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Conferência de Abertura do IX ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, realizado

em Águas de Lindóia - SP, de 4 a 8 de maio de 1998.

O PROFESSOR COMO INTELECTUAL NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA 1

Profº Milton Santos2

Nos inícios da história, as técnicas e o trabalho eram conformados em sua relação com o meio
geográfico. Eram técnicas dóceis às exigências do entorno e do grupo, que assim era capaz de exercer sua
política. Esta se define corno a escolha, no momento dado, das ações desejáveis e possíveis. E a primeira
das ações do homem é aquela sobre o seu entorno, ao qual se chamava, no passado, natureza, e que,
hoje, podemos chamar espaço, na medida em que o entorno do homem é cada vez menos natural. A
natureza foi, de alguma maneira, expulsa do espaço do homem, e, o que se põe em lugar dela é um produto
da técnica, de tal modo que, nas cidades, e também nos campos - e o interior do Estado de São Paulo é
uma prova disso - a realização humana acaba sendo uma ação da inteligência sobre a inteligência. É, aliás,
também nesse sentido, que vivemos o século da inteligência, porque as coisas resultam da inteligência do
homem, sobre as quais a inteligência como ação se exerce.
Hoje, em sua produção, a técnica se subordina a uma criação exógena aos grupos, obedientes a
uma demanda de ação que é também bem exógena, comandada pelo que, equivocadamente, mas
insistentemente, ainda chamamos de “mercado global”.
Essa técnica é, de alguma forma, tornada autônoma quanto á produção local das idéias políticas e
quanto à sua concretização como história. Em lugar, pois, de um tempo dos Homens, o que vimos
assistindo realizar-se é um tempo da técnica-mercado, isto é, a técnica subordinada a esse “mercado
global”. A conseqüência mais importante é que o grupo passa a atuar sem política própria, o que, aliás, é o
caso do Brasil hoje, onde o Estado e os políticos renunciaram à política e são, afinal, as empresas globais
que fazem a política, jogando o Estado, pelos seus aparelhos, à situação de apenas secundar a política
exigida pelo "mercado global", ao qual se subordina.
Ao mesmo tempo, essa técnica assim imposta leva a uma crescente separação entre ciência e
verdade, entre ciência e saber, ciência e filosofia. Até o começo deste século, quando nos referíamos a
"ciência", inclinávamo-nos diante dela, certos do que era portadora da verdade. Hoje, sabemos que
freqüentemente ela está em divórcio com a verdade, quando subordinada a razão técnica, que, ela própria,
é subordinada ao mercado. Neste caso, escolhe algumas ações e afastam outras e desse modo torna-se
distante da verdade. E, sendo cada vez mais algo do interesse das coisas, isto é, do mercado.
Num mundo cada vez mais dominado pela técnica, considerada como autônoma, e pelo mercado,
considerado como irresistível, a técnica e o mercado estão se impondo como baluartes da produção e da
vida, e penetrando assim, nos fundamentos do ensino.
Devemos estar atentos para Isso. O mundo que nos cerca não é, apenas, uma criação do espírito;
ele existe concretamente. É dele, pois, que devemos partir para construir outra coisa, isto é, outro mundo.
Será um equívoco colocarmo-nos de fora do mundo, a pretexto de criticá-lo. Ao contrário, o que devemos
fazer é tentar uma analise do que o mundo é hoje, porque apenas a partir dessa análise seremos capazes
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Este texto, ligeiramente modificado pelo Autor, resulta da transcrição de gravação de conferência do Professor Milton Santos,
pronunciada a partir de notas.
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Professor Emérito da Universidade de São Paulo.
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de propor outra coisa. Toda analise é por si só uma crítica. Não há forma de analisar que não seja
paralelamente uma forma de criticar, já que a análise não é nada congelado, nem predeterminado,
resultando da apreciação das condições históricas que se realizam em um dado momento. As coisas
produzidas devem ser vistas de forma dinâmica, já que a história é jamais repetitiva. Assim também, por
mais que alguns dos malefícios da era presente sejam imputados às técnicas, não devemos descuidá-las do
nosso interesse analítico, se queremos a partir deste mundo - que é o único que temos - tentar construir outra
coisa, outro mundo.
O nosso tempo consagra a união da técnica com a ciência e marca uma grande mudança
histórica, com a emergência do que se chama de “tecno-ciência”. Agora, e de um modo geral, já não é a
ciência que comanda a técnica, mas esta que comanda a ciência. E como as técnicas acabam sendo
comandadas pelo mercado, o trabalho de pensamento dos homens torna-se limitado o estreito. É essa a
tragédia da atividade científica na era da globalização.
Estamos vivendo, neste ano de 1998, uma formidável mudança de patamar na história da
economia mundial, diante das concentrações extraordinárias que se estão dando nas duas áreas
centrais da história contemporânea, isto é: a área do dinheiro e a área da informação. Não esqueçamos
de que a nossa era caracteriza-se pela tirania do dinheiro e pela tirania da informação, sendo esta
indispensável para que se exerça a tirania daquela.
A tirania da informação não é, apenas, a da mídia, porque inclui, também, o nosso trabalho na
universidade. Quero insistir nessa tecla, porque o nosso trabalho como professores é a base com a qual se
educam e se re-educam as gerações. Quanto mais o nosso trabalho for livre, mais educaremos para a
cidadania. Quanto mais o nosso trabalho for acorrentado, mais estaremos produzindo individualidades
débeis. É urgente que o ensino tome consciência dessa situação, para esboçar a merecida reação, sem a
qual corremos o grande risco de ficar cada vez mais distante da busca ideal da verdade. Sabemos que nunca
a alcançaremos completamente, mas essa busca é o nosso destino, o nosso dever e é, também, a forma
com a qual encontramos a nação, que tanto espera do nosso trabalho. Do outro lado, fica a ameaça do
divórcio entre a função de ensinar e o papel do intelectual.
As conseqüências dessa encruzilhada em que nos encontramos são várias e algumas das razões
dessa situação devem ser de alguma forma relembradas.
Esse absolutismo das técnicas, a que nos temos referido, tem muito que ver com a forma como o
ensino, hoje, é dado e com a forma como o ensino é hoje um resultado da perversidade dos nossos tempos.
Há, em primeiro lugar, esse imaginário das técnicas, um enorme, um extraordinário, imaginário. Um outro
dado, levando ao absolutismo das técnicas, é o papel da informação. Todos somos, mais ou menos,
seduzidos pelos progressos técnicos, sobretudo na área da informação e, com freqüência, os aceitamos
sem nenhuma crítica, como se o progresso técnico valesse por si só e não como função da maneira como a
sociedade se organiza. Cremos, também que esse despotismo das técnicas vem do fato de que, neste fim
de século, aquilo que, desde o século XVIII, os economistas desejavam e os filósofos temiam, acabou por
se dar: a interdisciplinaridade, isto é, a forma como as diversas disciplinas conversam, passou a ser
comandada pela economia, em vez de ser comandada pela filosofia. E aí nos encontramos, os geógrafos e
os educadores. Os geógrafos sabem que, seja qual for a ação do homem – técnica, econômica, política,
cultural, moral – ela é um dado da criação dos lugares na superfície da Terra. Os lugares abrigam todo tipo
de atores – os mais ricos, os mais pobres, as empresas grandes e pequenas, as instituições poderosas e as
instituições subalternas – ali formando uma unidade, apesar da diversidade de seus componentes. A

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interpretação dos lugares – assim unitários e complexos – é, ao seu modo, uma filosofia das técnicas,
também empreendida pela Educação. Da mesma forma como pretendemos – os geógrafos – realizar uma
tal filosofia, os educadores são também filósofos, quando recusam a aceitar as coisas como se fossem
apenas objetos e buscam entender o que dentro delas representa para o homem, na realização da sua
história e da sua vida.
Ora, nas circunstâncias atuais, as técnicas parecem exatamente conduzir a algo que se opõe à
vida, com a matematização da existência, e a algo que se opõe ao pensamento abrangente, impondo um
pensamento calculante, e com este todas as formas de utilitarismos, que conduzem a imediatismos, levando
ao banimento da idéia de futuro. Quando, porém, consideramos as técnicas em conjunto com a história
possível e não apenas a história existente, passamos a acreditar que outro mundo é viável. E não há
intelectual que trabalhe sem idéia de futuro.
Para ser digno do homem, isto é do homem visto como projeto, o trabalho intelectual e
educacional tem que ser fundado no futuro. É dessa forma que os professores podem tornar-se intelectuais:
olhando o futuro. E para isto é preciso propor tal visão em cada uma das disciplinas, mas não numa
pretensa disciplina específica do futuro, como agora estão propondo uma disciplina chamada “educação
ambiental”. Não é criando uma disciplina que alcançaremos essa meta, mas levando como ponto de partida,
em todas as disciplinas, essa idéia de que nada existe para durar eternamente, de que tudo é movimento e
de que o futuro não é um só. O que é um só é o presente, ainda que, nas interpretações, seja vário. Mas, o
futuro é, por definição e a priori, vário. Sem essa atitude, seremos levados a um pensamento calculante, à
matematização das idéias fundada na primazia da técnica, conduzindo a instrumentalismos e
reducionismos, em vez de abrangências.
E nada é mais perigoso para cada um de nós, no trabalho de educadores, que as diversas formas
de instrumentalização: a instrumentalização pelo mercado, a instrumentalização pelas militâncias, a
instrumentalização pela “politicaria”, a intrumentalização pelo público, a instrumentalização pela mídia, a
instrumentalização pela carreira.
O mercado instrumentaliza a partir de lógicas externas à pessoas humana. As militâncias
instrumentalizam pela prisão dos slogans e das palavras de ordem. A “politicaria” instrumentaliza pela
centralidade dos resultados, o império dos meios. A mídia instrumentaliza convocando o intelectual a
produzir manchetes e não verdade, levando-nos a todo custo a ser fáceis e conduzindo-nos à vontade de
ser vistos como artistas de vaudeville, e não ouvidos naquilo que de sério tenhamos a dizer. Daí os enormes
riscos da televisão no trabalho intelectual.
Todos desejamos que o nosso trabalho seja reconhecido: isso faz parte da essência do nosso
trabalho, essa vontade e essa necessidade de reconhecimento. Mas, cada vez que nos dobramos a essas
diferentes formas de instrumentalização, aí já não somos intelectuais, porque para ser fácil a todo o custo,
aplaudido a todo custo, e para ter o apoio, a todo o custo, de colegas e correligionários, freqüentemente
atrasamos a chegada à meta desejada, abandonamos a linha reta da nossa, deixamos de ser sérios.
O intelectual é aquele que resiste, e para resistir tem que ser só. É a solidão a grande arma
com a qual podem continuar sendo intelectuais. Cada vez que dizemos "nós", afastamo-nos do ideal do
intelectual, porque estamos manifestando a necessidade do aplauso ou da cooptação. O intelectual não é
aquele que busca aplauso, mas o que busca a verdade e que fica com ela, a despeito do que sejam,
naquele momento, as preferências dos seus contemporâneos.

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É fácil entender porque, no fim do século XX, quando a maior parte do trabalho humano se tornou
trabalho intelectual, estreita-se a possibilidade de ser intelectual. Por isso, as faculdades e as casas de
ensino abrigam cada vez mais letrados e cada vez menos intelectuais. Ser professor não é obrigatoriamente
ser intelectual, sobretudo, porque é, freqüentemente, exercer uma repetição, seja como um porta-voz da
produção alheia, seja através de uma forma repetitiva de produzir. A globalização agrava essa situação
porque traz como uma de suas marcas a difusão de um pequeno número de autores bafejados pelo
mercado, e que se instalam no mundo como os atores centrais, e dos quais vem a certificação de validade do
conhecimento dos outros. Segundo tais parâmetros, nossa produção intelectual é considerada menos
vigorosa, menos forte, menos capaz, menos significativa que a produção de fora, chamada
equivocadamente de internacional, quando ela é apenas estrangeira. Estou me referindo às formas como
a carreira se organiza neste país, levando-a a tornar-se, ao fim e ao cabo, uma grande inimiga da produção
intelectual. Devemos, urgentemente, erguer nossa voz, para reclamar das autoridades universitárias
que, entre outros problemas atuais, revejam a questão da carreira, dentro de um quadro mais geral, mais
abrangente, agindo como intelectuais, e não como administradores.
Numa universidade autêntica, os administradores apenas governam as coisas. Os intelectuais são
inadministráveis. Por isso, eles são o fermento de uma verdadeira vida acadêmica, porque são movidos
pela idéia de universidade e pela fidelidade a uma dada universidade. Não há universidade que possa
crescer sem crítica interna. Não basta repudiar a crítica externa. É preciso todos os dias exercitar a crítica
interna para sermos verdadeiros intelectuais. De outro modo, estaremos limitados à produção e a prática
de meias-verdades, ou de verdades-interesseiras, que conduzem a teorias utilitárias e ao império
das razões utilitaristas fundadas nas exigências do mercado. Daí, a tendência a transformar todo tipo de
ensino em ensino profissionalizante. Quantos de nós, ensinando na pós-graduação, já não ouviu esta
frase: "professor, eu não vou ao seu curso, porque o seu curso não interessa à tese que eu estou
escrevendo". É exatamente o utilitarismo levado às últimas conseqüências. Com certo ceticismo, pode-
se até sorrir, ouvindo isso; e com certo cinismo, pode-se até sorrir complacentemente, quando se precisa
do voto do estudante para ser eleito para alguma coisa. Só que esta forma de conivência já é uma
demonstração da renúncia a ser intelectual. Continua-se sendo professor, mas se renuncia a ser
intelectual. Quando renunciamos à crítica deixamos também, que, dentro de nós, produza-se o
assassinato de um cidadão. Este, dotado de existência política, somente pode sê-lo plenamente, ao
entender criticamente o mundo em torno. Se assim não entendo o mundo em torno, tampouco sei
quem sou, nem posso propor outro mundo, e passo a aceitar comodamente tudo que me mandam
fazer. É assim que se criam homens instruídos, mas não educados, desinteressados de qualquer
discussão mais profunda, subordinados ao pensamento técnico e à lógica dos instrumentos, mantendo
uma fé cega nos ritos já dados, nos caminhos preestabelecidos.
Devemos ter muito claro o que fazer frente a certas solicitações do nosso entorno, das quais
mencionarei algumas, já que se estão tornando tendências da moda. Entretanto, a moda não é o modo,
mas apenas uma escolha, um modo, ou fora dele, daquilo que é previamente escolhido como
comportamento a adotar. O modo é a forma como as coisas se dão ou se podem dar dentro de uma lógica
existencial. A moda é instrumental a preocupações interesseiras, tendentes n falsear essa lógica
existencial.
Vejamos, por exemplo, as orientações curriculares distribuídas pelo Ministério da Educação, onde
se pede, com vigor, um ensino das técnicas, mas propondo que sejam ensinadas como se elas fossem

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dotadas de um valor absoluto e abstrato. Em si mesmas, as técnicas são um absoluto. Mas as técnicas são
nada sem a vida e somente são inteligíveis com a vida. E a vida nada tem de absoluto; é, sempre, um
relativo. Quando, naquilo que está escrito nesses famosos volumes, insiste-se tanto em mostrar a
importância da técnica hoje, esquece-se, porém, de pedir aos professores que ponham abrangência no seu
ensino, mostrando como, a partir da maneira como são elas utilizadas ao longo da história, desde os primeiro
tempos até hoje, a técnica apenas ganha significado através da política: a política considerada como exercício
da ação humana, a ação possível, ou a ação que se deseja, isto é, o projeto político, ou, então, a ação é
feita, isto é, a realidade política. Quando se exclui do ensino esse elemento h istórico e se apresenta a
técnica como algo indispensável à vida, mas separando-se do contexto, o que se está fazendo, na realidade,
é esconder dos alunos a história do presente que determina uma forma particular de uso da técnica, e não
outra, deixando assim, de mostrar aos alunos que essa não é a forma única de seu uso.
Quando também, páginas e páginas referem-se à educação ambiental, o que se está propondo é
uma educação ambiental enviesada, uma forma de reducionismo, substituindo a expressão "meio geográfico"
pela expressão "meio-ambiente". Quando escrevo "meio-ambiente", posso estar excluindo ou
fragmentando a história, propondo uma história parcializada, ou desconsiderando a inteireza do processo
histórico ao apresentar uma natureza existindo fora da sociedade. No começo da história humana, a sociedade
era contida pela natureza. Hoje, não. A natureza é contida pela sociedade. Por conseguinte, é enganoso o
ensino de educação ambiental que escamoteia o fato de que, a cada momento, é sociedade em movimento
que dá valor a cada pedaço da natureza. Desse modo, a formação oferecida aos alunos acaba por lhes
recusar a condição de poder intervir na produção da história do país. É tempo de multiplicar essa
advertência, para evitar que a grande sedução da juventude - e da população em geral - pelos temas da
ecologia e, em geral, do chamado meio ambiente, seja canalizada de modo inadequado. Neste fim de século, a
natureza, como realidade histórica, não existe por si só. Como o espaço e como o planeta, inteiro, a
natureza é objeto do exercício das idéias do homem, do seu trabalho e das suas intenções e paixões.
No pensamento do que o mundo representa para a humanidade, a natureza em si deixou de
existir. Vejam o caso do turismo chamado ecológico. O mais remoto rincão da Terra, aquele que pareça o
menos conhecido, está hoje cheio de intenções; pode não ser o domínio imediato do capital, pode não ser
objeto de povoamento, mas é sempre objeto de intenções, e estas, num mundo globalizado, fazem parte da
produção de uma política global.
O ensino da globalização exige, também, redobrada cautela. Vivemos, neste fim de século, uma
forte tendência para o totalitarismo, o que, inclusive, aparece no discurso de certos governantes, quando,
por exemplo nos dizem: "penso assim, se você pensa diferente, você está contra a nação". Então, o
desejável papel pedagógico dos homens de governo é substituído por um discurso autoritário, que
freqüentemente vai buscar fundamento na chamada "globalização" - a globalização perversa atual -
apresentada como um caminho único, quando, na realidade, é apenas uma maneira de fazer a história.
Somos, freqüentemente, solicitados a tratar as idéias hegemônicas sobre o mundo atual como se fossem um
dogma, aceitando o pensamento único sob os seus disfarces mais diversos. Esse pensamento único conduz
a discussão sobre o mundo a partir de premissas viciadas - a respeito das quais somos convocados a nos
pronunciar, em lugar de adotar o caminho correto, isto é, buscar as premissas verdadeiras.
Outro risco que ameaça o professor, separando-o da possibilidade de também ser um intelectual, é
o de oferecer um ensino fragmentado, portanto acrítico. Todo o ensino que é separado da história, isto é,
do mundo como atualmente ele é, não supõe crítica. Então, por mais que apareça como sendo renovador,

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ele é repetitivo. O mundo é um conjunto de possibilidades. Nos tempos de Pedro Álvares Cabral, havia um
conjunto determinado de possibilidades. Hoje, esse conjunto de possibilidades é outro. O nosso mundo, o
mundo nosso contemporâneo, que desejamos entender e temos de ensinar, é um mundo datado, não
é um mundo sem data, abstrato. E a data do mundo – sua certidão de idade - são as possibilidades reais
existentes em cada momento. Dessas possibilidades, algumas são colhidas por quem as pode colher, e
que as colhem como as podem colher, e outras não o são. No mundo de hoje, os que podem colher as
melhores possibilidades são cada vez em número menor e a maioria esmagadora da humanidade fica
fora do essencial das escolhas; apenas segue incompletamente ou inutilmente protesta.
O essencial é saber que, entre as possibilidades que o mundo oferece em cada momento, muitas
ainda não foram realizadas. Uma análise que pretenda ajudar a enfrentar o futuro deve partir desse fato
muito simples: não se pode analisar uma situação apenas a partir do que existe. A análise de uma situação
exige que consideremos também o que não existe, mas que pode existir. Não basta nos fixarmos apenas
no que não existe, sob o risco de sermos voluntaristas. É indispensável tomar como referência aqueles
elementos de construção do novo oferecidos pela história do presente e ainda não utilizados.
Como o futuro jamais é um só, é isso que nos pode unir na tarefa de pensar os futuros e
escolher um. Como essa forma de analisar deve ser feita a partir de tudo o que existe, trata-se de uma forma
existencialista de construção do pensamento. Essa forma existencialista não exclui a emoção. Esta é, na vida
dos homens, freqüentemente uma expressão despojada, e é por isso que exclui o cálculo. Os
compositores são muito mais expressivos de um povo que os intelectuais acorrentados a uma
linguagem escolástica. Mas nós também podemos evitá-la, tentando, através da análise, encontrar
caminhos que conduzam a formas de comunicação mais diretas e pessoais, cada vez menos freqüentes
entre nós.
O trabalho do professor é arriscado. Quem teme perigos deve renunciar à tarefa do ensino. E se
quiser ser ao mesmo tempo professor-intelectual, está fadado a correr riscos ainda maiores. Para
avançarmos nesta direção, entrevejo algumas possibilidades, seja qual for o tema da nossa conversa
com os estudantes, enquanto não nos substituem completamente por máquinas. Em pri meiro lugar,
urge reconhecer que, em qualquer circunstância. Impõe-se um caminho duplo: da análise para a
síntese e da síntese para a análise, porque somente assim estaremos fazendo, ao mesmo tempo, a
crítica das situações e a nossa própria autocrítica. Da minha experiência, direi que cada vez que me
encontro nessa posição (caminhar da análise para a síntese e da síntese para a análise) descubro que
algo está faltando na minha formulação. A crítica obriga à consideração das situações como algo
dinâmico, a partir desses dois pólos: a síntese e a análise.
Toda forma de crítica é, também, uma forma de visão dinâmica. É preciso, também, buscar
visões sistêmicas para o que aconteceu ou acontece, e oferecê-las aos alunos. O que temos a
ensinar a um estudante são situações. E as situações são construções sistêmicas, já que, os
elementos de uma dada situação dependem uns dos outros. Isso pode ser oferecido no ensino de
maneira simples. Esses sistemas são vivos, dinâmicos. Como as situações são também constituídas por
coisas, lembremo-nos de que os objetos não têm vida por s i, de modo a preencher esses sistemas de
coisas com a história do presente
Neste fim de século, tal procedimento torna-se bem mais fácil e cômodo. Antes não tínhamos a
capacidade de saber cabalmente o que se passava no resto do mundo. Nossa geração tem o privilégio,
do que podemos chamar do cognoscibilidade do planeta, com a capacidade de saber o que passa em

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qualquer que seja o lugar. Devemos tirar partido dessa possibilidade para buscar a construção dos
sistemas explicativos das diversas situações. E temos que, através disso, passar do empirismo abstrato,
isto é, do valor dado às coisas em si e alcançar uma abstração empírica, isto é, uma generalização que
parta do que realmente exista e que não seja um mero produto da nossa imaginação, por mais fértil e
mais treinada que ela seja. Será assim, creio, que poderemos construir os novos humanismos, diferentes
daqueles do passado, embora a sua essência continue sendo a essência do homem. O discurso de
alguns pensadores que a todo preço, trazem exemplos do passado, às vezes nos empolga, mas não
nos pode sempre convencer, porque para serem verazes os exemplos devem ter como conteúdo a
história do presente. Se os homens para os quais estamos pro pondo políticas não são considerados
como homens do presente, tampouco como homens: são sombras. Ora, o trabalho do educador, do
professor tornado educador, é esse trabalho de interpretação do mundo, para que um dia este mundo
não nos trate mais como objetos e para que sejamos povoadores do mu ndo como homens. Muito
obrigado!

DEBATE

Coordenação: Prof.a Alda Junqueira Marin

1ª questão: Várias vezes o senhor se referiu à verdade. Gostaria que fosse feito um comentário
articulando a noção de verdade ao pensamento pós-moderno no qual são questionados os pressupostos
essencialistas que sustentaram, e sustentam até então, o mundo moderno.
Prof. Milton: Eu agradeço muito essa questão, que me parece uma questão muito profunda e importante, e
envolve um debate muito amplo, desde a verdade da noção de verdade até o pós-modernismo da noção de
pós-modernismo. A palavra verdade é usada não provavelmente como metáfora, mas como descrição e
interpretação veraz de uma situação na qual o agente, isto é, o pensador – que p ode ser o pesquisador -
se debruça sobre esta situação com a preocupação única de interpretá-la após entendê-la, e descrevê-la
após interpretá-la. Isto tem que ver com os pressupostos do próprio método de aproximação das situações.
Como o método de aproximação das situações tem um conteúdo absoluto, as regras de jogo do pensar, e
um conteúdo relativo, isto é, a pertinência histórica das variáveis com que eu vou jogar, isso conduz a
que, primeiro: pessoas diferentes podem chegar a resultados diferentes partindo da mesma situação e
todas elas, apesar de suas divergências ocasionais, estarão ativos na mesma busca da verdade, o que
não desmerece qualquer deles, não importam os resultados alcançados. Se quiserem, vamos mais adiante
nisto. Segundo lugar: na situação do mundo atual, em que as idéias com freqüência são, menos do que no
passado, um resultado das situações, as idéias ganham autonomia em relação com as situações, isto é, as
idéias são preparadas adrede. Como hoje a gente sabe, a história do presente é uma história em que as
coisas, os comportamentos, as relações, tudo tem como base idéias que são previamente elaboradas e esse é
o fundamento mesmo do que a gente talvez chamasse de ideologia, palavra que, no mundo de hoje, ganha
um novo contorno, porque se as coisas na sua realização dependem de idéias, as ideologias se
tornaram concretas, e elas entram na história juntamente com o que, no passado, a gente chamava de
verdade. Então, é possível que eu houvesse cometido um equívoco usando a palavra verdade, já que as
palavras ganham significados diferentes quando a história muda. Apenas eu tenho que usar as palavras que
tenho. Parece que foi Kant que disse "eu descubro as idéias, são meus alunos que vão descobrir as

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palavras... que vão encontrar as palavras". Porque as idéias são produzidas num contexto que inclui as
palavras presentes naquele momento. Então, pedimos perdão por usar essa palavra "verdade" e eu pretendo
aproximar esta resposta a partir do que disse.
Quanto ao pós-modernismo, é uma expressão que eu nunca consegui levar muito a sério; não porque os
seus autores sejam pouco sérios, não é isto. Eu sou um geógrafo. Qual é meu trabalho? Aí está o mundo: o
mundo, repito, como esse conjunto de possibilidades latentes, porque o mundo é latência, o mundo pairando
sobre nossas cabeças e nós colhemos dele as possibilidades que plantamos nos lugares, criando
oportunidades; é isso o mundo. Eu não construo um mundo de pós. Só que parar por aí pode ser
considerado como um desrespeito a quem perguntou, a quem fez a pergunta, e não farei isso. Mas,
insisto em que o meu papel é entender o que o mundo é hoje. Aquilo que há uns vinte anos atrás propus
como forma de interpretação dos lugares, a consideração do que eu chamava de modernizações
sucedendo-se umas as outras e criando outros mundos. Então, o meu ponto de partida não seria a pós-
modernidade, o que me exclui de uma definição substantiva do que hoje está se passando; e pode me
conduzir, como freqüentemente essa expressão conduz, a apreciações de ordem adjetiva. E eu não
trabalho com adjetivos, e busco trabalhar com substantivos, quer dizer, as situações tal como são elas.
Então, o que eu vou buscar são as variáveis históricas do presente que conduzem a produção desta
latência, que é o mundo atual, e dessas existências, que são as situações concretas atuais. Eu
acho que é um pouco isto. Então, a pós-modernidade, ela pode ser crítica do essencialismo, mas
se eu adoto como ponto de partida o entendimento do atual sistema de tempo, característico
deste pedaço do transcurso e desta fração da história na qual vivemos, eu estou, pela mesma
ocasião, dando as costas a um enfoque essencialista, e tentando produzir um enfoque existencialista,
onde as essências são pura possibilidade, se acaso, e onde o que existe é aquilo que, junto com o que
efetivamente pode existir, me interessa. Eu não pretendo ter respondido; apenas quero dar sinal do
esforço que ando fazendo para não desonrar a pergunta tão inteligente que me foi endereçada.
2a questão: Há um conjunto de questões que dizem respeito ao trabalho individual, à solitude do
trabalho intelectual, à possibilidade do trabalho conjunto, esse falar "nós"... Como fica esta questão da
solitude do trabalho do professor, do pesquisador, diante da necessidade da mediação humana, diante da
concepção de práxis política coletiva, diante da necessidade de que as pessoas não sejam sós para poder
resistir, e de uma produção que possa ser mais coletiva, não individualista. Então, há um conjunto de
questões que se referem ao eixo da fala do senhor sobre a questão da solitude versus o coletivo em
diversas caracterizações que o senhor fez.
Prof. Milton: Muito obrigado por esta pergunta. Eu creio que se nenhuma outra pergunta houvesse
sido feita, esta somente justificaria a minha presença aqui. Porque eu acho que esse debate é
extremamente importante e a pergunta que foi feita com tanta delicadeza, parece-me que vai nos
colocar no coração da discussão do mundo contemporâneo. Ele pode ser um indivíduo sem ser
individualista. Assim, ele é eu, ele não é nós. Imaginar que o indivíduo existe obrigatoriamente numa
situação de individualismo é descrer do indivíduo. O indivíduo forte é aquele que busca aperfeiçoar a
sua consciência, e todos os dias luta para ser consciente, consciente do mundo, do seu lugar, da sua
sociedade, de si mesmo. A sociedade é forte quando ela é um conjunto de indivíduos. Um indivíduo forte
não recusa as opiniões opostas, ele apenas constrói outra opinião, nada impede que amanhã ele
abandone a opinião de hoje. Quando me meto a reler o que escrevi há quarenta anos atrás, vejo que
muitas coisas abandonei completamente. Talvez, as houvesse abandonado mais rapidamente se

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houvesse uma interlocução. No caso do Brasil, isso é muito d if í c il , porque isolados os intelectuais
freqüentemente acabam por se tornar remplis deles mesmos e correm o risco de ficar vaidosos, pela
ausência de crítica. A crítica acelera a produção do pensamento e é a isso que podemos chamar de
produção coletiva do pensamento, mas sempre a partir, naquele momento, daquilo que cada qual
encontrou. Isso não quer dizer que amanhã, ou que no minuto posterior, não se deixe de lado o que foi
encontrado. Mas, cada vez que consulto alguém para emitir um pensamento, torno-me incapaz de
ir adiante. É nesse sentido que a solitude é fundamental. Eu não tenho que pedir licença a ninguém
para pensar. Eu não tenho que subordinar o meu pensamento ao cânone que vai me levar a um
promoção ou um prêmio. Eu não tenho que ter o meu pensamento apoiado pelo partido, que seja o
meu. E é por isso que nas condições do Brasil atual é difícil, quase impossível, ser intelectual e ser um
homem de partido, porque a negociação prévia à expressão da idéia, atrasa a elaboração da idéia. As
idéias não são feitas para serem postas na gaveta, mas elas têm que ser publicadas, jogadas no
mercado das idéias, e voltam aos autores que revêem os seus pontos de vista, uma forma de revisão
permanente. Por conseguinte, falar "nós" já é uma recusa à idéia. O sujeito que sobe aqui e diz "nós
pensamos assim" é um candidato a partidário ou simplesmente a vereador, mas não é candidato a
intelectual. Eu tenho que arcar com a responsabilidade sozinho, não tem nenhuma importância que a
sala inteira discorde. Essa coragem dos intelectuais vem da consciência do ex ercício de aproximação
da verdade. Aliás, os chamados "sucessos" na vida acadêmica e na carreira intelectual, quando chegam
cedo com freqüência esterilizam os que os detêm. Cada vez que me fazem festas - e atualmente há
uma certa mania por me fazer festas - digo que "a academia devia f e st e ja r também os
insucessos dos professores, dos intelectuais", porque é através dos fracassos que a nossa têmpera se
enrijece, o nosso caráter se torna mais cristalino, que à nossa força é acrescida, essa vontade de nos manter
como que imaginamos ser a verdade, a despeito da não aceitação. Devemos valorizar a dúvida enorme que
nos assalta diante de um papel que acabamos de escrever, e que acabamos guardando sem a coragem de
dar a público. Quem já não conheceu essa reação? Essa dúvida, uma forma de humildade diante dos fatos,
derrotando-me a mim mesmo na vontade de mandar para a rua um papel escrito, e preservando a
possibilidade de melhorar mais adiante. Uma vida acadêmica feita apenas de sucessos raramente é uma
vida acadêmica produtiva. A busca do sucesso é uma forma de busca da não solitude, da companhia, pela
qual se paga um preço muito alto, o sucesso efêmero freqüentemente acompanhado por uma vocação à
fatuidade, à esterilidade. Então, era isso um pouco que eu quis dizer, é evidente que a certa altura da vida,
acho que meu papel é esse mesmo, o de provocar, eu penso até que a Selma me convidou exatamente para
isso. Essa pergunta me pôs no centro da problemática que é o professor-intelectual. Porque a práxis coletiva?
A práxis coletiva não é uniforme e é tanto mais rica quanto mais diferentes são os pontos de vista. Quanto
mais diferentes somos, mais rica é a nossa produção comum, porque um debate mais amplo se instala,
ainda que a partir dos nossos silêncios. Eu creio que não há uma práxis coletiva totalitária. A práxis coletiva é
o lugar da presença simultânea de uma multiplicidade de interpretações, porque a práxis é ação e sendo
ação ela é interpretação, interpretação do mundo, interpretação de cada um de nós frente à necessidade de
agir, frente à possibilidade de agir. Por conseguinte, quando a práxis se dá a partir de verdades, de crenças
profundas, é uma práxis muito mais rica, e é por isso que as práxis a partir do que é pragmático, das ordens
verticais, as práxis comandadas pelos comandos da globalização globalitária, são práxis pobres. E é por isso
que, a economia hegemônica no mundo de hoje não é dinâmica e o dinamismo acaba ficando com as
pequenas empresas. O dinamismo é dos pobres, enquanto aqueles que, por andarem depressa, chamam-

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se dinâmicos, são apenas velozes. Quem sabe um dia os pequenos e médios empresários descobrirão que os
seus aliados são os pobres, e aí, com a riqueza desse pensamento, poderemos alcançar uma revolução
política.
3ª questão: Há um outro conjunto de questões, professor, que diz respeito ao trabalho intelectual enquanto
condições de trabalho adversas... horas de trabalho, como professores contratados em C.L.T., a questão da
carreira, concepções, critérios para ascensão na carreira, e também o fato de que a educação, apesar de
existirem pessoas que pensam e que falem como o senhor, como os intelectuais, a despeito disso a
educação têm dado passos para trás. Há um conjunto de possibilidades aqui que dizem respeito às
condições de fato existentes para esse tipo de trabalho e o avanço da educação.
Prof. Milton Santos: Bom, estamos entrando na crítica de dentro da escola, quer dizer, estamos aceitando a
idéia de criticar a escola de dentro. Essa questão das horas de trabalho me apaixona, porque o trabalho
intelectual é feito sempre do bulício e da calma. É preciso bulício. Então a gente vem aqui, se excita, e a
discussão excita um pouco mais, ela é um prêmio e ao mesmo tempo uma incitação. Depois vem a calma.
O que, hoje, está acontecendo na universidade brasileira? Conheci, antes, uma universidade que tinha esses
dois momentos, a calma e o bulício, eram pelo menos quatro meses de calma. A ditadura estabeleceu as
férias de trinta dias, a democracia de mercado na qual estamos mergulhados manteve as férias de trinta
dias, sem que se veja muita gente protestar contra isso. Quando é que as pessoas lêem um livro inteiro?
Quando é que elas escrevem um ensaio que vai ter vida longa, sem calma? E ainda mais, dentro das férias a
gente aceita com freqüência que um aluno simpático venha nos seduzir solicitando que façamos passar um
exame, que leiamos uma tese, etc... Devíamos recusar em nome deles estudantes. Nosso trabalho intelectual
é feito de forma inadequada no Brasil atual, porque - não é questão de oito horas de trabalho ou de quatro ou
quarenta horas - é a forma como esse tempo é distribuído que impede que a gente se debruce longamente
sobre um tema e que corra o barco atrás. E é por isso que, com freqüência, a gente vê nas teses que nos
são dadas para ler, citações de citações e não mais busca original. O estudante – eu ia dizendo, o colega
também - com freqüência não vai ver adiante. Então como é que ele sabe que o outro citou corretamente?
Mas ele não vê. E, com freqüência, o outro drama que vem daí é o desconhecimento da história dos
conceitos. Uma boa parte das pessoas não sabe como surgem e evoluem os conceitos. Isso está ligado à
moda das citações de textos que não têm mais de cinco anos... "cinco anos está velho, não precisa mais"...
Então, não se sabe como tal ou qual idéia surgiu, como ela foi evoluindo ... e aí, passa-se a imaginar estar a
descobrir tudo de novo. É freqüente a gente ler essa frase: "ninguém tinha escrito nada sobre isto, etc...".

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