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ALAIN

BADIOU
E m busca do real perdido

IVELCOME
T O R E A L 1 V I

... -
autêntica
O que é o real? Hoje em dia, o real aparece
sempre como aquilo que intimida. Não
temos como escapar do real, ele está aí,
impõe-se a nós como uma lei inexorável.
Por uma ironia da história, quem preten-
de deter os segredos do real no mundo
contemporâneo são os economistas, que
o apresentam para nós através de plani-
lhas, gráficos e números pretensamente
objetivos, que diriam a última palavra so-
bre o real. As projeções econômicas apre-
sentam-se, em geral, como catástrofe:
caso seus modelos não sejam implemen-
tados, tudo pode ruir. Apesar da sua to-
ALAIN

BADIOU
tal incapacidade não apenas de prever,
mas ainda de compreender os desas-
tres que ela mesma produz, a economia
sobrevive à sua própria impotência, por-
que todos, ou quase, parecem continuar
E m busca do real perdido
acreditando na peça representada em
escala planetária pelo capitalismo: A
democracia imaginária. Mas o que é o real?
Será mesmo isso que os economistas,
amparados pelos políticos profissionais
e pela mídia, dizem que ele é? Pergunta
filosófica por excelência: desde a Grécia
Antiga, a indagação acerca da natureza
do real não pode ser entregue exclusi-
vamente à ciência, ou a seus duplos.
Neste livro absolutamente indispensável
para quem quer pensar os impasses do
Brasil e do mundo hoje, Alain Badiou,
numa linguagem acessível, recorre, entre
outras coisas, ao teatro, à psicanálise e
à poesia a fim de expor os impasses da
apreensão do real. Para o autor, a questão
filosófica do real é a questão de saber
se podemos ou não modificar o mundo,
tornar suas fissuras visíveis e, assim,
escapar dessa imposição, desse discur-
so. Não se trata de negar o real, mas de
afirmar que, com a mesma paixão alegre
que busca o que há de real no real, ainda
podemos reinventá-lo.

Gilson lannini
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FILÕ autêntica
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ALAIN
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BADIOU
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D o s u b l i m e ao t r á g i c o
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E m busca do real perdido
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A sabedoria trágica Seguida de Esquema de uma Emmanuel Alloa (Org.)
Sobre o b o m uso de Nietzsche história das religiões
Michel Onfray Georges Bataille
FILÕMARGENS
Se P a r m ê n i d e s
O tratado a n ô n i m o De Melisso O amor impiedoso
FILÕBENJAMIN
Xenophane Gorgia (ou: Sobre a crença)
Bárbara Cassin O anjo da história
Slavoj éizek
A u n i ã o da a l m a e d o c o r p o Walter Benjamin
E s t i l o e verdade e m
em Malebranche, Biran e Bergson Baudelaire e a Jacques Lacan
Maurice Merleau-Ponty modernidade Gilson lannini
Walter Benjamin
I n t r o d u ç ã o a Foucault
I m a g e n s de p e n s a m e n t o
F1LÕAGAMBEN Edgardo Castro
Sobre o h a x i x e e
Bartleby, ou da c o n t i n g ê n c i a outras drogas Kafka
Giorgio Agamben Walter Benjamin Por uma literatura menor
seguido de Bartleby, o escrevente Gilles Deleuze
O r i g e m do drama trágico Félix Guattari
Herman Melville alemão
Lacan, o escrito, a i m a g e m
A c o m u n i d a d e que v e m Walter Benjamin
Jacques Aubert, François Cheng,
Giorgio Agamben
R u a de m ã o única Jean-Claude Milner,
O homem sem conteúdo I n f â n c i a berlinense: 1900 François Regnault, Gérard Wajcman
Giorgio Agamben Walter Benjamin O s o f r i m e n t o de D e u s
Ideia da prosa Inversões do Apocalipse
Giorgio Agamben Boris Gunjevic
FILÓESPINOSA
Slavoj Éiéek
Introdução a Giorgio Agamben
B r e v e tratado de D e u s ,
U m a arqueologia da potência Psicanálise sem Édipo?
d o h o m e m e d o seu
Edgardo Castro Uma antropologia clínica da
bem-estar
histeria em Freud e Lacan
Meios sem fim Espinosa
Philippe Van Haute
Notas sobre a política
E s p i n o s a subversivo e Tomas Geyskens
Giorgio Agamben
outros escritos
Nudez Antonio Negri
ANTIFILÕ
Giorgio Agamben
A p o t ê n c i a do p e n s a m e n t o
P r i n c í p i o s da filosofia
A Razão TRADUÇÃO Fernando Scheibe
cartesiana e P e n s a m e n t o s
Pascal Quignard
Ensaios e conferências metafísicos
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Título original: A la recherche du réel perdu

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Gilson lannini Rejane Dias

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(Paris); Carla Rodrigues (UFJR); Cláudio
REVISÃO
Oliveira (UFF); Danilo Marcondes (PUC-
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Rio); Ernâni Chaves (UFPA); Guilherme
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(UFF); Rogério Lopes (UFMG); Rodrigo DIAGRAMAÇAO


Duarte (UFMG); Romero Alves Freitas Larissa Carvalho Mazzoni
(UFOP); Slavoj 2iíek (Liubliana);
Vladimir Safatle (USP) Em busca do real perdido
20 I. A anedota
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 28 II. A definição
37 III. O poema
Badiou, Alain.
Em busca d o real p e r d i d o / A l a i n Badiou ; t r a d u ç ã o Fernando Scheibe. - -
1. ed. ~ Belo H o r i z o n t e : A u t ê n t i c a Editora, 2017. (Coleção Filó)

Título original: À la recherche du réel perdu


Bibliografia

ISBN 9 7 8 - 8 5 - 5 1 3 - 0 1 5 8 - 6

1. Filosofia francesa 2. Realidade I. Título. II Série.

16-09261 CDD-194

Indices para c a t á l o g o sistemático:


1. Filosofia francesa 1 9 4

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Hoje, o real, como palavra, como vocábulo,
é utilizado essencialmente de maneira intimidante.
Devemos nos preocupar constantemente com o
real, obedecer a ele, devemos compreender que não
podemos fazer nada contra o real, ou - os homens
de negócios e os políticos preferem esta palavra - as
realidades. As realidades são impositivas e formam
uma espécie de lei, da qual é insensato querer es-
capar. Somos atacados por uma opinião dominante
segundo a qual existiriam realidades impositivas a
ponto de não se poder imaginar uma ação coletiva
racional cujo ponto de partida subjetivo não seja
aceitar essa imposição.
Pergunto-me então diante de vocês1: a única
resposta possível para a questão " O que é o real?"

1
Antes de se tornar u m livro, em 2015, este texto foi apre-
sentado c o m o conferência inaugural do evento Citéphilo, de
2012, que tinha por tema a pergunta " Q u e l réel?" (que real?).

7
deve assumir c o m o evidência que só se p o d e - ao menos aparentemente - sem prova do real,
falar do real como suporte de u m a imposição? O ou seja, justamente a ideia, o conceito ou a defi-
real nunca é encontrado, descoberto, inventado, nição? A simples realidade do conceito não pode
mas sempre fonte de u m a imposição, figura de valer como u m a autêntica prova do real, já que,
u m a lei de bronze (como a "lei de bronze dos precisamente, supõe-se que o real seja aquilo que,
salários", ou a "regra de o u r o " que proíbe qual- à m i n h a frente, resiste a m i m , não é h o m o g ê n e o
quer déficit orçamentário)? Será preciso aceitar a m i m , não é imediatamente redutível a m i n h a
como u m a lei da razão que o real exige em toda decisão de pensar. Q u a n d o muito, posso pretender
e qualquer circunstância u m a submissão mais formular, com semelhante ponto de partida, u m a
,do que u m a invenção? O problema é que, em hipótese sobre o real, mas não u m a apresentação do
se tratando do real, é muito difícil saber como próprio real. Assim, a filosofia, exageradamente
começar. Esse problema a t o r m e n t a a filosofia racional, ou tentada pelo idealismo, careceria de
desde suas origens. O n d e começa o pensamento?
real, porque em sua própria maneira de começar
E c o m o começar de maneira que esse começo
ela o teria rasurado, obliterado, dissimulado sob
ajuste o pensamento a u m real de verdade, u m
abstrações fáceis demais.
real autêntico, u m real real?
Ora, assim que se diagnostica esse defeito, essa
Por que é tão difícil começar q u a n d o se falta idealista de u m a prova do real, é o real como
trata do real? Porque não se pode começar n e m imposição que vai voltar. O poder de intimidação
pelo conceito, a ideia, a definição, n e m pela ex- do uso da palavra "real" vai levantar precisamente
periência, o dado imediato ou o sensível. É fá- o "concreto" como bandeira. Vai se opor à mania
cil d e m o n s t r a r que começar pela definição, o idealizadora, que costuma ser chamada hoje de
conceito, a ideia leva a u m a construção que é utopia criminosa, ideologia desastrosa, devaneio
na verdade o contrário do que acredita ser, que arcaico... Todos esses nomes estigmatizam a fra-
é uma perda ou uma subtração do real. Afinal, queza da tese que pretenderia começar a busca
como posso alcançar o real, encontrar a prova do
pelo real com a figura da abstração. Ao que oporão
verdadeiro real, se me instalei justamente, e de
então u m verdadeiro real, autêntico e concreto:
maneira peremptória, naquilo que aceita existir
as realidades da economia do m u n d o , a inércia
das relações sociais, o sofrimento das existências
A conferência, em francês, pode ser assistida no Y o u T u b e , concretas, o veredicto dos mercados financeiros...
através do link h t t p s : / / g o o . g l / H C E e b g . (N.T.) Oporão tudo isso, que efetivamente tem u m grande

9 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
peso, à mania especulativa, à ideocracia militante, ruptura com a submissão subjetiva ao real de que
que - dirão - nos meteu em tantas aventuras san- ela se gaba de ser o saber. Era outras palavras, o
grentas ao longo do século X X .
que a economia considerada como discurso do
Há algo que, desse ponto de vista, desempe- real diz, prevê ou analisa nunca fez senão validar
nha hoje um papel decisivo: o lugar ocupado pela o caráter intimidante desse famigerado real, e nos
economia em toda e qualquer discussão que diga submeter sempre mais a ele. De tal modo que,
respeito ao real. Parece até que o saber do real foi quando esse real parece desfalecer, mostrar-se
confiado à economia. É ela que sabe.
como uma pura patologia, devastar o mundo ou
E, no entanto, tivemos, não faz muito tem- as existências - quando os próprios economistas
po, diversas oportunidades de constatar que ela acabam por perder o seu latim - , mesmo assim a
não sabia grande coisa, a economia. Ela não sabe
soberania dessa intimidação pelo real econômico
nem sequer prever desastres iminentes em sua
não apenas não é realmente reduzida como até se
própria esfera. Mas isso não mudou quase nada. É
vê aumentada. Os economistas e seus financia-
ainda e sempre ela que sabe o real e o impõe a nós.
dores reinam de maneira ainda mais imperial do
E aliás muito interessante constatar que a função
que antes dos desastres que não souberam prever
da economia em relação ao real sobreviveu per-
e só constataram depois, como todo mundo. O
feitamente à sua incapacidade absoluta não apenas
que prova muito bem que essa gente não se deixa
de prever o que ia acontecer, mas até mesmo de
destituir.
compreender o que estava acontecendo. Tudo in-
É uma lição extremamente interessante: a
dica que, no mundo atual, o discurso econômico
economia como tal não nos ensina de maneira
se apresenta como o guardião e o fiador do real.
alguma como poderíamos sair da concepção in-
Enquanto as leis do mundo do Capital continua-
timidante e, em última instância, opressiva do
rem sendo o que são, a prevalência intimidante do
real a que essa mesma economia consagra seu
discurso econômico não será desbancada.
desenvolvimento e a sofisticação de sua "ciên-
O que é impressionante na economia consi-
cia" impotente. Isso é muito importante, p o r -
derada como saber do real é que, mesmo quando
que a questão do real é evidentemente também a
enuncia - e às vezes é obrigada a isso pela evi-
questão de saber que relação a atividade humana,
dência dos fatos - que o "real" dela está fadado à
mental e prática, mantém com o referido real. E,
crise, à patologia, eventualmente ao desastre, todo
mais especificamente, se ele funciona como u m
esse discurso inquietante não produz nenhuma
imperativo de submissão ou se pode ou poderia

10 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO 11


funcionar como u m imperativo aberto à possibi- organiza sob a forma de u m discurso impositivo.
lidade de u m a emancipação. Qualquer consolidação desse semblante como tal,
Digamos que a questão filosófica do real é e especialmente qualquer consolidação " c i e n -
também, e talvez sobretudo, a questão de saber se, tífica" desse semblante - c o m o o discurso da
estando dado u m discurso segundo o qual o real é economia só faz impedir que u m a saída seja
impositivo, podemos - ou não podemos - modifi- possível e nos fixar ainda mais e m nossa posição
car o m u n d o de tal maneira que se apresente uma de vítimas intimidadas pela pretensa realidade
abertura, anteriormente invisível, através da qual desse semblante, e m vez de nos levar a buscar e
se consiga escapar dessa imposição sem contudo encontrar onde está a saída.
negar que haja real e que haja imposição. Tudo isso equivale a dizer que não é postu-
Vocês logo veem que aqui poderíamos fazer lando o primado de u m saber "científico" tido pela
uma breve excursão para os lados do meu querido última palavra sobre o real que se pode abrir u m
Platão, porque o motivo da "saída" é u m motivo acesso livre a essa questão. Todos os saberes desse
essencial da alegoria da caverna. A alegoria da tipo, de u m a maneira ou de outra, convergem
caverna representa para nós u m m u n d o fechado para a m a n u t e n ç ã o da impossibilidade de u m a
sobre u m a figura do real que é u m a falsa figura. saída, ou seja, para a manutenção de u m a figura
É u m a figura do semblante 2 que se apresenta para do real manejado como intimidação e princípio
todos os que estão trancados na caverna c o m o a de submissão.
figura indiscutível do que pode existir. Talvez seja Deve-se dizer então que o real só se deixa
essa a nossa situação. Pode ser que a hegemonia apreender através da experiência, da percepção
da coação econômica não passe, no fundo, de u m sensível, do sentimento imediato, da emoção ou
semblante. Mas o ponto não é esse. O que Platão mesmo da angústia? Essa t a m b é m é u m a longa
aponta é que para saber que u m m u n d o está sob tradição filosófica. É nesses termos, afinal, que
a lei de u m semblante é preciso sair da caverna, Pascal busca derrubar o racionalismo cartesiano,
é preciso escapar do lugar que esse semblante que os empiristas atacam Leibniz, que Kierkegaard
critica Hegel ou que o existencialismo substitui a
2
Embora se trate de u m "galicismo semântico", achei mais
verdade pela liberdade. Para Kierkegaard, Hegel
cômodo, para mim e para o leitor, verter "semblant" (aparência não alcançou o real porque acreditou que esse real
falsa que se dá por real) por "semblante" - respaldando-me
podia se desvelar n u m a vasta construção racional,
na literatura, sobretudo lacaniana, já existente e m língua
portuguesa. (N.T.) u m discurso "científico" cujo ponto de partida

11
13 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
eram categorias puras: o ser, o nada, o devir... Na verdade, o mundo sensível - nosso mundo
Ora, é preciso partir de u m ponto completamente - nada tem de especialmente nu, ele é totalmente
diferente: a subjetividade como tal, única capaz forjado e constituído por relações que remeteni
de experimentar e descrever o que é o encontro imediatamente à ditadura da figura do real de que
com o real. E essa experiência toca tanto mais no parti. Por conseguinte, pode-se sustentar que se
real na medida em que assume o risco da angústia confiar pura e simplesmente ao imediato sensível,
que se sente se ele vem a faltar ou, pelo contrário, aos sentimentos, à emoção e ao encontro acaba na
a superabundar. realidade por consolidar não, dessa vez, o regime
E claro que a psicanálise, na promoção que acadêmico ou pretensamente científico de u m
fez, com Lacan, da palavra "real", se enraíza ex- saber sobre o real, mas pura e simplesmente aquilo
plicitamente nessa tradição existencial. Pois se que "real" quer dizer nas opiniões dominantes.
observa, na clínica, que - como repete o mestre - , O u seja, por nos reconduzir ao fato de que nossa
a partir do m o m e n t o em que se trata do real, em percepção, nosso encontro com o real, aquilo que
que caem as defesas organizadas pelo imaginário, t o m a m o s por nossa espontaneidade livre e i n d e -
pelo semblante, a angústia passa a estar na ordem pendente, tudo isso, na realidade, está estruturado
do dia. Só a angústia não engana, ela que é o de cabo a rabo pela figura do m u n d o tal qual ele
encontro com u m real tão intenso que o sujeito é, ou seja, u m m u n d o submetido ao imperati-
deve pagar o preço de se expor a ele. vo do real c o m o intimidação. R e m e t e m o - n o s ,
A objeção que farei a essa visão é que, se tem assim, não a u m saber alienado na objetividade
algo que está totalmente impregnado da dominação intimidante, c o m o na primeira hipótese, mas a
do real c o m o intimidação ou como submissão, u m a opinião que não poderemos diferenciar da
esse algo é precisamente nossa experiência. E, no experiência imediata do real n u m m u n d o que
final das contas, é isso que a função da angústia na está estruturado precisamente pela ditadura_de
psicanálise revela, já que o real se mostra aí como u m conceito do real c o m o intimidação.
aquilo que, para o sujeito, é sem medida. Porém, Q u a n t o a esse ponto, há algo muito instru-
se ele se mostra assim, é decerto porque não está tivo: a função do escândalo em nosso mundo. O
de m o d o algum subtraído aos dispositivos de in- escândalo sempre se apresenta como a revelação de
timidação que provêm da organização do m u n d o u m pedacinho de real. U m dia ficamos sabendo,
pela atividade humana dominante, incluída aí sua por nossa mídia preferida, que fulano foi à casa
atividade simbólica e "científica". de ciclano e saiu de lá com u m a mala cheia de

14 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO 11


dinheiro. E aí temos todos a impressão irrepri- U m sintoma interessante de nossa sociedade é
mível de tocar em algo mais real do que tudo o que o escândalo geralmente é u m escândalo de cor-
que toda essa gente costuma contar. O escândalo é rupção. É o seu nome essencial. E bastante curioso
precisamente aquilo que vai, em termos de opinião, que a corrupção cause escândalo, já que poderíamos
abrir a porta para uma espécie de desvelamento de sustentar que a sociedade está corrompida da ca-
um cantinho de real, mas desde que esse fragmento beça aos pés. Poderíamos inclusive sustentar que a
seja imediatamente tratado como u m a exceção. corrupção é sua lei íntima, e que é para dissimular
U m a escandalosa exceção. essa corrupção sistêmica, e inteiramente real, que o
Se não houvesse esse toque de exceção, tam- escândalo aponta aquilo ou aquele que, no f i m das
pouco haveria escândalo. Se soubéssemos que todo contas, não passa de u m bode expiatório. N u m a
m u n d o vai à noite buscar malas de dinheiro na sociedade que aceita aberta, explicitamente, e de
casa dos ricaços, n e n h u m a gazeta poderia causar maneira - é preciso dizer - amplamente consensual
sensação em seus leitores revelando isso. A estrutura que o lucro seja o único motor viável para fazer
do escândalo remete em realidade à nossa segunda funcionar a coletividade, pode-se dizer que a cor-
concepção do real, a visão empirista e existencial: rupção está na ordem do dia de maneira imediata.
é porque topamos, de maneira imediata e sensível, Afinal, se ganhar o m á x i m o de dinheiro possível
com uma pontinha de real que poderemos nos edu- é a norma, fica difícil dizer que não é verdade que
car e educar os outros na direção de uma opinião todos os meios sejam válidos. Pois de que outra
livre e bem-fundada sobre o real. norma, de que norma sonhadora, poderíamos nos
Ora, a verdade é que não há n e n h u m a nova servir para normatizar a verdadeira norma que é a
liberdade n o escândalo, já que ele faz parte da do lucro? Pode-se retorquir que há leis, mas logo
educação geral e permanente à submissão. A única se vê que tudo isso é necessário para que a figura
lição que se tira do escândalo é, de fato, a de que se geral das coisas, ou seja, a figura do real em que
deve reduzir e punir essa exceção desastrosa. Ele se estamos apoiados, se perpetue. E por isso que é
torna, portanto, em definitivo, a oportunidade para necessário que volta e meia haja u m escândalo:
todos declararem sua submissão ao conceito geral não, de modo algum, como revelação do real, mas
do real tal como ele funciona, entendendo-se que, como encenação de u m pedacinho do próprio real
evidentemente, há exageros, patologias marginais no papel de uma exceção ao real.
que são escandalosas.
A única força do escândalo reside, assim, na
teatralização de u m minúsculo fragmento do real

17 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
enquanto denegação desse mesmo real. De maneira pelos exercícios físicos de todo tipo? Então, o que
geral, o teatro poderia desempenhar u m grande pensar quando ficamos sabendo que milhares de
papel nessa investigação sobre o real, e falarei u m partidas de futebol têm seu resultado combinado de
p o u c o sobre ele mais adiante. Mas observem o antemão para que apostadores camuflados ganhem
ritmo do escândalo: há peripécias, novas desco- somas mirabolantes; que tal vencedor do Tour de
bertas, cúmplices, complôs, etc. 0_'^golp£teatral" France estava dopado até as orelhas e foi destituído
evidentemente é parte integrante da natureza do de suas sete vitórias - o que, diga-se de passagem,
escândalo, o que se esclarece facilmente se c o m - é u m a operação juridicamente extraordinária; ou
preendemos que se trata na verdade de fazer u m quando são postas na mesa questões comparativas
pedacinho de real funcionar como se fosse u m a do tipo: o tênis é mais ou menos corrompido do
exceção ao real, e de lançá-lo como u m petisco à que o futebol americano? Na certa, o escândalo está
opinião pública para que ela volte fundamental- em casa aí, já que o esporte reúne as pessoas para
mente à sua submissão àquilo que no f u n d o é a lei assistir a ele, e o doping ou as partidas compradas
do mundo: a onipresença da corrupção. transformam o espetáculo n u m puro semblante.
Notemos de passagem que o esporte é hoje Trata-se de u m real a céu aberto - e não da cena
uma grande vítima do escândalo. E é filosofica- furtiva de alguém se esgueirando à noite pelos
mente interessante se perguntar por que há tantos cantos com u m a mala cheia de dinheiro desti-
escândalos no esporte. É que o esporte é uma es- nado a assegurar sua eleição de u m a coisa que
pécie de vitrine aberta para a exceção escandalosa. todo m u n d o acompanhou e assistiu, nas ruas, nos
Ele ocorre em público e para o público. Daí o fato estádios ou na televisão. N o esporte, apesar da
de que o escândalo, que é sempre uma exposição dificuldade das investigações e da má vontade das
pública do que deveria p e r m a n e c e r escondido, federações, encontramos u m a espécie de forma
se sinta especialmente à vontade no esporte, que pública da corrupção geral.
está sempre ostentando suas virtudes: o esforço, a Mas vocês notarão que, no entanto, mesmo
abnegação, o sofrimento consentido, a lealdade na nessas condições, o que domina é a ideia de que
competição, a performance indiscutível, o sucesso a "imensa maioria" dos esportistas é leal e ima-
plenamente merecido... O que seria o esporte sem culada, e de que são feitos todos os esforços para
a constante exibição pública dessas raras qualida- que, afora essas exceções escandalosas, o esporte
des que a sociedade sempre propõe transmitir às se mantenha em seu ser incorruptível. Q u a n d o ,
jovens gerações através da prática e da admiração na verdade, quem está nos bastidores do esporte

19 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
sabe que se trata de u m domínio extremamente imaginário. Vocês logo veem apontar aí uma fábula,
corrupto, simplesmente porque o dinheiro circu- pois ele, Molière, morre de uma doença b e m real.
la ali em quantias grandes demais para que seja Essa doença real, que causou a morte de Molière, se
limpo. E algo que devemos sempre ter em mente: descobre no interior, ou a propósito, ou nas condições
onde há muito dinheiro, há corrupção, porque a de u m a doença que não apenas é representada,
partir do m o m e n t o em que o dinheiro circula em como também, mesmo no interior da representação,
quantidades muito grandes ele só garante a fluidez é apresentada c o m o imaginária. Temos aqui -
exigida para essa circulação transbordando u m e notem que se trata mais uma vez de teatro e de
bocado para os lados... teatralização - u m a espécie muito particular de
Tudo isso para concluir que, em se tratando roçar entre o real e o semblante. A doença mortal
do real, não se pode começar n e m por u m a d e - que vai levar Molière se manifesta n o próprio
finição rígida, que se construiria filosoficamente coração do semblante, ou seja, no m o m e n t o em
à distância de qualquer prova efetiva, n e m pela que Molière está representando realmente - porque
ideia de u m e n c o n t r o sensível c o m a exceção, a representação e n q u a n t o representação t o m a
que nos abriria de repente a porta do real. N e m parte do real - o semblante da doença. E tudo
a arrogância do conceito n e m a provocação do isso se tornou ainda mais contundente já que foi
escândalo trazem em si mesmas uma revelação do preciso carregar Molière desmaiado para fora do
real. Temos de lidar com essa questão de outro palco, a representação virou uma confusão só, e os
jeito. Andar que nem siri, ou construir diagonais, espectadores, confrontados de repente com aquela
para nos a p r o x i m a r m o s do real n u m processo morte real que se sobrepunha à doença imaginária,
singular a cada vez. É o que vou tentar fazer ficaram completamente atônitos.
ordenando as coisas da seguinte maneira: 1) u m a Q u a l é, para nós, a lição dessa dialética viva
anedota; 2) u m a simples m á x i m a teórica, u m a que se apossa da morte? Nessa anedota, o real é
definição; 3) u m poema. aquilo que frustra a representação.3 O u ainda: o real
é o momento em que o semblante se torna mais
I. A anedota real do que o real de que ele é o real: o: o papel do
doente imaginário é representado por u m doente
É uma anedota muito conhecida, a da morte
de Molière. C o m o vocês todos sabem, Molière 3
E m francês a fórmula é b e m mais bonita: "ce qui déjoue le jeu"
morreu enquanto estava representando O doente ("aquilo que 'desrepresenta' a representação"). (N.T.)

20 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO 11


real, e a morte de u m acarreta a impossibilidade da palavras - e continuo aqui com as metáforas teatrais - ,
morte do outro. Há aí uma dialética do semblante só se chega ao real desmascarando-o. O real - como
e do real muito interessante, já que o real surge a filosofia segundo Descartes - avança mascarado.
com uma violência extraordinária justo no ponto Logo, é preciso desmascará-lo. Mas vocês estão
de seu semblante, justamente na medida em que é vendo que é preciso desmascará-lo ao mesmo tem- ,
de u m doente imaginário que se trata. po que se leva em conta o real da própria máscara. I
Digamos então o seguinte: o real, nesse caso, Molière morre, e o que há de mais real do que a
é o que vem assombrar o semblante. A m o r t e vem morte? Ele faz surgir assim o fato de que a doença
atingir o personagem do doente imaginário, tal imaginária é m u i t o divertida n o teatro, só que
como o ator real Molière o encarna no palco, e o existe também a doença real. Entretanto, é preciso
real vem assombrar não apenas esse semblante — o notar que esse surgimento do real se faz não apenas
personagem do doente imaginário — como também a partir do semblante que é a doença imaginária,
o semblante desse semblante, isto é, o ator Molière, mas também a partir do fato de que ele próprio,
que está fingindo4 ser o doente imaginário, ou esse Molière que vai realmente morrer, é, enquanto
seja, fingindo ser o semblante da doença. Eviden- ator, o portador real desse semblante.
temente, é muito impressionante ver que aquele Dessa forma, o real seria sempre algo que
que finge ser o semblante da doença morre de uma a gente desmascara, algo cuja máscara a gente
doença real. Tentemos u m a generalização dessa arranca, o que quer dizer que seria sempre no
anedota que indica uma relação dialética estreita ponto do semblante que haveria u m a chance de
e difícil entre o real e o semblante. Poderíamos encontrar o real, u m a vez que é preciso t a m b é m
dizer, por exemplo, que o real sempre se revela na que haja u m real do próprio semblante: que haja
ruína de u m semblante. E isso equivaleria a afirmar u m a máscara, que ela seja u m a máscara real. E
que não existe nem acesso intuitivo direto ao real assim chegamos à conclusão u m tanto singular
nem acesso conceituai direto ao real, mas que há de que, em definitivo, todo e qualquer acesso ao
sempre essa necessidade indireta de que seja na ruína real - a experiência do espectador que vê tudo
de u m semblante que o real se manifeste. E m outras isso n u m teatro do século X V I I , ou, mais g e -
ralmente, qualquer u m que faz a experiência do
4
Pareceu-me u m galicismo excessivo traduzir "faire semblant" real por sua própria conta - sempre se dá quando
(fingir, aparentar, fazer de conta que) por "fazer semblante".
u m a máscara é arrancada, ato que, entretanto, se
Por isso alerto o leitor de que o significante "semblant" con-
tinua atuando a cada vez que utilizo o verbo "fingir". (N.T) institui ativamente a distinção entre o real e o

11
23 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
semblante, deve assumir t a m b é m que existe u m são variáveis em filosofia as conclusões sobre a
real do semblante, que há u m real da máscara. relação entre real e semblante, ou entre essência e
Através desses zigue-zagues, chegamos ao aparência. Pirandello circula em seu teatro a partir
seguinte importante enunciado: todo acesso ao real é de uma primeira hipótese segundo a qual não há
Jambém sua divisão. Não existe o real que se trataria real n e n h u m , já que toda máscara é a máscara de 1
de depurar do que não é ele já todo acesso u m a máscara, de maneira que tirar u m a máscara \
ao real é imediatamente, e de maneira necessária, exigiria tirar uma outra, sem que jamais se chegue
uma divisão, não apenas do real e do semblante, ao real nu, já que é a própria máscara que está nua, /
mas também do próprio real, visto que há u m real é o próprio semblante que é real. Mas abre a partir
do semblante. E o ato dessa divisão, por meio do daí outras perspectivas, mais otimistas, nas quais,
qual o semblante é arrancado e ao mesmo tempo através do semblante, do semblante do real e do
identificado, que podemos descrever como sendo real do semblante, algo de verdadeiramente real
o processo de acesso ao real. vem se afirmar.
Pirandello trabalhou sobre essa divisão do real Se tentamos aplicar essas observações à si-
a ponto de fazer dela o tema principal de muitas de tuação contemporânea, devemos nos perguntar:
suas peças. E quando publicaram a primeira edição qual é a máscara do nosso real e, portanto, qual
de seu teatro ele quis batizá-la de Máscara nua. Isso é o semblante próprio do capitalismo imperial
funciona u m pouco como uma recapitulação do mundializado, sob que máscara ele se apresenta
que estamos dizendo: a máscara deve ser arrancada que impede que sua identificação o divida, qual é
enquanto semblante, mas, a f i m de chegar ao real a máscara ao mesmo tempo tão real e tão afastada
nu - des-mascarado - , é preciso também reconhe- de qualquer real que é quase impossível arrancá-la?
cer a nudez da máscara, é preciso levar em conta o E então lamento ter de dizer aqui que o
fato de que a própria máscara exige que a tenhamos semblante contemporâneo do real capitalista é a
por real. E é isso que constitui o tema de peças democracia. É a sua máscara. Lamento, porque a
como Seis personagens à procura de autor ou Henrique palavra "democracia" é u m a palavra admirável, e
IV. Ler as peças de Pirandello é u m a excelente será preciso retomá-la e redefini-la, de u m jeito
educação sobre a questão do real, porque nelas ou de outro. Mas a democracia de que estou fa-
encontramos exatamente a questão de que estamos lando é a que funciona em nossas sociedades de
tratando aqui: que real? É a questão que essas peças maneira institucional, estatal, regular, n o r m a t i -
colocam; aliás, com conclusões variáveis - como zada. Poderíamos dizer - para retomar a metáfora

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24 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
da morte de Molière — que o capitalismo é esse a esse real só pode se dar por meio de uma divisão
m u n d o que está sempre representando u m a peça constitutiva de caráter político. Ora, o que cons-
cujo título é A democracia imaginária. E ela é bem tatamos é que a peça torna possível a esse respeito
representada, é a melhor peça de que o capitalismo unicamente falsas divisões, a mais conhecida delas
é capaz. Os espectadores e os participantes em geral sendo, entre nós, a distinção esquerda/direita. O b -
aplaudem, alguns mais, outros menos. O fato é servem b e m a esquerda hoje, observem-na como
que é u m rito para o qual são convocados e ao qual se estivessem assistindo à peça da democracia ima-
se submetem. Mas, enquanto essa peça dura, é a ginária, que é a peça, a única do repertório. N ã o
democracia imaginária que é representada e, por há outras que estejam sendo representadas, pelo
baixo, o processo mundializado do capitalismo e menos não nessa escala, a do Estado, da nação,
da pilhagem imperial que prossegue, com seu real do m u n d o devastado pelo capitalismo. Graças a
impalpável, cuja descrição não serve para nada. Deus existem, aqui e ali, pequenos teatros expe-
E n q u a n t o essa peça durar e u m vasto público rimentais que p õ e m em cena outras peças, mas
continuar a apreciá-la, o real do capitalismo, ou falar disso agora seria entrar n u m outro capítulo.
seja, a capacidade de dividi-lo, de obrigá-lo a uma O que vocês veem? Q u a n d o o governo decide
cisão de si mesmo que seja ativa e que prometa dar 20 bilhões de euros ao patronato, sem n e -
sua dissipação, sua destruição, permanecerá poli- n h u m a contrapartida, ele representa a peça c o m
ticamente inacessível. Porque se essa peça é a peça convicção. Mas não devemos pensar que se trata
do semblante democrático, se ela é a máscara que de u m a patologia: afinal, ele está aí para isso!
fornece ao capitalismo imperial contemporâneo a Q u e diabos poderia fazer senão isso? Seria como
cobertura de que ele precisa, e se, ainda por cima, se, de repente, no meio de u m a peça de teatro,
n e n h u m a possibilidade de arrancar essa máscara, u m ator se levantasse para dizer que está cheio de
de interromper essa peça de teatro, está na ordem representar aquela peça, que está a f i m de repre-
do dia, então alguma coisa permanece politica- sentar outra! Foi aliás o que Molière fez, já que,
mente inacessível para qualquer empreendimento quando morreu no meio da peça, era outra peça
político de acesso ao real nu. que estava sendo representada...
O acesso ao real do capitalismo imperial C o m o o real é sempre aquilo que se descobre
contemporâneo - t a m b é m chamado Ocidente, ao preço de que o semblante que nos subjuga seja
m u n d o democrático, comunidade internacional, arrancado, e c o m o esse semblante faz parte da
Estado de direito..., nome é o que não falta - o acesso própria apresentação do real escondido, propus

27 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
chamar de "acontecimento" esse gesto de arrancar N o ponto em que estamos, o que podemos
a máscara, porque não se trata de algo interior à fazer com essa fórmula? N ã o quero partir do con-
própria representação. É algo que vem de alhures, ceito, então é preciso partir de u m exemplo, e
de u m alhures interior, se assim podemos dizer, esse exemplo será a aritmética elementar. Q u a n d o
ainda que esse alhures seja dificilmente situável e, contamos, multiplicamos ou adicionamos, pode-se
infelizmente, muitas vezes improvável. dizer que estamos, de maneira prática, no inte-
M i n h a última observação a propósito da rior da formalização matemática. Nosso cálculo
anedota de Molière será a seguinte: se o real só é sempre finito: todo cálculo termina, de fato,
é acessível como arrancamento de seu semblante com o que chamamos seu resultado, verdadeiro
próprio, então há necessariamente certa dose de ou falso. Portanto, estamos n u m a formalização,
violência no acesso ao real. Essa violência se faz que é regulamentada (há regras de adição, aquelas
presente c o m toda força na anedota da m o r t e de ensinadas às crianças), que é finita, e, no interior
Molière: o ator cai no chão, cospe sangue, etc. dessa formalização, há u m a atividade particular,
Por certo, é u m a metáfora. Ela indica - sem nada que é o cálculo.
demonstrar - que há inevitavelmente uma dose de Mas, na realidade, há nisso tudo u m ponto
violência, porque a relação do semblante com o que não está explícito e que é o seguinte: quando
real faz parte do real. D e tal m o d o que, ao arran- calculamos a partir de números, estamos conven-
car a máscara, dividimos o real, não o deixamos cidos de que o resultado será u m número. N ã o
intacto diante de nós. Todo acesso ao real o fere, há a menor dúvida quanto a isso: se adicionamos
através da divisão inelutável que se inflige a ele números, obtemos u m número. O que supõe, evi-
ao desmascará-lo. dentemente, que seja qualfor a duração do cálculo finito,
Eis aí o que tinha a dizer sobre a anedota. sempre encontraremos um número. O que exige que não
exista u m último número. Isso seria absolutamente
II. A definição contrário à liberdade do cálculo.
Por conseguinte, algo nisso tudo é in-finito.
Q u a n t o à sentença, vou tomá-la emprestada Algo - a série dos números - não tem f i m . Mas
a u m de meus mestres, Jacques Lacan, que, indo esse i n f i n i t o , que f u n c i o n a de m a n e i r a oculta
direto ao assunto, propôs uma definição do real, por n o interior do próprio cálculo finito, esse i n -
certo u m pouco insidiosa, que é a seguinte: o real finito não é u m n ú m e r o , porque na aritmética
é o impasse da formalização. não há n ú m e r o infinito, isso não existe. Logo,

FILÕ
11
28 EM BUSCA DO REAL PERDIDO
o real da aritmética finita exige que se admita Podemos então dizer que o real é atingido
u m a i n f i n i d a d e subjacente que f u n d a o real do não através do uso da formalização - já que ele é
cálculo ainda que c o m o impasse de qualquer justamente o impasse dela - , mas quando se explora
resultado possível desse mesmo cálculo, que só aquilo que é impossível para essa formalização.
pode produzir números finitos. C o m p r e e n d a m o s , n o entanto, que não se trata
E nesse sentido que se pode dizer que o real de u m a impossibilidade geral, mas do " p o n t o "
dos números finitos da aritmética elementar é u m preciso que é o impossível de u m a d e t e r m i n a -
infinito subjacente, inacessível a essa formalização, da formalização. Q u a l é o p o n t o preciso que é
e que é, portanto, realmente, seu impasse. Lacan impossível na aritmética dos números naturais?
tem toda razão. O n ú m e r o infinito. Enquanto número, ele está
Tentemos generalizar. N o exemplo aritmé- ligado organicamente à formalização aritmética,
tico, u m i n f i n i t o oculto é a condição do cálculo enquanto infinito, é o impossível próprio desta.
finito, mas ao mesmo tempo não pode ser calcu- Assim, o n ú m e r o infinito como impossível é o
lado e, p o r t a n t o , não p o d e f i g u r a r " e m pessoa" real da aritmética.
na formalização dentro da qual o cálculo opera: Poderíamos evocar referências convincentes
o número, de fato, segundo a formalização que o em outros domínios, pois essa doutrina é muito
inscreve n u m cálculo, seja c o m o aquilo a partir forte. Por exemplo, poderíamos nos perguntar qual
do que se calcula, seja c o m o resultado do cál- é o real das imagens cinematográficas. E então se
culo, é essencialmente finito. Por conseguinte, poderia sustentar - como já foi feito há muito tem-
diremos que o real é o ponto de impossível da forma- po, por exemplo, na ontologia da imagem proposta
lização. Isso quer dizer que aquilo que a formali- por André Bazin - que o real de u m a imagem
zação torna possível - a saber, no nosso exemplo, cinematográfica é aquilo que está fora de campo.
calcular a partir de n ú m e r o s - só é possível pela A imagem deve sua potência real ao fato de ser
existência implicitamente assumida daquilo que extraída de u m m u n d o que não está na imagem,
não pode se inscrever nesse tipo de possiblidade. mas que constrói sua força. É na medida em que
Trata-se, portanto, de u m "ponto de pensamento" a imagem se constrói a partir do que está fora da
que, embora condenado a p e r m a n e c e r inacessí- imagem que ela tem chances de ser realmente bela
vel para as operações que a formalização torna e forte, embora o cinema só seja composto - cal-
possíveis, não deixa de ser a condição última da culado - de acordo com o que circunscreve a ima-
própria formalização. gem n u m quadro, e, portanto, o m u n d o deixado

31 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
fora de campo seja precisamente o que não é fil- de comunismo, o infinito próprio da política. O
mado, o que é impossível fazer entrar tal qual na Estado nunca é mais que a finitude calculável da
imagem enquadrada. Assim como o número i n - política, de que o comunismo é, de certa maneira,
finito é o real da aritmética, o fora de campo é o o número infinito.
infinito próprio da imagem cinematográfica. Mas U m a objeção trivial, mas constante, é a se-
é também seu impossível, já que, por definição, a guinte: se o acesso ao real é o ponto de impos-
infinidade do m u n d o ambiente nunca é capturada sível, tocar o real, alcançá-lo, supõe que se possa
pela imagem. transformar esse impossível em possibilidade. O
Tud o isso equivale a dizer que só se pode que parece precisamente impossível. P o r é m j u s -
ter acesso a u m real quando se descobre qual é o tamente, essa possibilização do impossível só é
impossível próprio de uma formalização. conceitualmente impossível n o âmbito da f o r -
Chegados a esse ponto, devemos nos pergun- malização concernida: o cálculo dos números^ o
tar qual é o real da política. Pois bem, é o ponto enquadramento no cinema, o Estado em política..
que, se nos referimos ao quadro da formalização Portanto, só u m p o n t o fora de formalização pode
existente para a política, isto é, a política tal como dar acesso ao real. E é por isso que se trata não
o Estado a prescreve - a política constitucional, a de u m cálculo i n t e r n o à formalização, mas de
política autorizada - , é rejeitado para a impossibi- um ato que faz a formalização se desvanecer m o - 1
lidade latente de seu poder real. É exatamente o mentaneamente em proveito de seu real latente.

Íque M a r x quer dizer quando afirma que o real da


política revolucionária é a extinção do Estado. Ele
O que quer dizer que esse acesso exige, n u m
primeiro m o m e n t o , que a potência da primeira
diz simplesmente, à sua maneira, que, no campo formalização seja destruída. Se quisermos fazer o
político, o fora de campo é o que está fora do Es- infinito entrar na matemática, não podemos nos
tado, o que não está sob a coação do que o Estado contentar c o m a aritmética elementar. Será pre-
admite como possibilidade. M a r x pensa que, de ciso admitir que há conjuntos infinitos, que não
u m p o n t o de vista estratégico, se consideramos são de m o d o algum aritméticos, será necessária
a história total da humanidade até nossos dias, é a teoria dos conjuntos de Cantor. Assim como
preciso dizer que o impossível próprio da política no cinema é preciso que o diretor de gênio faça
estando prescrito pelo que está fora do Estado, a ver na i m a g e m o que não está nela, destruindo
realização real da política é o processo de desapa- desse m o d o a imposição do quadro. E m política,
recimento do Estado. É aí que está, sob o nome como vocês sabem, o n o m e dessa destruição é:

33 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
revolução. N u m a revolução, o formalismo legal
promete economizar a destruição. Mas, se qui-
do Estado é, n o m í n i m o , suspenso.
sermos a política como política do real, é preciso
O processo de acesso ao real - a que chamo,
afirmar a existência do impossível, e isso pode ter
em meu jargão filosófico, de u m procedimento
consequências incómodas para a formalização de
de verdade - está sempre em via de destruir uma
que ele é o impossível próprio.
formalização parcial, porque faz advir a impossi-
Tentemos aplicar tudo isso à situação con-
b i l i d a d e particular e pontual dessa formalização.
temporânea do m u n d o dos homens. É claro que a
Q u e conclusões tirar daí?
formalização maior de nossa existência coletiva é
Primeira: que só há conquista do real ali onde
o capitalismo chegado à sua forma suprema, que
há uma formalização - pois, se o real é o impasse da
é o imperialismo planetário. E seu ponto de i m -
formalização, é preciso que haja uma formalização.
possível próprio é a igualdade. Por quê? Porque o
Logo, não há esperança de conquistar o real fora da
capitalismo é totalmente refratário à erradicação
existência de uma formalização, de u m arranjo, de
da propriedade privada, sobre a qual se alicerça, e
uma forma. O real supõe que tenha sido pensada
porque a acumulação da propriedade privada pro-
e construída a forma aparente daquilo de que u m
duz necessariamente desigualdades enormes. Aliás,
determinado real é o real oculto.
a desigualdade é constantemente reivindicada pelo
Segunda: a afirmação do real como impasse capitalismo como uma necessidade natural, enquanto
dessa formalização vai ser em parte a destruição a igualdade é qualificada de utopia que conduz ao
dessa formalização. O u , digamos, sua divisão. E crime, o que equivale a dizer que ela é "humana-
tudo vai começar por u m a afirmação inaceitável mente" impossível. Isso foi esclarecido há muito
do p o n t o de vista da própria formalização, que tempo, talvez já desde a Revolução Francesa: o ponto
prescreve o que é possível, a saber, * afirmação de
de impossível próprio do capitalismo é a igualdade.
que o impossível existe.
A afirmação efetiva desse ponto de impossível, a
Está aí o gesto fundamental de conquista do afirmação de que esse ponto deve ser a origem de
real: declarar que o impossível existe. Tem u m todo pensamento político novo é o que o meu amigo
político outrora célebre que disse que a política Rancière chama de axioma da igualdade. Enquanto
era a arte do possível, mas está na cara que ela é a ponto de impossível, a igualdade só pode ser u m
arte do impossível, ao menos em se tratando de resultado se for declarada como princípio. Mas esse
uma política real. A arte do possível é a política princípio, na ordem prática, acarreta necessariamente
como semblante. Isso tem suas virtudes, porque uma cisão destruidora do capitalismo imperial.

34 FILÓ EM BUSCA DO REAL PERDIDO


35
Eu disse agora há pouco que foi para indicar o III. O p o e m a
real de todo e qualquer conjunto social que M a r x
falou da abolição do Estado. Porém, agora, vemos O poema de que vou partir é u m poema de Pa-
muito bem a razão pela qual, no f i m do Manifesto solini, o grande cineasta italiano - falo assim porque
do partido comunista, M a r x e Engels declaram que ele é hoje conhecido sobretudo como cineasta - , e
todo o programa de u m partido comunista pode esse poema tem por título "As cinzas de Gramsci".
ser resumido n u m a única máxima: abolição da U m a palavra ou duas sobre Pier Paolo Pasoli-
propriedade privada. O acesso ao real do capita- ni, u m pouquinho menos famoso do que Molière.
lismo não se dá pela análise do capitalismo, pela Ele ficou conhecido como cineasta, mas também
construção de sua ciência, o que é muito útil, mas por sua vida extraordinariamente atormentada, que
j q u e os economistas burgueses fazem muito bem. terminou com u m a morte atroz: seu assassinato
O acesso ao real do capitalismo é a afirmação da n u m terreno baldio à beira-mar, assassinato liga-
igualdade, é decidir, declarar que a igualdade é do às formas radicais e perigosas do desejo. Já na
possível, e fazê-la existir tanto quanto se possa própria vida de Pasolini aponta o que eu chamaria
por meio da ação, da organização, da conquista de de o tormento solitário de u m a busca desesperada
lugares novos, da propaganda, da construção, em pelo real. C o m Pasolini, entramos numa outra ma-
circunstâncias díspares, de pensamentos novos, da neira de se aproximar do real que é a subjetivação
insurreição e da guerra se preciso for. propriamente dita.
M e s m o sob formas m u i t o limitadas, todo Havia em Pasolini u m pensamento extre-
processo "realmente" igualitário vai infligir graves m a m e n t e violento e u m desejo ilimitado. E a
ferimentos ao princípio constitutivo da formali- combinação desse pensamento violento e desse
zação capitalista do mundo, que é o de que todo desejo ilimitado o deixou e m c o n f l i t o c o m o
indivíduo tem o direito ilimitado de acumular m u n d o tal qual era, a tal ponto que ele se m a n t i -
riquezas. A essência do comunismo consiste em nha pessoalmente muito perto do p o n t o de i m -
afirmar a existência da possibilidade, considerada possível. E sua poesia, ainda mais que o cinema
como impossível do ponto de vista do capitalismo, ou a prosa, testemunha essa proximidade do ponto
de acabar com a desigualdade constitutiva que a de impossível do m u n d o .
propriedade torna inevitável. O c o m u n i s m o é, Pasolini é u m grande poeta, certamente u m
nesse sentido, o nome do único processo existente dos maiores das décadas que vão dos anos 1940
de exposição efetiva do real do capitalismo. ao f i m dos 1960, da guerra mundial à sublevação

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FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
da juventude dos anos 1960. É também o período historicidade - , e portanto de seu ponto real, que é
que vai da solidez do comunismo stalinista a seu possível que nos precipitemos para o seu fim. Talvez
descrédito total e sua derrocada. E é essa a razão estejamos no ponto em que a história, tal como a
pela qual Pasolini se pergunta - é o tema de seus conhecemos e praticamos, vai se dividir diante da
poemas, que são com frequência construções gi- prova de seu real, e assim se desfazer. Pode ser que
gantescas e muito subjetivadas - o que é o real da a História - nossa história, a que sabemos contar -
História. E essa sua questão. vá se abrir como a terra faz nos grandes sismos.
Vocês sabem que o ensaísta norte-americano Poderemos então começar de novo, dotados de
Fukuyama defendeu recentemente a tese de que o u m certo acesso ao real de nossa história, o qual
real da História é que ela chegou ao seu fim. É uma terá sido o operador de divisão, não da História,
tese considerável, que pode ser alimentada de uma no fim das contas, mas de nossa historicidade sin-
certa herança hegeliana mais ou menos deformada gular, aquela que, em definitivo, gira ao redor da
e mal digerida, mas que não deixa de ser uma tese perenidade dos Estados.
sobre o real da História. Ela consiste em dizer que Pasolini diz algo parecido com isso. Não o diz
podemos agora saber o que terá sido esse real, por- como Fukuyama, que se senta confortavelmente
que, com o capitalismo mundializado e o Estado na poltrona da civilização contemporânea. Fala
democrático, encontrou-se uma fórmula capaz de em meio a u m tormento terrível, o tormento de
obter tamanho consentimento geral que ela torna quem encara a experiência desse real dividido que
de fato inúteis os conflitos históricos, entre classes se tornou mortífero.
ou entre nações, e, portanto, em última instância, O poema "As cinzas de Gramsci" data de
a própria História. 1954. Há nesse poema uma potência profética ex-
O que é muito interessante para nós é que, traordinária. Se olhamos de perto, vemos que há
já nos anos 1950, Pasolini defendeu uma tese pa- apenas duas coisas realmente proféticas na atividade
recida. Ele sustentou, pelo menos, que uma certa dos homens: a poesia e a matemática. A matemá-
história tinha por real o estar em via de se aca- tica, porque inscreve formalmente, quando não
bar. Talvez ele tivesse poeticamente razão. Talvez demonstra, a existência de relações e de objetos
seja justificável hoje pensar não que a História que nem sequer podíamos imaginar, antes dos
terminou, o que não faz n e n h u m sentido, mas formalismos matemáticos, que pudessem existir.
que estamos tão próximos do ponto de impossível Ora, essas relações e essas estruturas se revelam mais
de uma certa história - de uma forma singular de tarde absolutamente indispensáveis para pensar o

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FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
mais í n f i m o movimento do mais í n f i m o pedaço
O cemitério de que nos fala Pasolini é u m
de matéria. A poesia, porque todo grande poema
tanto peculiar — se forem a R o m a , recomendo
é o lugar linguageiro de uma confrontação radical
vivamente que o visitem. E o cemitério onde estão
com o real. Unvgoema extorque à língua u m ponto
enterradas, em terra romana, todas as pessoas que
real_de_impossível de_dizer.
durante a vida não eram católicas. Esse cemitério
Vocês notarão, além do mais, que a matemá- é, portanto, o resultado de u m a seleção religiosa
tica e a poesia nomeiam as duas extremidades da dos mortos: o Vaticano solicitou e obteve que
linguagem: a matemática do lado do formalismo não se enterrassem em terra supostamente santa
mais transparente; e a poesia, ao contrário, do
pessoas que não eram da boa religião local. Assim,
lado da potência mais profunda, e frequentemente
esse lugar reúne, n u m a admirável fraternidade
mais opaca.
post-mortem, protestantes, muçulmanos, judeus e
Voltemos ao p o e m a de Pasolini, "As cinzas ateus. E lá que está enterrado Gramsci, no setor
de Gramsci". Gramsci foi u m dos f u n d a d o r e s dos não crentes.
e dirigentes do Partido Comunista Italiano. E,
Para Pasolini já há aí u m ponto de real, que
por isso, passou boa parte de sua vida nas prisões
é o isolamento desse cemitério. Esse isolamento é
fascistas. E u m a figura tutelar do c o m u n i s m o
como o símbolo de u m exílio, u m exílio tão tenaz
europeu, u m pensador marxista muito original.
que concerne também aos mortos. Ora, podemos
Por conseguinte, o título "As cinzas de Gramsci" já
sustentar que o real tem sempre a forma de u m
anuncia que, do real de que Gramsci foi o agente
exílio, já que, sendo o impossível ou o semblante
ou a testemunha, sabemos que não restam mais
de que é preciso arrancar a máscara, ter acesso a ele
que as cinzas.
supõe que nos afastemos da vida ordinária, da vida
O p o e m a t e m p o r cenário u m cemitério. comum. O real não é de modo algum aquilo que
Q u a n d o se está em busca do real como divisão estrutura nossa vida imediata; é, pelo contrário,;
e morte de uma figura anterior da formalização como Freud viu muito bem, seu longínquo segredo.-
política, o cemitério é u m bom lugar para se ver E para descobrir esse segredo é preciso sair da vida
com clareza. Faz muito tempo, aliás, que se medita ordinária, sair da caverna - como disse Platão de
sobre o real a partir dos cemitérios. Lembrem-se uma vez por todas. Mas todos os que estão enterra-
da cena dos coveiros em Hamlet: na certa a questão dos nesse cemitério já saíram, já estão fora da morte
do real, sob a forma "ser ou não ser", adquire toda normal. Concederam a eles u m pedacinho isolado
sua densidade se seguramos u m crânio na mão. e não abençoado pelo papa daquela terra sagrada.

40 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO 11


A composição do real, nesse caso, envolve
o real da História se realizasse. Viveu como mi-
um exílio nacional: Gramsci não está verdadei-
litante e dirigente comunista porque pensava que
ramente enterrado na Itália, está enterrado n u m
era chegado o momento de realizar esse real, o que
lugar proscrito, onde residem principalmente es-
queria dizer: tornar possível o impossível, levar a
trangeiros. Shelley, por exemplo, o poeta inglês,
cabo na Itália, e no mundo inteiro, uma revolu-
não longe de Gramsci. Foi no meio desse tipo de
ção proletária. E evidentemente por isso que ele
estrangeiros que puseram Gramsci, o incrédulo.
é, no próprio cemitério de seu exílio, visitado e
Pasolini, proferindo o poema diante da pedra tu-
celebrado. E tocante e comovente constatar que o
mular do comunista - uma grande pedra nua - e
túmulo de Gramsci está sempre coberto de flores.
falando a ele como a u m irmão amado, lhe diz:
Fiz a experiência pessoal disso: u m momento in-
"Só te é permitido hoje dormir em terra estran-
tenso de minha existência foi ter também, como
geira, sempre banido". 5 É esse o exílio nacional.
Pasolini, meditado diante do túmulo de Gramsci.
Mas há também um exílio social, um exílio
Mas é justamente aí que está a pegada do poe-
de classe. Porque o bairro onde está instalado esse
ma: tudo isso, inclusive as flores, só faz sublinhar
cemitério é um bairro de mansões ocupadas por
que Gramsci é mantido n u m exílio histórico. Por
famílias ricas. Assim, o grande comunista Gramsci
quê? Porque o real que foi a razão de sua vida, o
repousa não apenas em meio a uma terra estrangeira
real da revolução proletária, desapareceu. O próprio
como também em meio a um bairro tipicamente
real que Gramsci queria fazer advir como real da
burguês, e, como diz magnificamente Pasolini,
História já nem sabemos o que é. Ele assumiu a
"um tédio patrício te rodeia". 6
forma de sua própria desaparição.
Por fim - e é o mais importante - há u m
Então Pasolini vai perguntar a Gramsci se,
exílio histórico. Gramsci dedicou sua vida a que
em última instância, sua redução a meras cinzas
triplamente exiladas significa que é preciso re-
Para não atrapalhar a argumentação do autor, mantenho n o nunciar a qualquer acesso ao real. Cito: "Tu me
corpo do texto a tradução o mais literal possível da versão
francesa de José Guidi utilizada por Badiou. E forneço em pedirás, morto descarnado, que renuncie a essa
nota o original italiano e sua tradução o mais literal possível: paixão desesperada de estar no mundo?". 7
"[...] Non puoi,/ lo vedi?, che riposare in questo sito/ estraneo
ancora confinato. [...]" "[...] N ã o podes,/ vês?, senão repousar
7
neste lugar/ estrangeiro, ainda confinado. [...]". (N.T.) "Mi chiederai tu, morto disadomo, / d'abbandonare questa disperata/
"[...] Noia/patrizia ti è intomo. [...]" "[...] T é d i o / patrício te passione di essere nel mondo?" " T u me pedirás, morto desador-
rodeia. [...]" (N.T.) n a d o , / para abandonar essa desesperada/ paixão de estar n o
m u n d o ? " (N.T.)

42 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO


43
Defini outrora o século X X como o século
fazer u m pastiche de Lacan, Pascal teria dito: o real
da paixão pelo real. Aí está ela! É dessa paixão
é o impasse de toda diversão. O real surge quando
que Pasolini nos fala. E, já em 1954, no meio do
a diversão começa a se esgotar e não consegue mais
século X X , suspeita poeticamente que ela dei-
nos proteger desse surgimento.
xou de valer, que já não nos anima mais; e que,
A tese que "As cinzas de Gramsci" formalizam
reduzido ao exílio de suas cinzas, Gramsci nos diz
em poema é a de que, na sociedade capitalista triun-
algo como: "Eu quis isso, mas não lhes peço mais
fante, a diversão é rainha — u m pouco como para
que o queiram, peço é que renunciem a essa paixão
Debord há soberania do espetáculo. Nada mais há
desesperada de estar no mundo".
além da diversão. Tudo que há é o anseio de se manter
Assim sendo, o poema vai se organizar como a
tão afastado do real quanto possível. De maneira a
descrição do mundo contemporâneo - e isso vai nos
cultivar, comprar, alimentar e perpetuar o semblante
interessar no mais alto grau, embora tenha mais de
protetor do sujeito, quando ele é cidadão do Ocidente
" " m e i o século de idade. Por quê? Porque, para Pasolini,
imperial. Pasolini vai nomear essa disposição subjetiva
a característica de nosso mundo, digamos o mundo
"substituir a vida pela sobrevivência". A sobrevivência
"ocidental", é a de estar e se querer protegido de
tem uma definição precisa: renunciamos à "paixão
_qualquer real. E u m m u n d o n o qual o semblante
desesperada de estar no mundo", só podemos dar
adquiriu tamanho vigor que cada u m de nós pode
viver
continuidade ao trabalho negativo da diversão.
- c desejar viver, como se estivesse a salvo de
Mas ouçamos u m pouco a voz do poema.
tudo aquilo que poderia ser u m efeito real. De tal
Escutemos a rede de imagens em que se desdobra
maneira que, nessa espécie de mundo, se por acaso
a descrição da vida afastada do real, essa vida que
o real opera uma abertura no semblante, causa ime-
renuncia a fazer advir o real da História, que con-
diatamente uma perturbação subjetiva total.
dena Gramsci ao exílio de suas cinzas, e que, por
O m u n d o que Pasolini nos descreve é u m
fazer isso, só pode estar corrompida:
m u n d o órfão de Gramsci, desertado de toda e
qualquer vocação de fazer advir o real da História. [...] E bem se sente que para esses seres
E u m m u n d o onde reina o que Pascal chamou de vivos, ao longe, que gritam, que riem,
diversão. O u talvez devêssemos dizer hoje entertain- em seus veículos, em seus míseros
ment: "entertainment world".
casarios onde se esvai
I Pascal mereceria u m longo inciso: ele é u m
1 o dom pérfido e expansivo da existência —
í magnífico teórico da questão do real. Se quisesse
essa vida não passa de um frisson;

44 FILÕ
EM BUSCA DO REAL PERDIDO
45
presença carnal, coletiva; O que encontramos nessa passagem? E m
sente-se a ausência de qualquer religião primeiro lugar, que em nosso mundo a vida está
verdadeira; não vida, mas sobrevivência dissipada. A partir do momento em que a vida não
é mais habitada e orientada pelo projeto de fazer
- mais alegre, talvez, que a vida - como
advir seu próprio real, ela se torna inapreensível,
num povo de animais, cujo secreto
informe, desorientada. É uma vida que, de di-
orgasmo ignora qualquer outra paixão
versão em diversão, é uma vida extraviada, uma
vida que pretende atribuir u m valor capital a seu
além da do labor de cada dia:
próprio despedaçamento. E é uma vida que, assim,
humilde fervor, a que vem ornar com um ar de festa
a humilde corrupção. Quanto mais se faz vão e este é o segundo ponto, é assombrada pela ausên-
cia de qualquer verdade. Para Pasolini, e para mim
- nessa trégua da história, nessa também, "verdade" é uma palavra que pode vir
barulhenta pausa em que a vida faz silêncio - no lugar da palavra "real". Q u a n d o Pasolini fala
todo ideal, mais se revela daãusência de qualquer religião verdadeira, não
alude a uma religião no sentido habitual do termo.
a maravilhosa e ardente sensualidade "Religião verdadeira" significa simplesmente a
quase alexandrina, que cobre de iluminuras
e ilumina tudo com um fogo impuro, enquanto aqui che tutto minia/ e impuramente accende, quando qual/ nel mondo,
qualcosa crolla, e si trascina/ il mondo, nella penombra, rientrando/
um pedaço do mundo desaba, e esse mundo in vuote piazze, in scorate officine..." "[...] E sente como nesses
distantes/ seres que, em vida, gritam, riem,/ em seus veículos,
se arrasta na penumbra, para encontrar nesses mesquinhos// casarios onde se consome o pérfido/ e
praças vazias, sombrias oficinas.8 expansivo dom da existência - / aquela vida não passa de u m
arrepio;// corpórea, coletiva presença;/ sente a falta de toda e
qualquer religião/ verdadeira; não vida, mas sobrevivência//
" "[...] E senti come in quei lontani/esseri che, invita, gridano, ridono,/ - talvez mais alegre do que a vida - c o m o / de u m povo de
in quei loro veicoli, in queigrami// caseggiati dove si consuma 1'infido/ animais, em cujo arcano/ orgasmo não há outra paixão// senão
ed espansivo dono dell'esistenza -/ quella vita non è che un brivido;// pelo obrar cotidiano:/ humilde fervor a que dá u m sentido de
corporea, collettiva presenza;/senti il mancare di ogni religione/ vera; festa/ a humilde corrupção. Quanto mais é v ã o / / - neste vazio
non vita, ma soprawivenza//-forsepiù lieta delia vita-come/ d'un da história, nesta/ ruidosa pausa em que a vida se cala - todo
popolo di animali, nel cui arcano/ orgasmo non ci sia altra passione// ideal, melhor se manifesta// a estupenda, adusta sensualidade/
che per 1'operare quotidiano:/ umile fervore cui dà un senso di festa/ quase alexandrina, que tudo orna/ e impuramente incendeia,
1'umile corruzione. Quanto più è vano//-in questo vuoto delia storia, enquanto a q u i / / no mundo, algo desaba, e se arrasta/ o m u n -
in questa/ ronzante pausa in cui la vita tace -/ ogni ideale, meglio do, na penumbra, voltando a entrar// em vazias praças, em
è manifesta// la stupenda, adusta sensualità/ quasi alessandrina, desacoroçoadas oficinas..." (N.T.)

11
46 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
convicção de que uma verdade seja possível. Em O que Pasolini nos ensina indiretamente é que,
outras palavras, no nosso mundo, a convicção de se de tempos em tempos alguns grandes corruptos
que a tentativa de que Gramsci é o emblema - são lançados à arena da opinião pública, é porque o
extorquir à História seu real comunista - possa que conta é a pequena corrupção. O essencial é o fato
ser continuada. É essa convicção, a de Gramsci, de que cada subjetividade seja comprada por aquilo
que o poema afirma ser hoje impossível. Há em que se propõe vender a ela. Alguns grandes corrup-
terceiro lugar a ideia de que tudo, na ordem do tos podem ser sacrificados: vale a pena se, por essa
semblante de vida que ocupa o lugar da vida para pechincha, o sistema da "humilde corrupção", que
nós, se resume ao par trabalho e dinheiro. O é também o da diversão, da sobrevivência, da vida
modo próprio ao nosso mundo de dissipação da protegida de todo e qualquer real, pode se perpetuar.
existência é o reinado absoluto do par trabalho
A quarta e última grande ideia do fragmento
e dinheiro. O labor de cada dia de u m lado, o
que li para vocês está na afirmação de que, já que
humilde fervor, e, do outro, a humilde corrupção.
um mundo desabou, nós estamos numa trégua da
"A humilde corrupção" é uma expressão ad- História. Isso é muito importante, porque é uma
mirável, porque nos indica que há, evidentemente, questão que devemos nos colocar por diversas ra-
a corrupção grandiosa - a corrupção espetacular, o zões. Em que momento vivemos? Qual é o nosso
banditismo chique de nossos patrões, a corrupção lugar histórico? O que, já em 1954, Pasolini ousava
onipresente cujo espetáculo nos é oferecido de dizer é que talvez nosso mundo seja intervalar.
tempos em tempos sob a forma, que já comentei, do Uma primeira história já não está mais em condi-
escândalo - , mas que isso não é o mais importante. ções de fazer valer seu real. Gramsci está reduzido
O que conta, o que regula o mundo dos sujeitos, a cinzas. Ele próprio nos diz silenciosamente: "Não
.„é o consentimento geral a que seja assim. Ejsso, continuem o que eu desejei fazer". E então, talvez
o fato de que em definitivo todo mundo pensa uma outra história vá começar, talvez outra coisa
mais ou menos que o que importa é ter o dinheiro advenha, talvez estejamos numa outra figura do
necessário para comprar o que se..tem,vontade, e impasse da formalização e outra etapa esteja por
que esse é o fundamento inabalável do mundo tal vir, assim como para além da aritmética grega há
como ele é, isso, sim, é a humilde corrupção. A a história moderna da teoria dos conjuntos infi-
que partilhamos todos, mais ou menos, e da qual nitos. O mundo ocidental da "democracia" - das
o escândalo das corrupções memoráveis é apenas classes médias, da vida tranquila e contente, da
a exceção pretensamente salvadora. sobrevivência na diversão, da ausência deliberada

49
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
11
de qualquer real - seria apenas u m m o m e n t o raso
daquele que só pode viver na história,
da historicidade, entre alguma coisa que já era e
poderei novamente obrar com paixão pura,
algo que vai nascer, e, no f i m das contas, é essa a já que sei que nossa história terminou? 9
razão pela qual este mundo "se arrasta na penumbra
para encontrar praças vazias". Descrição severa, Nesse f i m do poema, Pasolini decide, à sua
mas justa. Arrastar-se para encontrar praças vazias maneira, em favor de u m fim da História. Não, de
é exatamente o que todos nós fazemos, porque m o d o algum, porque essa história teria realizado
estamos todos, uns mais, outros menos, na humilde os votos dos homens, mas, muito pelo contrário,
corrupção. E m nosso m u n d o intervalar, só p o d e - porque a impotência de realizá-los na ordem do I
mos, de fato, vagar até encontrar o cantinho vazio real se instalou e, por conseguinte, a subjetivi-
onde poderemos instalar nossa humilde corrupção. dade fundamental que o m u n d o exige de nós, e\
Vocês estão vendo a ideia de Pasolini: o que que ele obtém amplamente, é u m a subjetividade
significa se instalar quando se perdeu toda convic- de renúncia. E - n o s absolutamente necessário re-
ção quanto à possibilidade de fazer advir o real da nunciar a alguma coisa para que possamos nos
História? E isso o que o poema tenta descrever. Se manter, como bons cidadãos, diante da cintilação
não há mais n e n h u m a "religião verdadeira", então do mercado mundial. E m verdade, para ser u m
o que significa viver? O que significa se instalar na b o m comprador, é preciso ter renunciado a tudo.
existência? Pois bem, em última análise, instalar-se A tudo o que é real. Se temos u m a aspiração ver-
na existência é gerir, de uma maneira ou de outra, dadeira, u m a religião verdadeira, não podemos
a humilde corrupção. nos contentar c o m aquilo que nos v e n d e m , e
Tudo isso vai conduzir o poema a sua con- desejaremos que se manifeste o real de que essa
clusão, que leio para vocês:
9
"È un brusio la vita, e questi persi/ in essa, la perdono serenamen-
A vida é murmúrio, e essas pessoas que te, / se il cuore ne hanno pieno: a godersi// eccoli, miseri, la sera:
e potente/ in essi, inermi, per essi, il mito/ rinasce... Ma io, con il
se perdem nela, perdem-na sem lamento,
cuore cosciente// di chi soltanto nella storia ha vita, / potrò mai piú
já que ela enche seus corações. Ei-los que con pura passione operare, / se so che la nostra storia è finita?" "E
um murmúrio a vida, e aqueles perdidos/ nela, perdem-na
serenamente,/ se têm o coração cheio: a g o z a r / / ei-los, m í -
gozam, em sua miséria, da noite: e, poderoso,
seros, à noite: e poderoso/ neles, inermes, para eles, o m i t o /
nesses fracos, para eles, o mito renasce... Mas eu, com o coração consciente// de que somente
se recria... Mas eu, com o coração consciente na história há vida,/ poderei algum dia novamente com pura
paixão obrar,/ se sei que a nossa história terminou?" (N.T.)

50 FILÓ EM BUSCA DO REAL PERDIDO


35
oferta de venda é o semblante. E assim jamais de nada menos que uma resposta enfim comple-
seremos os bons compradores de que a máquina tamente positiva à única questão que realmente
imperial tem absoluta necessidade. importa: o impossível pode existir? Exatamen-
Pasolini se pergunta então se ele, pessoalmen- te como Cantor nos legou aquilo que Hilbert
te, ainda vai poder fazer alguma coisa, "obrar com considerava u m novo Eden matemático, a saber,
paixão pura" - voltamos a encontrar aí a paixão uma resposta racional definitiva para a questão "o
pelo real - a partir do momento em que assume a infinito pode existir?".
convicção negativa de que nossa história terminou. A paixão pelo real não se detinha diante das
E m suma, a paixão pelo real foi mesmo a objeções menores, morais ou outras, simplesmente
paixão do século X X . E é da morte dessa paixão porque ela era a paixão por fazer com que o impos-
que Pasolini nos fala. Já em 1954, no meio do sível exista. Não podia, portanto, se pautar pelas leis
século X X , u m poeta nos diz que a história desse ordinárias da possibilidade. É por isso que o século
século, no que ela tinha de intenso, de memorável, X X foi u m século heroico. Sangrento, pavoroso,
de fundamental, terminou. mas heroico. Do heroísmo daqueles que afirmam
Na primeira metade do século X X , milhões que o impossível existe. Pois o heroísmo pode
de homens partilharam a ideia de que a História ia ser definido assim: manter-se sempre no próprio
parir seu real. E estavam dispostos a pagar o preço ponto real, manter-se ali onde o impossível vai ser
desse nascimento, ainda que ele fosse exorbitante. afirmado ou confirmado como possível.
A História, graças ao terrível labor da convicção, O fim da história, no sentido de Pasolini, é o
ia parir um mundo novo, que seria o real do m u n - fim dessa esperança. É o fim da História como um
do antigo, exatamente como o número infinito é dos nomes possíveis do real. E, é claro, esse é o fim
o real da aritmética ordinária. Milhões de pessoas do heroísmo histórico. O pequeno gozo ido_sujeitp
acreditaram, muito simplesmente, que valia a pena divertido da classe média exige absolutamente que
consentir em terríveis violências (o que, hoje, no nada de heroico nunca mais aconteça.
mundo da classe média atolada em sua diversão, Há provavelmente u m a lição importante
parece horrível e escandaloso). Se o que está em a se tirar da melancolia poética de Pasolini: é
jogo é o nascimento de u m mundo novo que será preciso de agora em diante dissociar história e
nada mais, nada menos que a realização real da política. É verdade, o século X X nos ensinou
História inteira, não vamos barganhar quanto a isto, que a questão do real da História não é o
violências e ao número de vítimas. Pois se trata que nos permite garantir que o real da política

53 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
comunista perdure. Desde Marx, surgiu a ideia Evidentemente, isso requer u m a dissociação
de que se o real da História fosse revelado, tería- muito difícil de conquistar entre a esperança his-
mos realmente u m m u n d o político novo. M a r x tórica e a obstinação política. A obstinação política
afirmava a existência de uma ciência da História, deve poder se sustentar na ausência de qualquer
o materialismo histórico, mas nunca a f i r m o u a esperança histórica. Se conseguirmos isso, teremos
existência de u m a ciência da política. E m certo feito jus às cinzas de Gramsci. Teremos realmente
sentido, o materialismo histórico absorvia o real ouvido o que ele tinha a nos dizer, sob a forma que
da política, e a política estava submetida à história. Pasolini lhe dá, e que é em substância: "Renunciem
E desse ponto que recolhemos as cinzas, c o m o à ficção historiadora". Mas não teremos necessi-
diálogo entre Pasolini e Gramsci. dade de partilhar a nostalgia amarga de Pasolini.
Talvez seja preciso dizer hoje que, em polí- Ele, de fato, não está n e m u m pouco seguro de
tica, o real só será descoberto se renunciarmos à poder aceitar a renúncia à história. Ele se pergunta:
ficção historiadora, ou seja, à ficção segundo a qual posso ainda obrar poeticamente, se esse grande
a História trabalha para nós. Se ela não trabalha sonho de uma História que trabalha na direção da
para nós, isto é, se não há relação orgânica entre emancipação da humanidade se revela por sua vez
o real da História e o florescimento ou o desen- estranho a todo real?
volvimento de u m a política comunista - vamos Q u a n t o a nós, mais de 50 anos depois de Pa-
chamá-la assim - , então há de fato a necessidade solini, podemos, me parece, formular três diretivas.
de uma renúncia limitada. Mas essa renúncia não A primeira é a de arrancar a máscara do
se estende de m o d o a l g u m à ação política e m semblante democrático. O que quer dizer: ex-
geral. Podemos e devemos responder a f i r m a t i - perimentar, sob a Ideia do comunismo, formas
vamente à questão de Pasolini. Ele nos diz: se a democráticas completamente diferentes. É preciso
História, n o sentido de Gramsci e do século X X , se subtrair à propaganda segundo a qual o único
terminou, será que ainda posso obrar com u m a contrário da democracia existente, que chamo de
"paixão pura"? Responderemos: sim! Podemos capital-parlamentarismo, é u m totalitarismo bestial.
obrar com paixão, ainda que a ficção historiadora E m realidade, o contrário da democracia existente
esteja morta e enterrada, ainda que saibamos que
é - voltemos a nosso tema - u m a democracia real.
é u m equívoco acreditar que as estruturas gerais
O contrário "totalitário" só serve para legitimar
da História e o real da História trabalham na
o semblante democrático cujo real é o capitalismo
direção da emancipação.
imperial. Q u a n t o ao real, chegou o momento de

11
54 FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
u m a experimentação democrática de u m novo com que Pasolini se inquieta - a renúncia à es-
tipo, que começou desde sempre, desde Espártaco, sência progressista da História que seja u m
T h o m a s Münzer, os sans-culottes, a C o m u n a de balanço da renúncia feito do ponto de vista de
Paris, os sovietes, a Revolução cultural na China, q u e m não r e n u n c i a . É preciso r e n u n c i a r sem
mas que deve agora se coordenar, se concentrar, renunciar. É preciso renunciar à crença n u m tra-
estar segura de si mesma, se pensar, ter seu corpo de balho da História que seria por si mesmo e de
doutrina, e que, desde o começo e com constância, maneira estrutural orientado para a emancipação.
deve se apresentar como explicitamente oposta ao Mas é preciso m e s m o assim continuar a afirmar
semblante democrático, que não passa da máscara que é realmente no p o n t o de impossível de t u d o
pçr trás da qual se encontra o real do capitalismo isso que se situa a possibilidade da emancipação.
mundializado. Esse é u m primeiro gesto. Nesse sentido, alguma coisa do século X X vai de
C) segundo gesto é o de formalizar por nossa qualquer jeito prosseguir. N ã o podemos aceitar
própria conta o capitalismo contemporâneo. Quero que tudo isso seja jogado fora e bater na mesma
dizer que é preciso inventar e encontrar formaliza- tecla que nossos adversários a esse respeito. E
ções consistentes do capitalismo e do imperialismo preciso propor u m balanço do século X X que
tais como eles são hoje. Pois a exatidão de uma f u n c i o n e c o m o u m aparelho para filtrar no que
formalização prepara para a determinação que age ocorreu aquilo mesmo que não podia ocorrer,
de seu ponto de impossível próprio, e, portanto, que estava em impasse.
de seu real. Sabemos de maneira muito geral que T o d o esse trabalho, de p e n s a m e n t o e de
a igualdade é o ponto de impossível próprio do ação, gira em torno da relação histórica entre real
capitalismo. Mas os métodos organizados para que e destruição. Porque há u m preço terrível a pa-
consigamos nos manter o mais perto possível desse gar por essa ideia entusiasmante segundo a qual
ponto de impossível, a natureza dos acontecimen- a História trabalha para nós, para a emancipa-
tos locais que o fazem surgir como possibilidade, ção da humanidade. Esse preço se deve ao fato de
tudo isso varia de acordo com as circunstâncias que, em verdade, a História não trabalhava espe-
e as etapas do capitalismo e do imperialismo. A cificamente para a emancipação da humanidade
igualdade era impossível de u m jeito em 1840, e é e de que, portanto, para conservar a ideia e n t u -
impossível de outro hoje. siasmante, era preciso forçá-la a fazer isso. Era
ILiixyimenie,. £ preciso pxopor u m balanço preciso parir seu suposto real que era o trabalho
do século X X , ou seja, u m balanço da renúncia n o sentido da emancipação. É p o r isso que a

57 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
atmosfera política geral acompanhava o e n t u - carrega a afirmação. A destruição é a parteira da
siasmo de u m pântano de suspeita, de delação, e construção. É u m a convicção muito arraigada
instaurava a onipresença da categoria de suspei- no século X X , e que confere ao entusiasmo re-
to - e isso desde a Revolução Francesa. Porque, volucionário seu aspecto de ferocidade inútil: os
se a História não trabalha para nós, quando em princípios reais do mundo emancipado surgirão
princípio devia fazer isso, é porque há sabotado- da destruição do velho mundo. Mas isso é inexa-
res. Havia, portanto, sabotadores da História, e to, e essa inexatidão acarreta que a destruição do
sabotar uma História que marcha no sentido da velho mundo ocupa u m lugar desproporcional,
emancipação é de fato u m crime considerável. e que a luta para dar cabo desse velho m u n d o
Foi por isso que se massacraram em massa "sus- até extrair dele os princípios do novo se torna
peitos" de todo tipo. E isso não foi o resultado de infinita, interminável.
uma loucura sanguinária, ou de uma ignorância Penso, portanto, que é preciso substituir essa
bárbara dos supostos "direitos humanos", mas dialética negativa por uma dialética afirmativa. E
o efeito de u m dispositivo coerente da raciona- preciso renunciar à ideia de que a negação carrega
lidade dialética. Portanto, é esse dispositivo de

I
em si a afirmação, ideia que não era mais do que
conjunto que é preciso remanejar a partir de uma a forma lógica de uma esperança entusiasmante
nova concepção do real que não pressupõe que a de que assim adviria o parto forçado de u m real
História seja sua servente. da História. E m realidade, vimos isso no século
Uma variante da posição subjetiva, de que X X , a negação carrega em si a negação, engendra
tentamos tirar importantes lições negativas, pode incessantemente outras negações. E preciso afir-
ser formulada assim: já que a história deve parir mar que o uso da negação, se for inevitável, deve
um mundo emancipado, podemos, sem maiores ser severamente controlado, e mantido em seus
escrúpulos, aceitar, e mesmo organizar, uma des- limites pela potência prévia de uma afirmação. E,
truição em massa. É o que chamo de fenómeno da para isso, é preciso se situar num outro ponto de
destruição histórica. Já que é a História que deve impossível que não aquele que se atribui à História.
parir um mundo político novo e salvador, não é de Isso fará com que por u m bom tempo as novidades
admirar que as destruições sejam da mesma escala políticas tenham u m caráter inevitavelmente local.
que a História. Teremos experimentações locais, que podem ser
N o âmbito das abstrações dialéticas, essa de grande envergadura, e nas quais será a partir de
tese assume a seguinte forma simples: a negação u m princípio afirmativo interno ao que se passa,

59 11
FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
nterno aos atores da situação concernida, ao que É disso que precisamos: uma razão que faça
eles pensam, ao que discutem, ao que fazem, que o luto da historicidade favorável, que permaneça,
será definida a norma da negação, e consequente- contudo, na paixão pelo real, que busque na expe-
mente seu limite. É tudo isso, que deve fazer parte rimentação política local apreender o que há de real
do estilo militante dos políticos comunistas por vir, no real e que se preserve do extremismo destruidor.
que permitirá renunciar às destruições históricas.
Gostaria de concluir dizendo que a chave do Eu não penso - e será meu único ponto de
acesso ao real é, ao fim e ao cabo, a potência de uma divergência com Pasolini - que essa irmã afirma-
dialética afirmativa. E é precisamente dessa dialética tiva da dialética negativa seja triste por si mesma.
que Pasolini faz o retrato num outro poema que se Dá para sentir que em Pasolini essa irmã da razão
chama "Vitória". Vocês vão ver que ele diz o que que ele propõe - e que é a razão afirmativa - é
acabo de redizer de um outro jeito, mas com uma uma irmã triste porque, para ele, renunciar à graça
espécie de melancolia que devemos superar. Nesse
de uma História favorável é terrível. Porém, hoje,
imenso poema, Pasolini fala de novo daquele que
devemos estar convencidos de que, apesar dos lutos
tenta manter a paixão pelo real nas condições da
que o pensamento nos impõe, buscar o que há de
renúncia, nas condições do que ele chama de fim da
real no real pode ser, é, uma paixão alegre.
História. Esse homem, na verdade o próprio Pasoli-
ni, é órfão da História, e, no entanto, tenta manter
a paixão pelo real. Eis como o poema o descreve:

Mas ele, herói agora dilacerado, não encontra mais.

Agora, a voz que toca o coração:


Ele se remete à razão que não é razão,
à irmã triste da razão, aquela que busca

apreender o que há de real no real, com uma paixão


ragione, che vuole// capire la realtà nella realtà, con passione/ che
que recusará toda temeridade, todo extremismo.10 rijiuta ogni estremismo, ogni temerità" "Mas ele, herói agora
dividido, c a r e c e / / agora da voz que toca o coração:/ volta-
se para a razão não razão,/ para a irmã triste da razão, que
10
"Ma egli, eroe ormai diviso, manca// omiai delia voce che tocca il q u e r / / compreender a realidade na realidade, com paixão/
cuore:/ si rivolge alla ragione non ragione,/ alla sorella triste délia que recusa todo extremismo, toda temeridade." (N.T.)

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FILÕ EM BUSCA DO REAL PERDIDO
ALAIN BADiOU nasceu no Marrocos,
em 1937, e vive em Paris. É considerado
um dos maiores filósofos da atualidade.
Junto com Deleuze, Foucault e Lyotard,
fundou o Departamento de Filosofia da
Universidade Paris 8, onde lecionou de
1969 a 1999. Em seguida, foi nomea-
do professor emérito da Escola Normal
Superior de Paris. Aluno de Althusser
e de Lacan, seu pensamento foi forte-
mente marcado pelo marxismo e pela
psicanálise. Militante político incansável,
participou do movimento de Maio de 68.
Nunca abriu mão de suas convicções
políticas. Além de ter publicado mais
de 4 0 livros de filosofia, traduzidos em
diversas línguas, é ainda autor de peças
de teatro, ensaios e panfletos.

O T R A D U T O R : Fernando Scheibe é
doutor em Teoria Literária e tradutor.
Traduziu, entre outros autores, César
Aira, Stéphane M a l l a r m é , Mœbius,
Este livro foi composto com tipografia Bembo e impresso Raymond Roussel, Michel Foucault,
em papel Off-White 90 g/m 2 na Formato Artes Gráficas. Ariette Farge, Georges Didi-Huberman,
Marcel Detienne, Catherine Malabou e,
sobretudo, Georges Bataille.
FILO

" U m sintoma interessante de nossa sociedade é


que o escândalo geralmente é um escândalo de
corrupção. É o seu nome essencial. É bastante
curioso que a corrupção cause escândalo, já
que poderíamos sustentar que a sociedade está
c o r r o m p i d a da cabeça aos pés. Poderíamos inclusive
sustentar que a corrupção é sua lei íntima, e que
é para dissimular essa corrupção sistêmica, e
inteiramente real, que o escândalo aponta aquilo
ou aquele que, no f i m das contas, não passa de um
bode expiatório. [...] É por isso que é necessário que
volta e meia haja u m escândalo: não, de m o d o algum,
c o m o revelação do real, mas c o m o encenação de
um pedacinho do próprio real no papel de uma
exceção ao real.

A única força do escândalo reside, assim, na


teatralização de u m minúsculo fragmento do real
enquanto denegação desse m e s m o real."

autêntica
www.autenticaeditora.com.br

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