Você está na página 1de 39

Charles Baudelaire

AS FLORES DO MAL
(Buquê)

2015.
Da tradução de Ivan Junqueira Sumário

CIP-Brasil. Catalogação na fonte

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Ao leitor 9
B339f

Baudelaire, Charles, 1821-1867 De Spleen et idéal


As flores do mal / Charles Baudelaire ; apresentação Marcelo
Jacques ; tradução, introdução e notas Ivan Junqueira. - [Ed.
II O albatroz 13
especial]. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2012.
(Saraiva de Bolso) VII A musa doente 15

VIII A musa venal 17


Tradução de: Les fleurs du mal X O inimigo 19
ISBN
XXI Hino à beleza 21

XXV Porias o universo inteiro em teu bordel 25


1. Poesia francesa. I. Junqueira, Ivan, 1934-. II. Título. III. Série.
CDD: 841 XXVI Sed non satiata 27

CDU: 821.133.1-1 XXVIII A serpente que dança 29

XXIX Uma carniça 33


Seleção:
Prof. Fumegas XXXIII 39
Remorso póstumo
XLVII Harmonia da tarde 41
2015.
XLIX O veneno 43

LIII O convite à viagem 45

LXXVI Spleen 49

LXXXV O relógio 51

De Tableaux parisiens

LXXXVII O sol 55

LXXXIX O cisne 57

XCIII A uma passante 63

XCV O crepúsculo vespertino 65

De Fleurs du mal

CIX Destruição 69

CXI Mulheres malditas 71

CXVI Uma viagem a Citera 75


Au lecteur Ao leitor

La sottise, l’erreur, le péché, la lésine, A tolice, o pecado, o logro, a mesquinhez


Occupent nos esprits et travaillent nos corps, Habitam nosso espiríto e o corpo viciam,
Et nous alimentons nos aimables remords, E adoráveis remorsos sempre nos saciam,
Comme les mendiants nourrissent leur vermine. Como o mendigo exibe a sua sordidez.

Nos péchés sont têtus, nos repentirs sont lâches; Fiéis ao pecado, a contrição nos amordaça;
Nous nous faisons payer grassement nos aveux, Impomos alto preço à infâmia confessada,
Et nous rentrons gaiement dans le chemin bourbeux, E alegres retornamos à lodosa estrada,
Croyant par de vils laver toutes nos taches. Na ilusão de que o pranto as nódoas nos desfaça.

Sur l’oreiller du mal c’est Satan Trismégiste Na almofada do mal é Satã Trismegisto
Qui berce longuement notre esprit enchanté, Quem docemente nosso espírito consola,
Et le riche métal de notre volonté E o metal puro da vontade então se evola
Est tout vaporisé par ce savant chimiste. Por obra deste sábio que age sem ser visto.

C’est le Diable qui tient les fils qui nous remuent! É o Diabo que nos move e até nos manuseia!
Aux objets répugnants nous trouvons des appas; Em tudo o que repugna uma joia encontramos;
Chaque jour vers l’Enfer nous descendons d’un pas, Dia após dia, para o Inferno caminhamos,
Sans horreurs, à travers des ténèbres qui puent. Sem medo algum, dentro da treva que nauseia.

Ainsi qu’un débauché pauvre qui baise et mange Assim como um voraz devasso beija e suga
Le sein martyrisé d’une antique catin, O seio murcho que lhe oferta uma vadia,
Nous volons au passage un plaisir clandestin Furtamos ao acaso uma carícia esguia
Que nous pressons bien fort comme une vieille orange. Para espremê-la qual laranja que se enruga.
Serré, fourmillant, comme un million d’helminthes, Espesso, a fervilhar, qual um milhão de helmintos,
Dans nos cerveaux ribote un peuple de Démons, Em nosso crânio um povo de demônios cresce,
Et, quand nous respirons, la Mort dans nos poumons E, ao respirarmos, aos pulmões a morte desce,
Descend, fleuve invisible, avec de sourdes plaintes. Rio invisível, com lamentos indistintos.

Si le viol, le poison, le poignard, l’incendie, Se o veneno, a paixão, o estupro, a punhalada


N’ont pas encor brodé de leurs plaisants dessins Não bordaram ainda com desenhos finos
Le canevas banal de nos piteux destins, A trama vã de nossos míseros destinos,
C’est que notre âme, hélas! n’est pas assez hardie. É que nossa alma arriscou pouco ou quase nada.

Mais parmi les chacals, les panthères, les lices, Em meio às hienas, às serpentes, aos chacais,
Les singes, les scorpions, les vautours, les serpents, Aos símios, escorpiões, abutres e panteras,
Les monstres glapissants, hurlants, grognants, rampants, Aos monstros ululantes e às viscosas feras,
Dans la ménagerie infâme de nos vices, No lodaçal de nossos vícios imortais,

Il en est un plus laid, plus méchant, plus immonde! Um há mais feio, mais iníquo, mais imundo!
Quoiqu’il ne pousse ni grands gestes ni grands cris, Sem grandes gestos ou sequer lançar um grito,
Il ferait volontiers de la terre un débris Da Terra, por prazer, faria um só detrito
Et dans un bâillement avalerait le monde; E num bocejo imenso engoliria o mundo;

C’est l’Ennui! — l’œil chargé d’un pleur involontaire, É o Tédio! — O olhar esquivo à mínima emoção,
Il rêve d’échafauds en fumant son houka. Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado.
Tu le connais, lecteur, ce monstre délicat, Tu conheces, leitor, o monstro delicado
— Hypocrite lecteur, — mon semblable, — mon frère! — Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!

10 11
L’albatros O albatroz

Souvent, pour s’amuser, les hommes d’équipage Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers, Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage, Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
Le navire glissant sur les gouffres amers. O navio a singrar por glaucos patamares.

A peine les ont-ils déposés sur les planches, Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
Que ces rois de l’azur, maladroits et honteux, O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
Comme des avirons traîner à côte d’eux. As asas em que fulge um branco imaculado.

Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule! Antes tão belo, como é feio na desgraça
Lui, naguère si beau, qu’il est comique et laid! Esse viajante agora flácido e acanhado!
L’un agace son bec avec un brûle-gueule, Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
L’autre mime, en boitant, l’infirme qui volait! Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

Le Poëte est semblable au prince des nuées O Poeta se compara ao príncipe da altura
Qui hante la tempête et se rit de l’archer; Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilé sur le sol au milieu des huées, Exilado no chão, em meio à turba obscura,
Ses ailes de géant l’empêchent de marcher. As asas de gigante impedem-no de andar.

12 13
La muse malade A musa doente

Ma pauvre muse, hélas! qu’as-tu donc ce matin? Que tens esta manhã, ó musa de ar magoado?
Tes yeux creux sont peuplés de visions nocturnes, Teus olhos estão cheios de visões noturnas,
Et je vois tour à tour réfléchis sur ton teint E vejo que em teu rosto afloram lado a lado
La folie et l’horreur, froides et taciturnes. A loucura e a aflição, frias e taciturnas.

Le succube verdâtre et le rose lutin Teria o duende róseo ou súcubo esverdeado


T’ont-ils versé la peur et l’amour de leurs urnes? Te ungindo com o medo e o mel de suas urnas?
Le cauchemar, d’un poing despotique et mutin, O sonho mau, de um punho déspota e obcecado,
T’a-t-il noyée au fond d’un fabuleux Minturnes? Nas águas te afogou de um mítico Minturnas?

Je voudrais qu’exhalant l’odeur de la santé Quisera eu que, vertendo o odor da exuberância,


Ton sein de pensers forts fût toujours fréquenté, O pensamento fosse em ti uma constância
Et que ton sang chrétien coulât à flots rhythmiques, E que o sangue cristão te fluísse na cadência

Comme les sons nombreux des syllabes antiques, Das velhas sílabas de uníssona frequência,
Où règnent tour à tour le père des chansons, Quando reinavam Febo, o criador das cantigas,
Phœbus, et le grand Pan, le seigneur des moissons. E o grande Pã, senhor do campo e das espigas.

14 15
La muse vénale A musa venal

O muse de mon cœur, amante des palais, Ó musa de minha alma, amante dos palácios,
Auras-tu, quand Janvier lâchera ses Borées, Terás, quando janeiro desatar seus ventos,
Durant les noirs ennuis des neigeuses soirées, No tédio negro dos crepúsculos nevoentos,
Un tison pour chauffer tes deux pieds violets? Uma brasa que esquente os teus dois pés violáceos?

Ranimeras-tu donc tes épaules marbrées Aquecerás teus níveos ombros sonolentos
Aux nocturnes rayons qui percent les volets? Na luz noturna que os postigos deixam coar?
Sentant ta bourse à sec autant que ton palais, Sem um níquel na bolsa e seco o paladar,
Récolteras-tu l’or des voûtes azurées? Colherás o ouro dos cerúleos firmamentos?

Il te faut, pour gagner ton pain de chaque soir, Tens que, para ganhar o pão de cada dia,
Comme un enfant de chœur, jouer de l’encensoir, Esse turíbulo agitar na sacristia,
Chanter des Te Deum auxquels tu ne crois guère, Entoar esses Te Deum que nada têm de novo,

Ou, saltimbanque à jeun, étaler tes appas Ou, bufão em jejum, exibir teus encantos
Et ton rire trempé de pleurs qu’on ne voit pas, E teu riso molhado de invisíveis prantos
Pour faire épanouir la rate du vulgaire. Para desopilar o fígado do povo.

16 17
L’ennemi O inimigo

Ma jeunesse ne fut qu’un ténébreux orage, A juventude não foi mais que um temporal,
Travesé çà et là par de brillants soleils; Aqui e ali por sóis ardentes trespassado;
Le tonnerre et la pluie ont fait un tel ravage, As chuvas e os trovões causaram dano tal
Qu’il reste en mon jardim bien peu de fruits vermeils. Que em meu pomar não resta um fruto sazonado.

Voilà que j’ai touché l’automne des idées, Eis que alcancei o outono de meu pensamento,
Et qu’il faut employer la pelle et les râteaux E agora o ancinho e a pá se fazem necessários
Pour rassembler à neuf les terres inondées, Para outra vez compor o solo lamacento,
Où l’on creuse des trous grands comme des tombeaux. Onde profundas covas se abrem como ossários.

Et qui sait si les fleurs nouvelles que je rêve E quem sabe se as flores que meu sonho ensaia
Trouveront dans ce sol lavé comme une grève Não achem nessa gleba aguada como praia
Le mystique aliment qui ferait leur vigueur? O místico alimento que as fará radiosas?

— O douleur! ô douleur! Le Temps mange la vie, Ó dor! O Tempo faz da vida uma carniça,
Et l’obscur Ennemi qui nous ronge le cœur E o sombrio Inimigo que nos rói as rosas
Du sang que nous perdons croît et se fortifie! No sangue que perdemos se enraíza e viça!

18 19
Hymne a la beauté Hino à beleza

Viens-tu du ciel profond ou sors-tu de l’abîme, Vens tu do céu profundo ou sais do precipício,
O Beauté? ton regard, infernal et divin, Beleza? Teu olhar, divino mas daninho,
Verse confusément le bienfait et le crime, Confusamente verte o bem e o malefício,
Et l’on peut pour cela te comparer au vin. E pode-se por isso comparar-te ao vinho.

Tu contiens dans ton œil le couchant et l’aurore; Em teus olhos refletes toda a luz diurtuna;
Tu répands des parfums comme un soir orageux; Lanças perfumes como a noite tempestuosa;
Tes baisers sont un philtre et ta bouche une amphore Teus beijos são um filtro e tua boca uma urna
Qui font le héros lâche et l’enfant courageux. Que torna o herói covarde e a criança corajosa.

Sors-tu du gouffre noir ou descends-tu des astres? Provéns do negro abismo ou da esfera infinita?
Le Destin charmé suit tes jupons comme un chien; Como um cão te acompanha a Fortuna encantada;
Tu sèmes au hasard la joie et les désastres Semeias ao acaso a alegria e a desdita
Et tu gouvernes tout et ne réponds de rien. E altiva segues sem jamais responder nada.

Tu marches sur des morts, Beauté, dont tu te moques; Calcando mortos vais, Beleza, a escarnecê-los;
De tes bijoux l’Horreur n’est pas le moins charmant, Em teu escrínio o Horror é joia que cintila,
Et le Meurtre, parmi tes plus chères breloques, E o Crime, esse berloque que te aguça os zelos,
Sur ton ventre orgueilleux danse amoureusement. Sobre teu ventre em amorosa dança oscila.

L’éphémère ébloui vole vers toi, chandelle, A mariposa voa ao teu encontro, ó vela,
Crépite, flambe et dit: Bénissons ce flambeau! Freme, inflama-se e diz: “Ó clarão abençoado!”
L’amoureux pantelant incliné sur sa belle O arfante namorado aos pés de sua bela
A l’air d’un moribond caressant son tombeau. Recorda um moribundo ao túmulo abraçado.
20 21
Que tu viennes du ciel ou de l’enfer, qu’importe, Que venhas lá do céu ou do inferno, que importa,
O Beauté! monstre énorme, effrayant, ingénu! Beleza! ó monstro ingênuo, gigantesco e horrendo!
Si ton œil, ton souris, ton pied, m’ouvrent la porte Se teu olhar, teu riso, teus pés me abrem a porta
D’un Infini que j’aime et n’ai jamais connu? De um infinito que amo e que jamais desvendo?

De Satan ou de Dieu, qu’importe? Ange ou Sirène, De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Qu’importe, si tu rends, — fée aux yeux de velours, Que importa, se és quem fazes — fada de olhos suaves,
Rhythme, parfum, lueur, ô mon unique reine! — Ó rainha de luz, perfume e ritmo cheia! —
L’univers moins hideux et les instants moins lourds? Mais humano o universo e as horas menos graves?

22 23
XXV XXV

Tu mettrais l’univers entier dans ta ruelle, Porias o universo inteiro em teu bordel,
Femme impure! Le’ennui rend ton âme cruelle. Mulher impura! O tédio é que te torna cruel
Pour exercer tes dents à ce jeu singulier, Para teus dentes neste jogo exercitar,
Il te faut chaque jour un cœur au râtelier. A cada dia um coração tens que sangrar.
Tes yeux, illuminés ainsi que des boutiques Teus olhos, cuja luz recorda a dos lampejos
Et des ifs flamboyants dans les fêtes publiques, E dos rútilos teixos que ardem nos festejos,
Usent insolemment d’un pouvoir emprunté, Exibem arrogantes uma vã nobreza,
Sans connaître jamais la loi de leur beauté. Sem conhecer jamais a lei de sua beleza.

Machine aveugle et sourde, en cruautés, féconde! Ó monstro cego e surdo, em cruezas fecundo!
Salutaire instrument, buveur du sang du monde, Salutar instrumento, vampiro do mundo,
Comment n’as-tu pas honte et comment n’as-tu pas Como não te envergonhas ou não vês sequer
Devant tous les miroirs vu pâlir tes appas? Murchar no espelho teu fascínio de mulher?
La grandeur de ce mal où tu te crois savante A grandeza do mal de que crês saber tanto
Ne t’a donc jamais fait reculer d’épouvante, Não te obriga jamais a vacilar de espanto
Quand la nature, grande en ses desseins cachés, Quando a mãe natureza, em desígnios velados,
De toi se sert, ô femme, ô reine des péchés, Recorre a ti, mulher, ó deusa dos pecados
— De toi, vil animal, — pour pétrir un génie? — A ti, vil animal —, para um gênio forjar?

O fangeuse grandeur! sublime ignominie! Ó lodosa grandeza! Ó desonra exemplar!

24 25
Sed non satiata Sed non satiata

Bizarre déité, brune comme les nuits, Bizarra divindade, cor da noite escura,
Au parfum mélangé de musc et de havane, Cujo perfume sabe a almíscar e a havana,
Oeuvre de quelque obi, le Faust de la savane, Obra de algum obi, o Fausto da savana,
Sorcière au flanc d’ébène, enfant des noirs minuits, Feiticeira sombria, criança da hora impura,

Je préfère au constance, à l’opium, au nuits, Prefiro ao ópio, ao vinho, à bêbeda loucura,


L’élixir de ta bauche où l’amour se pavane; O elixir dessa boca onde o amor se engalana;
Quand vers toi mes désirs partent en caravane, Se meus desejos vão a ti em caravana,
Tes yeux sont la citerne où boivent mes ennuis. É do frescor dos olhos teus que ando à procura.

Por ces deux grands yeux noirs, soupiraux de ton âme Que esses dois olhos negros, poros de tua alma,
O démon sans pitié! verse-moi moins de flamme; Ó demônio impiedoso! às chamas tragam calma;
Je ne suis pas le Styx pour t’embrasser neuf fois, Não sou o Estige para lúbrico abraçar-te,

Hélas! et je ne puis, Mégère libertine, E não posso, ai de mim, ó Megera sensual,


Pour briser ton courage et te mettre aux abois, Para dobrar-te a fúria e à parede encostar-te,
Dans l’enfer de ton lit devenir Proserpine! Qual Prosérpina arder em teu leito infernal.

26 27
Le serpent qui danse A serpente que dança

Que j’aime voir, chère indolente, Em teu corpo, lânguida amante,


De ton corps si beau, Me apraz contemplar,
Comme une étoffe vacillante, Como um tecido vacilante,
Miroiter la peau! A pele a faiscar.

Sur ta chevelure profonde Em tua fluida cabeleira


Aux âcres parfums, De ácidos perfumes,
Mer odorante et vagabonde Onda olorosa e aventureira
Aux flots bleus et bruns, De azulados gumes,

Comme un navire qui s’éveille Como um navio que amanhece


Au vent du matin, Mal desponta o vento,
Mon âme rêveuse appareille Minha alma em sonho se oferece
Pour un ciel lointain. Rumo ao firmamento.

Tes yeux, où rien ne se révèle Teus olhos, que jamais traduzem


De doux ni d’amer, Rancor ou doçura,
Sont deux bijoux froids où se mêle São joias frias onde luzem
L’or avec le fer. O ouro e a gema impura.

A te voir marcher en cadence, Ao ver-te a cadência indolente,


Belle d’abandon, Bela de exaustão,
On dirait un serpent qui danse Dir-se-á que dança uma serpente
Au bout d’un bâton. No alto de um bastão
28 29
Sous le fardeau de ta paresse Ébria de preguiça infinita,
Ta tête d’enfant A fronte de infanta
Se balance avec la mollesse Se inclina vagarosa e imita
D’un jeune éléphant, A de uma elefanta.

Et ton corps se penche et s’allonge E teu corpo pende e se aguça


Comme un fin vaisseau Como escuna esguia,
Qui roule bord sur bord et plonge Que às praias toca e se debruça
Ses vergues dans l’eau. Sobre a espuma fria.

Comme un flot grossi par la fonte Qual uma inflada vaga oriunda
Des glaciers grondants, Dos gelos frementes,
Quand l’eau de ta bouche remonte Quando a água em tua boca inunda
Au bord de tes dents, A arcada dos dentes,

Je crois boire un vin de Bohême, Bebo de um vinho que me infunde


Amer et vainqueur, Amargura e calma,
Un ciel liquide qui parsème Um líquido céu que difunde
D’étoiles mon cœur! Astros em minha alma!

30 31
Une charogne Uma carniça

Rappelez-vous l’objet que nous vîmes, mon âme, Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Ce beau matin d’été si doux: Numa bela manhã radiante:
Au détour d’un sentier une charogne infâme Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Sur un lit semé de cailloux, Uma carniça repugnante.

Les jambes en l’air, comme une femme lubrique, As pernas para cima, qual mulher lasciva,
Brûlante et suant les poisons, A transpirar miasmas e humores,
Ouvrait d’une façon nonchalante et cynique Eis que as abria desleixada e repulsiva,
Son ventre plein d’exhalaisons. O ventre prenhe de livores.

Le soleil rayonnait sur cette pourriture, Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
Comme afin de la cuire à point, Como a cozê-la em rubra pira
Et de rendre au centuple à la grande Nature E para ao cêntuplo volver à Natureza
Tout ce qu’ensemble elle avait joint; Tudo o que ali ela reunira.

Et le ciel regardait la carcasse superbe E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça


Comme une fleur s’épanouir. Como uma flor a se entreabrir.
La puanteur était si forte, que sur l’herbe O fedor era tal que sobre a relva escassa
Vous crûtes vous évanouir. Chegaste quase a sucumbir.

Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride, Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
D’où sortaient de noirs bataillons Dali saíam negros bandos
De larves, qui coulaient comme un épais liquide De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Le long de ces vivants haillons. Por entre esses trapos nefandos.
32 33
Tout cela descendait, montait comme une vague, E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,
Ou s’élançait en pétillant; Ou esguichava a borbulhar,
On eût dit que le corps, enflé d’un souffle vague, Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivait en se multipliant. Vivesse a se multiplicar.

Et ce monde rendait une étrange musique, E esse mundo emitia uma bulha esquisita,
Comme l’eau courante et le vent, Como vento ou água corrente,
Ou le grain qu’un vanneur d’un mouvement rhythmique Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita
Agite et tourne dans son van. E à joeira deita novamente.

Les formes s’effaçaient et n’étaient plus qu’un rêve, As formas fluíam como um sonho além da vista,
Une ébauche lente à venir, Um frouxo esboço em agonia,
Sur la toile oubliée, et que l’artiste achève Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista
Seulement par le souvenir. Apenas de memória um dia.

Derrière les rochers une chienne inquiète Por trás das rochas, irrequieta, uma cadela
Nous regardait d’un œil fâché, Em nós fixava o olho zangado,
Épiant le moment de reprendre au squelette Aguardando o momento de reaver àquela
Le morceau qu’elle avait lâché. Náusea carniça o seu bocado.

— Et pourtant vous serez semblable à cette ordure, — Pois hás de ser como essa coisa apodrecida,
A cette horrible infection, Essa medonha corrupção,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature, Estrela de meus olhos, sol de minha vida,
Vous, mon ange et ma passion! Tu, meu anjo e minha paixão!

Oui! telle que vous serez, ô la reine des grâces, Sim! tal serás um dia, ó deusa da beleza,
Après les derniers sacrements, Após a bênção derradeira,
Quand vous irez, sous l’herbe et les floraisons grasses, Quando, sob a erva e as florações da natureza,
Moisir parmi les ossements. Tornares afinal à poeira.

34 35
Alors, ô ma beauté! dites à la vermine Então, querida, dize à carne que se arruína,
Qui vous mangera de baisers, Ao verme que te beija o rosto,
Que j’ai gardé la forme et l’essence divine Que eu preservei a forma e a substância divina
De mes amours décomposés! De meu amor já decomposto!

36 37
Remords posthume Remorso póstumo

Lorsque tu dorminas, ma belle ténébreuse, Quando fores dormir, ó bela tenebrosa,


Au fond d’un monument construit en marbre noir, Em teu negro e marmóreo mausoléu, e não
Et lorsque tu n’auras pour alcôve et manoir Tiveres por alcova e refúgio senão
Qu’un caveau pluvieux et qu’une fosse creùse; Uma cova deserta e uma tumba chuvosa;

Quand la pierre, opprimant ta poitrine peureuse Quando a pedra, a oprimir tua carne medrosa
Et tes flancs qu’assouplit un charmant nonchaloir, E teus flancos sensuais de lânguida exaustão,
Empêchera ton cœur de battre et de vouloir, Impedir de querer e arfar teu coração,
Et tes pieds de courir leur course aventureuse, E teus pés de correr por trilha aventurosa,

Le tombeau, confident de mon rêve infini O túmulo, no qual em sonho me abandono


(Car le tombeau toujours comprendra le poëte), (Porque o túmulo sempre há de entender o poeta),
Durant ces grandes nuits d’où le somme est banni, Nessas noites sem fim em que nos foge o sono,

Te dira: “Que vous sert, courtisane imparfaite, Dir-te-á: “De que valeu, cortesã indiscreta,
De n’avoir pas connu ce que pleurent les morts?” Ao pé dos mortos ignorar o seu lamento?”
— Et le ver rongera ta peau comme un remords. — E o verme te roerá como um remorso lento.

38 39
Harmonie du soir Harmonia da tarde

Voici venir les temps où vibrant sur sa tige Chegado é o tempo em que, vibrando o caule virgem,
Chaque fleur s’évapore ainsi qu’un encensoir; Cada flor se evapora igual a um incensório;
Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir; Sons e perfumes pulsam no ar quase incorpóreo;
Valse mélancolique et langoureux vertige! Melancólica valsa e lânguida vertigem!

Chaque fleur s’évapore ainsi qu’un encensoir; Cada flor se evapora igual a um incensório;
Le violon frémit comme un cœur qu’on afflige; Fremem violinos como fibras que se afligem;
Valse mélancolique et langoureux vertige! Melancólica valsa e lâguida vertigem!
Le ciel est triste et beau comme un grand reposoir. É triste e belo o céu como um grande oratório.

Le violon frémit comme un cœur qu’on afflige, Fremem violinos como fibras que se afligem,
Un cœur tendre qui hait le néant vaste et noir! Almas ternas que odeiam o nada vasto e inglório!
Le ciel est triste et beau comme un grand reposoir; É triste e belo o céu como um grande oratório;
Le soleil s’est noyé dans son sang qui se fige. O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem.

Un cœur tendre qui hait le néant vaste et noir, Almas ternas que odeiam o nada vasto e inglório
Du passé lumineux recueille tout vestige! Recolhem do passado as ilusões que o fingem!
Le soleil s’est noyé dans son sang qui se fige... O sol se afoga em ondas que de sangue o tingem...
Ton souvenir en moi luit comme un ostensoir! Fulge a tua lembrança em mim qual ostensório!

40 41
Le poison O veneno

Le vin sait revêtir le plus sordide bouge Sabe o vinho vestir o ambiente mais espúrio
D’un luxe miraculeux, Com seu luxo prodigioso,
Et fait surgir plus d’un portique fabuleux E engendra mais de um pórtico miraculoso
Dans l’or de sa vapeur rouge, No ouro de um vapor purpúreo,
Comme un soleil couchant dans un ciel nébuleux. Como um sol que se põe no ocaso nebuloso.

L’opium agrandit ce qui n’a pas de bornes, O ópio dilata o que contornos não tem mais,
Allonge l’illimité, Aprofunda o ilimitado,
Approfondit le temps, creuse la volupté, Alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado,
Et de plaisirs noirs et mornes E de prazeres sensuais
Remplit l’âme au-delà de sa capacité. Enche a alma para além do que conter lhe é dado.

Tout cela ne vaut pas le poison qui découle Mas nada disso vale o veneno que escorre
De tes yeux, de tes yeux verts, De teu verde olhar perverso,
Lacs où mon âme tremble et se voit à l’envers... Laguna onde minha alma se mira ao inverso...
Mes songes viennent en foule E meu sonho logo acorre
Pour se désaltérer à ces gouffres amers. Para saciar-se nesse abismo em fel imerso.

Tout cela ne vaut pas le terrible prodige Nada disso se iguala ao prodígio sombrio
De ta salive qui mord, Da tua saliva forte,
Qui plonge dans l’oubli mon âme sans remord, Que a alma me impele ao esquecimento num transporte,
Et, charriant le vertige, E, carreando o desvario,
La roule défaillante aux rives de ma mort! Desfalecida a arrasta até os umbrais da morte!

42 43
L’invitation au voyage O convite à viagem

Mon enfant, ma sœur, Minha doce irmã,


Songe à la douceur Pensa na manhã
D’aller là-bas vivre ensemble! Em que iremos, numa viagem,
Aimer à loisir, Amar a valer,
Aimer et mourir Amar e morrer
Au pays qui te ressemble! No país que é a tua imagem!
Les soleils mouillés Os sóis orvalhados
De ces ciels brouillés Desses céus nublados
Pour mon esprit ont les charmes Para mim guardam o encanto
Si mystérieux Misterioso e cruel
De tes traîtres yeux, Desse olhar infiel
Brillant à travers leurs larmes. Brilhando através do pranto.

Là, tout n’est qu’ordre et beauté, Lá, tudo é paz e rigor,


Luxe, calme et volupté. Luxo, beleza e langor.

Des meubles luisants, Os móveis polidos,


Polis par les ans, Pelos tempos idos,
Décoreraient notre chambre; Decorariam o ambiente;
Les plus rares fleurs As mais raras flores
Mêlant leurs odeurs Misturando odores
Aux vagues senteurs de l’ambre, A um âmbar fluido e envolvente,
Les riches plafonds, Tetos inauditos,
Les miroirs profonds, Cristais infinitos,
44 45
La splendeur orientale, Toda uma pompa oriental,
Tout y parlerait Tudo aí à alma
À l’âme en secret Falaria em calma
Sa douce langue natale. Seu doce idioma natal.

Là, tout n’est qu’ordre et beauté, Lá, tudo é paz e rigor,


Luxe, calme et volupté. Luxo, beleza e langor.

Vois sur ces canaux Vê sobre os canais


Dormir ces vaisseaux Dormir junto aos cais
Dont l’humeur est vagabonde; Barcos de humor vagabundo;
C’est pour assouvir É para atender
Ton moindre désir Teu menor prazer
Qu’ils viennent du bout du monde. Que eles vêm do fim do mundo.
— Les soleils couchants — Os sanguíneos poentes
Revêtent les champs, Banham as vertentes,
Les canaux, la ville entière, Os canais, toda a cidade,
D’hyacinthe et d’or; E em seu ouro os tece;
Le monde s’endort O mundo adormece
Dans une chaude lumière. Na tépida luz que o invade.

Là, tout n’est qu’ordre et beauté, Lá, tudo é paz e rigor,


Luxe, calme et volupté. Luxo, beleza e langor.

46 47
Spleen Spleen

J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans. Eu tenho mais recordações do que há em mil anos.

Un gros meuble à tiroirs encombré de bilans, Uma cômoda imensa atulhada de planos,
De vers, de billets doux, de procès, de romances, Versos, cartas de amor, romances, escrituras,
Avec de lourds cheveux roulés dans des quittances, Com grossos cachos de cabelo entre as faturas,
Cache moins de secrets que mon triste cerveau. Guarda menos segredos que o meu coração.
C’est une pyramide, un immense caveau, É uma pirâmide, um fantástico porão,
Qui contient plus de morts que la fosse commune. E jazigo não há que mais mortos possua.
— Je suis un cimetière abhorré de la lune, — Eu sou um cemitério odiado pela lua,
Où comme des remords se traînent de longs vers Onde, como remorsos, vermes atrevidos
Qui s’acharnent toujours sur mes morts les plus chers. Andam sempre a irritar meus mortos mais queridos.
Je suis un vieux boudoir plein de roses fanées, Sou como um camarim onde há rosas fanadas,
Où gît tout un fouillis de modes surannées, Em meio a um turbilhão de modas já passadas,
Où les pastels plaintifs et les pâles Boucher, Onde os tristes pastéis de um Boucher desbotado
Seuls, respirent l’odeur d’un flacon débouché. Ainda aspiram o odor de um frasco destampado.

Rien n’égale en longueur les boiteuses journées, Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,
Quand sous les lourds flocons des neigeuses années, Quando, sob o rigor das brancas invernias,
L’Ennui, fruit de la morne incuriosité, O tédio, taciturno exílio da vontade,
Prend les proportions de l’immortalité. Assume as proporções da própria eternidade.
— Désormais tu n’es plus, ô matière vivante! — Doravante hás de ser, ó pobre e humano escombro!
Qu’un granit entouré d’une vague épouvante, Um granito açoitado por ondas de assombro,
Assoupi dans le fond d’un Saharah brumeux; A dormir nos confins de um Saara brumoso;
Un vieux sphinx ignoré du monde insoucieux, Uma esfinge que o mundo ignora, descuidoso,
Oublié sur la carte, et dont l’humeur farouche Esquecida no mapa, e cujo áspero humor
Ne chante qu’aux rayons du soleil qui se couche. Canta apenas os raios do sol a se pôr.
48 49
L’horloge O relógio

Horloge! dieu sinistre, effrayant, impassible, Relógio! deus sinistro, hediondo, indiferente,
Dont le doigt nous menace et nous dit: “Souviens-toi! Que nos aponta o dedo em riste e diz: “Recorda!
Les vibrantes Douleurs dans ton cœur plein d’effroi A Dor vibrante que a lama em pânico te acorda
Se planteront bientôt comme dans une cible; Como num alvo há de encravar-se brevemente;

Le Plaisir vaporeux fuira vers l’horizon Vaporoso, o Prazer fugirá no horizonte


Ainsi qu’une sylphide au fond de la coulisse; Como uma sílfide por trás dos bastidores;
Chaque instant te dévore un morceau du délice Cada instante devora os melhores sabores
A chaque homme accordé pour toute sa saison. Que todo homem degusta antes que a morte o afronte.

Trois mille six cents fois par heure, la Seconde Três mil seiscentas vezes por hora, o Segundo
Chuchote: Souviens-toi! — Rapide, avec sa voix Te murmura: Recorda! — E logo, sem demora,
D’insecte, Maintenant dit: Je suis Autrefois, Com voz de inseto, o Agora diz: Eu sou o Outrora,
Et j’ai pompé ta vie avec ma trompe immonde! E te suguei a vida com meu bulbo imundo!

Remember! Souviens-toi! prodigue! Esto memor! Remember! Souviens-toi! Esto memor! (Eu falo
(Mon gosier de métal parle toutes les langues.) Qualquer idioma em minha goela de metal.)
Les minutes, mortel folâtre, sont des gangues Cada minuto é como uma ganga, ó mortal,
Qu’il ne faut pas lâcher sans en extraire l’or! E há que extrair todo o ouro até purificá-lo!

Souviens-toi que le Temps est un jouer avide Recorda: O Tempo é sempre um jogador atento
Qui gagne sans tricher, à tout coup! c’est la loi. Que ganha, sem furtar, cada jogada! É a lei.
Le jour décroît; la nuit augmente; souviens-toi! O dia vai, a noite vem; recordar-te-ei!
La gouffre a toujours soif; la clepsydre se vide. Esgota-se a clepsidra; o abismo está sedento.
50 51
Tantôt sonnera l’heure où le divin Hasard, Virá a hora em que o Acaso, onde quer que te aguarde,
Où l’auguste Vertu, ton épouse encor vierge, Em que a augusta Virtude, esposa ainda intocada,
Où le Repentir même (oh! la dernière auberge!), E até mesmo o Remorso (oh, a última pousada!)
Où tout te dira: Meurs, vieux lâche! il est trop tard!” Te dirão: Vais morrer, velho medroso! É tarde!”

52 53
Le soleil O sol

Le long du vieux faubourg, où pendent aux masures Ao longo dos subúrbios, onde nos pardieiros
Les persiennes, abri des secrètes luxures, Persianas acobertam beijos sorrateiros,
Quand le soleil cruel frappe à traits redoublés Quando o impiedoso sol arroja seus punhais
Sur la ville et les champs, sur les toits et les blés, Sobre a cidade e o campo, os tetos e os trigais,
Je vais m’exercer seul à ma fantasque escrime, Exercerei a sós a minha estranha esgrima,
Flairant dans tous les coins les hasards de la rime, Buscando em cada canto os acasos da rima,
Trébuchant sur les mots comme sur les pavés, Tropeçando em palavras como nas calçadas,
Heurtant parfois des vers depuis longtemps rêvés. Topando imagens desde há muito já sonhadas.

Ce père nourricier, ennemi des chloroses, Este pai generoso, avesso à tez morbosa,
Éveille dans les champs les vers comme les roses; No campo acorda tanto o verme quanto a rosa;
Il fait s’évaporer les soucis vers le ciel, Ele dissolve a inquietação no azul do céu,
Et remplit les cerveaux et les ruches de miel. E cada cérebro ou colmeia enche de mel.
C’est lui qui rajeunit les porteurs de béquilles É ele quem remoça os que já não se movem
Et les rends gais et doux comme des jeunes filles, E os torna doces e febris qual uma jovem,
Et commande aux moissons de croître et de mûrir Ordenando depois que amadureça a messe
Dans le cœur immortel qui toujours veut fleurir! No eterno coração que sempre refloresce!

Quand, ainsi qu’un poëte, il descend dans les villes, Quando às cidades ele vai, tal como um poeta,
Il ennoblit le sort des choses les plus viles, Eis que redime até a coisa mais abjeta,
Et s’introduit en roi, sans bruit et sans valets, E adentra como rei, sem bulha ou serviçais,
Dans tous les hôpitaux et dans tous les palais. Quer os palácios, quer os tristes hospitais.

54 55
Le cygne O cisne

A Victor Hugo A Victor Hugo

I I

Andromaque, je pense à vous! Ce petit fleuve, Andrômaca, só penso em ti! O fio d’água
Pauvre et triste miroir où jadis resplendit Soturno pobre espelho onde esplendeu outrora
L’immense majesté de vos douleurs de veuve, De tua solidão de viúva a imensa mágoa,
Ce Simoïs menteur qui par vos pleurs grandit, Este mendaz Simeonte em que teu pranto aflora,

A fécondé soudain ma mémoire fertile, Fecundou-me de súbito a fértil memória,


Comme je traversais le nouveau Carrousel. Quando eu cruzava a passo o novo Carrossel.
Le vieux Paris n’est plus (la forme d’une ville Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história
Change plus vite, hélas! que le cœur d’un mortel); Depressa muda mais que um coração infiel);

Je ne vois qu’en esprit tout ce camp de baraques, Só na lembrança vejo esse campo de tendas,
Ces tas de chapiteaux ébauchés et de fûts, Capitéis e cornijas de esboço indeciso,
Les herbes, les gros blocs verdis par l’eau des flaques, A relva, os pedregulhos com musgo nas fendas,
Et, brillant aux carreaux, le bric-à-brac confus. E a miuçalha a brilhar nos ladrilhos do piso.

Là s’étalait jadis une ménagerie; Ali havia outrora os bichos de uma feira;
Là je vis, un matin, à l’heure où sous les cieux Ali eu vi, certa manhã, quando ao céu frio
Froids et clairs le Travail s’éveille, où la voirie E límpido o Trabalho acorda, quando a poeira
Pousse un sombre ouragan dans l’air silencieux, Levanta no ar silente um furacão sombrio,

Un cygne qui s’était évadé de sa cage, Um cisne que escapara enfim ao cativeiro
Et, de ses pieds palmés frottant le pavé sec, E, nas ásperas lajes os seus pés ferindo,
Sur le sol raboteux traînait son blanc plumage. As alvas plumas arrastava ao sol grosseiro.
Près d’un ruisseau sans eau la bête ouvrant le bec Junto a um regato seco, a ave, o bico abrindo,
56 57
Baignait nerveusement ses ailes dans la poudre, No pó banhava as asas cheias de aflição,
Et disait, le cœur plein de son beau lac natal: E dizia, a evocar o lago natal:
“Eau, quand donc pleuvras-tu? quand tonneras-tu, “Água, quando cairás? Quando soarás, trovão?”
[foudre?” Eu vejo esse infeliz, mito estranho e fatal,
Je vois ce malheureux, mythe étrange et fatal,
Tal qual o homem de Ovídio, às vezes num impulso,
Vers le ciel quelquefois, comme l’homme d’Ovide, Erguer-se para o céu cruelmente azul e irônico,
Vers le ciel ironique et cruellement bleu, A cabeça a emergir do pescoço convulso,
Sur son cou convulsif tendant sa tête avide, Como se a Deus lançasse um desafio agônico!
Comme s’il adressait des reproches à Dieu!

II II

Paris change! mais rien dans ma mélancolie Paris muda! mas nada em minha nostalgia
N’a bougé! palais neufs, échafaudages, blocs, Mudou! novos palácios, andaimes, lajedos,
Vieux faubourgs, tout pour moi devient allégorie, Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria,
Et mes chers souvenirs sont plus lourds que des rocs. E essas lembranças pesam mais do que rochedos.

Aussi devant ce Louvre une image m’opprime: Também diante do Louvre uma imagem me oprime:
Je pense à mon grand cygne, avec ses gestes fous, Penso em meu grande cisne, quando em fúria o vi,
Comme les exilés, ridicule et sublime, Qual exilado, tão ridículo e sublime,
Et rongé d’un désir sans trêve! et puis à vous, Roído de um desejo infindo! e logo em ti,

Andromaque, des bras d’un grand époux tombée, Andrômaca, às carícias do esposo arrancada,
Vil bétail, sous la main du superbe Pyrrhus, De Pirro a escrava, gado vil, trapo terreno,
Auprès d’un tombeau vide en extase courbée; Ao pé de ermo sepulcro em êxtase curvada,
Veuve d’Hector, hélas! et femme d’Hélénus! Triste viúva de Heitor e, após, mulher de Heleno!

58 59
Je pense à la négresse, amaigrie et phthisique, E penso nessa negra, enferma e emagrecida,
Piétinant dans la boue, et cherchant, l’œil hagard, Pés sob a lama, procurando, o olhar febril,
Les cocotiers absents de la superbe Afrique Os velhos coqueirais de uma África esquecida
Derrière la muraille immense du brouillard; Por detrás das muralhas do nevoeiro hostil;

A quiconque a perdu ce qui ne se retrouve Em alguém que perdeu o que o tempo não traz
Jamais, jamais! à ceux qui s’abreuvent de pleurs Nunca mais, nunca mais! nos que mamam da Dor
Et tettent la Douleur comme une bonne louve! E das lágrimas bebem qual loba voraz!
Aux maigres orphelins séchant comme des fleurs! Nos órfãos que definham mais do que uma flor!

Ainsi dans la forêt où mon esprit s’exile Assim, a alma exilada à sombra de uma faia,
Un vieux Souvenir sonne à plein souffle du cor! Uma lembrança antiga me ressoa infinda!
Je pense aux matelots oubliés dans une île, Penso em marujos esquecidos numa praia,
Aux captifs, aux vaincus!... à bien d’autres encor! Nos párias, nos galés, nos vencidos... e em outros
[mais ainda!

60 61
A une passante A uma passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait. A rua em torno era um frenético alarido.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse, Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Une femme passa, d’une main fastueuse Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Soulevant, balançant le feston et l’ourlet; Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Agile et noble, avec sa jambe de statue. Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant, Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
Dans son œil, ciel livide où germe l’ouragan, No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue. A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Un éclair... puis la nuit! — Fugitive beauté Que luz... e a noite após! — Efêmera beldade
Dont le regard m’a fait soudainement renaître, Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Ne te verrai-je plus que dans l’éternité? Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Ailleurs, bien loin d’ici! trop tard! jamais peut-être! Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Car j’ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais, Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
O toi que j’eusse aimée, ô toi qui le savais! Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!

62 63
Le crépuscule du soir O crepúsculo vespertino

Voici le soir charmant, ami du criminel; Eis a noite sutil, amiga do assassino;
Il vient comme un complice, à pas de loup; le ciel Ela vem como um cúmplice, a passo lupino;
Se ferme lentement comme une grande alcôve, Qual grande alcova o céu se fecha lentamente,
Et l’homme impatient se change en bête fauve. E em besta fera torna-se o homem impaciente.
O soir, aimable soir, désiré par celui Ó noite, amável noite, almejada por quem
Dont les bras, sans mentir, peuvent dire: Aujourd’hui Cujas mãos, sem mentir, podem dizer: Amém,
Nous avons travaillé! — C’est le soir qui soulage Galgamos nosso pão! — É a noite que alivia
Les esprits que dévore une douleur sauvage, As almas que uma dor selvagem suplicia,
Le savant obstiné dont le front s’alourdit, O sábio cuja fronte pesa sem proveito,
Et l’ouvrier courbé qui regagne son lit. E o recurvo operário que regressa ao leito.
Cependant des démons malsains dans l’atmosphère Entretanto, demônios insepultos no ócio
S’éveillent lourdement, comme des gens d’affaire, Acordam do estupor, como homens de negócio,
Et cognent en volant les volets et l’auvent. E estremecem a voar o postigo e a janela.
A travers les lueurs que tourmente le vent Através dos clarões que o vendaval flagela
La Prostitution s’allume dans les rues; O Meretrício brilha ao longo das calçadas;
Comme une fourmilière elle ouvre ses issues; Qual formigueiro ele franqueia mil entradas;
Partout elle se fraye un occulte chemin, Por toda parte engendra uma invisível trilha,
Ainsi que l’ennemi qui tente un coup de main; Assim como inimigo apronta uma armadilha;
Elle remue au sein de la cité de fange Pela cidade imunda e hostil se movimenta
Comme un ver qui dérobe à l’Homme ce qu’il mange. Como um verme que ao Homem furta o que o sustenta.
On entend çà et là les cuisines siffler, Ouvem-se aqui e ali as cozinhas a chiar,
Les théâtres glapir, les orchestres ronfler; Os teatros a ganir, as orquestras a ecoar;
Les tables d’hôte, dont le jeu fait les délices, Sobre as roletas em que o jogo encena farsas,
S’emplissent de catins et d’escrocs, leurs complices, Curvam-se escroques e rameiras, seus comparsas,
64 65
Et les voleurs, qui n’ont ni trêve ni merci, E os ladrões, que perdão ou trégua alguma têm
Vont bientôt commencer leur travail, eux aussi, Começam cedo a trabalhar, eles também,
Et forcer doucement les portes et les caisses Forçando docemente o trinco e a fechadura
Pour vivre quelques jours et vêtir leurs maîtresses. Para que a vida não lhes seja assim tão dura.

Recueille-toi, mon âme, en ce grave moment, Recolhe-te, minha alma, neste grave instante,
Et ferme ton oreille à ce rugissement. E tapa teus ouvidos a este som uivante.
C’est l’heure où les douleurs des malades s’aigrissent! É o momento em que as dores dos doentes culminam!
La sombre Nuit les prend à la gorge; ils finissent A Noite escura os estrangula; eles terminam
Leur destinée et vont vers le gouffre commun; Seus destinos no horror de um abismo comum;
L’hôpital se remplit de leurs soupirs. — Plus d’un Seus suspiros inundam o hospital; mais de um
Ne viendra plus chercher la soupe parfumée, Não mais virá buscar a sopa perfumada,
Au coin du feu, le soir, auprès d’une âme aimée. Junto ao fogão, à tarde, ao pé da bem-amada.

Encore la plupart n’ont-ils jamais connu E entre eles muitos há que nunca conheceram
La douceur du foyer et n’ont jamais vécu! A doçura do lar e que jamais viveram!

66 67
La destruction A destruição

Sans cesse à mes côtés s’agite le Démon; Sem cessar a meu lado o Demônio se agita,
Il nage autour de moi comme un air impalpable; E nada ao meu redor como um ar impalpável;
Je l’avale et le sens qui brûle mon poumon Eu o levo aos meus pulmões, onde ele arde e crepita,
Et l’emplit d’un désir éternel et coupable. Inflando-os de um desejo eterno e condenável.

Parfois il prend, sachant mon grand amour de l’Art, Às vezes, ao saber do amor que a arte me inspira,
La forme de la plus séduisante des femmes, Assume a forma da mulher que eu vejo em sonhos,
Et, sous de spécieux prétextes de cafard, E, qual tartufo afeito às tramas da mentira,
Accoutume ma lèvre à des philtres infâmes. Acostuma-me a boca aos seus filtros medonhos.

Il me conduit ainsi, loin du regard de Dieu, Ele assim me conduz, alquebrado e ofegante,
Haletant et brisé de fatigue, au milieu Já dos olhos de Deus afinal tão distante,
Des plaines de l’Ennui, profondes et désertes, Às planícies do Tédio, infindas e desertas,

Et jette dans mes yeux pleins de confusion E lança-me ao olhar imerso em confusão
Des vêtements souillés, des blessures ouvertes, Trajes imundos e feridas entreabertas
Et l’appareil sanglant de la Destruction! — O aparato sangrento e atroz da Destruição!

68 69
Femmes damnées Mulheres malditas

Comme un bétail pensif sur le sable couchées, Como um rebanho absorto e na areia deitadas,
Elles tournent leurs yeux vers l’horizon des mers, Elas volvem o olhar para o espelho das águas;
Et leurs pieds se cherchent et leurs mains rapprochées Os pés em mudo afago e as mãos entrelaçadas,
Ont de douces langueurs et des frissons amers. Bebem o fel do calafrio e o mel das mágoas.

Les unes, cœurs épris des longues confidences, Umas, o coração abrindo em confidências,
Dans le fond des bosquets où jasent les ruisseaux, Nos bosques onde se ouve um córrego em segredo,
Vont épelant l’amour des craintives enfances Vão soletrando o amor em cândidas cadências
Et creusent le bois vert des jeunes arbrisseaux; E o pólen raspam aos rebentos do arvoredo;

D’autres, comme des soeurs, marchent lentes et graves Outras, tais como irmãs, andam lentas e cavas
A travers les rochers pleins d’apparitions, Por entre as rochas apinhadas de ilusões,
Où saint Antoine a vu surgir comme des laves Onde viu Santo Antônio aflorar como lavas
Les seins nus et pourprés de ses tentations; Os rubros seios nus de suas tentações;

II en est, aux lueurs des résines croulantes, Outras há que, ao calor da líquida resina,
Qui dans le creux muet des vieux antres païens No côncavo sem voz de um velho antro pagão
T’appellent au secours de leurs fièvres hurlantes, Pedem por ti em meio à febre que alucina,
O Bacchus, endormeur des remords anciens! Ó Baco, ao pé de quem dorme toda a aflição!

Et d’autres, dont la gorge aime les scapulaires, E outras, que adoram pôr ao colo escapulários
Qui, recélant un fouet sous leurs longs vêtements, E que, escondendo sob as vestes um cilício,
Mêlent, dans le bois sombre et les nuits solitaires, Juntam à noite, pelos bosques solitários,
L’écume du plaisir aux larmes des tourments. A espuma do prazer ao gume do suplício.
70 71
O vierges, ô démons, ô monstres, ô martyres, Ó monstros, ó vestais, ó mártires sombrias,
De la réalité grands esprits contempteurs, Espírito nos quais o real sucumbe aos mitos,
Chercheuses d’infini dévotes et satyres, Vós que buscais o além, na prece e nas orgias,
Tantôt pleines de cris, tantôt pleines de pleurs, Ora cheias de pranto, ora cheias de gritos,

Vous que dans votre enfer mon âme a poursuivies, Vós que minha alma perseguiu em vosso inferno,
Pauvres soeurs, je vous aime autant que je vous plains, Pobres irmãs, eu vos renego e vos aceito,
Pour vos mornes douleurs, vos soifs inassouvies, Por vossa triste dor, vosso desejo eterno,
Et les urnes d’amour dont vos grands cœurs sont pleins! Pelas urnas de amor que inundam vosso peito!

72 73
Un voyage a Cythère Uma viagem a Citera

Mon cœur, comme un oiseau, voltigeait tout joyeux Voava o meu coração como um pássaro ocioso
Et planait librement à l’entour des cordages; E ao redor do cordame em pleno azul pairava;
Le navire roulait sous un ciel sans nuages, Sob um límpido céu, o navio flutuava
Comme un ange enivré d’un soleil radieux. Como um anjo inebriado à luz do sol radioso.

Quelle est cette île triste et noire? — C’est Cythère, Mas que ilha é esta, triste e sombria? — É Citera,
Nous dit-on, un pays fameux dans les chansons, Dizem-nos, um país em canções celebrado
Eldorado banal de tous les vieux garçons. E dos jovens, outrora, o banal Eldorado.
Regardez, après tout, c’est une pauvre terre. Olhai, enfim: um solo inóspito, eis o que era.

— Ile des doux secrets et des fêtes du cœur! — Ilha dos corações em festiva embriaguez!
De l’antique Vénus le superbe fantôme Da antiga Vênus nua a imagem soberana
Au-dessus de tes mers plane comme un arome, Como um perfume à tona de teus mares plana
Et charge les esprits d’amour et de langueur. E enche os espíritos de amor e languidez.

Belle île aux myrtes verts, pleine de fleurs écloses, Ilha do verde mirto e das flores vistosas,
Vénérée à jamais par toute nation, Venerada afinal por todas as nações,
Où les soupirs des cœurs en adoration Onde os suspiros de ardorosos corações
Roulent comme l’encens sur un jardin de roses Flutuam como o incenso entre jardins de rosas

Ou le roucoulement éternel d’un ramier! Ou como nos pombais o eterno arrulho inquieto!
— Cythère n’était plus qu’un terrain des plus maigres, — Citera era somente um chão dos mais desnudos,
Un désert rocailleux troublé par des cris aigres. Um áspero deserto a ecoar gritos agudos.
J’entrevoyais pourtant un objet singulier! Eu via ali, no entanto, um singular objeto!
74 75
Ce n’était pas un temple aux ombres bocagères, Não era um templo antigo à sombra das figueiras,
Où la jeune prêtresse, amoureuse des fleurs, Onde a sacerdotisa, amorosa das flores,
Allait, le corps brûlé de secrètes chaleurs, Ia, o corpo a pulsar em secretos calores,
Entre-bâillant sa robe aux brises passagères; A túnica entreabrindo às brisas passageiras;

Mais voilà qu’en rasant la côte d’assez près Mas eis que bordejando ao pé da costa agreste,
Pour troubler les oiseaux avec nos voiles blanches, As velas pondo em fuga as aves e os sargaços,
Nous vîmes que c’était un gibet à trois branches, Vimos então que era uma forca de três braços,
Du ciel se détachant en noir, comme un cyprès. A erguer-se negra para o céu como um cipreste.

De féroces oiseaux perchés sur leur pâture Ferozes pássaros que o odor da morte atiça
Détruisaient avec rage un pendu déjà mûr, Destroçavam com raiva um pútrido enforcado,
Chacun plantant, comme un outil, son bec impur Todos cravando, qual verruma, o bico afiado
Dans tous les coins saignants de cette pourriture; Em cada poro ainda sangrento da carniça;

Les yeux étaient deux trous, et du ventre effondré Os olhos eram dois buracos e, rasgado,
Les intestins pesants lui coulaient sur les cuisses, O ventre escoava os intestinos sobre as coxas,
Et ses bourreaux, gorgés de hideuses délices, E seus algozes, comensais de entranhas roxas,
L’avaient à coups de bec absolument châtré. A bicadas o sexo haviam-lhe arrancado.

Sous les pieds, un troupeau de jaloux quadrupèdes, A seus pés, um tropel de bestas ululantes,
Le museau relevé, tournoyait et rôdait; Focinho arreganhado, às cegas rodopiava;
Une plus grande bête au milieu s’agitait Uma fera maior ao centro se agitava,
Comme un exécuteur entouré de ses aides. Como um executor em meio aos ajudantes.

Habitant de Cythère, enfant d’un ciel si beau, Ó filho de Citera, herdeiro da luz pura,
Silencieusement tu souffrais ces insultes Em teu silêncio suportavas tais insultos
En expiation de tes infâmes cultes Como dura expiação dos teus infames cultos
Et des péchés qui t’ont interdit le tombeau. E pecados, sem ter direito a sepultura!

76 77
Ridicule pendu, tes douleurs sont les miennes! Ridículo enforcado, eu sofro iguais horrores,
Je sentis, à l’aspect de tes membres flottants, E sinto, ao contemplar-te as vértebras pendentes,
Comme un vomissement, remonter vers mes dents Subir-me, qual se fosse um vômito entre os dentes,
Le long fleuve de fiel des douleurs anciennes; A torrente de fel das minhas velhas dores;

Devant toi, pauvre diable au souvenir si cher, Ao ver-te, pobre-diabo, ainda suspenso agora,
J’ai senti tous les becs et toutes les mâchoires Em mim senti todos os bicos e os caninos
Des corbeaux lancinants et des panthères noires Dos abutres em fúria e tigres assassinos
Qui jadis aimaient tant à triturer ma chair. Que amavam tanto a carne espedaçar-me outrora.

— Le ciel était charmant, la mer était unie; — Translúcido era o céu, o mar em calmaria;
Pour moi tout était noir et sanglant désormais, Mas para mim tudo era escuro e solitário,
Hélas! et j’avais, comme en un suaire épais, E o coração, como entre as sombras de um sudário,
Le cœur enseveli dans cette allégorie. Eu envolvera nessa estranha alegoria.

Dans ton île, ô Vênus! je n’ai trouvé debout Vênus, em tua ilha eu vi um só despojo
Qu’un gibet symbolique où pendait mon image... Simbólico: uma forca, e nela a minha imagem...
— Ah! Seigneur! donnez-moi la force et le courage — Ah, Senhor, dai-me a força e insuflai-me a coragem
De contempler mon cœur et mon corps sans dégoût! De olhar meu coração e meu corpo sem nojo!

78 79

Você também pode gostar