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,, I

BENEDITO., :NUNES

FICHA CATALOGRAFICA

(Preparada pelo Centro de Catalogação-na.fonte,


CAMARA BRASILEIRA DO LIVRO, SP) LEITURA DE
I'
CLARICE LISPECTOR
Nunes, Benedito, 1929-
N923L Leitura de Clarice Lispector. São Paulo, Quiron, 1973. 0,,,

p. i1ust. (Escritores de hojé, 2)


1. LispectOf, Clarice, 1925 - Crítica e interpretação r.
TItulo. n. Série,

74·0375 CDD-869.9309

O
1ndic~ para o catálogo sistemático:

1. Contos : Literatura brasileira : História e critica 869.9309


2. Ficção : Literatura brasileira : História e critica. 869.9309
3. Romances : Literatura brasileira : História e crítica. 869.9309

EDIÇOES'QUfRoN
revisão: CARLOS MARIO COELHO 1 . 1973
Vejamos primeiramente aquilo "que'diz respeUo à his-
tória como tal 3. Na. maioria do's contos da autora, o
episódio ú111éo que' serve de núcleo à narrativa é um
momento de t.ensãa.,S'WdutiUrj .. Como núcleo, isto é, como
centro de continuidade épica, tal momento de crise in-
-~ 6. A FORMA- DO CONTO terior aparece diversamente condicionado e qualificado
j em função do desenvolvimento que a história recebe.
Assim, em certos contos, a tensão conflitiva se decla-
Como já se tem afirmado, o conto de Clarice Lispector
ra subitamente e. estabelece uma .ruEtura dO.._,pers.Qna-
respeita as características fundamentais do gênero 1, gero com o mundo. Noutros porém a crise declarada, que
concentrando num só episódio, que lhe serve de núC'leo,
e que corresponde a determinado momento da experiên- principio ao fim, seja como aspiração ou devaneio, seja '
cia interior, as possibilidades da narrativa. Os contos ~
da autora enfeixados nas suas tres coletâneas, Laços de
Família, A Legião Estrangeira e Felicidade
seguem o mesmo eixo mlmético dos romances, assen-.
Clandestina· 2,
como mal-entendido ou incompatibilidade entre pessoas,
tomando a forma de estranheza diante das coisas, de. .
·raramente
embate dossesentimentos
resolve através
ou dedeconsciência
um ato, mantém-se do
culposa. To-
memos IIAmor'" (LF) , adiante resunüdo, como' exemplo
I
te na consciência individuaÍ como limiar originário do dos contos em que há ruptura da personagem com o
relacionamento entre o sujeito-narrador e a realidade. mundo,' "
Mas também no domínio do conto certas diferenciações De .volta à casa, depois de haver feito as compras do
espeCÍficas quanto à história propriamente dita e ao es-
dia, Ana, que parece ser uma mulher tranqüila e em· paz
quema do discurso narrativo, resultam, como no roman-
consigo mesma, rec'osta-se "procurando conforto, nu'm
ce, do ponto de vista assumido pelo sujeito-narrador em
relação ao personagem. suspiro de meia satisfação", no banco do bonde. Ela
al~ançou, não faz muito, a situação estável em que vive:
1. Massaud Moises, Olarice Lispector: ficção e C'osmovisão. "A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava
Suplemento Literário de O Estado de São Pattlo, 26 de setembro I estouros; O calor era forte DO apartamento que estavam
1970, n.O 689 e Humboldt, 1971, n.O 23.
aos poucos pagando" - LF, 23.
2. Das vinte e cinco histórias de Felicidade Clandestina, somente
nove ("Felicidade Olandestina", "Restos do Oarnaval") "Oem
Anos de Pel'dá!>", "A Oriada", "Uma História de tanto Amor", Seus filhos cresceram, o marido chega em casa à hora
"Encarnação InvoluntárialJ) "Duas História,') a me~~ modo", "O certa, o jantar se S€gue ao almoço, na rotina dos dias ..
Primeiro Beijo" e "Uma Esperança") são inéditas. Quinze das Mas, segundo sugerem as primeiras linhas do conto,
.j.
dezessels restantes foram enfelxadas em A Legião Estrangeira,
le três delas Com títulos diferentes dos que figuram nesse livro: teria havido antes disso um acontecimento desagradá-
"Viagem a PetrópolW' como "O Grande Passei!>"; "A Vinqa?~ça" vel, que 'a personagem teme como um perigo iminente
como "Perdoando Deus"; "Desenhando um Menino" como "Menino I
à Bico de Pena". "As Águas do Mundo", que completa o total
de vinte e cinco, é um dos capítulos de Uma AprC'ltclizagem ou
O Livro dos Prazeres, romance. Entre as inéditas, "Uma Jj]spe~
rança" l1ga~se ao motivo de "Esperança", coletada em A Legião
E8trangeira) Parte lI, "Fundo de Gaveta", .págs. 235/236. .
I 3. Mantemos, para a análise do conto, a distinção entré-jorma
da história e forma do di.sct~rso. Cf. a distinção de TodO'f-ov
(réoit oom,.m~ Mst9lJ"e I;t féo1.~ com.me disooUr8) ou de J, Dubois
in Rltetortque. Génêrale, Larousse, Paris, 1970, pág. 172 (ãi8cours
narrat·/,f et récit proprement dit). .
I ~Vvf
1.8 79
que pode repetir,,:,se e contra o qual se acautela. A uma ceu entre 'a personagem e ° cego, e logo entre ela. e .as
parada do bonde, Ana vê, de súbito, um cego mascando
chicles. Transtornada por essa cena, ela deixa cair ao incompatibilida e ~n~~com oadmundo que. J~z .D2 âm- ~~.
coisas todas. O ce o é deumaJ
chão, com a arrancada violenta do veículo, o saco das mo""ttê 1mã. Dê C'ênrmaneira, a sua füi'í~o meCllaão'n
compras. Está por fim inerme diante do perigo que temia', nâo dilere dãs árvores do Jardim Botânico, que também
estampado agora· na fisionomia grotesca do homem. A ext.eriorizam o per~go dé ..yj:V:lr. Essa incompatibilidade
tranqüilidade de Ana desaparece com a sensação de
náusea que lhe vem à boca. Qa vida que àgri~m a p_ersonag.eJ)L~ctl_~·
"Ela aDaziguara tão bem a· vida, cuidara tanto para mIa gr,õfesca
es-tã""em do cego,com.
clírrelaçao quando ela sente ae comoção
..a. ~trª,nheza d~
a yi.Qlêncta
nausea ~orear-Sé de"':'sl. A'tensao coni'htiva vem, ~~
que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena com-
preensão, separava uma pessoa das outras, as. roupas eram
portanto, qUãliItcacUt pela naúsea, que precipita a mu-
claramente feitas 'para serem usa.das e pl)dia-se €'scolher
Delo jornal o filme da noite - tudo feito de modo qUE)
lher
diantedenum estado. que
das~oisas, de .~~za
alheiamento,e ~svazia,.
verdadeiro instan-
êxtase'_ht f!S.
a um dia se segmisse outro. E um cego mascando goma tes, sua vida pessoal. õh lido. pela "mía por
extensMJstj
despedaçava tudo· isso. E através da piedade aparecia a profundeza, essa mesmã crise arma-a de uma percep-
Ana uma vida cheia de náusea doce até à boca." (LF, 27). ção visual penetrante, que lhe dá a conhecer as coisas
em sua nudez, revelando-lhe a existência nelas. repre-
sada, como força. impulsiva e caótica, e desligando-a da
Domina-a essa· sensação de náusea quando atravessa
realidade cotidiana, 'do âmbito. das relações familiares.
o Ja.rdim Botânic'O para chegar à casa. Ali, em ação nas
árvores silenciosas, desencadeia-se algo estranho e hos- Momento privilegiado sob o aspecto de descortínio da
til que o cego lhe revelara, e que agora, fascinada. ex- existência, maldição' e fatalidade sob' o aspecto da rup~
perimentando um estado de verdadeiro êxtase, vê es- tura, esse instante assiriala o climax do desenvolvímen-
tender-se sobre o mundo inteiro. Porém a repentina to da narrativa. No entanto, IIAmorll não termina com
I
a tensão conflitiva levada aos dois extremos que se
lembrança dos filhos arranca-a da sedilç:.ãodesse horrí- I

..vel espetáculo que ainda continuará, menos intenso, na tocam, do rompimento com a realidade habitual e da
cozinha de casa, onde Ana procura sair do transe. Os contemplação extática. Depois· de atingir o ápice, à his-
. afazeres domésticos envolvem-na de novo como as mãos tória continua à 'maneira· de um anticlimax. De fato,
do marido que a seguram, na tranqüilidade aparente de a situação que se desagregou recompõe-se no' final do
seu dia a dia: conto, quando Ana regressa a casa' e à normalidade en-
tre os braços· do marido. O çlesfecho de "Amor" deixa~
":JrJ hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que
':nos entrever que o conflito apenas se apazigou, voltan'
não era seu, mas Que Dareceu natural, segurou a mão da
mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a
do à latência de onde emergira. ";
do perigo de viver." (LF, 32). Em outro conto exemplar, "O Búfalo" (LF) I o desfe·
cho da narrativa ocorre no climax .'''':-momento cuImi:'·
,o núcleo da história desse. conto é l:'1,quelemomento nante de. uma crise que o ,amor não correspondido,
de tensão conflitiva, extensa e profunda, que· seestabele .. causara. Diante deuro ·búfalo, nozool6gico, para onde' a
80 81:,
conduz seu conflito interior, a personagem vê refletido
nos olhos do animal o ódio que sente pelo homem que . se vendo
a despreza.
eàhimal, queno outro, um, espelhandillil
mutuamente se refletem, um,outro
vendo o ~o outro ) ~~
"O búfalo voltou-se, imobillzou-se, e à distância enca- r
n~ue os ul:e hlst6ria,
orno núciêàã SM 3s separa:'
a tensão"-.conflitiva está
' di-
rou-a. Eu te amo, disse ela então com Mio para o homem ferentemente qualificada nos contos de Clariee ,Lispec-
cujo grande crime impun1ve! era o de não querê~la. Eu tor: é transe nauseante ("Amor" e "Os Desastres de
te odeio, disse implora.ndo' amor ao búfalo. Enfim provo- Sofia", LE); acesso de ,C'ólera ("Feliz Aniversário,", LF);
cado, o grande b"Ú.faloaproximou-s~ sem pressa. Ele se de ira ("O Jantar", LF) t de ódio ("O Búfalo"), ,de lou-
aproximara, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços cura ("Imitação da Rosa", LF); de medo ("Preciosida-
pendidos ao longo' do casaco. Devagar ele se aproximava. de", LF): de angústia ("A Mensagem", LE) e de culpa
("O Crime dÓ PiM\9Ssorde Matemática", L). Momento
Ela não re.cuou um só passo.. Até que ele chegou às grades
-e ali parou. Lá estavam o búfalo e' a mulher, frente a privilegiado, cujo ápice dá algumas vezes o elimax da
:frente. Ela não oihou a cara, nem a boca, nem os cornos. narrativa, essa crise acha-se, via de regra, condicionada
Olhou seus olhos. E os -olhos do búfalo, os olhos olharam
iSeus olhos. E uma palidez' tão funda foi trocada que a.
por
("O uma "Qr", gt: ~WJtxontR..J1ão
wtua.~
Jantar'\ s6 de "Legião
"Laços de Família", pessoa aEstran-
pessoa
mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profnnd.o. geira"), e não apenas entre pessoas ("Feliz Aniversário"),
Olhos pequenos e vermelhos a olhavam." (LF, 161). mas também de p~~~~~!~J6gj,§,a("4,Mensagem", "Amor",
"O Crime do Professor de Matemática~', "írtntação da
A tensão conflitiva, mediada pela fera, como antes, Rosa"), seja esta um objeto ou um ser vivo, animal ou
em "Amor" fora mediada pelo cego, resolve-se na auto- vegetal. Num bom número de contos, associam-se a esse
destruição de personagem;, rompendo definitivamente conf11>nto,4,Ys.p atllteZja. Vj~J.mJ, os dois motivos, que são
com a realidade. .
f~Mrrentes
tência nosdoromances
mágica de ...Clarice
o~h.ac e"",do" Lispector,
d.e.s.c.ortíniQ da 1?!?:..
•••contemZ!,lafívo-
"Inocente, curiosa, entrando (lada vez mais fundo dentro -gmmetoso,este interceptando, o circuito ver1:ial. -
daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num -A velha' de ",nus Aniversarw" C'OSPI;l no cnáo, de ódio, w;
suspiro de sono, sem querer nem poder fugir. presa ao ao olhar, colérica, os filhos maduros, reunidos para fes-
mútuo assassinato. Presa como se SUa mão se tivesse
tejar-lhe a· data natalícia, e que vê c.omo"ra'tos se coto-
grudado para sempre ao punhal que' ela mesma cravara. velando" em torno dela. O olhar recíproco revela, no
)
Presa, enquanto escorregava enieitlçada ao longo das I
Conto liOS Laços de Família", a mútua afeição ,inconfe,s-
grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear
sada que une m:ãee filha. Em liOS Desastres de SofiqP',
macio a mulher viu o céu inteiro é'um b"llfalo." (LF, 16"2).
a personagem narradora fixa os olhos do profes~or
temido, "olhos nus -.: que tinham muitos cHios", e que
o conto tem o seu desfecho nesse ponto' que assinala I

a paral1zam de terror como se estivesse diante de uma


o elimax da história. Mas também. como na composi- ~
r realiq.ade estranha:
ção anteriormente examinada, aparec'e em O Búfalo",
11

condicionando a crise no seu ápice, o confronto pelo "Eu era uma menina muito purlosa, e,. para a minha
olhar, '-,-. desta vez troca de olhàres entre a- mulher e o llalidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora, até hoje:

82, ~3
--/7"
.'/
.:-~.- _._.....-.,.-...---- ..._ ..- _._--......,-~-------------------------

não saiba ao certo o q'ue vi. Mas sei que v-i. Vi tã.o fundI) ceira pessoa do singular. As variações C'oncorhHantes
quanto numa boca, de chofre eu via o abismo . do mundo. . db tipo de desenvolvimento da história' até' aqui estudado,
Aquilo que 6"2' via era anÔnimo como uma barriga aberta e do' discurso narrativo, que já podemos 'divisar em t'Os
para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se, fazendo Desastres de SOfia", relacionam-se quase sempre com
na sua cara - o mal estar já petrificado subia com
o uso da primeira pessoa, excepcional em tlLaços de
esforço até a sua pele, via a careta vagarosamente hesi~ Familia" e .mais freqüente em etA Legião Estrangeira"
tando e quebrando uma crosta - mas essa coisa que em :~. e tlFeZicidade Clandestina" 4,
\
muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se
pareda tão pouco com um sorriso como se um ffgado óu A personagem narradora reflete, no anticlimax que
um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto arremata Os Desastres de Sofia, ao qual já nos referimos
que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tlvesse sob· o aspecto do motivo do ,olhar, acerca do efeito ines-
colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse perado, entre amor e entusiasmo generoso, que a sua
do outro lado com outro olho colado me olhando. E1t' vi composição escólar improvisada causara no professor
dentro de ~WL olho. O que era incompreenslvel como um taciturno e temido, com quem ela se defrontou, e cujo
olho. Um olho aberto com sua gelatina m6vel. Com suas rosto se descontraíra num. sorriso grotesco. Por meio da
lágrimas org-ânicas." (LE, 22/23). tensão conflitiva que decai após esse confronto, e que
córresponde a um momento privilegiado de descortínio,
A semelhança do que sucede nesse conto, a crise e' a; Sana compreende a sua vocação de escritora e o destino
visão dramática coincidem em "Amor", tpreciosidade" e intranqtiilo que o <iom da palavra lhe impunha.
HO Jantar": "Através de mim, a difrci! de se amar, ele recebera,
"Então ela viu, o cego mascaVa chicles ... Um homem com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos
feitos. " .. , Ali estava eu, a menina esperta demais, e
cego mascava (;bicle,'.!:·.. O movimento da mastigação.
eis que tudo que em mim não prestava servia a Deus e aos
fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir.
homens. Tudo o que em mim não prestava era o meu
e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana,
tesouro." (LE, 28).
olhava-o. E quem a vis,se teria a impressão de uma
mulher com ódio." ("Amor", LF, 25). - "Com' brusca
rigidez olhou-os. Quando menos esperava traindo o voto. de A narrativa continua, pois, a partir desse momento,
segredo, viu-os rápida... Não deveria ter visto. Porque,' como um comentário lírico que franqueia ao sujeito-
vendo, ela por Um instante' arriscava-se a tornar-se indi- -narrador, reforçando o tom confidencial e memorialista
vidual.
. .. " (Preciosidade, LF, 105) -
, "No momento em do .conto, a interpretação do incidente narrado:
q:ue eu levaViL o garfo à boca, olhei-o. Ei-Io· de olhos.
4. Em Laços de Família, na prImeira pessoa, apenas "O Jantar".
,.fechados mastigando pão com vigor e mecanismo, os dois. Em Legião Estrangeira, além 'de ('Os Desastres de Sofia", HA
punhos . cerrados sobre a mesa .. Continuei comendo· e. Repal'tição dOff Páes", tio Ovo "e a' Galinha", "A Quinta Hi.9tória",
olha.ndo~·". (O Jantar, LF, 91), Jr~ t(Uma Ami.~ade Sincera" e, ambiguamente, no prel1mbulo da. his-
tória, IrOa Obedientes", Dentre os inéditos de Felicidade Clandes .•
tina,' são em primeira pessoa, além da história que dá trtulo" ao
A exceção de (tOS Desastres de SOfia" e dê tIO Jantar'~, volume, '''Restos do Carnaval", "Cem, Ands de Perdão", "1',Enéar~
os: :butros contos mencionados adotam a forma da ter~ ILação Voluntária" e lIDttCU3 Hist6ria~ a meu 1nodo" "

'85
84
";De ch.ofre explicava-se :para que eu ,nascera com mão ,sacrlf[clo de não, merecer, apenas para suavizar a. dor de
dura, e para que eu nascera sem n,ojo da dor. Para que que:m.não ama. Não, esse foi somente um dos motivos. E
te servem essas unhas longas? Para' te arranhar de morte que"os outros fazem outras hist6rias ... " (LE, 29).
e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo
do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome?
Para te morder e para soprar a fim d~ que eu não te doa
o eu-narrador é, p'ois, O sujeito e objeto da história,
como repositórlo de outros contos possíveis, que serão
demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o
lobo Inevitável pois a vida me foi dada. Para que te
+' ,partes diferenciadas de uma mesma matéria narrativa
i atualizável em cada um deles. O comentário lírico
servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos
.anuneia o retorno da narração que se limita" a lnter-,
de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto - uivaram
romper. Em vez de aditar-se à história, càmo um acrés-
08 lobos, e olharam intimidados as pr6pras garras antes
cimo caprichoso, o elemento expressivo mobiliza a nar-
de se aconchegarem um no ocutro para amar e dormir.H
ração e' condiciona a possibilidade de-seu recomeço. Em
(LE, 28/29).
simetria com a alternância dos discursos direto e indireto
Mas o comentário lírico, como esse trecho dá a per-
ceber, é uma prática meditativa. A confidência e o me~ uma constante oscilação do narrativo ao expressivo e do ~
moralismo não diluem a presença do eu-narrador, que €xpressivo ao narrativo ~ o épiC'o e o lírico inter-rela- '
'\ nos romances,
danados e se delimitando em "Os Desastres de SOfia')"
verifica-se mutuamente.
contrabalança a "efusão lírica" pelo seu enquadramento
parodístico duas vezes assinalado. Além daquele que , Mas a posição do eu, assim firmada, como sujeito e
marC'a a identificação literária da personagem, réplica ()bjeto da narração, delimita a história por uma pers,:,
'malígna da travessa Sofia, da Condessa de Ségur 5, outro pectiva memorialista. ,autobiográfica 6. Em outros Gontos
índice de paródia é o lobo da história do Chapeuzinho porém; essa posição é a de um agente emissor, que asse-,
Vermelho, assimilado ao lobo do homem. gura à história, como em "O Ovo e a Galinha" e a
""Quinta História". por associação e por desdobramento de
A digressão em torno do acontecimento sob a forma
de um comentário que o interpreta, integra-se, por con- 6. Em IIOS DesaStres de SofiCL" a posição do e~~, como sujeito á
seguinte, ao desenvolvimento da história. No fim do objeto da narração, tem a franquia da reminiscência, e o tom
oCon,ficlencialde "Fdícidade m(indesti1~CL)J,"Restos do Garn.avalH e
conto, a narradora, que nele se investiu, divisa a possi- ~(aem Anos de Perdão". Essa atitude também encontramos em
bilidade de principiar outras histórias: certas narrativas alutas, que tanto podem merecer a designação
<'Ieconto ou de crônica, -:.. como, entre outros, "Africa" 'e "Berna"
" . .. E foi assim que no grande páteo do colégio lenta- - inclufdas em "Fundo de G(]//)e,ta", onde a autora reune aquelas
mente co~cei s. aprênder a ser amada, suportando o suas composições clrcunstanclais ou Inacabadas, e que lhe· inte-
ressam por esse aspecto da imperfeição e da feitura tosca ("Por-
'Que o que presta também não presta. Além do mais, ° que obvia·
5. O conto de Clarice Lispector adota o Utulo que tomou em mente não presta sempre me interessa multo. Gosto de um modo
português L68 Malhewrs de SOlJhie, parte da obra edificante da. -carinhoso do inacabado, do mal-feito, da(}iulloque desajeitadamente
Comtesse de Sêgur (Sophie Rostopchine). A.a travessuras de irre- .~}~ tenta um pequeno vôo e cal sem graça no' chão" - uFundo de
quieta e inocente: Sophie 'desse Jivro, no ambiente da alta bur- {}aveta", LE, Parte lI, pág. 127). Desse ponto de vista, e para
guesia "f1n-de-siêcle", não falta uma certa malIgnIdade infantil tais composições, a distinção entre conto e cr6nica, absorvida pela
que o éonto de Lispector r.evela e acentua na sua personagem :(Iexibllidade que a, narrativa curta adquire em Clarlce Lispector,
homônima. torna-se irrelevante. "

.86 '81
unidades narra tivas-de-:,extensão- desíguãl-;: ::Um-desenvol- Ainda tendo' um nome, ainda sendo ','ovo", aquilo de que
Vim~n~-trãhsúbjetivo, independente daquela perspeCtiva, repetidamente se fala, passivel de receber· outros nomes,
será até o fim do conto excedentário aos símbolos desti-
,"0 primeiro conto, /0 Ovo 'e a Galinha' (LE), é todo
um jogo de linguagem entre palavra e coisa. Como numa nâdos a circunscrevê-lo,reaparecendo sempre,' objeto
fantasia verbal onírica, as frases-feitas, semelhantes âOS visível de significado indizível, através dos elos que
I
dos antigos livros escolares de leitura ("O cão vê o ov01 compõem. a teia-l1nguístíc~ãs defini~~-o-trans-
i:~ por.taID;.---~·---~':"'--
\ só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo"): ó
~<Por esse jogo de linguagem entre palavra e coisa, o
'",- dispara~e ("Ao ovo dedico a nação c'hinesa: ~ o~o. é ~ ovo ascende à categoria de acontecimento renalaàe1
~um:-ª--COIsasuspensa. Nunca pensou"); a paródlall1osoflCa-- I

('Sera-Clliê-sBil1u-bW?-É quase cerfo"que sei. Assim: I


(aberto sobre uma realidade indeteríiunada que ele repre-
existo, logo sei"); o paradºXO._.C~O-que,eu,n~9_sei do ovo \.-----eleroe-o realidade
'S.'êúta=:::. inícIO à qual a narradora facese -d-a-Ef
acha presa
é o que r~almente-impõrta. O que eu não sei dó' Ovo-m.e de sua descnçaoeem
\,
própria se narra.
,,'e misturam-se num ritmo febril e alucinatório, retomado Como no relato de GH, curre p'ela evasão do significado
que acompanha o movimento do eu à busca de si mesmo,
dá o'--ovõ propriamente dito"), sucedem-se, Rlternám:.:-Sê'-·-"')- e em tensão conflitiva com o objeto que o fascina, o
cantes em que a palavra "ovo" é reiterada: Olho o ovo ~/
~e - parágrato a parágrafo
1d!!l só olhar ... / Ver ao longoé de
o ovo cadeias de
impossível. .. / Sign,iU~
O.ovo------- <lesenvolvimento, parabólico da narrativa .
não exis:te-ma:i~\lo -ê uma cõisa suspensa ... / "Comecei a falar da galinha e hi1 muito já não estou
O ovo é uma exteriorização ... ; O ovo é a alma da falando mais da galinha. Mas ainda estou falando do
galinha ... / O ovo é coisa que precisa tomar cuidado / ovo. N (LE, 61).
Com o tempo o ovo se tornou um ovo de galinha ·
etc. etc . Tanto o ovo e a galinha como a narradora, que assume
Essas cadeias de significantes são, ao mesmo tempo, . €m certo momento' a. função impessoal de um nós cole-
unidades narrativas que se desdobram dentro de cada tivo
parágrafo ou de parágrafo a parágrafo, reiterando 'o (" Somos o que se abstém de destruir, e nisso se con-
somem. N6s, agentes disfarçados e distrlbu1dos pelas
mesmo nome. De uma a outra cadeia, fala-se de uma só
funções menos reveladoras, nós às vezes nos 1'econhecemos"
coisa, de um só objeto; mas o significado se evade
- LE, 61),
quanto mais cresce a teia das definições por eles for-
mada em torno do objeto ovo, definido de diversas ma..:
.são figuras de igual relevo no plano exemplarista do
neiras. Dessa forma, como unidades narrativas que s.e
conto, que.é uma parábola do caráter instrumental do
associam, as cadeias constituem aspectos desdobrados de amor e da vida, a serviço da existência, força latente, \
uma ~Jlita.ç~vlê1illE..?-dirigida a um objeto e deJ~ i
'I 1l1fste'riosa e dega: .. . ..-..... )
separada pela seqüência infindável de frases que o envol., ~,.H
vem: partindo da,reiteração das palavras que o nomeiam~ "Os· ovos estalam na frlgide~ra, -~·-;ergü1liãaã'-n:ó-"~ono·· - -'
preparo o café da manhã. Sem nenhum senso da 'realldade,
7. Expressão usada pela autora em A Paixão' S(Jg1~ndoGH para grito pelas crianças que brotam de várIas camas, arrastam
designar o caráter das visões encadeadas da personagem. '
89
88
6
desdobramento da história - evidentemente sem
enredo - produz-se como desdobramento da visão da
.~
:1
í
i
Segundo esse esquema, análogo ao procedimento nove-
lístIco do encaixe 8, poderia desenvolver-se, repetindo-se
a mesma proposição inIcial, além de uma quinta história,
um número indefinido de relatos. O conto termina pre-

/! A,
personagem, sujeito e objeto da narrativa. i -=1-- cisamente quando se esboça o começo de nova cadeia,
que se denominaria "LeIbniz e a transcendência do amor
(LE) é também a personagem que narra. Um só aconte- (. ! na Polinésia": "Começa assim: queixei-me de baratas,"
cime.nto (a morte de baratas) é visto de quatro ma~ J I, .•

ne!ras diferentes, que correspondem (LE, 94).


, ,O eixo de desenvolvimento de liA a Quinta
quatro História"
histórias J. I
distintas. cada uma, dessas maneiras comportando uma ~ I
A diferença entre esse conto e "0 Ovo e a Galinha" .
cadeia autônoma de significantes relacionados com as. / está na extensão do esquema de desenvolvi!mento que
demais através do sujeito-narrador, lugar comum onde! liga os dois entre si: no primeiro, a história resultou da
elas se articulam e, por onde os significados se evadem. associação entre cadeias autônomas de signIficantes como
A primeira história ("Como matar baratas"), anedota unidades narrativas mínimas; no segundo, as quatro ou
ou fábula em estado puro, enquanto registro de um acon- mais posíveis histórias desencaixadas correspondem a.
tecimento, resume-se na proposição inicial do conto que uma só história, que se desdobrou em cadeias autônomas·
"começa assim; queixei-me de baratas. Uma senhora de significantes. como unidades narrativas mínimas.
ouviu minha. queixa. Deu-me' a receita de como matá-Ias. Num e noutro caso, o último elo dessas cadeias, que con-
Que misturasse em .partes iguais açúcar, farinha e gesso.' diciona a associação no desdobramento, é o sujeito que
A farinha. e ,o açúcar as atrairiam, o gesso esturricarla. se narra, fazendo de sua experiência a condição de pos-
o de dentro delas. Assim fiz. Morreram." (LE, 91).
sibilidade de todas as hIstórias 9.

Na segunda história, denominada "O Assassinato", ()


mesmo incidente cotidiano se transforma numa cena de
cruel mortandade. Na terceira, "Estátuas", a mortandade
assume as propórções de uma catástrofe universal (a
hecatombe de PompeIa), de que a narradora participa
como testemunha e agente. Na quarta, que não tem
título, as baratas estorric'adas de gesso representam o l
...;tl;
8. Mecanismo do enoaixe, como nas Mil e uma Noites, mas
numa perSpectiva distinta, que seria a da causalidade psicológica.
molde interno em que a personagem se nUra: (, Ver Tzvetan Todorov, "08 Homml,8 - NarrativM"J .As Est1'utura8'
Narrativa8'. São Paulo, EdItora Perspectlva., 1970, págs. 121/123.
"Eu Iria então todas as noites renovar o açúcar letal? 9. Em "Duas Hi8t6riM a meu 'modo" (FeUoidade Olan.cZsstm,a),
como quem já. não dorme sem a avidez de um rito: •• essa experiência. está, condiciona.da por um texto prévio, de MareeI
Aymé, parafraseado e glosado, como exercrcio de escrita. (Fe, 164).

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