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LISPECTOR, Clarice - A Forma Do Conto (Em Leitura de Clarice Lispector - Por Benedito Nunes) PDF
LISPECTOR, Clarice - A Forma Do Conto (Em Leitura de Clarice Lispector - Por Benedito Nunes) PDF
,, I
BENEDITO., :NUNES
FICHA CATALOGRAFICA
74·0375 CDD-869.9309
O
1ndic~ para o catálogo sistemático:
EDIÇOES'QUfRoN
revisão: CARLOS MARIO COELHO 1 . 1973
Vejamos primeiramente aquilo "que'diz respeUo à his-
tória como tal 3. Na. maioria do's contos da autora, o
episódio ú111éo que' serve de núcleo à narrativa é um
momento de t.ensãa.,S'WdutiUrj .. Como núcleo, isto é, como
centro de continuidade épica, tal momento de crise in-
-~ 6. A FORMA- DO CONTO terior aparece diversamente condicionado e qualificado
j em função do desenvolvimento que a história recebe.
Assim, em certos contos, a tensão conflitiva se decla-
Como já se tem afirmado, o conto de Clarice Lispector
ra subitamente e. estabelece uma .ruEtura dO.._,pers.Qna-
respeita as características fundamentais do gênero 1, gero com o mundo. Noutros porém a crise declarada, que
concentrando num só episódio, que lhe serve de núC'leo,
e que corresponde a determinado momento da experiên- principio ao fim, seja como aspiração ou devaneio, seja '
cia interior, as possibilidades da narrativa. Os contos ~
da autora enfeixados nas suas tres coletâneas, Laços de
Família, A Legião Estrangeira e Felicidade
seguem o mesmo eixo mlmético dos romances, assen-.
Clandestina· 2,
como mal-entendido ou incompatibilidade entre pessoas,
tomando a forma de estranheza diante das coisas, de. .
·raramente
embate dossesentimentos
resolve através
ou dedeconsciência
um ato, mantém-se do
culposa. To-
memos IIAmor'" (LF) , adiante resunüdo, como' exemplo
I
te na consciência individuaÍ como limiar originário do dos contos em que há ruptura da personagem com o
relacionamento entre o sujeito-narrador e a realidade. mundo,' "
Mas também no domínio do conto certas diferenciações De .volta à casa, depois de haver feito as compras do
espeCÍficas quanto à história propriamente dita e ao es-
dia, Ana, que parece ser uma mulher tranqüila e em· paz
quema do discurso narrativo, resultam, como no roman-
consigo mesma, rec'osta-se "procurando conforto, nu'm
ce, do ponto de vista assumido pelo sujeito-narrador em
relação ao personagem. suspiro de meia satisfação", no banco do bonde. Ela
al~ançou, não faz muito, a situação estável em que vive:
1. Massaud Moises, Olarice Lispector: ficção e C'osmovisão. "A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava
Suplemento Literário de O Estado de São Pattlo, 26 de setembro I estouros; O calor era forte DO apartamento que estavam
1970, n.O 689 e Humboldt, 1971, n.O 23.
aos poucos pagando" - LF, 23.
2. Das vinte e cinco histórias de Felicidade Clandestina, somente
nove ("Felicidade Olandestina", "Restos do Oarnaval") "Oem
Anos de Pel'dá!>", "A Oriada", "Uma História de tanto Amor", Seus filhos cresceram, o marido chega em casa à hora
"Encarnação InvoluntárialJ) "Duas História,') a me~~ modo", "O certa, o jantar se S€gue ao almoço, na rotina dos dias ..
Primeiro Beijo" e "Uma Esperança") são inéditas. Quinze das Mas, segundo sugerem as primeiras linhas do conto,
.j.
dezessels restantes foram enfelxadas em A Legião Estrangeira,
le três delas Com títulos diferentes dos que figuram nesse livro: teria havido antes disso um acontecimento desagradá-
"Viagem a PetrópolW' como "O Grande Passei!>"; "A Vinqa?~ça" vel, que 'a personagem teme como um perigo iminente
como "Perdoando Deus"; "Desenhando um Menino" como "Menino I
à Bico de Pena". "As Águas do Mundo", que completa o total
de vinte e cinco, é um dos capítulos de Uma AprC'ltclizagem ou
O Livro dos Prazeres, romance. Entre as inéditas, "Uma Jj]spe~
rança" l1ga~se ao motivo de "Esperança", coletada em A Legião
E8trangeira) Parte lI, "Fundo de Gaveta", .págs. 235/236. .
I 3. Mantemos, para a análise do conto, a distinção entré-jorma
da história e forma do di.sct~rso. Cf. a distinção de TodO'f-ov
(réoit oom,.m~ Mst9lJ"e I;t féo1.~ com.me disooUr8) ou de J, Dubois
in Rltetortque. Génêrale, Larousse, Paris, 1970, pág. 172 (ãi8cours
narrat·/,f et récit proprement dit). .
I ~Vvf
1.8 79
que pode repetir,,:,se e contra o qual se acautela. A uma ceu entre 'a personagem e ° cego, e logo entre ela. e .as
parada do bonde, Ana vê, de súbito, um cego mascando
chicles. Transtornada por essa cena, ela deixa cair ao incompatibilida e ~n~~com oadmundo que. J~z .D2 âm- ~~.
coisas todas. O ce o é deumaJ
chão, com a arrancada violenta do veículo, o saco das mo""ttê 1mã. Dê C'ênrmaneira, a sua füi'í~o meCllaão'n
compras. Está por fim inerme diante do perigo que temia', nâo dilere dãs árvores do Jardim Botânico, que também
estampado agora· na fisionomia grotesca do homem. A ext.eriorizam o per~go dé ..yj:V:lr. Essa incompatibilidade
tranqüilidade de Ana desaparece com a sensação de
náusea que lhe vem à boca. Qa vida que àgri~m a p_ersonag.eJ)L~ctl_~·
"Ela aDaziguara tão bem a· vida, cuidara tanto para mIa gr,õfesca
es-tã""em do cego,com.
clírrelaçao quando ela sente ae comoção
..a. ~trª,nheza d~
a yi.Qlêncta
nausea ~orear-Sé de"':'sl. A'tensao coni'htiva vem, ~~
que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena com-
preensão, separava uma pessoa das outras, as. roupas eram
portanto, qUãliItcacUt pela naúsea, que precipita a mu-
claramente feitas 'para serem usa.das e pl)dia-se €'scolher
Delo jornal o filme da noite - tudo feito de modo qUE)
lher
diantedenum estado. que
das~oisas, de .~~za
alheiamento,e ~svazia,.
verdadeiro instan-
êxtase'_ht f!S.
a um dia se segmisse outro. E um cego mascando goma tes, sua vida pessoal. õh lido. pela "mía por
extensMJstj
despedaçava tudo· isso. E através da piedade aparecia a profundeza, essa mesmã crise arma-a de uma percep-
Ana uma vida cheia de náusea doce até à boca." (LF, 27). ção visual penetrante, que lhe dá a conhecer as coisas
em sua nudez, revelando-lhe a existência nelas. repre-
sada, como força. impulsiva e caótica, e desligando-a da
Domina-a essa· sensação de náusea quando atravessa
realidade cotidiana, 'do âmbito. das relações familiares.
o Ja.rdim Botânic'O para chegar à casa. Ali, em ação nas
árvores silenciosas, desencadeia-se algo estranho e hos- Momento privilegiado sob o aspecto de descortínio da
til que o cego lhe revelara, e que agora, fascinada. ex- existência, maldição' e fatalidade sob' o aspecto da rup~
perimentando um estado de verdadeiro êxtase, vê es- tura, esse instante assiriala o climax do desenvolvímen-
tender-se sobre o mundo inteiro. Porém a repentina to da narrativa. No entanto, IIAmorll não termina com
I
a tensão conflitiva levada aos dois extremos que se
lembrança dos filhos arranca-a da sedilç:.ãodesse horrí- I
..vel espetáculo que ainda continuará, menos intenso, na tocam, do rompimento com a realidade habitual e da
cozinha de casa, onde Ana procura sair do transe. Os contemplação extática. Depois· de atingir o ápice, à his-
. afazeres domésticos envolvem-na de novo como as mãos tória continua à 'maneira· de um anticlimax. De fato,
do marido que a seguram, na tranqüilidade aparente de a situação que se desagregou recompõe-se no' final do
seu dia a dia: conto, quando Ana regressa a casa' e à normalidade en-
tre os braços· do marido. O çlesfecho de "Amor" deixa~
":JrJ hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que
':nos entrever que o conflito apenas se apazigou, voltan'
não era seu, mas Que Dareceu natural, segurou a mão da
mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a
do à latência de onde emergira. ";
do perigo de viver." (LF, 32). Em outro conto exemplar, "O Búfalo" (LF) I o desfe·
cho da narrativa ocorre no climax .'''':-momento cuImi:'·
,o núcleo da história desse. conto é l:'1,quelemomento nante de. uma crise que o ,amor não correspondido,
de tensão conflitiva, extensa e profunda, que· seestabele .. causara. Diante deuro ·búfalo, nozool6gico, para onde' a
80 81:,
conduz seu conflito interior, a personagem vê refletido
nos olhos do animal o ódio que sente pelo homem que . se vendo
a despreza.
eàhimal, queno outro, um, espelhandillil
mutuamente se refletem, um,outro
vendo o ~o outro ) ~~
"O búfalo voltou-se, imobillzou-se, e à distância enca- r
n~ue os ul:e hlst6ria,
orno núciêàã SM 3s separa:'
a tensão"-.conflitiva está
' di-
rou-a. Eu te amo, disse ela então com Mio para o homem ferentemente qualificada nos contos de Clariee ,Lispec-
cujo grande crime impun1ve! era o de não querê~la. Eu tor: é transe nauseante ("Amor" e "Os Desastres de
te odeio, disse implora.ndo' amor ao búfalo. Enfim provo- Sofia", LE); acesso de ,C'ólera ("Feliz Aniversário,", LF);
cado, o grande b"Ú.faloaproximou-s~ sem pressa. Ele se de ira ("O Jantar", LF) t de ódio ("O Búfalo"), ,de lou-
aproximara, a poeira erguia-se. A mulher esperou de braços cura ("Imitação da Rosa", LF); de medo ("Preciosida-
pendidos ao longo' do casaco. Devagar ele se aproximava. de", LF): de angústia ("A Mensagem", LE) e de culpa
("O Crime dÓ PiM\9Ssorde Matemática", L). Momento
Ela não re.cuou um só passo.. Até que ele chegou às grades
-e ali parou. Lá estavam o búfalo e' a mulher, frente a privilegiado, cujo ápice dá algumas vezes o elimax da
:frente. Ela não oihou a cara, nem a boca, nem os cornos. narrativa, essa crise acha-se, via de regra, condicionada
Olhou seus olhos. E os -olhos do búfalo, os olhos olharam
iSeus olhos. E uma palidez' tão funda foi trocada que a.
por
("O uma "Qr", gt: ~WJtxontR..J1ão
wtua.~
Jantar'\ s6 de "Legião
"Laços de Família", pessoa aEstran-
pessoa
mulher se entorpeceu dormente. De pé, em sono profnnd.o. geira"), e não apenas entre pessoas ("Feliz Aniversário"),
Olhos pequenos e vermelhos a olhavam." (LF, 161). mas também de p~~~~~!~J6gj,§,a("4,Mensagem", "Amor",
"O Crime do Professor de Matemática~', "írtntação da
A tensão conflitiva, mediada pela fera, como antes, Rosa"), seja esta um objeto ou um ser vivo, animal ou
em "Amor" fora mediada pelo cego, resolve-se na auto- vegetal. Num bom número de contos, associam-se a esse
destruição de personagem;, rompendo definitivamente conf11>nto,4,Ys.p atllteZja. Vj~J.mJ, os dois motivos, que são
com a realidade. .
f~Mrrentes
tência nosdoromances
mágica de ...Clarice
o~h.ac e"",do" Lispector,
d.e.s.c.ortíniQ da 1?!?:..
•••contemZ!,lafívo-
"Inocente, curiosa, entrando (lada vez mais fundo dentro -gmmetoso,este interceptando, o circuito ver1:ial. -
daqueles olhos que sem pressa a fitavam, ingênua, num -A velha' de ",nus Aniversarw" C'OSPI;l no cnáo, de ódio, w;
suspiro de sono, sem querer nem poder fugir. presa ao ao olhar, colérica, os filhos maduros, reunidos para fes-
mútuo assassinato. Presa como se SUa mão se tivesse
tejar-lhe a· data natalícia, e que vê c.omo"ra'tos se coto-
grudado para sempre ao punhal que' ela mesma cravara. velando" em torno dela. O olhar recíproco revela, no
)
Presa, enquanto escorregava enieitlçada ao longo das I
Conto liOS Laços de Família", a mútua afeição ,inconfe,s-
grades. Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear
sada que une m:ãee filha. Em liOS Desastres de SofiqP',
macio a mulher viu o céu inteiro é'um b"llfalo." (LF, 16"2).
a personagem narradora fixa os olhos do profes~or
temido, "olhos nus -.: que tinham muitos cHios", e que
o conto tem o seu desfecho nesse ponto' que assinala I
condicionando a crise no seu ápice, o confronto pelo "Eu era uma menina muito purlosa, e,. para a minha
olhar, '-,-. desta vez troca de olhàres entre a- mulher e o llalidez, eu vi. Eriçada, prestes a vomitar, embora, até hoje:
82, ~3
--/7"
.'/
.:-~.- _._.....-.,.-...---- ..._ ..- _._--......,-~-------------------------
não saiba ao certo o q'ue vi. Mas sei que v-i. Vi tã.o fundI) ceira pessoa do singular. As variações C'oncorhHantes
quanto numa boca, de chofre eu via o abismo . do mundo. . db tipo de desenvolvimento da história' até' aqui estudado,
Aquilo que 6"2' via era anÔnimo como uma barriga aberta e do' discurso narrativo, que já podemos 'divisar em t'Os
para uma operação de intestinos. Vi uma coisa se, fazendo Desastres de SOfia", relacionam-se quase sempre com
na sua cara - o mal estar já petrificado subia com
o uso da primeira pessoa, excepcional em tlLaços de
esforço até a sua pele, via a careta vagarosamente hesi~ Familia" e .mais freqüente em etA Legião Estrangeira"
tando e quebrando uma crosta - mas essa coisa que em :~. e tlFeZicidade Clandestina" 4,
\
muda catástrofe se desenraizava, essa coisa ainda se
pareda tão pouco com um sorriso como se um ffgado óu A personagem narradora reflete, no anticlimax que
um pé tentassem sorrir, não sei. O que vi, vi tão de perto arremata Os Desastres de Sofia, ao qual já nos referimos
que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tlvesse sob· o aspecto do motivo do ,olhar, acerca do efeito ines-
colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse perado, entre amor e entusiasmo generoso, que a sua
do outro lado com outro olho colado me olhando. E1t' vi composição escólar improvisada causara no professor
dentro de ~WL olho. O que era incompreenslvel como um taciturno e temido, com quem ela se defrontou, e cujo
olho. Um olho aberto com sua gelatina m6vel. Com suas rosto se descontraíra num. sorriso grotesco. Por meio da
lágrimas org-ânicas." (LE, 22/23). tensão conflitiva que decai após esse confronto, e que
córresponde a um momento privilegiado de descortínio,
A semelhança do que sucede nesse conto, a crise e' a; Sana compreende a sua vocação de escritora e o destino
visão dramática coincidem em "Amor", tpreciosidade" e intranqtiilo que o <iom da palavra lhe impunha.
HO Jantar": "Através de mim, a difrci! de se amar, ele recebera,
"Então ela viu, o cego mascaVa chicles ... Um homem com grande caridade por si mesmo, aquilo de que somos
feitos. " .. , Ali estava eu, a menina esperta demais, e
cego mascava (;bicle,'.!:·.. O movimento da mastigação.
eis que tudo que em mim não prestava servia a Deus e aos
fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir.
homens. Tudo o que em mim não prestava era o meu
e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana,
tesouro." (LE, 28).
olhava-o. E quem a vis,se teria a impressão de uma
mulher com ódio." ("Amor", LF, 25). - "Com' brusca
rigidez olhou-os. Quando menos esperava traindo o voto. de A narrativa continua, pois, a partir desse momento,
segredo, viu-os rápida... Não deveria ter visto. Porque,' como um comentário lírico que franqueia ao sujeito-
vendo, ela por Um instante' arriscava-se a tornar-se indi- -narrador, reforçando o tom confidencial e memorialista
vidual.
. .. " (Preciosidade, LF, 105) -
, "No momento em do .conto, a interpretação do incidente narrado:
q:ue eu levaViL o garfo à boca, olhei-o. Ei-Io· de olhos.
4. Em Laços de Família, na prImeira pessoa, apenas "O Jantar".
,.fechados mastigando pão com vigor e mecanismo, os dois. Em Legião Estrangeira, além 'de ('Os Desastres de Sofia", HA
punhos . cerrados sobre a mesa .. Continuei comendo· e. Repal'tição dOff Páes", tio Ovo "e a' Galinha", "A Quinta Hi.9tória",
olha.ndo~·". (O Jantar, LF, 91), Jr~ t(Uma Ami.~ade Sincera" e, ambiguamente, no prel1mbulo da. his-
tória, IrOa Obedientes", Dentre os inéditos de Felicidade Clandes .•
tina,' são em primeira pessoa, além da história que dá trtulo" ao
A exceção de (tOS Desastres de SOfia" e dê tIO Jantar'~, volume, '''Restos do Carnaval", "Cem, Ands de Perdão", "1',Enéar~
os: :butros contos mencionados adotam a forma da ter~ ILação Voluntária" e lIDttCU3 Hist6ria~ a meu 1nodo" "
'85
84
";De ch.ofre explicava-se :para que eu ,nascera com mão ,sacrlf[clo de não, merecer, apenas para suavizar a. dor de
dura, e para que eu nascera sem n,ojo da dor. Para que que:m.não ama. Não, esse foi somente um dos motivos. E
te servem essas unhas longas? Para' te arranhar de morte que"os outros fazem outras hist6rias ... " (LE, 29).
e para arrancar os teus espinhos mortais, responde o lobo
do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome?
Para te morder e para soprar a fim d~ que eu não te doa
o eu-narrador é, p'ois, O sujeito e objeto da história,
como repositórlo de outros contos possíveis, que serão
demais, meu amor, já que tenho que te doer, eu sou o
lobo Inevitável pois a vida me foi dada. Para que te
+' ,partes diferenciadas de uma mesma matéria narrativa
i atualizável em cada um deles. O comentário lírico
servem essas mãos que ardem e prendem? Para ficarmos
.anuneia o retorno da narração que se limita" a lnter-,
de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto - uivaram
romper. Em vez de aditar-se à história, càmo um acrés-
08 lobos, e olharam intimidados as pr6pras garras antes
cimo caprichoso, o elemento expressivo mobiliza a nar-
de se aconchegarem um no ocutro para amar e dormir.H
ração e' condiciona a possibilidade de-seu recomeço. Em
(LE, 28/29).
simetria com a alternância dos discursos direto e indireto
Mas o comentário lírico, como esse trecho dá a per-
ceber, é uma prática meditativa. A confidência e o me~ uma constante oscilação do narrativo ao expressivo e do ~
moralismo não diluem a presença do eu-narrador, que €xpressivo ao narrativo ~ o épiC'o e o lírico inter-rela- '
'\ nos romances,
danados e se delimitando em "Os Desastres de SOfia')"
verifica-se mutuamente.
contrabalança a "efusão lírica" pelo seu enquadramento
parodístico duas vezes assinalado. Além daquele que , Mas a posição do eu, assim firmada, como sujeito e
marC'a a identificação literária da personagem, réplica ()bjeto da narração, delimita a história por uma pers,:,
'malígna da travessa Sofia, da Condessa de Ségur 5, outro pectiva memorialista. ,autobiográfica 6. Em outros Gontos
índice de paródia é o lobo da história do Chapeuzinho porém; essa posição é a de um agente emissor, que asse-,
Vermelho, assimilado ao lobo do homem. gura à história, como em "O Ovo e a Galinha" e a
""Quinta História". por associação e por desdobramento de
A digressão em torno do acontecimento sob a forma
de um comentário que o interpreta, integra-se, por con- 6. Em IIOS DesaStres de SofiCL" a posição do e~~, como sujeito á
seguinte, ao desenvolvimento da história. No fim do objeto da narração, tem a franquia da reminiscência, e o tom
oCon,ficlencialde "Fdícidade m(indesti1~CL)J,"Restos do Garn.avalH e
conto, a narradora, que nele se investiu, divisa a possi- ~(aem Anos de Perdão". Essa atitude também encontramos em
bilidade de principiar outras histórias: certas narrativas alutas, que tanto podem merecer a designação
<'Ieconto ou de crônica, -:.. como, entre outros, "Africa" 'e "Berna"
" . .. E foi assim que no grande páteo do colégio lenta- - inclufdas em "Fundo de G(]//)e,ta", onde a autora reune aquelas
mente co~cei s. aprênder a ser amada, suportando o suas composições clrcunstanclais ou Inacabadas, e que lhe· inte-
ressam por esse aspecto da imperfeição e da feitura tosca ("Por-
'Que o que presta também não presta. Além do mais, ° que obvia·
5. O conto de Clarice Lispector adota o Utulo que tomou em mente não presta sempre me interessa multo. Gosto de um modo
português L68 Malhewrs de SOlJhie, parte da obra edificante da. -carinhoso do inacabado, do mal-feito, da(}iulloque desajeitadamente
Comtesse de Sêgur (Sophie Rostopchine). A.a travessuras de irre- .~}~ tenta um pequeno vôo e cal sem graça no' chão" - uFundo de
quieta e inocente: Sophie 'desse Jivro, no ambiente da alta bur- {}aveta", LE, Parte lI, pág. 127). Desse ponto de vista, e para
guesia "f1n-de-siêcle", não falta uma certa malIgnIdade infantil tais composições, a distinção entre conto e cr6nica, absorvida pela
que o éonto de Lispector r.evela e acentua na sua personagem :(Iexibllidade que a, narrativa curta adquire em Clarlce Lispector,
homônima. torna-se irrelevante. "
.86 '81
unidades narra tivas-de-:,extensão- desíguãl-;: ::Um-desenvol- Ainda tendo' um nome, ainda sendo ','ovo", aquilo de que
Vim~n~-trãhsúbjetivo, independente daquela perspeCtiva, repetidamente se fala, passivel de receber· outros nomes,
será até o fim do conto excedentário aos símbolos desti-
,"0 primeiro conto, /0 Ovo 'e a Galinha' (LE), é todo
um jogo de linguagem entre palavra e coisa. Como numa nâdos a circunscrevê-lo,reaparecendo sempre,' objeto
fantasia verbal onírica, as frases-feitas, semelhantes âOS visível de significado indizível, através dos elos que
I
dos antigos livros escolares de leitura ("O cão vê o ov01 compõem. a teia-l1nguístíc~ãs defini~~-o-trans-
i:~ por.taID;.---~·---~':"'--
\ só as máquinas vêem o ovo. O guindaste vê o ovo"): ó
~<Por esse jogo de linguagem entre palavra e coisa, o
'",- dispara~e ("Ao ovo dedico a nação c'hinesa: ~ o~o. é ~ ovo ascende à categoria de acontecimento renalaàe1
~um:-ª--COIsasuspensa. Nunca pensou"); a paródlall1osoflCa-- I
/! A,
personagem, sujeito e objeto da narrativa. i -=1-- cisamente quando se esboça o começo de nova cadeia,
que se denominaria "LeIbniz e a transcendência do amor
(LE) é também a personagem que narra. Um só aconte- (. ! na Polinésia": "Começa assim: queixei-me de baratas,"
cime.nto (a morte de baratas) é visto de quatro ma~ J I, .•
90 91