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Preparação
Beatriz Sarlo
Revisão
Raïtsa Leal
Capa
D29 | Leandro Dittz
Innerarity, Daniel
A política em tempos de indignação : A frustração po-
pular e os riscos para a democracia / Daniel Innerarity ;
tradução de João Pedro George. – Rio de Janeiro : LeYa,
2017.
304 p.
ISBN 978-85-441-0513-9
Título original: La política en tiempos de indignación
3. Políticas do reconhecimento 53
a. Da redistribuição ao reconhecimento 53
b. O “quem” também é importante 57
c. Uma nova equidade 60
4. Direito a decidir? 65
5. O tempo político 77
a. A incerteza da política 78
b. Muito cedo ou tarde demais 83
c. Sobre o êxito e o fracasso na política 88
6. O discurso político 93
Bibliografia283
Theodor W. Adorno,
Minima Moralia
somos classe média e podemos entender uns aos outros”, dizia Tony Blair.
Foi essa fantasia que criou a miragem do fim das ideologias – na realidade,
a submissão a uma única ideologia –, e é o desmoronamento dessa ilusão
que agora nos tem devolvido os confrontos ideológicos, num ambiente
caracterizado pelas diversas decantações do capitalismo, que é mais um
princípio do que um sistema.
A ideologia está de volta? Não, a ideologia nunca se foi, o que retorna
são os confrontos ideológicos ou, se quisermos dar outro nome, a luta pela
hegemonia. A ideologia como relato da sociedade que determina a linguagem
e o discurso, e que configura a submissão e estabelece padrões de conduta,
nunca esteve ausente. O que aconteceu, simplesmente, foi que o debate
decaiu durante alguns anos, em decorrência da vitória avassaladora de um
dos lados, ou seja, aquele que, tendo conseguido antecipar a mudança, lan-
çou uma devastadora batalha ideológica a partir de fins da década de 1970.
Essa hegemonia se consolidou com a derrubada dos sistemas soviéticos,
para dar lugar ao efêmero discurso do fim da história e do triunfo definitivo
do modelo liberal democrático. A história reapareceu, com rebuliço, nos
casos da antiga Iugoslávia, das Torres Gêmeas, do Iraque, de meio mundo.
Na Europa, porém, o movimento manco da social-democracia, que há
trinta anos está obcecado em confundir a ordem democrática com o espaço
hegemônico delimitado pela direita, manteve viva a ilusão da superação das
ideologias – ainda que viesse perdendo fôlego, tendo atingido seu ponto mais
baixo pela mão de Tony Blair na forma de thatcherismo de rosto humano.
Depois, nas duas décadas anteriores à crise, a economia se converteu no
princípio absoluto da legitimação política e social, completando a experiência
iniciada na Alemanha do pós-guerra. Quando o economicismo se impôs, a
sociedade começou a se fragmentar. Entre o marxismo e o neoliberalismo
há um elemento comum: a atribuição de um caráter determinante ao fator
econômico que se esquece da consciência trágica da humanidade e converte
o sujeito num ser unidimensional e isolado.
A forma que a reação ao niilismo e aos destroços da austeridade assu-
miu foi a da indignação. A indignação não é uma revolução; esta, nos seus
termos convencionais, não está na ordem do dia. E a indignação não é, em
si mesma, uma política. Inicialmente talvez pudesse se situar na esteira das
esporádicas reações morais dos anos anteriores à crise. A novidade é que
Josep Ramoneda*
Na Grécia clássica, o idiotés era aquele que não participava dos assuntos
públicos e preferia dedicar-se unicamente aos seus interesses privados.
Péricles deplorava que em Atenas houvesse indiferentes, idiotas, que não se
preocupavam com aquilo que devia dizer respeito a todos. Há alguns livros
excelentes que analisaram a aplicação atual desse qualificativo (Jáuregui,
2013; Ovejero, 2013; Brugué, 2014). Não sei por qual estranha associação mas
essa palavra, hoje, é utilizada para qualificar as pessoas de escasso talento,
quando parece acontecer exatamente o contrário: que os mais espertos são
aqueles que só pensam em si próprios e que, inclusive, procuram destruir o
que é público, ao passo que o sistema político se encheu de gente cuja inte-
ligência não valorizamos, com maior ou menor razão, dependendo do caso.
Se hoje fizéssemos uma taxonomia apressada da idiotice na política
deveríamos começar, sem dúvida, por aqueles que querem destruí-la (ou
sequestrá-la, para usar um termo mais em voga). Desmantela-se o público,
os mercados conquistam mais poder do que os eleitorados, as decisões que
afetam a todos são adotadas sem critérios democráticos, não há instituições
que articulem a responsabilidade política… Poderosos agentes econômicos ou
impostores dos meios de comunicação estão muito interessados, por razões
óbvias, em que a política não funcione bem ou não funcione em absoluto
(e encontram, decerto, políticos bastante predispostos a colaborar com essa
demolição). Essa é a ameaça mais grosseira contra a possibilidade de os seres
humanos viverem uma vida politicamente organizada, ou seja, com os critérios
que a política tenta introduzir numa sociedade que, de outro modo, estaria
nas mãos dos mais poderosos: democracia, legitimidade, igualdade, justiça.
Existe um segundo tipo de idiotas políticos no qual se encontram todos
aqueles que têm uma atitude indiferente para com a política. Claro que as
pessoas passivas têm todo o direito de ser assim (e eu de considerar que sua
vida é menos completa). Não ser incomodado é uma das liberdades mais
importantes e qualquer supressão de uma liberdade deve ser justificada com
quando o nosso problema é que temos de nos defender face ao excessivo poder
da política ou quando o problema é que outros poderes não democráticos estão
sistematicamente interessados em torná-la irrelevante. Minha impressão é que
não conseguimos acertar com a terapia porque nos enganamos no diagnóstico.
Concordo, em princípio, com todas aquelas medidas que são propos-
tas com o objetivo de limitar a arbitrariedade do poder, mas não estou de
acordo com aqueles que consideram que esse é o problema central das nossas
democracias, sobretudo numa época em que a nossa maior ameaça consiste
na possibilidade de a política se converter em algo prescindível. Com essa
ameaça estou me referindo a poderes bem concretos que tentam neutralizá-la,
mas também à dissolução da lógica política perante outras lógicas invasivas,
como a econômica ou a midiática, que procuram colonizar o espaço público.
Devemos lutar contra a tendência de que as decisões políticas sejam adota-
das com critérios econômicos ou de importância definidos pela mídia, caso
contrário estamos colocando em risco a imparcialidade que deve presidir o
combate democrático. E refiro-me também ao idiota involuntário que des-
politiza sem saber, provavelmente contra suas próprias intenções.
Talvez os tempos de indignação sejam também momentos de especial
desorientação e, por isso, acabamos por prestar mais atenção na corrupção
do que na má política; exigimos cada vez maior transparência e não nos
perguntamos se estamos olhando para onde é preciso olhar ou apenas para
onde nos deixam olhar, ao mesmo tempo que nos convertemos em meros
espectadores; criticamos o foro privilegiado2 dos políticos (seguramente
excessivo) sem nos darmos conta de que se trata de um procedimento que
visa proteger os nossos representantes de outras pressões diferentes daquela
para que foram eleitos: representar-nos; endurecemos as incompatibilidades
e dificultamos as chamadas “portas giratórias” e, deste modo, contribuímos
para encher o sistema político de funcionários; celebramos o caráter aberto
mas as pessoas também nunca se sentiram tão frustradas com a sua capacidade
de fazer com que a política seja um pouco diferente. É muito provável que a
crise que estamos vivendo seja um processo complexo, que avança com tanta
velocidade que ainda não tivemos tempo suficiente para entendê-la em toda
a sua magnitude. Talvez por isso os tempos da indignação sejam também, e
principalmente, tempos de confusão. Aqueles que dizem que tudo é muito claro
talvez sejam pessoas bem mais inteligentes do que nós, mas o mais provável
é que todos eles constituam um autêntico perigo público. Não é possível que
todas as soluções que têm sido propostas para superar as nossas crises políticas
tenham razão, simplesmente porque são diferentes e inclusive contraditórias.
Algumas delas são razoáveis, mas também frívolas e peregrinas.
Para agravar um pouco a situação, deveríamos reconhecer, se formos since-
ros, que as pessoas também não sabem exatamente o que é que a política deveria
fazer. A incerteza apoderou-se dos governantes mas também dos governados.
Podemos nos indignar e até substituí-los por outros, já que temos a última
palavra, mas nem sempre temos razão nem desfrutamos de nenhuma imuni-
dade face à desorientação que o mundo atual provoca em todos. Se o elitismo
aristocrático é ruim, também é o elitismo popular. Por isso a crise política em
que nos encontramos não se resolve pondo as pessoas no lugar dos governantes,
suprimindo a dimensão representativa da democracia. Trata-se de que uns e
outros, sociedade e sistema político, consigam gerir juntos a mesma incerteza.
Hannah Arendt assegurava, num contexto muito diferente do atual, que
“quem quiser falar hoje de política começa inevitavelmente por enumerar
todos os preconceitos que existem contra ela” (Arendt, 1993, p. 13). Este livro
pretende ser uma síntese dessa tarefa de renovação das categorias políticas,
por meio da qual se procura reforçar umas e transformar outras, algo, de
resto, que me manteve ocupado durante alguns anos (Innerarity, 2002).
Numa época de indignação, que questiona e critica muitas ideias que todos
acreditávamos partilhar pacificamente, este livro faz uma revisão da nossa
ideia de política, questionando-nos se acertamos quando tentamos definir
sua natureza, a quem corresponde fazê-lo, quais são suas possibilidades e
seus limites, se continuam a ser válidos alguns de nossos lugares-comuns, e
o que podemos esperar dela. Desejaria contribuir para que essa indignação
não passe de um desabafo improdutivo, mas que se converta numa força que
impulsione a política e melhore as nossas democracias.
será que a política tem de ser feita por todos esses atores. No entanto, essa
afirmação não nos diz ainda como é que se relacionam esses diferentes tipos
de autoridade, especialmente quando têm aspirações incompatíveis. Teremos
de prestar mais atenção nas pesquisas de opinião do que aos especialistas,
às cotações da bolsa do que à soberania popular, aos partidos do que aos
movimentos sociais?
É preciso determinar o que é o novo e o velho – em relação aos atores
que fazem a política – na era das redes, com sociedades ativas, responsabi-
lidades globais e problemas mais complexos. Como poderemos distribuir
novamente o jogo entre as pessoas, os especialistas, os partidos, o povo e os
movimentos sociais? A intensidade dos nossos debates políticos obedece,
em última instância, ao fato de vivermos num momento em que se procede
a uma redistribuição da autoridade política, entre os níveis de governo, com
pretensões de competência difíceis, representações contestadas e identifi-
cações difíceis de ordenar. É normal que essa redistribuição produza uma
especial perplexidade e desorientação, e que se realize em meio a intensos
conflitos. E não é difícil adivinhar que o modo como essa questão dos sujeitos
for resolvida acabará necessariamente por ter consequências no campo dos
temas e das condições.
política e aqueles que não lhe devem nada porque já têm um poder de outra
natureza que aprovam com entusiasmo.
Existe algo pior que a má política? Sim, a sua ausência, a mentalidade
antipolítica, com a qual se desvaneceriam as aspirações daqueles que não
têm outra esperança a não ser a política, porque não são poderosos em
outros âmbitos. Num mundo sem política, pouparíamos alguns trocados
e não teríamos de assistir a certos espetáculos lamentáveis, mas aqueles
que não têm outros meios para fazer valer seus pontos de vista perderiam a
representação dos seus interesses e suas pretensões de igualdade. É verdade
que, apesar da política, as coisas não lhes correm assim tão bem. No entanto,
qual seria o seu destino se nem mesmo pudessem contar com uma articulação
política dos seus direitos?
nas mãos daqueles que, supostamente, decidem com base em critérios obje-
tivos. Porque a questão é esta: como saber quem são os melhores e como
ter certeza, caso os tivéssemos encontrado, de que tomariam as melhores
decisões? E quem é que deve decidir quando os especialistas não estão de
acordo e interpretam a objetividade de maneira diferente?
A política é uma atividade cuja função envolve ser capaz de articular o
equilíbrio entre as pessoas, os especialistas, os funcionários e os profissio-
nais da política. E estes últimos, os políticos, se levarmos em conta o tipo de
atividade de que estamos falando, desempenham um papel fundamental.
A política é uma ocupação indefinida para a qual é necessário ter capa-
cidade de julgamento, visão de conjunto, prudência, intuição, sentido do
tempo e da oportunidade, jeito para a comunicação, disposição para tomar
decisões sobre coisas em relação às quais não existem certezas absolutas.
Quem se dedica a ela deve inclusive aceitar certa superficialidade que lhe
permita fazer uma ideia geral das coisas, uma visão que poderia deitar tudo
a perder caso se perdesse muito tempo com detalhes. Não pode ser nem um
amador nem um especialista (Bullit, 1977). Radica aqui boa parte dos motivos
que explicam o escasso apreço que existe pelos políticos: respeitamos mais
os especialistas do que os generalistas; os primeiros se protegem melhor das
críticas do que os últimos. Os administradores da objetividade, aqueles que
desejariam que a política fosse uma ciência exata, têm muita dificuldade em
entender para que ela serve, porque não percebem que a política, mais do
que gerir objetividades, está ligada à ponderação do significado social das
decisões, da sua oportunidade em contextos determinados, do modo como
afetam as pessoas.
Por isso não existe uma formação específica para a política e que qualquer
um possa, a princípio, exercê-la. Os políticos são necessariamente autodi-
datas (Scheer, 2003, p. 33). Dizia Weizsäcker, o ex-presidente da Alemanha,
satirizando um pouco essa realidade, que um político é um generalista cuja
única destreza consiste em saber como é que se combate o inimigo. Exige-se
aprender umas habilidades que têm muito pouco a ver com a objetividade
técnica dos assuntos de que são encarregados; é por esta razão que pessoas
muito competentes em algo (médicos ou catedráticos, por exemplo) con-
seguem ser ministros muito ruins em suas áreas de especialidade (saúde
ou educação), e, pelo contrário, que aqueles que não são especialistas na