Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
BADIOU
E m busca do real perdido
IVELCOME
T O R E A L 1 V I
... -
autêntica
O que é o real? Hoje em dia, o real aparece
sempre como aquilo que intimida. Não
temos como escapar do real, ele está aí,
impõe-se a nós como uma lei inexorável.
Por uma ironia da história, quem preten-
de deter os segredos do real no mundo
contemporâneo são os economistas, que
o apresentam para nós através de plani-
lhas, gráficos e números pretensamente
objetivos, que diriam a última palavra so-
bre o real. As projeções econômicas apre-
sentam-se, em geral, como catástrofe:
caso seus modelos não sejam implemen-
tados, tudo pode ruir. Apesar da sua to-
ALAIN
BADIOU
tal incapacidade não apenas de prever,
mas ainda de compreender os desas-
tres que ela mesma produz, a economia
sobrevive à sua própria impotência, por-
que todos, ou quase, parecem continuar
E m busca do real perdido
acreditando na peça representada em
escala planetária pelo capitalismo: A
democracia imaginária. Mas o que é o real?
Será mesmo isso que os economistas,
amparados pelos políticos profissionais
e pela mídia, dizem que ele é? Pergunta
filosófica por excelência: desde a Grécia
Antiga, a indagação acerca da natureza
do real não pode ser entregue exclusi-
vamente à ciência, ou a seus duplos.
Neste livro absolutamente indispensável
para quem quer pensar os impasses do
Brasil e do mundo hoje, Alain Badiou,
numa linguagem acessível, recorre, entre
outras coisas, ao teatro, à psicanálise e
à poesia a fim de expor os impasses da
apreensão do real. Para o autor, a questão
filosófica do real é a questão de saber
se podemos ou não modificar o mundo,
tornar suas fissuras visíveis e, assim,
escapar dessa imposição, desse discur-
so. Não se trata de negar o real, mas de
afirmar que, com a mesma paixão alegre
que busca o que há de real no real, ainda
podemos reinventá-lo.
Gilson lannini
OUTROS LIVROS DAFILÕ
FILÕ autêntica
FILÕ O t e m p o que resta A unidade do corpo
U m comentário à Carta aos e da m e n t e
A a l m a e as f o r m a s
Romanos Afetos, ações e paixões em
Ensaios
Giorgio Agamben Espinosa
Georg Lukács
Chantai Jaquet
A aventura da filosofia francesa
no século X X FILÔBATAILLE
Alain Badiou O erotismo FILÔESTÉTICA
Ciência, u m Monstro Georges Bataille
O belo autônomo
Lições trentinas A e x p e r i ê n c i a interior
Textos clássicos de estética
Paul K. Feyerabend Seguida de Método de meditação
Rodrigo Duarte (Org.)
A i d e o l o g i a e a utopia e Postscriptum 1953
O descredenciamento
Paul Ricceur Georges Bataille
ALAIN
f i l o s ó f i c o da arte
A literatura e o m a l
BADIOU
O p r i m a d o da p e r c e p ç ã o Arthur C. Danto
e suas c o n s e q u ê n c i a s filosóficas Georges Bataille
D o s u b l i m e ao t r á g i c o
Maurice Merleau-Ponty A parte m a l d i t a
Friedrich Schiller
Precedida de A noção de
A teoria d o s i n c o r p o r a i s Ion
dispêndio
no estoicismo antigo Platão
Georges Bataille
Emile Bréhier
E m busca do real perdido
Teoria da religião Pensar a i m a g e m
A sabedoria trágica Seguida de Esquema de uma Emmanuel Alloa (Org.)
Sobre o b o m uso de Nietzsche história das religiões
Michel Onfray Georges Bataille
FILÕMARGENS
Se P a r m ê n i d e s
O tratado a n ô n i m o De Melisso O amor impiedoso
FILÕBENJAMIN
Xenophane Gorgia (ou: Sobre a crença)
Bárbara Cassin O anjo da história
Slavoj éizek
A u n i ã o da a l m a e d o c o r p o Walter Benjamin
E s t i l o e verdade e m
em Malebranche, Biran e Bergson Baudelaire e a Jacques Lacan
Maurice Merleau-Ponty modernidade Gilson lannini
Walter Benjamin
I n t r o d u ç ã o a Foucault
I m a g e n s de p e n s a m e n t o
F1LÕAGAMBEN Edgardo Castro
Sobre o h a x i x e e
Bartleby, ou da c o n t i n g ê n c i a outras drogas Kafka
Giorgio Agamben Walter Benjamin Por uma literatura menor
seguido de Bartleby, o escrevente Gilles Deleuze
O r i g e m do drama trágico Félix Guattari
Herman Melville alemão
Lacan, o escrito, a i m a g e m
A c o m u n i d a d e que v e m Walter Benjamin
Jacques Aubert, François Cheng,
Giorgio Agamben
R u a de m ã o única Jean-Claude Milner,
O homem sem conteúdo I n f â n c i a berlinense: 1900 François Regnault, Gérard Wajcman
Giorgio Agamben Walter Benjamin O s o f r i m e n t o de D e u s
Ideia da prosa Inversões do Apocalipse
Giorgio Agamben Boris Gunjevic
FILÓESPINOSA
Slavoj Éiéek
Introdução a Giorgio Agamben
B r e v e tratado de D e u s ,
U m a arqueologia da potência Psicanálise sem Édipo?
d o h o m e m e d o seu
Edgardo Castro Uma antropologia clínica da
bem-estar
histeria em Freud e Lacan
Meios sem fim Espinosa
Philippe Van Haute
Notas sobre a política
E s p i n o s a subversivo e Tomas Geyskens
Giorgio Agamben
outros escritos
Nudez Antonio Negri
ANTIFILÕ
Giorgio Agamben
A p o t ê n c i a do p e n s a m e n t o
P r i n c í p i o s da filosofia
A Razão TRADUÇÃO Fernando Scheibe
cartesiana e P e n s a m e n t o s
Pascal Quignard
Ensaios e conferências metafísicos
Giorgio Agamben Espinosa
Copyright © 2 0 1 5 Librairie A r t h è m e Fayard
Todos os direitos reservados pela Autêntica Editora. Nenhuma parte desta publicação
poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica,
sem a autorização prévia da Editora.
ISBN 9 7 8 - 8 5 - 5 1 3 - 0 1 5 8 - 6
16-09261 CDD-194
^ GRUPO AUTÊNTICA
1
Antes de se tornar u m livro, em 2015, este texto foi apre-
sentado c o m o conferência inaugural do evento Citéphilo, de
2012, que tinha por tema a pergunta " Q u e l réel?" (que real?).
7
deve assumir c o m o evidência que só se p o d e - ao menos aparentemente - sem prova do real,
falar do real como suporte de u m a imposição? O ou seja, justamente a ideia, o conceito ou a defi-
real nunca é encontrado, descoberto, inventado, nição? A simples realidade do conceito não pode
mas sempre fonte de u m a imposição, figura de valer como u m a autêntica prova do real, já que,
u m a lei de bronze (como a "lei de bronze dos precisamente, supõe-se que o real seja aquilo que,
salários", ou a "regra de o u r o " que proíbe qual- à m i n h a frente, resiste a m i m , não é h o m o g ê n e o
quer déficit orçamentário)? Será preciso aceitar a m i m , não é imediatamente redutível a m i n h a
como u m a lei da razão que o real exige em toda decisão de pensar. Q u a n d o muito, posso pretender
e qualquer circunstância u m a submissão mais formular, com semelhante ponto de partida, u m a
,do que u m a invenção? O problema é que, em hipótese sobre o real, mas não u m a apresentação do
se tratando do real, é muito difícil saber como próprio real. Assim, a filosofia, exageradamente
começar. Esse problema a t o r m e n t a a filosofia racional, ou tentada pelo idealismo, careceria de
desde suas origens. O n d e começa o pensamento?
real, porque em sua própria maneira de começar
E c o m o começar de maneira que esse começo
ela o teria rasurado, obliterado, dissimulado sob
ajuste o pensamento a u m real de verdade, u m
abstrações fáceis demais.
real autêntico, u m real real?
Ora, assim que se diagnostica esse defeito, essa
Por que é tão difícil começar q u a n d o se falta idealista de u m a prova do real, é o real como
trata do real? Porque não se pode começar n e m imposição que vai voltar. O poder de intimidação
pelo conceito, a ideia, a definição, n e m pela ex- do uso da palavra "real" vai levantar precisamente
periência, o dado imediato ou o sensível. É fá- o "concreto" como bandeira. Vai se opor à mania
cil d e m o n s t r a r que começar pela definição, o idealizadora, que costuma ser chamada hoje de
conceito, a ideia leva a u m a construção que é utopia criminosa, ideologia desastrosa, devaneio
na verdade o contrário do que acredita ser, que arcaico... Todos esses nomes estigmatizam a fra-
é uma perda ou uma subtração do real. Afinal, queza da tese que pretenderia começar a busca
como posso alcançar o real, encontrar a prova do
pelo real com a figura da abstração. Ao que oporão
verdadeiro real, se me instalei justamente, e de
então u m verdadeiro real, autêntico e concreto:
maneira peremptória, naquilo que aceita existir
as realidades da economia do m u n d o , a inércia
das relações sociais, o sofrimento das existências
A conferência, em francês, pode ser assistida no Y o u T u b e , concretas, o veredicto dos mercados financeiros...
através do link h t t p s : / / g o o . g l / H C E e b g . (N.T.) Oporão tudo isso, que efetivamente tem u m grande
9 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
peso, à mania especulativa, à ideocracia militante, ruptura com a submissão subjetiva ao real de que
que - dirão - nos meteu em tantas aventuras san- ela se gaba de ser o saber. Era outras palavras, o
grentas ao longo do século X X .
que a economia considerada como discurso do
Há algo que, desse ponto de vista, desempe- real diz, prevê ou analisa nunca fez senão validar
nha hoje um papel decisivo: o lugar ocupado pela o caráter intimidante desse famigerado real, e nos
economia em toda e qualquer discussão que diga submeter sempre mais a ele. De tal modo que,
respeito ao real. Parece até que o saber do real foi quando esse real parece desfalecer, mostrar-se
confiado à economia. É ela que sabe.
como uma pura patologia, devastar o mundo ou
E, no entanto, tivemos, não faz muito tem- as existências - quando os próprios economistas
po, diversas oportunidades de constatar que ela acabam por perder o seu latim - , mesmo assim a
não sabia grande coisa, a economia. Ela não sabe
soberania dessa intimidação pelo real econômico
nem sequer prever desastres iminentes em sua
não apenas não é realmente reduzida como até se
própria esfera. Mas isso não mudou quase nada. É
vê aumentada. Os economistas e seus financia-
ainda e sempre ela que sabe o real e o impõe a nós.
dores reinam de maneira ainda mais imperial do
E aliás muito interessante constatar que a função
que antes dos desastres que não souberam prever
da economia em relação ao real sobreviveu per-
e só constataram depois, como todo mundo. O
feitamente à sua incapacidade absoluta não apenas
que prova muito bem que essa gente não se deixa
de prever o que ia acontecer, mas até mesmo de
destituir.
compreender o que estava acontecendo. Tudo in-
É uma lição extremamente interessante: a
dica que, no mundo atual, o discurso econômico
economia como tal não nos ensina de maneira
se apresenta como o guardião e o fiador do real.
alguma como poderíamos sair da concepção in-
Enquanto as leis do mundo do Capital continua-
timidante e, em última instância, opressiva do
rem sendo o que são, a prevalência intimidante do
real a que essa mesma economia consagra seu
discurso econômico não será desbancada.
desenvolvimento e a sofisticação de sua "ciên-
O que é impressionante na economia consi-
cia" impotente. Isso é muito importante, p o r -
derada como saber do real é que, mesmo quando
que a questão do real é evidentemente também a
enuncia - e às vezes é obrigada a isso pela evi-
questão de saber que relação a atividade humana,
dência dos fatos - que o "real" dela está fadado à
mental e prática, mantém com o referido real. E,
crise, à patologia, eventualmente ao desastre, todo
mais especificamente, se ele funciona como u m
esse discurso inquietante não produz nenhuma
imperativo de submissão ou se pode ou poderia
11
13 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
eram categorias puras: o ser, o nada, o devir... Na verdade, o mundo sensível - nosso mundo
Ora, é preciso partir de u m ponto completamente - nada tem de especialmente nu, ele é totalmente
diferente: a subjetividade como tal, única capaz forjado e constituído por relações que remeteni
de experimentar e descrever o que é o encontro imediatamente à ditadura da figura do real de que
com o real. E essa experiência toca tanto mais no parti. Por conseguinte, pode-se sustentar que se
real na medida em que assume o risco da angústia confiar pura e simplesmente ao imediato sensível,
que se sente se ele vem a faltar ou, pelo contrário, aos sentimentos, à emoção e ao encontro acaba na
a superabundar. realidade por consolidar não, dessa vez, o regime
E claro que a psicanálise, na promoção que acadêmico ou pretensamente científico de u m
fez, com Lacan, da palavra "real", se enraíza ex- saber sobre o real, mas pura e simplesmente aquilo
plicitamente nessa tradição existencial. Pois se que "real" quer dizer nas opiniões dominantes.
observa, na clínica, que - como repete o mestre - , O u seja, por nos reconduzir ao fato de que nossa
a partir do m o m e n t o em que se trata do real, em percepção, nosso encontro com o real, aquilo que
que caem as defesas organizadas pelo imaginário, t o m a m o s por nossa espontaneidade livre e i n d e -
pelo semblante, a angústia passa a estar na ordem pendente, tudo isso, na realidade, está estruturado
do dia. Só a angústia não engana, ela que é o de cabo a rabo pela figura do m u n d o tal qual ele
encontro com u m real tão intenso que o sujeito é, ou seja, u m m u n d o submetido ao imperati-
deve pagar o preço de se expor a ele. vo do real c o m o intimidação. R e m e t e m o - n o s ,
A objeção que farei a essa visão é que, se tem assim, não a u m saber alienado na objetividade
algo que está totalmente impregnado da dominação intimidante, c o m o na primeira hipótese, mas a
do real c o m o intimidação ou como submissão, u m a opinião que não poderemos diferenciar da
esse algo é precisamente nossa experiência. E, no experiência imediata do real n u m m u n d o que
final das contas, é isso que a função da angústia na está estruturado precisamente pela ditadura_de
psicanálise revela, já que o real se mostra aí como u m conceito do real c o m o intimidação.
aquilo que, para o sujeito, é sem medida. Porém, Q u a n t o a esse ponto, há algo muito instru-
se ele se mostra assim, é decerto porque não está tivo: a função do escândalo em nosso mundo. O
de m o d o algum subtraído aos dispositivos de in- escândalo sempre se apresenta como a revelação de
timidação que provêm da organização do m u n d o u m pedacinho de real. U m dia ficamos sabendo,
pela atividade humana dominante, incluída aí sua por nossa mídia preferida, que fulano foi à casa
atividade simbólica e "científica". de ciclano e saiu de lá com u m a mala cheia de
17 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
enquanto denegação desse mesmo real. De maneira pelos exercícios físicos de todo tipo? Então, o que
geral, o teatro poderia desempenhar u m grande pensar quando ficamos sabendo que milhares de
papel nessa investigação sobre o real, e falarei u m partidas de futebol têm seu resultado combinado de
p o u c o sobre ele mais adiante. Mas observem o antemão para que apostadores camuflados ganhem
ritmo do escândalo: há peripécias, novas desco- somas mirabolantes; que tal vencedor do Tour de
bertas, cúmplices, complôs, etc. 0_'^golp£teatral" France estava dopado até as orelhas e foi destituído
evidentemente é parte integrante da natureza do de suas sete vitórias - o que, diga-se de passagem,
escândalo, o que se esclarece facilmente se c o m - é u m a operação juridicamente extraordinária; ou
preendemos que se trata na verdade de fazer u m quando são postas na mesa questões comparativas
pedacinho de real funcionar como se fosse u m a do tipo: o tênis é mais ou menos corrompido do
exceção ao real, e de lançá-lo como u m petisco à que o futebol americano? Na certa, o escândalo está
opinião pública para que ela volte fundamental- em casa aí, já que o esporte reúne as pessoas para
mente à sua submissão àquilo que no f u n d o é a lei assistir a ele, e o doping ou as partidas compradas
do mundo: a onipresença da corrupção. transformam o espetáculo n u m puro semblante.
Notemos de passagem que o esporte é hoje Trata-se de u m real a céu aberto - e não da cena
uma grande vítima do escândalo. E é filosofica- furtiva de alguém se esgueirando à noite pelos
mente interessante se perguntar por que há tantos cantos com u m a mala cheia de dinheiro desti-
escândalos no esporte. É que o esporte é uma es- nado a assegurar sua eleição de u m a coisa que
pécie de vitrine aberta para a exceção escandalosa. todo m u n d o acompanhou e assistiu, nas ruas, nos
Ele ocorre em público e para o público. Daí o fato estádios ou na televisão. N o esporte, apesar da
de que o escândalo, que é sempre uma exposição dificuldade das investigações e da má vontade das
pública do que deveria p e r m a n e c e r escondido, federações, encontramos u m a espécie de forma
se sinta especialmente à vontade no esporte, que pública da corrupção geral.
está sempre ostentando suas virtudes: o esforço, a Mas vocês notarão que, no entanto, mesmo
abnegação, o sofrimento consentido, a lealdade na nessas condições, o que domina é a ideia de que
competição, a performance indiscutível, o sucesso a "imensa maioria" dos esportistas é leal e ima-
plenamente merecido... O que seria o esporte sem culada, e de que são feitos todos os esforços para
a constante exibição pública dessas raras qualida- que, afora essas exceções escandalosas, o esporte
des que a sociedade sempre propõe transmitir às se mantenha em seu ser incorruptível. Q u a n d o ,
jovens gerações através da prática e da admiração na verdade, quem está nos bastidores do esporte
19 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
sabe que se trata de u m domínio extremamente imaginário. Vocês logo veem apontar aí uma fábula,
corrupto, simplesmente porque o dinheiro circu- pois ele, Molière, morre de uma doença b e m real.
la ali em quantias grandes demais para que seja Essa doença real, que causou a morte de Molière, se
limpo. E algo que devemos sempre ter em mente: descobre no interior, ou a propósito, ou nas condições
onde há muito dinheiro, há corrupção, porque a de u m a doença que não apenas é representada,
partir do m o m e n t o em que o dinheiro circula em como também, mesmo no interior da representação,
quantidades muito grandes ele só garante a fluidez é apresentada c o m o imaginária. Temos aqui -
exigida para essa circulação transbordando u m e notem que se trata mais uma vez de teatro e de
bocado para os lados... teatralização - u m a espécie muito particular de
Tudo isso para concluir que, em se tratando roçar entre o real e o semblante. A doença mortal
do real, não se pode começar n e m por u m a d e - que vai levar Molière se manifesta n o próprio
finição rígida, que se construiria filosoficamente coração do semblante, ou seja, no m o m e n t o em
à distância de qualquer prova efetiva, n e m pela que Molière está representando realmente - porque
ideia de u m e n c o n t r o sensível c o m a exceção, a representação e n q u a n t o representação t o m a
que nos abriria de repente a porta do real. N e m parte do real - o semblante da doença. E tudo
a arrogância do conceito n e m a provocação do isso se tornou ainda mais contundente já que foi
escândalo trazem em si mesmas uma revelação do preciso carregar Molière desmaiado para fora do
real. Temos de lidar com essa questão de outro palco, a representação virou uma confusão só, e os
jeito. Andar que nem siri, ou construir diagonais, espectadores, confrontados de repente com aquela
para nos a p r o x i m a r m o s do real n u m processo morte real que se sobrepunha à doença imaginária,
singular a cada vez. É o que vou tentar fazer ficaram completamente atônitos.
ordenando as coisas da seguinte maneira: 1) u m a Q u a l é, para nós, a lição dessa dialética viva
anedota; 2) u m a simples m á x i m a teórica, u m a que se apossa da morte? Nessa anedota, o real é
definição; 3) u m poema. aquilo que frustra a representação.3 O u ainda: o real
é o momento em que o semblante se torna mais
I. A anedota real do que o real de que ele é o real: o: o papel do
doente imaginário é representado por u m doente
É uma anedota muito conhecida, a da morte
de Molière. C o m o vocês todos sabem, Molière 3
E m francês a fórmula é b e m mais bonita: "ce qui déjoue le jeu"
morreu enquanto estava representando O doente ("aquilo que 'desrepresenta' a representação"). (N.T.)
11
23 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
semblante, deve assumir t a m b é m que existe u m são variáveis em filosofia as conclusões sobre a
real do semblante, que há u m real da máscara. relação entre real e semblante, ou entre essência e
Através desses zigue-zagues, chegamos ao aparência. Pirandello circula em seu teatro a partir
seguinte importante enunciado: todo acesso ao real é de uma primeira hipótese segundo a qual não há
Jambém sua divisão. Não existe o real que se trataria real n e n h u m , já que toda máscara é a máscara de 1
de depurar do que não é ele já todo acesso u m a máscara, de maneira que tirar u m a máscara \
ao real é imediatamente, e de maneira necessária, exigiria tirar uma outra, sem que jamais se chegue
uma divisão, não apenas do real e do semblante, ao real nu, já que é a própria máscara que está nua, /
mas também do próprio real, visto que há u m real é o próprio semblante que é real. Mas abre a partir
do semblante. E o ato dessa divisão, por meio do daí outras perspectivas, mais otimistas, nas quais,
qual o semblante é arrancado e ao mesmo tempo através do semblante, do semblante do real e do
identificado, que podemos descrever como sendo real do semblante, algo de verdadeiramente real
o processo de acesso ao real. vem se afirmar.
Pirandello trabalhou sobre essa divisão do real Se tentamos aplicar essas observações à si-
a ponto de fazer dela o tema principal de muitas de tuação contemporânea, devemos nos perguntar:
suas peças. E quando publicaram a primeira edição qual é a máscara do nosso real e, portanto, qual
de seu teatro ele quis batizá-la de Máscara nua. Isso é o semblante próprio do capitalismo imperial
funciona u m pouco como uma recapitulação do mundializado, sob que máscara ele se apresenta
que estamos dizendo: a máscara deve ser arrancada que impede que sua identificação o divida, qual é
enquanto semblante, mas, a f i m de chegar ao real a máscara ao mesmo tempo tão real e tão afastada
nu - des-mascarado - , é preciso também reconhe- de qualquer real que é quase impossível arrancá-la?
cer a nudez da máscara, é preciso levar em conta o E então lamento ter de dizer aqui que o
fato de que a própria máscara exige que a tenhamos semblante contemporâneo do real capitalista é a
por real. E é isso que constitui o tema de peças democracia. É a sua máscara. Lamento, porque a
como Seis personagens à procura de autor ou Henrique palavra "democracia" é u m a palavra admirável, e
IV. Ler as peças de Pirandello é u m a excelente será preciso retomá-la e redefini-la, de u m jeito
educação sobre a questão do real, porque nelas ou de outro. Mas a democracia de que estou fa-
encontramos exatamente a questão de que estamos lando é a que funciona em nossas sociedades de
tratando aqui: que real? É a questão que essas peças maneira institucional, estatal, regular, n o r m a t i -
colocam; aliás, com conclusões variáveis - como zada. Poderíamos dizer - para retomar a metáfora
11
24 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
da morte de Molière — que o capitalismo é esse a esse real só pode se dar por meio de uma divisão
m u n d o que está sempre representando u m a peça constitutiva de caráter político. Ora, o que cons-
cujo título é A democracia imaginária. E ela é bem tatamos é que a peça torna possível a esse respeito
representada, é a melhor peça de que o capitalismo unicamente falsas divisões, a mais conhecida delas
é capaz. Os espectadores e os participantes em geral sendo, entre nós, a distinção esquerda/direita. O b -
aplaudem, alguns mais, outros menos. O fato é servem b e m a esquerda hoje, observem-na como
que é u m rito para o qual são convocados e ao qual se estivessem assistindo à peça da democracia ima-
se submetem. Mas, enquanto essa peça dura, é a ginária, que é a peça, a única do repertório. N ã o
democracia imaginária que é representada e, por há outras que estejam sendo representadas, pelo
baixo, o processo mundializado do capitalismo e menos não nessa escala, a do Estado, da nação,
da pilhagem imperial que prossegue, com seu real do m u n d o devastado pelo capitalismo. Graças a
impalpável, cuja descrição não serve para nada. Deus existem, aqui e ali, pequenos teatros expe-
E n q u a n t o essa peça durar e u m vasto público rimentais que p õ e m em cena outras peças, mas
continuar a apreciá-la, o real do capitalismo, ou falar disso agora seria entrar n u m outro capítulo.
seja, a capacidade de dividi-lo, de obrigá-lo a uma O que vocês veem? Q u a n d o o governo decide
cisão de si mesmo que seja ativa e que prometa dar 20 bilhões de euros ao patronato, sem n e -
sua dissipação, sua destruição, permanecerá poli- n h u m a contrapartida, ele representa a peça c o m
ticamente inacessível. Porque se essa peça é a peça convicção. Mas não devemos pensar que se trata
do semblante democrático, se ela é a máscara que de u m a patologia: afinal, ele está aí para isso!
fornece ao capitalismo imperial contemporâneo a Q u e diabos poderia fazer senão isso? Seria como
cobertura de que ele precisa, e se, ainda por cima, se, de repente, no meio de u m a peça de teatro,
n e n h u m a possibilidade de arrancar essa máscara, u m ator se levantasse para dizer que está cheio de
de interromper essa peça de teatro, está na ordem representar aquela peça, que está a f i m de repre-
do dia, então alguma coisa permanece politica- sentar outra! Foi aliás o que Molière fez, já que,
mente inacessível para qualquer empreendimento quando morreu no meio da peça, era outra peça
político de acesso ao real nu. que estava sendo representada...
O acesso ao real do capitalismo imperial C o m o o real é sempre aquilo que se descobre
contemporâneo - t a m b é m chamado Ocidente, ao preço de que o semblante que nos subjuga seja
m u n d o democrático, comunidade internacional, arrancado, e c o m o esse semblante faz parte da
Estado de direito..., nome é o que não falta - o acesso própria apresentação do real escondido, propus
27 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
chamar de "acontecimento" esse gesto de arrancar N o ponto em que estamos, o que podemos
a máscara, porque não se trata de algo interior à fazer com essa fórmula? N ã o quero partir do con-
própria representação. É algo que vem de alhures, ceito, então é preciso partir de u m exemplo, e
de u m alhures interior, se assim podemos dizer, esse exemplo será a aritmética elementar. Q u a n d o
ainda que esse alhures seja dificilmente situável e, contamos, multiplicamos ou adicionamos, pode-se
infelizmente, muitas vezes improvável. dizer que estamos, de maneira prática, no inte-
M i n h a última observação a propósito da rior da formalização matemática. Nosso cálculo
anedota de Molière será a seguinte: se o real só é sempre finito: todo cálculo termina, de fato,
é acessível como arrancamento de seu semblante com o que chamamos seu resultado, verdadeiro
próprio, então há necessariamente certa dose de ou falso. Portanto, estamos n u m a formalização,
violência no acesso ao real. Essa violência se faz que é regulamentada (há regras de adição, aquelas
presente c o m toda força na anedota da m o r t e de ensinadas às crianças), que é finita, e, no interior
Molière: o ator cai no chão, cospe sangue, etc. dessa formalização, há u m a atividade particular,
Por certo, é u m a metáfora. Ela indica - sem nada que é o cálculo.
demonstrar - que há inevitavelmente uma dose de Mas, na realidade, há nisso tudo u m ponto
violência, porque a relação do semblante com o que não está explícito e que é o seguinte: quando
real faz parte do real. D e tal m o d o que, ao arran- calculamos a partir de números, estamos conven-
car a máscara, dividimos o real, não o deixamos cidos de que o resultado será u m número. N ã o
intacto diante de nós. Todo acesso ao real o fere, há a menor dúvida quanto a isso: se adicionamos
através da divisão inelutável que se inflige a ele números, obtemos u m número. O que supõe, evi-
ao desmascará-lo. dentemente, que seja qualfor a duração do cálculo finito,
Eis aí o que tinha a dizer sobre a anedota. sempre encontraremos um número. O que exige que não
exista u m último número. Isso seria absolutamente
II. A definição contrário à liberdade do cálculo.
Por conseguinte, algo nisso tudo é in-finito.
Q u a n t o à sentença, vou tomá-la emprestada Algo - a série dos números - não tem f i m . Mas
a u m de meus mestres, Jacques Lacan, que, indo esse i n f i n i t o , que f u n c i o n a de m a n e i r a oculta
direto ao assunto, propôs uma definição do real, por n o interior do próprio cálculo finito, esse i n -
certo u m pouco insidiosa, que é a seguinte: o real finito não é u m n ú m e r o , porque na aritmética
é o impasse da formalização. não há n ú m e r o infinito, isso não existe. Logo,
FILÕ
11
28 EM BUSCA DO REAL PERDIDO
o real da aritmética finita exige que se admita Podemos então dizer que o real é atingido
u m a i n f i n i d a d e subjacente que f u n d a o real do não através do uso da formalização - já que ele é
cálculo ainda que c o m o impasse de qualquer justamente o impasse dela - , mas quando se explora
resultado possível desse mesmo cálculo, que só aquilo que é impossível para essa formalização.
pode produzir números finitos. C o m p r e e n d a m o s , n o entanto, que não se trata
E nesse sentido que se pode dizer que o real de u m a impossibilidade geral, mas do " p o n t o "
dos números finitos da aritmética elementar é u m preciso que é o impossível de u m a d e t e r m i n a -
infinito subjacente, inacessível a essa formalização, da formalização. Q u a l é o p o n t o preciso que é
e que é, portanto, realmente, seu impasse. Lacan impossível na aritmética dos números naturais?
tem toda razão. O n ú m e r o infinito. Enquanto número, ele está
Tentemos generalizar. N o exemplo aritmé- ligado organicamente à formalização aritmética,
tico, u m i n f i n i t o oculto é a condição do cálculo enquanto infinito, é o impossível próprio desta.
finito, mas ao mesmo tempo não pode ser calcu- Assim, o n ú m e r o infinito como impossível é o
lado e, p o r t a n t o , não p o d e f i g u r a r " e m pessoa" real da aritmética.
na formalização dentro da qual o cálculo opera: Poderíamos evocar referências convincentes
o número, de fato, segundo a formalização que o em outros domínios, pois essa doutrina é muito
inscreve n u m cálculo, seja c o m o aquilo a partir forte. Por exemplo, poderíamos nos perguntar qual
do que se calcula, seja c o m o resultado do cál- é o real das imagens cinematográficas. E então se
culo, é essencialmente finito. Por conseguinte, poderia sustentar - como já foi feito há muito tem-
diremos que o real é o ponto de impossível da forma- po, por exemplo, na ontologia da imagem proposta
lização. Isso quer dizer que aquilo que a formali- por André Bazin - que o real de u m a imagem
zação torna possível - a saber, no nosso exemplo, cinematográfica é aquilo que está fora de campo.
calcular a partir de n ú m e r o s - só é possível pela A imagem deve sua potência real ao fato de ser
existência implicitamente assumida daquilo que extraída de u m m u n d o que não está na imagem,
não pode se inscrever nesse tipo de possiblidade. mas que constrói sua força. É na medida em que
Trata-se, portanto, de u m "ponto de pensamento" a imagem se constrói a partir do que está fora da
que, embora condenado a p e r m a n e c e r inacessí- imagem que ela tem chances de ser realmente bela
vel para as operações que a formalização torna e forte, embora o cinema só seja composto - cal-
possíveis, não deixa de ser a condição última da culado - de acordo com o que circunscreve a ima-
própria formalização. gem n u m quadro, e, portanto, o m u n d o deixado
31 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
fora de campo seja precisamente o que não é fil- de comunismo, o infinito próprio da política. O
mado, o que é impossível fazer entrar tal qual na Estado nunca é mais que a finitude calculável da
imagem enquadrada. Assim como o número i n - política, de que o comunismo é, de certa maneira,
finito é o real da aritmética, o fora de campo é o o número infinito.
infinito próprio da imagem cinematográfica. Mas U m a objeção trivial, mas constante, é a se-
é também seu impossível, já que, por definição, a guinte: se o acesso ao real é o ponto de impos-
infinidade do m u n d o ambiente nunca é capturada sível, tocar o real, alcançá-lo, supõe que se possa
pela imagem. transformar esse impossível em possibilidade. O
Tud o isso equivale a dizer que só se pode que parece precisamente impossível. P o r é m j u s -
ter acesso a u m real quando se descobre qual é o tamente, essa possibilização do impossível só é
impossível próprio de uma formalização. conceitualmente impossível n o âmbito da f o r -
Chegados a esse ponto, devemos nos pergun- malização concernida: o cálculo dos números^ o
tar qual é o real da política. Pois bem, é o ponto enquadramento no cinema, o Estado em política..
que, se nos referimos ao quadro da formalização Portanto, só u m p o n t o fora de formalização pode
existente para a política, isto é, a política tal como dar acesso ao real. E é por isso que se trata não
o Estado a prescreve - a política constitucional, a de u m cálculo i n t e r n o à formalização, mas de
política autorizada - , é rejeitado para a impossibi- um ato que faz a formalização se desvanecer m o - 1
lidade latente de seu poder real. É exatamente o mentaneamente em proveito de seu real latente.
33 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
revolução. N u m a revolução, o formalismo legal
promete economizar a destruição. Mas, se qui-
do Estado é, n o m í n i m o , suspenso.
sermos a política como política do real, é preciso
O processo de acesso ao real - a que chamo,
afirmar a existência do impossível, e isso pode ter
em meu jargão filosófico, de u m procedimento
consequências incómodas para a formalização de
de verdade - está sempre em via de destruir uma
que ele é o impossível próprio.
formalização parcial, porque faz advir a impossi-
Tentemos aplicar tudo isso à situação con-
b i l i d a d e particular e pontual dessa formalização.
temporânea do m u n d o dos homens. É claro que a
Q u e conclusões tirar daí?
formalização maior de nossa existência coletiva é
Primeira: que só há conquista do real ali onde
o capitalismo chegado à sua forma suprema, que
há uma formalização - pois, se o real é o impasse da
é o imperialismo planetário. E seu ponto de i m -
formalização, é preciso que haja uma formalização.
possível próprio é a igualdade. Por quê? Porque o
Logo, não há esperança de conquistar o real fora da
capitalismo é totalmente refratário à erradicação
existência de uma formalização, de u m arranjo, de
da propriedade privada, sobre a qual se alicerça, e
uma forma. O real supõe que tenha sido pensada
porque a acumulação da propriedade privada pro-
e construída a forma aparente daquilo de que u m
duz necessariamente desigualdades enormes. Aliás,
determinado real é o real oculto.
a desigualdade é constantemente reivindicada pelo
Segunda: a afirmação do real como impasse capitalismo como uma necessidade natural, enquanto
dessa formalização vai ser em parte a destruição a igualdade é qualificada de utopia que conduz ao
dessa formalização. O u , digamos, sua divisão. E crime, o que equivale a dizer que ela é "humana-
tudo vai começar por u m a afirmação inaceitável mente" impossível. Isso foi esclarecido há muito
do p o n t o de vista da própria formalização, que tempo, talvez já desde a Revolução Francesa: o ponto
prescreve o que é possível, a saber, * afirmação de
de impossível próprio do capitalismo é a igualdade.
que o impossível existe.
A afirmação efetiva desse ponto de impossível, a
Está aí o gesto fundamental de conquista do afirmação de que esse ponto deve ser a origem de
real: declarar que o impossível existe. Tem u m todo pensamento político novo é o que o meu amigo
político outrora célebre que disse que a política Rancière chama de axioma da igualdade. Enquanto
era a arte do possível, mas está na cara que ela é a ponto de impossível, a igualdade só pode ser u m
arte do impossível, ao menos em se tratando de resultado se for declarada como princípio. Mas esse
uma política real. A arte do possível é a política princípio, na ordem prática, acarreta necessariamente
como semblante. Isso tem suas virtudes, porque uma cisão destruidora do capitalismo imperial.
37 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
da juventude dos anos 1960. É também o período historicidade - , e portanto de seu ponto real, que é
que vai da solidez do comunismo stalinista a seu possível que nos precipitemos para o seu fim. Talvez
descrédito total e sua derrocada. E é essa a razão estejamos no ponto em que a história, tal como a
pela qual Pasolini se pergunta - é o tema de seus conhecemos e praticamos, vai se dividir diante da
poemas, que são com frequência construções gi- prova de seu real, e assim se desfazer. Pode ser que
gantescas e muito subjetivadas - o que é o real da a História - nossa história, a que sabemos contar -
História. E essa sua questão. vá se abrir como a terra faz nos grandes sismos.
Vocês sabem que o ensaísta norte-americano Poderemos então começar de novo, dotados de
Fukuyama defendeu recentemente a tese de que o u m certo acesso ao real de nossa história, o qual
real da História é que ela chegou ao seu fim. É uma terá sido o operador de divisão, não da História,
tese considerável, que pode ser alimentada de uma no fim das contas, mas de nossa historicidade sin-
certa herança hegeliana mais ou menos deformada gular, aquela que, em definitivo, gira ao redor da
e mal digerida, mas que não deixa de ser uma tese perenidade dos Estados.
sobre o real da História. Ela consiste em dizer que Pasolini diz algo parecido com isso. Não o diz
podemos agora saber o que terá sido esse real, por- como Fukuyama, que se senta confortavelmente
que, com o capitalismo mundializado e o Estado na poltrona da civilização contemporânea. Fala
democrático, encontrou-se uma fórmula capaz de em meio a u m tormento terrível, o tormento de
obter tamanho consentimento geral que ela torna quem encara a experiência desse real dividido que
de fato inúteis os conflitos históricos, entre classes se tornou mortífero.
ou entre nações, e, portanto, em última instância, O poema "As cinzas de Gramsci" data de
a própria História. 1954. Há nesse poema uma potência profética ex-
O que é muito interessante para nós é que, traordinária. Se olhamos de perto, vemos que há
já nos anos 1950, Pasolini defendeu uma tese pa- apenas duas coisas realmente proféticas na atividade
recida. Ele sustentou, pelo menos, que uma certa dos homens: a poesia e a matemática. A matemá-
história tinha por real o estar em via de se aca- tica, porque inscreve formalmente, quando não
bar. Talvez ele tivesse poeticamente razão. Talvez demonstra, a existência de relações e de objetos
seja justificável hoje pensar não que a História que nem sequer podíamos imaginar, antes dos
terminou, o que não faz n e n h u m sentido, mas formalismos matemáticos, que pudessem existir.
que estamos tão próximos do ponto de impossível Ora, essas relações e essas estruturas se revelam mais
de uma certa história - de uma forma singular de tarde absolutamente indispensáveis para pensar o
39 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
mais í n f i m o movimento do mais í n f i m o pedaço
O cemitério de que nos fala Pasolini é u m
de matéria. A poesia, porque todo grande poema
tanto peculiar — se forem a R o m a , recomendo
é o lugar linguageiro de uma confrontação radical
vivamente que o visitem. E o cemitério onde estão
com o real. Unvgoema extorque à língua u m ponto
enterradas, em terra romana, todas as pessoas que
real_de_impossível de_dizer.
durante a vida não eram católicas. Esse cemitério
Vocês notarão, além do mais, que a matemá- é, portanto, o resultado de u m a seleção religiosa
tica e a poesia nomeiam as duas extremidades da dos mortos: o Vaticano solicitou e obteve que
linguagem: a matemática do lado do formalismo não se enterrassem em terra supostamente santa
mais transparente; e a poesia, ao contrário, do
pessoas que não eram da boa religião local. Assim,
lado da potência mais profunda, e frequentemente
esse lugar reúne, n u m a admirável fraternidade
mais opaca.
post-mortem, protestantes, muçulmanos, judeus e
Voltemos ao p o e m a de Pasolini, "As cinzas ateus. E lá que está enterrado Gramsci, no setor
de Gramsci". Gramsci foi u m dos f u n d a d o r e s dos não crentes.
e dirigentes do Partido Comunista Italiano. E,
Para Pasolini já há aí u m ponto de real, que
por isso, passou boa parte de sua vida nas prisões
é o isolamento desse cemitério. Esse isolamento é
fascistas. E u m a figura tutelar do c o m u n i s m o
como o símbolo de u m exílio, u m exílio tão tenaz
europeu, u m pensador marxista muito original.
que concerne também aos mortos. Ora, podemos
Por conseguinte, o título "As cinzas de Gramsci" já
sustentar que o real tem sempre a forma de u m
anuncia que, do real de que Gramsci foi o agente
exílio, já que, sendo o impossível ou o semblante
ou a testemunha, sabemos que não restam mais
de que é preciso arrancar a máscara, ter acesso a ele
que as cinzas.
supõe que nos afastemos da vida ordinária, da vida
O p o e m a t e m p o r cenário u m cemitério. comum. O real não é de modo algum aquilo que
Q u a n d o se está em busca do real como divisão estrutura nossa vida imediata; é, pelo contrário,;
e morte de uma figura anterior da formalização como Freud viu muito bem, seu longínquo segredo.-
política, o cemitério é u m bom lugar para se ver E para descobrir esse segredo é preciso sair da vida
com clareza. Faz muito tempo, aliás, que se medita ordinária, sair da caverna - como disse Platão de
sobre o real a partir dos cemitérios. Lembrem-se uma vez por todas. Mas todos os que estão enterra-
da cena dos coveiros em Hamlet: na certa a questão dos nesse cemitério já saíram, já estão fora da morte
do real, sob a forma "ser ou não ser", adquire toda normal. Concederam a eles u m pedacinho isolado
sua densidade se seguramos u m crânio na mão. e não abençoado pelo papa daquela terra sagrada.
44 FILÕ
EM BUSCA DO REAL PERDIDO
45
presença carnal, coletiva; O que encontramos nessa passagem? E m
sente-se a ausência de qualquer religião primeiro lugar, que em nosso mundo a vida está
verdadeira; não vida, mas sobrevivência dissipada. A partir do momento em que a vida não
é mais habitada e orientada pelo projeto de fazer
- mais alegre, talvez, que a vida - como
advir seu próprio real, ela se torna inapreensível,
num povo de animais, cujo secreto
informe, desorientada. É uma vida que, de di-
orgasmo ignora qualquer outra paixão
versão em diversão, é uma vida extraviada, uma
vida que pretende atribuir u m valor capital a seu
além da do labor de cada dia:
próprio despedaçamento. E é uma vida que, assim,
humilde fervor, a que vem ornar com um ar de festa
a humilde corrupção. Quanto mais se faz vão e este é o segundo ponto, é assombrada pela ausên-
cia de qualquer verdade. Para Pasolini, e para mim
- nessa trégua da história, nessa também, "verdade" é uma palavra que pode vir
barulhenta pausa em que a vida faz silêncio - no lugar da palavra "real". Q u a n d o Pasolini fala
todo ideal, mais se revela daãusência de qualquer religião verdadeira, não
alude a uma religião no sentido habitual do termo.
a maravilhosa e ardente sensualidade "Religião verdadeira" significa simplesmente a
quase alexandrina, que cobre de iluminuras
e ilumina tudo com um fogo impuro, enquanto aqui che tutto minia/ e impuramente accende, quando qual/ nel mondo,
qualcosa crolla, e si trascina/ il mondo, nella penombra, rientrando/
um pedaço do mundo desaba, e esse mundo in vuote piazze, in scorate officine..." "[...] E sente como nesses
distantes/ seres que, em vida, gritam, riem,/ em seus veículos,
se arrasta na penumbra, para encontrar nesses mesquinhos// casarios onde se consome o pérfido/ e
praças vazias, sombrias oficinas.8 expansivo dom da existência - / aquela vida não passa de u m
arrepio;// corpórea, coletiva presença;/ sente a falta de toda e
qualquer religião/ verdadeira; não vida, mas sobrevivência//
" "[...] E senti come in quei lontani/esseri che, invita, gridano, ridono,/ - talvez mais alegre do que a vida - c o m o / de u m povo de
in quei loro veicoli, in queigrami// caseggiati dove si consuma 1'infido/ animais, em cujo arcano/ orgasmo não há outra paixão// senão
ed espansivo dono dell'esistenza -/ quella vita non è che un brivido;// pelo obrar cotidiano:/ humilde fervor a que dá u m sentido de
corporea, collettiva presenza;/senti il mancare di ogni religione/ vera; festa/ a humilde corrupção. Quanto mais é v ã o / / - neste vazio
non vita, ma soprawivenza//-forsepiù lieta delia vita-come/ d'un da história, nesta/ ruidosa pausa em que a vida se cala - todo
popolo di animali, nel cui arcano/ orgasmo non ci sia altra passione// ideal, melhor se manifesta// a estupenda, adusta sensualidade/
che per 1'operare quotidiano:/ umile fervore cui dà un senso di festa/ quase alexandrina, que tudo orna/ e impuramente incendeia,
1'umile corruzione. Quanto più è vano//-in questo vuoto delia storia, enquanto a q u i / / no mundo, algo desaba, e se arrasta/ o m u n -
in questa/ ronzante pausa in cui la vita tace -/ ogni ideale, meglio do, na penumbra, voltando a entrar// em vazias praças, em
è manifesta// la stupenda, adusta sensualità/ quasi alessandrina, desacoroçoadas oficinas..." (N.T.)
11
46 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
convicção de que uma verdade seja possível. Em O que Pasolini nos ensina indiretamente é que,
outras palavras, no nosso mundo, a convicção de se de tempos em tempos alguns grandes corruptos
que a tentativa de que Gramsci é o emblema - são lançados à arena da opinião pública, é porque o
extorquir à História seu real comunista - possa que conta é a pequena corrupção. O essencial é o fato
ser continuada. É essa convicção, a de Gramsci, de que cada subjetividade seja comprada por aquilo
que o poema afirma ser hoje impossível. Há em que se propõe vender a ela. Alguns grandes corrup-
terceiro lugar a ideia de que tudo, na ordem do tos podem ser sacrificados: vale a pena se, por essa
semblante de vida que ocupa o lugar da vida para pechincha, o sistema da "humilde corrupção", que
nós, se resume ao par trabalho e dinheiro. O é também o da diversão, da sobrevivência, da vida
modo próprio ao nosso mundo de dissipação da protegida de todo e qualquer real, pode se perpetuar.
existência é o reinado absoluto do par trabalho
A quarta e última grande ideia do fragmento
e dinheiro. O labor de cada dia de u m lado, o
que li para vocês está na afirmação de que, já que
humilde fervor, e, do outro, a humilde corrupção.
um mundo desabou, nós estamos numa trégua da
"A humilde corrupção" é uma expressão ad- História. Isso é muito importante, porque é uma
mirável, porque nos indica que há, evidentemente, questão que devemos nos colocar por diversas ra-
a corrupção grandiosa - a corrupção espetacular, o zões. Em que momento vivemos? Qual é o nosso
banditismo chique de nossos patrões, a corrupção lugar histórico? O que, já em 1954, Pasolini ousava
onipresente cujo espetáculo nos é oferecido de dizer é que talvez nosso mundo seja intervalar.
tempos em tempos sob a forma, que já comentei, do Uma primeira história já não está mais em condi-
escândalo - , mas que isso não é o mais importante. ções de fazer valer seu real. Gramsci está reduzido
O que conta, o que regula o mundo dos sujeitos, a cinzas. Ele próprio nos diz silenciosamente: "Não
.„é o consentimento geral a que seja assim. Ejsso, continuem o que eu desejei fazer". E então, talvez
o fato de que em definitivo todo mundo pensa uma outra história vá começar, talvez outra coisa
mais ou menos que o que importa é ter o dinheiro advenha, talvez estejamos numa outra figura do
necessário para comprar o que se..tem,vontade, e impasse da formalização e outra etapa esteja por
que esse é o fundamento inabalável do mundo tal vir, assim como para além da aritmética grega há
como ele é, isso, sim, é a humilde corrupção. A a história moderna da teoria dos conjuntos infi-
que partilhamos todos, mais ou menos, e da qual nitos. O mundo ocidental da "democracia" - das
o escândalo das corrupções memoráveis é apenas classes médias, da vida tranquila e contente, da
a exceção pretensamente salvadora. sobrevivência na diversão, da ausência deliberada
49
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
11
de qualquer real - seria apenas u m m o m e n t o raso
daquele que só pode viver na história,
da historicidade, entre alguma coisa que já era e
poderei novamente obrar com paixão pura,
algo que vai nascer, e, no f i m das contas, é essa a já que sei que nossa história terminou? 9
razão pela qual este mundo "se arrasta na penumbra
para encontrar praças vazias". Descrição severa, Nesse f i m do poema, Pasolini decide, à sua
mas justa. Arrastar-se para encontrar praças vazias maneira, em favor de u m fim da História. Não, de
é exatamente o que todos nós fazemos, porque m o d o algum, porque essa história teria realizado
estamos todos, uns mais, outros menos, na humilde os votos dos homens, mas, muito pelo contrário,
corrupção. E m nosso m u n d o intervalar, só p o d e - porque a impotência de realizá-los na ordem do I
mos, de fato, vagar até encontrar o cantinho vazio real se instalou e, por conseguinte, a subjetivi-
onde poderemos instalar nossa humilde corrupção. dade fundamental que o m u n d o exige de nós, e\
Vocês estão vendo a ideia de Pasolini: o que que ele obtém amplamente, é u m a subjetividade
significa se instalar quando se perdeu toda convic- de renúncia. E - n o s absolutamente necessário re-
ção quanto à possibilidade de fazer advir o real da nunciar a alguma coisa para que possamos nos
História? E isso o que o poema tenta descrever. Se manter, como bons cidadãos, diante da cintilação
não há mais n e n h u m a "religião verdadeira", então do mercado mundial. E m verdade, para ser u m
o que significa viver? O que significa se instalar na b o m comprador, é preciso ter renunciado a tudo.
existência? Pois bem, em última análise, instalar-se A tudo o que é real. Se temos u m a aspiração ver-
na existência é gerir, de uma maneira ou de outra, dadeira, u m a religião verdadeira, não podemos
a humilde corrupção. nos contentar c o m aquilo que nos v e n d e m , e
Tudo isso vai conduzir o poema a sua con- desejaremos que se manifeste o real de que essa
clusão, que leio para vocês:
9
"È un brusio la vita, e questi persi/ in essa, la perdono serenamen-
A vida é murmúrio, e essas pessoas que te, / se il cuore ne hanno pieno: a godersi// eccoli, miseri, la sera:
e potente/ in essi, inermi, per essi, il mito/ rinasce... Ma io, con il
se perdem nela, perdem-na sem lamento,
cuore cosciente// di chi soltanto nella storia ha vita, / potrò mai piú
já que ela enche seus corações. Ei-los que con pura passione operare, / se so che la nostra storia è finita?" "E
um murmúrio a vida, e aqueles perdidos/ nela, perdem-na
serenamente,/ se têm o coração cheio: a g o z a r / / ei-los, m í -
gozam, em sua miséria, da noite: e, poderoso,
seros, à noite: e poderoso/ neles, inermes, para eles, o m i t o /
nesses fracos, para eles, o mito renasce... Mas eu, com o coração consciente// de que somente
se recria... Mas eu, com o coração consciente na história há vida,/ poderei algum dia novamente com pura
paixão obrar,/ se sei que a nossa história terminou?" (N.T.)
53 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
comunista perdure. Desde Marx, surgiu a ideia Evidentemente, isso requer u m a dissociação
de que se o real da História fosse revelado, tería- muito difícil de conquistar entre a esperança his-
mos realmente u m m u n d o político novo. M a r x tórica e a obstinação política. A obstinação política
afirmava a existência de uma ciência da História, deve poder se sustentar na ausência de qualquer
o materialismo histórico, mas nunca a f i r m o u a esperança histórica. Se conseguirmos isso, teremos
existência de u m a ciência da política. E m certo feito jus às cinzas de Gramsci. Teremos realmente
sentido, o materialismo histórico absorvia o real ouvido o que ele tinha a nos dizer, sob a forma que
da política, e a política estava submetida à história. Pasolini lhe dá, e que é em substância: "Renunciem
E desse ponto que recolhemos as cinzas, c o m o à ficção historiadora". Mas não teremos necessi-
diálogo entre Pasolini e Gramsci. dade de partilhar a nostalgia amarga de Pasolini.
Talvez seja preciso dizer hoje que, em polí- Ele, de fato, não está n e m u m pouco seguro de
tica, o real só será descoberto se renunciarmos à poder aceitar a renúncia à história. Ele se pergunta:
ficção historiadora, ou seja, à ficção segundo a qual posso ainda obrar poeticamente, se esse grande
a História trabalha para nós. Se ela não trabalha sonho de uma História que trabalha na direção da
para nós, isto é, se não há relação orgânica entre emancipação da humanidade se revela por sua vez
o real da História e o florescimento ou o desen- estranho a todo real?
volvimento de u m a política comunista - vamos Q u a n t o a nós, mais de 50 anos depois de Pa-
chamá-la assim - , então há de fato a necessidade solini, podemos, me parece, formular três diretivas.
de uma renúncia limitada. Mas essa renúncia não A primeira é a de arrancar a máscara do
se estende de m o d o a l g u m à ação política e m semblante democrático. O que quer dizer: ex-
geral. Podemos e devemos responder a f i r m a t i - perimentar, sob a Ideia do comunismo, formas
vamente à questão de Pasolini. Ele nos diz: se a democráticas completamente diferentes. É preciso
História, n o sentido de Gramsci e do século X X , se subtrair à propaganda segundo a qual o único
terminou, será que ainda posso obrar com u m a contrário da democracia existente, que chamo de
"paixão pura"? Responderemos: sim! Podemos capital-parlamentarismo, é u m totalitarismo bestial.
obrar com paixão, ainda que a ficção historiadora E m realidade, o contrário da democracia existente
esteja morta e enterrada, ainda que saibamos que
é - voltemos a nosso tema - u m a democracia real.
é u m equívoco acreditar que as estruturas gerais
O contrário "totalitário" só serve para legitimar
da História e o real da História trabalham na
o semblante democrático cujo real é o capitalismo
direção da emancipação.
imperial. Q u a n t o ao real, chegou o momento de
11
54 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
u m a experimentação democrática de u m novo com que Pasolini se inquieta - a renúncia à es-
tipo, que começou desde sempre, desde Espártaco, sência progressista da História que seja u m
T h o m a s Münzer, os sans-culottes, a C o m u n a de balanço da renúncia feito do ponto de vista de
Paris, os sovietes, a Revolução cultural na China, q u e m não r e n u n c i a . É preciso r e n u n c i a r sem
mas que deve agora se coordenar, se concentrar, renunciar. É preciso renunciar à crença n u m tra-
estar segura de si mesma, se pensar, ter seu corpo de balho da História que seria por si mesmo e de
doutrina, e que, desde o começo e com constância, maneira estrutural orientado para a emancipação.
deve se apresentar como explicitamente oposta ao Mas é preciso m e s m o assim continuar a afirmar
semblante democrático, que não passa da máscara que é realmente no p o n t o de impossível de t u d o
pçr trás da qual se encontra o real do capitalismo isso que se situa a possibilidade da emancipação.
mundializado. Esse é u m primeiro gesto. Nesse sentido, alguma coisa do século X X vai de
C) segundo gesto é o de formalizar por nossa qualquer jeito prosseguir. N ã o podemos aceitar
própria conta o capitalismo contemporâneo. Quero que tudo isso seja jogado fora e bater na mesma
dizer que é preciso inventar e encontrar formaliza- tecla que nossos adversários a esse respeito. E
ções consistentes do capitalismo e do imperialismo preciso propor u m balanço do século X X que
tais como eles são hoje. Pois a exatidão de uma f u n c i o n e c o m o u m aparelho para filtrar no que
formalização prepara para a determinação que age ocorreu aquilo mesmo que não podia ocorrer,
de seu ponto de impossível próprio, e, portanto, que estava em impasse.
de seu real. Sabemos de maneira muito geral que T o d o esse trabalho, de p e n s a m e n t o e de
a igualdade é o ponto de impossível próprio do ação, gira em torno da relação histórica entre real
capitalismo. Mas os métodos organizados para que e destruição. Porque há u m preço terrível a pa-
consigamos nos manter o mais perto possível desse gar por essa ideia entusiasmante segundo a qual
ponto de impossível, a natureza dos acontecimen- a História trabalha para nós, para a emancipa-
tos locais que o fazem surgir como possibilidade, ção da humanidade. Esse preço se deve ao fato de
tudo isso varia de acordo com as circunstâncias que, em verdade, a História não trabalhava espe-
e as etapas do capitalismo e do imperialismo. A cificamente para a emancipação da humanidade
igualdade era impossível de u m jeito em 1840, e é e de que, portanto, para conservar a ideia e n t u -
impossível de outro hoje. siasmante, era preciso forçá-la a fazer isso. Era
ILiixyimenie,. £ preciso pxopor u m balanço preciso parir seu suposto real que era o trabalho
do século X X , ou seja, u m balanço da renúncia n o sentido da emancipação. É p o r isso que a
57 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
atmosfera política geral acompanhava o e n t u - carrega a afirmação. A destruição é a parteira da
siasmo de u m pântano de suspeita, de delação, e construção. É u m a convicção muito arraigada
instaurava a onipresença da categoria de suspei- no século X X , e que confere ao entusiasmo re-
to - e isso desde a Revolução Francesa. Porque, volucionário seu aspecto de ferocidade inútil: os
se a História não trabalha para nós, quando em princípios reais do mundo emancipado surgirão
princípio devia fazer isso, é porque há sabotado- da destruição do velho mundo. Mas isso é inexa-
res. Havia, portanto, sabotadores da História, e to, e essa inexatidão acarreta que a destruição do
sabotar uma História que marcha no sentido da velho mundo ocupa u m lugar desproporcional,
emancipação é de fato u m crime considerável. e que a luta para dar cabo desse velho m u n d o
Foi por isso que se massacraram em massa "sus- até extrair dele os princípios do novo se torna
peitos" de todo tipo. E isso não foi o resultado de infinita, interminável.
uma loucura sanguinária, ou de uma ignorância Penso, portanto, que é preciso substituir essa
bárbara dos supostos "direitos humanos", mas dialética negativa por uma dialética afirmativa. E
o efeito de u m dispositivo coerente da raciona- preciso renunciar à ideia de que a negação carrega
lidade dialética. Portanto, é esse dispositivo de
I
em si a afirmação, ideia que não era mais do que
conjunto que é preciso remanejar a partir de uma a forma lógica de uma esperança entusiasmante
nova concepção do real que não pressupõe que a de que assim adviria o parto forçado de u m real
História seja sua servente. da História. E m realidade, vimos isso no século
Uma variante da posição subjetiva, de que X X , a negação carrega em si a negação, engendra
tentamos tirar importantes lições negativas, pode incessantemente outras negações. E preciso afir-
ser formulada assim: já que a história deve parir mar que o uso da negação, se for inevitável, deve
um mundo emancipado, podemos, sem maiores ser severamente controlado, e mantido em seus
escrúpulos, aceitar, e mesmo organizar, uma des- limites pela potência prévia de uma afirmação. E,
truição em massa. É o que chamo de fenómeno da para isso, é preciso se situar num outro ponto de
destruição histórica. Já que é a História que deve impossível que não aquele que se atribui à História.
parir um mundo político novo e salvador, não é de Isso fará com que por u m bom tempo as novidades
admirar que as destruições sejam da mesma escala políticas tenham u m caráter inevitavelmente local.
que a História. Teremos experimentações locais, que podem ser
N o âmbito das abstrações dialéticas, essa de grande envergadura, e nas quais será a partir de
tese assume a seguinte forma simples: a negação u m princípio afirmativo interno ao que se passa,
59 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
nterno aos atores da situação concernida, ao que É disso que precisamos: uma razão que faça
eles pensam, ao que discutem, ao que fazem, que o luto da historicidade favorável, que permaneça,
será definida a norma da negação, e consequente- contudo, na paixão pelo real, que busque na expe-
mente seu limite. É tudo isso, que deve fazer parte rimentação política local apreender o que há de real
do estilo militante dos políticos comunistas por vir, no real e que se preserve do extremismo destruidor.
que permitirá renunciar às destruições históricas.
Gostaria de concluir dizendo que a chave do Eu não penso - e será meu único ponto de
acesso ao real é, ao fim e ao cabo, a potência de uma divergência com Pasolini - que essa irmã afirma-
dialética afirmativa. E é precisamente dessa dialética tiva da dialética negativa seja triste por si mesma.
que Pasolini faz o retrato num outro poema que se Dá para sentir que em Pasolini essa irmã da razão
chama "Vitória". Vocês vão ver que ele diz o que que ele propõe - e que é a razão afirmativa - é
acabo de redizer de um outro jeito, mas com uma uma irmã triste porque, para ele, renunciar à graça
espécie de melancolia que devemos superar. Nesse
de uma História favorável é terrível. Porém, hoje,
imenso poema, Pasolini fala de novo daquele que
devemos estar convencidos de que, apesar dos lutos
tenta manter a paixão pelo real nas condições da
que o pensamento nos impõe, buscar o que há de
renúncia, nas condições do que ele chama de fim da
real no real pode ser, é, uma paixão alegre.
História. Esse homem, na verdade o próprio Pasoli-
ni, é órfão da História, e, no entanto, tenta manter
a paixão pelo real. Eis como o poema o descreve:
61 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
ALAIN BADiOU nasceu no Marrocos,
em 1937, e vive em Paris. É considerado
um dos maiores filósofos da atualidade.
Junto com Deleuze, Foucault e Lyotard,
fundou o Departamento de Filosofia da
Universidade Paris 8, onde lecionou de
1969 a 1999. Em seguida, foi nomea-
do professor emérito da Escola Normal
Superior de Paris. Aluno de Althusser
e de Lacan, seu pensamento foi forte-
mente marcado pelo marxismo e pela
psicanálise. Militante político incansável,
participou do movimento de Maio de 68.
Nunca abriu mão de suas convicções
políticas. Além de ter publicado mais
de 4 0 livros de filosofia, traduzidos em
diversas línguas, é ainda autor de peças
de teatro, ensaios e panfletos.
O T R A D U T O R : Fernando Scheibe é
doutor em Teoria Literária e tradutor.
Traduziu, entre outros autores, César
Aira, Stéphane M a l l a r m é , Mœbius,
Este livro foi composto com tipografia Bembo e impresso Raymond Roussel, Michel Foucault,
em papel Off-White 90 g/m 2 na Formato Artes Gráficas. Ariette Farge, Georges Didi-Huberman,
Marcel Detienne, Catherine Malabou e,
sobretudo, Georges Bataille.
FILO
autêntica
www.autenticaeditora.com.br