal, da deferência do homem e do serviço a Deus. O objeto
desse comando não era algo bom ou mal em sua própria natureza,
mas algo moralmente neutro ou indiferente: era mal somente por­
que era proibido. O livro de Gênesis, assim, registra que, em adi­
ção à Lei natural gravada no coração do homem, Deus também
deu a ele uma Lei positiva para testar a sua obediência.
Essa Lei positiva consistia de um mandamento simples ao ho­
mem para se abster do fruto da árvore do conhecimento do bem e
do mal. Não é fácil dizer a razão pela qual a árvore foi chamada
dessa forma, mas a interpretação mais usualmente aceita é que a
árvore foi assim chamada, não por causa de seus efeitos intrínse­
cos, mas por causa do evento histórico, isto é, porque experimentá-
la faria com que Adão e Eva conhecessem o bem e o mal.2 Essa
interpretação, embora boa em si mesma, não é completamente su­
ficiente porque poderia parecer que seu nome surgiu não mera­
mente do evento histórico, mas também por decreto e designação
de Deus. Ela foi colocada diante de Adão como sendo um tipo de
2 Esta explicação está em harmonia com o aspecto completamente comum da
Escritura, a saber, o modo de chamar algo pelo nome que obteve mais tarde.
fronteira e limite, para que ele soubesse que bom era o que Deus
permitia e mal o que Deus proibia.
Por que razão Deus deu ao homem essa Lei positiva sobre e
acima da Lei natural que já estava em seu coração? A primeira
razão parece ser que a Lei positiva foi instituída para chamar a
atenção do homem para o fato do domínio de Deus, por direito,
sobre ele. É claro que a obediência à Lei natural poderia ser nada
mais do que uma condição necessária da existência e não, de algu­
ma forma, um ato legítimo de vontade. Alguns homens, por exem­
plo, se abstêm de certos pecados não porque foram proibidos por
Deus, mas porque sua razão natural os rejeita;3 mas esses dois
princípios diferentes fazem com que as mesmas ações sejam total­
mente diferentes umas das outras. Assim, Deus tencionou testar
Adão por meio de uma Lei positiva para que essa forma de domí­
nio exercida sobre ele pudesse ser mais claramente demonstrada.
Por essa razão, Adão não deveria considerar a grandeza ou a bon­
dade do que foi comandado, mas meramente a vontade daquele
que lhe deu o mandamento. Outra razão, que se segue daí, é que a
Lei positiva foi dada .para que a obediência de Adão pudesse ser
mais testada e, consequentemente, evidenciada como verdadeira
obediência. Por meio desse mandamento, o bem da obediência em
si mesma e o mal da desobediência em si mesma deveriam ser de­
monstrados. No entanto, deve-se observar rapidamente que embo­
ra a obediência à Lei positiva fosse muito inferior à obediência à
Lei moral, porque o objeto da última é interiormente bom e o obje­
to da primeira é antes uma profissão de obediência do que obedi­
ência de fato, a desobediência à Lei positiva não é menos hedionda
do que a desobediência à Lei moral, porque por esta um homem
exteriormente mostra que não deseja se submeter a Deus. É por

3 Mesmo entre os cristãos há uma grande diferença entre boas ações pratica­
das em obediência à ordem de Deus e aquelas praticadas por razões naturais.
esta razão que Paulo expressamente chama o pecado de Adão de
“desobediência” (Rm 5.19), não no sentido geral no qual cada pe­
cado é desobediência, mas no específico porque, usado no sentido
estrito, o seu foi, incomparavelmente, o pecado da desobediência.
Por aquele ato, Adão deliberadamente rejeitou o domínio que Deus
tinha sobre ele; e embora houvesse orgulho e incredulidade nesse
pecado, “desobediência” é o que ele propriamente foi.
A Lei positiva dada por Deus nessa época deve ser entendida
como tendo sido universal, isto é, ao ser dada a Adão, foi dada a
toda a raça nele. Esta é a razão pela qual Paulo diz que todos os
homens pecaram no primeiro homem. A aplicação dessa Lei posi­
tiva aos descendentes de Adão encontra prova adicional primeira­
mente na ameaça, “porque, no dia em que dela comeres, certamen­
te morrerás” (Gn 2.17), e, então, no evento subsequente em que
toda a posteridade de Adão, de fato, morreu. Naturalmente, as
mesmas razões que provam a adequabilidade de uma Lei positiva
em adição à Lei natural para Adão, a mantém, igualmente, para a
raça descendente dele.
Tão claramente como a Lei de Deus gravada no coração forne­
ce a base da congruência entre a revelação e a razão verdadeira,
assim também a Lei positiva serve para estabelecer a base do direi­
to de Deus para comandar e a obrigação de todos os homens de
obedecer.
Capítulo 7
Capacidade Humana
É muito fácil chegar a extremos ao avaliar a capacidade moral
no homem caído: algumas vezes pensa-se que é maior do que real­
mente é e, em outras, é negado que haja qualquer vestígio rema­
nescente. Não pode haver dúvida de que o homem possui o poder
do livre-arbítrio, embora isso deva ser entendido em relação à fun­
ção natural e não à capacidade moral. Constituído como o homem
é, dotado de personalidade, ele tem livre-arbítrio, mas sendo este
um poder derivado e sustentado por Deus, é, em todo o tempo,
dependente da ajuda de Deus. Até onde se relaciona com as coisas
espiritualmente boas, o livre-arbítrio do homem não tem desejo
por elas e, assim, não pode querê-las. Consequentemente, embora
possua uma liberdade que pode ser chamada de psicológica para
propósitos de distinção, o homem é moralmente uma pessoa limi­
tada: ele é um escravo do pecado.
Não é contradição ao que foi dito afirmar que, a despeito de
toda a corrupção que se encontra no coração do homem, ele ainda
pode realizar a forma exterior do que foi comandado por Deus e
nominalmente se abster do que é proibido. Porque o homem tem a
capacidade de obedecer à Lei na sua forma exterior, ele é, desse
modo, indesculpável quando falha em assim agir. O homem é ca­
paz, pelo poder da natureza, de refrear-se de muitos atos de peca­
dos torpes e, na verdade, o fato de Deus não ter abandonado com­
pletamente o homem deve ser considerado como uma das suas
misericórdias com respeito à raça humana.
Tendo reconhecido isso sobre o poder natural do homem, isto
é, sua capacidade de realizar atos exteriores de obediência, agora
precisa ser dito que tudo o que faz é pecado diante de Deus. Quais­
quer que sejam os atos do homem não- regenerado, embora apa­
rentemente gloriosos, são apenas pecados gloriosos, e a
pecaminosidade dessas coisas surge de várias razões óbvias. Tais
obras não são originárias da fé, ou de alguém reconciliado com
Deus; e a pessoa deve primeiramente ser aceita antes da ação. “Sem
fé é impossível agradar a Deus” (Hb 11.6). Tais obras não têm a
sua origem numa natureza regenerada; e, consequentemente, se a
árvore não é boa, o fruto não pode ser bom. Tais obras nao podem
ser aceitáveis a Deus, porque não foram realizadas por causa do
objetivo correto. O homem não regenerado não é capaz de fazer
qualquer coisa para a glória de Deus, uma vez que mesmo as suas
boas obras são apenas a substituição de um mal por outro. Mesmo
que o seu alvo seja algum bom objetivo particular, tal como ajudar
o pobre, isso não é suficiente, uma vez que o objetivo final e prin­
cipal a ser sempre procurado em tudo o que se faz é a glória de
Deus.
O fato de o ser humano ser incapaz de fazer qualquer obra mo­
ralmente boa levanta um grupo de problemas, e o primeiro desses
é se a negação do poder do homem em fazer qualquer coisa para a
sua salvação não o transforma meramente numa pedra ou, no má­
ximo, em alguma forma de criatura irracional. A resposta, natural­
mente, é que essa negação da capacidade humana não faz nada
disso. O grande e diferenciado fato sobre o homem é que nele há
uma potencialidade passiva para a conversão, embora não haja poder
ativo para se virar para Deus. Diferentemente das formas da natu­
reza e das criaturas irracionais, o homem é um ser criado de tal
forma que não tem, uma mera propensão, nem mesmo uma incli­
nação espontânea para fazer quaisquer ações propriamente suas,
mas uma inclinação que pertence à função da vontade. Esta, por
sua vez, é acompanhada pela razão e pelo julgamento. Porque o
homem é assim constituído, a obra divina da conversão, embora
seja uma obra do novo poder criador, é efetuada por meio de argu­
mentos ou súplicas à mente. Admite-se que o homem tenha perdi­
do a integridade da mente e da vontade, mas não as próprias facul­
dades; por essa razão, embora ele esteja espiritualmente morto para
as coisas de Deus, é vivo na sua vontade e é um ser capaz de ser
influenciado por argumentos. Consequentemente, pode-se admitir
a objeção de que se um homem não tivesse esta função do livre-
arbítrio, não poderia haver conversão ou obediência; porque a obra
do Espírito de Deus não é destruir a natureza do homem mas
aperfeiçoá-la.
O segundo problema levantado pela incapacidade humana é a
aparente contradição de forçar uma tarefa sobre o homem e, ao
mesmo tempo, reconhecer o dom da graça de Deus para fazê-la.
Em resposta, deve ser dito que se esse é o dilema do teólogo, ele é
primeiramente o dilema das Escrituras. Isso aparece, por exemplo,
no sermão de Cristo feito na sinagoga de Cafamaum, onde ele diz,
“Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para
a vida eterna” (Jo 6.27) e, ao mesmo tempo, declara, “Ninguém
pode vir a mim se o Pai, que me enviou, não o trouxer” (Jo 6.44).
A mesma aparente contradição ocorre nos escritos de Paulo que
diz, “desenvolvei a vossa salvação com temor e tremor; porque
Deus é quem efetua em vós tanto o querer como o realizar, segun­
do a sua boa vontade” (Fp 2.12,13). A razão que o apóstolo dá na
segunda parte poderia, de acordo com a objeção agora sendo res­
pondida, destruir completamente a exortação na primeira. Mas
considerar contraditório forçar uma tarefa e, ao mesmo tempo,
reconhecer que Deus capacita o homem para efetuá-la, é criar uma
discórdia perpétua entre ordenanças e promessas; uma vez que as
mesmas coisas que Deus manda o crente fazer, ele também prome­
te fazer por ele. Agostinho responde a esse problema com a excla­
mação, “Ó homem, nos preceitos de Deus reconhece o que tu tens
a obrigação de fazer; em suas promessas reconhece que tu não
podes fazê-las”.
Um terceiro problema levantado pela incapacidade humana, e
que é usado como um argumento contra ela, é que Deus comandar
o homem é o mesmo que escarnecer dele. Seria como se fosse
ordenado a um homem cego ver, ou como se fosse dito a um ho­
mem que se ele tocasse o céu com o seu dedo, receberia uma re­
compensa; e fatores circunstanciais e físicos como esses, afirma-
se, destruiriam completamente a natureza de um mandamento. Em
resposta a essas objeções, deve ser observado que há três modos
nos quais pode-se dizer que algo é impossível, (a) Há a simples
impossibilidade. Todas as coisas que envolvem uma contradição
são logicamente impossíveis; e esta impossibilidade surge da natu­
reza desse algo. Tais coisas são impossíveis mesmo para o poder
de Deus, porém não expressam qualquer defeito nele. (b) Há a
impossibilidade natural. Algo pode ser impossível de acordo com
sua natureza, tal como um homem tocar o céu ou trabalhar além
das causas naturais, (c) Há a impossibilidade moral. Coisas que
não têm impossibilidade simples ou natural vinculada a elas, algu­
mas vezes tomam-se moralmente impossíveis pelo erro do homem.
Não é escárnio para um homem fazer algo que, pelo seu próprio
erro, se fez incapaz de realizar. Se um credor requer seu débito de
uma pessoa falida que gastou dispendiosamente tudo e se fez inca­
paz de pagar, quão irracional será esse requerim ento?
Consequentemente, é completamente irrelevante introduzir ao ar­
gumento impossibilidades como pedir ao homem para tocar os céus
ou mandar o homem cego ver; uma vez que a impossibilidade sob
discussão é a moral, e a impossibilidade de cumprir o mandamento
é algo que o homem atraiu para si mesmo.
Um problema adicional neste contexto vincula a repreensão de
Deus ao homem por causa dos seus pecados. Algumas vezes se
pergunta, Como Deus pode reprovar os homens por causa de suas
transgressões se eles não podem agir de forma contrária? Mas a
resposta a isso vem da mesma direção da última questão, uma vez
que ainda permanece que qualquer que seja o pecado cometido
por um homem, é propriamente sua culpa e verdadeiramente seu
pecado. Qualquer que seja esse algo no qual o homem peca, ele
assim age voluntariamente e com grande prazer; e quanto mais ele
se deleita em seu pecado, mais liberdade ele tem em assim agir.
Nenhum homem é forçado ao pecado: ele age assim com toda a
sua inclinação e desejo.
Ao lidar com um quinto problema, pode-se dizer que é irrelevante
perguntar qual o propósito existente na exortação e advertência.
Porque embora Deus trabalhe cada boa obra no crente, ele não faz
isso nele como se este fosse uma pedra; mas ele lida com o homem
de forma adequada à sua natureza, isto é, por meio de argumentos
e razões. Se isso for contestado com a alegação de que isso é o
mesmo que segurar uma vela para um homem cego, a resposta
adicional é que essas exortações e a leitura ou pregação da Palavra
de Deus são os instrumentos usados por Deus para trabalhar essas
coisas. A pregação, por essa razão, não deve ser considerada como
mera exortação, mas como um meio santificado, ou instrumento,
pelo qual Deus trabalha no homem as suas exortações. A pregação
é o meio prático e operante pelo qual Deus realiza a sua vontade
naqueles que crêem, mesmo quando disse: “Haja luz; e houve luz”;
ou quando Cristo disse, “Lázaro, vem para fora! Saiu aquele que
estivera morto” (Gn 1.3; Jo 11.43,44). A graça operante de Deus
no crente não substitui a necessidade da exortação.1
1Isso deveria impedir o homem de planejar até mesmo o mais claro ministério
ou pregação porque um sermão não influencia o coração do homem por causa
da sua elegância, mas simplesmente porque é um instrumento de Deus desig­
nado para tal fim.
Na solução de um problema adicional, pode ser dito que o reco­
nhecimento da necessidade pela obra da graça na alma não nega
que os atos espirituais resultantes também são verdadeira e peculi­
armente do próprio crente. A razão e a liberdade qualificam o pe­
cador para ser passivamente apto para a graça: mas quando capa­
citado pela graça, ele também é feito ativo. Não há, na verdade,
uma negação de que crer e se voltar para Deus são atos do próprio
pecador, uma vez que é impossível crer sem a mente e a vontade:
mas isso não faz com que o homem seja uma causa conjunta com
Deus na sua própria salvação. É incorreto falar do pecador como
se ele fizesse qualquer coisa para obter sua salvação mas, ao mes­
mo tempo, ele é ativo ao receber a salvação. Arrependimento, con­
versão e fé são verdadeiramente atos do crente.
Finalmente, deve ser dito que a soberania de Deus em sua graça
não suporta uma atitude fatalista. Algumas vezes têm sido errone­
amente admitido que porque a salvação é toda de graça e é sobera­
namente conferida por Deus, não há nada que o pecador possa
fazer. Em resposta a esse ponto de vista fatalista, é necessário lem­
brar que há dois tipos de ação que, por falta de palavra melhor,
podem ser chamadas de santas: há aquelas que são íntima e essen­
cialmente assim, e aquelas que pertencem ao domínio das ações
exteriores. Nenhum homem pode realizar as primeiras sem Deus,
mas estas ações exteriores, tais como ouvir e ler a Palavra de Deus,
estão dentro dos poderes naturais do homem. Deus converte o
pecador pelo uso desses meios. Ele não influencia o coração como
um artesão usa um instrumento; mas ele comanda ao homem que
leia e escute, e este é o meio pelo qual Deus mudará seu coração.
Não é desculpa dizer que mesmo essa leitura e oração são pecami­
nosas não devendo, por essa razão, ser cultivadas, uma vez que o
homem, embora pecador, tem o dever de orar a Deus e buscá-lo.
Será visto, então, que nenhum grau de incapacidade humana
para cumpri-la pode anular a Lei de Deus ou, de alguma forma,
reduzir a autoridade de suas asserções.
Capítulo 8
A controvérsia sobre a relação da Lei moral com os crentes é
centrada na lei dada por Deus por meio do ministério de Moisés ao
povo de Israel. Que relação os crentes têm com essa Lei de Moisés?
Para responder a essa questão, primeiramente é necessário deter­
minar em que sentido a palavra “lei” está sendo usada na expressão
“a Lei de Moisés”. Algumas vezes ela é usada num sentido amplo
e em outras num sentido mais limitado. Pode ser tomada para toda
a dispensação e promulgação dos mandamentos, moral, judicial e
cerimonial; ou pode ser usada mais estritamente para a parte que é
chamada de Lei moral, junto com o prefácio e as promessas adici­
onadas a ela; ou pode ser entendida mais estritamente ainda pelo
que consiste em meros mandamentos, sem qualquer promessa. A
maioria das visões sustentadas sobre a diferença entre a Lei e o
Evangelho, assume a palavra Lei neste último e mais estrito senti­
do. Mas é claro que se todos os mandamentos e ameaças dispersos
por toda a Escritura forem admitidos como sendo propriamente a
Lei, e se todas as promessas graciosas, onde quer que sejam en­
contradas, forem admitidas como sendo o Evangelho, não será
surpresa se muitas coisas severas forem ditas a respeito da Lei.
Tem sido comum dividir o corpo das leis Mosaicas em moral,
cerimonial e judicial e, embora se levantem questões quanto a essa
divisão, elas não têm conseqüência particular e o agrupamento pode
ser seguramente aceito. A porção da Lei de Deus na qual estudo
presente está interessado é a Lei moral.
No entanto, nem todas as questões são respondidas pela elimi­
nação desses outros aspectos da Lei de Moisés, uma vez que a
palavra “moral” tem sido, ela mesma, usada em vários sentidos.
Esses diferentes significados têm, por sua vez, provocado vários
problemas adicionais, não somente na exposição da Lei, mas tam­
bém em outros aspectos da doutrina cristã. A questão que deman­
da uma resposta, consequentemente, é o que faz com que a lei seja
moral. Embora não haja coisa alguma na conotação do termo que
implique uma obrigação permanente, esse é o significado que per­
tence à idéia da Lei moral; e é essa permanência da obrigação que
faz a distinção entre o que é moral e as obrigações que estão nas
outras categorias.
É amplamente admitido que a Lei da Natureza e a Lei moral são
idênticas; mas isso é um erro, uma vez que há pelo menos duas
diferenças importantes entre elas. Primeiramente, a Lei moral dada
por Deus causa uma nova obrigação a partir do fato de que é for­
malmente comandada. Assim, embora a substância da Lei da Natu­
reza e da Lei moral concordem em muitas coisas, o homem que
quebra os Dez Mandamentos em sua forma promulgada é culpado
por pecar de forma mais hedionda do que o homem que nunca os
recebeu. Em segundo lugar, embora a Lei moral requeira muitas
coisas que também estão contidas na Lei da Natureza, tem também
muito mais nela do que jamais poderia haver naquela Lei primitiva.
Um exemplo disso pode ser encontrado na confissão de Paulo de
que ele não saberia que a cobiça era um pecado se a Lei não lhe
dissesse isso, embora ele tivesse a Lei da Natureza para convencê-
lo do pecado.
A Lei moral foi dada ao povo de Israel quando este estava no
deserto no Monte Sinai, e talvez haja duas razões para que Deus
tenha dado essa Lei naquele tempo, nem antes nem depois. A pri­
meira razão era que o povo de Israel havia caído em idolatria e,
assim, a Lei foi dada a fim de restringir sua idolatria e reprimir sua
rebelião. Este parece ser o significado da declaração de que a lei
“foi adicionada por causa das transgressões” (G13.19). A outra, e
talvez a mais importante, razão pela qual Deus deu a Lei naquela
época, e não em outra, era que os israelitas estavam se tomando
uma nação. Eles estavam prestes a entrar em Canaã e a estabelecer
uma vida, assim Deus fez leis para eles; porque era seu rei de um
modo especial e de tal forma que todas as suas leis, mesmo as
políticas, eram divinas.
É um erro pensar na Lei moral como algo novo, uma vez que é
tão primitiva quando a Lei natural. A Lei moral existia muito antes
da sua administração por Moisés. Assassinato era pecado desde o
princípio, como aparece pelas palavras de Deus a Caim; na verda­
de, assim também era com o próprio ódio que precede o assassina­
to. Os homens, consequentemente, nunca estiveram sem a Lei, nem
nunca estarão, e há um senso no qual pode ser verdadeiramente
dito que o Decálogo pertence a Adão, a Noé, a Abraão, a Cristo,
aos Apóstolos, assim como a Moisés. Como foi observado acima,
existiu, naturalmente, uma razão histórica pela qual no tempo de
Moisés deveria haver uma promulgação especial e solene repeti­
ção dela, mas mesmo assim a Lei foi perpetuamente ouvida entre
os homens desde o princípio. Esta consideração contribuirá
grandemente para uma avaliação correta do valor da Lei, sendo ela
o instrumento constante de Deus para a definição do dever do ho­
mem, para a convicção do pecado e para exortação à santidade.
Rejeitar o uso da Lei, assim, é rejeitar a direção universal de Deus
tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos.
A dádiva da Lei a Israel foi um ato da infinita misericórdia e
graça de Deus. No discurso de Moisés ao povo (Dt 7 e 9), Deus
imprime nos israelitas a grandeza do seu amor ao dar-lhes os seus
mandamentos. Ele enfatiza mais de uma vez que não foi por causa
deles, ou por qualquer mérito deles, mas puramente porque ele os
amava. O salmista percebe essa bondade de Deus ao dar a Lei
dizendo, “Não fez assim a nenhuma outra nação” (SI 147.20), e
Oséias, da mesma forma, enfatiza essa misericórdia nas palavras,
“embora eu lhe escreva a minha lei em dez mil preceitos...” (Os
8.12). Todos os benefícios que os salmistas e profetas consideram
como advindos da Lei de Deus devem, assim, ser remontados à
graça e misericórdia de Deus ao dar a Lei, e quando a Lei de Deus
é depreciada de qualquer forma, isso evidencia uma profunda con­
cepção errônea dos seus caminhos.
Não há discussão quanto ao fato de que, no Evangelho, Deus
concedeu expressões maiores do seu amor ao homem, mas isso
não significa qualquer depreciação da graça contida na Lei. A Lei
pertence aos crentes no presente para os mesmos objetivos evan­
gélicos de quando foi originalmente dada aos israelitas. Nem um
mandamento pode ser lido em seu significado espiritual - que é o
seu verdadeiro significado - sem que se descubra alguma causa
para louvar a Deus. Por essa razão, não é suficiente que o crente
não despreze ou negligencie a Lei: ele antes deve agradecer a Deus
por sua Lei ser lida e exposta. Que o homem piedoso possa se
deleitar em ter essa pureza comandada que irá fazê-lo detestar a si
mesmo, prezar mais a Cristo e à graça, o que será um estímulo vivo
a toda santidade. Além disso, é um falso pensamento até mesmo
contemplar uma diversidade entre a Lei e o Evangelho, porque
quando colocados juntos, dão gosto e sabor um ao outro.
Uma consideração sobre os acompanhamentos da promulgação
da Lei moral servirá para exibir a sua dignidade excelente. Esses
acompanhamentos revelam que Deus colocou grande glória nela; e
embora o Novo Testamento mostre que a ministração da graça
pelo Evangelho deva ser mais altamente estimada do que a
ministração Mosaica dela, porém de forma absoluta e em si mes­
ma, a Lei foi grandemente honrada por Deus. Seria correto con­
cluir que Deus deu a Lei dessa forma impressionante e solene a fim
de que a sua autoridade e majestade pudessem ser mais pronta­
mente reconhecidas. Essa dignidade pertence peculiarmente à Lei
moral, em distinção da judicial e cerimonial; porque embora as Leis
judicial e cerimonial tenham sido dadas na mesma época que a moral,
há, todavia, uma grande diferença entre elas. Naturalmente reco-
nhece-se que esses três tipos de leis concordam em muitos particu­
lares. Elas concordam na causa eficiente comum, que é Deus; no
ministério do mediador, que era Moisés; no destinatário, que era o
povo de Israel; também concordam nos efeitos comuns, que eram
constranger o povo à obediência e punir aqueles que as transgredi­
am. Mas a Lei moral é preeminente e isso é visto primeiramente no
fato de que ela é a base para as outras Leis, e elas são redutíveis
nela; em segundo lugar, no fato de que ela deve sempre subsistir,
enquanto as outras não; e em terceiro lugar, no fato de que a Lei
moral é distinta das outras por ter sido escrita por Deus e ordenada
a ser mantida na arca.
Algumas vezes se faz exceção à relevância de qualquer discus­
são sobre a Lei dada por meio de Moisés, e se pergunta: o cristão
é judeu? A Lei de Moisés pertence aos crentes? Cristo não aboliu a
Lei? Moisés e seu ministério não estão agora já concluídos? Essas
questões são freqüentemente levantadas, o que faz com que valha
a pena perguntar se os Dez Mandamentos, como dados por Moisés,
pertencem ou não agora aos cristãos.
Em primeiro lugar, é necessário investigar o sentido no qual é
dito que a Lei, na sua forma Mosaica, obriga o crente. Algumas
vezes se entende que isso significa que a Lei obriga por causa de
Moisés; sendo assim, o que pertence à administração Mosaica,
pertence também aos cristãos. Mas tal visão é falsa e completa­
mente contrária ao curso total da Escritura, uma vez que, então,
não somente a Lei moral, mas também a cerimonial, obrigaria o
cristão. Outro modo de entender a relação com Moisés é dizer que
é puramente por causa de ele ter sido o escritor inspirado. Isso,
naturalmente, não pode ser negado por qualquer um que sustente
que o Antigo Testamento pertence aos cristãos, por que, então, os
livros de Moisés não deveriam pertencer a eles assim como os li­
vros dos profetas? Mas há um modo adicional de se entender essa
relação do crente com a Lei de Moisés. Quando Deus deu os Dez
Mandamentos por meio de Moisés ao povo de Israel, embora eles
fossem o povo a quem, então, falava, ele pretendia que a obrigação
de manter esses mandamentos recaísse não somente sobre os
israelitas mas também sobre todas as pessoas que, no devido tem­
po, fossem levadas a conhecê-lo. A expressão adequada da ques­
tão, então, não é se Moisés foi um ministro aos cristãos assim como
o foi para Israel (uma vez que isso é claramente incorreto), mas se,
quando Deus entregou os Dez Mandamentos pelas mãos de Moisés,
ele tinha em mente somente os israelitas ou se todos os outros seus
verdadeiros adoradores foram previstos como incluídos dentro da
sua autoridade. Esta última alternativa é a verdadeira e, ao mesmo
tempo, define o sentido no qual a lei obriga o crente em sua forma
Mosaica.
Para que isso possa ser esclarecido, deve-se observar que a Lei
moral obriga em duas formas. Em primeiro lugar, ela obriga com
respeito à sua substância. Na extensão de que muito dessa substân­
cia também é encontrada na Lei da Natureza, ela aplica-se univer­
salmente e, assim, obrigava os israelitas mesmo antes da sua pro­
mulgação no Monte Sinai. Em segundo lugar, ela obriga com res­
peito à autoridade e ao comando que são exercidos nela, uma vez
que uma Lei é promulgada por meio de uma proclamação e, então,
uma obrigação adicional recai sobre ela. Assim, quando Moisés,
como o servo de Deus, entregou essa Lei a Israel, ele, desse modo,
trouxe uma obrigação adicional sobre eles. A principal questão a
ser respondida, no entanto, é se essa obrigação era temporária ou
perpétua.
O problema principal é o da perpetuidade da Lei Mosaica e al­
guma luz é jogada sobre isso pela revogação da parte da lei Mosaica
que era puramente cerimonial. É óbvio que a obrigatoriedade des­
sa Lei cerimonial não teria cessado a não ser que a própria Lei
tivesse sido revogada; e, assim, usando o mesmo argumento, a Lei
moral dada por meio de Moisés deve ainda obrigar a não ser que se
mostre que ela foi revogada.
Além disso, a Lei cerimonial cessou porque continha apenas as
sombras do real e quando Cristo veio, não houve mais necessidade
das sombras; similarmente, a Lei judicial cessou porque quando o
estado de Israel chegou ao fim, não havia mais razão para tais Leis.
Essas Leis se tornaram obsoletas por causa de sua própria nature­
za. No entanto, isso não pode ser dito sobre a Lei moral, uma vez
que a sua substância é perpétua e não há lugar na Escritura que a
revogue.
A perpetuidade da Lei Mosaica pode ser demonstrada por meio
de vários argumentos, o primeiro deles sendo uma resposta à obje­
ção levantada em conexão com a abolição da Lei cerimonial. A
opinião apostólica era que, se as formas da adoração cerimonial
fossem necessárias para a justificação, isso iria, com efeito, excluir
Cristo completamente, ou uni-lo à Lei cerimonial.1 É verdade que
quando os apóstolos demoliram esse erro, mostraram claramente
não somente que as obras da Lei cerimonial não tinham poder para
justificar, mas também que as obras da Lei moral eram igualmente
incapazes de fazer isso; mas, ao reconhecer esse fato, deve ser
lembrado que quando os apóstolos colocaram a Lei moral em dis­
cussão, eles assim o fizeram somente com respeito à justificação,
não à obrigação.

1 Ver Atos 15.5, 10, 19, 20, 24, 28,29.


O segundo argumento pela perpetuidade da lei Mosaica surge a
partir do fato de que a Escritura urge a obrigação da Lei moral
sobre os gentios convertidos e que essa obrigação é tida como
tendo sido transmitida a eles por seus pais, considerando, assim, os
israelitas e gentios crentes como um povo. Quando Paulo escreve
aos Romanos, ele diz que, “o cumprimento da lei é o amor” (Rm
13.10); e, nisso, resume os mandamentos dados por meio de Moisés.
Similarmente, quando escreve aos gentios de Éfeso, ele exorta os
filhos a honrarem seus pais e mães porque esse é o primeiro man­
damento com promessa: um mandamento, de fato, inteiramente
Mosaico em sua fonte (Ef 6.2). Também é evidente na epístola de
Tiago que isso se refere aos gentios convertidos assim como aos
judeus. As palavras, “Se vós, contudo, observais a lei régia segun­
do a Escritura” (Tg 2.8), são uma alusão, naturalmente, à Lei de
Moisés, onde a segunda lista contém amor ao próximo; e nas pala­
vras, “Porquanto, aquele que disse: Não adulterarás também orde­
nou: Não matarás” (Tg 2.11), o argumento é tirado, não da subs­
tância da lei, mas do seu autor, o Deus que falou por meio de
Moisés. A razão pela qual estes mandamentos se estendem aos
gentios crentes é que os judeus e os gentios crentes são considera­
dos como um povo (ver 1 Co 10.1-2).
O terceiro argumento é tirado a partir da obrigação do cristão
de manter o sétimo dia, um argumento que parece confirmar com­
pletamente que a Lei moral dada por intermédio de Moisés tam­
bém obriga os cristãos. Se o sábado é uma ordenança perpétua e é
baseada no quarto mandamento, não pode deixar de ser visto que
os mandamentos, como dados por intermédio de Moisés, também
obrigam os crentes. A distinção algumas vezes antecipada a res­
peito de leis que obrigam “por causa da substância” e leis que obri­
gam “por causa do ministério” não será considerada neste caso,
uma vez que o sétimo dia não pode obrigar pelo significado dele,
nada havendo na natureza que obrigue o sétimo dia ao invés do
quinto, mas somente o mero mandamento de Deus por esse dia. Se
a Lei de Moisés é desconsiderada nesse aspecto, então, natural­
mente a inferência a ser feita é que os cristãos mantêm o sábado
baseados somente no Novo Testamento e de forma alguma no quar­
to mandamento. Isso, no entanto, é discrepante do consenso geral
do pensamento cristão, uma vez que todas as igrejas têm honrado
a lei moral, junto com seu Prefácio e a têm nos seus catecismos.
Consequentemente, não é difícil ver que a distinção que afirma que
a Lei moral obriga como a Lei da Natureza, mas não como a Lei de
Moisés, é insustentável, porque a Lei do sábado, como se encon­
tra, não pode se originar da Lei da Natureza, mas tem sua moralidade
e perpetuidade a partir do mero mandamento positivo de Deus.
O quarto argumento tem a ver com a razão, isto é, é incongru­
ente ter uma obrigação temporária sobre um dever perpétuo. É
totalmente improvável que Deus, ao dar a Lei por intermédio de
Moisés, pretendesse que a Lei fosse somente temporária em sua
obrigação quando o assunto é, em si mesmo, perpétuo. Não é uma
suposição muito razoável a de que o verdadeiro efeito dos manda­
mentos fosse, “Não terás outros deuses até depois do tempo de
Moisés”, ou “Não matarás ou cometerás adultério enquanto seu
ministério durar e, então, essa obrigação deve cessar e uma nova
obrigação virá sobre vocês”. Por que deveria ser pensado que,
quando a substância da Lei é necessária e perpétua, Deus iria alte­
rar e mudar a natureza da obrigação? Na verdade, é impossível dar
uma razão provável, mesmo que remota, para tal alteração.
O quinto argumento pela perpetuidade da autoridade da Lei
moral é que se a Lei por meio da mão de Moisés não obriga o
crente, então os últimos livros do Antigo Testamento também não
pertencem a ele, porque são basicamente — especialmente no en­
sino moral — nada além de exposições da Lei moral. A rejeição à
autoridade da Lei Mosaica iria carregar com ela a rejeição a todo o
Antigo Testamento.
Não pode haver fuga das reivindicações da Lei moral. Suas de­
mandas pertencem à própria constituição do homem como homem
e são realçadas pela misericórdia de Deus que tem reiterado Sua
santa Lei para a salvação de pecadores.
Capítulo 9
A Espiritualidade da Lei e
Seu Uso como Meio de Conversão
“Ouvistes o que foi dito aos antigos...Eu, porém vos digo” (Mt
5.21,22). Essas palavras referem-se aos ensinamentos de Moisés e
dos profetas nos tempos do Antigo Testamento, e os mandamen­
tos citados por Cristo são os do Decálogo, mas ele dá um sentido
mais profundo a eles. Cristo não se opõe à Lei de Moisés, mas
apenas busca interpretá-la acertadamente e remover dela as coisas
que a tem corrompido e obscurecido. O fato de que Cristo não dá
novas leis mas apenas interpreta a antiga, é claro em suas palavras,
“Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas, não vim para
revogar, vim para cumprir” (Mt 5.17). É verdade, naturalmente,
que pode-se dizer que Cristo cumpriu a Lei de muitas formas, mas
no presente contexto parece que, como o contraste é entre quebrar
a Lei e ensiná-la, Cristo pretende que seus ouvintes entendam que
ele não veio ensinar uma nova exigência à qual não estavam obri­
gados antes, mas que seu propósito era expor a Lei de tal forma
que eles deveriam entendê-la corretamente e, assim, tomarem-se
mais conscientes do seus pecados.
A própria perfeição da Lei também serve para deixar claro que
era impossível para Cristo adicionar novas obrigações que não es­
tivessem ordenadas nela. Consequentemente, não se deve pensar
que o cristão esteja trilhando um caminho mais excelente de obri­
gação do que o prescrito na Lei. Não há dúvida, naturalmente, de
que o Evangelho vai muito além da Lei no seu remédio para o
pecado e também na sua manifestação da graça de Deus; mas quanto
ao assunto das obrigações espirituais, não pode haver caminho mais
excelente de santidade do que a Lei, pois esta é a própria idéia e
representação da natureza gloriosa de Deus.
Mais uma vez, o fato de que adições à Lei não são possíveis
surge a partir da realidade de que a sua primeira parte pode ser
sumariada nos requerimentos de que um homem deve amar a Deus
com todo o seu coração e alma e que não pode haver nada maior
do que isso. Além disso, esse mandamento não apenas indica o
objetivo para o qual cada crente se move mas também determina
todos os meios que levam a ele.
Por último, Cristo não diz, “se a vossa justiça não exceder em
muito a da Lei de Moisés’’, mas “a dos escribas e fariseus”, suge­
rindo claramente que a sua intenção era expor seus caminhos for­
mais e hipócritas e, ao mesmo tempo, mostrar que eles nunca havi­
am entendido a substância e excelência da Lei.
A razão pela qual Cristo precisava expor a Lei desse modo,
toma-se evidente assim que a visão geral dos judeus sobre os man­
damentos é considerada. A opinião deles era que a Lei alcançava
apenas o homem exterior e proibia apenas atos exteriores e que,
embora o homem guardasse o erro em seu coração e tencionasse
cometer atos exteriores de maldade, conquanto eles não fossem
cometidos exteriormente, não haveria pecado nele. Isso pode ser
inferido a partir de Paulo que diz ter sido influenciado por esses
princípios enquanto não entendia que a concupiscência interior era
pecado. A exposição de Cristo sobre a Lei é fundamentada primei­
ramente no pressuposto de que a Lei é espiritual e, assim, não pro­
íbe apenas o fruto do pecado mas até mesmo a própria raiz e, em
segundo lugar, no fato de que onde quer que o pecado seja proibi­
do, o bem contrário é ordenado. Não há necessidade de hesitação
na pregação da Lei como Cristo a prega, porque esta é a arma
eficiente de expor a formalidade e a auto-ilusão existentes no cora­
ção humano.
A Lei de Deus é uma regra tão perfeita de vida que Cristo não
instituiu obrigação alguma que já não estivesse ordenada nela. As­
sim como as exortações dos profetas à fé e obediência foram fun­
damentalmente uma exposição da Lei, assim também os manda­
mentos de Cristo e dos apóstolos são uma exortação às coisas conti­
das na Lei.1
É verdade que, no Antigo Testamento, muitas coisas eram ex­
pressas de uma forma mais material e que o povo, na maioria, as
entendia assim; porém, as obrigações então ordenadas eram tão
espirituais quanto agora. Há apenas uma diferença de grau na ma­
nifestação das obrigações e não uma diferença específica das pró­
prias obrigações.
A excelência e espiritualidade da Lei é demonstrável a partir de
um grande número de considerações. Em primeiro lugar, não pode
haver dúvida de que a Lei de Deus requeria a adoração e o serviço
de coração. O Antigo Testamento é rico em passagens que reque­
rem a devoção do coração; todas elas são uma revelação do que
estava implícito na Lei, e sobre essa qualidade espiritual há tanta
insistência que deixa claro que as obrigações religiosas realizadas
sem o coração não eram consideradas por Deus. Infelizmente é
verdade que o povo, na maioria da vezes, entendia tudo de uma
forma muito pobre, pensando que apenas a obrigação exterior era
ordenada. Davi, que pode ser tomado como representante das pes­

1 Esta declaração, naturalmente, não se aplica aos sacramentos ou aos manda­


mentos positivos da adoração exterior, que são diferentes do ordenado no An­
tigo Testamento, mas às obrigações morais requeridas do homem.
soas verdadeiramente piedosas do Antigo Pacto, estava severa­
mente consciente da negligência do seu coração quando orou, “dis-
põe-me o coração para só temer o teu nome” (SI 86.11).
Em segundo lugar, a Lei de Deus colocou uma ênfase maior na
santificação interior do que nas realizações exteriores das obras
religiosas. Isso é freqüentemente exortado pelos profetas, por meio
dos quais Deus expressa a sua repugnância quanto às solenidades
meramente exteriores do seu povo, porque eles não estavam lim­
pos e puros em seus corações (Is 1.10-20). Davi reconhece, na
confissão de seu grande pecado, que um coração quebrantado e
contrito tem maior valor do que ofertas queimadas (SI 51.16,17).
Este é um alto conceito, mas o que é importante a ser observado
agora é que ele pertence à Lei do Antigo Testamento.
Em terceiro lugar, a Lei de Deus exigia que todas as obrigações
fossem feitas em fé e amor. É inconcebível que os requerimentos
estabelecidos nas primeiras tábuas da Lei, nas quais o povo reco­
nhecia Jeová como seu Deus, não incluíssem a fé nele como um
Deus que estava em pacto com eles. Como os israelitas podiam
amar a Deus ou orar a ele de forma aceitável se não tivessem fé
nele? Essa demanda por fé só pode ser negada se a Lei for conside­
rada de uma forma tão estrita que não inclua nada além de manda­
mentos; mas tal visão da lei não é usual. Quando a Lei é vista no
contexto de seu prefácio e das promessas anexadas, ela necessari­
amente requer fé, uma vez que é inconcebível Deus ter ordenado
ao povo de Israel, por meio de Moisés, adorá-lo e reconhecê-lo
como seu Deus e que sua vontade também não fosse que eles cres-
sem em seu amor e cuidado. Além disso, já foi observado que o
amor é ordenado pela Lei, uma vez que esta é a maneira pela qual
Cristo a resume em ambas as suas partes. Consequentemente, é
espantoso que possa se pensar que haja uma contradição entre fa­
zer algo por amor e fazer a mesma coisa pela Lei, uma vez que é da
própria substância da Lei que cada mandamento seja cumprido em
amor. É verdade, naturalmente, que o propósito da Lei foi violado
por Israel e isso teve o cativeiro como conseqüência; mas a própria
Lei era um apelo para o amor, e quanto mais um israelita fizesse
algo por amor a Deus, mais conformado estava com a Lei de Deus.
A Lei não apenas requeria amor a Deus, mas ordenava isso de uma
forma tão preeminente que nem mesmo no Evangelho alguém pode
oferecer uma expressão de amor mais elevada do que aquela que
foi então ordenada. Quando Cristo diz, “Quem ama seu pai ou sua
mãe mais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10.37), ele não
ordena algo mais elevado a cada cristão do que cada israelita esta­
va obrigado.2
Em quarto lugar, outra prova da perfeição da Lei de Deus pode
ser vista nos motivos espirituais requeridos para que o homem se
aproxime de Deus. Algumas vezes, os israelitas eram movidos em
suas obrigações religiosas apenas por motivos materiais e tempo­
rais e não por qualquer consideração espiritual. O fato de que isso
era um juízo completamente falso pode ser visto pelo protesto dos
profetas de que quando o povo jejuava, não era para ele [Deus]; e
de que quando se queixava, era apenas por causa de seus proble­
mas e não porque Deus estava ofendido. Em contraste com essa
visão errônea do motivo puramente material na adoração do Anti­
go Testamento, deve ser colocado o lamento espiritual de Davi
quando clama, “Pequei contra ti, contra ti somente” (SI 51.4), e a
confissão de Miquéias, o profeta, quando escreve, “Sofrerei a ira
do SENHOR, porque pequei contra ele” (Mq 7.9). O que pode ser
mais espiritual do que isso?
Além disso, a Lei de Deus requeria regozijo em Deus mais do
que em qualquer coisa criada. Esse requerimento era absoluto, e
essa demanda não é mais elevada no Evangelho. A linguagem do
2 Não a menção de Levi porque ao executar justiça, ele não conhecia “pai” ou
“mãe”.
salmista é tão sublime quanto qualquer aspiração do Novo Testa­
mento quando diz, “Quem mais tenho eu no céu? Não há outro em
quem eu me compraza na terra” (SI 73.25). Ele não estimou mais a
Palavra de Deus do que ao ouro e ao mel (SI 19.10)? E quando
Davi foi banido do seu reino, não foi por um retomo a ele nem por
qualquer bem material que orou, mas unicamente para ver a Deus
em sua beleza (SI 27.4). Assim, embora a dispensação da Lei não
tenha sido tão clara quanto a do Evangelho, aqueles que foram
abençoados por Deus sob ela, são pronunciados como tendo pro­
movido desejos igualmente espirituais. A perfeição exigida pela
Lei de Deus significa que suas demandas não podem ser supera­
das; porque não pode haver perfeição que exceda a perfeição. A
Lei requer perfeição de amor sem qualquer tipo de deficiência; e,
assim, é impossível que se conceba qualquer padrão maior de san­
tidade do que o contido na Lei.
A evidência final da alta espiritualidade da Lei é encontrada no
ensino da Escritura de que a Lei foi designada com o propósito da
graça. Deus usa a Lei como um instrumento para estimular desejos
santos e espirituais no crente. O Espírito de Deus graciosamente
inclina o coração e a vontade do crente quando as obrigações da
Lei são forçadas sobre ele e, por esse meio, Cristo está tão longe
de ser excluído que ele é ainda mais glorificado e honrado.3
3 Muitas vezes, a perfeição da Lei tem sido desafiada e a visão sustentada por
alguns é que Cristo entregou preceitos melhores dos que os de Moisés; conse­
qüentemente, ele deve ser reconhecido mais como reformador do que como in­
térprete. Naturalmente, é compreensível o modo como alguns podem ser guia­
dos a essa opinião errônea, porque as interpretações de Cristo são muito eleva­
das e gloriosas; contudo é incorreto dizer que ele apresentou mandamentos dife­
rentes dos que os contidos na Lei de Moisés. O exemplo apresentado em favor da
visão de que Cristo introduziu novos mandamentos é, entre outros, com relação
à lei do juramento. É um erro pensar que Cristo fez com que o juramento se
tomasse absolutamente ilícito, porque aqui, também, é um caso claro de remo­
ção, por Cristo, da aparência corrupta com que a Lei tinha sido revestida pelos
fariseus. O mesmo se aplica aos difíceis problemas da pena capital, da guerra, do
litígio e da vingança.
A admissão das demandas elevadas e espirituais da Lei leva ao
reconhecimento do lugar da Lei como meio de conversão. Isso,
algumas vezes, é negado pelo argumento contrário de que o único
instrumento designado para esse fim é o Evangelho. Obviamente,
não há necessidade de defender o Evangelho como um instrumen­
to para a conversão dos homens, uma vez que todos reconhecem
isso, mas na presença de opiniões em contrário, parece ser neces­
sário manter a outra verdade, igualmente divina, de que a pregação
da Lei de Deus pode ser abençoada por ele para causar a conver­
são dos homens. E importante estabelecer essa doutrina; porque se
o contrário fosse verdadeiro, seria obrigação do pregador, em gran­
de medida, colocar de lado a pregação da Lei moral, uma vez que
esta não seria instrumental ou subserviente ao fim principal do mi­
nistério que é a conversão de pecadores.
Nas considerações sobre o valor instrumental da pregação da
Lei para a conversão de pecadores, há três coisas a serem coloca­
das como premissas. A primeira é que a Lei nunca poderia ser
instrumental para a regeneração dos homens se não fosse pela pro­
messa do Evangelho. Se Deus não tivesse misericordiosamente
prometido dar um novo coração por meio de Cristo, não haveria
meio de se tomar efetivo qualquer um dos ensinamentos da Lei;
assim, por exemplo, enquanto um pregador, ao falar sobre os man­
damentos, é instrumental na mudança do coração dos ouvintes,
todo esse benefício deve ser reconhecido como sendo advindo por
meio de Cristo, que morreu, ressuscitou e subiu ao céu a fim de
que o que foi pregado pudesse se tomar efetivo na salvação dos
homens. A verdade é que não há na Igreja de Deus a “mera pura
Lei” ou “mero puro Evangelho”, mas eles têm sido subservientes,
um ao outro, na grande obra da conversão. A questão, então, não
é se a graça transformadora opera junto com a pregação da Lei. O
interesse do argumento presente não é definir a diferença entre a
Lei e o Evangelho — uma diferença que é admitida por todos —
mas afirmar que Deus pode fazer com que a exposição da Lei mo­
ral seja um instrumento para a conversão do homem.
A segunda coisa a ser colocada como premissa é que embora a
pregação da Lei possa ser abençoada para a conversão do pecador,
a substância da Lei nunca, em si mesma, é base para a justificação.
Isso significa que quando um homem se arrepende, abandona seus
pecados e se volta para Deus, ele não pode esperar ser aceito por
qualquer coisa que faça, mas unicamente pela promessa do Evan­
gelho.4 Por um lado, não deve haver confusão entre Lei e Evange­
lho e, por outro, eles também não podem ser colocados como con­
trários em natureza e efeito de modo que onde esteja um, o outro
não possa estar.
A terceira premissa é que a Lei de Deus, sendo parte da Palavra
de Deus, é tão instrumental para a conversão quanto o é o restante
dessa Palavra. Os mandamentos não são apenas informativos da
obrigação, mas meios práticos e operantes apontados por Deus
para agirem naquilo que foi comandado.
Quando o uso da Lei na conversão de pecadores é reconhecido,
ainda precisa ser indagado se o resultado é realmente a obra do
Espírito no pecador por.intermédio da Lei. Em resposta a isso, e na
concretização geral do que já foi dito, as seguintes observações
devem ser feitas. Em primeiro lugar, a Palavra de Deus quando é
lida ou pregada, se considerada sozinha em si mesma, trabalha ex­
clusivamente de uma forma objetiva rumo à conversão do homem.
Tomada em si mesma, porquanto não animada pelo Espírito de
4 A diferença entre a Lei o e Evangelho, conseqüentemente, não se encontra,
como algumas vezes se afirma, no fato de um ser instrumento de graça e o
outro não; mas nisto, que um pecador não é justificado baseado em qualquer
santidade causada em si mesmo (pela pregação da Lei ou do Evangelho), mas
de uma forma inteiramente evangélica, isto é, pelo perdão de Deus a tudo o
que for pecaminoso pela imputação da justiça de Cristo.
Deus, o máximo que pode fazer é se apresentar como um objeto de
entendimento. À parte da aplicação da verdade pelo Espírito de
Deus, a Palavra não pode efetuar a regeneração do coração. Se o
Espírito de Deus for tirado da Palavra, então toda a Escritura é
“letra mortal”, até mesmo a parte que é chamada de Evangelho. As
promessas do Evangelho podem ser pregadas mil vezes, mas nun­
ca podem transmitir graça se o Espírito de Deus não estiver efeti­
vamente lá.
Segue-se, em segundo lugar, que quaisquer bênçãos que al­
cançarem a alma pela pregação da Lei ou do Evangelho, são cau­
sadas eficientemente pelo Espírito de Deus. Por essa razão, pode
parecer que a Lei, algumas vezes, é mais efetiva do que o Evan­
gelho para o despertar e a conversão de um pecador. Não é im­
possível supor uma pregação da Lei acompanhada pelo Espírito
de Deus de tal forma que mude o coração do homem: e, similar­
mente, não é impossível supor uma pregação do Evangelho na
sua maior glória que, não sendo, contudo, acompanhada do Es­
pírito de Deus, não cause a menor medida de graça em qualquer
ouvinte. Consequentemente, é totalmente superficial dizer que a
Lei mostra ao homem a sua obrigação e que o Evangelho dá a ele
a graça para cumpri-la, visto que, quantos são os que ouvem as
promessas do Evangelho sem, todavia, receber benefícios delas?
No entanto, ao contrário, se a Lei, que estabelece a obrigação do
homem, for acompanhada pelo poder do Espírito de Deus, pode
muito bem operar de forma instrumental no homem uma capaci­
dade para cumpri-la. É claro que a Escritura sem o Espírito de
Deus não pode converter um pecador, porque se pudesse, então
os demônios e os homens com capacidades intelectuais, que en­
tendem a letra da Escritura melhor do que outros, seriam mais
rapidamente convertidos; por isso, a Palavra de Deus, embora
seja tida como uma espada, é chamada de “a espada do Espírito”
(Ef 6.17).
Tendo sido formuladas as premissas precedentes, os argumen­
tos que provam que a pregação da Lei pode ser meio de conversão
devem ser agora apresentados. Primeiramente, é claro que tudo o
que for atribuído ao todo não deve ser negado à parte. E proprie­
dade de toda a Palavra de Deus ser instrumento de conversão;
consequentemente, isso não deve ser negado com relação à Lei.
Mas, além disso, a Lei é expressamente tida como sendo instru­
mental na obra da conversão. A lei é chamada espiritual (Rm 7.14)
porque é ela que trabalha espiritualmente no coração do homem; e
o salmista escreve, “A lei do Senhor é perfeita e restaura a alma”
(SI 19.7). Pode-se pensar que quando o salmista recomendava a
Lei de Deus dessa maneira, ele queria dizer toda a Palavra de Deus
exceto a Lei moral quando, de fato, esta era a maior parte dela em
seu tempo?
Uma evidência ainda maior para o uso da Lei na conversão de
pecadores encontra-se no fato de que Cristo a usou para esse pro­
pósito. Sustentar que a pregação da Lei não é um meio para a
conversão deve implicar que Cristo não tomou o caminho mais
direto para converter seus ouvintes no Sermão do Monte, porque
se esse sermão for considerado, se descobrirá que ele é, principal­
mente, uma exposição da lei moral e a imposição de suas obriga­
ções. Como se pode_pensar de forma contrária à que o Senhor
julgou como sendo proveitosa eimportante para a salvação da alma?
Deve ser óbvio também que a natureza objetiva da Lei a quali­
fica como um instrumento para a conversão. É quando a pureza e
excelência da substância da Lei são proclamadas que o Espírito de
Deus, pelo uso dessa santa Lei, move o coração do homem para
amá-la. Se o filósofo ao falar sobre a virtude, disse que se ela
pudesse ser vista com olhos humanos, a sua beleza iria arrebatar os
homens, muito mais isso se aplica à pureza e santidade da Lei.
Finalmente, a Lei moral não pode ser inferior à Lei cerimonial
em sua utilidade. Se a Lei cerimonial, com seus sacrifícios, foi aben­
çoada pelo Espírito de Deus durante o período de seu uso, apesar
do fato de suas instituições serem, agora, obsoletas, então que a
Lei moral também possa ser abençoada por Deus para efeitos espi­
rituais, sendo que ainda permanece em vigor.
Este capítulo pode ser concluído com um apelo à experiência
que, embora não seja uma base autoritária para um argumento,
carrega o testemunho da verdade de que Deus usa a sua Lei santa
para levar pecadores a caírem em si e, assim, para ele mesmo.
Capítulo 10
A questão básica da controvérsia antinomiana histórica era se a
Lei Moral de Deus havia sido ou não revogada no Evangelho; e foi
a declaração de que havia sido revogada que deu ao Antinomianismo
o seu nome. Este assunto se apresenta novamente em conexão com
algumas das correntes e populares exposições da doutrina da
santificação.
A resposta à questão sobre a revogação da Lei é dada categori­
camente por Paulo quando escreve, “Anulamos, pois, a lei pela fé?
Não, de maneira alguma! Antes, confirmamos a lei” (Rm 3.31).
Nos versículos precedentes, ele formula a natureza da justificação
de forma tão exata que todas as causas - eficiente, meritória, for­
mal, instrumental e final - são claramente descritas, assim como a
conseqüência disso também é verdadeira, a saber, a exclusão de
toda auto-confiança e vanglória no que o homem faz. Ele, então,
chega à conclusão que declara positiva e negativamente (Rm 3.28).
A declaração positiva é a da justificação “pela fé”; a negativa é que
ela é “independentemente das obras da lei”. Depois que tudo isso é
dito, o apóstolo apresenta uma objeção a fim de refutar a acusação
de que ele estava destruindo a Lei. Ele pergunta, “Anulamos, pois,
a lei?”1 A única resposta que o apóstolo dá a isso é uma exclama-
1 A palavra usada pelo apóstolo foi previamente usada por ele no v. 3 e signi­
fica tornar “vazio” e “sem efeito”.
ção de aversão, “Deus proíba”, sendo que por essa forte expressão
ele deixa claro o quão intolerável essa doutrina deve ser. Paulo não
apenas repudia a insinuação de que estava destruindo a Lei, mas
faz uma afirmação em seu lugar. Ele adiciona, “Antes, confirma­
mos a lei”, usando uma metáfora do fortalecimento de alguma es­
trutura que estava prestes a cair.
Muitos intérpretes têm estado perplexos com o fato de Paulo
poder dizer que confirmava a Lei, especialmente considerando as
muitas passagens em suas epístolas que parecem revogá-la. Uma
sugestão é que Paulo não queria dizer nada mais que, agora, a Lei
é confirmada no sentido de que a verdade à qual testemunhava se
sucedeu (veja v. 21). No entanto, esta interpretação é claramente
insuficiente. Outra sugestão, baseada na visão de que essas pala­
vras referem-se à Lei cerimonial, encontra seu significado no fato
de que as cerimônias e tipos foram cumpridos em Cristo. Essa,
novamente, não é totalmente adequada, porque quando o apóstolo
fala sobre a Lei nessa passagem, ele certamente inclui a Lei moral.
A Lei é confirmada pelo Evangelho de três formas. Em primei­
ro lugar, com relação às suas penalidades: esse aspecto foi confir­
mado em Cristo, que satisfez a justiça de Deus. Em segundo lugar,
com relação aos seus requerimentos de perfeita obediência: isso
também foi cumprido em Cristo.2 Em terceiro lugar, e o que pare­
ce ser o propósito principal de Paulo nessa passagem, a Lei é con­
firmada pelo Evangelho porque o crente obtém graça, em alguma
medida, para cumprir a Lei. O crente, assim, ainda mantém a Lei
em sua parte preceptiva, e pela fé em Cristo é auxiliado a uma vida

2 Esta é uma questão digna de ser pesquisada — se a justiça pela qual um


crente é justificado é, de alguma forma, a justiça da Lei. Dentro do entendi­
mento correto dos termos usados, não pode haver hesitação ao se afirmar isso
positivamente. A doutrina da imputação da obediência ativa de Cristo ao cren­
te é, sem dúvida alguma, um estabelecimento da Lei desta maneira.
de obediência a ela. A verdade que emerge de um entendimento
correto das palavras de Paulo nessa passagem é, então, que a dou­
trina da graça, quando vista em seu grau mais elevado e completo,
não destrói a Lei, mas, antes, a confirma.
No entanto, há uma questão adicional a ser discutida, a saber, se
Cristo, tendo confirmado a Lei na forma já observada, a revogou
no que diz respeito à sua autoridade sobre o crente. Pode parecer
que a Escritura contém algumas contradições com relação a esse
assunto. Por exemplo, na passagem em exame, Paulo nega que seu
ensino “anulava a lei”; porém, em outra passagem, ele expressa­
mente usa a palavra que aqui é negada e fala da lei como “o que se
desvanecia” (2 Co 3.11).
Não há revogação da Lei no Evangelho. Deve-se fazer uma dis­
tinção cuidadosa entre revogação de uma lei e seu abrandamento.
O abrandamento supõe que uma lei ainda se encontra em vigor,
mas a revogação significa que a lei foi totalmente removida. Tal
revogação surge, algumas vezes, da constituição original da lei,
que limita e prescreve o tempo pela qual deve continuar; e, algu­
mas vezes, por meio de uma revogação explícita da mesma pela
autoridade que a fez. Pode ser facilmente provado que houve uma
revogação das leis cerimoniais e judiciais; mas não há revogação
da Lei moral. Naturalmente, é verdade que há alguma mitigação da
aplicação severa da Lei com relação à pessoa do crente; mas isso
não é uma revogação da Lei, visto que Cristo vindicou a Lei em
favor dos pecadores e suportou a sua maldição como o fiador des­
ses pecadores. A transformação causada pela graça de Deus não é
uma mudança na Lei, mas uma transformação nos pecadores com
respeito à Lei.
No entanto, deve-se prestar uma atenção maior ao conceito da
Lei como um pacto. O Pacto da Lei está encerrado agora, mas a
regra da Lei é eterna. Entre os expositores, há alguma diferença de
julgamento sobre a natureza do Pacto da Lei. Alguns entendem a
Lei como um Pacto de Obras e sustentam isso baseados no fato de
que seu aspecto de pacto está concluído; outros o chamam de pac­
to subserviente ao Pacto da Graça, e o consideram como se tivesse
sido introduzido apenas para acentuar a glória da graça de Deus;
há um terceiro grupo que considera o Pacto da Lei uma mistura de
Pacto de Obras e Graça, mas isso dificilmente pode ser tido como
possível, muito menos como verdade. A visão que parece mais
provável como sendo a correta é a que entende que desde a Queda,
Deus nunca entrou em pacto com o homem em outra base que não
a da graça e que, por essa razão, a Lei dada por meio de Moisés
foi, ela mesma, parte do Pacto da Graça. O Pacto da Lei, mesmo
como uma expressão do Pacto da Graça, foi encerrado porque,
embora a essência do primeiro pacto e a do que o substituiu fosse
a mesma, a administração do primeiro é completamente obsoleta.3
Assim, é perfeitamente claro que quem quer que procure vida e
justificação na Lei, abusa da Lei e a transforma num Pacto de Obras
feito pelo homem.
Uma das tentativas de excluir a Lei de Deus da vida do crente é
baseada na declaração ilógica de que a Lei, como tal, é anulada
mas sua substância permanece obrigatória. Mas, como uma obri­
gação pode estar presente sem a presença também daquilo que
essencialmente é lei? A Lei implica obrigação e vice-versa. Visto
que a continuidade da substância da Lei carrega a obrigação, en­
tão, quando um crente não caminha de acordo com sua obrigação,
ele peca. Não concordar com a obrigação é o mesmo que não con­
cordar com a Lei. Novamente, dizer que a substância da Lei obri­
ga, porém não como lei, é uma contradição em termos; porque o
que é a lei se não algo estabelecido por comando e vontade de um
superior? Se isso for forçado a uma aplicação particular, pode-se
3 Isso aparece em Hb 7.18, 19 e 8.7,8-
perguntar se o amor por Deus, que é a substância da Lei, também
não é a vontade de Deus. Pode parecer ilógico declarar que o amor
a Deus deveria obrigar os crentes meramente porque a essência,
em si mesma, é boa, mas que não deveria, de forma alguma, obrigá-
los porque Deus deseja que eles o amem. Além disso, as visões que
condenam a Lei de Deus devem, necessariamente, negar não ape­
nas a natureza obrigatória da Lei, mas até mesmo a vontade de
Deus em requerer que os crentes o amem, visto que a lei nada é
além da vontade daquele que a faz.
A premissa que insiste na revogação da Lei para o crente, rapi­
damente leva a uma conclusão impossível, visto que se a Lei foi
revogada para os crentes sob o Novo Pacto, ela deve ser conside­
rada igualmente revogada aos crentes sob o Antigo. Não há meia
posição nesse argumento, porque ou se nega que houve crentes
sob o Antigo Pacto ou, em havendo, eles estavam livres da Lei
tanto quanto os crentes agora são. Se a Lei for considerada em
toda a administração do Antigo Pacto, então, naturalmente, os cren­
tes sob o Evangelho estão livres dela de uma forma que os crentes
de tempos anteriores não estavam: mas se a Lei for entendida com
relação às suas partes essenciais em dirigir e comandar, então essas
coisas estão ainda igualmente em vigor ou, diferentemente, igual­
mente revogadas a todos os crentes, quer estejam sob o Antigo
Pacto ou sob o Novo. Os argumentos contra a sujeição dos crentes
à Lei sob o Novo Pacto são tão fortes como os que são contra a
sujeição daqueles que estavam sob o Antigo.
A partir de alguns pontos de vista, é possível fazer o que pode
ser chamado de concessões à idéia da revogação da Lei, mas não
se pode insistir muito em que no sentido próprio da palavra, não há
qualquer tipo de revogação. A concessão pode ser feita num as­
pecto puramente verbal porque muitos teólogos reformados fala­
ram da revogação da Lei, embora não com o significado errôneo
ligado à palavra que está sendo agora refutada. Num modo livre de
falar, pode-se admitir também que há uma revogação da Lei aos
crentes com relação à justificação mas, estritamente, a Lei nunca
foi designada por Deus para ser um instrumento de justificação e,
assim, não é propriamente relevante falar até mesmo da mitigação
da Lei. Na verdade, em todos os aspectos da salvação, se a Lei for
“confirmada” como o apóstolo diz, então não pode haver discurso
sobre a sua “revogação” . Uma palavra bem melhor,
consequentemente, é mitigação.
A mitigação da Lei pode ser reconhecida quando se considera o
caminho do crente com Deus. O crente, por exemplo, é liberto da
opressão da obediência rígida, embora não deva haver equívoco
aqui, uma vez que a libertação de Cristo não significa que o crente
não esteja mais sob a obrigação de render uma obediência perfeita.
Deve ser asseverado que é pecado o crente não obedecer à Lei de
Deus até a sua extrema perfeição e que cada crente peca com rela­
ção a isso; todavia, a misericórdia de Deus em Cristo é tal que a
obediência do crente à Lei, mesmo sendo incompleta e imperfeita,
é aceita por Deus pelos méritos de Cristo. Essa é uma mitigação
que surge unicamente do fato da graça em Cristo, porque a Lei,
estritamente considerada, ainda condenaria o pecador.
Essa mitigação também pode ser vista com relação ao modo
pelo qual a Lei não mais provoca o pecado no crente como o faz
com o ímpio. Na epístola aos Romanos, o apóstolo lamentou-se
do fato de que a Lei de Deus tinha o efeito amargo de fazê-lo pior
(Rm 7.8). Quanto mais espiritual e sobrenatural era a Lei, mais seu
coração carnal e corrupto se ressentia dela: assim, quanto mais a
Lei represava a torrente de concupiscência pecaminosa, mais alto
ela se erguia. Mas essa experiência dolorosa não deve ser atribuída
à Lei, mas à corrupção de Paulo. Não é o brilho da luz que ofusca
a vista ou cega os olhos, porque a luz foi especialmente criada por
Deus para eles, mas a debilidade e fraqueza dos olhos que não são
capazes de suportar tal brilho. A experiência da Lei no coração do
crente pode ser ilustrada a partir da natureza. Assim como os espi­
nhos cortados brotam novamente de forma mais abundante, assim
acontece com a corrupção cortada pela Lei, porque ela permanece
fixa e enraizada no coração do pecador. No piedoso, no entanto,
porque há uma nova natureza e um princípio de amor e prazer na
Lei de Deus criado dentro dele, sua corrupção não aumenta e ger­
mina por meio da Lei, mas é subjugada e dominada. O poder
provocativo da Lei é assim mitigado pelo efeito da graça dentro do
coração.4
Embora a Lei seja mitigada ou afrouxada com relação aos cren­
tes nas formas agora observadas, deve-se afirmar, todavia, que a
Lei continua perpetuamente como uma regra de vida para eles. Em
apoio a esse argumento, deve ser observado, primeiramente, que
as diferentes frases que a Escritura usa a respeito da Lei cerimonial
e de sua revogação5 não são em parte alguma aplicadas à Lei mo­
ral. Nunca se disse que a Lei moral foi modificada ou se tomou
obsoleta ou foi revogada, expressões essas que denotam uma mu­
dança na Lei; mas quando a Escritura fala da Lei moral, é dito que
o crente está “morto” para ela e que é “redimido” da sua maldição,
expressões que implicam uma mudança no crente, não na Lei.
Uma segunda consideração é que a santidade requerida do crente
é nada menos do que a conformidade com a Lei. É perfeitamente
claro que quando o apóstolo falou contra a Lei, não estava falando
dela como a regra que obriga o crente à sua obediência. Por exem­
plo, no escrito aos Gálatas, ele claramente adverte aqueles que
desejam ser justificados de sua condição desesperada pela Lei (G1
4 Na experiência do totalmente não-regenerado, deve ser notado que não é
apenas o mandamento da Lei que incita o mal em seu coração, mas também as
promessas do Evangelho. A diferença do efeito depende, conseqüentemente,
da diferença nas pessoas.
5 Ver Ef 2.14, 15; Hb 7.12, 18 e 8.13.
5.4), mas imediatamente prossegue para persuadi-los a não usa­
rem a liberdade que Cristo dá como uma ocasião para a carne, e dá
a sua razão, “Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a
saber: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (G15.14). O após­
tolo está se contradizendo no mesmo capítulo? Ele os está persua­
dindo a obedecerem a Lei e, ao mesmo tempo, reprovando-os por
desejarem estar sob ela? Certamente que não; as circunstâncias
eram diferentes. Quando eles desejaram buscar justificação pela
Lei, então ele os advertiu; mas quando eles foram negligentes quanto
à sua obrigação de obedecer a Lei, ele os repreendeu.
Além disso, a desobediência à Lei ainda é pecado para o crente.
Se há pecado, também deve haver Lei, porque o pecado é a trans­
gressão da lei (1 João 3.4). Quando Davi cometeu adultério, ou
quando Pedro negou a Cristo, não era pecado neles? Se sim, a
razão do adultério de Davi ser pecado não é o fato de ser contra
um mandamento particular? É evasivo dizer que é pecado somente
contra o amor de Cristo porque, então, não haveria pecados mas
pecados de indelicadeza ou ingratidão. O amor de Cristo pode, de
fato, ser a razão suprema para se obedecer aos mandamentos de
Deus, mas isso não impede que o próprio mandamento obrigue o
crente como a expressão da vontade daquele que deu a Lei.
Finalmente, é óbvio que há muitas razões pelas quais a Lei ceri­
monial tinha de ser revogada, razões que não se aplicam, de manei­
ra alguma, à Lei moral. Em primeiro lugar, o objeto da lei cerimo­
nial não era algo perpétuo, nem era, em si mesmo, verdadeira san­
tidade. Circuncidar e oferecer sacrifícios não eram, em si mesmos,
atos bons e santos, assim como deixar de praticá-los não é pecado;
enquanto a substância da Lei moral é perpetuamente boa e a falha
em efetuá-la é, necessariamente, pecado. Pode-se pensar que para
Deus era o mesmo, um homem ser adúltero ou casto, circuncidado
ou não? Novamente, a Lei cerimonial era típica e prenunciava o
Cristo que haveria de vir; mas agora que ele veio, não há utilidade
para essas cerimônias. Por último, os judeus e os gentios deveriam
ser unidos num corpo, com nenhuma diferença entre eles; e para
que isso fosse efetuado, era necessário que a parede de divisão das
cerimônias fosse derrubada; mas essa circunstância não afeta a per­
manência da Lei moral.
É necessário que se preste atenção à Escritura com relação às
passagens que parecem indicar que a Lei moral deveria resistir so­
mente por um tempo limitado da mesma forma que a Lei cerimoni­
al. A primeira dessas passagens para consideração é a declaração,
“A lei e os profetas até João”,6 palavras que algumas vezes são
entendidas como se significassem que a Lei deveria continuar so­
mente até o tempo de João. Essa passagem, naturalmente, não for­
nece provas de forma alguma de que a Lei deveria ser revogada
quando João Batista surgisse; para que ninguém entendesse de for­
ma errônea suas palavras, o Senhor imediatamente adiciona, “E
mais fácil passar o céu e a terra do que cair um til sequer da lei” (Lc
16.17). O significado, portanto, é que a Lei deveria cessar no que
prefigurava a Cristo, isto é, no seu aspecto cerimonial e típico. Por
essa razão, a Lei e os profetas são colocados juntos, concordando
num aspecto geral, a saber, profetizar Cristo e tipificá-lo.
A próxima passagem escriturística a ser considerada é a famosa
sentença tão usada nesta controvérsia, “pois não estais debaixo da
lei e sim da graça” (Rm 6.14). Na exposição dessas palavras, deve-
se perguntar em que sentido Paulo está contestando a Lei e qual é
o sujeito próprio em discussão. Essa inquirição traz de volta a ques­
tão levantada por alguns fariseus crentes em Jerusalém que força­
ram a necessidade da circuncisão a ponto de colocaram Moisés e
Cristo em pé de igualdade (At 15). Parece que, a despeito da deci­
são do conselho que condenou a opinião, houve muitos que persis­
tiram na exigência da circuncisão, e isso, por sua vez, necessitou
6 Lc 16.16 e ver também Mt 11.13.
ser refutado pelo apóstolo como uma falsa visão do Evangelho.
Como foi observado em um capítulo anterior nesta discussão, em­
bora a manutenção da Lei cerimonial fosse a causa da controvérsia
em primeiro lugar, Paulo agora estende seus argumentos para in­
cluir a Lei moral, por causa da suposição difundida entre os judeus
de que a observação da Lei moral sem Cristo era suficiente para a
salvação. No entanto, é claro que o apóstolo está questionando a
Lei não em sua própria natureza e glória, mas somente quanto ao
abuso judaico dela. O argumento se transfere da Lei cerimonial
para a Lei moral por causa do falso raciocínio do judeu. Se os
judeus podiam se persuadir de que o desempenho exterior da Lei
cerimonial era suficiente para torná-los aceitáveis a Deus, muito
embora vivessem em desobediência total à Lei moral, muito mais
poderiam se iludir sobre a sua aceitação diante de Deus quando
viviam uma vida exteriormente conformada à Lei moral! É nesse
contexto que o apóstolo parece falar coisas derrogatórias da Lei,
porque os judeus a consideravam sem Cristo; da mesma forma como
ele chama as cerimônias de elementos desprezíveis quando, natu­
ralmente, sabia que elas eram sinais de uma graça evangélica.
É extremamente importante observar que o apóstolo usa a pala­
vra “lei” em diferentes sentidos, uma vez que a falha em discernir
essas diferenças tem sido a causa de muito mal-entendido. Na mai­
oria das passagens onde a Lei parece ser abolida, é considerada em
um dos dois sentidos. Algumas vezes, é usada em forma de
sinédoque, na qual o todo é colocado por uma parte, isto é, a pala­
vra “lei” é usada somente para a parte que condena. Um exemplo
disso é a passagem onde o apóstolo diz, “Contra estas cousas não
há lei” (G1 5.23), e fala como se nada houvesse na lei além de
condenação. Em outras ocasiões, a palavra “lei” é usada para o
ministério de Moisés, como uma dispensação que era muito inferi­
or ao m inistério do Evangelho (ver G1 4.25; 5.1-4).
Consequentemente, antes que qualquer conclusão possa ser tirada
sobre a visão de Paulo quanto à abolição da Lei, a primeira tarefa é
definir o sentido no qual o termo foi usado.
Outra tarefa importante com relação a isso é determinar os dife­
rentes significados de frases como, “sem a lei”, “na lei”, “da lei”, e
“sob a lei”. “Sem a lei” deve ser entendido de duas formas: primei­
ro, um homem está “sem a lei” no sentido de não ter o conheci­
mento da mesma; assim, os gentios estão “sem a lei” (Rm 2.12); e
segundo, um homem está “sem a lei” quando não tem a experiên­
cia do poder acusador e apavorante da Lei (Rm 7.9). Oposto à
frase “sem a lei” está a expressão “na lei” (Rm 2.12) e, nessa pas­
sagem, significa aqueles que têm o conhecimento da Lei mas pe­
cam contra ela. A frase “da lei” serve muito ao mesmo propósito
(Rm 4.14), o que, algumas vezes, eqüivale a “da circuncisão” (Cl
4.11; Tt 1.10), a saber, aqueles que foram iniciados no ministério
de Moisés. O apóstolo também usa outra frase, “mediante a lei”
(G12.21), significando mediante as obras realizadas em conformi­
dade com a Lei; e é nesse sentido que o apóstolo argumenta que a
justiça não se dá “mediante a lei”. No entanto, toda a dificuldade
da presente controvérsia recai sobre a frase, “sob a lei”, e é a ela
que será dada uma atenção especial.
Naturalmente é possível para o crente colocar-se “sob a lei” de
uma forma voluntária. Cristo se colocou sob a Lei dessa forma e
Paulo também. O apóstolo se refere a isso quando diz que tomou-
se para alguns “como se eu mesmo assim vivesse” (1 Co 9.20),
embora nesse caso ele estivesse preparado para colocar-se sob a
Lei cerimonial. Paulo também se descreve como “na lei de Cristo”
porque embora um homem piedoso não esteja propriamente “sob a
Lei”, no entanto está “na lei” e ele adiciona as palavras “de Cristo”,
para que ninguém pudesse pensar que ele falava de toda a Lei,
incluindo a parte cerimonial que foi abolida por Cristo. Nesse sen­
tido bem explicado, então, um homem piedoso pode estar sob a
Lei.
A que ponto as frases “não sob a lei” e “não sob a maldição”
podem ser equiparadas? Há um sentido no qual elas parecem ter o
mesmo significado, como na questão, “Havemos de pecar porque
não estamos debaixo da lei e sim da graça?” (Rm 6.15). No entan­
to, como Paulo aqui está falando de santificação, tanto nesse capí­
tulo quanto no seguinte, parece preferível que a frase “sob a lei”
tenha o mesmo significado de “sob o pecado”, uma vez que o após­
tolo, falando de si mesmo como carnal, diz que a Lei despertou
nele toda sorte de concupiscência (Rm 7.8). Isso, naturalmente, é a
obra da Lei em cada homem não regenerado; assim, quanto mais a
Lei é aplicada nele, mais se manifesta a sua corrupção. O argumen­
to do apóstolo, então, é este: “Não deixe o pecado reinar em você,
porque agora você não está sob a Lei que incita o pecado e o
provoca em você, mas sob a santificação e a graça que cura.”
A terceira passagem que parece ensinar que a Lei moral deveria
sobreviver apenas por um período limitado de tempo é a que Paulo
diz, “Assim, meus irmãos, também vós morrestes relativamente à
lei” (Rm 7.4). O apóstolo explica o que é estar sob a Lei por meio
de uma analogia de uma mulher casada que está ligada ao seu ma­
rido enquanto este viver, mas que, ao morrer o marido, fica
desobrigada do compromisso. Na exposição dessa analogia, há al­
gumas diferenças entre os comentaristas mas a seguinte parece ter
o significado. O “marido” anterior que a alma tinha não era a Lei
moral, mas o pecado - o qual, por meio da Lei, provoca as
corrupções dentro da alma. Quando o crente é regenerado, a alma,
então, está casada com outro, isto é, Cristo. É importante também
observar que ao elaborar a aplicação dessa analogia, o apóstolo
não diz que a Lei está morta, mas que os crentes se “tornaram
mortos”, uma vez que, naturalmente, a Lei nunca esteve tão viva
como no piedoso que constantemente a obedece e vive de acordo
com ela. Adiante nessa passagem, Paulo torce o pensamento e diz
“estamos mortos para aquilo a que estávamos sujeitos” (Rm 7.6).
Aquilo a que ele se refere como tendo morrido é interpretado por
muitos comentaristas como sendo o pecado. Tendo sido morto o
pecado - por Cristo - o poder de condenar e escravizar da Lei
chega ao fim e o crente se toma “casado” com outro.
Logo, nada há na Escritura que dê base para a suposição de que
os crentes não têm obrigação para com a Lei de Deus e nem rela­
ção com ela. Toda a representação da vida cristã nas epístolas pro­
vam o contrário e clamam pela obediência amorosa dos crentes à
santa Lei.
Capítulo 11
A Lei como um Pacto
Não se pode alcançar uma concepção clara do lugar da Lei no
plano de salvação sem o entendimento do significado da Lei na sua
forma pactuai. A Lei foi dada dessa forma quando apresentada ao
povo no Monte Sinai: ela carrega o nome de pacto e possui tam­
bém as propriedades reais de um pacto.
O nome “pacto” foi fado à Lei Mosaica em várias passagens da
Escritura. Moisés lidou com aqueles que cometeram iniqüidade
como “transgredir o seu pacto”_[ou “sua aliança”] (Dt 17.2), pala­
vras que segundo o contexto se aplicam aos Dez Mandamentos. O
cativeiro assírio de Samaria é dito como tendo acontecido “por­
quanto não obedeceram à voz do SENHOR, seu Deus; antes viola­
ram a sua aliança e tudo quanto Moisés, servo do SENHOR, tinha
ordenado” (2 Re 18.12). A natureza do pacto da Lei é colocada de
forma ainda mais expressa por Salomão na dedicação do Templo,
quando diz, “E nela constituí um lugar para a arca, em que estão as
tábuas da aliança que o SENHOR fez com nossos pais”.1 Natural­
mente, se os termos devem ser usados de forma exata e estrita, os
livros de Moisés e dos profetas não podem ser chamados de Anti­
go Pacto como o pode a Lei que foi dada no Monte Sinai.

1 2 Cr 6.11, e ver Jr 11.2-4.


A Lei tem as propriedades reais de um pacto, a saber, um acor­
do mútuo e uma estipulação de ambos os lados. Essas são total­
mente mostradas no relato bíblico da concessão da Lei no Monte
Sinai (Êx 24.3-5). Nesse registro, são vistos os seguintes elemen­
tos que pertencem a um pacto. Em primeiro lugar, há o próprio
Deus expressando seu consentimento e vontade de ser seu Deus,
se eles guardassem os mandamentos que lhes estavam sendo entre­
gues; em segundo lugar, há o consentimento total do povo e seu
desejo pronto em obedecer aos mandamentos; em terceiro lugar,
porque os pactos costumavam ser escritos por memorial, Moisés é
visto escrevendo os termos num livro; e, em quarto lugar, porque
os pactos costumavam ser confirmados por meio de sinais visíveis,
especialmente pela matança de animais e oferta dos mesmos como
sacrifício, logo isso foi feito, e metade do sangue foi espargido
sobre o povo para mostrar a sua pactuação voluntária. Esse pacto
foi renovado nas planícies de Moabe, em cujo relato é expressa­
mente dito que a nação se levantou para entrar em pacto com Deus
a fim de que ele pudesse estabelecê-los como um povo para si
mesmo e que pudesse ser Deus para eles.2 De tudo isso, é claro
que a Lei foi dada como um pacto.
As dificuldades para o intérprete não se encerram quando é pro­
vado que a Lei é um pacto, uma vez que a maior dificuldade de
todas é determinar que tipo de pacto ela é. Já foi observado que
algumas vezes se entende que ela seja um Pacto de Obras, em ou­
tras um pacto combinado e em outras um pacto subserviente; mas
quando todas essas visões são examinadas, verifica-se que o me­
lhor é considerá-la como um Pacto de Graça. Mas, em que sentido
a Lei é um Pacto de Graça?
Uma explicação é que ela era verdadeiramente um Pacto de
Graça, mas que os judeus, pelo seu entendimento corrupto, a trans­
2 Dt 29.10-13, e ver também Dt 26.17.18.
A Lei Como um Pacto 101

formaram em um Pacto de Obras e, assim, a fizeram contrária a


Cristo. Segundo essa visão, é dito, conseqüentemente, que quando
Paulo questiona a Lei, como oposta à graça, ele assim o faz, não
com relação ao que a Lei verdadeiramente é, mas apenas ao modo
como era falsamente considerada pelos judeus, que suscitaram uma
contradição onde não havia nenhuma. Outra explicação entende
que a Lei seja um Pacto de Graça, mas muito obscuramente, e que
o Evangelho e a Lei possuem a mesma essência, diferindo apenas
como o fruto do carvalho difere da sua árvore. Ainda outro argu­
mento é que a Lei pode ser considerada tanto num sentido amplo,
compreendendo toda a doutrina e promessas entregues no Monte
Sinai, ou de forma mais limitada como uma regra abstrata de justi­
ça que oferece vida sob a condição da obediência perfeita. Consi­
derada no primeiro sentido, a Lei era um Pacto de Graça; mas no
último, quando separada da administração Mosaica da mesma, não
era de graça, mas de obras.
O fato de a Lei, considerada no contexto total da sua adminis­
tração Mosaica, ser um Pacto de Graça, pode ser provado por
meio de muitos argumentos sólidos.
Primeiramente, a Graça é vista na relação dos grupos pactuais.
Quem está pactuando é Deus de um lado e os israelitas de outro.
Deus lidou com os israelitas, naquele tempo, como seu Deus e Pai
e, por essa razão, ele se considera como um deles. Paulo fala sobre
os “israelitas. Pertence-lhes a adoção e também a glória, as alian­
ças, a legislação, o culto e as promessas” (Rm 9.4). A não ser que
esse pacto aludido fosse um Pacto de Graça, não poderia de forma
alguma incluir termos como esses.
Em segundo lugar, as bênçãos do pacto são facilmente reconhe­
cidas como bênçãos de graça, uma vez que entre elas está o perdão
de pecados, ao passo que no Pacto de Obras não há lugar para
arrependimento ou perdão. No segundo mandamento, Deus é des­
crito como aquele que mostra misericórdia a milhares; mas a “lei”,
estritamente considerada, não aceita aqueles que se humilham em
contrição, antes amaldiçoa a cada um que não persiste em todas as
coisas comandadas. Deus se proclama nesse pacto como gracioso
e paciente, que mantém a misericórdia para com milhares e perdoa
a iniqüidade (Êx 34.6,7); e assim ele faz por ocasião da renovação
das duas tábuas da Lei; ao passo que se o povo de Israel tivesse
sido estritamente mantido dentro da Lei, em seu requerimento de
perfeita obediência e sem concessão para qualquer falha, eles teri­
am perecido sem qualquer esperança.
Novamente, que a Lei era um pacto de graça, não de obras,
pode ser visto a partir da ratificação exterior do pacto. O selo visí­
vel que ratificou o pacto foi o sacrifício e o espargir do sangue
sobre o povo. Essa cerimônia apontava para Cristo, porque a re­
conciliação final com o pecador não poderia ser feita pela media­
ção de qualquer homem mortal. A mediação de Moisés também
deve ser entendida tipicamente, assim como os sacrifícios. Se esse
pacto foi um Pacto de Obras, no entanto, não haveria necessidade
de um mediador, fosse ele típico ou real. Se Cristo, nesse caso, é o
Mediador da Lei como um pacto, a distinção antinomiana que faz
com que a Lei Sinaítica seja algo “na mão de Moisés” em oposição
a algo “na mão de Cristo” não pode ser sustentada, uma vez que é
claro que no Monte Sinai, a Lei não estava em outra mão a não ser
a mão de Cristo.
Finalmente, a graça do Pacto Mosaico deve ser vista na sua
identidade com o Abraâmico. Quando Deus deu essa lei aos
israelitas, ele a usou como um argumento do seu amor e graça para
com eles, e assim lembrou o que havia prometido a Abraão. Por
intermédio de Moisés, disse a eles, “Será, pois, que, se, ouvindo
estes juízos, os guardares e cumprires, o SENHOR, teu Deus, te
guardará a aliança e a misericórdia prometida sob juramento a teus
pais” (Dt 7.12). Mas se a Lei fosse um Pacto de Obras, então Deus
A Lei Como um Pacto 103
teria revogado e quebrado o seu pacto e promessa de graça que
havia feito com Abraão e sua semente. Consequentemente, quan­
do Paulo opõe Lei e promessa, fazendo com que a herança venha
pela promessa e não pela Lei (G13.18), deve-se entender que ele
estava falando da Lei no sentido estrito da palavra; porque é claro
que na administração desse Pacto de Lei, Moisés considerou a pro­
messa e as fez idênticas.
Não é completamente inesperado que surjam objeções a tudo
isso. Elas são feitas a partir tanto das passagens da Escritura onde
a Lei e a fé estão tão diretamente opostas, quanto das passagens
onde é dito que a Lei é um ministério de morte e para executar a ira
(Rm 4.14; 10.3-8; G13.18). Mas, em resposta a essas objeções, as
seguintes idéias devem ser consideradas. A primeira é que se essas
passagens fossem interpretadas rigidamente dessa forma, então elas
também implicariam que não houve graça, ou fé, ou qualquer coi­
sa de Cristo entregue ao povo de Israel; ao passo que está registra­
do que eles tiveram a adoção, mesmo que num estado de escravi­
dão. Em segundo lugar, deve ser lembrado que assim como é dito
que a Lei produz morte, também é dito que o Evangelho é o sabor
da morte. De fato, diz-se que os homens não teriam tido pecado se
Cristo não tivesse vindo e que aqueles que desprezaram a Cristo
devem receber um julgamento mais severo do que aqueles que des­
prezaram a Lei de Moisés. O ministério da morte - para manter a
frase do apóstolo - se dava, então, pela corrupção do homem: não
pertencia essencialmente à Lei. Novamente, não devemos esque­
cer que Paulo diz essas palavras aparentemente derrogatórias tam­
bém sobre a Lei cerimonial, porém todos reconhecem que a Lei
cerimonial foi uma expressão da graça. Por último, deve ser obser­
vado que muito do que essas passagens contêm é verdadeiro ape­
nas num sentido relativo, isto é, de acordo com a interpretação dos
judeus que acolheram a Lei sem Cristo, transformando-a em letra
mortal. As palavras derrogatórias do apóstolo devem, por essa ra­
zão, ser entendidas apenas com relação à Lei erroneamente sepa­
rada de Cristo e colocada em oposição à sua graça.
Muito do pensamento sobre a relação entre Lei e Evangelho
será transformado se for entendido corretamente que a Lei, como
um pacto, foi uma parte integral do Pacto inviolável de Graça que
Deus fez com seu povo por intermédio de Abraão.
Capítulo 12
Embora a Lei dada por Deus aos israelitas fosse um Pacto de
Graça, há, todavia, um sentido no qual a Lei e o Evangelho podem
ser considerados opostos um ao outro. Isso é claramente represen­
tado no diálogo que Paulo teve consigo mesmo quando escreveu:
“Onde, pois, a jactância? Foi de todo excluída. Por que lei? Das
obras? Não; pelo contrário, pela lei da fé” (Rm 3.27). Contudo, an­
tes que a oposição precisa entre a Lei e o Evangelho possa ser mos­
trada, há dois princípios fundamentais — já observados de passagem
— que devem ser colocados como base para essa discussão.
Em primeiro lugar, as bases da comparação devem ser equiva­
lentes. A Lei e o Evangelho podem ser comparados um ao outro
de duas maneiras. De um lado, eles podem ser comparados unica­
mente com relação à graça que Deus ministrou sob o Antigo Pacto
e sob o Novo e, então, eles diferem apenas em grau, uma vez que
aqueles que estavam sob a Lei, gozaram verdadeiramente da graça
e do Espírito de Deus. Por outro lado, a Lei pode ser considerada
como se consistisse apenas de mandamentos e ser, então, compa­
rada ao Evangelho em toda a sua abundância de misericórdia e
graça. Este segundo método, naturalmente, é uma comparação
desigual; porque se a doutrina ou a letra do Evangelho fosse con­
siderada sem a graça de Deus, poderia se dizer que essa letra mata­
ria tanto quanto a letra da Lei.
Em segundo lugar, nessa pesquisa é importante manter de for­
ma clara em mente os diferentes usos da palavra “lei”, porque se a
Lei for considerada puramente em seu aspecto de comando e ao
mesmo tempo for entendida como um Pacto de Graça, haverá uma
confusão entre obras e fé. No entanto, se a “lei” for considerada
num sentido mais amplo e extenso, então essas oposições não sur­
girão. Também deve ser observado que assim como a palavra “lei”
pode ser considerada dessas duas maneiras, também o pode a pala­
vra “evangelho”. O Evangelho pode ser considerado amplamente,
como quando significa toda a doutrina que os apóstolos deveriam
pregar;1 ou ainda pode ser considerado de forma mais estrita, como
na mensagem do anjo, “Não temais; eis aqui vos trago boa-nova de
grande alegria” (Lc 2.10). O contraste entre a Lei e o Evangelho
pode assim ser mostrado primeiramente em conexão com o senti­
do mais amplo das palavras e, depois, no mais limitado.
Quando a Lei e o Evangelho são expostos no sentido mais am­
plo das palavras, verifica-se que algumas comparações são falsas e
outras verdadeiras. Por exemplo, é falso dizer que aqueles que vi­
viam sob a Lei nada tinham além de bênçãos temporais e terrenas.2
Isso é baseado na suposição de que as bênçãos espirituais foram
prometidas apenas no Antigo Testamento mas nunca gozadas por
ninguém até o Novo Testamento. Consequentemente, é argumen­
tado que o Evangelho começou com Cristo e negado que a pro­
messa de Cristo possa ser chamada de Evangelho. Isso é falso por­
que embora essa promessa seja algumas vezes chamada de pro­
messa feita aos pais (At 7.17; 13.32), ao mesmo tempo é também
chamada de Evangelho (Rm 1.2; 10.14,15). Há também passagens
claras da Escritura que refutam essa opinião, tais como as menções
de Paulo a Abraão e Davi como exemplos de justificação e remis­
1Por exemplo, em Mc 16.15.
2 Como acima, p. 11.
são de pecados (Rm 4.1-12), e onde ele considera os israelitas como
tendo gozado da mesma realidade espiritual e bênção nos seus sa­
cramentos que o cristão (1 Co 10).
As verdadeiras diferenças entre a Lei e o Evangelho, considera­
dos no sentido mais amplo, são quatro. A primeira dessas é que a
diferença entre a Lei e o Evangelho é acidental, não essencial ou
substancial. Isso significa que a divisão do Pacto em Antigo e Novo
não é como a divisão dos gêneros em suas espécies opostas, antes
é uma divisão de assunto, de acordo com suas muitas administra­
ções acidentais. Os teólogos luteranos se opõem aos calvinistas
nisso e sustentam que o Pacto dado por meio de Moisés era um
Pacto de Obras e, assim, diretamente contrário ao Pacto da Graça.
Eles reconhecem, na verdade, que os pais foram justificados por
Cristo e tiveram o mesmo modo de salvação que os crentes cris­
tãos, mas fazem com que o Pacto de Moisés seja um Pacto de
Obras adicionado à promessa, que apresenta uma condição de jus­
tiça perfeita aos israelitas para que eles pudessem ser convencidos
de sua insensatez na sua hipocrisia. Mas, como já foi demonstrado,
o Pacto Mosaico foi um Pacto de Graça e o entendimento correto
das palavras “lei” e “evangelho” resolve facilmente o problema no
qual os luteranos tropeçaram. Não pode haver dúvida de que os
israelitas espiritualmente inclinados não fiavam-se nos sacrifícios
ou nos sacramentos mas, por meio da fé, realmente experimenta­
ram Cristo neles, assim como o cristão.
A segunda diferença entre a Lei e o Evangelho está nos graus
de clareza na revelação das realidades espirituais. A luz no Antigo
Pacto é comparada à da noite e nolSTovo, à luz do sol em um
glorioso amanhecer (2 Pe 1.19). Há uma diferença na plenitude em
que essas coisas celestiais foram apresentadas nos pactos respecti­
vos, mas nenhuma diferença nas mesmas. Essa diferença de grau
entre a Lei e o Evangelho aparece também na medida da graça. E
com referência a essa diferença que a Escritura fala como se aque­
les sob o Antigo Testamento não tivessem tido nenhuma, mera­
mente porque não houve um derramamento abundante do Espírito
de Deus sobre eles. Houve, naturalmente, pessoas excepcionais
como Abraão e Davi, que experimentaram graus excelentes de gra­
ça, mas isso não estava de acordo com a dispensação usual da
graça de Deus naquele tempo. A diferença em grau de revelação
espiritual e graça entre o Antigo Pacto e o Novo é comparável à
maneira em que - pegando emprestado e adaptando uma analogia
de Paulo - “uma estrela difere da outra em glória”, ambas são glo­
riosas, mas uma é mais formidável do que a outra.
Uma terceira diferença é que a condição dos crentes sob a Lei
tem a aparência de ser mais servil: sua condição é semelhante à dos
filhos da escrava (G14.30). A Lei tinha um aspecto mais proemi­
nente no primeiro pacto, daí Agostinho fazer com que o temor e o
amor sejam a diferença entre eles. Na Lei, Deus encontra o homem
pecador com ira, mas no Evangelho, ele encontra o homem como
o pai no retomo do filho pródigo. Essa diferença de condição é
referida na passagem do Novo Testamento onde é feito o contraste
entre o Monte Sinai e o Monte Sião (Hb 12.18-29). No entanto, é
fácil cometer erros aqui, porque os israelitas devem ser considera­
dos de duas formas: em um aspecto de sua relação com Deus, eles
ocupam a posição de servos numa casa, e no outro, eles são vistos
como filhos menores. Por essa razão, isso significa que eles não
foram totalmente excluídos do Espírito de adoção, uma vez que
Paulo é enfático em dizer que as promessas e a adoção verdadeira­
mente pertenciam a eles.
Uma quarta diferença entre a Lei e o Evangelho está na sua
permanência. A forma Mosaica do Pacto da Graça deveria perma­
necer apenas até que Cristo, a plenitude, viesse: então, assim como
o andaime é arriado quando a casa está construída, assim todas
aquelas ordenanças exteriores foram abolidas quando o próprio
Cristo veio. A tocha é supérflua quando o sol brilha; um disciplinador
não é necessário para aqueles que alcançaram a perfeita maturida­
de; o leite não é apropriado para aqueles que vivem de carne sóli­
da. A palha preserva o milho mas quando este é colhido, a palha é
jogada fora; quando o fruto surge, a flor murcha.
Consequentemente, é nesse aspecto que a Lei tomou-se antiquada
e deveria ser substituída por um pacto melhor. As bênçãos da Lei
Mosaica são chamadas de “sombra” (Hb 10.1) e, embora uma som­
bra mostre a presença de um homem, não vive ou come ou fala. Da
mesma forma, embora os sacrifícios fossem uma sombra de Cristo,
eles não podiam exibir os benefícios reais que viriam com eEle.
Falta agora considerar as diferenças entre a Lei no sentido mais
limitado, o que requer a obediência exata e promete a vida eterna
em nenhum outro termo, e o Evangelho, similarmente considera­
do, como a proclamação simples de Cristo e de sua misericórdia
salvadora ao pecador penitente.
A primeira diferença é que a Lei, em alguma medida, se toma
conhecida pela luz natural e está, por essa razão, em conformidade
com a consciência natural. “Em alguma medida” deve ser dito por­
que há muito da obrigação da Lei que agora é desconhecido à cons­
ciência natural; todavia, as obrigações exteriores são certamente
conhecidas e, dessa maneira, assim como as suas verdades são
discernidas pela luz natural, assim a vontade do homem concorda
com elas como algo que é o certo. No entanto, como Evangelho é
diferente porque a própria verdade deste deve ser totalmente reve­
lada por Deus e nenhum discernimento natural no mundo pode
jamais perceber ou cogitar a reparação maravilhosa da justificação
e da salvação por intermédio de Cristo. Além disso, assim como o
Evangelho está, desse modo, acima do conhecimento, tanto mais o
coração é oposto a ele. Por isso, é possível ver a razão pela qual é
tão difícil para um pecador crer e, mesmo quando oprimido pela
culpa, acha tão difícil ser persuadido a colocar o seu fardo sobre
Cristo. A razão é que não há nada na consciência natural do ho­
mem que o ajude nessa tarefa. Persuadir um homem contra o as­
sassinato, o roubo e o adultério é algo a que a consciência natural
dá o seu suporte, mas persuadi-lo a crer está completamente acima
da natureza. É por essa razão também que, por natureza, os ho­
mens buscam ser justificados pelas obras que praticam e a justifica­
ção pela fé é repugnante a eles.
A segunda diferença está em seu objeto. A Lei demanda uma
justiça perfeita e não admite nada menos do que isso, mas o Evan­
gelho alcança o pecador em sua necessidade e concede perdão por
meio de Cristo. Esta, naturalmente, é a principal diferença e é uma
diferença na qual eles nunca podem ser unificados. Algumas tenta­
tivas foram feitas para obscurecer essa grande e importante dife­
rença, ofuscando a glória do Evangelho pela reintrodução da dou­
trina da justificação pelas obras de outra forma, mas Paulo estabe­
lece a contradição direta de que se é pela fé, então não é pelas
obras. Ele não faz distinção entre obras da natureza e obras da
graça ou entre obras da graça perfeitas e imperfeitas, mas fala em
caráter absoluto e, desse modo, também exclui a visão um tanto
sutil que faz com que a fé justifique como se fosse uma “obra”.
A terceira diferença surge da maneira como as bênçãos são ob­
tidas. A vida eterna por meio da Lei seria obtida por via de débito
e justiça (Rm 4.4). Não se deve supor, naturalmente, que Adão, no
seu estado de inocência, pudesse ter merecido totalmente isso por
meio das mãos de Deus, ou que Deus estritamente tenha-se torna­
do devedor do homem, visto que Adão era dependente de Deus
para tudo, mas em algum sentido, seria verdadeiro que a vida eter­
na se desse via justiça e a jactância não teria sido excluída. Mas no
Evangelho, tudo pertence à graça por meio de Cristo, de forma
que o coração contrito e quebrantado nunca pode prezar suficien­
temente a graça e a bondade de Deus nele.
A quarta diferença diz respeito ao sujeito. A Lei, estritamente
considerada, é apenas para aqueles que têm uma natureza perfeita
e justa: consequentemente, é um Pacto de Amizade, sem qualquer
necessidade de um mediador. Há, de fato, um bom uso no qual ela
pode ser inserida induzindo-a sobre os homens hipócritas, para
conduzi-los por amor a si mesmos; para os pecadores endurecidos
a fim de que seus corações sejam quebrantados e, além disso, para
os piedosos também, para ensiná-los o modelo justo de acordo
com o qual devem viver; mas com relação à justificação por ela,
ninguém pode tirar vantagem a não ser aqueles que são perfeita­
mente santos. No Evangelho é diferente porque, aqui, a mensagem
é dada ao pecador de coração contrito.
Por último, a Lei difere do Evangelho na forma. A Lei é condi­
cional; mas o Evangelho é absoluto. Algumas vezes se levanta a
questão sobre se o Evangelho é absoluto ou não e se tem obriga­
ções ou ameaças. O significado dessa questão não é quanto ao
Evangelho ser tão absoluto que não exija fé como condição ou tão
absoluto que exclua todo o arrependimento e santidade, mas se o
Evangelho promete a vida eterna ao homem em reconhecimento a
qualquer valor ou disposição no pecador ou apenas pela fé que
compreende Cristo. A resposta é que se o Evangelho for conside­
rado amplamente, isto é, para todo o ensino de Cristo e dos após­
tolos, não pode ser negado que eles insistiram na obrigação da
mortificação e santificação, até mesmo adicionando uma advertên­
cia àqueles que negligenciassem essa obrigação; mas se o Evange­
lho for considerado no seu sentido simples de proclamação da sal­
vação, então ele assegura o perdão dos pecados por meio do san­
gue de Cristo à consciência culpada, sem requerer qualquer outra
obrigação como condição.
Todos esses contrastes e comparações entre a Lei e o Evange­
lho, quando expostos corretamente, são amplamente admitidos
dentro da obra múltipla do Pacto da Graça ao qual ambos, Lei e
Evangelho, pertencem.
Capítulo 13
Cristo como o Fim da Lei
A autoridade para o título deste capítulo é encontrada nas pala­
vras de Paulo que diz, “Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de
todo aquele que crê” (Rm 10.4). Mas qual é o significado da pala­
vra “fim”? Na Escritura, ela tem um significado duplo. Algumas
vezes significa a idéia de conclusão ou término,1 e em outras é
usada para idéia de perfeição e cumprimento.2 Neste último senti­
do, a palavra pode também incluir a idéia de fim da intenção ou da
extensão em que o doador da Lei tinha em mente quando deu a
Lei.
O primeiro desses significados tem sido aplicado às palavras de
Paulo para a Lei cerimonial, da qual Cristo verdadeiramente é o
término e a abolição (embora ele também fosse um fim de perfei­
ção a ela). Tal aplicação é verdadeira em si mesma, mas não é
estritamente relevante para o argumento do apóstolo, que está fa­
lando aqui do tipo de Lei que pensava-se produzir justiça, isto é, a
Lei moral. Portanto, deve-se entender que o apóstolo se refere à
Lei moral e, correspondentemente, deve-se entender o segundo
significado da palavra “fim” quando diz “Cristo é o fim da lei”.

1 Como em Mc 13.7: “mas ainda não é o fim.”


2 Ver 1 Tm 1.5 eT m 13.10.
Conforme a Lei for entendida em seu sentido mais amplo ou
mais limitado, assim Cristo pode ser dito como sendo o fim da Lei
moral de duas formas. Visto de forma mais estrita, a Lei requer
obediência perfeita e condena aqueles que não a cumprem. Nesse
sentido restrito, Cristo não pode ser a intenção da Lei porque é
meramente um acidente da Lei que um pecador esmagado e con­
denado por ela busque um Salvador.3
O outro modo pelo qual a Lei pode ser vista é o mais amplo, o
qual a vê no seu contexto de Pacto da Graça. Nesse aspecto, pode-
se dizer que Cristo era a intenção direta e não por acidente, isto é,
quando Deus deu a Lei ao povo de Israel, Ele pretendia que a
descoberta da sua incapacidade em mantê-la os fizessem desejar e
buscar a Cristo.
Tomás de Aquino tem uma boa distinção sobre um fim. Ele diz
que um fim é duplo: é alguma coisa para a qual algo naturalmente
inclina-se ou é aquilo pelo qual algo é designado e ordenado por
aquele que o criou. Ora, o fim da Lei pelo qual naturalmente tende
sua vida eterna é que seja obtida pela justiça perfeita no homem,
mas o fim instituído e designado, o qual Deus, o doador da Lei,
estabeleceu na promulgação da mesma, foi o de provocar os
israelitas a buscarem a Cristo. Eles não deveriam descansar naque­
les mandamentos ou obrigações, mas prosseguir até Cristo e quan­
do o tivessem encontrado, não deveriam mais buscar, mas perma­
necer lá.
Quando a Lei é considerada em seu sentido mais amplo, é fácil
ver que Cristo é o cumprimento do seu fim designado. Mas agora
resta perguntar que fim designado é esse.
3 Não deve ser esquecido que a Lei não exclui um Salvador, mesmo quando
considerada de forma estrita. Ela certamente requer justiça perfeita, porém se
um pecador traz a justiça de um fiador, embora isgto não seja ordenado na Lei,
não é todavia contra a Lei ou excluído por ela; do contrário, seria injustiça
Deus aceitar Cristo como fiador pelos pecadores.
Primeiramente, a intenção divina na Lei é conduzir os pecado­
res a Cristo. Uma das fraquezas dos israelitas foi o fato de eles
serem incapazes de olhar fixamente para o fim daquele ministério
de Moisés, sendo que esse fim, naturalmente, era Cristo (2 Co 3.7-
16). Assim, Cristo foi o objeto glorioso na administração da Lei,
mas o véu sobre o coração dos israelitas impediu que eles vissem.
Outro exemplo que prova que Cristo foi o fim de intenção no dar a
Lei é encontrado nas palavras, “Mas, antes que viesse a fé, estáva-
mos sob a tutela da lei e nela encerrados, para essa fé que, de futu­
ro, haveria de revelar-se. De maneira que a lei nos serviu de aio
para nos conduzir a Cristo, a fim de que fôssemos justificados por
fé” (G13.23,24). Nessas palavras, não é considerada simplesmente
a Lei moral, mas todo o Pacto Mosaico é comparado à direção e
disciplina do educador. A Lei não apenas restringiu o pecado do
homem, mas também revelou Cristo; ela não meramente ameaçava
e amaldiçoava, mas mostrava que o socorro seria encontrado ape­
nas em Cristo.
Em segundo lugar, a intenção divina na Lei é aceitar aqueles
que a cumprem. Por causa da queda, é impossível que um homem
alcance esse fim, mas Cristo executou essa intenção da Lei na jus­
tificação e vida eterna daqueles que confiam nele. Se o fim das leis
humanas é produzir homens bons e honestos, muito mais é este o
fim da Lei moral designada pelo próprio Deus; mas longe de pro­
duzir um homem bom, a Lei produz todo tipo de mal nele, um
efeito da Lei que Paulo reconhece ter acontecido com ele mesmo.
Assim como o bem recebido por um corpo doente nada faz a não
ser aumentar a doença, assim também acontece com a Lei, que é
designada para produzir bondade e vida e toma-se a causa do pe­
cado e da morte. Para que a Lei possa ter seu fim verdadeiro, en­
tão, Cristo assume a natureza humana sobre si para que a justiça da
Lei possa ser cumprida naqueles a quem ele redime.
Em terceiro lugar, a intenção divina na Lei é justificar o pecador
por meio dos méritos de Cristo. Isso acontece quando a obediência
de Cristo à Lei é computada ao crente e, assim, nele, como um
fiador, a Lei é cumprida. Esta verdade é contradita por muitos,
mas é apoiada pelo paralelo que Paulo traça entre o primeiro Adão
e sua semente de um lado e Cristo, o segundo Adão, e sua semente
do outro. Neste paralelismo, o apóstolo prova que os crentes são
feitos justos pela imputação da justiça de Cristo (Rm 5.12-21). O
mesmo argumento é novamente usado por Paulo quando ele ensi­
na que assim como Cristo foi “feito pecado” por imputação, assim
os crentes receberam a justiça de Deus nele (2 Co 5.19-20). Simi­
larmente, quando ele diz que Deus enviou seu Filho para que a
justiça da Lei pudesse ser cumprida naqueles que não caminham
segundo a carne mas segundo o Espírito (Rm 8.3,4), ele está de­
monstrando a mesma verdade. A objeção algumas vezes levanta­
da é que se a justiça de Cristo fosse feita justiça do homem a fim de
que pudesse se dizer que este cumpriu a Lei, então ele ainda seria
justificado por um Pacto de Obras e não há o novo Pacto da Graça.
A resposta a isso é que, por causa do cumprimento de Cristo da
Lei como fiador para o pecador, o homem verdadeiramente obtém
a vida eterna de acordo com a regra “faça isto e viva”, uma vez que
a imputação da justiça não faz com que deixe de ser justiça real,
muito embora não seja a própria justiça inerente do homem. No
entanto, não existe nenhuma razão para inferir disso que a vida
eterna seja legalmente conferida com base num Pacto de Obras
porque essa justiça vem sobre o pecador não por obras mas pelo
fato de crer.
Em uma de suas discussões sobre Moisés com os judeus, Cristo
disse, “ele escreveu sobre mim”, e não há verdadeira apreciação da
obra de Moisés se Cristo não for, assim, visto como sendo o “fim”
de todo o seu ministério.
Capítulo 14
Epílogo
Pouco precisa ser dito na conclusão, salvo enfatizar a importân­
cia óbvia e sagrada que Deus, na Escritura, designa à observação
da sua santa Lei. Isso deve ser acolhido no coração do crente e
também do pregador. O crente deve cada vez mais se deleitar nela
“no tocante ao homem interior” (Rm 7.22), demonstrando a ver­
dade do dito do Senhor “Se alguém me ama, guardará a minha
palavra” (Jo 14.23). O pregador, semelhantemente, deve buscar
ajuda do Espírito Santo para pregar o Evangelho de tal forma que
mostre que ele honra a Lei, e para expor a Lei de forma que guie
homens ao Evangelho. Quando uma dessas manifestações glorio­
sas do caminho de Deus é negligenciada, isso não produz louvor a
Deus.
Que uma das últimas palavras esteja com um dos últimos puri­
tanos da Escócia. Como meio de ajudar a memória de seus ouvin­
tes, os pregadores dos séculos XII e XIII ocasionalmente produzi­
am uma versificação dos seus sermões. Essas versificações dificil­
mente poderiam ser chamadas de poesia mas seu ritmo e rima au­
xiliavam grandemente na retenção das verdades contidas nelas.
Ralph Erskine produziu uma rima desse tipo na qual indicou as
visões puritanas do papel da Lei na vida do crente. Aqui está uma
parte de um soneto de 386 versos que ele intitulou Os Princípios
do Crente a respeito da Lei e do Evangelho. A Seção III é chama­
da A Harmonia entre a Lei e o Evangelho.
A lei é um tutor muito em voga,
Para o evangelho-graça um pedagogo,
O Evangelho para a lei não menos
Do que seu fim pleno para a justiça.
Quando outrora a lei ardente de Deus
Afugentou-me para a estrada do evangelho;
Então de volta à santa lei
Um evangelho-graça mais amável irá atrair.
Quando pela lei à graça sou disciplinado;
A graça pela Lei irá me governar;
Por isso, se eu não obedeço à lei,
Não posso manter o caminho do evangelho.
Quando creio nas novas do evangelho,
Obedeço, então, à lei:
E ambos em suas vestimentas federais,
E como uma regra de santidade..
O que no evangelho-tesouro é cunhado,
O mesmo na lei é prescrito:
Tudo o que as informações do evangelho ensinam,
A autoridade da lei alcança.
Aqui unem-se as mãos da lei e do evangelho,
O que este me ensina aquele comanda:
As virtudes com que o evangelho se agrada
As mesmas a lei autoriza.
E assim a lei-mandamento sela
Tudo o que o evangelho-graça revela:
O evangelho também para o meu bem
Sela com sangue tudo o que a lei demanda.
A lei mais perfeita ainda permanece,
E cada obrigação plena contém:
O Evangelho sua perfeição fala,
E então fornece tudo o que ela busca.
A lei-ameaça e preceitos, vejo,
Com o evangelho-promessas concorda;
Para o evangelho são uma cerca,
E este para eles uma subsistência.
A Lei justificará todo aquele
Que com o evangelho-resgate concorda;
0 Evangelho também aprova para sempre
Todo aquele que obedece à lei.
Um mestre rígido foi a lei,
Demandando o tijolo, negando a palha;
Mas quando com a língua do evangelho canta,
Ordena-me voar e dá-me asas.
[The law’s a tutor much in vogue,
To gospel-grace a pedagogue;
The Gospel to the law no less
Than its full end for righteousness.
When once the fiery law ofGod
Has chas’d me to the gospel-road;
Then back unto the holy law
Most kindly gospel-grace will draw.
When by the law to grace Vm school’d;
Grace by the Law will have me rui’d;
Hence, ifl don’t the law obey,
1 cannot keep the gospel-way.
When I the gospel-news believe,
Obedience to the law I give:
And that both in itsfed’ral dress,
And as a rule ofholiness.
What in the gospel-mint is coin’d,
The same is in the law injoin’d:
Whatever gospel-tidings teach,
The law’s authoríty doth reach.
Here join the law and gospel hands,
What this me teaches that commands:
What virtuous forms the gospel please
The same the law doth authorize.
And thus the law-commandment seals
Whatever gospel-grace reveals:
The gospel also for my good
Seals ali the law-demands with blood.
The law most perfect still remains,
And ev'ry dutyfull contains:
The Gospel its perfection speaks,
And therefore gives whate ’er it seeks.
Law-threats and precepts both, I see,
With gospel-promises agree;
They to the gospel are afence,
And it to them a maintenance.
The Law will justify ali those
Who with the gospel-ransom close;
The Gospel too approves for ay
Ali those that do the law obey.
A rigid master was the law,
Demanding brick, denying straw;
But when with gospel-tongue it sings,
It bids mefly, and gives me wings.]
Nesse paradoxo repousa a sabedoria perfeita de Deus, e a ora­
ção apropriada do crente verdadeiro pode muito bem ser a do
salmista, “Dá-me entendimento, e guardarei a tua lei; de todo o
coração a cumprirei” (SI 119.34).
Apêndice A
Sobre Anthony Burgess
Anthony Burgess, o autor da obra sobre a Lei de Deus cuja
essência foi adotada neste volume, é honrado com um lugar no
Dictionary of National Biography e é também incluído no relato de
Palmer e Calamy sobre a vida e as obras impressas de dois mil
ministros depostos da Igreja da Inglaterra em 1662. As datas de
seu nascimento e sua morte não parecem ser conhecidas, mas o
período de suas atividades literárias se estendeu de 1646 até mais
ou menos 1659. Filho de um professor de Watford, Hertfordshire,
entrou no St. John’s College, Cambridge, em 1623 e se graduou
como Master of Arts. Subseqüentemente, tomou-se um membro
do Emmanual College. Por vários anos foi Vigário do Sutton
Coldfield, Warwickshire, mas depois da restauração da monarquia,
ao ser dispensado do Sutton Coldfield foi morar em Tamworth.
Era um membro respeitado da Westminster Assembly. Das suas
obras escritas, Vindiciae Legisf, ou A Vmdication of the Moral
Law and the Covenants, foi sua primeira, produzida em 1646 e
seguida por The True Doctrine of Justification (1648), A Treatise
o f Grace and Assurance (1652), A Treatise o f Sinne (1654),
Sermons on the Seventeenth ofJohn (1656), The Scripture Directory
and the Doctrine of Original Sin (1659).
Assim como muitos dos outros escritos puritanos, Vindiciae
Legis consiste de material pregado pelo autor no curso do seu mi­
nistério regular de púlpito. Foi a primeira publicada de uma série
de 29 preleções, mas no ano seguinte surgiu a segunda edição, que
continha trinta preleções. A obra foi dedicada pelo autor “Aos ver­
dadeiramente piedosos e à Lady dignamente honrada, Lady Ruth
Scudamore...” Na dedicação, datada de 21 de setembro de 1646,
ele escreve,
“Honrada Senhora,
Tenho observado que vossa senhoria é cuidadosa em duas
coisas: em melhorar a tarefa ordenada na Lei, e em receber
a promessa ofertada no Evangelho; a primeira tem sido um
estímulo à santidade, a última, um freio à incredulidade...
Deus deixou sua mente fixa e imóvel na verdade, tendo
sido capacitada para magnificar a Graça na forma mais
elevada, pelo sentido real de sua necessidade e indignida­
de, porém para evitar o Antinomianismo: e, por outro lado,
para ser pontual e exata nas obrigações de mortificação e
santidade, porém acautelando-se quanto ao Papado
Farisaico. E, de fato, esse é o sentido correto, quando so­
mos tão diligentes em desenvolver a nossa salvação com
temor e tremor, como se não houvesse graça para justificar;
porém descansando e crendo na graça de Cristo, como se
nenhum bem tivesse sido feito por nós... ”
Ambas as edições contêm a seguinte recomendação no prefácio:
“Nós, o Presidente e Membros do Sion College London,
seriamente desejamos que Mestre Anthony Burgess publi­
que as suas elaboradas e judiciosas Preleções sobre a Lei e
os Pactos contra os erros Antinomianos atuais, as quais, em
atenção às nossas súplicas, ele tem pregado, (e por isso lhe
agradecemos de coração) afim de que tanto o Reino quanto
esta Cidade possam ter o benefício de seus conhecidos tra­
balhos.
Presidente Authur Jackson, em nome e por designação
dos outros. Datado em Sion College, 11 de junho de 1646,
em um encontro geral dos Ministros de Londres nesse lo­
cal. ”
O cabeçalho da segunda edição da obra lê como se segue:
VINDICIAE LEGIS: ou, Uma Vindicação da Lei Moral e
dos Pactos, Dos Erros dos Papistas, Arminianos, Socinianos
e, mais especialmente, Antinomianos. XXX PRELEÇÕES,
pregadas em Laurence-Jury, Londres. Segunda edição
corrigida e aumentada. Por Anthony Burgess, Pregador da
Palavra de Deus. LONDRES, Impresso por James Young,
para Thomas Underhill, no Signe ofthe Bible em Woodstreet,
1647.
Anthony Burgess se revela como um homem estudioso, culto e
lido; de fato, o Bispo de Lichfield o equiparava a um professor
universitário no que dizia respeito à cultura. Sua obra contém mui­
tas citações em grego e em latim; ele se mostra familiarizado com
os escritos de Aristóteles, Sêneca, Agostinho, Tomás de Aquino,
Lutero e Calvino. Não expõe meramente uma habilidade literária*
uma vez que ele tem a linguagem devocional simples do pregador
experimental com o dom de idéias penetrantes. Aqui estão uma ou
duas sentenças que se destacam por esse estilo. “Aquele que dis­
tingue bem, ensina bem”; “Não é todo homem que fala sobre gra­
ça, então, que apresenta a graça da Escritura”; “Quão incômodo
será quando morreres, submeteres tua alma à graça à qual tu con-
testaste”; “Tome a Lei por um aguilhão, o Evangelho por um afe­
to: por um seja instruído, por outro amparado...A Lei tem um en­
canto tanto quanto o Evangelho”; “Quão necessária é a obrigação
de que um Ministro de Jesus Cristo seja diligente na pregação e
explicação da Lei de Deus...A pregação da Lei é tão necessária,
que vós nunca podeis ser cristãos de coração, celestiais e espiritu­
ais a não ser que essas coisas sejam diariamente expostas a vossos
olhos...Oh saiba, há um grande grau de pecaminosidade desconhe­
cida em teu coração, porque a Lei é desconhecida para ti.”
O livro consiste de 281 páginas cuidadosamente impressas. Há
uma Tabela de Conteúdos que se estende por seis eras e um índice
Textual de uma página inteira. Como era o estilo da época, o texto
é dividido em parágrafos numerados com títulos em itálico para
mostrar o modelo do argumento à medida que ele se desenvolve.
Os puritanos usavam a sua lógica de uma forma vigorosa e cati­
vante, e Anthony Burgess não é exceção a isso uma vez que não
permite que uma proposição resista sem sujeitá-la à análise dili­
gente. Uma apreciação compreensiva dos seus métodos conscien­
ciosos de análise lógica, no entanto, irá auxiliar grandemente na
compreensão da riqueza e da força sistemática de seu argumento.
Há uma precisão profundamente ordenada no raciocínio de Anthony
Burgess, e a multidão de definições meticulosas, que algumas ve­
zes parecem desordenadas, contribuem para uma coerência pro­
funda e unidade de seu argumento cuidadosamente tecido.
O propósito do livro é declarado pelo autor em seu discurso
“Para o Leitor”. “No que interessa”, ele diz, “é essencialmente
melhorado para manter a dignidade e o uso da Lei Moral contra os
erros recentes sobre ela...” Sua preocupação imediata não era tan­
to quanto à justificação como com a santificação e o lugar que a
Lei moral devia ter como uma regra de vida para os crentes. É
verdade que o crente justificado “está encerrado com Moisés”?
Essa questão, ele diz, é colocada de forma- simples demais, porque
nenhuma resposta útil pode ser dada até que se tome claro em que
sentido deve ser entendida. Se estiver interessada na justificação e
na base da aceitação do pecador diante de Deus, então, natural­
mente, o crente justificado está certamente “encerrado com Moisés”
(embora tenha de ser interposto aqui que esse propósito nunca
tenha sido pretendido para “Moisés”). Se, no entanto, a questão
estiver interessada no comportamento do crente e nas coisas que
agradam ou desagradam a Deus, então, igualmente enfática, a res­
posta deve ser que o crente justificado não está “encerrado com
Moisés”.
Mas Anthony Burgess afirma que o assunto não pode ser rejei­
tado tão facilmente assim e pergunta, Que autoridade existe para
colocar Moisés e Cristo em campos opostos? Que base existe para
a suposição de que a Lei de Deus é contrária à Graça de Deus?
Quando examina essas questões, ele mostra que nenhum antago­
nismo ou oposição existe entre a Lei e a Graça. Moisés é ministro
de Cristo, e “a Lei é graça antiga”. Consequentemente, não é no
afastamento do princípio da graça que um crente mantém a Lei de
Deus e a consagra na sua verdadeira natureza como “lei”.
Cópias do Vindiciae Legis são extremamente raras.
Apêndice B
Uma Exposição do Décimo Mandamento
Por Lancelot Andrewes
“Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mu­
lher do teu próximo” Êxodo 20.17.
A dependência dos outros mandamentos em relação a esse apa­
rece nisto, que sem a observação desse, nenhum dos outros pode
ser mantido. Ao dar esse por último, Deus nos ensinaria o modo
como todos os outros devem ser entendidos,jsto é, que não ape­
nas o ato exterior é proibido neles, mas também o propósito interi­
or e a intenção do coração (mesmo se nunca prosseguirmos para o
ato exterior). Essa, então, é a regra e a medida para o entendimen­
to e para a observação dos outros mandamentos - essa é a dobra­
diça sobre a qual todos os outros devem girar. Por essa razão,
Santo Agostinho diz que aquele que observar os outros, deve pro­
curar essencialmente manter esse mandamento, porque esse olha
para o coração. E do coração, como Salomão diz, “procedem as
fontes da vida” e a morte e, portanto, nos aconselha: “Sobre tudo
o que se deve guardar, guarda o teu coração” (Pv 4.23).
A extensão e o objetivo do doador da Lei nisso, é dupla:
1. Mostrar que ele olha além do que seus substitutos na terra
podem olhar, e que sua Lei é superior à deles. Porque embora a lei
do homem possa atar mãos e pés, calar a boca e condenar o propó­
sito do coração (na medida em que isso possa ser sustado ou des­
coberto - porque se alguém for encontrado com uma arma, ou
arrombando uma casa, mesmo que seja detido no ato do assassi­
nato ou roubo, seu propósito foi descoberto e barrado, ele poderá,
mesmo assim, ser punido pelas leis do homem), todas as leis huma­
nas - e isso é um axioma na Lei Civil - dizem que nenhum homem
deve sofrer por pensamentos expostos. E, assim, eles deixam os
pensamentos livres. Mas Deus faz exigências em relação aos pró­
prios pensamentos, embora eles não apareçam em todo ato públi­
co. E, assim, Simão o Mago, é levado à corte por causa do pensa­
mento do seu coração, “Arrepende-te, pois, da tua maldade e roga
ao Senhor”, disse Pedro, “talvez te seja perdoado o intento do
coração” (At 8.22).
2. É para aqueles que, como os fariseus, são presunçosos quan­
to à própria justiça, de modo que esses pecadores orgulhosos que
não são curados possam, pela Lei, ser convencidos da sua necessi­
dade de um médico. Porque o homem no que diz respeito ao con­
sentimento total do coração omite e se justifica em algumas coisas,
e por um curto espaço de tempo, porém quando depara com esse
mandamento no qual o nascimento imperfeito (quando não há um
consentimento perfeito, apenas algum prazer e titilação no movi­
mento do coração) é proibido, isso o fará suar. Isso o fará clamar,
“Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta
morte?” (Rm 7.24), e fará com que ele veja que não pode inocen-
tar-se nem ser um Cristo ou Salvador para si mesmo. Mas ele sabe
que deve escapar para o outro extremo de si mesmo, como nas
próximas palavras, “Graças a Deus por Jesus Cristo, etc.”
Porque o consentimento do coração é proibido pelos outros
mandamentos, como expostos por nosso Salvador que diz “se um
homem olhar para uma mulher (com este propósito em mente) e
cobiçá-la”, então isso é adultério. Mas aqui a intenção e o desejo,
embora não tenham consentimento total, sendo apenas imperfei­
tos, são manchados por esse preceito.
Eis a distinção: nos primeiros mandamentos, a intenção do mal
é proibida, embora não executada e aqui, também, embora não
continuada ou resolvida (como quando o movimento é entretido
com aprovação e prazer, embora não totalmente consentido). San­
to Agostinho explica a questão desta forma: em um caso você tem
um “Não cobiçarás”, proibido por esse mandamento; e no outro
um “não siga suas cobiças” (Ecclus. 18.30), e aquele que tem al­
cançado o último, diz o mesmo pai, faz muito mas não faz tudo
porque ainda está cobiçando.
O apóstolo Paulo faz uma distinção entre os dois desta forma:
ele chama um de “pecado reinando em nós”, quando “o seguimos
na sua concupiscência”; e o outro de “pecado que habita em nós”,
quando a cobiça está em nós mas não tem um perfeito domínio.
Neste último caso, ela habita como uma pessoa privada, mas no
primeiro ela governa, ela tem o reino. Porque quando o pecado
prevalece sobre os nossos sentimentos e sobre a nossa razão de
forma que só falta uma oportunidade para agir, então ele reina.
Mas quando nós o consideramos de alguma forma em nossa men­
te, então há um raciocínio dentro de nós (um “devo ou não devo
fazer isto?”), quando temos razões prós e contras e não estamos
totalmente resolvidos, então o pecado habita em nós e isso é pro­
priamente proibido por esse mandamento. Se algum dia resolver­
mos completamente, “Eu farei!” então é como se isso já tivesse
sido feito diante de Deus e, logo, pode ser referido em outros man­
damentos como proibido lá também.
A Coisa Proibida, Concupiscência ou Cobiça
Ela (1) surge de nós mesmos ou (2) do Espírito de Deus. Quan­
do de nós mesmos, é (1) da natureza ou (2) da corrupção da natu­
reza. Os desejos corruptos podem ser de duas formas, (1) fúteis e
tolos ou (2) prejudiciais ou injuriosos.
1. Há uma concupiscência própria nossa, da qual Pedro fala
“Haverá homens seguindo suas próprias concupiscências”.
2. Há uma ânsia do espírito, da qual o Apóstolo diz que “anseia
contra a carne”. Isso é santo e bom porque quando nossa mente é
iluminada pelo Espírito de Deus, ela incita bons impulsos e dese­
jos em nós. Ela nos fortalece para produzirmos o mesmo e nos
arma contra a oposição que viermos a encontrar. Por essa ânsia os
maus impulsos são detidos quando surgem no coração. Vemos
isso no salmista, “Por que estás abatida, ó minha alma, e por que te
perturbas dentro em mim? Confia no Senhor, etc.” Essa ânsia, en­
tão, não é condenada aqui, mas assim como é aceitável em si mes­
ma, assim “auxiliando nas nossas fraquezas”, faz com que nossas
orações sejam aceitáveis a Deus. E conseguindo audiência com
ele, pela qual obtemos nossos desejos de Deus, ela aumenta em
nós o amor a Deus e aos homens. Consequentemente, ela não é
reprimida pelo décimo mandamento, mas a outra ânsia, que é pro­
priamente chamada concupiscência, é a nossa própria concupis­
cência.
Essa Nossa Própria Concupiscência é de Dois Tipos
A primeira é natural, a segunda é da corrupção da natureza, a
qual Pedro chama “a concupiscência da corrupção”, ou “concupis­
cência corrupta”. A primeira, a concupiscência natural, está no
homem por natureza, como cobiçar carne quando se está com fome
ou bebida quando se está com sede. Isso não é proibido porque
havia no próprio Cristo, que estava livre de todo pecado. Algumas
vezes ele se sentia faminto e desejava comida e em outras estava
cansado e desejava descansar, etc. Mas na outra, o corrupto cobiça
ou deseja aquilo que é proibido neste lugar. Essa capacidade de
desejar ou cobiçar foi primeiramente dada à alma para fazê-la mo-
ver-se em direção àqueles objetos que a mente propõe. Assim como
existe leveza em algumas coisas para fazê-las moverem-se para
cima, assim o idólatra chama a mente de o olho da alma. E ele
chama o desejo ou o apetite, o movimento ou o esforço da alma
atrás daquilo que o olho discerne. Mas esse desejo ou cobiça sendo
corruptos, sufocam a luz da mente para que esta não possa ser
dirigida ao que é bom. Porque as capacidades da mente, sendo
unidas, corrompem e infectam uma à outra - assim como a hera
que se apega ao carvalho e retira a seiva, fazendo-o definhar. En­
tão, a mente sendo cegada faz com que a vontade não possa mo-
ver-se em direção ao que é bom e, assim, nossos desejos se tornam
corruptos.
Dessa Cobiça Corrupta Surgem Desejos de Dois Tipos
Eles são distinguidos por Paulo; alguns são fúteis e tolos - ou­
tros são prejudiciais e injuriosos.
Os primeiros vemos em homens que têm o que o apóstolo cha­
mou de “inclinação da carne” que desejam coisas mundanas, não
apenas para fins naturais,.mas que transpõem e pulam os limites da
natureza, desejando mais do que o necessário. Desejam ainda mais
e mais, e como o salmista fala, “quando suas riquezas aumentam,
colocam seus corações sobre elas”, cujas palavras anteriores di­
zem isso ser tolice e vaidade. Tais homens pensam, falam e se de­
leitam em nada mais do que coisas terrenas e, assim, se corrom­
pem. Como o profeta diz, “A tua prata se tomou em escórias, o teu
licor se misturou com água”, quando eles misturaram suas almas
com as coisas terrenas, que têm condição elementar e são.inferio-
res à alma.
Os outros desejos que ele chama de “prejudicais” são aqueles
propriamente opostos ao Espírito de Deus (G1 5). Essas cobiças
nos mantêm afastados das boas coisas, as quais o Espírito sugere,
porque há uma membrana sobre o coração, que o isola e fecha
quando algum impulso bom é oferecido. Essa membrana do cora­
ção o deixa aberto quando qualquer mal pode entrar. Há também
uma membrana sobre os ouvidos (“Homens de dura cerviz e
incircuncisos de coração e de ouvidos”, (At 7.51) pela qual efeitos
semelhantes são produzidos porque ela os cerra para qualquer coi­
sa que seja boa e retira a cobertura para a comunicação corrupta
ou ruim entrar. Por causa disso diz-se que Deus “abre os ouvidos”
quando ele reforma eficazmente os homens (ver Jó 33.16).
Em segundo lugar, assim como os desejos prejudiciais nos afas­
tam de receber o que é bom, assim corrompem o bem que já está
em nós, como a mosca morta corrompe o frasco de ungüento (Ec
10. 1).
E, em terceiro lugar, eles nos provocam para o mal ou para as
coisas que não são más em si mesmas mas que serão armadilhas
para o mal se as seguirmos. Porque o mal, seja nos antecedentes ou
nas conseqüências, é mal e deve ser evitado. Assim, o apóstolo não
nos veria sendo “conduzidos sob o poder de qualquer coisa”, por­
que Satanás algumas vezes incita um desejo tão determinado no
homem por algo lícito indiferente que este não se privará por ne­
nhuma razão. Então Satanás rapidamente acha uma condição para
anexar a isso, pela qual conduzirá o homem a algo simplesmente
ilícito. Isso foi o que pensou poder fazer com Cristo quando lhe
mostrou os reinos do mundo e a glória deles, com os quais pensava
ter influenciado seus sentimentos, buscando, na verdade, atraí-lo
para a idolatria, “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares”.
Assim, os desejos de nossa concupiscência são maus. Como
Santo Agostinho diz, ou desejamos obter as coisas lícitas por mei­
os maus ou tentamos_obter, por meios lícitos, o objetivo mau. E
esses dois caminhos são legitimamente condenados, até mesmo no
próprio desejo do coração.
Essa concupiscência e esses desejos vigorosos que procedem
dela são expressos na Escritura com outras palavras. Algumas ve­
zes é chamada “o velho homem”, em outras “o pecado que habita
em nós”, “a lei do pecado” e a “lei dos membros”. Algumas vezes
é o “espinho da morte”, em outras “o espinho na carne”, “o pecado
que nos assedia”, “desejos carnais que guerreiam contra a alma”,
“o veneno da serpente” que Satanás instilou em nossa natureza no
início. Os professores a chamam de “combustível inato do peca­
do”. Outros a chamam de enfermidade ou irregularidade das facul­
dades da alma porque o homem elevou sua cobiça acima da sua
razão, contra a ordem e a vontade de Deus, transformando-a em
essência e, a fim de realizar seu desejo, arriscou o favor de Deus.
Consequentemente, como um castigo justo, Deus ordenou em sua
ira que ela deveria ser mais forte do que a razão a fim de que não
pudesse ser colocada sob essa faculdade superior, mesmo se o ho­
mem desejasse fazer isso. Assim como Deus disse por intermédio
do profeta (e este é um julgamento terrível!) “Porquanto Efraim
multiplicou altares para pecar, estes lhe foram para pecar”. Então,
porque o homem colocou a sua concupiscência num lugar superi­
or, ela, de fato, se toma superior, não importa o que faça. Deus,
algumas vezes, lida com os homens em grande ira, assim como ele
fez com os israelitas, “Então, comeram e se fartaram a valer, pois
lhes fez o que desejavam” (SI 78.29). Em outro lugar, “Ele os en­
tregou à cobiça dos seus próprios corações, para seguirem sua pró­
pria imaginação”. Assim ele lidou com os romanos idólatras de­
pois da grande desobediência e pecado voluntarioso contra a luz
de seus próprios corações (Rm 1.28), “o próprio Deus os entregou
a uma disposição mental reprovável, para praticarem cousas in­
convenientes”.
Isso é algo terrível — ser entregue à própria cobiça. É o mesmo
que ser entregue a Satanás. Porém aquele que foi entregue a Sata­
nás tem um retorno, porque aquele que foi assim entregue pode ser
recuperado (1 Co 5.7; 2 Co 2.7). Mas quando um homem é entre­
gue a si mesmo, é certo, pelo menos por meios ordinários, que ele
nunca retoma. Porque essa é a “mente réproba” que o apóstolo
menciona, quando Deus abandona completamente um homem e
retira sua graça, -deixando-o em suas próprias mãos para a des­
truição final. Assim, é melhor ser entregue a Satanás do que à pró­
pria vontade. E, então, vemos quão bem devemos pensar de nossa
própria vontade e quão terrível é ser entregue a ela, não tendo o
Espírito de Deus para manter o conflito perpétuo com as nossas
próprias concupiscências corruptas.
Como um Homem Pode Ser Entregue aos seus Próprios Desejos
A razão pela qual um homem é assim comprometido é parcial­
mente revelada no primeiro mandamento, onde nossa obrigação
com relação a Deus responde à nossa obrigação com relação ao
nosso próximo. Um homem vem a ser entregue aos seus próprios
desejos em graus, quando ele dá lugar aos maus pensamentos con­
tra seu próximo, “nenhum de vós pense mal no seu coração contra
o seu próximo” (Zc 8.17). Não devemos dar lugar a isso de forma
alguma, não podemos permitir que isso se inflame. Há, em cada
um de nós, um pensamento mau contra o nosso próximo, um pen­
samento de prejudicá-lo. E com isso em nós, surge a tentação,
como o apóstolo nos mostra em Ef 2.2, parcialmente do mundo
(“segundo o curso deste mundo”) e parcialmente de Satanás, que
começa, então, a infundir, trabalhar e moldar o pensamento do
coração rumo ao pecado perfeito (“segundo o príncipe da potestade
do ar”). Assim, ambos influenciam os nossos pensamentos e dese­
jos “para satisfazer a concupiscência da nossa carne”.
Assim, há uma dupla razão que nos leva a isso: 1. nossa cobiça
apenas, considerada em si mesma, porquanto se levanta por si só,
sem qualquer golpe ou estímulo exterior, e 2. quando é usada e
cultivada pelo mundo ou por Satanás ou por ambos.
1. Por si só. Cristo fala dos “pensamentos maus que procedem
do coração” e “dos pensamentos que procedem do coração” (Mt
15 e Mc 7). Há uma corrente ou vapor que procede da nossa natu­
reza, porque os maus pensamentos se levantam ou elevam-se de
baixo, e os bons pensamentos surgem e originam-se de cima (Tg
1.17). Um vem de nós mesmos, o outro de Deus e de Seu Espírito.
Satanás sabe disso e aproveita esses desejos que ele vê surgir em
nós por algum sinal exteriomo. e nos assalta propondo objetos e
atrações mundanas, usando o mundo para nos tentar. Foi assim
que ele lidou com Cristo, deixando-o sozinho até que ele estivesse
faminto e tivesse o seu “desejo natural por pão”, Então ele se
introduz e oferece que “as pedras se transformem em pães”, pen­
sando que, assim (quando Cristo teve o apetite natural), seria rece­
bido.
2. Enquanto existem pensamentos se elevando ao coração, há
também outro tipo de pensamento, aquele lançado por Satanás.
Dessa forma Satanás entrou em Judas quando pôs em seu coração
os maus pensamentos de trair seu Mestre. Assim também encheu o
coração de Ananias e Safira para mentirem ao Espírito Santo e
cometerem o sacrilégio. Assim como ele, algumas vezes, faz issto
imediatamente de si mesmo, ele também usa o mundo e os objetos
visíveis para lançarem pensamentos maus em nosso coração. Des­
se modo, o mundo e Satanás nos contaminam a partir do que é
exterior quando nós também nos contaminamos rápido o suficien­
te a partir do que é interior. Porque, como diz Nazianzen, a faísca
está dentro de nós, a chama vem do espírito mau que a sopra.
Assim é que, - embora não haja espíritos maus nos tentando e nós
estivermos no deserto, onde nenhum objeto mundano pudesse nos
seduzir, nós, porém, carregamos o suficiente em nosso coração
para nos corrompermos. Também, enquanto carregarmos.conosco
nosso próprio coração, não poderemos estar seguros mesmo que
tenhamos deixado o mundo para trás, diz Basil.
Os Pensamentos Maus Que Se Originam Dentro de Nós São
Pecado e Aqueles Que Têm Origem Exterior Não São
Os pensamentos que se elevam dentro de nós são pecados, mas
aqueles que nos são enviados, que são injetados em nós (a não ser
que cedamos a eles, permitindo que nos contaminem), são a nossa
cruz, não nossos pecados. Não somente isso, ao resistir a essas
incitações e tentações de Satanás, ganhamos a coroa, e cada tenta­
ção a que resistimos é uma nova flor em nossa grinalda.
Como esses pensamentos nos contaminam? Há seis graus antes
de chegarmos ao consentimento total e ao propósito do coração
que é proibido pelos outros mandamentos, Em Gênesis, quando
Eva foi tentada, vemos o modo como a contaminação começou.
Há um fruto oferecido, o objeto de sedução e, com ele, as três
provocações, pelas quais todos os pecados são conduzidos à alma,
são consideradas.
1. Era bom para se comer - a sedução do lucro.
2. Era agradável e aprazível para o olho - aqui está a tentação
do prazer.
3. É dito desejável com relação ao conhecimento - aqui está o
encanto do orgulho.
Esses três são mencionados por João, “a concupiscência da car­
ne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida” (1 Jo 2.16).
No próximo versículo, Satanás adiciona um quarto (que pode ser
reduzido ao terceiro), “como Deus, sereis conhecedores do bem e
do mal”. A própria sedução do orgulho é excelência, uma condi­
ção a ser desejada pelo homem, sendo este o comandante das cri­
aturas. Quando essas provocações foram apresentadas a Eva, esta
pensou em cada uma, lpois que tinha todas elas em grande consi­
deração: “Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer,
agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, to­
mou-lhe do fruto e comeu”. Disso podemos observar os vários
passos e graus pelos quais o pecado penetra a alma:
1. O primeiro é chamado “desvio para seguir a Satanás” (lTm
5.15), ou um desvio da alma para olhar para o objeto. A primeira
consideração é o desvio da alma de Deus, sendo que quando al­
guém faz isso, começa a prostituir a sua alma com Satanás.
2. O segundo é quando o objeto é perfeitamente conveniente e
toma-se ansiosamente desejado. Isso pode ser repentino, um leve
impulso à primeira vista. Pode também ser mais seriamente im­
presso em nós, uma paixão mais violenta, mais séria. Jó compara
aquele que chegou a este ponto com alguém que “tem um veneno
doce em sua boca”, que por causa da doçura que sente, reluta em
cuspi-lo - ele não o deixa e também não ousa engoli-lo, mas o
mantém sob sua língua. Assim um leve impulso se transforma em
uma violenta paixão e isso é manter e reter a semente assim como
o primeiro impulso leve foi receber a semente. Assim como no
primeiro instante houve um desvio de Deus, agora há um desvio
para a criatura.
3 .0 terceiro é um consentimento em se deleitar naquilo. Assim
como antes houve um consentimento duplo, (1) um consentimento
para executar o pecado (isso pode ser proibido nos outros manda­
mentos e é o que chamamos de contaminação interior da nossa
ferida hereditária); e (2) um consentimento mental apenas para ter
prazer nele, freqüentemente impulsionando o coração em sua dire­
ção - no qual consentimos em nos deleitar no pensamento embora
não tenhamos o propósito total de agir, pensando apenas em fitá-lo
- isso pode ser chamado de concepção do pecado (Tg 1.15).
4. O quarto é um adiamento ou uma protelação no pensamento
do pecado;; assim é que um homem que já consentiu em ir até o
ponto de ter prazer nele, permanecerá perto dele e habitará nele.
Essa é a estrutura de todas as partes no interior da alma pela qual
se toma completo, quando cada canto é pesquisado e cada cir­
cunstância pesada e considerada, quanto à forma pela qual o peca­
do será consumado. Quando o povo permaneceu em Sitim, come­
teu fomicação com as filhas de Moabe! (Nm 25.1).
5. Há, então, um vagar da alma em busca do pecado. Isto é,
quando os pensamentos já o ignoraram, outra vez nos lembramos
dele e fazemos um pacto contrário ao de Jó, de que não permitire­
mos que nossos olhos se afastem do objeto sedutor. Mas devemos
ainda contemplá-lo, e não apenas isso, mas também usar os portões
e passagens para a fantasia, os sentidos, para ressuscitar esse pra­
zer em nós novamente, a fim de continuarmos nele. Lemos em
Gênesis sobre a imaginação dos pensamentos do coração (Gn 6.5);
quando não há um objeto real, contudo o homem inventa e imagina
um objeto falso para persuadir o prazer de um pensamento. Aqui
está uma construção de imaginações para agradar a alma em pen­
samento pecaminoso quando, sem que ocasiões se ofereçam, um
homem procura para si mesmo ocasiões exteriores ou interiores e
planeja fantasias nas quais se deleitar. Isso é a estimulação do pe­
cado, isto é, quando este começa a agitar-se no útero.
6. O último é o parto ou nascimento. E o apoderar-se da oca­
sião oferecida a fim de pôr em prática o pecado já resolvido. Ele
avança num silogismo como este: se há tanto prazer em pensar
nele e em revolvê-lo na mente, então que prazer deve haver quan­
do for realmente praticado? Depois que isso alcança um consenti­
mento total na mente, então estamos fora desse mandamento, uma
vez que nada falta a não ser o meio e a oportunidade de colocá-lo
em prática. A conclusão está estabelecida no coração — eu farei!
Então, quando se oferece a ocasião, está feito. E, assim, o pecado
é produzido e aperfeiçoado.
E esses são os seis graus do pecado, embora este se adule e
minta para si mesmo para persuadir os homens de qüe eles não são
culpados até que cheguem, ao último grau, o ato em si - mas há
pecado em todo o resto.
O Modo Como o Homem Ê Tentado Pela Sua Própria Cobiça
Primeiramente, há uma isca, e depois o anzol. Tiago menciona
dois modos pelos quais um homem é tentado pela sua cobiça: (1)
ele é atraído por um tipo de violência ou (2) é seduzido por algum
encanto, “cada um é tentado pela sua própria cobiça, quando esta
o atrai e seduz” (Tg 1.14). Há uma bela e atraente isca para seduzir
e há um impulso violento da alma pela ação da força, visto que o
homem é atraído pelo prazer do sentido ou também pela
importunação da mente. Cada pecado entra dentro de nós e nos
seduz até sermos capturados ou então nos assalta de uma forma
violenta a fim de que nos rendamos e pensemos que nada podemos
fazer. Devemos estar atentos contra esses dois a fim de que não
sejamos como aqueles em Oséias, “Porque preparam o coração
como um forno, enquanto estão de espreita; toda a noite, dorme o
seu furor, mas pela manhã arde como labaredas de fogo. Todos
eles são quentes como um forno...ninguém há, entre eles, que me
invoque” (Os 7.6,7).
Os outros dois, o Mundo e Satanás, nos tentam da mesma for­
ma. Há a sedução e a atração em ambos.
Satanás é chamado de “a velha serpente” na Escritura, e o após­
tolo fala sobre as “ciladas do diabo”, e de seu “engodo”, pelos
quais os homens são enganados (Ef 6). Sabemos que a serpente é
sutil por natureza, mas é uma velha serpente que, se tivesse alguma
deficiência natural, o hábito e a longa experiência já a teriam com­
pensado. Novamente o apóstolo fala dos truques e ardis de Sata­
nás. Os apóstolos não eram ignorantes quanto a isso, mas outros
podem temer que o que os seduz é o método de Satanás e a sua
destreza. E podem temer não serem sábios o suficiente para
discernir.
2. Ele é chamado de “leão que ruge”. E sob esses dois nomes,
serpente e leão, tudo o que é dito sobre ele na Escritura pode ser
incluído. Enquanto é chamado de serpente por sua sutileza, por
sua força, violência e crueldade é chamado de leão, e leão que
ruge. Quando obteve permissão, vemos que ele fez com que os
porcos corressem impetuosamente para o mar, com violência. E o
apóstolo nos diz que ele aflige com “lutas por fora, temores por
dentro” (2 Co 7.5). E embora o apóstolo tivesse um bom propósi­
to em ir encontrar-se com os tessalonicenses para lhes confirmar a
fé, “Satanás lhe barrou o caminho”. Os apóstolos tinham um co­
nhecimento extraordinário para discernir os seus truques, e poder
para se oporem à sua violência, o que nós não temos.
Consequentemente, devemos vigiar da forma mais diligente possí­
vel e devemos vestir a nossa armadura espiritual para que sejamos
capazes de nos opor a ele. Essa extrema violência e excessiva suti­
leza na persuasão irão revelar se a tentação vem de nós mesmos ou
se vem de Satanás.
E o que dizemos sobre ele, também podemos dizer sobre o
Mundo. Algumas vezes ele nos tenta com coisas atraentes, usando
sutileza, oferecendo prazeres e lucro, promoções, etc. para nos
seduzir. E se não formos seduzidos, há uma armadilha para nos
fisgar. Ao invés do lucro (ele nos dirá) você terá prejuízo e perda -
ao invés de prazer, dor - e ao invés de promoção, reprovação e
desgraça - tudo isso pode prevalecer contra nós e nos abater. Agos­
tinho diz que o amor à isca nos estimulará ou o medo do anzol nos
amedrontará, atraindo-nos para o mal ou mantendo-nos longe do
bem. Vemos, então, que todas as tentações para o mal podem ser
reduzidas a essas três procedências: Elas vêm do “mundo, da carne
ou de Satanás”. Todos eles buscam nos seduzir, seja por meio da
isca ou do anzol.
Vemos, então, a parte negativa desse mandamento nas palavras
expressas. Ora, visto que, de acordo com a regra, a afirmativa está
implícita na negativa, devemos dizer algo sobre a parte afirmativa.
A Parte Afirmativa do Mandamento
O apóstolo trata disso quando ele nos exorta, “transformai-vos
pela renovação da vossa mente”, e “vos renoveis no espírito do
vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado se­
gundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade”, e “para
se tomarem novas criaturas” (Ef 4.23; Cl 3.10; G16.15). Devemos
trabalhar, ele orava, para que “nosso espírito, alma e corpo sejam
conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo” (1 Ts 5.23,24). Devemos “fazer morrer a nossa natu­
reza terrena”, nossas concupiscências e sentimentos carnais e “cru­
cificar o velho homem”, para que o pecado não reine em nossos
corpos mortais (Cl 3.5). Não é apenas a nossa mente que deve ser
renovada, a nossa vontade também deve ser renovada, deve ser
colocada em sujeição à vontade de Deus para que possamos ser
capazes de dizer como Davi, “Aqui estou, que Deus faça comigo o
que lhe agradar”, e como Cristo, “não se faça a minha vontade, e
sim a tua”. Nosso homem interior é corrupto em todas as faculda­
des, o entendimento é obscurecido e a vontade, pervertida. Visto
que assim como no homem velho a vista é obscurecida e há uma
fraqueza nos membros, assim nesse velho homem do qual deve­
mos nos despir há cegueira de mente e fraqueza de espírito, e eles
devem ser renovados.
Embora o pecado em si mesmo seja um ato passageiro, após o
ato há algo que permanece e isso é o que requer renovação. Há (1)
a culpa, que nos faz indignos do favor e dignos do castigo; (2) a
mancha, que nos deixa imundos e deformados; (3) há a ferida ou
enfermidade, que necessita de cura e que consiste numa propensão
e inclinação para atos semelhantes.
Embora a culpa do pecado seja tirada de nós quando nos arre­
pendemos, a mancha e a cicatriz ainda permanecem, em parte, e
precisam de renovação diária. E porque uma nova culpa pode ser
contraída por causa de novos pecados, temos necessidade diária
de perdão e remissão.
A necessidade dessa renovação interior surge de três formas -
1. Por causa da corrupção que naturalmente se abriga no coração
e, assim, polui todo o homem, aqui está o rancor que amarga todas
as nossas ações - aqui está o fermento que azeda toda a massa -
aqui está a lepra que mancha o corpo e a alma, para que da cabeça
(o entendimento) à planta dos pés (os sentimentos), tudo esteja
cheio de chagas (Is 1.6). Se a língua é um “mundo de maldade”,
como será o coração? Se há uma “trave no olho”, o que deve haver
no coração?
2. Se não for renovado, o coração é o inimigo mais perigoso
que temos. É “enganoso, mais do que todas as cousas, e desespe­
radamente corrupto”, diz o profeta (Jr 17.9). Ele pode nos enganar
sem a ajuda de Satanás. Mas este nada pode fazer sem o coração,
ele deve lavrar com a nossa novilha - ele está mais perto de nós do
que de Satanás, é uma parte de nós mesmos. “Resisti ao diabo, e
ele fugirá de vós”, mas mesmo se nós resistirmos ao máximo, esse
enganador ainda estará perto de nós. Satanás tenta e nos deixa por
um tempo, mas esse tentador nunca nos deixa. E como uma pessoa
traiçoeira na cidade, que abre os portões e deixa o inimigo entrar,
inimigo este que não entraria por meio da força.
3. É a fonte de todas as nossas ações. Nada que não proceda de
um coração puro pode ser aceito. Se este for corrompido, todas as
nossas ações serão abomináveis. Tudo o que uma pessoa impura
tocava, sob a Lei, se tornava impuro. Assim, se o coração não for
renovado e purificado, qualquer ação que realizarmos será conta­
minada por ele.
Se Devemos Ser Renovados, Devemos Usar Meios
1. Devemos lavar nosso coração com lágrimas de arrependi­
mento, como Davi fez depois de sua grande queda, e como Pedro
depois de haver negado seu Mestre. Essa poção de arrependimen­
to irá purificar as disposições de espírito contaminadas. É verdade,
“o sangue de Jesus purifica de todo o pecado” (1 Jo 1.7), ele carre­
ga a culpa, e o Espírito de Deus renova o coração, com relação à
mancha (você é lavado, santificado no nome do Senhor Jesus e
pelo Espírito do nosso Deus). Mas nem Cristo nem o seu Espírito
se aproximam de um coração impuro.nem habitam nele. Se o cora­
ção não for preparado pelo arrependimento, não podemos aplicar
o sangue de Cristo para tirar a culpa. Há obras preparatórias traba­
lhando sob a assistência do Espírito, como a tristeza e o remorso
pelo pecado, porque o Espírito vem para habitar em nós. E Cristo
“chega à porta e bate” por meio de atos preparatórios de graça
antes que venha e ceie conosco.
2. Devemos evitar todas as ocasiões do pecado. “Se o teu olho
direito te faz tropeçar, arranca-o e lança-o de ti” (Mt 5.29). Deve­
mos nos livrar de qualquer coisa, por mais querida que seja a nós,
se for uma ocasião para o pecado. Devemos afastar-nos de toda
má companhia e evitá-la. Davi diz que “Quanto aos santos que há
na terra, são eles os notáveis nos quais tenho todo o meu prazer”.
Ele “era companhia a todos os que temiam ao nome de Deus”.
Quanto ao perverso, ele “não permaneceria ante os seus olhos”,
nem “os mencionaria com os seus lábios” (SI 16.3; 119; 101,7).Tam-
bém devemos evitar o ócio! Davi estava ocioso quando foi tentado
à impureza. O ócio é o travesseiro de Satanás. Uma pessoa ociosa
é um poça estagnada, apta para apodrecer. Isso faz com que o solo
fique apropriado para que Satanás semeie a sua semente.
Consequentemente, é um bom conselho o que diz, Que Satanás
sempre o encontre alerta e preparado.
3. Devemos vigiar nossos sentidos exteriores, porque eles são
as janelas pelas quais os objetos pecaminosos são transmitidos ao
coração, e as concupiscências pecaminosas são agitadas em nossa
alma. Não olhe para a árvore para que não sejas atraído pela apa­
rência agradável do fruto. Devemos orar como o salmista “Desvia
os meus olhos, para que não vejam a vaidade”, e como Jó, fazer
uma “aliança com os nossos olhos” para não encarar objetos enga­
nadores. Devemos “tampar nossos ouvidos contra o encanto” de
Satanás. O ouvido é apto para receber más falas, as quais transmite
para o coração e, assim, devemos “atentar no que ouvimos” (SI
119.37; Jó 31.1; 1 Co 15.33; SI 58.5; Mc 4.24).
4. Reprima os primeiros movimentos do pecado tão logo eles
surjam no coração. Isso esmagará o basilisco no ovo. Isso é fácil
no começo, mas difícil se dermos lugar a eles. Embora pareçam
pequenos, eles são maus e abrem caminho para o pior. Maus pen­
samentos não resistidos acarretam prazer; o prazer cria consenti­
mento, o consentimento conduz à ação, a ação gera o costume e o
costume a necessidade. Consequentemente, devemos quebrá-los
em pedaços quando ainda são novos, antes de crescerem e se tor­
narem muito fortes! Não devemos nem ao menos uma vez “delibe­
rar com a carne e o sangue”, como acontece com um quebra-mar a
princípio (para que não aconteça que, quando rebentar, seja tarde
demais), assim devemos parar os movimentos pecaminosos em
primeiro lugar, antes que se intensifiquem e nos façam incapazes
de resistir.
5. A palavra de Deus tem uma virtude específica de purificar o
coração. “Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo”. (Cl 3.16).
“A palavra do Senhor é pura” e, então, a questão, “De que maneira
poderá o jovem guardar puro o seu caminho?” é respondida “Ob-
servando-o segundo a tua palavra” (SI 119.9).
6. O coração deve ser apartado dos prazeres e deleites do mun­
do. Deve haver um afastamento de tal modo que possamos dizer
como Davi, “fiz calar e sossegar a minha alma; como a criança
desmamada se aquieta nos braços de sua mãe” (SI 131.2). Isso
deve acontecer por meio da reflexão sobre a vaidade e a brevidade,
a insuficiência de todos os prazeres terrenos. Assim como Abner
disse a Joabe, eles conduzem à amargura no final. Essas águas do­
ces desembocam no mar salobre. Esses pequenos prazeres mo­
mentâneos terão como conseqüência tormentos sem fim. O ho­
mem rico recebeu durante a sua vida “as boas coisas” e Lázaro o
“mal” mas agora, diz Abraão, “Lázaro é confortado, e você ator­
mentado”.
7. Devemos, como o apóstolo, “manter o corpo e conduzi-lo
sob sujeição”.-Aquele que sitia um inimigo, corta-lhe a provisão.
Essas concupiscências carnais “que guerreiam contra a alma” não
serão dominadas se agradarmos o corpo, porque por meio disso,
elas são tremendamente fortalecidas (1 Pe 2.11). Por esta razão,
devemos evitar todo o excesso em comida e bebida e tudo o que
provocar ou incitar as nossas concupiscências. “Fartura de pão e
abundância de ociosidade” foram os pecados de Sodoma. E
Salomão aconselha a não “demorar-se no vinho”, sendo sua razão,
“seus olhos contemplarão mulheres estranhas”. Devemos tomar
cuidado ao agradar o nosso corpo se não quisermos que a concu­
piscência cresça em nosso coração. E se, de alguma forma, temos
negligenciado a nossa obrigação com relação a isso, devemos “nos
contristar” (2 Co 7.11) por causa do nosso excesso, por meio de
alguns exercícios penais como jejuar, vigiar, orar, etc. Isso serve
tanto para mostrar o nosso arrependimento por termos ido além
do que é certo e razoável, como para manter o corpo em maior
sujeição no futuro. Embora isso pareça algo difícil para a carne e
para o sangue, devemos ser capazes de realizá-lo por meio do po­
der de Cristo e do seu Espírito.
Devemos, Então, Guardar o Nosso Coração Com Toda Diligência
Assim como Salomão exorta, devemos guardar o nosso cora­
ção com toda a diligência e esforço para a pureza do coração (Pv
4.23). Se fizermos isso, estaremos aptos para a comunhão com
Deus (que é um Deus de olhos puros que não pode considerar a
iniqüidade) pela fé agora e por meio de uma visão clara no futuro.
“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.”
Estas palavras são do próprio Cristo.
A Cei Moral
“A falta de preocupação com a Lei moral deve-se à
secularização da sociedade, que tem buscado destruir os padrões
éticos. O sistema educacional em nosso pais tem tentado, ao
longo dos últimos cinqüenta anos. estabelecer uma sociedade
'amoral'. () fruto desse treinamento pode ser visto agora nos lares,
na escola, no trabalho, onde o padrão adotado é 'cada qual faz
aquilo que lhe agrada'.
A Igreja também é parcialmente culpada por esse declínio.
A teologia moderna tem se afastado da importância dos Dez
Mandamentos como registrados na Bíblia. Muitas vezes é
apresentada uma teologia que tem até mesm o suprimido Jesus
Cristo como unia pessoa histórica. Somado a isso, tem sido
ensinada uma salvação universal na qual a Lei e o Evangelho são
irrelevantes, diferentemente do modo como os conhecemos no
Cristianismo histórico.
Igualmente sério na Igreja é o que algumas denominações
evangélicas e igrejas têm feito com a pregação, que dá uma ênfase
excessiva ao amor e à graça de Deus e nunca mostra ao pecador a
santidade do Deus contra o qual ele peca. Inúmeras pessoas que
ouviram que estão unidas a Cristo por meio da salvação, nunca
aprenderam a Lei de Deus e que o pecado é a separação de Deus.
Consequentemente, elas nunca chegam a saber que a morte de
Cristo na cruz aconteceu para cumprir a justiça eterna de Deus
para que a livre graça imerecida tivesse significado real".

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