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DIREITO SUMULAR

01/12/2008 por Lenio Luiz Streck


Carta Forense - Parcela considerável da doutrina sustenta que as súmulas são
precedentes. O senhor concorda com a afirmativa?

Lenio Luiz Streck - Não. As súmulas, sejam "comuns" ou vinculantes, não


podem ser consideradas precedentes stricto sensu, por várias razões. Talvez a
principal delas é porque o texto é diferente da norma. Não deveria haver uma
confusão entre as funções de criar um texto e de concretizar uma norma. Talvez
por isso as súmulas vinculantes (SV) representem uma contradição do sistema:
o STF é, ao mesmo tempo, o criador do texto e seu aplicador no momento em
que julga as reclamações em virtude da não-aplicação das SV. São, pois, "quase
ordenanças" com valor de lei. Agregue-se que há uma diferença entre caso
julgado, precedente e súmulas (ou enunciados jurisprudenciais, que é o que são,
em síntese, as súmulas).

CF - Qual é a diferença entre uma súmula e o precedente da common law?

LLS - A regra do precedente (ou stare decisis) se explica pelo adágio stare
decisis et non quieta movere, que quer dizer continuar com as coisas decididas
e não mover as "coisas quietas". O precedente possui uma holding, que irradia
o efeito vinculante para todo o sistema. Isso não está na Constituição, nem na
lei, e, sim, na tradição. Para a vinculação, a matéria (o caso) deve ser similar. A
aplicação não se dá automaticamente. Nesse sistema, sempre se deve examinar
se o princípio que se pode extrair do precedente constitui a fundamentação da
decisão ou tão-somente um dictum. Portanto, também nos EUA - e não poderia
ser diferente - texto e norma não são a mesma coisa. Somente os fundamentos
da decisão possuem força vinculante. O dictum é apenas uma observação ou
uma opinião. Mas o mais importante a dizer é que os precedentes são "feitos"
para decidir casos passados; sua aplicação em casos futuros é incidental. Tudo
isso pode ser resumido no seguinte enunciado: precedentes são formados para
resolver casos concretos e eventualmente influenciam decisões futuras; as
súmulas, ao contrário são enunciados "gerais e abstratos" - características
presentes na lei - que são editados visando à "solução de casos futuros"
(conservemos as aspas, na falta de notas de rodapés).

CF - Mas, se isso é assim, perguntamos: a súmula é um "problema"? É um


instrumento autoritário? É um "mal"?

LLS - Como venho sustentando, as súmulas não são um problema ou um "mal


em si". Podem ser importantes para colocar o "selo jurídico" em conquistas
hermenêuticas. Também podem contribuir para a formação de uma cultura
jurídica que respeite a integridade do direito. Portanto, o problema não está no
fato de o sistema jurídico ter ou não mecanismos vinculatórios. Esta é a
contradição secundária do problema. Registre-se: desde a lei 8.038/90 as
súmulas servem para obstaculizar recursos. Assim, de algum modo, já
vinculavam e continuam vinculando. A diferença é que agora existe, para a SV,
criada pela EC 45, o mecanismo da reclamação. Aliás, nem vou falar aqui das
demais súmulas que estão no "sistema"; são milhares - o que fazer com elas?
Se formalmente só as do STF são vinculantes, as demais são de "segundo
nível"? Voltando: na verdade, quem transforma a SV em um "mal em si" são as
suas equivocadas compreensão e aplicação. Explico: pensa-se, cada vez mais,
que, com a edição de uma súmula, o enunciado se autonomiza da faticidade que
lhe deu origem. É como se, na própria common law, a ratio decidendi pudesse
ser exclusivamente uma proposição de direito, abstraída da "questão de fato"
(v.g., por todos, Neil McCormick). Se isso é crível, então realmente a súmula e
qualquer enunciado ou verbete (e como gostamos de verbetes, não?) será um
problema. E dos grandes. E como respondo a isso? Com uma "exigência
hermenêutica" que se traduz na frase de Gadamer: só podemos "compreender
o que diz o texto a partir da situação concreta na qual foi produzido".

CF - Pode esclarecer mais esse ponto?

LLS - Sim: venho insistindo há muito tempo que texto e norma não são "colados",
nem cindidos. A questão de direito, que surge do julgamento anterior (ou da
cadeia de julgamentos), será sempre uma questão de fato e vice-versa. Por isso
- e nisso reside o equívoco de setores da doutrina - é impossível transformar
uma súmula em um "texto universalizante". Insisto: isso seria voltar à filosofia
clássica-essencialista. É preciso entender que a "aplicação" de uma súmula não
pode ser feita a partir de um procedimento dedutivo. Que as súmulas são textos,
não há dúvida. Só que "esse texto" não é uma proposição assertórica. Portanto,
não pode ser aplicada de forma irrestrita e por "mera subsunção" ou por
"dedução". No paradigma filosófico em que nos encontramos, é equivocado falar
ainda em subsunção, indução ou dedução.

CF - Alguns juristas reclamam de que algumas súmulas são muito vagas,


"demasiadamente abertas". Alguns chegam a dizer que a existência de
vaguezas e ambigüidades na proposição normativa jurisprudencial é um contra-
senso. Há, pois, uma forte crítica à "técnica legislativa dos precedentes". O que
senhor pensa disso?
LLS - Não se deve transportar, da lei para as súmulas, o velho problema da
vagueza e da ambigüidade das palavras. Isso não ajuda em nada. Aliás, isso
apenas mostra como parcela significativa da doutrina permanece refratária às
conquistas filosóficas que o século XX nos legou. Não deveria haver essa
preocupação com a "degradação semântica" (sic). Isso é coisa do positivismo
jurídico. Esclarecendo melhor: os juristas continuam a tentar encontrar no próprio
texto uma "essência" que permita dizer qual seu "real significado". É como se o
texto contivesse uma "textitude". De todo modo, em tempos de produção
democrática do direito, a "criação jurisprudencial do direito" deveria ser olhada
de soslaio. Aliás, o debate poderia render muitos frutos se se procurasse olhar
para o problema dos limites do ato judicante na perspectiva de problematizar a
legitimidade e a validade das decisões judiciais. Veja-se, v.g., a falta ou a
deficiência de fundamentação das decisões. O Brasil é o único país que possui
"embargos declaratórios", que é um recurso "pequeno gnosiológico" feito para
salvar decisões mal fundamentadas, que, na verdade, são nulas, exatamente
por não obedecerem o art. 93, IX da CF. Isso é um sintoma grave. Há que se ter
claro que a grande viragem metodológica que se faz com o novo
constitucionalismo é que, agora, os juristas conseguiram o acesso
ao locus decisional. Só que a cindiram da legislação. A "novidade" aparece no
momento em que o "fator de legitimidade" já não esgota o problema, que se
estende, inexoravelmente, para o modo "como o juiz decide". Relembremos: as
teorias semânticas da legislação (positivismo) sempre reconheceram o problema
das vaguezas da lei. Por isso é que Kelsen, fatalisticamente, rendeu-se ao
decisionismo, pelo qual é possível decidir até mesmo fora da "moldura"; outro
positivista, Herbert Hart, apostou na discricionariedade dos juízes para resolver
esse problema da "abertura semântica". Resultado disso? O positivismo
discricionarista. Talvez a súmula vinculante seja a resposta darwiniana a esse
"livre-decidir" e a um certo descompromisso para com a fundamentação.

CF - Como fica, então, a busca pela precisão da linguagem?

LLS - Ora, as palavras não se dividem em categorias como "vagas" e "precisas".


Na redação de qualquer texto, é impossível escolher termos "precisos" que
garantam a inexistência de "dúvidas" quanto à sua aplicação futura. Não há
"clareza" que dispense a interpretação. Isso é velho. Muito velho. E, mesmo que
isso fosse possível, faltaria explicar por que diabos a lei deveria ser formulada
em termos que (ao contrário do "precedente" - sic) favorecessem o surgimento
de dúvidas. Só se fosse para dar discricionariedade ao intérprete, o que também
denuncia a aposta no positivismo (no sentido do debate Dworkin-Hart). O dito
em um texto é sempre o dito sobre algo compreendido e, nesse dito, sempre
haverá um "não dito". Esse "não dito" é o que se perde na construção do
enunciado do texto; é aquilo que não conseguimos dizer com palavras. Ou,
inclusive, é aquilo que foi dito com palavras que poderiam ser usadas para outros
compreendidos. Definitivamente, não somos seres isomórficos.

CF - Há uma crítica especialmente à sumula n. 11 (algemas). Sua formulação


vaga provoca um certo "mal-estar". Tem sentido essa preocupação?

LLS - Muito se tem dito sobre essa súmula (problemática que pode ser aplicada
às demais). A doutrina em geral tem até razão quando diz que a súmula "mais
parece texto legislativo", porque assim é e sempre foi. Como falei no inicio,
súmulas têm pretensão de "generalidade e abstração", como a lei. Por isso, sua
redação sempre pareceu mais com a de um artigo ou parágrafo de lei do que
com uma decisão judicial: "Não cabe mandado de segurança contra lei em tese"
(n. 266 do STF); "A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício" (n.
33 do STJ). Quem acha que as súmulas são "demasiadamente vagas" deixa a
impressão de que as dificuldades de aplicação devem ser solucionadas com
"outras súmulas" ou um "comentário sobre as súmulas". Não deixa de ser
sintomático que a doutrina, ao identificar complexidades no sistema, proponha
resolvê-las com "mais do mesmo", ou seja, com outros modelos pré-concebidos
de interpretação. Apesar disso, a filosofia nos salva. Insisto: é graças a ela que
não acreditamos mais em isomorfia entre texto e realidade. Se eu fosse resumir
o problema das súmulas em uma frase, diria que "o "e;precedente"e; não cabe
na súmula". Trata-se de um "enigma" hermenêutico que deve ser decifrado. É
impossível transformar o problema da aplicação (Anwendungsdiskurs) em um
problema de validade (prévia) dos discursos jurídicos (discursos de justificação
- Begründungsdiskurs). O problema é que isso já acontece de há muito no direito
de terrae brasilis. Aliás, é prática recorrente - afinal, não há sentença ou acórdão
que assim não proceda - a mera menção de ementas de acórdãos, utilizados
como pautas gerais nas decisões. Tal circunstância acarreta um
enfraquecimento da força persuasiva da doutrina, deixando-se a tarefa de
atribuição do sentido das leis aos tribunais, fenômeno que é retroalimentado por
uma verdadeira indústria de manuais jurídicos, que colacionam ementários para
servirem de "pautas gerais". Verbetes. Enunciados. Tentativas de
conceptualizações. Nada mais, nada menos do que a velha metafísica, recheada
de conceitos sem coisas. Por tudo isso, as súmulas (vinculantes ou não) não
deveriam causar surpresa. E nem estranheza. Elas sempre estiveram aí, no
nosso imaginário.

CF - Algum comentário final?

LLS - Sim. Temos que encontrar o fio condutor da tradição que se liga ao
enunciado e, caso nenhuma tradição se ligue ao dito no enunciado, já estaremos
diante de uma inconstitucionalidade. Teremos que buscar os "casos" e o
"contexto" em que esse enunciado foi produzido (pensemos na súmula 5, que,
aplicada tábula rasa, revoga dispositivo da CF). Não é possível, portanto,
continuarmos analisando os textos das súmulas como se ali fosse "o lugar da
verdade" e como se o sentido "imanente" desse texto nos desse as respostas
para a sua futura aplicação. É o que tenho trabalhado com a "resposta adequada
a Constituição" ou "resposta correta", especialmente no livro Verdade e
Consenso, da Lumen Juris. Cada enunciado sumular/jurisprudencial, etc, tem
um "DNA". Esse "DNA" é a integridade e a coerência de que fala Dworkin. O
"DNA" contém também, necessariamente, os genes da doutrina, sob pena de
sacramentarmos a tese de que o direito é aquilo que o judiciário diz que é
(lembremos sempre do Min. Barros Monteiro, que dizia "não me importa o que a
doutrina diz..."- sic). O juiz Holmes já morreu. E mais: não há grau zero de
significação. Embora nosso sistema não seja de precedentes, o direito não é um
conjunto de casos dispersos, em que, pragmaticamente, o jurista possa dizer
qualquer coisa sobre qualquer coisa. E a doutrina deve voltar a doutrinar e não
se quedar submissa e caudatária da "jurisprudência" (na verdade, por vezes, de
citações "pela metade" e de casos isolados). Por tudo isso, a súmula não é um
"mal em si". Insisto: é um "mal" como é qualquer enunciado ou lei "injusta" e/ou
inconstitucional. A propósito, a doutrina deve iniciar a discussão acerca do que
fazer com as SV inconstitucionais (formal ou materialmente). No fundo, não há
maiores diferenças entre uma lei e uma súmula; a diferença é que, por incrível
que pareça, às SV os juristas respeitam. E a lei? Bem, a lei acaba tendo menos
força que as SV. Por exemplo: antes da SV 10, os tribunais eram useiros e
vezeiros em não suscitar incidentes de inconstitucionalidade. Isto é, não
obedeciam aos arts. 97 da CF e os arts. 480 e segs do CPC. Com a edição da
SV n. 10, passaram a obedecer. Aliás, até demais, uma vez que agora nem mais
fazem interpretação conforme e nulidade parcial sem redução de texto. E olha
que a SV n. 10, examinada em seu "DNA", nem trata desses dois mecanismos
hermenêuticos. Sintomas da crise, pois não? Ainda, por fim, há um outro enigma
a ser decifrado. E qual seria? É que as súmulas representam um paradoxo. E
por que? Porque elas não diminuem e, sim, aumentam a competência dos
juízes. Eles e os tribunais é que ainda não se deram conta. Talvez nem venham
a perceber isso. A hermenêutica explica, mas esse é um assunto para outra
entrevista.
NOTAS SOBRE OS CONCEITOS DE JURISPRUDÊNCIA, PRECEDENTE

JUDICIAL E SÚMULA.

Por José Rogério Cruz e Tucci

Verifica-se que, sob o ponto de vista técnico, reina inequívoca imprecisão na


prática do direito daquilo que se concebe por jurisprudência, precedente judicial
e súmula (e suas respectivas classificações). Assim, entendemos que se torna
necessário traçar os respectivos conceitos, para que os juízes possam orientar-
se ao proferir as suas decisões e os advogados invocá-los e argumentar
corretamente em seus arrazoados.

Dúvida não há de que a jurisprudência, os precedentes judicias e as súmulas


são produzidos exclusivamente pelos tribunais colegiados[1].
Em sistemas jurídicos de civil law, como o nosso, nos quais predomina a
legislação escrita, o termo jurisprudência — que é polissêmico — geralmente
indica uma pluralidade de decisões relativas a vários casos concretos, acerca de
um determinado assunto, mas não necessariamente sobre uma idêntica questão
jurídica. Esse modo de lidar com a jurisprudência, cujo conhecimento é, via de
regra, fornecido pela consulta rápida nos sítios eletrônicos dos próprios tribunais
revela, em algumas hipóteses, a tendência do posicionamento pretoriano sobre
a interpretação de determinado texto legal.
Invoca-se, por exemplo, a jurisprudência, aludindo-se, de um modo geral, a
muitas decisões, causando sempre certa dificuldade para estabelecer qual tese
é realmente relevante, ou mesmo para aferir qual ou quais julgados tratam
especificamente da interpretação de um fundamento no qual lastreada a questão
sob apreciação judicial.

Como bem observa Michele Taruffo, não é fácil desvendar, entre inúmeros
arestos citados à guisa de jurisprudência, qual a posição realmente
dominante.[2]
Na verdade, em nossa experiência jurídica, num universo jurídico com mais de
50 tribunais de segundo grau, a respeito de muitas teses descobrem-se, não
raro, num mesmo momento temporal, acórdãos contraditórios, evidenciando
significativa ausência de uniformidade da jurisprudência e, como natural
decorrência, consequente insegurança jurídica. E esse grave inconveniente
pode ser inclusive constatado, por paradoxal que possa parecer, num mesmo
tribunal, revelando divergência de entendimento, intra muros, entre câmaras,
turmas ou sessões.
Não obstante, afirma ainda Taruffo, que a jurisprudência pode desfrutar de
acentuada eficácia persuasiva se ficar demonstrado que o julgamento sobre
determinada quaestio iuris, reiterado em vários acórdãos, desponta uniforme e
sedimentado.
Saliente-se, por outro lado, que os órgãos judicantes, no exercício regular de
pacificar os cidadãos, descortinam-se como celeiro inesgotável de atos
decisórios. Assim, o núcleo de cada um destes pronunciamentos constitui, em
princípio, um precedente judicial. O alcance deste somente pode ser inferido
aos poucos, depois de decisões posteriores.[3] O precedente então nasce como
uma regra de um caso e, em seguida, terá ou não o destino de tornar-se a regra
de uma série de casos análogos.
Bem é de ver que, pressupondo, sob o aspecto temporal, uma decisão já
proferida, todo precedente judicial é composto por duas partes distintas: a) as
circunstâncias de fato que embasam a controvérsia; e b) a tese ou o princípio
jurídico assentado na motivação (ratio decidendi) do provimento decisório, que
aspira certo grau de universalidade.
O precedente sempre corresponde a um pronunciamento judicial atinente a um
caso concreto. Não é possível conceber um julgado como precedente se a
interpretação da norma por ele aplicada não estiver diretamente conectada ao
caso concreto que foi objeto de decisão.[4]
Quando se alude a precedente refere-se, geralmente, a uma decisão relativa a
uma situação particular, enquanto, como acima visto, a citação da jurisprudência
encerra uma pluralidade de decisões relativas a vários e diversos casos
concretos.

A diferença não é apenas semântica. O fato é que nos sistemas de common law,
que se fundam tradicional e tipicamente na máxima do stare decisis, geralmente
a decisão que é considerada precedente é apenas uma[5]; ou, no mínimo,
poucas decisões sucessivas que vêm citadas para sustentar o precedente.
Desse modo, é fácil identificar quais pronunciamentos realmente “geram
precedente”.
Diferentemente da citação da jurisprudência, na qual se reportam a trechos ou
extratos mais ou menos sintéticos da motivação, o precedente somente é
compreendido pela interpretação da controvérsia antes resolvida. É assim do
cotejo — técnica do distinguish — da integralidade de pelo menos duas
situações fáticas (a já julgada e a que está sob julgamento), que o julgador
estabelece a relação de precedente aplicável ou não incidente ao caso
concreto. Ressalte-se, a propósito, segundo precisa observação de Thomas
Bustamante, que o distanciamento do precedente não implica seu completo
abandono — “ou seja, sua validade como norma universal não é infirmada” —
, mas tão-somente a sua não aplicação em determinada hipótese concreta.[6]
Ademais, sob outro enfoque — ainda segundo Taruffo —, não é simplesmente
uma questão quantitativa: o precedente produz uma regra universal, que pode
ser aplicada como critério de decisão num caso sucessivo em função da
identidade ou da analogia entre os fatos do primeiro caso e os fatos do segundo
caso. “Naturalmente, a analogia dos dois casos concretos não é dada in re ipsa...
É, com efeito, o juiz do caso sucessivo que estabelece se existe ou não existe o
precedente e, portanto, ‘cria’ o precedente. A estrutura fundamental do raciocínio
que leva a aplicar o precedente ao caso sucessivo é fundada sobre a
comparação dos fatos. Se esta análise justifica a aplicação no segundo caso
da ratio decidendi aplicada no primeiro, o precedente é eficaz e pode determinar
a decisão do segundo caso. Note-se que, quando se descortinam estas
condições, apenas um único precedente é suficiente para fundamentar a decisão
do caso sucessivo”.[7]
Sob o aspecto institucional, a situação típica de aplicação do precedente é
aquela de eficácia vertical, decorrente da autoridade hierárquica do órgão que
emitiu o precedente em relação ao órgão incumbido de decidir o litígio posterior.
Diante desta importante perspectiva, os tribunais superiores são atualmente
concebidos, especialmente em países federados, como o Brasil, para exercerem
a importante função nomofilácica em prol da uniformização da interpretação e
aplicação do direito, ou seja, de verdadeiras cortes de precedentes.[8]
Ao enfrentarem questões polêmicas ou teses jurídicas divergentes, os tribunais
também produzem máximas ou súmulas que se consubstanciam na enunciação,
em algumas linhas ou numa frase, de uma “regra jurídica”, de conteúdo
preceptivo. Trata-se de uma redução substancial do precedente. A aplicação da
súmula não se funda sobre a analogia dos fatos, mas sobre a subsunção do caso
sucessivo a uma regra geral.[9]
A construção de súmulas remonta a uma prática tradicional e consolidada do
sistema judiciário luso-brasileiro. Não deriva da decisão de um caso concreto,
mas de um enunciado interpretativo, formulado em termos gerais e abstratos.
Por consequência, o dictum sumulado não faz referência aos fatos que estão na
base da questão jurídica julgada e assim não pode ser considerado um
precedente em sentido próprio, “mas apenas um pronunciamento judicial que
traduz a eleição entre opções interpretativas referentes a normas gerais e
abstratas. Sua evidente finalidade consiste na eliminação de incertezas e
divergências no âmbito da jurisprudência, procurando assegurar uniformidade
na interpretação e aplicação do direito”.[10]

[1]. As sentenças monocráticas, quando invocadas em casos análogos, constituem


exemplos e importante subsídio, mas não são consideradas “jurisprudência” na
acepção do termo.
[2]. Precedente e giurisprudenza, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile,
2007, p. 714.
[3]. Cf., nesse sentido, Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, Tratado da
argumentação. A nova retórica, tr. port. Maria Ermantina Galvão, São Paulo,
Martins Fontes, 2002, p. 404.
[4]. Cf., também, Taruffo, Precedente e giurisprudenza, Rivista trimestrale di diritto
e procedura civile, cit., p. 712.
[5]. É por esta razão que os operadores do common law invocam na maioria das
vezes um determinado caso para indicar um precedente, como, p. ex., Mac Pherson
v. Buick Motor Co.
[6]. Thomas da Rosa Bustamante, Teoria do precedente judicial, São Paulo, Noeses,
2012, p. 471.
[7]. Precedente e giurisprudenza, Rivista trimestrale di diritto e procedura civile,
cit., p. 712.
[8]. V., nesse sentido, dentre outros, Luiz Guilherme Marinoni, A ética dos
precedentes, São Paulo, Ed. RT, 2014, p. 102,
[9]. Cf. Taruffo, Precedente e giurisprudenza, Rivista trimestrale di diritto e
procedura civile, cit., p. 713.
[10]. Michele Taruffo, Las funciones de las Cortes Supremas: entre uniformidade y
justicia, Proceso y Constitución - El rol de las Altas Cortes y el derecho a la
impugnación, Lima, Palestra Ed., 2015, p.136-137.
José Rogério Cruz e Tucci é advogado, diretor e professor titular da Faculdade de
Direito da USP e ex-presidente da Associação dos Advogados de São Paulo.

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