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http://dx.doi.org/10.

1590/1805-9584-2016v24n2p653
Resenhas

A contrassexualidade como superação


das dicotomias de gênero e sexo
Manifesto Contrassexual. Políticas um deles é desenvolvida uma reflexão diferente
sobre a temática proposta.
subversivas de identidade sexual. Manifesto contrassexual tem uma
PRECIADO, Beatriz. característica singular: é um texto performativo,
situando-se nas fronteiras e bordas entre teoria,
São Paulo: n-1 edições, 2014, 223 p. prática e ensaio. Os quatro capítulos resultaram
das experiências que Preciado teve na França
no final da década de 1990 com o grupo Le
Zoo, cuja reivindicação mais significativa consistia
O espanhol Paul B. Preciado, nascido na inclusão de disciplinas sobre Estudos de
Beatriz Preciado, é um dos filósofos feministas Gênero e Estudos Gays e Lésbicos nas universi-
que mais tem se destacado no cenário de dades francesas, de modo a compensar a
debates da teoria queer e dos estudos de gênero orientação e a matriz heterossexuais de outras
desde o início da década de 2000, juntamente disciplinas ensinadas. Sua colaboração foi
com outras autoras como Judith Butler, Sue Ellen importante para este grupo, para o qual ele
Case e Eve Sedgwick. Conhecido notoriamente preparou um seminário entre 1999 e 2000, e que
por ter feito a autoadministração de testosterona por fim resultou neste livro. Vale lembrar que
para analisar os efeitos que este hormônio Preciado se insere na tradição do feminismo
provocaria em seu corpo, publicou o livro Testo americano e da teoria queer dos anos 1990,
Yonqui (2008), no qual analisa o modo como as especialmente nos debates do Center for LGBTQ
estruturas políticas e de poder – sobretudo as Studies (CLAGS) de Nova York, dado que sua
capitalistas representadas pela indústria política contrassexual rompe com toda a série
pornográfica e farmacológica – influenciam as de binômios tradicionais que tem servido como
experiências subjetivas das pessoas e a maneira fundamento da filosofia moderna e da própria
como vive-se o corpo. Mas foi certamente o reflexão feminista que vinha sendo debatida na
livro Manifiesto Contrasexual, publicado pela década de 1990.
primeira vez na França em 2000, que o tornou E qual é a proposta do manifesto
uma das principais referências no campo de contrassexual? Preciado defende no primeiro
debate dos estudos queer e de gênero, capítulo intitulado “Contrassexualidade”, a análise
propondo a contrassexualidade como um crítica da diferença de gênero e de sexo que
conjunto de análises críticas e subversivas às comumente costumam ser julgados como
categorias fixas de identidade d@ sujeit@, produto de explicações essencialistas e biológicas
principalmente aquelas ligadas ao sexo, gênero da heteronormatividade. Aliado a isso, ele não
e sexualidade. Para @s estudios@s brasileir@s rejeita a hipótese das construções sociais ou
que se interessam por estas investigações, o livro psicológicas de gênero, mas as ressitua, ou
só podia ser encontrado em língua espanhola melhor, desloca-as, como mecanismos de um
ou inglesa até que, em 2014, a editora n-1 sistema tecnológico mais amplo. Tanto o sexo
traduziu e publicou Manifesto Contrassexual, quanto o gênero e a sexualidade seriam
livro dividido em quatro capítulos e anexo que resultados de dispositivos inscritos em um sistema
podem ser lidos separadamente, pois em cada tecnológico e sociopolítico complexo: “homem”,

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“mulher”, “homossexual”, “heterossexual”, Entretanto, Preciado evita entender o
“transexual” não passam de máquinas, produtos, gênero somente como atos da perfomatividade,
instrumentos, redes, conexões, fluxos de energia pois para ela essa alusão é insuficiente para refletir
e de informação, usos e desvios que incidem os processos através dos quais os corpos
sobre o corpo. Entretanto, o corpo não pode ser (re)assumem a sexualidade e o gênero. É nesse
compreendido como matéria passiva ou um sentido que o filósofo, em 2000, pretendeu dar
mero receptáculo de todos os discursos e práticas um passo a mais em relação ao texto canônico
de gênero que atuam nele uma vez que se deve da teoria queer, Gender Trouble (1990), pois, para
considerar sua própria manifestação. Aqui ele, Judith Butler subestimou os processos cor-
percebemos a presença de uma gramática porais e especialmente as transformações sexuais
profundamente assentada na filosofia francesa presentes nos corpos transexuais e transgêneros.
pós-estruturalista, em especial em Derrida e Foi apenas em Undoing Gender (2004) e em
Deleuze, autores com quem ele mantém outros livros posteriores que Judith Butler irá
interlocução até o final do último capítulo. Desse problematizar os corpos que haviam ficado
modo, a contrassexualidade tem como tarefa o invisíveis anteriormente, poucos anos depois de
estudo dos instrumentos e dos dispositivos sexuais, Preciado ter publicado Manifiesto Contrasexual.
das relações de gênero e sexo que se Portanto, a contrassexualidade de Preciado tem
estabelecem entre corpo e máquina/técnica, como tarefa identificar os espaços errôneos e as
com a finalidade de desnaturalizar as noções falhas da estrutura social-discursiva, considerando
tradicionais de sexo e de gênero. a importância dos lugares ocupados pelos corpos
As explicações introdutórias de Preciado dos “intersexuais, hermafroditas, loucas, caminho-
acerca da contrassexualidade se alinham às neiras, bichas, sapas, bibas, fanchas, butchs,
ideias centrais da heterossexualidade do regime histéricas, saídas ou frígidas, hermafrodykes,
político de Monique Wittig, dos dispositivos sexuais reforçando o poder dos desvios e derivações
pensados por Michel Foucault, às análises da em relação ao sistema heterocentrado”
identidade performativa de Judith Butler e à (PRECIADO, 2014, p. 27).
política do ciborgue, de Donna Haraway. Mas No breve capítulo 2, “Práticas de inversão
sua principal interlocutora é, de fato, Judith Butler, contrassexual”, Preciado propõe o termo
com a qual estabelece muitos pontos em “dildotectônica” para esclarecer de que maneira
comum, principalmente na solução dada para o dildo – noção dedicada ao “sexo de plástico”
superarmos os modelos explicativos de gênero – interfere e compõe tecnicamente no sistema
pautados na oposição “construção social versus sexo/gênero. A dildotectônica seria, portanto, um
natureza” (Beatriz PRECIADO, 2014, p. 23). Tal como ramo importante da contrassexualidade por supor
esta filósofa, Preciado critica o feminismo o corpo como superfície móvel, terreno de
construtivista ao dizer que o gênero não é deslocamento e de localização do dildo. Um
somente um efeito das práticas culturais linguístico- dos primeiros exemplos que ele utiliza para
discursivas, dando forma e significado ao corpo descrever de que maneira a “dildotectônica”
conforme a cultura ou o momento histórico. Ao funciona na prática refere-se à performance e
mesmo tempo, de modo algum ele se alia aos body-art do artista americano Ron Athey. Suas
modelos explicativos pautados na natureza e na apresentações ao vivo, no final da década de
biologia, como se um cromossomo fosse 1990, aglutinam práticas artísticas de diferentes
determinar o gênero e a sexualidade d@ sujeit@. estéticas, apontando questionamentos e
A solução que ele sugere para superarmos tais reapropriações dos meios de comunicação de
explicações é muito semelhante ao que Judith massa para (re)produzir práticas de gênero e
Butler pontuou pela primeira vez, em 1993, em sexualidade dissidentes. Para além da
Bodies that Matter: a ideia de perfomatividade1. performatividade de gênero, Preciado chama
Preciado, por sua vez, busca outro termo nessa atenção para as transformações corporais, físicas
busca, ou seja, o gênero seria, antes de tudo, e sexuais de Athey que não se realizam apenas
prostético e que não se dá senão na no palco, e sim no espaço público. Ademais,
materialidade dos corpos. Baseando-se nas esse capítulo também traz a crítica à cultura
noções de “transversalidade”, de Deleuze, e de heterocentrada, na qual o corpo funciona
“desconstrução”, de Derrida, que foi seu decisiva e majoritariamente a serviço da
orientador no final da década de 1990, Preciado reprodução sexual e da produção de prazer
entende o gênero como algo que é constante e genital. Trata-se de resistir à normalização da
puramente construído e, ao mesmo tempo, masculinidade e da feminilidade em nossos
inteiramente orgânico (PRECIADO, 2014, p. 29). corpos, e de inventar outras formas de prazer e

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de convivência. Dito de outro modo, o universo O último capítulo conclui o ciclo de debates
das sensibilidades e dos prazeres precisaria ser subversivos na medida em que Preciado pretende
deslocado do órgão sexual masculino para articular a noção de “homossexualidade mole-
outras áreas do corpo, invertendo, ou melhor, cular” de Deleuze e Guattari com o “devir mulher”.
subvertendo a lógica heternormativa que investe Conforme sua argumentação, é possível pensar
o pênis como o principal produtor de prazer para ou escrever transversalmente sobre certos fenô-
si e para @s outr@s. menos sem passar pela experiência real. Em
“Teorias” é o título dado para o terceiro Deleuze, a transversalidade adquire nova força
capítulo que se diferencia dos demais por ser de teoria e prática política, convertendo-se em
mais filosófico. A discussão principal é mostrar condição de possibilidade de certas experiências
como o sexo, pelo menos a partir do século XVIII, de “devir”. A homossexualidade, assim como o
é o resultado de uma tecnologia biopolítica. Isto alcoolismo e a drogadição por exemplo, não
é, Preciado reflete sobre o processo de todo um estão no âmbito da identidade ou da essência,
complexo sistema de estruturas reguladoras que e sim do devir. Entretanto, Preciado assume a difi-
controlam a relação entre os corpos com a sexu- culdade de compreender o sentido da afirmação
alidade e os usos atribuídos a eles. É importante “sou um homossexual molecular” de Deleuze, uma
nesse contexto a releitura de Foucault acerca vez que ele era heterossexual, pois não há ainda
da noção de tecnologia, a qual tinha sido respostas para as seguintes perguntas: “quais são
repudiada tanto pelo feminismo clássico quanto os mecanismos de transversalidade e as passa-
pelas políticas anticoloniais, uma vez que era gens de conversões que tornam Deleuze um
entendida como índice de dominação mascu- homossexual”? “Quais seriam as operações lógi-
lina. Além da presença de Foucault, o livro cas que permitiriam afirmar a homossexualidade
Manifesto Ciborgue (1989), de Donna Haraway, como posição de enunciação universal” (PRECIADO,
também marcará um ponto de inflexão para a 2014, p. 179)? Seguindo os passos de uma filosofia
repolitização de categorias como o feminino, o investigativa, Preciado busca as respostas para
animal, a natureza – que haviam sido pensados essas perguntas nos próprios contornos que Deleuze
precisamente na própria fronteira da tecnologia dá a esse tema. Assim, a ideia principal desse
biopolítica. capítulo é a de sugerir que a homossexualidade
Mas o que mais chama atenção em molecular não trata simplesmente do relaciona-
“Teorias” são as respostas que Preciado elabora mento de homens com homens e mulheres com
a uma série de perguntas formuladas no começo mulheres. Trata-se de quando o homem procura
do livro. Como aproximar-se do sexo enquanto também o que há de masculino na mulher, e a
objeto de análise? Que fatos históricos e sociais mulher, o que há de feminino no homem, confi-
intervêm na produção de gênero? Pode-se falar gurando o que ele preza por transversalidade.
e escrever sobre a sexualidade e o gênero hete- Em linhas gerais, Manifesto Contrassexual
rossexual sendo gay ou lésbica? Ou, ao contrário, é relevante para os estudos feministas, de gênero,
pode-se falar sobre a sexualidade e o gênero bem como para teoria queer, por abordar em
de gays e lésbicas sendo heterossexual? Nova- que medida as diferentes tecnologias de gênero
mente ele traz em cena o dildo, investindo-o operam para produzir posições de sujeito-corpo
como o primeiro indicador da plasticidade sexual e as formas através das quais esses sujeitos-corpo
do corpo e da possível modificação prostética resistem à normalização. Ou seja, o que interessa
que advém dele. Em outras palavras, o dildo a Preciado é como essas tecnologias falham –
indica que os órgãos masculinos e femininos que e, de um modo ou de outro, falham constante-
interpretamos como essencialmente naturais já mente como mostram, por exemplo, as subjetivi-
tenham sofrido um processo de transformação dades intersexuais. Sua preocupação é pensar
plástica desde o século XVIII. E, sobre este assunto, como são produzidas descontinuidades, como
ele provoca mais ainda ao dizer: “se o dildo são gerados interstícios, dobras de subjetivação
suscita a reprovação na comunidade lésbica e ou incorporações desviantes. Infelizmente,
nas representações em geral é porque esse Manifesto Contrassexual chega com 14 anos
incômodo brinquedo nos faz compreender que de atraso no Brasil. De lá para cá Preciado
os verdadeiros pênis não passam de dildos” adotou “Paul” como nome social e tem trabalha-
(PRECIADO, 2014, p. 79). A lógica do dildo, do constantemente em sua política contrassexual,
portanto, prova que os próprios termos dos pares adotando categorias como classe e raça em
binários heterossexual/homossexual, masculino/ suas atuais discussões. Muitas outras questões
feminino, ativo/passivo não passam de elementos abordadas neste livro avançaram, como mostra
de um sistema arbitrário de significação. Texto Yonqui (2008), livro no qual se faz uma crítica

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à carta genética e ao fármaco-poder; e Pornotopia CARRILLO, Jesús. Entrevista com Beatriz Preciado.
(2010), onde se analisa a arquitetura enquanto Revista Poiésis, Niterói, n. 15, p. 47-71, jul. 2010.
um dispositivo de biopoder que, a partir dos espa- Disponível em: <http://www.poiesis.uff.br/sumarios/
ços arquitetônicos organiza a realidade dos cor- sumario15.php>. Acesso em 15/02/2016.
pos. É a partir da trajetória de preparação dessas HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência,
três obras que Preciado foi reconhecido pela tecnologia e feminismo-socialista no final do
crítica feminista, ganhando inúmeros prêmios e século XX”. In.: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org. e
se estabelecendo, de vez, como uma das princi- Trad.). Antropologia do ciborgue: as vertigens
pais vozes dos estudos de gênero e sexualidade. do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica,
Nota 2000, p. 37-129.
1
PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contrassexual.
Para Butler, o gênero se dá em atos intencionais, em
Políticas subversivas de identidade sexual.
gestos performativos que geram significados. É pela
São Paulo: n-1 edições, 2014.
reiteração de signos, atos e gestos numa dada cultura que
ocorre a construção de corpos ditos masculinos e femininos ______. Texto Yonqui. Spain: Huertas. S. A., 2008.
(Judith BUTLER, 1993)
Referências
Carmem Silvia da Fonseca Kummer Liblik
BUTLER, Judith. Bodies that matter. On the discoursive Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR,
limits of “sex”. New York: Routledge, 1993. Brasil

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