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Louis Althusser-O Futuro É Muito Tempo (Seguido de Os Factos) - Edições Asa (1992) PDF
Louis Althusser-O Futuro É Muito Tempo (Seguido de Os Factos) - Edições Asa (1992) PDF
JORGH AM AD O
C onversas com A lice R a illa rd
I /6 dc \(tiv ii/h m de I9SO. o unindo eslremeeen:
l.onis .Mlhnsser. o célehiv lihisofo iiinrxisln. o uiesire
inconlesindo de Ioda ninn '^ernçdo de inleleeliuiis
e íielirisins /lolílieos. es/rnn_í>nlnrn a snn jim lirin innlher.
Ilelene. nincndo de ninn crise de deiiiêncin. \ n o honre
processo, item condenação: considerado iniiupnldrel.
encerrado nnin hospício psirpiidlrico. ahalen-.se sohre ele
niiia pesada cortina de silêncio. Pnlrelanlo. com a crise
do m arxism o, os sens Urros, (pie tin h a m sido rerdadeiros
hreridrios. transform aram -se em peças de m nsen.
O nando Althn.s.ser morren. em O ntnhro de IhdO. jd ha
m nito tinha m orrido na m em ória das piuites (' do tempo.
,SVi (pie então .se de.scohre (/ne. d u ra n te e.s.ses í /c : <tiios.
.Mthn.s.ser não ce.s.sara de rejlectir. de pensar, de escretvr.
/ ipie no meio do .sen espólio, d a ctilo p ra fid o p o r ele.
pronto para pnhiicação. lutt ia um d o cum ento trópico e
extraordinário em <pie o f 'iloso/ó. com o tpie respondendo
no proce.sso ipie não tere. explicara o .sen crim e e
m erpnlhara nas raízes m ais fniidíts da sna demêncict: este
( ) ruuiro é M liíIo Tniipo,
/;' esta extraordinária e d ram ática con/i.s.sáo /lóstiinut de
.Mthn.s.ser — a cpie se ju n ta na juvsente edição n m ontro
eshoço antohioprálico inédito. O s IsiU o s, redipido em
I9M ) — . (pie as lidtçéies . l.S. l se orpnlham de apora
aju e.sentar (to leitor jiortiipnês. fioncos me.se.s de/xiis do
retnm hante sucesso ohtido pela edição oripinal francesa.
LOUIS ALTHUSSER
O FUTURO É MUITO TEMPO
SEGUIDO DE
OS FACTOS
ED IÇ Ã O O RG ANIZAD A E APRESENTADA POR
1^
ASA
l I 1 { BA 1 U RA
IIII 1.0(IRK.INAI
I. A\E.MRDLRh I.ONGIFMPS
l‘-)‘í 2. Idiuun^ IMS(
A presentação. 9
OS FACTOS 301
APRESENTAÇÃO
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L O I I S A L T U [’ S S E R
A análise dos docum entos e dos testem unhos até aqui reunidos perm item
adiantar com segurança os pontos seguintes: a redacção de O F uturo é M uito
Tempo foi despoletada, ainda que o projecto de uma autobiografia seja m uito
anterior, pela leitura, no M onde do dia 14 de Março de 1985, de um «bilhete»
de Claude Sarraute intitulado «Petite fa im » . (Mnsagrado essencialmente ao assas
sínio antropofágico de uma jovem holandesa pelo japonês Issei Sagawa e ao êxito
que conheceu em seguida no Japão o liv ro onde este narrava o seu crime, depois
de ter sido repatriado na sequência de um a declaração de im procedência e de
uma breve estadia num hospital psicjuiátrico francês, o artigo de Cdaude Sarraute
evocava de passagem outros «casos»: «[...] Nos m edia, assim que descobrim os
um nom e de prestígio imiscuído num processo suculento — Althusser. Thibault
d Orléans — transform am o-lo em grande acontecim ento. A vítima? Não merece
três linhas sequer. A vedeta é o culpado [ ..].»
Após a publicação deste «bilhete», diversos amigos de Louis Althusser
aconselharam -no a protestar junto do jornal contra a alusão a um «processo
suculento». Mas ele seguiu o conselho de outros amigos, que em bora criticas
sem a m aneira com o a coisa fora feita, achavam que, em todo o caso, Claude
Sarraute punha em evidência um ponto essencial, e para ele dram ático: de
Veja-sc \un i.h;r liorr.wí., to iiis Althusser. u n e biograpbie. tom o i, Cirasset, 1992.
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A l’ R R S E T .4 Ç A O
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,4 P R t: S E N T A Ç A O
arquivos não havia qualquer fotocópia dele. Um dos seus amigos, André Tosei,
conta que só o p ô d e ler, em Maio de 1986, na presença do Autor, em casa deste
c sem tom ar notas.
Acrescente-se p o r fim que para a redacção de O F uturo é M uito Tempo,
Louis Althusser, sobretudo no que se refere aos prim eiros capítulos, se inspi
rou com toda a evidência e em grande m edida na sua prim eira autobiografia
intitulada Os Factos, de que conservara duas versões m uito parecidas.
Esse texto. Os Factos, que publicam os na segunda parte deste volume, foi
escrito em 1976 (a indicação do ano figura na prim eira página), e de acordo
com toda a verosim ilhança, no decorrer do seu segundo semestre. Louis
Althusser propôs e entregou o texto a Régis Debra)-, que o destinava ao
segundo núm ero de um a n o \a revista, Ça ira, cujo núm ero zero fora publi
cado em Janeiro de 1976 e que acabaria p o r não ver a luz do dia. Do co nheci
m ento de alguns amigos de Louis Althusser, esta autobiografia perm aneceu
tam bém até à data totalm ente inédita.
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/, o r I s A l. T U C S S E R
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.iqui nas páginas 237-241 ^ O m esm o se passa com a últim a parte - do capí
tulo consagrado a análises políticas sobre o futuro da esquerda em França e a
'itu a ç ão do Partido C om unista (aqui capítulo XIX ). Ao que parece Louís
Althusser pretendia utilizar estas páginas para uma outra obra sobre A Verda
deira Tradição M aterialista. Mas, para lá destes três capítulos, representando
sessenta e um a folhas m etidas num a capa à parte que tem o título referido, não
existem outros elem entos de inform ação mais precisos acerca deste projecto de
li\ ro inacabado; as páginas em causa talvez venham a ser objecto, nom eadamente
os dois capítulos sobre Maquíavel e Spinoza, de um a publicação posterior.
Em últim a análise, optám os p o r publicar este texto de O Futuro é M uito
Teuipo. quase sem indicações de variantes, à excepção de alguns raros acres
centos à margem para os quais o Autor não procedera às ligações indispensá-
^x4s e que apresentam os p o r isso em nota, rem etendo os investigadores para o
dossier preparatório e para o m anuscrito. Q uanto ao resto, as indicações edito
riais extrem am ente precisas (sublinhados, m udanças de parágrafo, inserção de
acrescentos, etc.) deixadas por Louis Althusser foram integralm ente seguidas e
só introduzim os correcções editoriais m enores e correntes no dom ínio das
concordâncias verbais e da pontuação, bem com o precisões sobre os nom es
próprios das pessoas citadas. Os erros de facto ou de datação foram deixados
com o estavam: para a sua eventual «verificação», o leitor poderá reportar-se à
biografia do Autor que é publicada ao m esm o tem po que este texto. Naigumas
passagens, todavia, o acrescento de uma palavra ou de uma locução, entre parên
teses rectos, revelar-se-ia indispensável para um a leitura mais ciara do texto.
O m anuscrito de Os Factos, pelo seu lado, apresenta-se sob a form a de
uma dactilografia com m uito poucas correcções e acrescentos, sendo portanto
as variantes m ínim as e relativas sobretudo à ordem dos prim eiros parágrafos.
Louis Althusser conservara nos seus arquivos apenas duas fotocópias do
m anuscrito, co rrespondendo a duas versões sucessivas e m uito próxim as um a
da outra.
' De «Mas ames de chegarmos a Marx |...|» a «|..,| Penso que ainda não esgotám os este pensa
m ento sem precedentes c infelizmente sem continuidade.»
- .V seguir a «|...| po r causa do qual não deixariam de o atacar» (p. 263).
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A O V / S .-4 /, 7 / / / .V ,S E R
É a segunda versão a aqui publicada, mas c evidente que o texto deve ter
conhecido anteriorm ente um a ou várias redacções, pois que num a carta a San
dra Salomon, no decurso do Verão de 19"^6, Louis Althusser anuncia: «Vou
p o d er reescrever a m inha “ autobiografia" que enriquecerei consideravel
m ente com recordações reais e outras imaginárias (os meus encontros com o
João XXIII e com De Gaulle) e sobretudo com a análise das coisas que conto,
juntando depois em anexo todos os itiateriais. Estás de acordo? Será a política
pelo lado de dentro e pelo lado de fora ao m esm o tem po e isso perm itir-m e-á
introduzir coisas cjue com certeza não hão-de desiludir quem as ler [...].»
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A P K E S E ,V r A Ç A O
"rccisamente p o r função d e lim ita r'. Teremos assim passado para o lado da
ncção, ou seja, de um im aginário feehado circularm eiite no sistema sim bólico
C l texto, rem etendo apenas para si p róprio? Em certo sentido sim, e o caracter
.ütamente trabalhado dos m anuscritos de que dispom os, com as suas diferen
te ' etapas, conduzirá verosim ilm ente, com o acontece com qualquer criação
literária, a conceder mais tarde a prio rid ad e à crítica interna do texto. E c o n
tudo. tam bém não podem os ler estas páginas com o um rom ance de Céline ou
tima novela de Borges, para citarm os dois autores a que Althusser gostava de
'C referir.
Se entram os, com os dois textos, na escrita da fantasia, da alucinação, é
porque a sua m atéria é a loucura, quer dizer, a única possibilidade para o
'u jeito de se declinar com o louco, e depois assassino, e no entanto, e sempre,
ao m esm o tem po, filósofo e com unista. Estamos aqui em presença de um tes
tem unho prodigioso da loucura, no sentido em que, contrariam ente aos
docum entos nosográficos» com o a M em ória do Presidente Schreber estudada
por Freud, ou o de Pierre Rivière (Moi, Pierre Rivière, a y a n t égorgé m a mère,
m a soeur, m a fe m m e ) apresentado po r Michel Eoucault, com preendem os pela
sua leitura de que m aneira um intelectual, superiorm ente inteligente e filósofo
de profissão, habita a sua loucura, a sua m edicalização sob a form a de doença
m ental pela instituição psiquiátrica, e as roupagens analíticas com que se
enfeita. Neste sentido, este bloco a utobiográfico, com o seu núcleo constitu-
ti\’o presente desde Os Factos, form a p o r certo o indispensável correlato da
Ftistoire de la fo lie de Michel Eoucault. Escrito de um sujeito a quem a inim-
putabüidade retirara de facto a qualidade de filósofo, e inextricável m escla de
«factos» e de «fantasmas», O F uturo é M uito Tempo exibe sem dúvida experi
m entalm ente, num ser de carne e de sangue, aquilo cujo lugar fora designado
p o r E oucault: a vacilação da distinção entre loucura e razão. Com o é possível
que o pensam ento se apoie na loucura sem ser sim plesm ente seu refém ou seu
prurid o m onstruoso? Com o pode a história de um a vida deslizar assim em
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A O I I S A A 7 íl /' V ,V 7' K
Olivier CORPET
Yann MOULIER BOUTANG
Q uerem os agradecer a todos os que nos perm itiram realizar a edição deste
volume, e em prim eiro lugar a François B oddaert, herdeiro de Louis Althusser,
que tom ou a decisão de publicar estes textos e nos testem unhou incessante
m ente a sua confiança. Mas tam bém devem os os nossos agradecim entos a; Régis
Debra\, Sandra Salomon, Paulette Taíeb, Michelle Loi, D om iniqtie Lecourt,
André Tosei, Sianislas Breton, Elélène Troizier, Fernanda Navarro, Gabriel
Albiac. Jean-Pierrc Salgas... pelos docum entos e preciosos testem unhos que nos
forneceram , perm itindo efectuar a edição destes textos nas m elhores condições
possíveis, sem que, no entanto, possam ser considerados responsáveis p o r um
trabalho que po r completo nos cabe assumir. Os nossos agradecimentos igualmente
aos colaboradores do IMEC que nos deram o seu auxílio, e m uito em particular
a Sandrine Samson que assegurou grande parte da classificaçãcj do Fundo Althusser.
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o FUTURO E MUITO TEMPO
1985
provável que haja quem ache chocante que eu me não resigne ao silencio
E depois do acto que com eti. e depois tam bém da declaração de inim puta-
bilidade que o sancionou e da cjual, segundo o m odo de dizer espontâneo,
beneficiei.
Mas se não tivesse beneficiado dessa declaração, teria tido ciue com pare
cer no tribunal. E se tivesse tido que com parecer, teria tido qtie responder
perante ele.
Este livro é essa resposta a que noutras condições teria sidtt obrigado.
E tudo o que peço é que ma concedam : que me concedam agora o que antes
poderia ter sido uma obrigação.
Bem entendido, estou consciente de que a resposta que aqui tento não
corresponde nem às regras de um processo que não teve lugar, nem à forma
que num tribunal teria assum ido. Pergunto-me todavia se a ausência, no pas-
sadtt e para sempre, do julgamento, com as suas regras c a sua form a próprias,
não acabará p o r expor ainda mais o que tentarei aqui dizer à apreciação e à
liberdade públicas. Tal é em todo o caso o m eu desejo. É meu destino não
p o d e r pensar em acalm ar um a inquietação a não ser expondo-m e a uma série
indefinida de outras.
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L O C l S .4 r r II ( s s E R
para a esquerda, enviesados, a zona mais dura cjue fica por baixo dos ouvidos.
Massajo em \'. Sinto um a grande fadiga m uscular nos a n te b r a ç o s b e m sei,
massajar dá-me sem pre dores nos antebraços.
O rosto de Hélène está imóvel e sereno, os seus olhos abertos fixam-se no
tecto.
E de repente fere-me o terror: os olhos dela estão interm inavelm ente fixos
e sobretudo há um a breve ponta de língua que repousa, insólita e tranquila,
entre os dentes e os lábios dela.
Claro que já vi m ortos, mas nunca na m inha vida \ i o rosto de uma estran
gulada. E no entanto sei que é um a estrangulada. IVIas com o? Ponho-m e de pé
e g rito : estrangulei a Hélène!
Precipito-me, e num estado de pânico intenso, correndo o mais que
posst), atravesso o apartam ento, desço as peciuenas escadas com corrim ão de
ferro que dão para o pátio da frente com o seu alto p o rtão de grades e diri
jo-me, sem parar de correr, para a enferm aria onde sei que se encontra o
dr. Étienne. que m ora no prim eiro andar. Não me cruzo com ninguém , é
dom ingo, a Escola está semi-vazia e adorm ecida ainda. Sempre a gritar subo a
quatro e quatro os degraus das escadas do m é d ic o ; «Estrangulei a Elélène!»
Bato com força à porta do m édico, que. também ele de roupão, acaba po r
\ár abrir, desnorteado. C ontinuo a gritar sem descanso que estrangulei Hélène.
agarro o m édico pela gola do roupão: tem cjue v ir v è-la com a m áxima urgên
cia. senão pego fogo à Escola. Étienne não acredita em mim. «é impossível».
Descem os a toda a pressa e eis-nos junto a Hélène. C ontinua com os m es
mos olhos fixos e o seu pedaço de língua entre os dentes e os lábios. Étienne
ausculta-a: «Nao se pode fazer nada, é tarde de mais.» E eu: «Mas não se pode
reanimá-la? — Não.»
A seguir. Étienne pede-m e licença por uns m inutos e deixa-me sozinho.
Mais tarde, com preenderei que dev«e ter ido telefonar, para o Director, para o
hospital, para o com issariado, sei lá para onde mais! Fico à espera, num tre
m or interm inável.
As longas cortinas verm elhas rasgadas e em pedaços pendem dos dois
lados da janela, uma delas, a da direita, contra os pés da cama. \ó lto a ver o
nosso amigo jaeques M artin, que num dia de Agosto de 1964 foi encontrado
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o F U T U R O k M U I T O T F M P O
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F fi r V R o F. M V I r o T E M P O
não só do que vivi no m eu internam ento, mas também do que \iv o desde
então, c tam bém , com o claram ente o vejo, do que estou condenado a viver até
ao term o dos meus dias se não intervier pesso a lm en te e p iib lic a m e n te para
fazer ouvir o m eu p ró p rio testem unho. Foram tantos os que m ovidos pelos
m elhores ou piores sentim entos assum iram até aqui o risco de falar ou calar
em vez de mim! O destino da im procedência é, com efeito, a pedra tum ular
do silêncio.
Essa declaração de im procedência que foi proferida em m eu favor em
Fevereiro de 1981 resume-se na realidade ao célebre artigo Ó4 do Código de
Processo Penal, na sua versão de 1838: artigo que continua em vigor apesar de
trinta e duas tentativas de reform a, todas elas sem êxito. Há quatro anos.
durante o governo Mauroy. uma com issão voltou a ocupar-se desta questão
delicada, que põe em causa todo um aparelho de poderes adm inistrativos,
judiciais e penais em ligação com o saber, as práticas e a ideologia psiquiátrica
do internam ento. Esta com issão deixou de reunir. Aparentemente, não conse
guiu descobrir m elhor solução.
O Código Penal opõe. com efeito, desde 1838, o estado de não-responsa-
hilid a d e de um crim inoso que perp etro u o seu acto em estado de «demência»
ou «sob coacção» ao estado de responsabilidade puro e sim ples reconhecido
a qualquer hom em dito «normal».
O estado de responsabilidade abre cam inho ao processo clássico: compa-
rência perante um tribunal, debate p ú b lic o onde se defrontam as intervenções
do M inistério P úblico que fala em nom e dos interesses da sociedade, testem u
nhas. advogados de defesa e da parte civil que se exprim em p u b lic a m e n te e do
próprio réu que apresenta a sua versão pessoal dos factos. Todo este processo
m arcado pela publicidade dos respectivos trâm ites é rem atado pela delibera
ção secreta dos jurados que publicam ente se pronunciam ou pela absolvição
ou por um a pena de prisão, sendo o crim inoso reconhecido com o tal co n d e
nado a um a pena de prisão definida, supondo-se que pagará assim a sua dívida
.1 sociedade, «lavando-se» p o r conseguinte do seu crime.
O estado de não-responsabilidade juríd ico -leg a l, em contrapartida, eli
mina os trâm ites públicos e contraditórios da com parência perante o tribunal.
\o ta a título prelim inar e directo o assassino ao internam ento num hospital
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faz sem prejuízos, tanto para o paciente, que m uitas vezes transform a em c rô
nico, com o para o m édico, obrigado tam bém ele a viver num m undo fechado
onde se considera que ele «sabe» tudo sobre o paciente, enquanto com fre
quência tem que viver num frente a frente angustiante com o paciente que
com excessiva frequência controla po r m eio de um a insensibilidade postiça e
de um a agressividade acrescida.
Mas isto ainda não é tudo. A opinião corrente considera de bom grado
que o crim inoso ou o assassino, potencialm ente reincidente, e por isso cons
tantem ente «perigoso», deve ou deveria continuar indefinidam ente separado
da vida social — tendenciaIm ente d u ra n te toda a vida. É por isso que se
ouvem tantos coros de indignação, nos quais alguns, cultivando para fins p a r
tidários a angústia e a culpabilidade sociais, se tornam especialistas, em nom e
da segurança de pessoas e bens, contra as autorizações de saída ou as liberta
ções antecipadas concedidas aos condenados «bem com portados» antes do
expirar da sua pena. É p o r isso que o tem a da «prisão perpétua» obsidia tantos
com entários, não só enquanto substituição da pena de m orte, mas tam bém
enquanto sanção «natural» de um a série com pleta de crim es considerados p a r
ticularm ente odiosos para a segurança de «crianças, velhos e polícias». Nestas
condições, com o poderia o «louco», tido no limite com o mais «perigoso» p o r
que m uito mais «imprevisível» do que o crim inoso com um , escapar à mesm a
reacção de apreensão um a vez que o seu destino de internado po r natureza o
liga ao destino do culpado «são de espírito»?
Porém, é preciso ir mais longe. A condição resultante da declaração de
im procedência expõe com efeito o louco que é objecto de internam ento a
m uitos outros preconceitos alim entados pela opinião com um .
Na imensa m aioria dos casos, de facto, o culpado confesso que com parece
perante um tribunal sai deste condenado a um a pena geralm ente lim itada no
tempo, dois anos, cinco anos, vinte anos, e sabe-se que a prisão perpétua, pelo
m enos até ao presente, pode dar lugar a reduções do tem po de pena. Pressu
põe-se que o culpado durante o tem po que dura o seu encarceram ento «paga
.1 sua dívida ã sociedade». Uma vez paga a «dívida», pode p o r conseguinte
regressar norm alm ente à vida sem que, em princípio, tenha que prestar outras
«ontas seja a quem for. Digo «em princípio», porque a realidade não é tão
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L o f J S A L 7 H r S S F. R
simples, não se ordena im ediatam ente segundo t> direito — disso são testem u
nho por exem plo a confusão tão difundida entre o acusado (reputado ino
cente encjuanto a prova da sua culpa não for produzida) e o culpado, as marcas
por m uito tem po sensíveis do escândalo local ou nacional, os rum ores da acu
sação, dem oradam ente e sem cautelas repercutidos pela im prensa e os meios
de com unicação a pretexto de inform ação, todos os boatos que duradoura
m ente podem perseguir com a sua m alevolência não só o acusado inocente e
absolvido, mas tam bém o crim inoso condenado que «honestamente» cum priu
a sua pena. Mas em todo o caso. é preciso dizê-lo igualmente, a ideologia da
«dívida», e da «dívida liquidada» para com a sociedade, age apesar de tudo em
benefício do condenado que cum priu a sua pena e, em certa m edida, protege
até o crim inoso posto em liberdade, enquanto a lei o defende de toda a impu-
tação contrária à «causa julgada»: o crim inoso que prestou devidam ente contas
ou o am nistiado podem intentar processos po r difam ação contra quem invo
que contra eles um passado infamante. C onhecem -se mil exem plos do caso.
A pena «extingue» portanto o crim e e com a ajuda do tem po, do isolam ento e
do silêncio, o ex-crim inoso pode recom eçar a sua \’ida. Também aqui, graças
a Deus. os exem plos não faltam.
O m esm o não acontece no caso do «louco» assassino. Q uando o inter
nam. é evidentem ente sem lim ite p re visív e l de tempo, ainda que se saiba ou
devesse saber que em p rin cíp io qualcjuer estado agudo é um a situ ação
tra n sitó ria . Mas é verdade que os m édicos são o mais das vezes, se não sem
pre. radicalm ente incapazes, até m esm o para os estados agudos, de fixar um
prazo ainda ejue aproxim atico para o prognóstico de cura. Mais: o «diagnós
tico» inicialm ente escolhido não pára de mudar, porque em psiquiatria todo
o diagnóstico é evolutivo-, è a evolução do estado do paciente o único factor
que perm ite fixá-lo, ou p o r conseguinte m odificá-lo. E com o diagnóstico,
fixar ou m odificar, bem entendido, o tratam ento e as perspectivas de prog
nóstico.
Ora. para a opinião com um , cultivada p o r certa im prensa sem nunca dis
tinguir a «loucura» dos estados agudos mas passageiros da «doença mental»,
que é um destino, o louco é im ediatam ente considerado doente m ental, e
quem diz doente m ental quer evidentem ente dizer doente para toda a vida. e.
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do terrível período de «transição» a que tem de lazer frente, o mais das veze;
só, ainda que não esteja isolado, e dos lentos e dolorosos progressos que
passo a passo, insensivelm ente, o vão eonduzir ao lim iar da sobrevivência (
da \ ida.
Falo da opinião pública (quer dizer, da sua ideologia) e do p ú b lic o ■
. o;
dois term os talvez não correspondam ao m esm o conteúdo. Mas aqui pouct
im porta isso. Pois é rarta um público que não seja contam inado pela opiniãc
pública, quer dizer, p o r uma certa ideologia reinante nessas questões de crim e
de m orte, de desaparecim ento e de estranha ressurreição: uma ideolctgia que
põe em jogo todo um aparelho m édico-legal e penal, as suas instituições e os
seus princípios.
Mas gostaria de falar tam bém das pessoas mais chegadas, das famílias c
dos amigos, c para além destes, eventualm ente dos conhecidos. As pessoas
mais chegadas, quando viveram do seu lado e à sua m aneira um dram a que
para elas continua sem explicação, se este as transtornou, vêem-se dilacerados
entre a realidade de um dram a atroz e da exploração que dele faz certa
im prensa, que venda escândalos, por um lado, e p o r outro a sua afeição pelo
assassino, que conhecem hem e a quem m uitas vezes (nem sem pre) têm amor.
Dilacerados, não conseguem fazer coincidir a imagem do seu parente ou
amigo e a figura desse m esm o hom em transform ado em assassino. Também
eles, desam parados, procuram uma explicação que não lhes é dada ou que lhes
parece irrisória em extrem o ejuando um m édico se aventura a confiar-lhes uma
hipótese: «palavras, palavras!» E a quem poderiam dirigir-se a não ser aos
m édicos encarregados do tratam ento quando pretendem form ar uma prim eira
ideia do incom preensível ? Deparam então, a coberto da figura do «saber psi
quiátrico», redobrado pelo segredo profissional, com hom ens obrigados
quanto ao essencial ao silêncio im posto pela sua deontologia, e que muitas
vezes só se m ostram seguros de si para superarem a sua p ró p ria incerteza, ou
até a sua própria angústia, e para com baterem nos outros os efeitos do seu
próp rio sofrim ento interior (caso m uito frequente).
Com eça então muitas vezes a actuar um a estranha «dialéctica» entre a
angústia do paciente que. nos casos mais graves e mais intensos, mais pesa
dos tam bém de ameaças e de consequências (com o foi o meu), conquista
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i / r R o M I I 7 O 7 7: v; p o
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L o ( / S A /. 7 / / r s s /: A>
idcia.s pró]7rias que fazem do dram a com as «explicações» que o seu amigo s
prop(.')e e llies propõ/e, explicações privadas, confidências, que o mais dí
\ezes não passam de tenfeios desconcertantes em busca, sem pre na noite d
«loucura», de uma clareza impossícel?
bi-los. portanto, esses amigos, num a posição bem singular. Acerca d
período cpie precedeu o drama e do temp(/ interm inável da lK)spitalização. poí
SLiem muitas \ezes observações e porm enores que o doente, envolvido n
am nésia profunda que o protege com o urna defesa, esqueceu. Sabem por issi
mais do ejue ele sobre num erosos episódios, exceptuando o m om ento d(
dram a. Hesitam em confiar ao seu amigo aquilo cjue sabem, com m edo de des
penarem nele a terrível angústia do dram a c das suas sequelas, sobretudo as alu
sões m aldosas de certa im prensa (sobretudo quando o caso é o de um hom en
«conhecido»), as reacções de uns e outros, e talvez sobretudo o silêncio d<
alguns, tam bém eles, toda\ ia. m uito chegados. Sabem m uito bem que cada un
deles procurou pelo seu lado. ou fez tudo para estjuecer (essa tentati\ a im possí
\el) e que as suas confidências ameaçam afectar, dec ido às reacções do sei
amigo, à sua solidariedade fraternal, não só a fraternidade tjue os liga ao sei
amigo com um , mas a própria fraternidade que os ligava uns aos outros, ü qut
entre eles se joga não ê com efeito apenas a sorte do seu amigo, mas também,
tahez. sem dúvida, certam ente, a sorte da prétpriti amizade ciue os une.
Tal foi a razão — dado que até aqui todos puderam falar em vez de mim e
que juridicam ente me foi proibida qualcjuer explicação pública — p o r que
resoh i explicar-m e publicam ente.
Faço-o em prim eiro lugar para os meus amigos c se possível para mim : para
Iccantar esta pesada pedra tum ular que assenta sobre mim. Sim, para me libertar
sozinho, po r mim prceprio, sem o conselho nem o parecer seja de ciuem for.
Sim, para me libertar da condição na qual a extrem a graiidade do m eu estado
(me puseraj (os m eus m édicos julgaram-me por duas vezes fisicam ente m o ri
bundo), do m eu assassínio, e tam bém e sobretudo dos efeitos equívocos da
declaração de im procedência de que beneficiei, sem poder, nem de facto nem
de direito, opor-m e aos seus trâm ites. Porque foi sob a pedra tum ular da impro-
cedência. do silêncio e da m orte pública que ftii obrigado a sobreviver c a
aprender a viver.
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encorpado e pequeno, um tanto fechado, mas por trás do seu bigode recente,
bonito moço. O casam ento fez-se. com o então era costum e na região: sem his
tória. Mas nem do lado dos pais do meu avô nem do lado dos pais da m inha
a\ ó havia terra suficiente para instalar e alim entar o jovem casal. Iam ter cjue
descobrir um lugar para viverem noutro lado. Eram os tem pos de Jules Ferr\
e da epopeia colonial da França. () meu avó), nascido junto das florestas e não
querendo abandoná-las, sonhaca com uma carreira de guarda florestal em
Madagáscar! M adeleine não estava pelos ajustes. Antes do casam ento, precisara
em term os im perativos os seus pontos de vista: «Guarda florestal, está bem,
mas nunca mais longe do c]ue na Argélia, senão não caso contigo!» O meu at ò
tet e que ceder, seria a prim eira, mas não a últim a \ez. A m inha avó era uma
m ulher com cabeça, sabia o que queria, mas m antinha-se sem pre serena e
com edida nas suas decisões e pala\ ras. D urante a \ ida toda foi ela o elem ento
de equilíbrio do casal.
Foi assim que os Berger se expatriaram para a Argélia e que o m eu avô aí
fez uma carreira de guarda florestal nas m ontanhas mais recuadas e selvagens
cia .\rgélia, cujos nom es me voltaram à m em ória quando se tornaram , nos anos
60, os lugares pri\ ilegiados de refúgio e de com bate da Resistência argelina.
O meu avó arruinou a saúde cm interm ináveis correrias diurnas e n o c tu r
nas a cavalo. Os árabes e os berberes gostavam dele. Tinha p o r tarefa proteger
as florestas contra as cabras que trepavam às árvores e devoravam os rebentos
novos, mas sobretudo com bater os fogos, que podiam incendiar os bosques.
Mas estava tam bém encarregado de traçar estradas nos acidentes de um relevo
difícil, e de vigiar as obras, fím a noite, cjuando a neve cobria todo o m aciço de
Ghrca, partiu sozinho a pé para a m ontanha em socorro de uma ecjuipa de sue
cos c]ue po r lá se tinham aventurado e perdido. O m eu avó conseguiu, nunca
ninguém soube como. encontrá-los e fê-los chegar, três dias e três noites mais
tarde, extenuados, á casa florestal. Foi condecorado por este acto de dedica
ção: guardo ainda com igo a sua cruz.
Durante todo o tem po cpie duravam as suas saídas e obras, a m inha avó
ficava sozinha, dia e noite, na casa florestal isolada nas matas. Insisto neste
ponto, que não deixa de ser importante. Lançados sem transição do cam po
m ort andês. onde reinava a convivialidade cam ponesa tradicional, nas florestas
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ra/ia o seu serviço de observador. Depois Charles cham a a m inha mãe de parte
ao grande jardim e acaba p o r lhe p ro p o r (os term os foram -m e repetichts muitas
\ ezes pela m inha tia, Juliette) «tomar ao lado dela o lugar de Louis». Afinal de
«ontas, a m inha mãe era bonita, jo \e m e desejável e o meu pai gostar a deveras
do seu irm ão Louis. Pôs sem dúvida nas suas palavras toda a delicadeza possí-
\ el. A m inha mãe ficou po r certo transtornada pela notícia da m orte de Louis.
que amava profundam ente à sua m aneira, mas confusa e perplexa pelo aspecto
m esperado da proposta de Charles. Mas bem vistas as coisas, o caso assim não
'.lia da família, das famílias, e os pais só podiam dar o seu assentimento. Tal como
era e tal com o a conheci, atilada, \ irtuosa, submissa e respeitadora. sem outras
uleias próprias para além das tjue trocava com Louis, a m inha mãe aceitou.
O casam ento deve ter sido celebrado na igreja em Fevereiro de 1918. no
Llecorrer de uma licença de Charles. Faitretanto, a m inha mãe tornara-se, havia
,im ano, professttra prim ária em Argel, num a escola próxim a dtt parejue de
i.alland onde, à falta de Louis, encontrara hom ens que podia o m ir, e com
,;uem podia falar de temas sem pre de uma igual pureza: professores prim ários
tem pos áureos, consciências, responsáveis pela sua profissão e pela sua
:ni'-são, sensivelm ente mais velhos do que ela (alguns poderiam ser seus pais),
"c^peitadores da caheça aos pés da jovem que ela era. Pela prim eira \e z a
cunha mãe com pusera um m undo seu, que se sentiti feliz por conhecer e fre
quentar. mas nunca fora do quadro escolar. Lstavam as coisas neste pc quando
.m belo dia chegou o meu pai, \ indo da frente, e foi celebrado o casamento.
:\ m inha mãe escondeu-m e sem pre os porm enores deste casam ento hor-
v \e l. do qual não posso conservar e\id en tem en te tjualquer recordação pes-
- mI, mas de que a m inha tia, muittt tem po depois e muitas \ ezes, me falou. ,Se
: descrições tardias me im pressionaram tanto, não foi por certo sem razão:
eno-as ter rew stid o de um h orror bem meu para as inscrerer na linhagem
epetitixa de outros chociues afectiros com a mesma tonalidade e a mesma
lencia. Fm breve verem os que choc]ues foram esses.
( clebrada a cerim ônia, o m eu pai passou alguns dias com a m inha mãe
ntes de \o lta r a partir para a frente. m inha mãe conservou deles, ao que
irece, uma atroz e tripla recordação: a de ter sido violada no seu corpo pela
; lencia sexual do m arido, a de \ e r delapidadas p o r ele, num a noite de farra.
-íã
L o r 1 s 1 /, 7 H r S S li R
todas as suas econom ias de solteira (quem não com preenderia o m eu pai, que
ia \o lta r para a frente, sabia Deus talvez para m orrer, mas era tam bém um
hom em extrem am ente sensual que antes da m inha mãe tivera — horror! —
axenturas de rapaz incluindo um a amante cham ada Lotiise (esse nom e...) a
ciuem abandonara definitivam ente e sem um a palavra após o casam ento, uma
m isteriosa rapariga pobre da qual a m inha tia me falou tam bém com o sendo a
pessoa cujo nom e nenhum a pessoa da família devia pronunciar). Para com ple
tar tudo o m eu pai decide inapelavelm ente que a m inha mãe deve abandonar
im ediatam ente a sua profissão de professora prim ária, ou seja, o seu m undo de
eleição, pois teria filhos e ele queria-a em casa e só para ele.
A seguir volta a partir para a frente, deixando a m inha m ãe transtornada,
roubada e violada, dilacerada no seu corpo, de.spojada dos poucos tostões que
pacientem ente econom izara (uma reserva, porque nunca se sabe — o sexo e o
dinheiro associam-se aqui intim am ente), cortada sem apelo de um a vida cjue
aprendera a construir para si p rópria e a amar. Se forneço estes porm enores,
c porque eles contribuíram por certo para form ar retrospectivam ente, p o r
tanto para confirm ar e reforçar no inconsciente do m eu «espírito», a imagem
de uma m ãe m á r tir e a sangrar com o u m a fe r id a . Esta mãe associada a
recordações (narradas tam bém elas m uito depois), episódios de um a am eaça
de m orte precoce (evitada po r milagre), ia transform ar-se na mãe padecente,
votada a um a do r ostentada e cheia de recrim inações, m artirizada no dom icí
lio pelo m arido, com todas as suas feridas abertas: m asoquista mas por isso
m esm o tam bém terrivelm ente sádica, quer para com o m eu pai que tom ara o
lugar de Louis (e portanto fazia parte da sua m orte), quer para com igo (pois
não podia deixar de querer a m inha m orte, do m esm o m odo que esse Louis,
que ela amava, estava m orto). Perante este doloroso horror, eu iria sentir inces
santem ente um a angústia sem fundo, e a com pulsão de me dedicar a ela de
corpo e alma, de me consagrar oblativam ente a socorrê-la para escapar a uma
culpabilidade im aginária e para a salvar do seu m artírio e do seu m arido, bem
com o a convicção inextirpável de que tal era a m inha missão suprem a e a
m inha suprem a razão de viver.
Para mais. a m inha mãe via-se precipitada, desta feita pelo seu m arido,
num a nova solidão sem apelo possível, e com igo num a solidão a dois.
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r r I i R o / M r I I o E M p o
f todo o tem po que passám os em Argel (até 1930), eonser\'o duas ordens
J L ^ de reeordações insustentat elm ente e afortunadam ente contrastantes.
As dos m eus pais cuja vida em família partilhaea e da escola onde andava, e as
dos meus a\ ()s m aternos durante todo o tem po que \ it eram na casa florestal
do Bois de Boulogne.
A recordação mais longínqua que guardo do meu paí (mas tão «precoce»
tiLie por certo se trata de uma recordação encobrídora recom posta mais tarde)
é o pró p rio instante do seu regresso de França, seis meses após o fim da
(iiierra. F assim o que vejo ou creio ver, A m inha mãe que na obscenidade
elos seios quase descobertos me envergonha, transbordante de v ida. está comigo
ao colo quanelo se abre a porta do rés-do-chão, que dá para o grande jardim,
até ao infinito do m ar e do céit: na m oldura da porta, contra o fundo do ar
primaveril. surge uma silhueta altíssima e esguia, tra/endo atrás de si, por cima
da cabeça, nas alturas das nuvens, o longo charuto preto do D ixm ude, esse
dirigível alem ão cedido à França a título de reparação, e que dentro de ins
tantes se afundaria no incêndio e no mar. Não sei nem quando, nem sobre
tudo conto, mas devo, retrospectivamente, ter constituído ou reconstituído esta
imagem, em qtie o m eu pai me apareceu tendo po r pano de fiinekt um sím
bolo dem asiado claro, sexo e m orte na catástrofe, Mas esta associação, ainda
cjue seja efeito de uma construção retrospectiva, tem sem dúvida a sua im por
tância, com o veremos, no cortejo das m inhas marcas inaugurais.
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/ i / r R o f .1/ ( / y o r ! u !>
O meu pai era um hom em de elc\ada estatura (um m etro e oitenta e qua
tro). .senhor de um belo rosto alongado, mtircado por um nariz fino e bem
desenhado («um im perador romano»), enfeittido por um bigodinho que ele
eonservou inalterado até à m orte, com a testa alta e cheia de inteligência e
malícia. De facto, era na verdade extrem am ente inteligente e não apenas em
term os de inteligência prática. Disso deu provas aliás na sua profissão, uma \ ez
que. tendo entrado para o bttnco com o simples m oço de recados e com o
diplom a do ensino elementar, subiu todos os escalões da Com pagnie Algé-
rienne, a b so r\id a tardiam ente pelo Banejue de 1'Union Parisienne, c depois
pelo Crédit du Nord. Acabou cttmo director-geral das sucursais m arroquintis
da (iom pagnie Algérienne, depois com o director da im portante delegação de
Marselha, após uma dupla etapa, prim eiro em Marselha com o deleg;u.lo. depoí.''
em Lyon com o sub-director. A sua com petência e a sua com preensão d:is tjiie»-
tões financeiras e dos negócios, para não falar das técnicas e da organização d;i
produção (adttrava ir verificar pessoalm ente o andam ento de todos os uego-
cios em que o seu banco intervinha) foram m uito apreciadas pelos seu^ supç
riores de Paris, m otivo das suas prom oções e deslocaçêtes sucessi\as c «ias
peregrinações (entre Argel, Marselha, Casablanca e Lyon) que impôs à nossa
pequena família, com essas m udanças de casa de que a m inha mãe não para\ a
de se c(ueixar abertam ente a ejuem quisesse ouvi-la: tam bém neste capítulo, ela
não passava de um lam ento perp étu o que me fazia sttfrer horrixelm cnte
O meu pai, no fundo extrem am ente autoritário, e sob todos os aspectos
m uito independente, até m esm o e talvez sobretudo em relação aos scus. líttha
de uma vez p o r todas separado os dom ínios e os poderes: para a m ulher ape
nas o lar e os filhos, para ele a sua profissão, o dinheiro e o m undo exterior.
.\o cjue se referia a esta divisão m ostrou-se sem pre intratável. Nuncti tontou a
m enor iniciativa a respeittt do interior da casa ou da nossa educação Pni um
dom ínio em que a m inha m:ie dispunha de todos os poderes. Km co n trap ar
tida, nunca falou em família da sua profissão nem das suas relações no exterior
Icom cxcepção de r/o/s dos seus amigos que conhecem os atra\ és dele. e um
dos quais tinha um carro ciue nos levou um dia até à neve de Chré.i). St) seis
meses antes de m orrer, no pequeno pavilhão de Viroflay para onde se retirara
após a reform a, o meu pai falou. Deve dizer-se que fui eu quem ter e. ni:i:s tão
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!_ o r I s .I /, / II i s s /.
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lIoís hom ens qne espera\am à sua frente. Algumas palavras entre dentes, semi
c'tro p iad as e para mim totalm ente ininteligíveis, ü s seus colaboradores saí-
.am. sem perguntar mais nada. «Mas eles não perceberam ! — Não te aflijas;
hão-de perceber.» Foi assim cjue. p o r acaso, descobri com o dirigia o m eu pai
' seu banco. Esta im pressão seria confirm ada mais tarde por um dos seus anti
gos colaboradores cjue conhcci em Paris: «O seu pai. mal conseguíam os
cntendè-lo. e m uitas vezes saíamos sem nos atreverm os a fazè-lo repetir o que
nos dissera. — E depois? — Depois era a nossa vez de arriscar!» O m eu pai
governava» assim: sem nunca chegar a fazer-se entender bem. uma m aneira
nilvez de deixar os seus colaboradores perante um a responsabilidade que
otbiam sancionada, mas não explicitam ente definida. Conheciam sem dú\ ida
o seu ofício, ele form ara-os sem dúv ida havia m uito segundo a sua escola, e
'cm dúvida sabiam o suficiente do m eu pai para com preenderem em que sen
tido se inclinava, Nem sequer o seu m otorista chegava sem pre a entendè-lo
guando havia um novo itinerário! O m eu pai transform ara-se assim num a per-
'onagem cheia de bonom ia mas autoritária e a tal ponto enigm ática nos seus
vtrborigm os que os seus cttlaboradores tinham aprendido, para não sofrerem
.; dureza das suas reprim endas, a antecipar-lhe as decisões cjuase ininteligíveis.
Dura escola do «governo dos hom ens», que nem sec|uer Maquiavel teria imagi-
n.ido, e cujo êxito foi surpreendente. Antigos colaboradores do m eu pai que
^onheci após a sua m orte confirm aram -m e o seu estranho com portam ento e
'' respectivos efeitos. Não o tinham esquecido e falavam dele com uma adm i
ração que raiava a devoção: não havia ninguém com o ele. Um «tipàpartc».
Nunca soube que parte de consciência deliberada ou de indecisão
nterna, ou até de m al-estar interior, entrava no com portam enttt do m eu pai
:ais suas relações com os outros, senão m esm o consigo próprio. Foda a sua
^um petência e a sua inteligência tinham que coabitar com uma dificuldade
orofunda de expressão clara perante outrem , com um a reserva, não tanto de
princípio com o de factv), sustentada po r uma reticência ancorada na alma. Este
iiomem autoritário, arrebatado às vezes po r explosões violentas, via-se ao
lesm o tem po e sem dúvida profundam ente paralisado na sua expressão po r
ama espécie de im potência em se m ostrar perante outrem , m edo que o preci-
mtava na sua reserva e o tornava incapaz de decisões claram ente afirmadas.
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o y r 7 r K o M I / / o / /; 1/ P (J
\ ivia sem parar na apreensão dos seus gritos de fera insustentáx eis que nunea
pude esqueeer. Q uando mais tarde, assum indo eom extrem a agressi\'idade a
defesa da m inha mãe m ártir contra ele, eu o provoca\a até ao limite da sua
paciência, o meu pai levantava-se m uito direito, saía da mesa antes de acabar
a refeição, e soltando a única palavra que então di/ãa, «Fautré!» ', batia com a
porta e sumia-se na noite. Apoderava-se de nós, ou pelo m enos apoderava-se
de mim, uma angústia atroz: o meu pai abandonara a m inha mãe. abandonara
-nos (a m inha mãe parecia indiferente): teria partido para sempre? \o ltaria ou
desapareceria de \ez? Nunca descobri o que fazia ele nessas alturas, quando
ficava sem dúvida a vaguear nas ruas nocturnas, iMas de todas as vezes, ao cabo
de um tem po que me parecia interm inár el, voltava a entrar e sem dizer palac ra
ia deitar-se, sozinho. Sempre me perguntei o que poderia ele dizer depois à
m inha mãe. a mártir, ou se lhe diria sequer alguma coisa. Achava-o incapaz de
lhe dizer fosse o que fosse. F. tanto antes com o depois da sua explosão, tín h a
mos direito ao m esm o hom em , incapaz de nos tratar de outro m odo que não
fosse mtxstrar-nos silenciosa e ostensivam ente «má cara». Depois, tudo pas-
'a^ a.
Mas isto era só um dos aspectos da sua pessoa. Q uando estava com am i
gos (os raros que conhecíam os), longe das preocupações do trabalho, tornava-
se de uma ironia m ordaz e irresistível. Brincava com as pessoas e consigo p ró
prio, acumulava as intervenções espirituosas e as arrem etidas provocadoras,
sempre mais ou m enos carregadas de alusões sexuais, tudo com um a htrça de
inrençáo incrível, aprisionando os interlocutores no seu riso, riso cúm plice e
t.imbém mal-estar: era dem asiado forte e ninguém frente a ele ctmseguia ter a
última palavra. Ninguém, c m enos do que todos os outros a m inha mãe. era
capaz de entrar no jt)go dele e de enfrentar os seus assaltos. Tratava-se pr>r
certo de um a defesa ainda, para evitar ter que dizer acjuilo que pensara ou
qtieria, talvez p o r não saber ao certo o que queria, mas não ciueria, sob o \é u
transparente de uma ironia desenfreada, senão dissim ular um mal-estar e uma
' í a n tr i' paluMu invcniaüd pelo pai üc l.oiii.s Altluis.scr. c om bina ndo pro\ avclmcntc «íaute»
■isncira). «outre ■ (indignado) c «lallcv \ o u s íairc) fouirc» (foda sc). Isto com base numa informação
i'>rnccida pelos organizadores da edição francesa. ( \. d o 7. )
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/ o I I s A / 7 H r S S /. K
indecisão profundos. Acima cie tudo gostar a de p ro ro car as m ulheres dos seus
amigos, cjue espectáculo! E eu sofria pela m inha mãe a \ ê-lo fazer-lhes assim
uma corte «escandalosa». Excitava-o particularm ente a m ulher de um dos seus
colegas de escritório, um dos raros amigos cjue lhe conhecíam os. Ela cham ava
-se Suzy, era um a m ulher bastante bonita, cheia de vida, segura dos seus
encantos e encantada por se r e r provocada daquela m aneira. O m eu pai lan
çava o assalto diante de nc>s, e com eçava um torneio erótico interm inável que
fazia Suzy derreter-se de confusão, riso e prazer. Em silêncio eu sofria pela
m inha m ãe e pela ideia Cjue eu pró p iro d evia fazer do m eu pai.
De facto, este hom em poderoso era profundam ente sensual, gostava de
\ inho e de carnes mal passadas, tanto com o gostava de m ulheres. Foi então
cjue um belo dia, em Marselha, a m inha m ãe se encantou po r um certo dr.
Om o — mais um espírito puro que conquistou a sua ingenuidade. O m édico
possuía um a bela casa de cam po nos jardins floridos do norte da cidade, onde
cultiva\a os legumes que com punham a sua dieta, e pregava um vegetaria
nism o estrito (uns frascos pequenos que vendia razoavelm ente caros). A m inha
mãe obrigou-nos então, à m inha irm ã e a mim, a seguir com o ela um regime
puram ente vegetariano — e que se prokm garia po r seis anos! O m eu pai não
levantou qualquer objecçào, mas exigiu continuar a ter todos os dias o seu bife
em sangue. Então nós com íam os co m es, castanhas e uma m istura de mel e
am êndoas ostensivam ente raladas diante dele. que partia tranquilam ente a sua
carne, enejuanto lhe m anifestávam os com toda a clareza a nossa com um rep ro
vação. Acontecia-me então provocá-lo e atacá-lo com extrem a violência:
nunca me re.spondeu, mas po r vezes saía-lhe; «Fautré!»
E verdade que o m eu pai procurava de quando em quando um a cum plici
dade da m inha parte. Levou-me algumas vezes ao estádio, onde adorava
introduzir-se sem pagar, sob o olhar cúm plice de um empregadet do banco que
arredondava os seus rendim entos vigiando as entradas. Fascinava-me a sua arte
de «entrar à borla». Coisa em cjue eu não me atreveria sequer a jvensar, ins
truído com o fora pela m inha mãe e jselos m eus m estres nos grandes jvrincíjsios
da honestidade e da virtude. Mau exem plo que me deixou uma recordação
m edonha, à entrada de um estádio de tênis, ü m eu pai entrou com o habitual
m ente sem jsagar. Eu, que ia atrás dele, não jvude entrar. E ele deixou-m e ali
o F r M r I 1 F M p o
ficar sozinho. Mas mais tarde seria um a séria inspiração para mim a sua arte
das «borlas». Ele entrava, eu seguia-o, assistíam os ao desafio, que se desenro
lava num a atm osfera tum ultuosa. Lembro-me de que po r duas vezes, em Saint-
-Hugène, houve tiros entre o público. Sempre tiros! (Que sím bolo...) Tremia
com o se m e fossem destinados a mim.
É aliás desse tem po que guardo um a horrível recordação. Andavam en
tão a explicar-nos nas aulas as Cruzadas, e as cidades pilhadas e incendiadas,
os seus m oradores passados a fio de espada: o sangue corria pelas \aletas
das ruas. Eram tam bém em palados num erosos indígenas. Eu tinha um sem
pre diante dos olhos, um que assentava sem qualquer outro apoio na lança
que se lhe enterrava lentam ente pelo ânus até ao ventre e ao coração, sendo
só então que ele m orria no m eio de sofrim entos atrozes. O sangue corria-lhe
ao longo da lança e das pernas até ao chão. Que terror! Era eu que era então
trespassado pela lança (talvez p o r esse Louis m orto que continuava a trá s de
mim). Conservei desse tem po um a outra recordação que se me deve ter
deparado num livro. Uma vítim a era fechada num a virgem de aço m unida de
alto a baixo de longas pontas finas e duras que lhe furavam lentam ente os
olhos, o crânio e o coração. Era eu quem estava fechado na virgem de aço.
Que atroz m aneira de m orrer lentamente! Ficava durante m uito tem po a tre
m er de m edo e sonhava com isso à noite. Acreditem se quiserem , mas a ver
dade é que não faço, nem aqui nem noutras passagens, uma «auto-análise»,
deixando esse trabalho para todos os finórios de um a «teoria analítica» à
m edida das suas obsessões e fantasmas próprios. Descrevo sim plesm ente os
diversos «afectos» que m e m arcaram para toda a vida, na sua form a inaugural
e na sua filiação retrospectiva.
Uma outra vez, um a só vez, o m eu pai, esse hom em regressado da guerra
com inúm eras fotografias da sua divisão de artilharia, onde o víam os sempre
de pé em frente de canhões gigantescos, peças de longo alcance, levou-me a
uma carreira de tiro m ilitar em Kouba. Fez-me apontar com a pesada espin
garda de guerra encostada ao om bro. Senti no om bro um chociue terrível e caí
de costas no m eio do estam pido insuportável da detonação. Ao longe agi
taram-se bandeirolas indicando que eu falhara o alvo. Teria talvez nove anos.
O m eu pai sentia-se orgulhoso de mim. Eu continuava aterrado.
53
L O l / ,S ,1 L 7 H l' V V 7: 77
Mas quando, mais tarde, a m inha candidatura foi aceite (m uito para o
. ; ' da lista, eu cjue era tão bom aluno) no concurso para as «bolsas» de 1929,
leu pai perguntou-m e que cjueria que me desse ele com o prenda. Respondi
' l :ii hesitar «uma carabina 9 mm da M anufactura de Armas e Bicicletas de
'..int-Htienne», cujo catálogo eu po r essa altura devorava e tantas coisas ciue eu
n.inca tivera nem \ ira. ao alcance do meu desejo.. ). b consegui sem mais difi
culdades a m inha carabina com cartuchos e balas, ante a reprovação da m inha
ni.le. mas sem que o m eu pai discutisse po r um segundo sequer a m inha esco-
I h. i — essa carabina da qual faria um dia um tão estranho uso.
Desde m uito cedo cjue me tornara bastante hábil em toda a espécie de
iiros: no atirar pedras a latas de c o n ser\a vazias, na funda tam bém . Experi-
ruentei atirar aos pássaros, mas falhava sempre. Hxcepto um dia, no cam po do
n e ii a\ ò em Bois-de-Vélle, quando me pus a caçar frangos que vinham bicar os
ur.uis das semeaduras. De bastante longe (a uns vinte m etros) avistei um belo
u.il ) w rm elh o perto da sebe. \'isei-o com a m inha funda, e com terror vi o
u.do. atingido em cheio num olho, saltar de dor, bater \ iolentam entc com a
^.fnvça no chão c fugir aos tropeções. Fiquei com o coração a galopar durante
;v ir.i',
(^luanto à carabina, eis o que se passou. De início só me servia dela para
ue treinar com alvos de papelão, com os quais me saía bastante bem. Mas um
cm que estávam os num a pequena propriedade. Les Raves (Os Rabanetes),
cc.ic o meu pai achara p o r bem adquirir num a zona inacessí\el de tão alta,
ttcti-me pelos bosques com a m inha carabina na mão cm busca de alguma
re-.i \()látil. Avistei de repente uma rola e atirei: a rola caiu, procurci~a inutil-
: ente entre as e r\a s secas, convencido no fundo de cjue falhara o tiro e de que
el.i «o caíra po r m anha, para me escapar. C ontinuei o meu cam inho e veio-mc
Ce 'u b ito ã ideia, sem ter alguma vez pensado no assunto e sem saber porquê,
. je poderia apesar de tudo tentar matar-me. O rientei então o cano da arma
, :itra o meu ventre e ia a carregar no gatilho quando me reteve uma espécie
lIc escrúpulo, nunca soube p o r que motivo. Abri então a culatra: havia uma
vi!,i l.i dentro. Com o podia ela ali estar? Fosse com o fosse não fora eu quem
.1 .i pusera. Nunca soube com o foi que aquilo aconteceu. Mas ficiuei brusca-
n e n te c oberto de um suor de pânico, trem iam -m e os m em bros e tive que me
~i4
o /• f / r /*■ o I M I / 7 o I h \í P O
deitar dem oradanicnte na terra antes de r oltar para a quinta, mais do que p e n
sativo. Uma vez mais se tratara da m orte: mas directam ente da m inha, desta
feita.
Não sei porquê, aproxim o esta recordação de uma outra, posterior, que
desencadeou em mim o m esm o terror pânico. Em Marselha, a m inha mãe e
eu, depois de sairm os do nosso apartam ento da rue Sébastopol, tínham os
m etido para cortar cam inho p o r urna larga trans\ersal ladeada de m uros
altos. Avistámos então, ao longe no passeio da direita, duas m ulheres e um
hom em . As duas m ulheres, em fúria e aos gritos, batiam-se \ iolcntam ente.
Ihiia estata caída no chão. a outra arrastava-a pelos cabelos. () hom em , ao
lado, imóvel, contem plava a cena sem intervir. Q uando passám os p erto do
grupo ele soltou em nossa intenção um aviso perfeitam ente sereno: «Cui
dado, ‘ ela" tem um revólver!» A m inha mãe continuou o seu cam inho, cris-
pada, olhando para diante, sem nada querer \e r nem ou\ ir, cxtmpletamente
insensível. Nem som bra de em oção. Nunca me disse um a palavra sequer
sobre este dram ático incidente. Era claro para mim que devia ter intervindo.
Mas eu era um cttbarde. Deviam reinar relações bem singulares entre a m inha
mãe e eu, entre a m inha mãe e a m orte, entre o meu pai e a m orte, entre
mim e a m orte. Só as com preendi infinitam em e mais tarde, durante a m inha
análise.
T i\e realm ente um pai? Sem dúvida, usava o nom e dele e ele ali estava,
presente. Mas n o utro sentido: não. Porque ele nunca interveio na m inha \ ida
para a orientar m inim am ente, nunca me iniciou na sua que me teria podido
servir de introdução quer à defesa física, nas lutas de garotos, quer mais tarde
ã virilidade. Neste últim o capítulo foi ainda a m inha mãe quem por dever tra
tou das coisas, apesar do h o rro r que lhe inspiras a tudo o que dissesse respeito
ao sexo. Ao m esm o tem po, o m eu pai procurava m anifestam ente mas sem pre
em silêncio a m inha cum plicidade: na sua prática de borlista com o mais tarde
nas suas alusões ãs m inhas relações femininas. Naturalm ente que nunca quis
ouvir falar das m ulheres que eu pudesse conhecer, nem do que pudesse fazer
com elas, mas sem pre que me despedia dele. ele lançaca em m inha intenção,
diante da m inha mãe silenciosa, um a simples frase que nãtt exigia nem co m en
tário nem resposta: «Fá-la feliz!» La!'
i o r / ,s .) /. I n V V s n R
Pensava sem dúvida que fizera a m inha mãe feliz! Mas ter-se-á tornado já
e\ idente que tal não era o caso: no fundo o m eu pai era dem asiado inteligente
para alim entar a esse respeito a m ín im a ilusão. A m inha mãe era em nova
unta m ulher m uito bela, onze anos mais nova do que o meu pai, uma eterna
criança que passara sem transição da tutela dos pais para a do m arido, sem
qualquer experiência da vida, nem dos hom ens nem das m ulheres: tendo por
única e eterna nostalgia no seu coração a m em ória desse Louis, desse esguio
noi\ ü m orto no céu, e dos professetres prim ários com ejuem se cruzara durante
a sua efêm era carreira profissional, a que o m eu pai bruscam ente a arrancara.
T i\era igualmentc, em Argel, um a única amiga da sua idade, um a rapariga tão
pura com o ela, que se fizera m édica, mas fora brutalm ente arrancada à existên
cia pela tubercuktse. Chamava-se Georgette. Q uando nasceu a m inha irmã,
m uito naturalm ente a m inha m ãe deu-lhe o nom e da amiga m orta: Georgette.
■Mais um m tm e próp rio de m orto.
A m inha mãe, sobre o pequeno, loura, rosto regular, belíssim os seios t]ue
vejo com um a espécie de repulsa na m inha m em ória, cpier dizer, nas fotogra
fias dela, am ou-m e sem dúvida profunclamente. Era o prim eiro filho do seu
corpo, e um rapaz, seu orgulho. Q uando nasceu a m inha irmã, vi ser-me c o n
fiado o cuidado de olhar por ela a todo o m om ento, de a am im ar e mais tarde
de lhe dar a m ão para atravessar as ruas com todas as precauções devidas, e
mais tarde ainda de cuidar dela pela c ida fora e em todas as ocasiões. Cum pri
fielmente, o m elhor possível, esta missão de criança e adolescente prom ovido
a uma tarefa de hom em , ou m esm o de pai (o meu pai tinha pela m inha irm ã
fraquezas cpie me revoltavam, e suspeitava abertam ente de que ele procedesse
a tentativas incestuosas quando a sentara ao colo de um a m aneira que me
parecia obscena), missão que, pela gravidade solene de que se revestia, devia
ser esm agadora para a criança de pouca idade que eu era de com eço e m esm o
para o adolescente que depois fui.
A m inha mãe não parava de me explicar que a m inha irmã era frágil (sem
dúvida com o ela própria) por ser mulher, e conservo ainda no espírito um a
outra recordação obscena c(ue me horrorizou e escandalizou. Estávamos em
Marselha, a m inha m ãe lavava a m inha irm ã nua na banheira do nosso aparta
mento. Igualm ente nu. eu esperava que chegasse a m inha vez. O uço ainda a
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/• r V r o w r / / o 7 /; .1/ r o
m inha mãe dizer-m c; «Estás a ver, a tua irm ã é um ser frágil, está m uito mais
exposta do que um rapaz aos micróbios» — e juntou o gesto à voz para m ostrar
m elhor as coisas — «tu S(3 tens cíoís buracos no corpo, mas ela, ela tem très>K
Senti-me inundado de vergonha p o r esta intrusão brutal da m inha mãe no
dom ínio da sexualidade com parada.
Vejt) hoje hem cjue a m inha mãe vivia literalm ente dom inada pelas fobias:
tinha m edo de tudo, m edo de se atrasar, m edo de deixar de ter (bastante)
dinheiro, m edo das correntes de ar (estava sem pre com dores de garganta, e eu
tam bém até à altura do m eu serriço militar, tiuando a deixei), um m edo in
tenso dos m icróbios e do seu contágio, m edo das m ultidões c do seu ruido.
m edo dos vizinhos, m edo dos acidentes na rua e noutros lugares, e acima de
tudo m edo dos maus encontros e das com panhias duvidosas que podem dar
maus resultados: falemos claro, acima de tudo, m edo do sexo, do roubo c da
violação, quer dizer, m edo de ser agredida na sua integridade corporal e de
com isso perder a integridade problem ática de um corpo ainda fragmentado.
G uardei dela ainda outra recordação, c|ue para mim tudo excedeu reco
berta por afectos posteriores, mas de uma lem brança dos meus treze ou
catorze anos, extrem am ente precisa e isolada enquanto tal, sem que qualcjuer
p o rm en o r se lhe tenha depois acrescentado. Que o seu afecto tenha sido
retrospectivam ente reforçado por outros incidentes do m esm o tettr. é possível
e verosímii, mas esses incidentes limitaram-se depois a acentuar no seu sentido
próprio a \erg o n h a atroz que na altura senti e a m inha revolta indignada.
Estávamos cm Marselha, e eu andaria pelos m eus treze anos. Desde há
algumas sem anas observo com um a satisfação intensa que à noite prazeres
\ ivos e escaldantes me chegam do m eu sexo, seguidos de um apaziguam ento
agradáv el — e de m anhã grandes m anchas opacas aparecem nos m eus lençóis.
Terei sabido que aquilo eram poluções nocturnas? Pouco im porta: seja com o
for, sei m uito bem que se trata do m eu sexo. Ora, certa m anhã depois de me
ter levantado ettm o de costum e e quando estou a tom ar o pequeno-alm oço na
cozinha, a m inha mãe entra, solene e grave, e diz-me: «Vem cá, m eu filho.»
Leva-me até ao m eu quarto. Diante de m im abre os lençóis da m inha cama,
aponta-m e com o dedo sem lhes tocar as grandes m anchas opacas e en d u re
cidas dos m eus lençóis, contem pla-m e p o r um m om ento com um orgulho
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L O r / ,s I l. i II r s s F R
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•r 7 i: R o 7: M r I r o 7 7; M p o
Q uando estávamos em Argel, a m inha mãe mandava sem pre acom panhar-
me até à escola da com una, distante de onde m oravamos (rue Station-Sanitaire)
apenas trezentos m etros e com um a só rua tranquila para atravessar, uma criada
indígena, cujos serviços contratara. Para que não houvesse atrasos (essa fobia
da m inha mãe), chegavamos m uito adiantados diante da escola. Os rapazes, fran
ceses e indígenas, jogav am ao bilas contra as paredes ou corriam com grandes
gritos, a ver qual chegava primeiro, na sua liberdade infantil. Eu, pelo meu lado,
chegava hirto com o o dever cum prido, acom panhado pela m inha «mourisca»
sem pre calada, desprezível e envergonhado até ao mais fundo da alma daquele
privilégio de rico (quando nesse tem po éram os pobres), e em vez de esperar
cá fora que a porta da escola se abrisse, tinha, graças à protecção dos antigos
colegas da m inha mãe, o privilégio de entrar sozinho e antes dos outros todos,
para ficar ã espera no pátio que os professores chegassem. Invariavelmente, um
deles, um hom em alto, seco e delicado, parava diante de mim e perguntava-me,
nunca soube porquê: «Louis, com o se cham a o fruto da faia? — A fa fn e » '
icom o ele me ensinara). Dava-me um a palm adinha na cara e ia-se em bora. Uns
bons dez m inutos mais tarde, a m inba solidão terminava.- todos os m iúdos entra-
\ am a correr e a gritar, mas para se precipitarem nas salas de aula: acabava-se
a m inha esperança de me juntar a eles. Suportava, se assim posso dizer, cheio
da vergonha que me acabrunhava ao ser assim designado com o «menino bonito»
dos professores, essa cerim ônia insuportável, que tinha por único fim tranqui
lizar a m inha m ãe contra todos os perigos da rua.- as más com panhias, o co n tá
gio dos m icróbios, etc.
Nova recordação violenta. Um dia em que estou no pátio, durante o
recreio, jogo ao berlinde com um rapaz m uito mais pequeno do que eu. ,Sou
m uito hábil no jogo do bilas e ganho sempre. E eis que abafo todos os berlin
des do miúdo. Mas ele quer a todo o custo ficar com um. O que é contra as
regras do jogo! E de chofre, sem que saiba de onde me vem este im pulso vio
lento, atiro-lhe uma bofetada com toda a força. Ele foge. E eu. acto contínuo,
Lorro atrás dele, indefinidam ente, para reparar o irreparável: o mal que lhe fiz.
Decididam ente, bater era-me intolerável.
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L O I / ,S A l. T H r ,S S E R
E já que estou a falar das recordações mais m arcantes desse tem po, aqui
\ ai outra. Estou na sala de aula com o excelente professor que entre todos me
estima. O professor está a escrever no quadro de costas para nós. Nesse
m om ento o rapaz que está precisam ente atrás de mim dá um peido. O profes
sor vira-se e olha para mim com um olhar desolado, cheio de recrim inações:
«Tu. Louis...» Não digo nada, a tal ponto me convenço de que fui eu o autor do
peido. Fico coberto de vergonha, com o qualquer autêntico culpado. Em deses
pero de causa, conto o caso à m inha mãe, que conhecia m uito bem aquele p ro
fessor ejue a orientara na sua form ação, e de quem ela gostava m uito: «Tens
m esm o a certeza de que não foste tu quem» (não se atreveu a dizer a palavra)
«fez essa coisa m edonha? Ele é tão bom hom em , não se pode ter enganado.»
Sem com entários.
A m inha mãe amava-me profundam ente, mas só m uito mais tarde, à luz
da m inha análise, com preendí de que m odo. Diante dela e fora dela sentia-me
sem pre esm agado por não existir p o r m im p ró p rio e para mim próprio. Tive
sem pre a im pressão de que havia ali um a distribuição de cartas errada, e que
não era deveras para mim que ela olhava nem deveras eu quem ela amava. Não
a quero acusar de m aneira nenhum a, ao indicar este aspecto-, a infeliz vivia
com o podia aquilo que lhe acontecera; ter um filho que não conseguira im pe
dir-se de baptizar Louis, o nom e do hom em m orto que amara e na sua alma
amava ainda. Q uando me olhava, não era eu sem dúvida que ela via, mas, por
trás de mim, nas m inhas costas, no infinito de um céu im aginário para sem pre
m arcado pela m orte, u m outro, esse ou tro Louis cujo nom e eu usava, mas que
não era eu. esse m orto do céu de Verdun e puro céu de um passado sem pre
presente. Eu era assim com o que atravessado pelo seu olhar, desaparecí para
mim nesse olhar que me sobrevoava para alcançar na distância da m orte o
rosto de um Louis ejue não era eu, que nunca seria eu. R econstituo aqui o que
vivi e o que com preendí do que vivi. Pode fazer-se sobre a m orte toda a litera
tura e toda a filosofia que se queira; a m orte, que circula ptar toda a parte na
realidade social onde é «investida», do m esm o m odo que a m oeda, nem sem
pre está presente sob as mesmas form as na realidade e nos fantasmas, No meu
caso. a m orte era a m orte de um hom em que a m inha mãe amava acima de tudo.
para além de mim. No seu «amor» po r mim, alguma coisa me penetrou
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/■ r / r /í (; r .V/ r / 7 7) /■ /; .1/ p o
e m arcou desde a prim eira infância, fixando p o r m uito tem po o que devia ser
o meu destino, já não se tratava de um fantasma, mas da própria realidade da
m inha r ida. É assim que para cada um o fantasma se torna vida.
Mais tarde, adolescente, quando vivi em Larochemillay com os m eus avós
m aternos, sonhei ter o nom e de jaeques: o do meu afilhado, o filho da sensual
Suzv Pascal. Talvez seja jogar um tanttt em excesso com os fonem as do signifi-
cante — mas o j de Jaeques era um jacto (o do esperm a), o a profundo (Jc/c-
ques) o m esm o que o de C harles, nom e do m eu pai, o qties com excessiva evi
dência a queue '. e jaeques era ainda x ja eq u e rie, a surda revolta cam ponesa
de cuja existência eu tom ara então conhecim ento através do meu avó.
Em todo o caso, desde a prim eira infância, tive direito ao nom e de um
hom em que não deixara de viver de am or na cabeça da m inha mãe: o n o m e
de u m m orto.
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V
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O I I J I K U M ( (j / l
mãe (com o se seduz uma pessoa de passagem , uma estranha) para cjue ela cor
sentisse em olhar-m e e amar-m e po r mim próprio. Não só no sentido correm
em ejue o rapazinho tiuer, com o já dizia D iderot, «deitar-se com a mãe», m;
no sentido mais profundo a que necessariam ente devia decidir-me. para cor
quistar para mim o am or da m inha mãe, para me to rn ar eu própritr no hom ei
que po r trás de mim ela amava, no céu da m orte para sem pre puro: sediizi-l
rea liza n d o o seu desejo.
Tarefa possível e impossír el! Porque eu não era esse outro, não era no fund
de mim esse ser tão ajuizado e tão punr que a minha mãe sonhava em mim. Quani
mais longe fui, mais senti com efeito as formas, até m esm o violentas, do mc
proprio desejo, e antes do mais esta forma elementar: não vi\ er no elem ento nei
:ii) fantasma da m orte, mas existir para mim próprio, sim, sim plesm ente exist
c antes do mais no m eu corpo que a m inha mãe tanto desprezava, porque (t:
.v m o esse Lotus que continuava a amar) lhe tinha horror.
De mim, rapazinho, conservei a imagem de um ser magro e m ole c
-nibros estreitos, c]ue nunca seriam os de um hom em , com a cara branc:
prim ida po r um a fronte dem asiado pesada e perdido na solidão das ále;
r.incas de um parque im enso e \azio. Não chcga\a sequer a ser um rapaz, m;
. penas um rapariguinha fraca.
Esta imagem, que me perseguiu durante m uito tem po, e cujos efeitos ;
;'..,inifestarão mais tarde, nítida com o uma recordação encohridora, redesce
»:i-a p o r milagre soh form a m aterial num a fotografiazinha recolhida entre <
.ipéis do meu pai depois da sua m orte.
Sou realm ente eu, aejui estou L)e pé, num a das imensas áleas do parqt
, c (lalland, em Argel, p erto da nossa casa. Sou efectivam ente este rapaz magí
, rr.igil. sem om bros, a cabeça com um a testa dem asiado grande coberta pt
chapéu, também ele pálido. Seguro pelo braço esticado, um cão minúseul
^lo Senhor Pascal, m arido de Suzy), esse m uito vivo e puxando a trela. S
: : grafia, exceptuando o cãozinho, estou só: ninguém nos arruam entt
/los Dir-me-ão que esta solidão pode não querer dizer nada, ejue o Sr. Pasc
. 'Oerara que os transeuntes desaparecessem . A realidade é a seguinte; esta sol
: tah ez desejada pelo fotógrafo, reuniu na m inha lem brança a realidade
r.intasma da m inha solidão e da m inha fragilidade.
6.S
/ o I I V .1 / / II r s s i k’
l’or mcioníniia, a Ccolt Normalc SupOricurc, sediada na rue d l Im, cm Paris. (.V do T.)
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o ? '/ r R o \i i /: i; p o
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i o r I s ,1 /, 7 II r s s i: A’
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F c r r F o M r / / o T F M F o
- 1 pai nos apresenta^'a. Para dizer a verdade ha\ ia um único: esse Pascal,
ega de escritório do m eu pai, seu subordinado, cabelo parco, m acio com o
ado, sem som bra de vontade própria diante da mtilher, a petulante Suz\.
\u m ano em t]ue a m inha irm ã apanhara \aricela (era uma criança que
:,;\a sem pre doente) a m inha mãe, para evitar o contágio (uma vez mais)
aiLi aos Pascal ejue me recebessem em casa deles. Conheci então o seu ninho
aichegado de casal sem filhos e as suas manias, o esplendor de Suzy, \o lu p -
'i , sem pre de seios à m ostra, e a sua calorosa autoridade, bem com o a
na de M, Pascal cpie lhe ohedecia em tudo com o o cãozinho que condu-
pela trela no grande jardim do parque, Na m inha cama, eu tinha sem pre o
lvuo pesadelo: do cim o do arm ário saía um anim al m uito com prido, de\a-
" uma longa serpente sem cabeça (castrada?), uma espécie de m inhoca
-,imesca que descia na m inha direcção. Acordava a gritar, Suzy acudia e aper-
,-m e generosam ente contra o seu peito generoso, Eu sossegava.
( crta m anhã, acordei tarde. C om preendí que o Sr. Pascal já saíra para o
^.ilho. l.evantei-me e, aproxim ando-m e com cautela, ouvi, por trás da porta
Lozinha, Suzy que se afadigava (o pequeno-alm oço ou o lavar da louça?).
^ei com o o soube, mas sonhe que ela estava n u a na cozinha. Im pelido
- um desejo irresistível, e seguro, vá-se lá saber como. de cjue não corria o
;.or risco, abro a porta e contem plo-a longam ente: nunca vira um corpo nu
mulher, os seios, o \e n tre e o seu velo e as fascinantes nádegas! A atracção
:ruto proibido (eu teria talvez uns dez anos)? O esplendor sensual das suas
-:n.iv transbordantes? Saboreio longam ente o meu prazer. Depois ela dá por
c. longe de me ralhar, puxa-m e para si e fica longam ente a beijar-m e con-
" seus seios e entre as suas coxas cjuentes. Nunca mais voltám os a falar no
',:nto os dois. Mas nunca esejueei esse m om ento de «fusão» intensa e sem
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VI
Q
ueridos avós! A a \ó direita e magra, de olhos azuis claros e francos.
sem pre activa mas ao seu próp rio ritm o e sem pre generosa para com
todos, sobretudo para com igo tiue adorava mas sem ostentação, para todos
refúgio da serenidade e da paz. Sem ela, o m eu avô nunca teria sobrevivido ao
seu trabalho extenuante nas florestas da Argélia. As suas filhas... deve tê-las
educado segundo princípios de saúde e de virtude, que fizeram de ambas belas
raparigas aprum adas e puras, O avô nervoso, inquieto, sem pre a resm ungar e
a soprar p o r trás do seu boné c dos seus bigodes, mas b o ndoso com o nin
guém: os dois constituíam a m inha verdadeira família, a m inha única família,
os m eus únicos amigos no m undo.
lé m cpie se reconhecer que os espaços rasgados onde vivi junto deles,
onde fui ter com eles, eram de m olde a exaltar um a criança, até então enclau
surada na solidão de exíguos apartam entos citadinos — a m enos que, mais
verosim ilm ente afinal, fosse a sua presença e o am or que m e dedicavam e que
eu lhes retribuía ao transform ar num paraíso de criança as casas, os bosques e
os cam pos onde eles viviam.
Foi de início, antes de o meu avô se reform ar para voltar ao Morvan natal,
a grande casa florestal do Bois de Boulogne, dom inando o conjunto de Argel,
e foi mais tarde, por fim, a casinha de Larochem illay (Nièvre) com o seu jardim
e os seus cam pos de Bois-de-VelIe.
O Bois de Boulogne! (ionserco uma lem brança deslum brante da sua casa
florestal aninhada no centro de um jardim enorm e. As divisões eram baixas
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V U 7 i' R O M U l 1 O 7 7: M P O
trescas. Descobri nela um a lavandaria som bria e m isteriosa onde corria uma
.;ua eterna: um a estrebaria onde cheirava ao feno doirado do penso, onde se
c'pirava o m aravilhoso esterco de cavalo e o arom a luzidio de dois esplèndi-
: animais de raça palpitantes de \úda nos seus flancos lisos: os belos cavalos
:c sela de que o m eu avô cuidava com igo para os Senhores da Direcção. Conti-
■jo a achar os cavalos os anim ais mais belos do m undo, infinitam ente mais
cios do que os mais belos seres hum anos. Uma noite, os animais fizeram
' Liito barulho, assustando-m e: tinham sido sem dúvida ladrões de galinhas,
r.as os cavalos, mais vigilantes do que os cães, tinham -nos posto em fuga com
'Cu alarme.
A vinte m etros de casa erguia-se um tanque com prido e alto e, quando me
c antavam em braços, eu via lá dentro estranhos peixes pálidos, verm elhos,
crdes e violeta, desaparecendo lentam ente debaixo das com pridas ervas
caras e flexíveis que frem iam. Mais tarde, ao ler Lorca, voltaria e encontrá-las.
c'^as flexíveis coxas de truta da m ulher adúltera que parte para o rio: peixes
or.u essando os caniços que se entreabrem .
Ha\ ia na casa florestal canteiros de flores fabulosas (aquelas aném onas,
.tciueles frésias de perfum e erótico e violento, aqueles ciclam es tím idos e
" de-rosa, com o o cor-de-rosa fem inino da Simone de Bandol, mais tarde,
I 'u a folhagem verde-negra), onde, na Páscoa, a m inha irm ã e eu íamos pro-
r.ir os ovos de açúcar, muitas v^ezes já encetados pelas formigas. c[ue lá
n.mi sido escondidos em nossa intenção; e os gigantescos gladíolos multi-
rc'. de que o m eu pai levava todos os dom ingos um grande ram o para os
crcccr longe da nossa presença a um a «jovem lindíssima», de nom e belga.
_ c nunca vimos. E a im ensa horta cheia de nespereiras do Japão! Essas nespe-
. Davam frutos ovais de um am arelo pálido que continham um par
. ..ido de caroços castanhos escuros, lisos e brilhantes e duros com o testícu-
' de hom em (mas é claro que então eu nada sabia disso, pelo m enos cons-
, ■itemente], caroços que eu acariciava dem oradam ente entre as mãos com
i; .tlegria estranha. Q uando a m inha jovem tia Juliette, a fantasista da famí-
irepava po r mim às árvores com o um a cabra para as colher nos ramos e
estender, a mim cpie esperava debaixo dela cobiçando o interessante inte-
■ : das suas saias, com o seu líquido m acio e açucarado a desfazer-se-me
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L O r / V -1 I. T n l A S 1: R
na b(5ca c separando o par de caroços luzidios, que sabor e que prazer! Mas
estas m esm as nêsperas eram m uito m elhores ainda quando as apanhava da
terra, onde queim adas pelo sol tinham com eçado a apodrecer no perfum e
rude e acre da terra! Mais adiante, havia ainda um tanquezinho, este da m inha
altura, cheio de uma água ciara e cantante (uma fonte?) e bem lá ao fundo, por
trás de grandes ciprestes negros, uma dúzia de colm eias dispostas em fileira
que um ex-professor prim ário bretão, o Senhor Kerruet, vinha muitas vezes
visitar, com o seu chapéu de palha na cabeça, mas sem véu nem luvas, pois
cpie as abelhas eram amigas dele. Não o eram sem dú\ ida de toda a gente, p o r
que num dia em que o meu avô se aproxim ara dem asiado, enervadas e incjuie-
tas com o seu nervosism o e a sua inquietação, elas saltaram-lhe para a cara em
massa tendo elc ficado a dever a sua salvação a uma corrida desenfreada e a
um m ergulho no tanque grande. Mas curiosam ente dessa vez não experim entei
somhra de medo.
E sobretudo, m esm o no fundo do jardim à esquerda, erguia-se uma alfar-
rt)beira im ensa e redonda cujas vagens lisas, alongadas e escuras (titie eu teria
gostackt de provar — mas a m inha mãe dissera: proibido!) me fascinavam. Tra
tava-se de um ponto de obsercação im previsto de onde, sozinho, eu descobria
aos meus pés, deitada ao sol, m inúscula e interm inável, a im ensa cidade, as
suas ruas, praças, prédios e porto, onde repousavam grandes navios imóveis
com as suas cham inés, e formigavam centenas de em barcações num m ovi
m ento perpétuo. De m uito longe, no m ar sem pre liso e pálido, eu conseguia
a\ istar prim eiro um fum ozinho m inúsculo no horizonte, depois a pouco e
pouco m astros e um casco, com o que imóveis de tão desesperadam ente len
tos: os navios da linha Marselha-Argel tjue acabavam, se eu tivesse paciência
jrara tanto, p o r act)star com infinitas m anobras e precauções ao longo dos
raros cais li\ res do porto. Sabia que um dos navios (depois de tantos Général-
-C hanzy e outros) se chamava Charles-Roux. Charles com o o m eu pai (eu
acreditava então firm em ente que todas as crianças, ao chegarem à idade
adulta, m udaram de nom e para se passarem a cham ar (Charles, e só Charles!).
Imaginava que t> navio avançava por acção de rodas escondidas sob o casco,
surpreendendo-m e que ninguém tivesse ainda dado p o r isso '.
'X otar a liomofonia entre Rou.x e rones (rodas), que ,sc perde na tradução. (.V, d o T.)
*"()
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Depois saía na com panhia do m eu a\’ò para as matas. Qne liberdade! Com
j nunca havia o risco de proibições. Que felicidade! Ele, tão «resmtmgão»,
:.i um caracter que toda a gente declarava im possível (com o Hélène mais
.rdei. falava-me sem alardes com o a um seu igual. Mostrava-me e explica-
. -me todas as árvores e todas as plantas. Era sobretudo os eucaliptos intermi-
. eis que me fascinavam: gosta\’a de sentir debaixo da m inha m ão a escama
.L' 'uas longas cascas tubulares que de súbito se desprendiam estrepitosa-
eute do alto dos ramos e ficavam então a p en d er sem fim com o braços inú-
. ' ou farrapos (os farrapos que, mais tarde, eu gostaria de trazer vestidos, os
.rrapos das grandes cortinas verm elhas do m eu ejuarto de cama da École Nor-
■ilci — as suas folhas tão lisas, tão com pridas, curvas e pontiagudas, c|ue com
rodar do ano passavam do verde escuro ao verm elho ensanguentado, e o seu
0 to-flor de pólen delicado e perfum e m ágico de «remédio farm acêutico».
-O ia tam bém a descoberta sem pre nov a dos ciclam es cor-de-rosa bravos sem-
n escondidos p o r baixo das folhas escuras e cujas vestes era preciso levantar
.,r.i se descobrir o rosa da sua carne mais íntim a: espargos bravos, rijos com o
r\o s espetados, cjtie podia m order crus ejuando saíam da terra. Depois os ter
eis aloés protegidos por espinhos e pontas, c p o r vezes (uma vez de dez em
ez anos?) atirando para o céu um im enso dardo lentam ente coroado p o r uma
r inacessív'el!
\ iv ia uma intensa felicidade, livre e plena, na com panhia do m eu avô e da
nha avó, m esm o t]uando os meus pais me acom panhavam , no paraíso da
florestal, do seu jardim e da sua im ensa mata.
Com frequência antes de a alcançar havia dramas. No cim o da mata
'cuia-se m esm o à beira da estrada de terra que percorríam os a pé (quatro qui-
nctros) uma casa alta c branca habitada po r um capitão cm funções,
1 Lemaitre (que n o m e ...)', pela sua mulher, o seu filho crescido, já com
tte anos de idade, e a filha pequena. Era sem pre aos dom ingos: o dia feriado
meti pai e tam bém o dia de descanso de M. Lemaitre. Q uando subíam os
■;r.i a casa florestal, ele estava ali sempre, em família, mas muitas vezes explo-
,m cenas horríveis entre o pai e o filho. O filho tinha o dever de trabalhar
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I. o V í s A I. T íJ ( s s i: a
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ic tu o tn ttn d ia : sem pre uma dádiva sem troca, cjue me provava que
,.„to existia. Ele m ostrava-me tam bém , contíguos à cerca da casa tlores-
■Ltos m uros de segurança de tijolo da residência da Rainha Rana\alo,
;x a ninguém via. Soube mais tarde que as tropas francesas ao invadirem
.1'Lur nos tem pos áureos da cam panha colonial tinham capturado a rai-
pais para a fecharem naquela residência com pulsiva, estreitam ente
; na parte mais alta de Argel. Mais tarde, em Blida, vi do m esm o m odo
rnie negro de óculos, sem pre protegido por um im enso guarda-chuva
i - c a sua fotografia em postais) que abordava todas as pessoas com
' t cruzava estendendo-lhes a mão, e dizendo-lhes «Amigos, todos ami-
r ra Béhanzin, o antigo im perador do Daom é, também ele desterrado
Argélia. Condição que me pareceu estranha: tratou-se sem dúvida da
prim eira lição de política.
o F V T U R O E M r / / o 7 /; M P O
■issim que eu o entendia: sem pre um a d ád i\a sem troca, que me provava que
eu de facto existia. Ele m ostrava-m e tam bém, contíguos à cerca da casa tlores-
tal, os altos m uros de segurança de tijolo da residência da Rainha Ranavalo.
que nunca ninguém via. Soube mais tarde que as tropas francesas ao in\ adirem
Madagáscar nos tem pos áureos da cam panha colonial tinham capturado a rai
nha do país para a fecharem naquela residência compulsic a, estreitam cnte
vigiada, na parte mais alta de Argel. Mais tarde, em Blida, vi do m esm o m odo
um enorm e negro de óculos, sem pre protegido por um im enso guarda-chuNa
(vendia-se a sua fotografia em postais) que abordava todas as pessoas com
quem se cruzava estendendo-lhes a mão. e dizendo-lhes «Amigos, todos am i
gos!», Era Béhanzin, o antigo im perador do Daom é, tam bém ele desterrado
para a Argélia. Condição que me pareceu estranha: tratou-se sem dúvida da
m inha prim eira lição de política.
VII
passava do outro lado dos \ idros. Com íam os ser\ indo-nos do apoict dos joe
lhos, depois de a m inha m ãe tirar do cesto as pro\ isões. preparadas de ante
mão, cm Argel, N unca nos foi dado conhecer os esplendores do vagão-restau
rante; econom ias!
Em Chagny, apnhávam os um ramal secundário: Chagny-Ne\ers M udá\a-
mos de com boio (cuidackt com as malas!) e subíam os para carruagens bem
mais rústicas puxadas p o r uma vagarosa m áquina ofegante. Mas está\am os
então cada vez mais perto da «terra», iMuito rapidam ente passei a conhecer e
a reconhecer as estações, e nos taludes rentes à linha do com boio (que seguia
a um ritm o de dispnéia) tentava ac istar por entre as ervas daninhas os prim ei
ros m orangos braços com t]ue tencionava regalar-me: estariam já m aduros?
Por fim chegavam os ao term o da nossa viagem; a Millay, pequena garezinha
insignificante, mas era aí que se iniciaca a verdadeira aventura.
Por trás da estação, espera\a-nos uma tipóia, Da prim eira \ez, bac ia uma
chuc a fortíssim a, que nos toldava p<tr com pleto a casta, mas ficámos ao abrigo
da cobertura de lona, encolhidos po r causa do frio — mas das outras vezes,
quase sempre, fazia um belo sol. M. D ucreux, que viria a ser m aire de Laroche
em 1936, obtendo o lugar contra o senhor conde, conduzia tranciuilamente
uma bela égua baia de garupa possante e em brece coberta de espum a, e cuja
longa fenda carnuda, que me ficava debaixo dos olhos, me interessava p rodi
giosamente. Seis quilôm etros de ascensão, depois as alturas de Bois-de-Velle de
onde se descortinaca uma imensa paisagem de m ontanhas frondosas (carva
lhos. castanheiros, faias, freixos, cárpeas, para não falar das avelaneiras e sal
gueiros), em seguida um a descida ligeira mas prolongada ao longo da cjual a
egua adoptava um trote familiar, e po r fim a aldeia. A encosta m uito abrupta
de um cam inho bastante m au: passácam os diante da escola com unal (em gra
nito), e logo a seguir «a casa», com a m inha avó m uito direita que nos esperava
á porta.
Desta vez, a casa não era m uito grande, mas tinha duas grandes caves fres
cas, um grande sótão mais ou m enos arranjado a abarrotar de rom ances de
Delly recortados página a página da revista Le Petit Écho de la m o d e ejue a
m inha avó sem pre lera, alpendres para os coelhos e um grande galinheiro
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gradeado onde deam bulavam as aves de criação cheias da sua lenta suficiênc:.
mas de olhos sem pre alerta. Havia um a boa cisterna de cim ento (onde às \cv.
os gatos caíam e para m eu terror — ó dram a! — (outra vez os m ortos) se afog
vam) destinada a recolher as águas da chuva. E acim a de tudo um belo jardir
inclinado com uma bela vista para um a das m ontanhas mais altas do Morva;
Touleur. Ao tem po, nem água corrente na aldeia nem, é claro, electricidad;
íamos buscar a água em baldes a casa de duas solteironas que viviam ei
frente, alum iávam o-nos com candeeiros de petrtãleo — ah! a bonita luz tii,
eles faziam, sobretudo quando, para m udarm os de cjuarto, levá va m o s a In
connosco e passavam então pelas paredes sombras móveis e com frequênc;
desconcertantes: que segurança, a de quem leva a luz consigo!
Mais tarde o m eu avô m andou abrir um poço a valer depois de consuh..
o vedor que. varinha na mão, decidiu que era ali, junto à grande pereira, c
determ inada profundidade. O poço foi escavado à mão, imagine-se, em plen
cam ada de granito cor-de-rosa! Que trabalho de força e p recisão-. cavavam-s.
minas, cpie se faziam explodir, e depois era preciso tirar os blocos e escavar d,
no \'0 minas com um a haste. A água apareceu à profundidade exacta precist
pelo vedor. Ficou-me desse tem po uma verdadeira consideração pela arte du>
hom ens da varinha de aveleira, consideração que transferiria m uito mais tarch
para o «velho Rocard», director do Laboratório de Física na École Norm ale :
pai de Michel Rocard (um estranho para mim e aparentem ente tam bém para <
pai), que procedia a estranhas experiências de m agnetism o, saindo a pé con
a sua varinha pelos jardins da Escola, aos dom ingos (quando não havia nin
guém a observá-lo), ou de bicicleta, de carro e até de avião! Este hom em fabu
loso, que conseguira equipar os laboratórios de física de 1936, com pletam entc
vazios, a seguir à penetração das prim eiras tropas francesas na Alemanha, fre
tando p o r sua iniciativa cam iões militares e trazendo dos laboratórios alem ãc'
c das grandes fabricas todo o m aterial de que precisava. O que forneceu ao ser
Laboratório de Física, um dos prim eiros de França (onde trabalhou Louis Kas
tler que viria a ser Prêm io Nobel), m aterial com que funcionava. O mesm<.
Rocard pai tinha fama de ser «o pai da bom ba atôm ica francesa», o que nunc;;
foi nem confirm ado nem desm entido; mas esse título ou pseudo-título va
lia-lhc a hostilidade política da m aior parte dos iio n n a lien s. Rocard foi c
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/' l 7 r R o \t r / / o l 7: .)/ 7" o
V, fazer com elas a estrutura das cestas cam ponesas que me ensinou a fahri-
na ca\e, e m ostrou-m e quais eram os jo\ens rebentos de salgueiro que se
;am entrelaçar entre os arcos da arm ação. Fmsinou-me tudo. os tanques, as
os lagostins, mas igualm entc toda a região c as pessoas que nela se encon-
,im e com quem ele cavaqueava no falar local.
O Morvan era então um a terra m uito pobre, \avia-se por lá quase exclusi-
'.ente da criação de bovinos charoleses brancos, mas sobretudo da criação
■o>rc(ts e.,. de crianças da Assistência Pública colocadas em grande núm ero
região. Acrescente-se a isto a batata abundante, um pouco de trigo, ce^■ada.
_ i-mourisco (que se dava m uito bem p o r lá. na com panhia dos castanhei-
■ a castanha e a caça, nom eadam ente aos javalis durante o Inverno, alguma
:a e a lista fica com pleta.
\ a aldeia, num ponto elevado, a igreja, recente, sem graça nem realce, e
fe dela o clássico e m edonho m onum ento aos m ortos da Guerra de 19Ia-
"S, coberto de inum eráveis nom es, aos tjuais se acrescentariam mais tarde,
jvouco po r toda a parte, as listas dos m ortos de 1939-1945, a seguir o nom e
.iguns deportados, enfim a lista das vítimas das guerras dt) Vietname e da
,clia. triste balanço dem onstrando até à ev idência tjue com o sem pre essas
rras tinham ceifado a juventude dos campos. l'm antigo com batente da
jrra de 1914 assegurava o serviço eclesiástico, dizia a missa, em que eu
,i\a parte com o m enino de coro, dava o catecism o ejue frequentei mais
c:l num a m inúscula salinha aquecida de Inverno po r um pequeno fogãt) ao
ro O padre, desiludido de tudo, bonacheirão, generoso em relação aos
,.idos e sobretudo aos apetites ou até m esm o aos actos sexuais, sem curiosi-
,ies m órbidas na confissão, sem pre tranquilizador para as crianças, com o
cachim bo das trincheiras sem pre na boca, era a indulgência em pessoa:
;is uma figura de bom «pai».
Saía-se bastante bem nas suas funções, porqtie a região era ainda dom i-
d.i pela autoridade aristocrática indivisa do conde, cujo alto palácio do se
io x\ II se escondia por trás de altíssimas árvores m ultisseculares. Tratava-se
um grande proprietário de terras, possuía à vontade dois terços da fregue-
era de direito m aire, e controlava estreitam ente a m aior parte dos cam po-
'cs, seus rendeiros, ou mais frequentem ente ainda seus caseiros: subsidiava
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I. o ( / ,v , I /. r II i V V / R
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o / r / r o p ,ií r / T o / lí M P
Todas estas coisas m e causavam uma grande alegria, mas devo reconhecer
que tudo isto se passava durante o Verão e que, term inadas as férias, tínham os
tlLie voltar para Argel. Contudo, não chegara ainda ao cúm ulo das m inhas sur
presas nem da m inha felicidade.
l'm dia a m inha avó, a m inha mãe, a m inha irm ã e eu partim os para Fours,
onde a m inha bisavó m aterna, a velha Nectoux, viúva ha^ ia muito, vivia sozi
nha num a única divisão, terrivelm ente só na com panhia da vaca. Mais uma
m ulher velha assustadoram ente aprum ada e seca e além disso m uda, se excep-
tuarm os algumas interjeições de um falar arcaico c que eu não com preendia.
Mas lem bro-m e m uito bem de um incidente que me im pressionou com grande
intensidade, junto à pequena ribeira do lugar onde ela levara a sua pesada e
dócil \ aca a pastar. Hu estava a brincar com as libélulas coloridas que passavam
de flor em flor (st)bretudo as «flores do prado» intensam ente arom áticas).
,\ certa altura vi a m inha bisavó, que nunca largava um grande bordão nodoso
ipor causa da vaca e para se apoiar nele ao andar) entregar-se a um co m p o rta
m ento deveras estranho. Sem uma palae ra, estava m uito direita, e o ruído forte
de um intenso jacto saía de baixo da sua longa saia negra. Corria-lhe um regato
claro aos pés. Le\ei certo tem po a «realizar» que ela estava assim a m ijar m uito
direita, p o r baixo da saia, sem se ter agachado com o as m ulheres fazem, o que
'ignificava que não tinha nada p o r baixo da saia. Fitjuei estupefacto: com tjue
então havia m ulheres-hom ens, sem vergonha do seu sexo, e que chegavam ao
ponto de m ijar diante de toda a gente, sem reserva nem \ergonha, sem se
darem sequer ao trabalho de avisar fosse ciuem fosse! Que descoberta...
Embora ela fosse sim pática para comigo, tudo se confundia: seria um hom em ,
aquela mulher, e que hom em , que dorm ia com a vaca, a guardava, e mijava
com o um hom em diante de toda a gente mas sem puxar o sexo para fora da
braguilha e sem se esconder p o r trás de um tronco de árvore! Mas era igual
m ente uma m ulher pois não possuía um sexo de hom em , e era capaz de me
amar com dureza, sem dúvida, mas tam bém com a ternura contida de um a boa
mãe... Aquilo nada tinha a ver com a mãe do m eu pai. Este episódio surpreen
dente não me inspirou m edo algum mas deixou-m e dem oradam ente pensa-
ti\o. Naturalmente a m inha mãe não dera por nada e nunca falou do assunto.
.\h! a insensibilidade da m inha m ãe perante tudo o que m e pudesse tocar...
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Foi assim que me atirei com grande facilidade e extrem o prazer ao falar
m orvandês, tendo em breve deixado de me distinguir fosse no que fosse dos
rapazes do lugar. Apesar disso eles flzeram-me sentir com dureza e durante
m uito tem po que não era um deles. Lembro-me, cjuando a prim eira neve caiu
e cobriu o pátio da escola, de ter sofrido um a sessão terrível em que me m as
sacraram literalm ente com as bolas que me atiraram à cara. e \ cjo ainda hoje
a arvorezinha m agra junto à qual caí inanim ado debaixo dos seus golpes.
O m estre-escola, avisadamente, absteve-se de Intervir. Eu tivera a m inha conta,
mas sem som bra de angústia, e eles o seu prazer e a sua desforra. Depois, len
tamente, senti que me adoptavam . Que alegria!
Lembro-me ainda com em oção do m eu últim o dia de aulas no Morvan,
quando, p o r um privilégio excepcional, m e deixaram escolher para o últim o
recreio o jogo que quisesse. Escolhi a barra, cujas corridas de surpresa me
embriagavam, e a m inha equipa ganhou.
«Eles». Era antes do mais o co n d u to r dos jogos e do grupo, um rapaz atar
racado, corado e forte, de cabelo preto, cham ado Marcei Perratidin, vago
prim o afastado dos meus avós. Tinha um a vitalidade prodigiosa, e com o tan
tos outros cam poneses m orreria mais tarde na guerra. Mais um m orto na
m inha t ida. De com eço, perseguia-m e sem piedade nem tréguas, eu sentia
abertam ente m edo dele, estando longe de igualar a sua força e sobretudo a sua
audácia, e tendo um m edo pânico de me ver obrigado ao com bate físico: o
m edo, sem pre o mesmo, de ver o m eu corpo lesado. De facto, nunca, nem
u m a só vez, em toda a m inha vida me bati fisicamente.
Não havia apenas jogos físicos entre rapazes, mas sobretudo uma brinca
deira predilecta que consistia em cair em grupo e de surpresa em cima de um
tipo m om entaneam ente isolado, atirá-lo ao chão num recanto mais escuro do
telheiro, dom iná-lo, abrir-lhe com pletam ente a braguilha e pôr-lhe o sexo de
fora, o que era sem pre m otivo de grande regozijo e gritaria. Também eu sofri
essa sorte, sem dúvida que lutando, mas com um estranho prazer a apoderar-se
de mim. C onheci igualm ente na escola um rapaz da Assistência Pública, vindo
não se sabia de onde, m uito inteligente, e que me disputar a o prim eiro lugar
na aula. Era frágil e pálido (com o eu) e m urm urara-se com com placência que
ele «brincava aos pais e às mães» com uma rapariga do colégio das freiras.
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' Icrm o do f;il;ir local; a palavra francesa para «debulhadora» é «hatteuse». (.V, do T.)
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' Tcniio do falar local: a palavra francesa para «dehnlliadora» é «batteuse». (.V. d o I. }
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L O l I S A L T H r S S t: R
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VIII
m 1930 , tinha eu então doze anos, o meu pai foi nom eado procurador do
E seu banco em jMarselha. Instalám o-nos no n.‘’ 38 da rue Sébastopol,
bairro dos Quatre-Chem ins, e m uito naturalm ente, m atriculam -m e no liceu
Saint-Charles, que não fica longe. Loiiis, Charles, Simone: há decididam ente
nom es cjue são «destinos», com o diz Spinoza no seu tratado de gram ática
hebraica. Spinoza!
Em casa, a m esm a vida de sem pre: com pletam ente solitário. iNo liceu a
at entura continua. Na cinquièm e, para que entro, conquisto o m eu lugar na
turm a, acho-m e em breve entre os prim eiros, sem pre igualm ente atilado e
estudioso. Ib d a a m inha vida se passa entre o liceu (belo, em bora vetusto, mas
dom inando um dos lados da cidade) e do outro lado, a linha de cam inho de
ferro conduzindo à grande estação term inal: Saint-Charles. Sempre adorei
as estações «terminais» onde os com boio param — pois não podem ir mais
longe — contra grandes batentes. D ando para o lado da linha há um cam po de
jogos e ginástica. O interesse dessa ginástica está em que fazemos m uito poucos
exercícios, pois em breve o prof. dá a sessão por term inada e deixa-nos jogar
futebol. Desta feita ganhei. Improvisam-se ecjuipas, não sei porquê atiram-me
para a frente, e ganham os pois temos nas redes um rapaz que mergulha com o
se nunca tivesse feito outra coisa na vida: um tal Paul, Falamos, entendem o-nos
c eis que rapidam ente se esboça entre nós um a singularíssima amizade.
Paul não é tão forte nos estudos com o eu, nunca o será, mas tem não sei
o quê que me falta: sem ser alto, é largo de om bros, possui mãos robustas.
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VIII
m 1930. tinha eu então doze anos. o meu pai foi nom eado procurador do
E seu banco em Marselha. Instalám o-nos no n." 38 da rue .Sébastopol.
bairro dos Quatre-Chem ins, e m uito naturalm ente, m atriculam -m e no liceu
Saint-Charles, que não fica longe. Louis, Charles. Simone; há decididam ente
nom es que são «destinos», com o diz Spinoza no seu tratado de gram ática
hebraica. Spinoza!
Em casa, a m esm a vida de sem pre: com pletam ente solitário. No liceu a
aventura continua. Na cinquièm e, para que entro, conquisto o m eu lugar na
turm a, acho-m e em breve entre os prim eiros, sem pre igualm ente atilado e
estudioso. Toda a m inha vida se passa entre o liceu (belo. em bora vetusto, mas
dom inando um dos lados da cidade) e do outro lado, a linha de cam inho de
ferro conduzindo à grande estação term inal: Saint-Charles. Sempre adorei
as estações «terminais» onde os com boio param — pois não podem ir mais
longe — contra grandes batentes. D ando para o lado da linha há um cam po de
jogos e ginástica. O interesse dessa ginástica está em que fazemos m uito poucos
exercícios, pois em breve o prof. dá a sessão po r term inada e deixa-nos jogar
futebol. Desta feita ganhei. Improvisam-se equipas, não sei porque atiram-me
para a frente, e ganham os pois tem os nas redes um rapaz que m ergulha com o
se nunca tivesse feito outra coisa na vida: um tal Paul. Falamos, entendem o-nos
e eis que rapidam ente se esboça entre nós uma singularíssinia amizade.
Paul não é tão forte nos estudos com o eu, nunca o será, mas tem não sei
o quê que me falta: sem ser alto, é largo de om bros, possui mãos robustas.
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Fck), e que era objecto. p o r causa da sua pequena estatura e da sua lábia, da
benevolência do capelão, senhor de um grande nariz cheio de pêlos: Pêlo, um
caçador de saias desgraçado, pelo m enos disso se gabava alto e bom som. o
que me parecia extrem am ente incongruente naquela organização católica
dedicada à pureza dos costum es.
No Verão, partíam os para longas estadias de cam pism o, nas m ontanhas
dos Alpes.
Desta vez estam os perto de Allos num a bela pradaria dom inando os \ ales.
e Paul e eu, tal com o os outros, rodeám os o espaço ocupado pelas nossas ten
das, o nosso «domínio» p o r conseguinte, com pequenos m uretes de pedras
precedidos p o r um pó rtico alto construído com ram os leves de bétula.
Ilido parecia preparar-se para correr ãs mil maravilhas. Ora contava-se
entre os da m inha patrulha um rapazito, mais velhtt do que eu, mas pobre,
enferm iço, desajeitadtt, que não tinha a mesma educação do que eu, mas uma
m aneira de falar e m odos «ordinários», recusando-se agressicam ente a ob ed e
cer-me, apesar de ser esse o seu «dever». Encarregado da responsabilidade
opressi\a com que me haviam oprim ido, não parava de tentar trazê-lo à
«razão». No fim, tam bém ele queria bater-se com igo para acabar com a histó
ria. Por uma vez era eu de longe o mais forte, mas nem po r isso ele deixava de
me responder apenas com insultos, am eaças e proxocações obscenas. As coi
sas entre esse rapaz e eu p ró p rio ganharam tal feição que acabei por desespe
rar da m inha autoridade e caí num a espécie de depressão, a «primeira» da
m inha vida, p o r assim dizer. Como, não sei por que razão, o m eu amigo Paul
se sentiu, por seu turno, tam bém mal, talvez dos intestinos. Pêlo decidiu
m andar-nos retirar pro\ isoriam ente para o refúgio de um grande celeiro, num a
quinta abandonada a quinhentos m etros dali. Levavam-nos lá a com ida. Ficá
mos sós. finalm ente sós. ternam ente enlaçados na nossa desgraça com um , e
chorando a nossa sorte. Lembro-me m uito nitidam ente de que durante os abra
ços que trocávam os senti agitar-se o meu sexo: não mais do que isso, mas era
extrem am ente agradável sentir essa erecção surpreendente.
A m esm a coisa sucedeu no decorrer daquilo a que então se chamava a
«viagem da prim eira classe», prova destinada a fazer-nos ganhar um «distintivo»
especial e a obter um a prom oção de patente. Tratava-se para nós os dois
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m arcado para toda a vida; digo bem, c isso há-de tornar-se elaro, p u r a toda a
vida.
Certo Verão, um colega do meu pai, que tinha uma m oradia em Bandol,
arrendou-nos o seu piso superior. O m eu pai ficava a trabalhar cm Marselha,
mas a m inha mãe, a m inha irm ã e eu instalám o-nos em Bandol. Ora o rés-do
-chão da m oradia cm breve foi ocupado pela m ulher c as duas filhas do colega
do m eu pai. A filha mais velha, Simone, im pressionou-m e assim que a vi: a
m esm a beleza, o m esm o perfil que o am or de Paul. m orena e ainda p o r cima
mais pequena: exactam erde segundo o m eu desejo. Nasceu em mim um a pai
xão violenta. Imaginava toda a espécie de ardis para a encontrar, segurar
diante das nossas mães a asa de um a cesta, segurando ela a outra! E até m esm o
ensinar-lhe os rudim entos do craivl am parando-lhe os seios e o baixo ventre
com as m inhas mãos, e po r fim acom panhá-la (soh a «vigilância» da sua irmã
mais nova, condição exigida pela m inha mãe!) às alturas da Madrague, a dez
quilôm etros de Bandol, num a grande colina cuja areia fina corria dchaixo dos
nossos pés. Estava a desfazer-me de desejo p(tr ela. Cm dia dei-m e conta de
que, não tendo audácia bastante para a acariciar (ha\ ia a irm ãzinha à esprei
ta — e m esm o na sua ausência eu não me atreveria sem dúvida a nada de pare
cido), podia pelo m enos fazer correr entre os seus seios punhados de areia
lenta. Â areia descia-lhe para o ventre, alcançava-lhe a curvatura do púbis.
Então .Simone punha-se de pé, afastava as coxas e a parte de baixo do fato de
hanho, a areia caía para o chão e eu podia, durante o clarão de um instante,
entrer er ao alto das suas esplêndidas coxas nuas a profusão do seu velo negro
e sobretudo a fenda cor-de-rosa de um sexo: rosa de ciclame.
A m inha m ãe rapidam ente descobriu a m inha inocente mas \ iolenta pai
xão. Cham ou-m e de parte e teve a audácia de me declarar: tens dezoito anos,
.1 Simone dezanove, é im pensável pois seria imoral, dada a diferença de idades,
vjue se passasse algum a coisa entre vocês. Não era «conveniente»! E de qual
quer m aneira tu és ainda m uito novo para amar!
O p ior aconteceu num dia de m uito sol, à tarde. Sabia que Simone tomava
»,mho num a praia do lado da Madrague. M ontei-me na m inha bicicleta de co r
rida e ia partir para ir ter com ela quando a m inha mãe apareceu, vinda de
dentro de casa. O nde vais? Eu sabia que ela sabia. Tornava-se impossível ir ter
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/, o I I s ,1 /. / // r s V /: A>
com Simone. Sem hesitar um segundo, e num a reacção que não com preendí
nem controlei, indiciuei à m inha m ãe a direcção directam ente oposta ã do
m eu desejo-, «\'ou a La Ciotat!» Pedalei depois com um a rai\a intensa, lem bro
-me bem, a chorar com uma revolta intensa m ontado na m inha bicicleta.
A p artir de então, o episódio da violação («és um hom em , m eu filho!») e
o episódio do interdito de Simone passaram a constituir um só na m inha
m em ória, e aliaram-se à repulsa obscena que me inspirara, em criança, ou
num a recordação projectada na infância, a imagem dos seios da m inha m ãe e
da sua nuca branca levem ente frisada de louro: obscenos. Uma repulsa, um
ódio viscerais; com o podia ela tratar assim os m eus desejos? E digo: «a partir
de então». No m eu inconsciente po r certo, mas não na m inha consciência. Só
m uito mais tarde, à luz retrospectiva bem conhecida dos afectos, vi claram ente
estes episódios, a sua afinidade e a sua recomposição-, ao longo da m inha
análise.
D urante todo este tem po de Marselha, continuei com as m inhas façanhas
escolares. Éramos dois a disputar o prim eiro lugar da turm a: um rapaz de rosto
ingrato, atarracado, fortíssim o em m atem ática (m atéria em que eu, de acordo
com «o desejo da m inha mãe» era m edíocre), cham ado Vieilledent. Dentes
\ elhos / casas velhas (Althusser: alte-H aüser no falar alsaciano), cpie estranho
par. Lembro-me de que ele tentou um dia alistar-me nas juventudes do coronel
La Roque, mas eu não quis. O que não se de\ eu com certeza a um a consciência
política, mas à prudência, tal e qual com o o m eu pai.
Desforrava-me dele nas puras letras. Conservei uma memciria nítida da
minha turm a da première. a partir da qual creio ter mais tarde apreendido um
elem ento im portante da m inha estrutura psíquica, línham os um grande profes
sor de letras, M onsieur Richard, hom em alto e magro, m uito frágil e sempre
adoentado, com um longo rosto branco, tam bém ele esmagado por uma pesada
fronte, constantem ente afligido pelas dores de uma garganta que trazia sempre
em brulhada em cachecóis de lã (com o a m inha mãe e eu próprio, naturalmente,
nesse tem po); um hom em de um a doçura e de uma delicadeza infinitas; tam
bém ele m anifestam ente um puro espírito, desligado de todas as tentações do
corpo c da matéria, com o a dupla imagem com posta da m inha mãe e de mim
(do que me dou conta neste preciso instante, ao escrevê-lo); iniciava-nos, e com
9a
<) / r 7 r 77 o F V r / 1 I F \i p o
que calor, ternura e êxito!, nos grandes hom ens de letras e poetas da história.
Idcntifieava-mc eom pletam ente com ele (tudo a isso se presta\a). imitei de
pronto a sua letra, adoptei as suas construções de frase peculiares, fiz meus os
seus gostos, os seus juízos, cheguei ao ponto de lhe im itar a \'oz c as inflexões
de ternura, c nas m inhas dissertações devolvia-lhe exaetam ente a imagem da
sua figura. Ele notou im ediatam ente os m eus m éritos. Que m érito ao certo? Eu
era sem d ú\ ida um bom aluno, m uito sensível, m ovido se assim posso ex pri
m ir-me p o r uma inquietação constante de fazer as coisas bem feitas. Mas mais
tarde com preendi que se tratava de faeto de algo diferente.
Em prim eiro lugar identificava-m e com ele, pelas razões que acabo de
expor, ligadas à m inha p rópria imagem de mim e da m ãe e, para além dela. à
imagem do tio m orto: Louis. Foi iM. Riehard quem me convenceu a preparar
mais tarde o concurso para a Eeole Norm ale Supérieure da rue d lHm, que os
meus pais e até m esm o a m inha m ãe ignoravam. De faeto com preendi que ele
representar a uma imagem po sitira dessa mãe que eu amava e que me amava,
uma pessoa real eom quem eu podia realizar essa «fusão» espiritual conform e
ao desejo da m inha mãe, mas ejue o seu ser «repugnante» me vedava.
Mas durante m uito tem po acreditei (e m esm o no com eço da m inha aná
lise) que representava com ele o papel de filho amante e dócil, que, conside
rando-o então com o um bom pai, pois desem penhara na ocasião a seu res
peito o papel do «pai cUt pai», fórm ula ciue durante m uito tem po me seduziu
e me pareceu dar conta dos m eus traços afcctivos, Era a m aneira de solucionar
paradoxalm ente a m inha relação com um pai ausente atribuindo-m c um pai
imaginário, mas com portando-m e com o o seu p ró p rio pai.
E efeetiram ente achei-m e em diversas ocasiões repetitiras na mesma
situação e com a mesm a im pressão afeetivas de me conduzir perante os meus
m estres com o o seu p ró p rio mestre, tendo senão tudo a ensinar-lhes. pelo
m enos que me encarregar deles, com o se tivesse o sentim ento m uito \iv o de
ter que controlar, vigiar, censurar, ou até reger o com portam ento do meu pai
sobretudo em relação à m inha mãe e ã m inha irmã.
Mas ai! esta bela construção, justa a certo nível, revelar-se-ia bem unilate
ral. C om preendi com efeito, mas m uito tarde, que negligenciava então o ele
m ento mais im portante: os m eus artifícios, a im itação da voz. dos gestos e
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i o r I s .1 L í H I ,V ,S E R
da letra, dos fraseados e dos tiques do m eu professor, que me davam não s<>
p o d e r sobre ele mas existência para mim. Hm suma, u m a im p o stu ra fu n d a
m en ta l, este p a recer ser aquilo que não podia ser: esta falta de corpo não
apropriado e portanto do meu sexo. C om preendi então (mas tão tarde!) que s<>
usa\a assim de artifício, exactam ente com o um «borlista» o usa para entrar
num estádio (o m eu pai), para se d u zir o m eu professor, e mc fazer am ar por
ele justam ente por m eio do jogo desses artifícios. Que quer isto dizer? Que
não tendo existência m inha, existência autêntica, duvidando de mim a pont<'
de me crer insensível, sentindo-m e p o r isso incapaz de m anter relações afecti-
vas fosse com quem fosse, me \ ia reduzido para existir a fa ze r-m e am ar, c
para am ar (porque am ar exige que se seja am ado) reduzido assim a artifíciers
de sedução e de im postura. A sedução por m eio de artifícios e em últim a aná
lise à im postura.
Não existindo realmente, não passava na vida de um ser de artificio, um
ser de nada, um m orto que não conseguia am ar e ser am ado a não ser por
m eio de artifícios e de im posturas tom ados de em préstim o àcpieles por quem
queria ser am ado e que tentava am ar seduzindo-os.
Por isso nada era dentro de mim p ró p rio senão um ser não só consciente
m ente hábil a m over e dispor os seus m úsculos, mas sobretudo inconsciente e
diabolicam ente hábil a seduzir e a m anipular os outros, ou cm todo o caso
acjueles po r ejuem queria ser amado. Esperava deles p o r m eio deste am or fictí
cio o reconhecim ento da existência de cjiie atrozm ente duvidava, p e rp e tu a
mente, num a angústia surda que só aflorax a na m inha consciência quando eu
falha\a nas m inhas tentativas de sedução.
Só m uito recentem ente me dei conta da «verdade» desta com pulsão reflec
tindo sobre a estranha aventura seguinte. Eu era um óptim o aluno, prom etido
pelos m eus m estres a um grande futuro intelectual. Fora assim que o m eu p ro
fessor da escola prim ária me propusera outrora ao concurso nacional das «bol
sas» pensando que eu ficaria nos prim eiros lugares. Ora fui dos últim os a ser
adm itido. C onsternação! Foi assim tam bém que M. Richard e todos os profes
sores, cada um na sua especialidade, me propuseram para as provas do C on
curso Geral. Reproduziu-se a m esm a provação no últim o ano do secundário
Ora em nenhum a das ocasiões, apesar dos meus brilhantes m éritos, quer
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f I / r K o .1/ r / / (■ ; / /: 1/ /'
sos quando comparecia diante de juizes que não ti\era a possibilidade de sedu
zir! Então todos os meus artifícios, que eram artifícios a d hnniineni e só
agiam na relação de sedução que eu conseguira impor aos outros nas suas cos
tas, deixavam de agir, falhavam. Consternação! Durante muito tempo o facto
perturbou-me, pois não conseguia com preender algo que é preciso «tempo
para com preender».
9^
IX
uando o meu pai foi nom eado para Lyon pelo banco, isso representou
V ^ / uma nova m udança de ares, para a minha mãe um novo exílio e suplíciíx
e para mim a entrada no Lycée du Pare, para os preparatórios do exame dt
admissão à Normal Sup.
A preparação do exame prolongava-se por três ou até quatro anos. O '
mais jovens viam-sc confinados à hypokhãgne, e os outros à khágne. '
Senti-me literalmente perdido. Não conhecia ninguém, tinha diante de
mim rapazes já formados em todos os truciues e usos, que celebravam tradi
ções colectivas e cultivavam o culto dos «antigos» admitidos (muito raros
naquela cidade de província). Para mim uma solidão duríssima de viver e que
se tornava ainda mais penosa pela convicção de que não sa b ia n a d a , mas
nada mesmo, que tinha que me preparar para tudo e sem o auxílio de nin
guém.
Mantinha ao tem po um diário de bordo (por recom endação de Guitton.
de quem já falarei), e todos os dias começava a minha página pela invocação
da «vontade de poder», fórmula que eu apanhara algures e que me servia de
resolução de sair do \ azio e de me afirmar pela força de uma vontade vazia
tiuc não era capaz de substituir a natureza. A par dela figuravam longas decla
rações de am or p o r Simone, que nunca tive a coragem de lhe mandar. «Isso
não se faz», respondera-me a minha única esperança, a m inha tia, a quem
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F r T I R o \i r I 1 o M P o
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/ o r / V . i /. / H r V /: R
l'iquei c\ identem entf cheio de \ ergonh;i, mas o meu desespero era mais fone
não tugi nem mugi, apoderei-me da p ro \a corrigida pelo mestre. conser\ei =
essencial dela (as partes, os seus temas e a conclusão) que adaptei o melho
que pude a meu modo, ciuer dizer, ao que já conseguira apreender com o send<
a maneira de Guitton. letra incluída. Q uando Guitton nos entregou public;;
mente as provas, cobriu-me de elogios sinceros e estupefactos: tinha feito tat
tos progressos em tão pouco tempo! F.ra o primeiro com 1" em 20 ,
Bom. Belo meu lado. eu tinha muito simplesmente copiado as correcçõt
de Guitton, fizera batota, «cravara» e pilhara o seu te x to ; supretno artifício
impostura para conquistar os seus hivores. Sentia-me confust): era impossí\i
ciue ele não tivesse dado por nada! \ãv) me estaria a m ontar uma armadilin:
Porque pensei que ele percebera tudo e por generosidade mo queria escontk
.Mas ciitando, passado tmiito tempo, talvez trinta anos. ele me voltou a fal..
C(.)tn adniiraqão desse exercício e.xcepcional e eu lhe respondí contatido-lba
verdade, ele ficou ainda mais estupefacto. Nem p<tr um instttnte desconfitira
minha impostura e continuav;i a não querer acreditar nel:i!
(guando eu dizia cjue tim mestre não destesta qite lhe devolvam a su;i pr.
pria imagem, e t|ue muitas vezes nem sequer a recotthece, sem dúvicht s».
efeito d(t prazer consciente/inctmsciente qtte ela lhe dá de se reconhecer nin
tiluno escolhido...
(^)ue benefícios tirei eu próprio do caso ? Setii dúv id;i a vantagem de pass.:
directtimente pant a frente da ttirma, de gozar finahnente da consideração d<
meus jovens colegas — sobretudo dos veterantts — e de ser aceite pela turm.
.Mas a c|ue preço! Ao preço de utna verdadeira impostitra que, daí em dian;
não parou de me atligir. Já suspeitava de epte só conseguia existir à custa c
artifícios, d;i contracção de ernpréstitnos cpie tne eram estranhos. Mas d e
leita já não estav am em caitsti artifícios de qtte eu pelo menos me podia coti:-
derar o hábil autor, mas de uma im p o stu ra e de um roubo, ejue detnonstrav a*
claramente que eu só era capaz de existir à ertsta de utna verdadeira falsifit
ção da minha verdadeira natureza, pelo desvio sem escrúpulos do pens
triento. do próprio raciocínio e das fórtmilas do meu mestre, quer dizer, de m
outro diante do qual eu queria aparecer para aparentar seduzi-lo. Quandi,
culpabilidade intervém, a não-existència para si deixa de ser um problet
100
o F I I l R O F ,17 7 / 7 T F i; /' o
técnico para sc transformar num prt)hlcma moral, Dora\antc não mc senti ape
nas não-existente. mas também cu lp a d o de >iâo existir.
Naturalmente beneficiei do que acontecera. Não só porque Guitton me
distinguira e a partir daí alimentou a meu respeito um amor puro e uma verda
deira admiração de confrade. Eu era o seu outro. Fez-me confidências sobre os
seus trabalhos, chegou a levar-me a Paris onde tive de condenar filosofica
mente (com a ajuda de Racaisson) o materialismo perante um público de reli
giosas. Guitton, de resto, continuou a seguir a mim a exposição que achara da
minha parte um tanto seca.
ãbdavia cu aprendera com Guitton, pedagogo admirável senão grande
filósofo, duas \'irtudcs propriam ente unicersitárias, c]ue mais tarde ti\eram
grande papel no meu sucesso: em primeiro lugar a mais extrema clareza de
escrita, em seguida a arte (sempre um artifício) de c o m por e redigir sobre
qualquer tema. a p r io r i e como por deduçãtt no vazio, uma dissertação cjuc se
sustente e conc ença. Se o consegui com o o fiz no concurso para a Normale, e
depois nas p ro\as de agregação de filosofia, é de facto a ele que o devo. Por
que ele me transmitira (sem que eu tivesse tido que os forjar laboriosamente)
o conhecimento não de artifícitts arbitrários, mas justamente dos artifícios cer
tos para obter (ainda c]ue como impostor, mas justamente eu não tinha então
outro caminho) o reconhecim ento na Unitersidade ao seu mais alto nível.
É claro que a partir de então concebi, como de mim próprio, uma ideia
pouco gloriosa c pouco respeitadora da Universidade, ideia cpie nunca me
abandonou e que, como é compreensível, ao mesmo tempo me prejudicou e
me serviu.
Guitton ficou apenas um ano anunciando-nos cpie seria substituído por
um certo M. Labannière. No ano seguinte, vimos chegar Jean Lacroix. Guitton,
deixara-nos com uma estranha pirueta.
\'ivi com Lacroix, hom em íntegro, católico «personalista», amigo de
Emmanuel Mounier, filósofo conhecedor da história da filosofia, utilizando os
artifícios herdados de Guitton-, fui sempre o printeiro em fiUtsofia. mas com e
cei a aprender apesar de tudo e graças a ele alguma coisa da matéria. Lacroix
desposara uma jovem da casta mais fechada da burguesia de Lyon, que o consi
derava o dem ônio e Iho fazia vivamente sentir, uma \ez tjue ele não era do
101
L O r / s A L T H r S S E R
grupo nem partilhava as suas idéias reaccionárias, Lacroix foi, neste contexto
de exclusão p o r certo muito duro de viver, um hom em de extrema coragem
que se em penhou na resistência e apoiou depois da guerra todas as causa^
generosas.
Mas o hom em mais espantoso da K hâgne de Lyon era o professor de his
tória Joseph Hours, a que chamavamos p o r afeição o «velho Hours». Detesta\a
cordialmente Guitton, de quem dizia que não era um hom em , mas uma
mulher, e, pior ainda, uma «mãe». Oh! minha mãe... Baixo, atarracado, com
uma cara e um bigode à Lavai, estava muito metido na política, sendo um do»
fundadores de VAuhe com Georges Bidault, e apresentando a singularidade d<
ser um católico convicto, mas jacobino e naturalmente galicano, ferozmentc
contrário ao ultramontanismo do partido europeu em que continuar a a ver a
herança do Sacro Império. Não hesitava em nos elucidar em voz alta e na pró
pria sala de aula (e mais tarde em sua casa quando o visitavamos, privilégio
ciue lentamente fui conquistando) sobre a situação política francesa. Em 19.^“
segundo recordo, dizia-me: «A burguesia francesa odeia tanto a Frente Populat
que de hoje em diante lhe prefere Hitler. Hitler vai atacar e a burguesia fratt
ccsa vai escolher a derrota para escapar à Frente Popular.» Contento-me com
esta frase, mas que se apoiava numa análise minuciosa da situação das força»
sociais e políticas e também da personalidade e da carreira de hom ens políti
COS cujo com portam ento ele observava com atenção. Deste m o d o distinguira
em particular iMaurice Thorez entre os melhores, e punha todas as suas espe
ranças não nos privilegiados mas no «povo de França» do qual escreveu uma
pequena H istória — um pouco sem dúvida na esteira de Michelet. É ao velho
Flours que devo as minhas primeiras perspectivas sobre a política e o que nela
estava em jogo, e também sobre o comunismo, que para mim se reduzia a T h o
rez. Hac ia nele não sei o quê que me lembrava, fisicamente e pelos seus cons
tantes resmungos, a mem ória do meu avô, que m orreu nesta altura, deixando
por vinte anos ainda, a minha avó) sozinha na sua casa de Larochemillay,
Foi então que tentei realizar um grande desígnio que elaborara a só)s
A Igreja lançara, para fazer frente ao desenvolvimento do socialismo, aquilo a
que se chamava os movimentos da Acção Católica. Não se tratava de um m ovi
mento global, mas de movimentos especializados para as diferentes camacLi'
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l o l ! V A !. / // / V V / R
1(J4
; mobilizado cm Issoire, num grupo dc alunos oficiais dc rcscr\a (1X)R)
F .í artilharia hipomóvcl. Conhcci as tristes reservas do exército francês,
•idos cavalos de tiro requisitados, os turnos dc guarda da noite, as estre-
>nde uma rapariga esplêndida, pequena e escura, com o perfil que se
,,iiis absolutamente dorm ir comigo na palha — mas eu naturalmente
,is suas ofertas. Conhecemos as brincadeiras do comandante de pacoti-
.irbon de Casteljaloux, e arranjei excelentes amigos, dos quais desgraça-
vc só um sobret iveu.
,.imos até à Primaxera de 19-iü em Issoire, com a instrução a arrastar-se
, .1 tiròle (le guerre» Guitton estava em Clermont no estado-maior, e
,ic \ ez em quando visitar-me. Eu tinha muito m edo da guerra, não tanto
oorto com o de ficar fe r id o e, continuando a ser crente, descobrira uma
I para me ajudar a adorm ecer em paz: «Meu Deus, seja feita a Mtssa
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/, o í l s Á l T U l ,S E R
mais tarde, vi-me também eu ameaçado pela aviação. Fingi adoecer e, ante^-
que o m édico \ iesse ver-me, tentei certa noite viciar o meu termômetro, esfrc-
gando-o vigorosamente na coxa. Mais uma batota desonrosa. E sem resultado,
segundo creio, () médico apareceu e não me deu baixa.
Entretanto, o meu pai, felicíssimo com os seus enorm es canhões, era
mobilizado para os Alpes, aiema de Menton: mas desta \ ez debaixo de cúpula-'
de cimento: despreocupado. Comia e bebia muito bem na cantina com rancho
melhorado dos oficiais. Atirava-se de vez em quando um obus contra um porto
italiano, para «manter o moral». Mas nada de muito sério.
A m inha mãe saiu de Lyon e foi ter com a minha avó à casa d(J Morc an
Estava finalmeiite sozinha! E acontcceu-lhe então uma coisa mararilhosa
Tornou-se secretária da m airie, e teve de enfrentar numerosos problema
locais, agravados ainda pela derrocada de Maio-Junho de 1940. Desempenhou
a tarefa de maneira admirável, sem o menc:)r incôm odo de saúde. Deixac:;
finalmente de estar sob a autoridade do marido, podia finalmente fazer o que
queria, sentia-se feliz e todas as suas doenças desapareceram.
Q uando hoje a \ ou ver à sua clínica, mal me reconhece, mas diz-se muite
feliz, tem uma saúde perfeita apesar da sua idade ar ançada e recusa-se a sn
tratada por Mme Althusser. É Lucienne Bergen o seu nom e de solteira, nada
mais. Assunto resolvido, mas sô com sessenta anos de atraso!
Em Março-Abril de 1940, mandaram-nos para Vannes. onde a instrução fo'
acelerada. Elouve um exame final, no qual fiquei naturalmente em último lugar
O primeiro foi o padre Dubarle, hoje muito doente. Se tiver oportunidade ck
me ler. saiba que nunca o esqueci e que li os seus belos livros sobre HegcT.
As tropas alemãs aproximavam-se de rajada. Paul Reynaud anunciara qiu.
nos bateriamos no «reduto bretão» mas, umas atrás das outras, as cidadc'
foram sendo, e entre elas Vannes, declaradas «abertas». Os nossos oficiais [esta
vam] sob o com ando do sinistro traidor general Lebleu, que por m edo dO'
«comunistas» que podíamos ser ou vir a ser, nos impediu de nos m ovim entar
mos na direcção do Loire, então livre em Nantes. passando depois para Sul
Mantcc e-nos reclusos no cjuartel. sob a nossa p r ó p r ia g u a rd a , inclusive n.;
altura em ejue os alemães e os seus carros de assalto chegaram, «Se abandona
rem os vossos postos, serão considerados desertores e fuzilados!»
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I. o r j V ,4 I. I n r s s /: R
camponeses norm andos com quem trabalha\a. Alguns, a coisa era mais forte
do que eles, esforçaram-se para m ostrar os «Chleubs» com o se trabalhara em
França. Nós, os estudantes, fazíamos o mentts possível e não éramos bem ras
tos pelos nossos camaradas normandos. Estes últimos acusar am-nos tranquila
mente de «sabotagem»!
Conheci então hom ens para mim inauditos. Sobretudt) Sacha Simon,
grande jronalista de L Est ré p iib lic a in . sempre a contar histórias pornográficas
que me deixavam siderado. Masturbara duas mulheres ao mesmo tempo por
baixo da toalha da mesa de um grande jantar, «nada mais fácil, elas não c)uerem
outra coisa». iMais tarde ouvi muitas outras semelhantes. Em particular as aven
turas de uma amiga funcionária internacional que só tem uma ambição na
rida; fazer ejacular p o r baixo da mesa os oficiais superiores do Exército Ver
melho. Um deles sucumbiu até de um enfarte devido à emoção. Entretanto eia
já «comeu» a imensa maioria dos presidentes da república e diversos bipos e
cardeais. O seu objectir o último, ainda não alcançado segtindo creio, é o
papa. H ela ria, ria sem parar!
Um dia adoeci, ao que parece dos rins, e para meu grande espanto, por
decisão do médico francês do campo, o tenente Zeghers. que eu voltaria
depois a encontrar no cam po central, uma ambulância alemã extremamente
confttrtável conduziu-me. num dia de caminho, ao hospital do campo. Fitiuei
por lá oito dias, e fui colocado no referido campo, Schleswig, staUig XA.
C) meu número, cheit) de zeros, era ~06~(). Ficava-me bem. Continuei a ter que
fazer trabalhos pesados, descarregar tagões de carvão, etc.
Sentia-me perfeitamente à vontade nestes exercícios de força e sentia-me
feliz acima de tudo com a com panhia fraterna dos meus camaradas cam p o n e
ses: território que eu conhecia desde a infância.
O campo albergav a contingentes de polacos que, tendo sido os primeiros
a chegar, haviam deitado a mão a todos os serviços e viam com muito maus
olhos os franceses que tinham «traído» em 1939. Havia também belgas reple
tos. oficiais subalternos de carreira entre os c]uais um flautista e um actor que
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/ r / r K o /: .1/ / / / o 7 /; _u /" o
fazia dc m ulher no teatro, e «sérr ios» misertueis dos quais vÁrios se enforca
ram nas suas camas.
Segundo a letra da Convenção de Genebra de 1929. cada nacionalidade
deveria estar representada junto das autoridades alemãs por um «homem de
confiança» eleito pelos seus camaradas. O primeiro, um certo Ceruiti — ven
dedor de automóveis na Suíça —, fora oficiosamente designado pelits alemães,
sem dúc ida por falar muito bem alemão. Durante algum tem po fui «despejado»
na enfermaria do campo, onde me tornei especialista na arte das injecções,
que pessoahnentc não me doíam nada (quase pelo contrário) ejuando tinha
que ser eu a sofrè-las (o contrário da lança de empalar!). hncontrava-me sob
a protecçãt) do dr. Zeghers. sempre eatita no seu impecável uniforme, bu tinha
conscguidtí aprender sozinho algum a lem ão: fui assim chutado para «enfer-
meiro-chefe». ¥ vi-me, com o outrora na minha patrulha de escuteiros, e mais
tarde no liceu Saint-Charles, frente a um enorm e fura-v ídas parisiense de calão
e \ oz fortes que não queria \ergar-sc às minhas «ordens». .Só queria partir-me
a cara. Recuei perante ele, forçatkí a engolir a minha vergonha.
Este suplício durou até ao dia em que os alemães, para o recompensarem,
repatriaram o «seu» hom em dc confiança. Como Pétain obtivera de Elitler em
.Vlontoire o «privilégio» (contrário à Convenção de Genebra) de ser a França a
«nação protectora» dos seus próprios prisioneiros e com o Pétain aproveitara
esse «acordo» para m andar para os campos oficiais franceses «ctjlaboracionis-
tas» cjuc faziam propaganda da Rer olução Nacional e po r lá cria\ am lir remente
Círculos Pétain. os alemães consentiram que o novo hom em de confiança
fosse eleito, mas apresentando o seu candidato: o presidente do (.írculo
Pétain, um jor em de sangue azul e de uma beleza admirar ei.
Mas, aü, não tinham contado com o espírito de contradição da arraia-
-miúda francesa! Uma campanha eleitoral clandestina e gigantesca foi desenca
deada em dois dias, sob o impulso de um parisiense, profético anarquista dc
falas insolentes. .Uu.xiliava um miserável oficial dentista baboso e m edonho
de SC r er, que passar a o seu tempo, diante de todos, a atirar bocados de c h o c o
late às desgraçadas ucranianas do campo vizinho para elas lhe abrirem as p e r
nas robustas, a dez metros de distância. E o oficial dentista masturbava-se
então diante do sexo exposto das prisioneiras. Todo o campo estava ao
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L O r í s 7 // !' S S /: R
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ser coisa diferente de imposturas, que podiam muito pelo contrário produzir
efeitos benéficos para o seu autor e para os outros homens, na condição de se
saber o que se queria e de se dom inar toda a culpabilidade, em suma, se se
fosse livre, o cjue a minha análise havia de me ensinar. Sem que então o sou
besse e sem nunca cfectuar a mais pequena aproximação disso com a minha
mania-medo dos artifícios que me constituíam, aproximava-me — só muito
mais tarde o descobri — das regras enunciadas pelo único hom em — digo
bem. o único hom em —, que reflectiu sobre as condições e as formas da acção
— em política apenas —, o único hom em que, muito antes de Freud, como
penso explicar um dia, an tecip o u em g ra n d e m ed id a a sua descoberta ■
.
iMaquiat el. Porém eu estava ainda muito longe de aí chegar.
O que me ensinou também a experiência do cativeiro, [foi] '(t bem que
me sabia \ iver na com panhia já não de pai e mãe e no universo (sem sombra
de exterior) dos estudos, das aulas e do apartamento familiar; em suma. já não
sob o terrível, digo bem, terrível, ouves-me, R obert F ossaertí ouves-m e de
dentro do teu h o rrível tiím ulo, Gramsci?, do terrível, do assu sta d o r e do
m a is m edonho de todos os aparelhos ideológiccjs de Estado que é, num a
nação onde bem entendido o Estado exista, a fa m ília . E se eu disser que
até em Lyon, durante três anos — quando tinha entre dezoito e vinte e um
anos! —, fora dos meus companheiros de khâgne e dos meus professores, eu
não conheci a b so lu ta m en te ninguém'': E isso po r que razão, a não ser por
uma mescla atroz de medo, de educação, de respeito, de timidez, de culpabili
dade, que me fora inculcada por quem? pelos meus próprios pais, apanhados
eles próprios e encurralados com o nunca na estrutura ideológica atroz para a
minha mãe e também para o meu pai, po r muito cjue as aparências indicassem
o contrário, e isso porquê senão para inculcar a uma criança todos os elevados
valores c|tie correm na sociedade em cjue ela viv e, o respeito absoluto por toda
a autoridade absoluta e acima de tudo pelo Estado que, após Marx e l.cnine.
^ A inclusão pelo auto r ele uma longa digressão acerca do papel da família. relaii\ amente a uma
primeira versão deste capítulo, levou-nos no presente parágrafo e no seguinte a efectuar duas correc-
(,'ões mínimas que figuram entre parênteses rectos e que perm item restituir a coerência do desenvolv i
mento. (,V. d o E. fra n c ê s )
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L O I / S I / / II I S ,S I: R
sabemos, graças a Deus, ser uma lerrí\el «máquina» ao serviço (sim, Fossaei
sim, Gramsci), não da classe dominante, ciue nunca está sozinha no poder, m
das classes cpie constituem o «bloco no poder», tão bem designado por lu
certo Sorel aqui em França e no meio da indiferença teórica e política gem
Mas por tjuanto tem po os espíritos mais informados e mais inteligentes se ck
xarão iludir pelo que é ainda mais cegtj e mais cegante do que o terríx'.
veneno surdo do inconsciente, que Freud soube pescar no mais fundo di
mares com a sua longa rede de malhas, por quanto tempo se deixarão ek
ainda iludir pela evidência ofuscante da natureza profunda do aparelho itleok'
gico de Fstado da F arnüia t Deveremos dizer hoje depois cias três grandes fei
das narcísicas da Humanidade (a de CFaUleu, a de Darvvin e a do inconscienii
que existe uma ejuarta ainda mais profunda, pois a sua revelação é absttlut.*.
mente inaceitável pelo indi\ íduo (porque a família é com efeito a todo i
m om ento próprio lugar do sagrado, e portanto do p o d e r e da religião) e
realidade irrefutável da Família surge deveras com o t) mais poderoso tios apa
relhos ideológicos de Fstatk)?
,\o cativeiro tinha pela frente [além dissoj um m undo completamentc
diferente do da maldita família: hom ens maduros e desligados, pelo meno''
para o melhor, da sua fa m ília , pois que adultos e livres: esses camponese»
norm andos e peciueno-burgueses belgas, e estes oficiais subalternos de carreira
polacos que não paravam de evocar em voz alta quer os seus repastos panta-
gruélicos dos tempos de paz. quer as suas av enturas e obsessões sexuais até ao^
porm enores mais crus e mais íntimos, ensinavam-me de certo m odo o que c
ser-se adulto e sexualmente liv re, ainda que o não fossem nem econom ica
mente, nem socialmente, nem politicamente, nem ideologicamente, muito
pelo contrário, pois eram sob todos esses aspectos hom ens «alienados» (ou
seja, para deixarmos de falar com o Feuerbach ou Hegel, hom ens exploradores
ou explorados, opressores ou oprimidos, inculcadores ou inculcados!). Ora
tjue descobri eu neste m undo novo? A minha obsessão de querer sempre
poder dispor de reservas. F, foi um ponto capital para me com preender a mim
próprio.
Durante o primeiro ano, quando nos davamt ao todo e no máximo duzen
tos e cinquenta gramas de pão escuro e cinquenta gramas de chouriço de
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Tivera contudo a lucidez suficiente para concluir desses dois meses que tinha
de ajudar a minha irmã (que interrompera os estudos para se tornar enfermeira
de crian(,as pequenas e tivera que cuidar dos terríveis feridos do bom bardea
mento de Casablanca) a sair dacjuele m undo sem saída. Assumi então a causa
dela, convenci a minha mãe, que ma «confiou», velho estribilho, e partimos
juntos, num navio avariado que só avançava em semi-círcuUts. parava e voltava
a arrancar Quatro dias e noites de m ar no meio de um cheiro fétido para che
gar a Marselha. Descobri um quarto para a minha irmã em Paris e entrei final
mente para a École.
Cm desastre! Não conhecia lá ninguém (era o único da minha le\a a ter
sido feito prisioneiro, e de resto, provinciano com o era, nunca teria co n h e
cido, mesmo em 1939, ninguém do m esm o ano). Sentia-me irremediavelmente
velho e ultrapassado po r todos os acontecimentos. Já não sabia nada do ciuc
outrora aprendera e chegara de um m undo completamente diferente do da
l ni\ersidade. Hsse «outro mundo», e a impressão de ser completam ente estra
nho ãs pessoas, aos costumes e à \ada universitárias, nunca dei-xaram de me
perseguir. De resto nunca estabeleci qualquer relação pessoal fosse com que
uni\ersitário fosse, excepluados Jean-Toussaint Desanti e (leorges Canguilhem,
mas \er-se-á depois porque. ,Se mais tarde defendi uma tese, foi sob a insistên
cia premente de Bernard Rousset. presidente da l PR de ,\miens, que desejava
que um «parisiense», «conhccitkt pela sua notoriedade» (Heine), desse um
pouco de relevo a .Amiens. Pm suma. estar a coinpletamente sozinho, sentia-me
além disso doente (as minhas obsessões sexuais e perturbações da visão insis
tentes — de facto simples «moscas ratadoras» — que me faziam recear a
cegueira) e sem quaisquer perspectir as. Outrora, influência sem dúvida tk)
«relho Hours» e já gosto pela política, teria gostado de fazer história. Mas
recuara diante desse objectivo (já não tinha memória, ou pelo m enos pensti-
ra-r>). Agarrei-me à filosofia, dizendo para comigo ejue afinal de ctmtas me
chegaria saber fazer uma dissertação bem feita. A minha ignorância pouco
importara, conseguiria sempre safar-me.
O médico da Pscola, o jovem dr. Étienne, para me proteger, embora sem
acreditar minimamente nas minhas afecções oculares (tinha toda a razão!),
admitira-me na enfermaria da Hscola onde ocupei um quartinho mesmo ao
120
r i / r R o I M r i i o / /: i; o
' Acrcsccniado na margem do texu). sem que a ligação com o resU) da frase tenha sido feita
pelo autor; «sobre quem Helène. lendo-o c o n h ec id o cm Lyon. tinha idéias hem definidas, com o as
tene o meu pai q u a n d o recei)eu a sua visita a (iasablanca e fez dissimuladamenie p o u c o dele contando-
-Ihe «patranhas» (podia-se contar com a discrição e o h u m o r feroz do meu pai)> . <.\. do J.. fríuicès)
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L O V I S A L T H V S S V K
122
XI
TV T uma noite de Dezembro de 46, com Paris coberta de ne\e, Lesèr re con-
X^ vidou-me a visitar a sua mãe, que regressara da deportação num triste
estado, no apartamento dela ao cimo da rue Lepic. Ainda me vejo a atravessar
ao lado de Lesèvre, que falava por dois, a ponte da Concorde, coberta de neve.
Ele falava-me da mãe. Foi então que me disse: «Vais conhecer também a
Hélène, uma grande amiga minha, um bocado louca, mas absolutamente
extraordinária pela sua inteligência política e pela generosidade do seu cora
ção.» Um bocado louca? Que poderia isso significar ao pé de tamanhos elo
gios? «Encontramo-nos com ela ao fundo da rue Lepic à saída do metro.»
Efectivamente ela lá estava, esperando-nos no meio da neve. Uma m ulher
pequenina, embrulhada numa espécie de capa que a dissimulava quase p o r
completo. Apresentações. E logo a seguir caminhada até ao cimo da rue Lepic,
pelos passeios cobertos de gelo. O meu primeiro movimento inteiramente ins
tintivo, foi dar-lhe o braço para a amparar e a ajudar a subir a rua inclinada.
Mas foi também, sem que eu jamais tenha sabido porquê (ou antes, sei-o dem a
siado bem: um apelo de am or impossível, juntamente com o meu gosto do
p a th o s e do exageres dos gestos) fazer no mesmo instante escorregar a minha
mão por baixo do braço dela até à sua, e tomar-lhe assim a mão fria no calor
da minha. Fez-se silêncio, estávamos a subir.
Conservo uma recordação patética do serão. Ardia na lareira um grande
lume. Mme Lesèvre. feliz po r voltar a ver o filho, recebeu-nos calorosamente.
Era uma m ulher alta, que as provações tinham completamente descarnado.
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L o í I S .-1 [ r H l S S f K
pálida e quase apenas uma sombra; nunca sorria. Fala\a devagar, procurando
bem as palar ras para evocar as memórias exaltantes da Resistência e os pesade
los «sinistros» da deportação: os campos de deportação não tinham de facto
nada a ver com os campets de prisioneiros que eu conhecera, e nem sequer
com as cttndições da Resistência cjue tlélène e Georges tinham vi\ ido. Com
eíeito eram algo que não se podia sequer im aginar. Georges sempre fora dis
ereto quanto aos seus feitos nos Alpes e na cidade de Lyon. Fai ouvir afalar dos
deportados, mas era a primeira \e z que conhecia um deles, e trata\a-se para
mais de uma mulher, que se mantivera bem direita e firme nas suas provações
Recordo que cu trazia então vestido (sentido da economia, pelo que não com
prara outro) o casaco estreito e de mau corte, um casaco castanho tpie mal me
ser\ ia, que me tinham impingido barato em Paris após o meu regresso do cati
\eiro. Mais tarde, Flélène falou-me muitas vezes desse casaco e da sua emoção
ao \er-m e tão mal \estido. com o um adolescente desajeitado, completamentc
indiferente ã sua aparência, um fantasma regressado de outro mundo.
F de facto durante muito tempo vesti-me com fatos desengraçados, c o m
prados feitos, sem arranjos nem retoques h p o r economia e uma espécie de
deleite em ajtarentar pertencer ao m undo dos sem recursos, os pequenos ára
bes da minha infância e os soldados do meu cativeiro. Lembro-me de que
nessa noite disse apenas algumas palavras para evocar a Guerra de Fspanha.
recordação do «velho Flours» e também da minha avó que, um dia em que
estac a a ler-lhe em Larochemillay algumas páginas de VH spoir ác Malraux, não
foi capaz de reprimir a sua campaixão: «Pobres crianças!» Hélène, atentíssima
às palavras de Mme Lesèvrc, e depois às minhas escassas afirmações políticas,
não disse quase nada. Nada da sua própria miséria, nada dos seus amigos fuzi
lados durante a guerra pelos nazis, nada da sua infelicidade desesperada,
Entrec i nela apesar de tudo uma dor e uma solidão insondáveis e julguei c o m
preender retrospectivamente (mas não era c erdade, já o disse) por que é que, na
' Acrescento miinuscrito à margem do texto sem que a iiga<;ão com o resto da frase tenha sido
íeita pelo autor «nunca por m edida lexcessivamenie caro) até que a belíssima e amaniíssima (daire. o
meu primeiro a m or paralelo a lléiène, me ensinou a vestir-me com certa elegância. Ilélcne sempre Ihe
reconheceu esse mérito». {.V. cio /;. francês)
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rue Lcpic. tomara a sua mão na minha. A partir desst m om ento fui ineadido
p(.)r um desejo e uma oblação exaltantes: salvá-la, ajudá-la a \ i\er! ,\Linca em
toda a nossa história e até ao fim. me separei desta missão suprema c]ue não
deixou de ser a minha razão de ser nem no iiltimo momento.
Imagine-se o encontro: dois seres no auge da solidão e do desespero que
por acaso se \è e m cara a cara e reconhecem um no outro a fraternidade de
uma mesma angústia, de um mesmo sofrimento, de uma mesma sttlidão e de
uma mesma expectativa desesperada.
Pouco a pouco, eu ficaria a saber quem ela era. Oriunda de tima família
jtidaica dos confins da Rússia e da Polônia, fugida aos pogromes, R\ tmann de
seu nome. nascera em França, no x m ii bairro, do lado da rue Ordener, mas
brincara com os filhos da xaleta nas ruas da cidade. Conser\ara uma recorda
ção atroz da mãe que. não tendo leite para lhe dar, nunca lhe deu o seio. nunca
a teve nos braços. A mãe odiax a-a, porque queria um rapaz, e atjuela rapariga
escura e selvagem alterava todos os planos do seu desejo. Nunca essa mãe te\c
um gesto de ternura j)ara ela: ódio e só ó d i a Hélène que, com o qualquer
criança, desejac a ser amada pela sua mãe e \ ia que tudo lhe era recusado, o
calor do leite e do corpo, a atenção dos gestos de am or e de acolhimento, aca
bou por se identificar irrevogavelmente com a m edonha m ulher tjue a odiava,
e também com a imagem arroz que a mãe fazia da filha: detestada porque recu
sada, negra e seh tigem, pequeno animal rebelde impossít el de e\ itar, sempre
a transbordar de furor e violência (sua única defesa). ,A composição, a sobre
posição da imagem de uma mãe m edonha e cheia de ódio e da imagem que
essa mãe, toda ela ódio. fazia da sua menina, um animalzinho negro, raixoso
e \iolento lutando pela sobrexivència. constiluiria durante toda a xida dela e
até ao fim o horríxel fantasma de Hélène: tinha um m edo incontrolável de ser
para sempre ela própria uma m ulher m edonha, uma megera, cheia da mais
extrema injustiça e violência, espalhando o mal à sua xolta, sem nunca ser
capaz de dom inar os excessos atrozes cm que essa força, mais forte do que ela.
sem tréguas a lançava.
Também atiui não podem os garantir que Héléne pudesse ter a pretensão
de representar fosse no que fosse o reflexo objcctivo exacto da sua mãe real,
nem das intenções conscientes, e por maioria de razão inconscientes, dessa
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L O r / ,s A I. r If f S S H R
mãe. Podemos quando muito dizer que este fantasma inaugural não era arbitrá
rio, antes se agarrava a «indícios» de realidade através dos quais o desejo (o
desejo implacável) do inconsciente e da «vontade» da mãe podia investir-se.
É verdade que Hélène em criança era raquítica, escura e violenta. Mas os aces
sos de violência... deste modo, até a coberto da memória, algo de bem real se
expressava, algo que, literalmente, proibia Hélène de t'iver. tão atroz era o seu
pavor de não passar de uma megera m edonha, para sempre incapaz de ser
amada, de ser amada — porque amar, isso ela sabia-o, e de que maneira! Julgo
que nunca vi num a m ulher tamanha capacidade de amor, não em fantasmas
mas nos actos: provou-mo tanto!
Em contrapartida, conservara uma boa recordação do seu pai. Esse
hom em brando e atento tinha uma pequena loja de legumes no x\ iii bairro.
Na comunidade jucaica do lugar, era considerado um «sábio» consultavam-no
e ele estava sempre disposto a socorrer o próximo. Tinha uma p a ix ã o ; os cava
los (também ele). Acabou por com prar um, do qual tratava com a filha, c estes
cuidados partilhados em intenção do animal, no meio da confiança e da afei
ção do pai, davam a Hélène uma verdadeira alegria, que nunca percebera
com o é que o pai, a não ser graças a uma paciência infinita, era capaz de \ iver
com a mãe. Em breve trocariam o x\ lu bairro por uma casa pequena no vale
de Chevreuse. Foi aí que se desenrolou o drama.
O paí teve um cancro. Os irmãos e a irmã de Hélène viviam ao que parece
por sua conta, sem grandes atenções para com os pais. Foi Hélène, aos dez,
onze anos, quem passou sozinha meses e meses à cabeceira do pai a assisti-lo
e a tratar dele, tarefa que a mãe alijara por completo nos ombros da má filha.
Havia sem dúvida o bom dr. Delcroix, de quem Hélène gostava muito porque
a ajudava com o um hom em de verdade, caloroso e atento, sendo o seu único
socorro num a solidão e nesta responsabilidade de molde a esmagar uma
criança. Mas ai! um dia o bom m édico tentou, num m om ento de confiança,
brincar com as cuecas e o sexo da rapariguinha. Foi como se o seu único
amigo no m undo a tivesse abandonado. Continuou a cuidar do pai, e foi a ela
que o dr. Delcroix pediu, nos últimos m omentos de sofrimento, que desse ao
pai a derradeira injecção de uma dose elevada de morfina. A rapariga horrível
tinha assim com o que assassinado o pai ejue a amava e ciue ela amava.
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H V 7 V R O li M r 1 T O I í: i; )> o
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maiori André Mart\, cuja fabulosa eloquência c cujo «mau feitio» a impressio-
na\ ani. Xo dia 9 de Fevereiro de 193b, participou na batalha física de rua c o n
tra os fascistas, ao lado dos seus camaradas operários mobilizados pelo sindi
cato e pelo Partido. Fra a época de Maurice Thorez: «.As bocas que se abram,
não queremos manequins no Partido!» Um dia chegou mesmo a conhecer jac-
ques Duelos, num bar onde jogou ao bilhar com ele. vencendo a partida: «As
inocentes saem de mãos cheias!» com entou Duelos, zombeteiro.
Foi nesta época que nasceu nela a paixão da sua \ ida: a sua paixão p ela
«classe operária». Fima verdadeira paixão, total, exigente e por certo que em
parte mítica, mas que a protegia eficazmente de um outro mito. o da organiza
ção e dos dirigentes da classe operária. Nunca, nem na sua vida nem perante
mim, ela os confundiu: muito pelo contrário, chegou até o momento, a seguir
a 19és8. em que ela dizia a quem a quisesse ouc ir que «o Partido traíra a classe
operária» e já não compreendia que eu continuasse no Partido. Dos meus
livros, repetir-mc-ia sem descanso que «davam à classe operária o que por
direito lhe pertencia», e era por essa razão que os a p ro \a \a e estimulava. Para
ela, em política apenas contavam a classe operária, as suas \irtudes, os seus
recursos c a sua coragem revolucionários.
Posso enfim a este propósito \arrer aqtii definiti\am ente um mito tenden
cioso que correu de boca em boca. acerca de Héléne e de mim, até mesmo
entre alguns dos meus amigos (mas sem d ú \id a que não entre os mais chega
dos): m m e a Hélèiie f e z a m ín im a pressão sobre m im . nem no dom ínio filo
sófico nem no dom ínio político. ,\ão foi ela. mas sim Pierre Courrèges, c
depois Sé\'eranne e os seus amigos, as minhas próprias experiências sindicais
na École Normale onde me opus aos socialistas e consegui c'encè-los na dis
puta pela direcção do sindicato, e jean-Toussaint Desanti, e Tran Duc Thao,
ciue, comunistas e filósofos, ensinar am na Fcole Normale, e cujos cursos segui
após a agregação. !\u n ca , nos meus manuscritos, que naturalmente lhe dava a
ler. ela fez a m enor observação destinada a orientá-los de outro m odo: não se
julgava competente nem em filosofia nem em teoria política, não conhecia
O C apital, mas tinha uma experiência incomparável quer do Partido cjuer da
acção política. Contentava-se com aprovar-me, e só interr inha para me sugerir
modificações de molde a reforçar ou atenuar esta ou aquela fórmitla. Sobre
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que é um padre sinistro. Eu era ainda erente. Escrevi já não sei em que diário
dois artigos sobre a \ iagem. As grandes destruições em Itália ainda eram muito
recentes. O nosso co m b o io percorria devagar interm ináveis pontes de
madeira, suspensas a uma altura vertiginosa sobre o vazio, e que oscilavam.
Quandv), de noite, começámos a avistar Roma, rezámos o Credo em coro.
Impressionante e comovente com o um raio. O papa (Pio XII) recebeu-nos em
grupo, mas teve, num francês inverosímil, uma pergunta e uma palavTa para
cada um de nós. Perguntou-me se estava na École Normale — sim — letras ou
ciências? — letras. Pois bem. seja um bom cristão, um bom professor — e
sobretudo (sobretudo!) um bom cidadão! Pio XII resumiu-se todo neste
«sobretudo». E deu-me a sua bênção. Verifico que não correspondi exacta-
mente às suas expectativas.
Foi em Fevereiro de 19-t" que o primeiro drama começou. Eu continuava
a cortejar Angeline, nesse caso fora eu quem tomara a iniciativ^a, e estava assim
em vantagem e m elhor posição. Continuava também a ver Elélène de tempos
a tempos: ntas fora ela quem tomara a iniciativa, não eu: extremamente incô
modo. Tiv e então não a ideia, mas a compulsão irresistív el de apresentar Ange
line a llélène: não foi a última vez cjue me meti num a provocação e impasse
semelhantes, mas estava ao tem po muito longe de desconfiar dos motivos de
tão bizarra ideia: o desejo irresistível de obter de Flélêne a sua aprovação para
uma escolha amorosa que não lhe dizia respeito a ela mas a uma outra mulher.
Convidei-as para um chá em minha casa, no meu pequeno cubículo da
enfermaria. Eu tinha perto de trinta anos. Hélène trinta e oito, Angeline vinte.
Já não sei o que dissemos, mas sei muito bem com o as coisas acabaram: com
uma troca de opiniões acerca de Sófocles. Angeline defendeu já nã(t sei que
ideia, por certo que ainda muito escolar, acerca do grande trágico, eu não me
lembrava de nada que pudesse dizer. Ouvia. Foi então que Hélène. pouco a
pouco, tentou criticar a opinião de Angeline. Primeiro muito serenamente e
com argumenttts sérios, e com o Angeline lhe resistisse, o rosto e a voz de
Hélène começaram a transformar-se, ela tornou-se cada vez mais dura e intran
sigente, cortante, e acabou com uma espécie de «cena» ofensiva (a primeira e
não a última do seu gênero, infelizmente, a que assisti). que atingiu profunda
mente Angeline e a deixou banhada em lágrimas. Eu estava aterrado com
1. ^1
I o l I s A A / II r S S A A'
aquela explosão de \ iolèneia que não com preendia (por que e que Angeliiu
resistira assim a argumentos perleitamente razoá\eis?) e perante a qual me v ia
sem recursos. Angeiine t'oi-se embora e eu fiquei em silêncio. Percebi qm
ílélèaae não suportara a outra rapariga nem sobretudo a cerimônia que eu Ihc
impusera, a cerimônia, ou digamos antes a provocação, e que tudo se encoii
trava doravante partido e desfeito entre mim e Angeiine. Não voltaria a vè-la
Hélène tinha entrado com v iolência, mas sem v iolência contra mim, na minha
vida...
O «drama» precipitou-se uns dias mais tarde ejuando Hélène. sempre n*. ■
mesmo quartito da enfermaria, sentada na minha cama ao meu lado, me bet
jou. Hu nunca beijara uma mulher (aos trinta anosl). e sobretudo nunca for.i
beijado por uma mulher. O desejo subiu dentro de mim, fizemos am or en;
cima da cama. e era uma coisa nova, arrebatadora, exaltante e v iolenta. D epon
de ela partir, abriu-se em mim um abismo de angústia que nunca mais voltou
a fechar-se,
No dia seguinte, telefonei a Hélène para lhe comunicar violentamente qtic
nunca mais faria amor com ela. .Mas era demasiado tarde. A angústia já não me
deixava, e cada dia que (vasstiva a fazia mais intolerável. Será preciso dizer que
não eram os meus princípios cristãos que estavam em causa? Muito longe
disso 1 fratava-se de uma repulsa bem mais surda e violenta, etn todo o caso
mais forte do que todas as minhas resoluçêtes e tentativas de me recom por
moral e reiigiostunente. Os dias passaram e afundei-me nas primícias de um.i
intensa depressão. Acontecera-me viver m omentos difíceis, com o na minha
pturulha eni .Mios, depois durante o cativeiro, e por fim em Casablanca. Mas
natia de comparável, e tudo durara apenas alguns dias, ou até algumas horas,
acabando em bem. lentei agarrar-me ã vida como podia, agarrar-me ao meu
amigo médico, o dr. Htiennc: impossível, de dia para dia afundava-me cada vez.
mais no vazio assustador da angústia, ttma angústia que rapidamente deixava
de ter losse que objecto fosse: aquilo a que os especialistas chamam, penso eu.
uma «neurose de angústia sem objecto».
.Muito inquieta. Hélène aconselhou-me a consultar um especialista. Conse
guimos uma entrevista com Fierre .Màle, o grande psiquiatra e analista da
época. Cjue me interrogou demoradam ente e concluiu tiue eu exibia um estado
/ r / r /<> o .1 / í / / /; .1/ /' o
l.b^
L O l l S A L í H r S S F R
dc iodas as feições, pela sua atitude e pelo seu mutismo zombeteiro, os pacien
tes tinham posto a alcunha de «Estaline». Instalava-se tranquilamente em cada
uma das camas (éramos à vontade uns trinta a sermos tratados por electrocho-
ques), e diante de todos os outros que esperavam a sua sorte, accionava o
manipulo, e o paciente entrat a num impressionante transe de epilepsia. O dra
mático da situação é que víamos Estaline aproximar-se ao longe, as suas \ íti-
mas entravam umas atrás das outras em sobressaltos desordenados e ele pas
sava ao doente seguinte, sem esperar pelo fim da crise do anterior. Ha\ ia o
risco de fracturas ósseas (sobretudo das pernas). TTnhamos que apertar entre
os dentes uma toalha: para mim foi sempre a mesma, a minha única toalha
imunda, para me impedir de cortar a língua. Conservei durante anos na boca
o gosto ignóbil e aterrador, pois ejue anunciava a «pequena morte», o gosto
daquela toalha sem forma nem nome. Chegava a m inha cez, após todos os
espectáculos que os meus vizinhos me haviam proporcionado. Estaline, sem
pre silencioso, aproximava-se, punha-m e o capacete, eu cerrava os dentes e
preparava-me para morrer, e depois havia uma espécie de relâmpago e mais
nada a seguir. Acordava passado pouco tempo (ficat a adorm ecido somente uns
dois minutos, para meu maior desespero, tal era a minha \o n ta d e de me aban
donar ao sono. enquanto quase todos os outros dormiam horas e horas, ou até
metade do dia!) sempre com a mesma pergunta: mas onde é que eu estou? ciue
me aconteceu? Quanto mais avançava mais o meu terror (de morrer) crescia.
No fim, era insustentável. Recusava com toda a energia a cerimônia de execu
ção. mas amarravam-me solidamente à cama.
Gostaria de referir um pequeno incidente, mas que diz muito da atmosfera
do meio hospitalar, da imagem dos pacientes e da incredulidade total dos
médicos psiquiatras perante as afirmações dc um doente. Como não conseguia
dormir e não dispunha de bolas Quiès, para os ouvidos, pensei em fazer umas
com miolo dc pão, minha única matéria-prima disponível. Mas as bolas de
miolo de pão metidas à força no canal do ouvido decompuseram-se rapida
mente (evidentemente, não são sustentadas pela rede elástica mas firme do
algodão das autenticas bolas Quiès) e os seus grãos viscosos entraram-me no
canal auditivo até ao tímpano. Esta dissolução e esta queda no tím pano causa
ram-me sofrimentos índizíveis, dores de cabeça e de garganta insuportáveis.
134
() I r T V R o M r / i <j I H \1 P o
Falei disso aos meus médicos a todo o momento, mas eles não quiseram dar
-me ouvidos, pensando que eu estava a delirar. D urante três senuum s. repito,
três sem anas, recusaram-se a fazer-me examinar po r um especialista de otor-
rino, e eu sofri o meu martírio. Uma vez mais foi necessária a interr enção de
Ajuria ' para os convencer e ao fim de três semanas de horrív el provação, aca
baram p o r me levair ao otorrino que me livrou em dois segundos dos meus
pedacinhos de pão e do meu suplício... Os psiquiatras não tiveram para
comigo uma única palavra de desculpas ou para lamentar o sucedido!
Bem vistas as coisas, o tratamento aconselhado por Ajuria foi dando lenta
mente os seus resultados e, passado muito tempo ainda, mas sem choques,
vários meses depois da minha entrada para o Esquirol, senti-me melhor, embora
continuasse vacilante, mas m enos angustiado, e saí do hospital, Flélène estava
à porta à minha espera. Que alegria!
Lev'Ou-me para o minúsculo quarto de um outro hotel onde uma criada de
quarto miserável lhe roubara todas as suas coisas: não tinha a mínima im por
tância! Um roubo era para ela algo que não contava... p o r comparação comigo
— e com o que ela fizera p or mim — só o soube muito mais tarde, não por ela,
que conservou a esse respeito um silêncio total, mas por uma das suas amigas:
Hélène, que engravidara na sequência da nossa relação sexual isolada, fizera
um aborto em Inglaterra para que eu não sofresse o martírio de uma nova
depressão ao receber a notícia, de tal maneira lhe manifestara um horror atroz
por a ter amado com o meu corpo. Quem sabe o que é um sacrifício assim?
Ainda hoje me sinto transtornado e comov ido p o r ele em toda a minha alma
e todo o meu corpo. Havia [portanto] Véra, a sua amiga viva mas antiga, uma
m ulher muito alta, m orena e bonita, de origem russa e aristocrática. Hélène
guardou silêncio quanto ao roubo e a tudo o mais c eu fui recebido como
nunca. Também eu a tomei nos braços com uma ternura infinita, convencido
de que sem ela por lá teria ficado, talvez para toda a v ida.
Hélène e Jacques Martin (que eu começava a conhecer) descobriram para
mim um lugar de repouso: Combloux, que recebia estudantes fatigados ou
convalescentes. A calma e o esplendor da alta m ontanha que eu amava desde
os meus tempos de escuteiro, as atenções do casal Assathiany que dirigia a casa
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/ o l l s A A / // r S S A A’
l.s6
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l.S"’
L O r / ,v ,1 /_ 7 H l S S /; R
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tão fortemente com o Hélène, tine possuía argumentos mais autorizados do que
os meus, porque sempre lhe fora exterior). Eu tinha pelo meu lado o privilégio
incomparável de amar uma m ulher (que me amava) e de uma qualidade muito
diferente! Não era p o r ela ser mais velha, e sensivelmente mais velha tkt que
eu — essa diferença nunca desem penhou qualquer papel entre nós; o im por
tante era a sua lucidez, a sua coragem, a sua generosidade e a sua experiência,
tão casta e múltipla, o seu conhecim ento do mundo, dos maiores pintores e
escritores do seu tempo, as suas actividades na Resistência, onde chegara a
exercer importantes responsabilidades militares (ela, uma mulher, nesse
tempo: era um h o m em , o próprio Lesèvre o reconhecia). Tivera um papel
heróico excepcional, uma coragem sem falhas e assombrosa para uma judiazi-
nha com um «nariz judeu» identificável a cem passos de distância, com os
cabelos frisados, que soubera evitar as ratoeiras — inclusive nesse comboio de
L\'on para Paris onde foi identificada com o judia, detida por altura de um c o n
trolo da Gestapo, num m om ento em tiue tinha consigo material susceptível de
a fazer fuzilar instantaneamente, tendo sido salva apenas pelo seu sangue-frio
e por ter sabido impor-se pela sua audácia a um oficial nazi que acabou a
gaguejar diante dela. Contava essa história como se se tratasse de uma histo
rieta quakiuer, tão trantiuila a narrá-la com o fora a vivê-la. Em suma, uma
mulher de excepção (pelo m enos foi assim que a senti, com o de resto todos os
seus camaradas da Resistência, Eesèvre e outros alunos da K hâgne de E\on
com t[Liem ela trabalhara e todos os que a conheceram mais tarde durante a
nossa longa vida em comum), maior, infinitamente, do que eu e que me dava.
sem que eu nada tivesse pedido, como sobre aquilo que pensava de mim, a
prodigiosa dádiva de um m undo que eu não conhecia, com que sonhara no
isolamento do meu cativeiro, um m undo de solidariedade e de luta. um
m undo de acção reflectida segundo grandes princípios fraternais, um m undo
de coragem: eu que me sentia tão desvalido e cobarde, recuando diante de
ciualquer perigo físico que atentasse contra a integridade do meu corpo, eu
ejue nunca me batera e ejue nunca seria capaz de me bater, p o r causa daquilo
que pensava ser uma cobardia irremediável; eu de quem ela dizia: «Se não
tivesses ficado prisioneiro, ter-te-ias alistado na Resistência e tinhas sido
com certeza morto, fuzilado com o tantos outros, graças a Deus o cativeiro
139
/, r> l / V A /, / H ( S S li R
gu;ird()Li-tc para mim!» Eu tremia dentro de mim à ideia do perigo mortal a que
escapara, com a certeza de que nunca teria tido nem a força nem a coragem
de enfrentar as provações físicas, mortais, da luta clandestina e armada, eu que
nunca disparara um tiro que fosse, esses tiros das armas de guerra que cm
criança me faziam tanto medo, eu cjue me teria ido logo abaixo diante do mais
pec]ueno perigo, cjue dádiva me oferecia ela e cjue confiança em mim! E e i s
que de súbito, graças a ela, não só me tornava igual a todos os combatentes
que ela conhecera, mas também, de muito longe, infinitamente superior a
todos aciueles p(tbres n o rm a lie n s cuja juventude e cujo saber me haviam
esmagado, ao pé dos quais me sentira tão irreparavelmente velho, tão velho
que toda a juventude — a mim que não tivera juventude — me parecera proi
bida. Sentia-me então jovem, com o nunca nem ninguém — e fiqtici-o sempre
crendo-nic po r exemplo sempre muito mais novo do que o meu analista, con
tudo exactamente meu contem porâneo — e noutro dia ainda, a semana pas
sada, houve essa médica, com trinta anos, sem especial amabilidade. a
perguntar-me a minha data de nascimento; dia 16 de Outubro de 1918 — não
pode ser. quer dizer 38! 38 é o ciue Você quer dizer! Como ela tinha razão, esta
juventude que para sempre devo a Hélène minha bem-amada.
É verdade que a certeza subjectir a desta juventude finalmente descoberta
não se dava sem razões que a pouco e pouco elucidei. Se era e me sentia enfim
tão novo, era porque Elélène era para mim ao mesmo tempo com o uma bo.i
mãe. enfim uma boa mãe, e também um bom pai; mais velha do que eu, con'
outra carga de experiência e de vida. amava-me como uma mãe ao seu filho
o seu filho miraculoso, e ao mesmo tempo com o um pai, um bom pai enfim
uma \ez cjue me iniciava muito simplesmente no m undo real, esse m undo infi
nito no qual eu nunca pudera entrar (cxcepto uma vez mais po r efracção
excepto no cativeiro), e iniciava-me também, pelo desejo tjue de mim tinha
patético, no meu papel e na m inha \ irilidade de hom em : amava-me com o um.;
mulher ama um hom em ! Fazíamos deveras amor, com o m ulher e homem
quando os meus companheiros andavam ainda em busca da maturidade c
— eu tinha a certeza — se ficavam pelo balbuciar de um amor irrisório que
não saía da família e da École. Prova disso era que eu começara, após um pro
k>ngado tem po de sofrimento, a amar até o cheiro da pele de m ulher dela. qm
antes, com o a pele da minha mãe, não era capaz de tolerar. Transformara-mc
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F r I r lí o M r / 7 o t / M p o
não só num hom em , mas num OLitro homem, capa/ de amar de%eras. até
mesmo uma mulher, e uma m ulher cujo primeiro cheiro de pele me parecera
obsceno!
Havia alguém, um amigo recente, Jacques .Martin, que partira para a Ale
m anha com o S'rO e que. não p o r convicção política — gosta\ a dos c o m u
nistas — , mas p o r curiosidade intelectual, me compreendia, nos c o m preen
dia. Tornara-se, ele um homossexual doloroso mas caloroso na distancia da
sua esquizofrenia latente, um amigo incomparável. Podia perguntar-lhe tudo.
ao contrário do tjuc se passava com os meus colegas da Hcole. a quem tinha
vergonha de recelar as minhas ignorâncias (eu pensa\a não saber realmente
nada, nunca soubera nada, ou esquecera tudo o que aprendera) e ele respon
dia-me com o o verdadeiro irmão cjue não tive me teria respondido. Os seus
pais tinham-no abandonado deveras à sua miséria, o pai. um farmacêutico
aterrador que nunca abriu a boca diante dele, a mãe morta havia muito e de
quem ele herdara algum dinheiro. Vivia nem sei bem como, desse dinheiro.
Michel Foucault gostava dele tanto com o eu. Como eu, ajudou-o muitas vezes
com donativos monetários. Mas chegou um temptr em que, sem recursos, sem
esperança de os vir um dia a poder ter (ele tinha uma irmã distante de quem
gostava muito, mas cjue nada se preocupava com ele, farmacêutica também,
segundo julgo, em Melun), acabou, num dia de Verão de 1964, por se suicidar,
na solidão de um sinistro mês de 7\gosto, num miserável quarto do x\ i bairro
arrendado por uma m ulher de idade. Eu estava na altura em Itália, voltarei a
falar disso, precipitado no deslumbramento de um novo amor. e durante muito
tem po recriminei-me com uma vergonha indelével p o r lhe ter faltado, po r não
ter sabido ajudá-lo a tem po com o meu dinheiro, no m om ento decisivo, sim
plesmente a sobreviver. Devo dizer que não tinha muito dinheiro, que o gas
tava prioritariamente com Hélène e continuava com a minha obsessão pelas
reserras que me paralisava nos meus donativos. .Mas tinha dado muito
dinheiro a Jacc]ues. Tudo o cjue pude fazer, quando a irmã dele me perguntou
se emprestara dinheiro a Jacciues (sim, cerca de três mil francos do tempo.
' Scrx icc de Traxail O b lig ato irc íS erv iç o d e rra b a lb o O b rig ató rit)) ao abrigf) d o qual irabalba-
dore.s í r a n c c s e s e r a m d e p o r t a d o s p ara a .Alemanha d u r a n t e a O c u p a ç ã o , (.V. d o 70
141
/, o I / V ,4 /, 7 // r s s i: K
mais do que Foucault), foi responder-lhe; não. nada. Mas que resposta insign-
ficante, quando talvez eu o pudesse ter salvado! Em todo o caso, tratou-se (.í(
único dinheiro que en tã o nunca lamentei ter gasto sem retribuição. Em tod<
o caso. com jacques Martin, o suicídio entrara na minha vida, na nossa \ id.i
sem remédio nem retorno. Elavia, infelizmente, de me lembrar disso.
Jacques Martin não me ajudava, não nos ajudava apenas com a sua afeicã>
intransigente e confiante. Ajudou-me também a descobrir alguém do ofícii
capaz de me socorrer com a sua «ciência». Pode parecer singular hoje, mas ui
tempo, para os estudantes desprovidos de meios e sem informações que ént
mos, se já tínhamos ouvido falar de psicanálise, não conhecíamos nenhum psi
canalista a ciuem nos dirigir nem tínhamos maneira de conhecer. Ora JacqiR '
soube um dia, por uma amiga com um que tentara rnatar-se várias vezes, (maí^
um suicídio, mas falhado) a existência de um hom em , terapeuta que fazia atta
Uses «sob narcose», um bom hom em simpático, acolhedor e um pouco r ú stia
com a sua barriga saliente, que com eçou a tratar de Martin, tendo eu seguidí'
o seu exemplo. Durante doze anos, repito, doze anos, ele «tratou-me», tiucr
dizer, fez-me na realidade uma psicoterapia de apoio. Tinha um grande presti
gio aos nossos olhos (acabou p o r tratar toda a família, a minha irmã, a minha
mãe c muitos outros amigos chegados» porque mantinha, segundo dizia, rela
ções pessoais, que foram sempre um tanto misteriosas, com médicos soviéti-
ct)s que lhe enviavam ampolas de «soro de Bogomctlcv» que fariam maravilha-'
«em quase todos os casos» e permitiram, ao que parece, à minha irmã, que
morria desse desejo, ter um filht) do hom em com quem casara, um jovem pari
siense do povo, de pés bem assentes na terra, falando um calão transbordante.
com uma liberdade de linguagem sem dtávida excessiva mas de uma exemplar
honestidade e franqueza «populares», e ejue o meu pai, bem entendido, nunca
põde nem ver. Eu amava uma judia, a minha irmã casava com um hom em do
povo que ele achava «ordinário» ou demasiado simples: o desejo do meu pai
batia em retirada. O que ele b e iT i nos fez sentir ao recusar-se a receber Elélène
e Yves. Em resposta, ó natureza! só me resolvi a casar com Elélène u m ano
depois d a m orte do m eu p a i (magra consolação póstum a para ele) e a minha
irmã acabou p o r se divorciar, mas continuando a usar o nom e do ex-marido,
\Ves Boddaert, não querendo também ela chamar-se Althusser e, embora
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W
o /' r 7 r K o \i r i r o l I: M i>
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j. o i / V 1 / / // r s s /: A>
nas tintas — , e toi assim que nie transformei com prazer num \erdadeiro
hom enzinho de interior, uma espécie de rapariga esguia e pálida (a minha ima
gem encobridora no parque). Sentia-me de tal maneira assim nesse tempo que
tle\ ia efecti\ amcnte alguma coisa do lado da \ irilidade. Não era um
rapaz, ou pelo m enos não era um hom em ; uma mulher de interior. O mesmo
se passou em relação a Hélène, mas com tiue diferença!
ã inha-a conhecido no fundo do abismo, na miséria material mais sinistra.
«Sinistra»; era uma palav ra que lhe \ inha sem parar à boca, e que lhe continua
ria a ser familiar até à morte. F uma palavra que ainda me faz estremecer
quando a ouço com uma insistência obsessiva na boca de uma outra amiga.
Sim, ela v ivia para si própria uma existência «sinistra». De seu, perdera tudo,
v)s amigos próxim os e distantes, assassinados durante ;i Guerra, Renoir o infiel,
e Hénaff, e o padre Larue, o seu único amor antes de mim. Perdera por fim
todo o contacto com o Partido. Quase não tinha alojamento, a não ser os
«sinistros» cubículos de criada, com o seu ambiente agressivo e duv idoso. .Não
tinha trabalho, e por isso também não tinha rendimentos, e viv ia de expedien
tes, como vender alguns dos seus liv ros mais preciosos t)u bater ã máquina,
quase ao preço da chuva, teses de alunos da Ecole (a seguir ã minha) que eu
não sem vergonha lhe arranjava. F eu, pela minha parte, não tentava ajudá-la?
Claro, e de toda a minha alma. mas de começo todo o dinheiro que tinha eram
os Vinte francos da «bolsa» que a Fcole nos atribuía antes de conseguirmos por
meio da acção ilegal do sindicato que tínhamos fundado. Maurice Caveing e
eu, obtermos para nós e todas as FXS um regime de vencimentos. F não me
atrev ia a pedir um tostão ao meu pai, fazia excessivamente ejuestão de lhe
esconder as minhas «necessidades» e o tipo de mulher, judia, cjue frequentava
e amava, e que lhe pareceria po r certo áv ida de dinheiro; não são assim todas
as judias? Além disso, já sublinhei o bastante com o me (tbcecava o m edo de vir
a ter falta de dinheiro, <ju seja, de reservas, para que o leitor imagine como,
apesar das minhas intenções mais generosas, também eu nãt) me cansava de
contar os tostões a meu modo. Fembro-me ainda do dia em que, para FIélène
não ter demasiado frio no seu quarto de criada da rue du Val-de-Gràce, lhe
14 4
/■ í I I A’ O / XI I I I O / l !/ /' D
comprei um fogãozinho a lenha de chapa metálica, frágil ele mais para não ser
perigoso e que de facto pouco aquecia — o cúmulo da dedicacáo e das d e s
pesas e da insignificância. Sim, não tinha meios ou transtorma\ a-mc em al
guém sem meios para engrandecer tanto quanto possível a largueza das minhas
dádiras.
Tahez fosse aejui que tudo se jogava, ou pelo menos foi ae]ui t|ue tudo,
mais tarde, me pareceu jt)gar-se. E eis por que razão.
lãisse cjue me sentia ineapaz de amar, e conto insensível aos outro", ,to seu
amor, apesar de este não me ser poupatk), pelo menos por parte das m ulheres
e até mesmo por parte dos meus amigos homens, O que assim me ine.ipacitara
fora certamente o am or extremamente impessctal da minha mãe, uma \ ez c]ue
se não dirigia a mim, mas por trás de mim a um morto, inctipacitara me de
existir ao mesmo tem po para mim c para o outro, em particular uma outra.
Sentia-me com o que impotente, e tome-se esta palavra no seu sentido p l e n o ;
impotente para amar, sem dúvida, mas também impotente antes do mais etn
mim prétprio e acimti de tudt) no meu prétprio corpo. Era comt) se me tivessem
tirado aciuilo que teria podido constituir a minha integridade física e psíquica.
Pode-se justificadamente falar aqui de amputação, e por conseguinte de castra
ção; quando nos tiram uma parte de né)s, que para sempre passará a faltar ã
nossa integridade pessoal.
E uma vez que estou neste campo, gostaria de regressar a esse fantasma
que \ivi com tamanha intensidade ao sair do cativeiro, qitando fui repatriado
para casa dos meus pais em Marroetts: a certeza de ter contraído uma doença
sexual, e portanto de nunca mais poder dispor deneras do meu sexo de
hom em . Na mesma «linha» de associações e de lembranças (e desta feita trata
-se ainda de uma recordação muito precisa ciue conservei) lembro-me de ter
ficadt) muito angustiado com um fenôm eno ao que parece corrente e que tem
aliás um nom e em latim, a p h im o sis (nestas matérias o latim permite que se
digam basttmtes coisas impudicas,..), e cpie literalmente me envenenou a vida
durante anos em Argel e em Marselha,- passava o meu tempo a puxar pela pele
do meu sext) e não conseguia «descascar» a glande. Tinha então aquilo a ciue
se chamam «perdas brancas», que saíam de baixo do meu prepúcio e me
faziam pensar, imediata e interminav cimente, que sofria de uma grave afecção
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/. o r 1 s A I. I H I' ^
üo sexo toruando-m e incapaz, sem estar doente, sem adoecer por causa disso,
de um a erecção completa e consum ada durante a evaculação. Puxava intermi-
navelmente a pele dorida, mas sem qualquer resultado. l ’m dia a m inha mae
alertou o m eu pai, que se fechou comigo na casa de banho. O m eu pai tentou
durante uma boa hora, no escuro da casa de banho (sem luz, por reserva ou
m edo de què?), puxar para trás a pele do meu prepúcio: cm vão — e naturah
mente sem uma palavra! h isto durou anos, durante os quais estive convencido
de que decididamente, sob este aspecto, não era completamentc normal
Como se faltasse ao meu sexo alguma coisa para ser um sexo de hom em , como
se de facto eu não dispusesse deveras de um sexo de hom em , com o se disso
me tivessem (quem?) privado. A minha mãe, claro, que, como os leitores se
lembrarão, litcralmente me «deitara a mão».
Por cjue é que insisto neste exemplo? Porque é simbólico, e para lá do meu
caso preciso, nos diz respeito a todos. O que é então p o d e r amar? É dispor da
integridade de si próprio, da «potência», não para o prazer ou por um excesso
de narcisismo mas, muito pelo contrário, para se ser capaz de uma dádiva, sem
ausência, resto, nem cjuebra, ou defeito. O c]ue é então ser amado, senão ser-se
capaz de ser aceite e reconhecido com o livre nas próprias dádivas, e de que
estas «passem», descubram a sua cida e caminho de dádivas, para se receber
airatés delas a contrapartida de uma outra d á d ita desejada do fundo da alma:
precisamente ser amado, trocar a livre dádiva de amor-' Mas para se ser o livre
«sujeito» c «objecto» desta troca, é necessário, como dizer, poder encetá-la, é
necessário começar por dar sem restrições se se cpúscr em troca (uma troca
que ê exactamente o contrário de um cálculo contabilístico de utilidade) rece
ber a mesma dádiva, ou mais ainda do ejue aquilo que se deu. Para isso é pre
ciso bem entendido e segundo toda a evidência não se ser limitado na liber
dade do próprio ser que se é, c preciso não se estar danificado na integridade
do próprio corpo e da própria alma, é preciso, digamo-lo pois, não ser «cas
trado» mas dispor da potência de ser (pensemos em Spinoza) sem amputação
de uma só das suas partes, sem o destino de ter que o com pensar ilusoria-
mente ou no \azio.
Ora eu fora castrado pela minha mãe, dez vezes, vinte vezes, na mesma
compulsão que ela vivia de tentar em vão controlar o seu terror de ser ela
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h' r T I K o 1/ r / / o I /; 1/ i> o
própria castrada, roubada (amputada da soma dos seus bens ou das suas eco
nomias) e violada (na dilaceração do seu próprio corptt). Sim, fui castrado por
ela, sobretudo c(uando ela pretendera fazer-me dom do meu próprio sexo,
gesto atroz que eu recebera com o a imagem da minha violação por ela, do
roubo e da violação do meu próprio sexo ao qual ela de facto «deitara a mão»
contra a minha vontade mais profunda, contra o meu desejo de ter um sexo
m eu, meu e de mais ninguém, sobretudo, ó suprema obscenidade, meu e não
dela — e po r isso sentia-me incapaz de amar porque mo tinham cierassculo.
porque fora d a n ific a d o no mais intenso da minha vida. Como poder, ou
sequer pretender, amar quando devassaram o mais íntimo de nós próprios, o
nosso desejo mais profundo, a fonte da nossa vida? Era assim que eu me sentia
e sempre me senti diante de Hélène atrarés da agressão íntima da minha mãe:
como um hom em (um hom em ? é dizer muito) incapaz do m enor dom \ erda-
deiro de am or autentico por ela, e através dela para com quem ejuer cjue fosse,
fechado em mim mesmo e sobre aquilo a que chamei a minha insensibilidade.
A minha insensibilidade? No fundo a da minha mãe que me pasmou quando,
de Marrocos, a pretexto de amibas nos intestinos ou de não sei já o quê. se
recusou a ir assistir a sua própria mãe m oribunda — e fui eu quem foi ao Mor-
van recolhê-la a seguir ao seu enfarte no frio matinal da igreja. A minha insen
sibilidade? No fundo a da m inha mãe quando, por meio apenas do seu silên
cio, me afastou de Simone para me precipitar no furor da minha corrida de
bicicleta até La Ciotat. A minha insensibilidade? No fundo a da m inha mãe
ejuando a vi, friamente, sem a sombra de uma emoção, depor um beijo frio na
testa do meu pai morto, a que se seguiu um simples sinal da cruz. de joelhos
e zás. porta fora. A minha insensibilidade? No fundo a da minha mãe quando
o meu amigo Paul e Many foram, uma vez que eram os únicos que a c o n h e
ciam, visitá-la ao seu pavilhão solitário de Viroflay para lhe anunciarem, sabe
Deus com c]ue precauções infinitas, que Hélène morrera e que eu a matara —
e então ela levou-os a visitar o jardim, sem dizer uma palavra como se nada
tivesse acontecido, com o espírito manifestamente ausente, bem de mais sei eu
onde. A minha insensibilidade? No fundo a da minha mãe quando, hoje li\re
de todas as suas fobias desde cjue ficou só e recusa o nom e de Mme Althusser
para guardar apenas o seu nom e de solteira: Berger, e se atira, desta feita sem
14'
i o r ! s A / / H I S S /: A’
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o F r r r r M / / / o 1 /: M l> O
tantasmático dc Hélcne de não ser mais do que uma mulher má. uma mãe
m edonha, uma megera a fazer mal e mais mal, e acima dc tudo a quem a
amasse ou quisesse amar. À vontade impotente de amar não respondia então
mais do ejue a recusa (desejo) feroz, obstinada e violenta de ser amada uma \ ez
que o não merecia, uma vt'z ejue no fundo não passa\a de um animalzinho
pavoroso cheio de garras e de sangue, de espinhos e de furor. Matéria bastante
para fornecer todas as aparências tão fáceis de aceitar (tão fáceis, sim!) de um
casal sado-masoquista incapaz de quebrar o círculo do seu acorrentamento
dramático no furor, no ódio e na dilaceração mútuos.
Daqui as «atrozes cenas» domésticas entre nós, que horrorizar am ou revol
tavam (conforme os casos) os nossos amigos, quando delas eram testemunhas
impotentes. Como o meu pai, Hélène saía. com o rosto subitamente transfor
mado cm m árm ore ou papel, e mal a porta batia eu corria atrás dela, numa
angústia lancinante e atroz de ser abandonado por ela às vezes durante dias
inteiros e às vezes sem que nada tir esse feito para isso. Assim, que fizera eu em
Portugal, onde a levei de avião a seguir à Revolução dtts Cravos? Kla teve uma
crise de histeria no restaurante para que os nossos amigos desse país nos
tinham convidado porque as ruas eram d em a sia d o íngrem es em Lisboa, e tive
de a conduzir ao refúgio do alto castelo para aí esperar que o seu hum or acal
masse. E que fizera eu em Granada quando ela recusou, não sei porquê, o auxí
lio de um amigo que nos propunha uma visita ao Alcazar: não precisávamos
dele para nada! c foi uma cena terrível. Que fizera eu na Grécia quando ela
recusou — mas já de antemão recusara — a httspitalidade tradicional de uma
prodigiosa refeição peqtieno-burguesa de boas vindas em família. Ou ainda...
Sem dúvida, nestes casos, eu nada tinha feito de facto, mas infelizmente sei
demasiado bem que o mais das \ ezes fui eu a fazer dela um joguete, pror ocan-
do-lhe as reacções, perseguindo-a até ao fundo da sua intimidade para \ e r se
ela, sim ou não, concordava comigo.
Foi o que se passou com as minhas «histórias de mulheres». Ao lado dela,
experimentei sempre a necessidade de constituir para meu us(j uma «reserva
de mulheres» e de solicitar um a aprovação explícita de Hélène para a isso me
dedicar. É certo tjue eu «precisava» dessas mulheres com o de outros tantos
suplementos eróticos para satisfazer aquilo cjue a minha pobre Hélène não
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/. o r / s A l I H I s ,s F n
não podia dar-me, um corpo jo\em e sem sofrimento e esse terno perfil que
eu perseguia em sonhos e que «faltavam» ao meu desejo danificado, prova de
que podia também, ao lado de um pai-mãe, desejar o corpo de uma mulher
simplesmente desejável. Mas nunca consegui em preender coisa nenhum a sem
a sua aprovação explícita, excepto muito recentemente.
Descobria nisto inconsciente mas soberanamente a solução de «síntese».
Apaixt)nava-me por mulheres segundo o meu gosto, mas suficientemente dis
tantes de mim para evitar o pior: \ i \ e n d o ou na Suíça (Claire) ou em Itália
(Franca), portanto a uma distância inconscientemente calculada para só as
ver com intermiténcias (ao fim de très dias eu ficava regularmente, quer dizer,
inconscientemente cansado e enjoado apesar de Claire e Franca terem sido
mulheres excepcionalíssimas pela sua beleza e pela sua alma). Mas esta precau
ção geográfica não me dispensar a das minhas cerimônias de apror ação e de
protecção. Qtianck) conheci Franca, cm Agosto de 19“-t. con\ idei de imediato
Hélène a conhecè-la. no dia 15 de Agosto. Fntenderam-se as duas muito bem
mas seguiram-se ao fim de alguns meses episódios dolorosos em que fiquei
dividido entre Hélène e Franca, não sei quantos telegramas e chamadas telefô
nicas entre Panaréa (ilha siciliana) e Paris, entre Bertinori e Paris, entre Vfcneza
e Paris, sem outro resultado que não fosse a multiplicação das minhas provo
cações sinuosas bem como o agravamento da situação.
Mas (j cúmulo chegou com as minhas «amigas» quando elas levantaram, de
m odo indirecto ou não, a questão de eu viver com elas e de ter um filho. Com
Claire, o caso deu-se no talude de uma estrada da floresta de Rambouillet: ela
falou-me do peqtieno «Julien» que tanto tiueríamos ter e propôs-me — p(tis
tinha «idéias a meu respeito» — partilhar a sua vida.- eu fiquei logo doente,
deprimido. Com Franca, essa magnífica italiana de trinta e seis anos, cjuc. na
sua idade, desesjserara de conseguir voltar a amar, as coisas foram piores. Um
dia ela chegou a Paris sob o pretexto de assistir às aulas de Lévi-Strauss, que
traduzira para a sua língua, e preveniu-me pelo telefone de que chegara e de
que eu podia fazer dela o que bem quisesse. Chegou a entrar em minha casa,
pois mal chegara a ver-me, galgando a janela. As coisas eram demasiado evi
dentes. Adoeci de imediato, intensamente deprimido. Também ela tivera
«idéias» a meu respeito.
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alguns dos quais da sua escola. Fodem agora (agora não. pois ele está em Mos-
covo, mas no seu regresso) pedir-lhe explicações.
Foi Nicole, que se tornara uma amiga querida mas cheia de fobias cpie me
paralisavam, quem me aconselhou a ir consultá-lo. Começava a desconfiar que
os cuidados do meu primeiro terapeuta rele \a \am não de uma análise autên
tica, mas de um excelente apoio sem verdadeiro efeito analítico. Esse homem
generoso ajudara-me de facto nos meus m om entos difíceis, interviera sempre
para me fornecer os medicamentos e os conselhos requeridos pelo meu estado,
e para me assegurar o ingresso em estabelecimentos ou clínicas de psiquiatria
(Épinay, Meudon, etc.). Eu levava-lhe os meus sonhos por escrito, e durante a
narcose que me causava tantas delícias, ele comentava-os longamente, indican
do-me neles os «elementos positivos» a par dos «elementos negati\os». C om
preendí certas coisas, mas ele interveio pelo m enos uma vez na minha vida
pessoal, declarando a Eranca, cjuc solicitava a sua opinião enquanto eu era hos
pitalizado: «O que se passou consigo não é grave, foi um am or de férias.»
E uma vez, quando eu estava hospitalizado na Vallée-aux-Loups (antiga resi
dência de (ihatcaubriand) e era assistido por uma senhora de idade, uma das
duas filhas de Flekhanov. fiz uma séria tentativa de suicídio com uma faca
romba e comprida, porque o meu terapeuta tardava em prescrever-me os elec-
trochoques cjue eu reclamava numa aflição sem nome, cheio de violência. Em
suma, Nicttle aconselhou-me um verdadeiro analista, «um hom em com costas
suficientemente largas para ti». Fixei estas pala\ ras, e certamente cjue não foi
por acaso. Afinal de contas teria podido pensar no meu amigo Faul, que efecti-
vamente tinhas as costas suficientemente largas para se bater em vez de mim.
Antes do Verão de 1965, avistei-me com o meu futuro analista várias
vezes, em entrec istas preliminares, e finalmente ele disse que aceitava receber-
me regularmente para entrevistas «analíticas», m a s cara a cara. Explicou-se
sobre este ponto, mais tarde, em diversas ocasiões: eu trazia em mim uma tal
carga de angústia que na sua opinião nunca teria aguentado o divã, a angústia
redobrada de o não ver com os meus olhos, de suportar o seu silêncio. De
facto, rosto a rosto, vendo-o reagir com toda a sua face, e ouvindo-o responder
muitas vezes instantaneamente, embora muito raramente de m odo directo ãs
minhas perguntas, senti-me certamente tranejuilizado: ele estava ali c bem ali.
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(> h [' 7 / K O M r / / o I /; M p o
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a culpa cra dc Hclènc. Fsta \crsâo fácil c tranciuilizadora tornar-sc-iu mais tarde
muito difundida ao nível do «diz-se», mas m u ito p o u co entre os meus amigos
mais chegados; de facto, esses conheeiam apesar de tudo Hélène e sabiam
(muito jsoucos, para dizer a verdade, o sabiam) que não formáxamos o célebre
casal «sado-masoquista» clássico e tantas \ ezes mortal.
Fui admitido em Sois\', belo hospital moderno, pa\ ilhões no meio de uma
pradaria imensa, e eu pedia em altos gritos uma cura de sono, acreditando
(sempre os mitos soviéticos) no seu milagre. Foi-me concedida satisfação par
cial, puseram-me a dorm ir um bocadinho durante o dia, eu sosseguei muito
rapidamente (o que me espantou) e pude sair ao fim de um mès, recomposto.
Fosteriormente. quase sempre submeti o meu analista à mesma pre.ssão, e
como não podia, na minha angústia, suportar que ele não se ocupasse de mim.
uma vez que ele se acha\a apanhado por uma situação já mareada por um pas
sado. ainda quando acabou por me deixar totalmente li\ re na minha decisão
de ser (ou não) internado, foi sempre no fundo por ele que a decisão passou,
pelo menos no que dizia respeito ao lu g a r da hospitalização, quer fosse para
ir primeiro para Soisy, quer para me refugiar em seguida no Xésinet. cujos
responsáseis eram amigos dele, e onde ele podia, atra\és deles, «acompa
nhar-me», \ o Xésinet. todos os domingos de manhã. chega\a o meu analista
de autom ó\el. sua dedicação confundia-me. c mais confuso ainda ficiuei
quando soube, depois da primeira hospitalização, que ele me cobra\ a por esta
visita excepcional, incluindo um longo trajecto de automé>vel. o m esmo preço
(lue pelas minhas sessões habituais (pense-se na importância para mim — e
para os analistas' — das questões tle dinheiro), enquanto o meu pai, a quem
eu aliás não o solicitei, continuaxa a não me ajudar, cpiando ao tempo o teria
podido fazer sem esforço. F de todas as vezes eu recebia o meu analista num
estado de efusão que me levav a às lágrimas, como uma criança pequena junto
da sua mãe.
questão tornar-sc-ia ainda mais complicada posteriormente, em 19~t-
I9~s, Hélène, cujas perturbações «earacteriais» eram manifestas, aceitou
entrar em análise, eom uma mulher. Fsteve em tratamento eom ela durante
cerca de ano e meio, face a face. uma vez por semana, depois deixou-a brus
camente na sequência de um incidente do qual apenas conheei a versão de
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chega\ a até a forjar uma metáfora sobre o fim da análise. A análise é como ur
camião pesado carregado de areia fina. Para o esvaziar, um macaco levanta ler
tamente a caixa, ciue se inclina. De início, nada cai. depois pouco a pouco a]"»!
nas alguns grãos de areia. E em seguida, de uma só \ cz a carga inteira cai n
chão. Metáfora demasiado bela, demasiado adaptada ao meu desejo. Aprend».
ria ã m inha custa que não era assim... Mas nessas ocasiões declarava ao nu
analista com uma certeza e um reconhecim ento absolutos: «Desta \ex g.
nhou!» E lembro-me, todas as vezes, do seu silêncio, exactamente o contrán
de uma aprovação muda, silêncio carregado de uma surda inquietação que ek
não conseguia dissimular apesar de todo o controlo que detinha sobre a su;
«contra-transferência». Recordo-me até de um gesto dele, cjue me revoltou, n<
final de uma dessas sessões de «libertação». Q uando ia a sair, extremam enu
eufórico, vi-o no último instante, pela porta entreaberta, esboçar com a mão
de cima para baixo, um gesto que queria dizer: vá devagar — e repetir vária»
\ezes o m esmo gesto. Senti-me revoltado. Tinha que me explicar violenta
mente com ele: «Ou você pensa que estou numa fase de hipomania com moti
\ 'O S inconscientes incontrolá\eis. e então com o é cjue quer cpie eu me con
trole, e com que direito me incita a uma prudência que não s(tu capaz dc
observar? Ou então acha que estou em estado de me controlar, e então, sc
tudo depende de mim, porquê esse gesto cjue nada acrescenta a nada? E por
fim: com que direito, “contrariando todas as regras da a n á lis e ', tanto num
“caso" como noutro, pretende você inter^'ir no meu comportamento?» Formal
mente, é verdade que eu não errava. Nunca lhe perguntei a sua opinião acerca
deste ponto para mim tão pungente. Mas certamente que fui eu a enganar-me..
Na minha grande fase da explicação violenta com t) meu analista, que
durou vários meses, em 19^6-19^'’. acusei-o aberta e intensamente de ter tido
sempre «idéias a meu respeito», de me ter tratado não com o um simples
hom em comum, mas antes com o o hom em conhecido que eu de facto era, e
com atenções excessivas. Acusei-o de me ter confessado cjue os meus livros
eram «os únicos livros de filosofia cjue ele percebia», de ter por mim uma ami
zade, ou até uma predilecção, analiticamente suspeitas, acusei-o em suma de
não saber nem conseguir dom inar a sua própria c o n tra -tra n s fe rê n c ia a m eu
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tais como eram e. sobretudo, tiue me aceitassem a mim tal como era, sem t
gero», expressão que guardei de uma mulher que se me tornou extrem am er
querida: a primeira c[ue soube ver claro na minha maneira de ser. e sobreim:
dizer-mo cara a cara, sem sombra de hesitação nos termos: «O que não :
agrada em ti é quereres-te destruir.»
H.xacerbação. exagero: nisto entra, claro, também a pro\t)cação: não n
exprimimos diante de uma mulher nos termos de um am or insensato e desn»
dido sem c|ue nisso entre, inconscientemente, o desejo de que ela seja á iir ,
gem desse am or e a ele conform e o seu ser. t)s seus gestos, os seus ai. ;<
sexuais e os setis sentimentos. Ibdat ia eu estava tão div idido ciue, emhi
desejando as mais extremas confissões e ternuras das mulheres sobre as qu.:
me lançava, tinha ao m esmo tem po muito m edo das suas demonstrações p:».
v isíveis, m edo de que isso me deixasse à mercê delas, porque então a iniciar.'
teria mudatlo de campo, e o terrív el perigo de me desfazer entre as suas m.i
fazia antecipadamente empalidecer de angústia o meu rosto,
Com Hélène as coisas continuavam a ser da mesma natureza, mas p a "
vam-se de maneira muito diferente. Não tinha sombra de medo de que ei.i r
deitasse a mão. ou de qtie tivesse «idéias a meu respeito». Hav ia entre nós ur
comunfião e uma fraternidade tais que nie preservavam desse perigo. Conttr:
não parava de a provocar. Mas, e creio té-lo tornado perceptível, as min!,
provocações assumiam aqui outro sentido. \ ã o descansava até tiue ela coir
cesse, o mais depressa possível, as minhas novas amigas, para receber de!,
aprovação cjue esperava, afinal, de uma boa mãe com o nunca conhecera, '
Hélc-ne não se sentia de maneira nenhum a na pele de uma boa mãe, mas p«
contrário na de uma megera e de uma mulher m edonha. Reagia com o se p>
imaginar: de início paciente, depois primeiro pouco a pouco e por fim de sub
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para lá das ásperas colinas, e não há barco dc socorro ames do porto, longín
quo, de Saint-Tropez. Teria Hélène desesperado, partido cm busca de socorro!''
Depois de intermináveis deambulações, acabo por descobri-la. à beira-mar.
mas longe da praia, irreconhecível, completamente metida para dentro de si
própria, a tremer num a crise quase histérica e com o rosto de uma mulher
muito velha, devastado pelas lágrimas. Tento tomá-la nos braços para a tran
quilizar, dizer-lhe que o pesadelo acabou, que estou ali. Nada a fazer; ela não
mc ouve nem vê. Por fim, ao fim de não sei quanto tempo, abre a boca mas
para me m andar violentamente embora: «És ignóbil! estás m orto para mim!
Não quero voltar a ver-te! Já não aguento mais viver contigo! És um cobarde
e um sacana, um sacana, põe-te a mexer!» De longe, digo à jovem cjue se vá
embora, e nunca mais \oltei a vè-la. Foram precisas duas boas horas para que
Hélène, ainda em lágrimas e convulsa, aceitasse voltar comigo para casa.
Nunca discutimos este horrível incidente, que no fundo da sua alma ela por
certo jamais me perdoou. Decididamente, não se pode tratar assim um ser
humano. Percebi muito bem que no seu terror não havia o m edo dc me ver
m orrer na corrente das ondas, mas outro m edo mais terrível: o de m orrer ali
mesmo devido à m inha atroz provocação demente.
O certo é o seguinte: pela primeira vez a minha própria m orte e a morte
de Hélène formavam uma só coisa-, u m a só e mes7na m orte — não com a
mesma origem, mas com a mesma conclusão.
O rosto de Hélène! Não sou capaz de dizer com o me impressionou desde
o primeiro instante, nem com o me assombra ainda. A sua beleza estranha!
E contudo não era bela, mas havia nas suas feições uma tal agudeza, uma tal
profundidade e vida, uma tal capacidade também de passar, dc um m om ento
para o outro, da abertura mais total ao encerram ento mais mural, que eu me
sentia ao mesmo tempo deslumbrado e desconcertado. Lm amigo que a
conhecera muito bem disse-me a seu respeito que a compreendera ao ler o
verso de Trakl: ^<Schmerz versteinert die Swelle (A dor petrifica o limiar)», e
acrescentava que no caso de Fíélène seria necessário dizer ^<^Schmerz verstei
n ert das Gesicht: a dor petrifica o seu rosto». Está ferido, este rosto, pelas
linhas, traços esculpidos p o r uma longa dor de viver no cavado das faces, os
traços de um longo e terrível «trabalho do negativo», de combate pessoal e de
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tiue foi» (Hegcl). Q uando o meu amigo cita Trakl c Hegel. é com o se eu \o l
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/ r 7 r A> o / 1/ r / / o / / u /’ o
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XIII
' o autor colocara à entrada tlc.stc capítulo cinco páginas, segundo toda a probabilidade dactilogra-
tadas ulteriormenie, sem ter modificado cm conformidade a continuação do seu texto, o c]iie implicara diver
sas repetições ou variantes dos mesmos factos, c om prom etendo a inteligibilidade da leitura do conjunto
tio capítulo l’or essa razão, achámos preferível manter a primeira versãt) do texto. (A', do E. francês)
170
/ o V I s .) /. 7 H I S S /. R
Primeiro facto: primeiro indício. Nunca saí da Hcole. Kntrei para ela, é
r erdade, com seis ano,s de atraso, mas nunca a deixei att? ao dia 16 de N<t\ em-
bro de 1980, A partir de então nunca mais lá \ oltei, nem sequer dc passagem.
Fui aprovado com uma tese sobre a noção de conteúdo em Hcgel. sob a
orientação de Bachelard: em exergo «Mais vale um conteúdo do que duas p ro
messas», falsa citação de não sei quem. e «O conceito e obrigatório porque o
conceito é a liberdade», música de Renc Clair que não falava do conceito mas
do «trabalho», quer dizer, se levarmos em eonta o «trabalho do negati\o» de
Hegel, e s t r i t a m e n t e a m e s m a c o i s a . C) meu trabalho fora escrito com itm
certo preciosismo (era o estilo que eu herdara da k h â g n e de Lr on, e em parti
cular do exemplo dos meus confrades mais velhos, Georges Parain, Xa\ ier de
Christen e Serge Chambrillon. todos monárquicos — adeptos do conde de
Paris e não desse m ed o n h o Maurras — e excelentes estilistas, adoradores de
Giraudoux — cujos gostos eu então partilhava). Redigira o texto em Laroche-
millay, onde a minha avó me acolhera após a minha prolongada depressão de
194~. Sem a\ isar le\ ara Hclène comigo, e esta passou o tempo na «casa velha»
a bater o meu texto à máquina à medida que as suas páginas iam sendo escri
t a s '. A minha avó recebera-a calorosamente, eomo eu esperava que fizesse.
Naturalmente percebera tudo acerca das nossas relações, mas aceitara-as como
óbvias, apesar de todos os seus princípios. Que generosidade!
Penso que Bachelard. muito ocupado, não lera o meti texto. Eu falara da
«circularidade do conteúdo», um dos meus temas principais. Bachelard rctor-
quira-me simplesmente: Estaria de acordo em dizer antes «circulação»? — Não.
E ele nada mais acrescentara. Na escola, nesse tempo, tínhamos por mestres
Desanti, pequeno corso ejue «caminhat a (já) com combati\ idade», expressão
sua que o retrata por inteiro, e Mauriee Merleau-Ponty. Este último, cujas aulas
seguíamos eom interesse (único curso que segui além das lições sempre repeti
tivas de Desanti. «marxista» que perm anecera bastante husserliano), propuse
ra-nos, a jactiues Martin, jean Deprune e a mim, publicar as nossas teses, ainda
antes de as ler. Recusámos os tres altivamente. Eiquei em segundo lugar na
> .Acrc.sccnto m anuscrito à margem do tc.xto, sem que o autor tenha ele ctuado a ligação ao
resto da frase: <ao lado das batatas que m andava assar: distinção subtil, ela não era c o n ti d a d a para a
mesa da m inha avo!» (A', do E. fra n c ê s )
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o i r I i R o .1/ r I I n I I: M P (_)
’ I c rm o t[uc na gíria estudanril designa uni encarregado de controlo na iicole Normale Supc-
ne i i r e ( A, d n I. >
n
/ r / r A' o i; í l i o i ! M !>
cm primeiro lug:ir um curso sobre IMatfio, que me ocupou durante dois anos,
em seguida sobre outros autores. Mas sobretutlo let ei os meu> alunos, que em
breve se tornariam meus amigos, a fazerem certos exercícios retóricos indis
pensáveis. Merleau dissera-nos: no fundo, a agregação não passti de um «exer
cício de comunicação» a partir de um mínimo de conhecimentos exigidos.
Coisa de que eu estava havia muito, e graças a (juitton. já com encido, .Mas
levei a coisa a peito e intiugurei uma prática algo pessoal da correcção dos
exercícios. Corrigia muito pouco ã margem, cxceptt) para rectificar um erro
declarado, ou para assinalar, com uma longa linha muda mas ap n n ttdora. ou
com um + , destinados a exprimir a satisfação do leitor, mas em seguida escre
via à máquina uma longa nota de uma, duas ou várias páginas segundo os
casos, na qual indicaca ao autor os pontos dignos de apreço mas sobretudo o
m odo com o e/e poclerúi e deveria ter con stru íd o o seu texto e a rg u m en ta d o
de m odo a d a r ct o rientação do seu p ró p rio p e n sa m e n to (fosse esta q u a l
fosse) toda a fo rç a de convicção requerida. Nunca propus a ninguém que
pensasse de outro m odo que não segundo a linha da sua própria escolha, e de
resto tigir diferentemente teria sido insensato. Fizera disso um princípio que
sempre segui, p o r simples respeito pela personalidade dos meus «alunos». Sob
este ponto de vista, nunca tentei «inctilcar» fosse o que fosse a quem quer que
fosse, contrariamente ã esttipidez de alguns jornalistas à caça de «caixas».
Nos primeiros anos dei um «choco» cheio de calor maternal aos meus
potros, «fiz-lhes a papa», chegando até a organizar para eles. entre a prt)\ a escrita
a oral da agregação, um estágio de repotiso em Royaumont, do cjual comparti
lhara. Mais tarde tornar-me-ia mais reservado, mas perm anecendo iguaimente
atento às suas dificuldades e sobretudo à orientação do seu próprio pensamento.
Tornei-me rapidamente secretário da École, assistindo a todas as reuniões
da direcção, aconselhando os directores em numerosas matérias, «fazendo»
muitas vezes com cjue tomassem importantes decisões que continuam inscritas
nas paredes e instalações da casa bem com o muitas das suas práticas — sendo
o meu papel importante sobretudo nos períodos de intervalo entre os directo
res cjue se sucediam. Nada mais normal. Eu estava ali permanentemente, ao
passo que os directores m orriam ou abandonavam as suas funçtóes (caso, por
exemplo, de Flyppolite, cjue passou para o Collège dc France).
17,^
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^l.is maiores iniciati\as da minha \'ida com Hclène salda\a-se assim por un
Lquí\x)Co doloroso que eu tenta\a sempre emendar, mas em \'ão. c os meus ira
cassos succssi\'os reforçavam-me no meu tem or e prtnenção duplos, refor
çando as dúv idas que eu alimentava acerca de ser deveras um hom em , capa,
de amar uma m ulher e de a ajudar a viver.
Seja com o for, o certo é que eu desempenhava funções de professor dt
filosofia, sentindo-me cada vez mais filósofo, a despeito de todos os meu''
escrúpulos.
r,\ identemente, a minha cultura filosófica dos textos era bastante redu
zida. Conhecia bem Descartes. Malebranche, um pouco Spinoza, nada de Aric
tóteles, dos sofistas, dos estóieos, bastante bem Platão, Pascal, Kant nada,
Hegel um pouco e por fim certas passagens de Marx lidas muito atentamente
(ionstruíra uma lenda acerca da minha maneira de aprender e por fim de saber
filosofia, com o gostav a de o repetir, por «ouv ir falar» (a primeira forma fruste
de conhecim ento segundo Spinoza), v alendo-me de jaeques Martin, mais ins-
trtiído do que eu, dos meus amigos, apanhando esta ou aquela fórmula de pas
sagem, e p o r fim dos meus próprios alunos nas suas exposições e dissertações,
-Veabei assim, naturalmente, por fazer um ponto de honra altivo em «aprender
por ouvir falar», o que me distinguia singularmente de todos os meus amigos
universitários infinitamente mais instruídos do que eu. e repetia-o de bom
grado à laia de paradoxo c provocação, suscitando a surpresa, a admiração (!)
e a incredulidade de terceirtts. para minha maior confusão e orgulho.
Mas possuía sem dúvida uma outra capacidade bem minha. A partir de
uma simples fórmula, sentia-me capaz (que ilusão!) de reconstituir se não o
pensamento, pelo menos a tendência e a orientação de um autor ou de um
liv ro que não lera. Dispunha por certo de uma certa dose de intuição e sobre
tudo de uma capacidade de aproximaçãt), quer dizer, de oposição teórica, que
me permitiam reconstituir o que pensava ser o pensam ento de um autor, a par
tir dos textos a que ele se ttpunha. Procedia assim espontaneamente por co n
traste e demarcação, atitude ejue mais tarde viria a teorizar.
O meu gosto fantasmático pela autonom ia total e pelo combate nos limi
tei de uma protecção absoluta, encontraria nestas práticas onde se investir. Além
disso eu era. pela minha experiência da prática política e o meu gosto pela
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política, dotado de uma intuição bastante \ i\a da <eonjuntLira- e dov seus efei
tos: mais um tema cjue viria a teorizar. Porque é no interior de uma conjuntura
teórica dada que podemos apreender as aproximaçõc'- e as oposicões filos(')Fi-
cas. De onde me \ inha esta sensibilidade à «conjuntura i' Sem dú\ ida da minha
extrema sensibilidade às «situaçetes» conflituais (sem saídai ciue não parara de
\'iver desde a minha infàneia. Acreseente-se a isto uma outra conxiccão de ins
tinto segundo a qual c próprio da filosofia agir à distancia, no \a /io lo meu')
como o deus imóvel de Aristóteles, coisa que eu reencontrava na sittiacão analí
tica (e Sacha iNacht numa breve fórmula impressi\a assinalara o m oti\oi, F.ra
portanto um filósofo, e como tal agia à distância, do meu refúgio na Pcole,
longe do m undo uni\ersitário de cpie nunca gostei, e que nunca frequentei. Ira-
tava d(ts meus assuntos sozinho, sem o auxílio dos meus pares, sem o auxílio
das bibliotecas, numa solidão que me \ inha de longe e da tjual eu fazia uma
doutrina de pensamento e conduta. Agir de longe era também agir sem pôr a
mão na massa, como sempre em posição segunda (o conselheiro, a eminência
parda de Daél e dos dircctores da Escola), segunda, quer dizer, ao mesmo
tempo protegida e agressiva, mas a coberto da protecção. Ser o «mestre do mes
tre» ' continuava a ser a minha obsessão em surdina, mas justamente nessa dis
tancia protegida pelos mestres relaticamente aos quais tomava justamente a dis
tancia em que na verdade me comprazia. eu era sempre nesta relação perversa.
nã(t o «pai do pai», mas a mãe do meu pretenso mestre, impondo-lhe que reali
zasse por pessoa e desejo interpostos o meu próprio desejo alienado.
Mas na realidade, e só agora me dou conta disso (escrever ajuda e reflec-
tir), procedia sob estas aparêneias de m odo inteiramente diferente. A fórmula
expressiva que fixava de um autor (do seu próprio texto) ou que colhia da
boca de um aluno ou amigo servia-me com o outras tantas sondagens Jm ifiin-
das de um pensam ento filosófico. Sabe-se que a pesquisa petrolífera nas gran
des profundidades é feita igualmente assim por meio de sondagens. As sondas
estreitas penetram profundam ente no subsvtlo e da lá trazem para o ar livre
aquilo a que se chama «cenouras», que dão uma ideia concreta da composição
H8
XIV
f9
/ (; r / s , 1 /. / // r s s /:
' .\CR‘sut‘nt<) manusuriio à margem do texto cuja ligação ao resto da frase não foi operada pelo
autor <acti\amcnte por efeito da minha p rópria iniciativa, sem a iniciati\a de mais ninguém (Héléne.
Desanii. Merleau). excepto j. Martin que apenas me a juda\a com o um irmão mais velho (quando era
dois anos mais novo do que eu), mas, c o m o esere\ i numa nota necrológica. «com \ inte anos de avanço
sobre nós - ( V íi. f n w c è s )
~ «A \Xaldeck Rochet que admiraxa Spino/.a e deie me falou longam ente num dia de ju n h o de
I966> . dedicatória de flé/iiciiis cl autocrilicine. Paris. Hachette. 19"t ( do H. fra n c ê s )
180
o / r 7 r R o M l I I n / / 1/ 7^ f;
181
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dom ínio (m attrise). E, bem entendido, porque aqui tudo se reforça de perto
(e não apenas em mim, sendo o pensamento e o estiJo função de uma mesma
«relação do filósofo» com o seu conceito) esta unidade do pensamento e da
sua clareza (um dom ínio em plena clareza, a clareza com o forma de domínio,
o que se entende) e da língua, conquistou-me um público que a minha argu
mentação p o r si só nãtt teria sem dúvnda tocado de m odo tão profundo. Foi
assim c|ue para minha m aior surpresa soube, p o r exempkt por Claudine Nor-
mand, que tinha um «estilo» e era à minha maneira uma espécie de escritor,
E, bem entendido, desenvolvia com o teoria da filosofia uma teoria da filosofia
com o dom ínio {m aitrise) tanto de si como do Todo, bem como dos elementos
e das articulações desses elementos, e, para lá da esfera propriam ente filosó
fica, um dom ínio (m a itrise) à distância através do cctneeito e da linguagem.
Como ciualquer filósofo, mas criticando radicalmcnte essa pretensão (criticava
deste m odo a própria ideia, risível para mim, de um pai todo-poderoso e pre
tendendo sè-lo), considerava-me responsável de algo que dizia respeito aos
ideais hum anos e até m esm o à condução da história do m undo real. incluindo
aquilo que pretende conduzi-kt ao seu destino (um destino que só existe,
como muito bem disse Meidegger, na ilusão da consciência com um e dos polí
ticos). a saber, a política e as políticas. Foi por isso que diversas vezes me aven
turei no terreno concrett) da política, pronunciando-m e (arriscadamente sem
dúvida) sobre o estalinismo, a crise do marxismo, os congressos do Partido e
o m odo de funcionamenttt do Partido. (Ce q u i ne p e iit p lu s d u rer d a n s le
p a r ti eom m uniste. 19~8). .Vias tjue filósofo, no fundo de si próprio, o mais das
\ezcs abertamente entre os grandes, e sobretudo quando não consente em co n
fessá-lo, não cedeu a essa tentação, filosoficamente orgânica, de manter os
olhos postos no c]ue quer mudar, transformar no muncka? O próprio Heideg-
ger diz, é certo que falando apenas da fenomenologia (mas porquê apenas ela?
.Mistério), tjue esta visa «mudar o mundo». Foi por isso que critiquei as céle
bres palavras das «léscs sobre Feuerbach», de Marx: «Já não se trata de interpre
tar o mundo, mas de o transformar», m ostrando contra esta formula que todos
os grandes filó so fo s ciuiseram interc ir no curso da história do mundo, ou para
o transktrmar, ou para o fazer regredir, ou para o conservar e reforçar na sua
forma existente contra as ameaças de uma transformação tida p o r perigosa.
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profundidade que, definindo-se pelas teses que afirniax a sem ciualquer isossibi-
lidade de xerificação experimental, toda a filosofia era na sua essencia clo^^nid-
tica, e cheguei a proclamá-lo no «Cours de philosojshie pour 'Cientifiques-
(196^), dizendo, afirmando a verdade das suas teses sem outras jsrccaucões
para além do acto de as afirmar. Muito simplesmente, sustentaxa a linguagem
da xerdade quer do que pensaxa e fazia (afirmando teses, por xezc' aberta
mente. cf. Philosophie et p h ilosopbie spontanée des savants). quer do que
toda uma filosofia fazia antes de mim, quer o reconhecesse abertamente (São
Tomás, Spinoza, W ittgenstein, etc.) ou o calasse. Q uando nos sabemos únicos
responsáxeis tanto peb.i nossa solidão necessária à xerdade tiite afirmamos em
teses, com o pela xerdade do filósofo que somos, e pela xerdade de toda a filo
sofia, a hon estid a d e mínima não será sustenttir uma linguagem conforme, até
nas sitas formas de ititerxenção e de interpelação (xer o papel epte conferi ã
iixterpelação a propósito da ideologia), com a natureza daquilo tjue fazemos-'
não será exprimirmo-nos na própria forma ejue exprime, e sem rodeios, aquilo
t|ue pensamos e fazemos?
() meu pai tartamudeaxa, a minha mãe era clara e sonhaxa com a clareza.
Hu fui claro, mas tão abrupto com o era o tneii pai no seu pensam ento interior
e nas suas interxenções brutais. Sem rodeios, o meu pai chamaxa as coisas
pelos nomes, até mesmo tiuando se calaxa, c era um hom em capaz de puxar
brutalmente pelo rex éílxer, e houve itm dia em que chegou a saltar, para o mas
sacrar. sobre um ciclista infeliz, que, nas matas, derrubara a minha irmã. Esta
recusa x iolenta de «alimentttr ilusões», esta brutalidade sem rodeios, cjue sentia
ser a de um pai t|ue me faltara e, pelo menos, nunca me iniciara nessa atitude,
nunca me ensinara que o m undo não é itm m undo etereo mas um m undo de
lutas físicas e outras, eis tpie eu tinha finalmente a audácia e a liberdade de
endossar a sua realidade. Não me tornaria assim, por fim e realmente, o meu
próprio pai. quer dizer, itm homem?
Não dex’c procurar-se numa análise deste gênero a última palax ra acerca
do sentido objectixo seja de que filosofia for. Forque, sejam quais forem as
motivações internas, conscientes ou inconscientes, de um filósofo, a sua filo
sofia escrita é um;i realidade objectiva. nisso fica inteira, e os seus efeitos ou
não sobre o m undo são efeitos ohjectiros que, no limite, não tém já qualquer
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relação com este interior que aqui descrevo, e graças a Deus! Porque a filoso
fia, como aliás qualquer actividade, não seria então mais do que o puro inte
rior de todas as subjectividades do mundo, fechada cada uma delas no seu
próprio solipsismo. Se alguma vez tivera dúvidas a este respeito, aprendê-lo-ia
com uma realidade terrível, a de política em pessoa, mas para com eçar no
interior da própria filosofia.
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XV
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Sabia, é certo, por c[uc \ ia,s Ilcgcl c Marx ha\ iam sido introduzidos em
França; através de K oic\eniko\’ (Kojève), emigrado russo com altas responsabi
lidades no Ministério da Feonomia. Fui procurá-lo um dia ao seu gabinete
ministerial para o convidar a proferir uma conferência na Fcole. E ele foi,
hom em de rosto e cabelos escuros cheio de malícias teóricas infantis. Li tuck)
o t|ue ele esertoera e conrenci-m e rapidamente de cpie ele — ([ue todos,
incluindo Lacan, tinham escutado apaixonadamente antes da Guerra — não
com preendera rigorosamente nada de Flegel ou Marx. ,\ele tudo girava em
torno da luta de morte e do Fim da flistória, a que ele atribuía um espantoso
conteúdo burocrático, lérm in ad a a história, quer dizer, a história da luta de
classes, a história não acaba, mas nada mais se passa nela a não ser a rtttina da
a d m in istra ç ã o das coisas (vi\ai Saint-.Simonl). Gma forma de associar sem
dús ida os desejos do filósofo e o estatuto do grande burocrata.
Não com preendia como, a não ser considerando a total ignorância fran
cesa em relação a Hegel, Kojè\e pudera fascinar tanto os seus ouvintes: Lacan,
Bataille. Queneau e muitos outros. Fm contrapartida, concebí uma estima infi
nita pelo trabalho erudito e corajoso de um Ll\ ppolite que, em \ez de interpre
tar Hegel, se contentava com dar-llie a palac ra na sua admirável tradução de ,*f
rc n o m e n o lo g ia do Espírito.
Tal era portanto a conjuntura filosófica em cjue eu me via na obrigação de
apensar». Fstava a redigir, como já contei, uma tese sobre Hegel, na qual me
orientoti o meu amigo jactiues .Martin, que possuía uma vasta cultura filosófica.
Facilmente me dei conta de que os «hegelianos» franceses discípulos de Kojève
nada ti>ihani com preendido de flegel. Bastasa, para se ter a certeza, ler o p ró
prio Hegel. Finham-se ficado todos pela luta do senhor e do escravo e pelo
absurdo total de uma «dialcctica da Natureza». .Mesmo Bachelard. notei-o pela
sua observação tjue atrás referi, nada compreendera. De resto, não tinha a esse
respeito quakiuer pretensão, pois não tis cra tempo para o ler. Sobre Hegel,/teVo
m enos em fra n ç a , continuava tuck.) por com preender e explicar.
Fm contrapartida, Husserl penetrara um tanto entre nós, através de Sartre
e de Merleau, F conhecido o célebre episéadio contado pelo Castor Raymond
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Diminuti\() dc C;isanov;i (Laurent a quem o auto r ;ur:ts fez referência). (,V. cio T. )
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Foi por isso que não tive cm filosofia, com o cscrc\ i no prefácio de Pour
Mcirx. nenhum verdadeiro mestre, nenhum mestre exeepto I hao, mas esse em
breve nos deixou para regressar ao Vietname e aí apodrecer entre tarefas de
varredor de lixo e a doença, sem medicamentos (os seus amigos franceses ten
tam fazer-lhos chegar às mãos), e Merleau, mas com o este fora já atraído pela
antiga tradição espiritualista dominante, era-me impossível segui-lo
Inacreditável tradição francesa que então partilhava com a tradição dita
neo-kantiana de Brunsehvieg. tudo o que era filósofo da l niversidadel Tradi
ção institucionalmente fundada po r \ ’ictor Cousin no início d(t século xjx
(ver o interessante primeiro livro de Lucien Sève) e ciue. pela sua obra e sobre
tudo pelos seus programas oficiais bem com o por todas as elucubrações da
escola ecléctica, tão bem combatida pelo socialista Pierre Leroux. hom ens
com o Ravaisson. Bergson, Letiuicr e rceentemente Ferdinand Alquié tinham
í-engendrado». ,\o estrangeiro, não descobrimos nada de equivalente a esta tra
dição. Xão deixou de ter «méritos», ó ironia da dialéciica da história, uma vez
que defendeu até quase aos nossos dias (até aos trabalhos de Jules Nuillemin e
Jactjues Bouv eressc) a França da invasão do positivismo lógico anglo-saxémico,
e da filosofia analítica da linguagem britânica (de resto extremamente interes
sante). Fora destas duas correntes dominantes no exterior, uma obra como a de
W ittgenstein — jact|ues Bouveressc e Dominitpte Fecourt e .Mari na Argentina
bem o mostraram e demonstraram — permanecia para nós totalmcnte deset)-
nliecida. .Mas o qtie vale uma «protecção» por ignorância ou repulsa? Maciuia-
vel bem o demonstrou: as fortalezas são os pontos mais fracos de ciualc|uer dis
positivo militar, e Lenine, na esteira de Cioethe, bem o disse: «Se quiseres
co nhecera teu inim igo, terás que p e n e tra r no p a ís do teu inimigo.-^ Tudo isto
era risível. F mesmo o neo-kantismo de Brunsehvieg, deform ando Spinoza no
espiritualismo mais raso, o da consciência e do espírito. Hoje, quando final
mente se traduziram alguns textos, quando Fleidegger depois de Nietzsche tem
enfim direito de cidade entre nós, quando Bouveressc nos deu estudos de
grande erudição sobre o neopositivismo lógico e ciuando Wittgenstein ou
> lendo c,sia frase sido parcialmcntc riscada pelo autor, o que a tornava coxa e incompreensi-
\el. resíiUiimo ia acpii st)b a sua forma inicia] completa. (.V, do fnw cès)
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simples «regras» técnicas gerais, ele. Lacan. que tivera em análise diversas
m ulheres dos m eus antigos alunos, seus pacientes, com o ele pró p rio m o dis
sera p o r ocasião do nosso prim eiro encontro. Este incidente lançou sobre mim
estranhas perspectivas sobre as terríveis condições de análise e das suas fam o
sas «regras». Perdoem -me, se possível, tè-lo narrado fielmentc. mas atracés do
infeliz Sebag de quem eu gostaca m uito e de Judith que conhecia bastante bem
(viria a casar com Jacques-Alain Miller, m eu antigo aluno), tratava-se de mim
tam bém: «De te fcih u la n a rra tu r» . Mas desta feita a «fábula» era uma tragédia,
não só para Sebag, mas sobretudo para Lacan, cjue então só exibia uma p reo
cupação m anifesta com a sua reputação profissional e o escândalo que se aba
tería sobre ele. Que os analistas que dirigiam no seu tem po uma petição ao
M onde (não publicada) para denunciar os «métodos» do m eu analista façam o
favor de ver aqui o m eu depoim ento de testem unha.
Foi p o r essa altura (1974) ciue tive ensejo de fazer uma viagem a Moscoc o
para um Congresso Internacional de Filosofia Flegeliana. Só apareci no C on
gresso para apresentar a m inha com unicação, que fora reservada para a sessão
cie encerram ento na im ensa sala de cerim ônias. Falava nela do jovem Marx e
das razões profundas da sua evolução. No final da m inha com unicação, da
qual a P ra vd a faria a cobertura... antecipada, fez-se o silêncio oficial, mas
alguns estudantes ficaram na sala e vieram fazer-me p erguntas; o ciue é o p role
tariado? o cjue é a luta de classes? Manifestamente, não com preendiam que se
falasse disso. Fiquei estupefacto, mas viria a com preendê-lo bem.
C om preendi-o porque, durante esses oito dias em que não frequentei o
Congresso, o meu m uito ciuerido amigo Merab, um georgiano filósofo de gênio
que nunca viria a querer sair da l ’RSS, ao contrário do que fez o seu amigo
Zinoviev («porque aqui pelcj m enos se vèem as coisas a nu, e sem disfarces»)
deu-m e a conhecer uma boa centena de so\ iéticos de todas as condições, que
nie falaram tanto do seu país com o das condições materiais, políticas e intelec
tuais de existência, e com preendi uma infinidade de coisas, que tudo o que de
sério li depois sobre a fTRSS me confirm ou.
A URSS não é o país habitualm ente descrito entre nós. É verdade, qualquer
intervenção pública na vida política é proibida e perigosa mas quanto ao resto,
que vida! Em prim eiro lugar, trata-se de um país imenso que resolveu o problem a
do analfabetism o e da cultura num a escala desconhecida, m esm o entre nós.
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X VI
política? Imagino que haja expcctati\ as sobre o que vou dizer nesse capí
A tulo. De facto, teria uma infinidade de coisas a dizer, mas isso seria entrar
nas anedotas da pequena história: sem interesse para a «genealogia» retrospec-
tica dos meus traum atism os de afectos psíquicos. Anedotas? Há-as por aí para
dar e render, sobretudo «vender». E coisa que não me interessa. Disse com
efeito cjue só queira fixar atjui da m inha r ida os acontecim entos ou recorda
ções de acontecim entos que, tendo-m e m arcado, contribuíram ou para inaugu
rar a estrutura do meu psiquism o, ou, e sobretudo, senãt) sempre, na retrospec-
linclcide das repetições interm ináveis, para a reforçar, ou ainda, nos conflitos
de desejos, para a inflectir segundo form as estranhas às prim eiras, pelo m enos
na aparência.
Aqui tenho que lem brar ao leitor alguns factos c]ue ele já conhece.
O Partido desem penhara um papel m uito grande na resistência contra os
ocupantes nazis. E incontestável ejue em Jtm ho de 19-iO a sua direcção seguiu
uma linha nefasta. A teoria da III Internacional, que dirigia de facto. sob a
autoridade superior de Estaline. todos os partidos catmunistas (e o pró p rio Par
tido francês, «controlado» pelo delegado da Internacional, o checo Fried.
hom em notabilíssim o ao que parece, e a quem Thorez ficou sem dtn ida a
dever m uito), era que a guerra era uma pura im p e r ia lis ta . op o n d o em
vista de fins puram ente imperialistas os franceses e os ingleses a<js alemães. Era
preciso deixá-los entredevorarem -se, enejuanto a l ’RSS esperava a sua cez de
aproveitar o conflito. ,Se concluira assim os acordos germ ano-soviéticos.
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a razão era m uito simples: já m uito antes de Munique, as dem ocracias o cid en
tais se m ostravam renitentes no respeito pelo que tinham assinado, m anifesta
m ente por m edo e fascínio de H itler e em virtude do célebre princípio «mais
\a le Hitler do que a Frente Popular», mais vale o nazism o do que a Frente
Popular e a fo r tio r i do que a revolução proletária. Com preende-se a burguesia
e tttdos disso tir em os a prova. A URSS negociara de m aneira desesperada após
a prim eira grande derrota do m ovim ento operário, em Espanha, onde inter-
viera am plam ente (armas, aviões, brigadas internacionais) para obter o acordo
das dem ocracias ocidentais. Mas nem D aladier nem Cham berlain tinham tido
a «coragem» de respeitar sim plesm ente os seus com prom issos form ais p o líti
cos e militares: do que dariam provas públicas p o r ocasião do abandono da
Checoslováquia, prim eiro dos Sudetas, e em seguida de todo o país. E nesse
m om ento, nenhum a proibição, com o seria mais tarde o caso da Polônia fas
cista, os im pedia de intervir.
dem onstração é incontestável: os factos são patentes e nenhum his
toriador m inim am ente sério t)s contesta. Apesar de tais factos e apesar da
sua profunda desconfiança assente nesses factos históricos, a URSS co n ti
nuou a tentar obter das dem ocracias ocidentais a constituição de uma frente
unida contra Hitler que se fazia cada vez mais dem ente e ávido de espaço
vital, acima de tudo das ricas planícies da Ucrânia. Evidentem ente para
Leste, mtiito longe da Erança e de Inglaterra. Foi nestas condições, cjuando
o atacjue hitleriano contra a Polônia se tornou iminente, quando a Polônia
fascista de Pilsudski proibiu ao Exército Vermelho que passasse pelos seus
territórios para entrar em contacto com a W ehrm acht, que a URSS, perante
a evidência e a cobardia histórica dos seus «aliados» ocidentais, teve de se
resolver p o r um a negociação de com prom isso com o Reich de Hitler.
Foram os célebres acordos germ ano-soviéticos e a partilha da Polônia, ine
vitável: a URSS não podia abandonar a P olônia inteira à ocupação hitle-
riana. Devia necessariam ente fazer avançar a sua fronteira o mais possível,
in\()cando em caso de necessidade a razão histórica incontestável de recon
quistar as terras da Rússia Branca cedidas à Polônia pelo Tratado de Versa
lhes, a fim de dispor de uma posição de defesa avançada frente a um ataque
alemão.
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marxista no Partido? — Bem vês, é jrrcciso falar urna linguagem que sirva a todos,
a todos os intelectuais, a todos os socialistas...» Caí das nuvens. E de outras nuvens
mais altas ainda quando ouvi Waldcck m urm urar com a sua voz calma: «Temos
que Fazer alguma coisa p o r eles, se não t ão-se todos embora.» Fiquei tão c h o
cado que não me atrevi secjuer a perguntar-lhe; mas qtiem são esses «todos»?
Muito depois, quando me encontrei com Marchais durante três longas
horas, na Ciolonel-Fabien. assumi ainda mais um a atitude de superioridade, e
esvaziei o saco de tu d o aquilo que censurava nas práticas do Partido,
apoiando-m e num a enorm e massa de factos precisos. Durante três horas bem
contadas, ladeado p o r Jacques Chambaz, Marchais ouviu-m e quase sem dizer
um a palavra e sem nunca me contradizer. Parecia m uito atento, c eu admirei
pelo m enos o desejo que ele manifestava de se inform ar: tinham -m e dito que
era um seu traço de carácter. E não falo dos meus encttntros com Roland Leroy.
que se armava em sedutor, em liberal, ciuando no fundo era m uito diferente:
um doutrinário, nem desse passeio que fiz na sua com panhia durante uma festa
de }'H n n u m ité , onde encontrei Renoit Frachon. razoavelm ente envelhecido, e
.\ragon, a quem fiz uma cena infernal de agressão e de insultos (já se verá p o r
quê). e não pude im pedir-m e de desem penhar um papel de destaque num a dis
cussão pública, para lam entar até ao fim da m inha vida ter-me deixado levar a
p ò r politicam ente em causa o infeliz Pierre Daix. que nunca me perdoaria essa
interv'enção estalinista. a única da m inha história política. Deverei acrescentar
que não fora eu quem solicitara estes encontros «de cúpula», mas que para eles
fora pessoalm cntc convidado pelos dirigentes do Partido, interessados em
saber quem era eu afinal e o que teria afinal na cabeça. Porejue as m inhas inter
venções em La N ouvelle C ritique e em La Pensée (onde Marcei C ornu aberta
m ente me protegia) tinham produzido efeitos políticos, em particular entre os
n o rm a lie n s que inauguraram novos m étodos de form ação e de acção na l'n iã o
das Juventudes Com unistas, cujos dirigentes (_lean Cathala) ultrapassavam ,
antes de saírem para form ar a União das Juventudes Com unistas Marxistas-
-Leninistas (UJCML), ejue. antes de 68. desenvolvería um a intensa actividade sob
a direcção de Kobert Linhart. um nos n o rm a lie n s que Hélène mais estimava.
F claríssim o que eu realizava assim no Partido o m eu desejo de iniciativa
própria, o meu desejtv de oposição feroz ã direcção e ao aparelho, mas no
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interior do próprio Partido, tiuer dizer, sob a sua protecção. Com efeito, nunca
me pus em posição, excepto talvez em 19^8, e m esm o então ... de correr dc\e-
ras o risco de ser afastado. Nem secitier Roger Ciaraudç que a seguir a .\rgenteuil,
onde só se tratara, a propósito de problem as culturais, dele e de num. e tjue no
dia seguinte me dirigiu um telegrama: «Perdeste, vem falar comigo . me fez ceder
Nunca esti\'era com ele. nunca o vi. Sem dúvida, para além da força da.s no^sus
di\ ergèncias, eu devia sentir-m e suficientem ente seguro dos meu.s argum entos
e da protecção do Partido para o m andar passear a ele, o «vencedor» de Argenteuil,
Mas sob a fornta desta v i\a contestação, conduzida sob as garantias de
uma protecção cujos limites de tolerância nunca infringi, o que eu realiza\a,
antes do mais. eram seguram ente os m eus próprios desejos, longam ente recal
cados ou censurados pelos meus, os desejos qtie com eçara a \ i\ er durante a
m inba passagem pela escola de Larochemilla). que redescobrira durante o ser-
\ iço m ilitar e po r fim no cativeiro. O desejo de me haver com o m undo real,
com o m undo dos hom ens cm toda a sua dicersidade, e sobrettido o desejo de
confraternizar com os mais despojados e tam bém os mais francos, os mais lím
pidos e honestos dos hom ens. Em suma, o desejo de ter um m undo m eu, que
fosse o m undo verdadeiro, o m undo da luta (acabei po r receber, com grande
esforço de determinaçãt), cacetadas a valer da polícia, durante as m anifesta
ções, com o essa assustacktra m anifestação contra Ridgway, quando cheios de
entusiasm o nos reunim os aos operários da Renault, joviais e arm ados de
pequenos cartazes de chapa m etálica cortante cjue faziam m aravilhas nos
em bates... Esta com unidade de acção e de luta, eu perdido nas m ultidões
imensas (desfiles, com ícios), descobria enfim o que me interessava. Os meus
fantasmas de dom ínio (m aitrise) ficavam então m uito longe de mim.
Apesar de tudo ti\e cm certas circunstâncias, umas dram áticas, as outras
sobretudos cômicas, que enfrentar directam ente o aparelho repressiro do
Partido. Não é sét o Estado ejue dispõe de um aparelho repressiw): dele dispõe
também todo o aparelho ideológico, ciualquer qtie seja. Sc conto estes episó
dios, é sem pre pela mesma razão: ver claro cm mim '.
:ii
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.................
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por Legotien (Hélène, p o r ódio ao seu patroním ico. adoptara segundr) os dese
jos do padre Larue o nom e de um dos prim eiros jesuítas a \ isitar a (ihinai. era
ao m esm o tem po agente do Intelligenee Service e da Gestapo (s/o . Efectiva-
rnente, tinham corrido boatos dessa natureza em Lyon, sendo aqui necessário
explicar-lhes a origem . Hélène estava ao tem po m uito ligada aos ,\ragon. e
durante o p eríodo da Resistência, levava-lhes muitas vezes da Suíça produtos
inencontráveis em França, especialm ente meias de seda para Elsa. Ora aconte
ceu que um dia, as meias trazidas para Elsa não correspondiam à cor ou à qua
lidade desejada p o r pessoa tão exigente. Aragon teve um a fúria enorm e e rom
peu com Efélène. E com eçou a acusá-la de ser um a agente do Intelligenee
Service! Além disso, Elélène, quando Lyon se tornou teatro dos com bates que
libertariam a cidade, tinha um corpo franco sob as suas ordens, um grupo de
rapazes que não estavam com meias m edidas. Capturaram um alto responsác el
da Gestapo que fecharam nas caves do prédio, torturaram -no e em seguida
executaram -no sum ariam ente. Ora Elélène dera ordens m uito rigorosas: p ri
meiro, que ele fosse bem tratado com o todos os prisioneiros, segundo, que o
m antivessem vivo para p o d e r ser interrogado e para se p o d er arrancar-lhe um
m áxim o de inform ações úteis à Resistência e ao recente exército das FFI '. Os
rapazes do corpo franco tinham infringido as suas instruções formais, O rum or
desta execução difundiu-se em Lyon e chegou aos ouvidos do séquito do car
deal Gerlier, cuja atitude durante a ocupação fora bastante duvidosa, lá n dos
seus íntimos, c|ue o tal m ilitante com unista descrevia com o um «padralhão».
foi pedir contas a Hélène e prodigalizou com entários sobre os m étodos de to r
tura que ela «impunha» aos prisioneiros dos corpos francos. Outras tantas con-
tra-verdades evidentem ente, mas que «scr\ iam» de alibi à má consciência do
círculo de Gerlier, Não sei Cjuem espalhou a histõria e criou-se um boato que
dava Hélène com o agente da Gestapo. Nada m enos!
As «revelações» do funcionário do Partido causaram o efeito de um a bomba,
e em todo o caso forneceram o ensejo esperado para um ajuste de contas
público. Sabe-se c]ue Hélène, m em bro do Partido desde 19.^0, não conseguira
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à nossa volta-, na rua todos os cam aradas nos cn itaAam. única questão da
ordem do dia da célula era: «salvar Althusser».
Bem entendido não contem porizei. Hélène e eu partim os pouco tem po
depois para nos refugiarm os num a outra solidão, a de Cassis onde, se não
tínham os amigos, ninguém nos evitava: e depois, havia a consolação e a paz
do vento e do mar. Hélène era de um a coragem adm irát el. Repetia-mc; A his
tória há-de dar-m e razão.» O certo, contudo, é que tínham os vivido um verda
deiro processo de Moscovo em plena Paris, e mais tarde pensei muitas \ezes
que se na épctca estivéssem os na l;RSS, teríam os acabado com uma bala na
nuca.
() que m e deu evidentem ente acerca do Partido, das suas direcções e dos
seus m étodos de acção uma perspectiva singularm ente realista. Hsta articulava-
se com um a outra experiência cjue tivera pouco tem po depois da m inha ad e
são. Levara então a célula a fundar um Círculo Politzer na École, para o qual
convidaríam os grandes líderes sindicais e políticos que nos falassem da histó
ria do m ovim ento operário: foi assim que ouvim os Benoit Frachon, Henri
.Monmousseau, André Marty e outros. Mas, prudentes e disciplinados, decidi
mos solicitar a opinião de Casanova, então destacado para os «intelectuais».
Fui ter com ele na com panhia de Desanti que, sendo corso, tinha um a relação
privilegiada com Laurent e que politicam ente o seguia, ele que m o perdoe,
com o um cachorrinho. Esperám os uma hora bem contada na antecãm ara,
separada do gabiirete dele po r um estreito tabiejue de m adeira. Lm hora de gri
tos. de insultos e de descom posturas inauditas; ouvia-se apenas a voz de Casa
nova dirigindo-se a um interlocutor praticam ente m udo. Em questão estava a
ciência proletária, pala\ ra de ordem da época. Ouvim os declarações espanto
sas. inclusire sobre 2 -r 2 = -i. «Burguês», ao que parecia! Xo fim \ imt.ts sair
um hom em , anitiuilado: Desanti disse-me o nom e dele. Marcei Prenant. Entrá
mos no gabinete de Casa, que retom ou diante de nós a dem onstração furi-
bunda tjue acabava de apresentar a Prenant, para depois, acalmando-se. ler o
m eu cartaz e mts dar a sua aprovação. Que lição!
O mais surpreendente é que este gênero de acidente, sobretudo o mais
h o rrírel, o prim eiro, não me precipitou em qualquer depressão que fosse, Eu
sentia-me desfeito, mas indignado, c essa indignação m antinha-m e sem dúvida
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eni vida, juntam ente com o extraordinário exem plo da coragem de Hélène.
Estava a fazer-me um hom em .
Foi po r certo nestas prim eiras atribulações que descobri a força de realizar
no interior do Partido o m eu p ró p rio desejo de resistir e de lutar, com o fiz
constantem ente daí em diante. D escobrira por fim o m eu terreno de eleição,
mas com o continuava no Partido, a m inha luta desenrolava-se, com o já disse,
sob a protecção do próprio Partido. Nele fui atacado severamente, sem des
canso, mas toleravam -m e sem dúvida p o r cálculo e devido à audiência que me
haviam valido as m inhas intervenções teóricas. Eu extraía seguram ente alguns
benefícios desta situação cjue com binava ao m esm o tem po um desejo de p ro
tecção até então inextirpável, e o m eu desejo de existir finalm ente num a luta
que até ao m om ento só p o r m eio de artifícios exercera. Desta feita, era a sério.
Foi-o, e cada vez mais, até 1980, ano do dram a.
216
XVII
gora que disse p o r que vias de acesso rem otas cheguei a Marx ou me
A «confortei» no seu pensam ento, com o m e expliquei sobre toda a história
da m inha relação com Marx quer em Pnur M arx (sobretudo no prefácio) cjuer
na «Soutenance dAmiens^^ *, posso ser mais sucinto.
A verdade é que posso dizer que foi em grande parte através d a s o rg a n i
zações católicas da Acção CMtólica que to m ei contacto com a lu ta de classes
e p o r conseguinte com o m a rxism o . Mas não indiquei já a surpreendente astú
cia da história que, através da exposição da «questão social» e da «política
social da Igreja», iniciou no socialism o um sem -núm ero de filhos de burgue
ses, e de pequeno-burgueses (incluindo cam poneses da Juventude Agrária
Cristã), precisam ente devido ao m edo pânico de os ver passarem-se para o
cam po do «socialismo»? De facto, a Igreja, as suas encíclicas e os seus capelães
instruíram os seus p róprios m ilitantes sobre a existência de um a certa «questão
social» que a m aior parte de nós ignorava p o r com pleto. Bem entendido, um a
vez reconhecidas a «questão social» e as propostas dos ridículos rem édios para
ela, pouco bastava, p o r exemplo, no m eu caso, a visão política profunda do
«velho Hours», para quererm os ver o que se passava «por trás» das fórm ulas
nevoentas da Igreja Católica e aderirm os rapidam ente ao m arxism o, antes de
entrarm os no Partido Com unista! Tal foi o cam inho de dezenas de m ilhar de
m ilitantes das juventudes estudantis, operárias e agrárias cristãs (JEC, JOC,
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L o [' I S A L 7 // V S S li R
JAC:) que travaram conhecim ento com quadros da CGT ou do Partido — n.;
m aior parte dos casos através da Resistência. Hoje. podem os esperar resulta
dos mais im portantes do m ovim ento de massas que apoia a teologia da Liber
tação.
Mas durante m uito tem po conservei a m inha «fé», até cerca de 19-4"’. Est.:
fora sem dúvida fortem ente abalada no cativeiro pela imagem, que me trans
tornara p o r altura de uma «\ iagem dc camioneta» com Daél até aos co m an d o '
dos campos, pelo clarão da imagem de um a rapariga m uito jovem sentada n o '
degraus de uma escada, com os jo elh o s u n id o s e que, no seu silêncio, achei
inacreditavelm ente bela. Mas dou-m e conta neste instante de que estes «joelhos
iinidos^^ me lem bram um a espantosa aula de Elenri Guillemin que foi durante
quinze dias, em 1936, nosso professor de francês em L\'on. M andara-nos ler
A tala, e com o néts passavam os depressa de mais para o seu gosto pela descri
ção do cadáver da bela rapariga e sobretudo pela «modéstia dos seus joelhos
unidos», ficou furioso, cham ou-nos «inocentinhos» e p o r fim, uma vez que
ninguém se atrevia a sugerir um a explicação, gritou-nos literalm ente; «Mas se
ela está com os joelhos unidos é porque ninguém lhe abriu as coxas para a
foder! É porejue ela é virgem, não? Depois da prim eira violação, os joelhos
abrem-se!» Esta «saída» pretensam ente explicativa deixou-m e, ccmfesso-o, bas
tante pensativo. Em todo o caso, é possível c[ue entre os joelhos da pretensa
virgindade à Guillemin e os joelhos unidos da jovem e bela alem ã \ ista de pas
sagem, tenha havidet alguma relação de afecto. De resto, na khâgne, em Lyon.
sentira-m e durante m uito tem po pertu rb ad o p o r um a ilustração de um m anual
de histétria literária latina que rcpresentaca dançarinas nuas e lascivas esculpi
das no bronze de um baixo-relevo alexandrino. Fit[uei a tal ponto «comovido»
no m eu corpo que me fui confiar ao padre Varillon. Ele pregou-m e um dis
curso sobre a arte e a sublimação. OK.
Seja com o for, tive m uito nitidam ente o sen tim en to de que deixava de ser
crente cm função de um a incom patibilidade gritante entre a m inha fé e os
meus desejos sexuais (lem bro-o uma vez mais; sem consequências).
C ontinuei todavia crente até cerca de 1947, até ao m om ento em que, com
Maurice Caveing, François Ricci e outros, organizám os o nosso sindicato ilegal
que lutava para ser legalmente reconhecido (situação que não deixava de ligar-se
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enclausurado no meu velho apartam ento da École de onde quase nunca saía,
c se m antinha todas as aparências desta seh ajaria reclusa era para tentar entrar
no anonim ato em que pensava descobrir o m eu destino e por acréscim o a paz,
E agora que confio ao público que se dispuser a lè-lo este li\ ro pessoalíssimo,
é ainda, mas por via paradoxal, p a r a en lra r clefhiitivciniente )in anoni}}iato.
não já da pedra tum ular da im procedència, mas na publicação de tudo o que
de mim se pode saber, ficando de vez em paz perante as solicitações indiscre
tas. Porque desta feita todos os jornalistas e outras pessoas dos meios de com u
nicação ficarão saciados, mas há-de ver-se que não necessariam ente satisfeitos
22,â
II r / s .1 /- 7 77 r S S E R
Aqui está o que dom inou as m inhas relações com Marx e o m arxism o.
A partir de então descobri, com o qualquer outro pode fazê-lo (e com o no
essencial Marx reconheceu), que o essencial filosófico e não «científico» do
m arxism o foi enunciado m uito tem po antes de Marx (Ibn K haldoun, Montes-
quieii, etc.) — exceptuando essa «nebulosa» e literalm ente im pensável teoria
do valor-trabalho que Marx reivindica com o a sua única descoberta autentica
m ente pessoal. Dos aspectos políticos desta actividade de aparência pura
m ente teórica (ah! o que não se escreveu sobre o nosso «teoricismo», o nosso
«desprezo pela prática»!!), falo n o utro lugar.
224
XVIII
Q
uanto à m inlia relação com o m arxism o, é só agora que penso \è-la
cx)m clareza. Lana \ez mais, não se trata da objectiv idade do que pude
cscre\er, e portanto da m inha relação com um objecto ou objectos objecti-
\ ()s, mas da m inha relação com um objectt) «objectal», quer dizer, interno e
inconsciente. K unicam ente desta relação objectal cjue de m om ento c|uero
falar.
Eis como, hoje, isto é, desde que estou a escrer er este ensaio, as coisas me
aparecem .
De que m odo tinha eu acesso ao m undo, tão estreito e repetitivo, que mc
rodeava em criança? De que m odo, introduzindo-m e no desejo de m inha mãe,
podia eu esperar entrar em relação com o m undo? Com o ela, ejuer dizer, não
através do contacto do corpo e das mãos, através do seu trabalho a partir de
uma m atéria pré-existente. mas pela utilização dos m eus olhos. O olho é pas-
si\(), à distância do seu objccto. recebe a imagem deste, sem ter que trabalhar,
sem com prom eter o corptj em qualquer processo de aproxim ação, de c o n
tacto, de m anipulação (as mãos sujas, a sujidade eram uma fobia da m inba
mãe — e era por isso que eu tinha uma espécie de com placência pela sujidade ).
O olho é assim o étrgão especulativo po r excelência, de Platão e .-Vristóteles a
São Tomás e para além dele. Em criança, nunca eu teria «posto a mão no cu»
fosse de que rapariga fosse, mas era razoaw lm ente royeiir. traço que me ficou
por m uito tempo. Distância; a dupla distancia que mc era sugerida e imposta
pela m inha mãe. a que nos protege das intenções de outrem antes que outrem
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I o I I s A I- 7 // r -V V 7: R
nos toque (roubo ou violação), a distancia a ciuc eu devia estar tam bém desse
outro Louis que a m inha mãe não paraca de olhar através de mim. Era assim
um filho do (dhar, sem contacto, sem corpo, porque é de facto pelo corpo que
todo o contacto passa. Dizem-me que, por \'olta de 19~5. proferi a seguinte
terrível frase: «E depois há corpos e os corpos tém sexos»! Com o não sentia
em mim qualcjuer corpo, não precisava seciuer de me defender de um simples
contacto com a m atéria das coisas ou do corpo das pessoas, e era sem dúv ida
p o r isso que tinha um meck) pânico de me bater, m edo de t[ue. nessas lutas
breves e violentas entre rapazes, o meu corpo (ou o c[ue dele eu tinha) pudesse
ficar ferido, danificado na sua ilusévria integridade — de me bater ou, ideia cjue
nunca me ocorreu antes dos vinte e sete anos, de me masturbar.
Ora penso que o meu corpo desejava profundam ente ter a sua existência
prétpria. De onde o m eu desejo de praticar futebol, de onde a extrem a habili
dade com que me serv ia de todos os meus mtfsculos, tanto os da boca e da gar
ganta com o os m úsculos dos meus braços e das m inhas pernas (as línguas, o
futebol, etc.). Este meu desejo perm aneceu no estado latente até ao tem po feliz
do meu av (í. prim eiro na casa florestal do Bois de Boulogne, mas sobretudo na
sua horta e nos seus cam pos de Morvan, \e jo agora claram ente que este
período exaltante foi aquele em que finalm ente reconhcci e finalm entc me foi
reconhecida a existência de um corpo, e em que me apropriei realm ente de
todas as virtualidades efectivas do meu corjvo. Ema vez mais o recordtv: os
cheiros, antes de mais o das flores, frutos, plantas, mas também o do seu ap o
drecim ento, o div inal cheiro do estrum e de cavalo, o cheiro da terra e da
m erda na peciuena casa de banho de m adeira no jardim por baixo de um sabu
gueiro de perfum e intenso; o gosto dos m orangos bravos que eu apanhava nos
taludes, o cheiro dos cogum elos e sobretudo dos ejue se podiam comer, o
cheiro das galinhas e o cheiro do sangue; o cheiro do gato e dos cães, o cheiro
dos cereais enfeixados, do azeite, dos jactos de água a ferver, do suor dos ani
mais e dos hom ens, do tabaco do m eu av ô. o cheiro do sexo, o cheiro violento
d <7 vinho e dos tecidos, o cheiro da serradura, o cheiro do m eu prétprio suor
no m eu corpo em m ovim ento; a alegria de sentir os meus m úsculos responde
rem ao m eu impulso, a m inha força levantando os braçados à altura dos carros,
a erguer toros e troncos, com o tinham — os meus m úsculos — respondido tão
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/• r / i R o M I I r o / h \i p o
I-)cm ;u) m eu desejo de aprender sozinho a nadar bem, de aprender a jogar bem
tênis sozinho, a andar bem de bicicleta com o um campeão. Tudo isto me foi
dado pelo M orvan, cpier dizer, pela presença actic a e benéfica do m eu avò
(enciuíinto a \ iolència do meu pai em Argel e Marselha nunca foi para mim um
m odelo, mas um terror).
Foi assim cjue com ecei a «pensar» com o meu c o rp o : isso ficar-me-ia para
sempre. Pensar nãct na dimensãt) distante passiva do olhar, dos olhos, mas na
acção da mão. do jogo infinito dos m úsculos, e de todas as sensações do corpo.
Q uando passeava no jardim ttu no cam po do meu avò e nos bosques, só p en
sava em trabalhar e rem exer a terra, ceifar o trigo e a cevada, afastar ã m inha
frente os ramos das árvores novas para os cortar com a m inha faca. ah' essa
faca, prenda do m eu avò, tão grande e afiada com o a dele, que alegria cortar os
ramos novos dos castanheiros para os arcos dos cestos, os rebentos de salgueiro
para os entrelaçar na sua arm ação, tiiie alegria entrelaçar eu próp rio esses ces
tos, que alegria cortar a lenha m iúda dos m olhos secos com a podoa, ou rachar
a lenha grande à m achadada, no cheiro a vinho e a m ofo da cave!
O corpo, o seu exercício exaltante, as cam inhadas pelas matas, os trajectos
a pé. as longas fugas de bicicleta por ladeiras extenuantes — toda esta vida
enfim descoberta e tornada m inha substituira para sem pre a sim ples distância
especulativa do olhar vão. Disse que experim entei a m inha exaltação pessoal
nos trabalhos físicos do cativeiro, fím a constância profunda cjue fixou para
'c m p re o meu destino, para aí reconhecer o m eu próprio desejo (não o da
m inha mãe, que tinha um santo h o rro r p o r qualquer contacto físico, tão obce-
Lada era pela «pureza» do seu corpo que protegia de mil maneiras, e antes do
ntais com as suas inúm eras fobias, de todos os atropelos perigosos). Torna
ra-me por fim feliz no m eu desejo, o de ser um corpo, de existir antes do mais
no meu corpo, na prova m aterial irrefutável que ele me dava de existir deveras
c enfim. Hu nada tinha a ver com o São Tomás da teologia que pensa ainda sob
.1 figura do olho especulativo, mas m uito mais com o São Tomé dos Fvange-
’.hos cjue t|uer tocar para acreditar. .Melhor, não me contentava com o simples
Lontacto da m ão para acreditar na realidade, precisava de a trabalhar, de a
iranstórm ar para acreditar, m uito para lá da realidade pura e simples, na m inha
própria existência, finalm ente conquistada.
7 7 ^
r o I ( s .1 / H (' s S li K
Q uando «descobri» o m arxism o, foi através cio meu co rpo que a ele aderi.
Não só porque representava a crítica radical de toda a ilusão «especulativa»,
mas porque me perm itiu nã(t só viver, atrav és da crítica de toda a ilusão espe
culativa. uma relação verdadeira com a realidade nua e p o d er tam bém viver
doravante essa relação física (de contacto mas sobretudo de trabalho a partir
da m atéria social ou outra) no in terio r do p ró p rio pensam ento. .\o m ar
xismo, na teoria m arxista, descobri um pensam ento cjuc levava em conta o
prim ado do corpo activo e trabalhador sobre a cvnvsciència passiva e especula
tiva. e pensava esta relação com o sendo ela o próprio materialismo. Fiquei fas
cinado com isto e aderi sem dificuldade a esta perspectiva cjue não era para
mim uma revelação mas um bem próprio. .Na ordem do pensam ento puro
(onde reinavam ainda em mim a imagem e o desejo da m inha mãe), eu desco
bria finalm ente esse prim ado do corpo, da m ão e do seu trabalho de transfor
m ação de toda a m atéria, tjue me perm itia pô r fim à m inha dilaceração interna
entre o meu ideal teórico, resultante do desejo da m inha mãe. c o m eu pró p rio
desejo que reconhecera e reconquistara no m eu corpo o m eu desejo de existir
para mim. a m inha própria m aneini de existir. Nao era p o r acaso que eu p e n
sava. no m arxism o, toda a categoria sob o prim ado da prática, e propunha a
fórm ula da «prática teó rica s fórm ula que satisfazia o m eu desejo de com pro
misso entre o desejo (especulativo, teórico, resulttinte do desejo da m inha
m ãe) e o meu pró p rio desejo assom brado não tanto pelo conceito de prática,
com o pela m inha experiência e o m eu desejo da prática real, do contacto com
a m atéria (física ou social), e da sua transform ação no trabalho (operário) e na
acção (política). Ora esta fórm ula, «pensar é produzir», encontra-se já em
babriola. Ninguém deu p o r isso, mas quem tinha lido Labriola em França?
Tratava-se sem dúvida de um com prom isso. Nos meus prim eiros escritos,
eu exprim ia ainthi à minhti m aneira este com prom isso no elem ento, ainda
dom inante para mim, do puro pensam ento de... foi assim que, arranjando-m e
com o podia nr> interior deste cvtmpromisso, forjei em filosofia a dem asiado
célebre definição da filosofia com o «Teoria da prática teórica» (frágil m aius
cula que tanto com oveu Ciesarc L uporini...), mas para ela renunciar rapida
m ente sob as críticas de Régis Debray e sobretudo de Robert Linhart, que
sabiam, pelo seu lado. o que eram a acção política e o seu prim ado. De facto, se
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os meus amigos me fizeram reconsiderar tão facilm ente e \o lta r ao bom cam i
nho, era porque se tratava do mais fundo do que eu queria, com o meu p ró
prio desejo, e há m uito tempo,
Mas antes de chegar a Marx, tenho que falar do des\ io que fiz atrac és de
spinoza, Maciuiaxel e Rousseau: foram eles a m inha «estrada real para Marx.
Já o indiqtiei, mas sem apresentar as razões profundas.
Encontrara em Spinoza (além do célebre A pêndice do Li\ ro 11 uma p ro d i
giosa teoria da ideologia religiosa, esse «aparelho de pensamento» que \ ira o
m undo ao contrário, tom ando as causas p o r fins e pensada inteiram ente na sua
relação com a sujectividade social. Que «decapagem»!
D escobrira no conhecim ento do «prim eiro gênero» não um conheci
mento, nem a fo r tio r i uma teoria do conhecim ento — teoria da «garantia»
,ibsoluta de todo o saber, teoria «idealista» — , mas uma teoria do m undo ime-
«liatamente vivido (para mim, a teoria do prim eiro gênero era sim plesm ente o
m undo, quer dizer, o im ediato da ideologia espontânea do senso com um ),
E sobretudo descobrira no Tratado Teológico-Político, que pelo m enos inter
pretava assim, o exem plo mais fulgurante mas tam bém mais ignorado do
conhecim ento do «terceiro gênero», o mais elevado, tjue proporciona a inteli
gência de um objecto ao m esm o tem po singular e universal (era, devo reco
nhecê-lo, um a leitura bastante hegeliana de Spinoza — nãca é p o r acaso que
Hcgel considera Spinoza «o maior» — mas não a julgo falsa): a da individuali-
«iade histórica singular de um povo (penso que Spinoza visava assim no «ter
ceiro gênero» o conhecim ento de toda a indit idualidade singular e no seu
genero universal), a do povo judeu. E sentia-m e absolutam ente fascinado pela
teoria dos profetas que nele encontram os, reforçando em mim a ideia de que
-'pinoza alcançara uma consciência prodigiosa da natureza da ideologia. Sabe-
se com efeito que os profetas sobem à m ontanha para aí om irem a \o z de
Deus. Para dizer a verdade, o que lá ouvem é o estrépito do trovão e dos
relâmpagos bem com o algumas palavras, que referem sem as terem c o m
preendido ao povo da planície que aguarda o seu regresso. E o extraordinário
e que então é esse m esm o povo que, na sua consciência de si e no seu conhe-
«imento, ensina aos profetas surdos e cegos o sentido da m ensagem t[ue
Deus lhes entregou! Todos, excepto Daniel, esse imbecil que não só não
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/, o r / ,s .1 A / // f' -V V A A
com preende o que Deus lhe disse (tal é a sorte de todos os profetas), mas nem
sequer aquilo que o povo lhe explica para o fazer com preender o que ouviu!!
Prova de que a ideologia pode, em certos casos, e por que não por natureza,
ser totalm ente opaca para aqueles t)ue se lhes encontram subm etidos. Isto era
para mim m oti \'0 de admiração, bem com o a concepção de Spinoza sobre as
relações entre a ideologia religiosa dt) povo judeu e a sua existência m aterial
no templo, os sacerdotes, os sacrifícios, as observàncias, os rituais, etc. Mais
tarde, seguindo-o neste ponto, com o tam bém a Pascal que admirava m uito, eu
insistiria fortem ente na existência m aterial da ideologia, não só nas suas con
dições materiais de existência (o que encontram os já em Marx e, antes e depois
dele, em num erosos autores), mas na m ateriedidade da sua própria existência.
Mas eu ainda não chegara ao fim no cjue se refere a Spinoza. Ele era um
pensador que recusara toda a teoria do conhecim ento (de tipo cartesiano ou
mais tarde kantiano), um autor que recusara o papel fundador da subjectix i
dade cartesiana do cogito, para se contentar com escrever, com o um facto: «o
hom em pensa», sem daí extrair qualcpier consequência transcendental. Era
tam bém um nom inalista, e Marx ensinar-m e-ia ejue o nom inalism o é a estrada
real para o materialismo. ou. para dizer a xerdade, trata-se de uma estrada ejue
apenas em si própria desem boca, e não conheço fo rm a de materialismo mais
profunda do que o nominalismo. Era por fim um hom em que, sem esboçar uma
gênese do sentido originário, enunciava o seguinte facto: «temos um a ideia
verdadeira», uma «norma da verdade» que nos é dada pela m atem ática — mais
uma vez um facto sem origem transcendental, um hom em que im ediatam ente
pensava xn fa c tic id a d e do facto: surpreendente no autor que alguns preten
dem dogm ático deduzindo o m undo de Deus e dos seus atributos! Nada mais
m aterialista do que este pensam ento sem origem nem fim. Mais tarde eu
extrairia datjui a m inha fórm ula da história e da verdade com o processo sem
sujeito (originário, fundador de todo o sentido) e sem fins (sem destino esca-
tológico pré-estabelecido), pois recusar o pensam ento do fim com o causa ori
ginária (no reenvio especular da origem e do fim) era deveras pensar com o
materialista. Servi-me então de um a m etáfora: um idealista é um hom em tiue
sabe ao m esm o tem po de tjue estação sai e qual é o seu destino; sabe-o anteci
padam ente e quando apanha o com boio, sabe para onde vai, uma xez titie o
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o F r T r K o M r i i o 7 F M F o
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A O t I S A L r H V S S E R
que pensar forte e livremente, portanto pensar propriam ente com o corpo, no
corpo e p o r m eio do corpo, em suma o facto de o corpo p o d e r pensar, no e
pelo desabrochar das suas forças, era para mim absolutam ente deslum brante,
com o um a realidade e um a verdade que eu vivera e eram as m inhas. A tal
ponto é verdade, com o m uito bem disse Hegel, que só se conhece aquilo que
se reconhece.
No entanto teria ainda necessidade de outros filósofos para um a verda
deira introdução a Marx. Em prim eiro lugar, foram, com o referi na m inha
«Soiitenance d Arniens». os filósofos políticos dos séculos xvii e xviii, sobre
os quais tinha então o projecto de elaborar um a tese de doutoram ento. De
Hobbes a Rousseau. descobria um a m esm a inspiração, profunda, a de um
m undo conflitual ao qual só a autoridade absoluta do Estado (Elobbes) pode
sem contrapartida garantir a segurança dos bens e das pessoas, pondo fim à
«guerra de todos contra todos»: antecipação da luta de classes e do papel do
Estado, a propósito dos quais sabem os que o p ró p rio Marx declara que os não
descobriu, mas foi buscar aos seus predecessores, em particular aos historia
dores franceses da Restauração, apesar de estes serem m uito pouco «progres
sistas», e aos econom istas ingleses, sobretudo Ricardo. Teria podido ir m uito
mais Umge. até ao célebre debate entre «romanistas» e «germanistas», sem falar
dos autores que acabo de citar. O famoso cardeal Ratzinger. a quem a luta de
classes tira o sono, faria bem em se instruir um pouco. Rousseau, cjue pensava
no estado de natureza «desenvoh ido» a mesma conflitualidade social, dava-lhe
uma outra solução: justam ente o fim do Estado, na dem ocracia directa do
«contrato» exprim indo um a vontade geral «que nunca morre». O que convida
a sonhar para um dia o a d \e n to do com unism o! Mas o que tam bém me fasci
nava em Rousseau era (t Segundo Discurso e a teoria do contrato ilegítimo,
subterfúgio c astúcia nascidos da im aginação perversa dos ricos para subm ete
rem o espírito dos m iseráveis: mais uma teoria da ideologia, mas desta feita
referida às suas causas e ao seu papel sociais, quer dizer, à sua função hegem ô
nica na luta de classes. Considero Rousseau o prim eiro teórico da hegem o
nia — após Maquiavcl. Eram tam bém os planos de reform a para a Córsega e
para a Polônia onde Rousseau nos surge com o exactam ente o contrário de um
Litopista, um realista que sabe levar em conta todos os dados com plexos de uma
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exactam ente o de Marx. Vejo bem que não fiz mais do que tentar tornar os tex
tos teóricos de Marx, m uitas vezes obscuros e contraditórios, ejuando não
lacunares em certos pontos im portantes, inteligíveis em si próprios e para nós.
Vejo bem que me m ovia nesta iniciativa uma dupla am bição sem apelo ■
. p ri
m eiro e antes do mais não alim entar ilusões nem sobre o real, nem sobre o real
do pensam ento de Marx, e portanto distinguir neste aquilo a que cham ei a
ideologia (da juventude) e o pensam ento ulterior, ac|uele c|ue acreditava ser o
pensam ento da «realidade com pletam ente nua, sem contributo externo»
(Engels). «Não alim entar ilusões», esta fórm ula continua a ser para mim a
única definição do m aterialism o; e tentar, «pensando por mim próprio» (pala-
\ ras de Kant retom adas p o r Marx), tornar o pensam ento de Marx claro e co e
rente para todos os leitores de boa fé e exigência teórica. Naturalmente, isto
conferiu uma form a particular à m inha exposição da teoria m arxista, de onde,
em num erosos especialistas e militantes, a im pressão de que eu fabricara um
Marx m eu. algo estranho ao Marx real, um m arxism o im aginário (Raymond
Aron). Reconheço-o de bom grackx porc]ue de facto suprim ia em Marx tudo o
cpie me parecia não só incom patível com os seus princípios materialistas, mas
tam bém o que nele subsistia de ideologia, acima de tudo as categorias apolo-
géticas da «ciialéctica». ou até m esm o a própria clialéctica. c|ue me parecia não
servir nas suas famosas «leis» senão com o apologia (justificação) retrospectiva
cio facto consum ado do desenrolar-se aleatório da história para as decisões da
direcção do Partido. Neste ponto nunca m udei, e é po r isso que a figura da
teoria m arxista que propus, e que de facto rectificava o pensam ento literal de
Marx em num erosos pontos, me valeu incontáveis ataques de pessoas apega
das à letra das expressões de Marx. Sim, dou-m e bem conta de ter com o que
fabricado para Marx uma filosofia diferente do m arxism o vulgar, mas com o
esta fornecia ao leitor um a exposição já não contraditória mas coerente e inte
ligível, pensava que o objectivo estava alcançado e que eu me «apropriara» de
Marx observando as suas exigências de coerência e de inteligibilidade. Era de
resto a única m aneira de «quebrar» a ortodoxia da II e desastrosa Internacional
da qual Estaline fora herdeiro a cem p o r cento.
Foi isto p o r certo que «abriu» a num erosos jovens, ao tem po, a seguinte
perspectiva nova: era possível pensar no quadro desta nova apresentação de
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Julgo ter deixado entender que não era seetário. Q ualquer pen.samento me
interessa e c-me indiferente que se considere e afirme de direita, quando fala
claro, atravessa a cam ada ideológica t|ue nos esmaga para atingir, com o que
através de um contacto físico m aterial (mais uma m odalidade da existência do
corpo) a realidade com pletam ente nua. É po r isso que penso que. na sua tenta-
tira de investigarem e dizerem a verdade acerca do real. os marxistas, graças
a Deus, estão longe de ser os únicos a fazè-lo no nosso tem po, porque p ró x i
mos deles sem o saberem, há m uitos hom ens honestos possuidores de uma
experiência real da sua prática, e do prim ado da prática em relação a toda a
consciência, que desde já cts acom panham no reconhecim ento da \ erdade. ,se
form os capazes de tom ar consciência disto, para além de todas as oposições
de estilo, de hum or e de política, poderem os alim entar uma esperança razoá-
\e i.
.Não sei se a hum anidade chegará um dia a conhecer o com unism o, essa
\ isão escatológica de Marx. O ejue sei em todo o caso é que o socialismo, essa
transição forçada de que Marx falava, é «merda» com o o proclam ei em Ih^^h
em Itália e em Espanha perante auditórios desconcertados pela violência dos
meus term(.)s. Também a este propósito contei uma «história». O socialism o é
um rio m uito largo, de travessia perigosíssim a. Em breve terem os um a imensa
Irarca na areia: a das organizações políticas e sindicais para onde todo o povo
pode subir. Mas para transpor os sorvedouros, é necessário um «timoneiro», o
poder de Estado nas mãos dos rc\'olucionários, e na grande nave é necessário
que reine a dom inação de ciasse dos proletários sobre todos os rem adores
estipendiados (existe ainda o salário e o interesse p rirad o ). senão tudo se
\ ira! — a dom inação do proletariado. Põe-se na água a na\ e imensa, e durante
todo o percurso é preciso vigiar os remadores exigindo deles urna obediência
estrita, afastá-los do seu posto se desfalecem e substituí-los a tempo, ou san
cioná-k)s, Mas se este im enso rio de m erda for finalm ente transirosto, então até
ao infinito será a praia, o sol e o vento de uma jovem Primar era, 1'oda a gente
desce, já não há luta entre os hom ens e os grupos de interesses uma vez que
já não há relações m ercantis mas profusão de flores e frutos que cada um
poderá colher pura sua m aior alegria. Explodem então as «paixões alegres» de
.spinoza e até tj «Hino à Alegria» de B eethoren. Sustentei nessa altura a ideia de
2.J"
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. 'HK) for «a história tem mais im aginação do que nós», seja com o for estamos
'eduzidos a pensar «por mãs próprios». Não. não adopto a ideia de Sorel reto-
:i'..ida por Gramsci: o cepticism o da inteligência mais o optim ism o da vontade.
\ ã o acredito no voluntarism o na história. Em contrapartida, acredito na luci-
ãez da inteligência e no prim ado dos m o\ im entos populares Mtbre a inteligèn-
oa, A esse preço, porque não é a instância suprem a, a inteligência pode acom-
vinhar os m ovim entos populares, incluindo e sobretudo para evitar que eles
recaiam nas aberrações passadas e para os ajudar a descobrir formas de ttrgani^
'.icão realm cnte dem ocráticas e eficazes. Se apesar de tudo podem os alimen-
;.ir alguma esperança de ajudar a inflectir o curso da história, ê aqui que ela
e 'tá e só acjui. Ou pelo m enos nã (7 está nos sonhos escatológicos de uma ideo-
>gia religiosa que está a dar cabo de todos nós.
Mas eis-nos em plena política.
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XIX
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dc Robert Linhart (c não falo já de Régis Debray que m uito cedo mas só traçou
o seu cam inho fora do Partido para se em penhar ao lado do Che na guerrilha
boliviana), esses alunos-discípulos, depois de terem conquistado a organiza
ção das Juventudes Com unistas p o r dentro, a abandonaram logo a seguir (sem
o m eu acordo) para fundarem no exterior do p artido uma nova organização,
a União das Juventudes Com unistas m arxistas-leninistas (UJ(i m-1) que co n h e
ceu um a grande expansão, se organizou em escolas e grupos de form ação teó
ricos e políticos, e passaram à acção de massa, form ando em especial os com i
tês Vietname de base que tiveram antes de iMaio de 68 um a ampla expansão.
O Partido era literalm ente ultrapassado entre os estudantes, a tal ponto que,
com o ta h e z saibam, em Maio de 68 houve apenas um punhado, digo bem um
simples punhado (tendo Cathala ficado naturalm ente no seu gabinete), de
estudantes com unistas presentes no im enso m otim da Sorbonne.
E os rapazes da LJC m-1 tam bém lá não estavam. Porquê? Tinham adop-
taclo uma «linha» aparentem ente rigorosa que foi na altura a sua perda: ir para
as portas das fábricas tentar realizar a unidade dos estudantes-trabalhadores
com os operários. Ora não com petia a estudantes esquerdistas, mas a m ilitan
tes do Partido irem pedir aos operários das fábricas que se juntassem no Qtiar-
ticr I.atin à insurreição estudantil. Aí residia o erro fundam ental de Linhart e
dos seus camaradas. Os operários, com raras excepções. não apareceram na
Sorbonne porque o Partido, única instância que tinha autoridade para isso,
não lhes pedira ciue o fizessem. A palavra de ordem poderia ter sido justa com
efeito se o Partido não desconfiasse com o da peste da revolta «esquerdizante»
das massas estudantis e tivesse deitado m ão à ocasião, a «fortuna» com o diria
Maquiavel, de desencadear e apoiar com toda a força do seu p o d e r e das suas
organizações (sobretudo a CGT que sem pre lhe foi fiel desde a cisão de 1948)
um m ovim ento de massas poderoso, capaz de arrastar não apenas a ciasse o p e
rária mas amplas cam adas da pequena burguesia, cuja força e cuja resolução
poderiam objectivam ente abrir cam inho a um a tom ada do p o d e r e a um a p rá
tica revolucionárias. Já Lenine escrevera, com o talvez alguns saibam, que no
tem po do caso Dreyfus, que nunca deu lugar a m otins de massa declarados
nem a barricadas, a agitação teria po d id o abrir cam inho a um a verdadeira
revolução em França se o Partidcj O perário não se tivesse posto à m argem dos
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uma derrota sem massacres de operários, pode dizer-se que isso não é forçosa-
m ente bom sinal para a classe operária que não fica com m ártires para chorar
ou celebrar. Os esquerdistas, que se dacatm conta do faeto. souberam ou julga
ram poder «explorar» os seus poucos m ortos, com o o infeliz 0 \ erneç. Lem bro
-me da frase que não parei de repetir à m inha volta, no próp rio dia do funeral
com ovente e prodigioso deste infeliz m ilitante da Cause cíu peiiple i dois
m ilhões de pessoas no enterro no m eio das bandeiras e do silencio, e na ausên
cia do Partido e da CGT): «Não é O verney que vai boje a e>iterrar. é o esquer-
clismo.» O que se seguiu rapidam ente m ostrou que eu avaliara bem a situação.
Ora este simples facto perm ite-m e abordar um outro argumento, .\lém de
que se trata de um a concepção m uito singular da determ inação e da ideologia
(pessoal) e da história considerar — com o o faria tão exacerbadam ente um
G lucksm ann — um indivíduo, a sua obra e a sua eventual influência capazes
de provocar entre num erosos jovens estudantes e intelectuais (os únicos atin
gidos) opções políticas decisivas e, no limite desta lógica, massacres em massa,
é preciso ver o que representava ou podia representar para jovens burgueses
ou pequeno-burgueses a experiência da existência, da organização, das p ráti
cas da linha econôm ica, política e ideológica do Partido. Expliquei-m e mais
tarde sobre o seu funcionam ento. Fora do Partido, fora de um a experiência
algo prolongada das práteas do Partido, não se pode fazer uma ideia do Par
tido e não são li\ ros anticom unistas com o os de um Philippe Robrieux que, no
tem po do Conselho Com unal, foi o dirigente mais estalinista de todos e o mais
atroz em agitar até à m inha célula os horrores das condenações do Conselho
Com unal, que podem esclarecer quem quer que seja, excepto le m b n m ã o aos
que p o r lá passaram certo núm ero de dados cjue já conheciam ou de que des
confiavam . Nada substitui a experiência directa e os que não passaram po r ela.
se lerem os estudos, ou antes, os quase-panfletos raivosos de um jornalista
obcecado e sem assunto com o Robrieux, adquirirão quando m uito um vago
conhecim ento livresco que não os m arcará, se não estiverem já m arcados por
outras razões. Porque, no fundo, o que pode dizer esse gênero de trabalho,
senão o que uns já aprenderam p o r dentro ou o que outros já ouviram sob for
mas m enos precisas, sem dúvida, da im ensa cam panha anticom unista, valen
do-se ontem de Soljenitsyne e hoje de M ontand, que desde sem pre dom ina a
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ideologia burguesa do nosso país e se difunde por toda a parte? Além do que.
nos anos 50, não havia à esquerda nada a não ser o Partido e a CGT. que eram
as únicas forças reais, e aliás im pressionantes, era preciso alinhar com elas e
n ã o h a v ia ab so lu ta n ien te n a d a que n a su a ordem as substituísse.
Oni. se eu tive algunvA «influência», co m o escreve Rancière nesse peq u en o
panfleto que m e deu m uito gosto ler porque era honesto no seu fu n d o e p ro
fundam ente sincero e com alguma consistência teórica e política (mas só
alguma), em que é que essa influência pode consistir, senão em convidar
alguns (ou m uitos, mas com o sabê-lo?) a não abandonarem im ediatam ente o
Partido, mas a perm anecerem dentro dele? Ora estou convencido de que
nenhum a outra organização em França, digo bem , nenhum a outra organização
em França, podia então oferecer a m ilitantes sinceros um a form ação e um a
experiência política práticas com paráveis às que se podiam adquirir m ediante
uma prolongada presença m ilitante no Partido. Não pretendo que o tenha
sabido conscientem ente, que não tenha tido outras m otivações pessoais para
continuar no Partido (disso já falei longam ente, mas agora quero falar de efei
tos e de factos perfeitam ente objectivos). Não pretendo ter sido tao lúcido
com o Rancière ou outros (cujas razões m uito raram ente eram tão puras). Mas
é um facto: adoptei essa atitude. Nunca escrevi ou fiz de outro m odo cam pa
nha pública ou privada para convencer fosse quem fosse a ficar no Partido, e
HLinca nem publicam ente nem em pricad o desautorizei ou condenei os que
s a i a m ou queriam sair. Cada um deve decidir em consciência: tal era a m inha
regra de acção. Talvez eu tivesse más razões pessoais para ficar ou não suficien-
ten^ente boa.s para sair: é um tacto, fiquei, mas todos os m eus escritos m ostra-
- m « bastante que nas questões fundam entais, tanto filosóficas com o p o líti
cas c .d c „ l„ s ,„ s , M,b,c c,u „,f.cs cic linha (cf le x x m C o „ ,n x ,
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' Force Ouvrière (F.O.) e Confcdération Française Démocratiqiic dii Travail (C.F.D.T): ccntrai.s
sindicais Francesas. (.V. do T.)
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luta — tenham sido capazes de exprim ir críticas e p o r \ ezes até (mas em casos
infiniiam ente mais raros) esboços de perspectivas, de organização, de práticas
e de luta em relação com os «m ovimentos populares» (caros ao m eu amigo
Alain Tourainc, que teve grande m érito teórico e político neste ponto), que
im pacto podiam efectivam ente ter estes indivíduos isolados sobre os operários
e as massas? E é preciso estabelecer um a diferença considerável entre os desi
ludidos e ressentidos que sa íra m do Partido porque a sua experiência do Par
tido os repelira e aqueles que, sob a influência de um rum or ideológictt difuso,
foram desde sem pre desiludidos, ressentickts e contestatários, sem nunca
terem passado pelo Partido. Um ressentido que teve a experiência directa e
concreta das práticas do Partido e da insustentável contradição entre os seus
princípios oficiais e as suas práticas efectivas é um ressentido tjtie sabe o sufi
ciente para poder, se quiser, reflectir sobre as causas d a su a decepção, pois
conhece quanto baste aquilo de que fala. Julgo ser destes últimos, com o todos
acjueles que foram rejeitados pelo Partido ou o deixaram após experiências
m uitas vezes revoltantes, quando não pessoalm ente aterradoras (casos feliz
m ente raros em França, mas pense-se em Marty e em Tillon!); reflectir e p o r
tanto p o d er adoptar com todo o conhecim ento de causa com parativo uma ati
tude e uma linha pessoais. Um ressentido que é ressentido antes de cjualquer
experiência do Partido e sem possuir qualtjuer experiência do Partido não
passa de um desiludido e de um ressentido não po r experiência mas por
hum or, tiue se limita a reflectir no conforto da sua consciência isolada, tem pe
rada pelos horrores do gulag incrivelm ente repercutidos pelos Glucksm ann,
B.-H. I.évy, etc., acerca de quê? acerca da vaga ideologia de que é portador,
uma ideologia tjue lhe chega de fora e dos raros contestatários soviéticos com
pletam ente isolados do seu povo, ideologia que aceita com o um dado sem a
m enor crítica, e c]ue o torna incapaz de uma verdadeira reflexão sobre a p o lí
tica tanto do Partido com o de qualquer outra organização ou qualquer outro
mov im ento de massas espontâneo, ainda cjue justo e fundam entado.
É nisto t|ue não posso im pedir-m e de ver a razão profunda do fracasso
clam oroso dos esquerdistas saídos de Maio de 68 em França e em Itália, sobre
tudo na Alemanha e na Itália, onde o esquerdism o desem bocou no h o rro r de
uma política de atentados que talvez tivesse a ver alguma coisa com Blanqui
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' C) auto r remete aqui para o seu projecto não concluído de um a obra sobre A Verdadeira Tra
d içã o M a teria lista esocada na «Apresentação» do presente \ olume. (A. do H. francês)
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E stá\amo,s cm 19‘’9-I980. O ano anunciava-se sob auspícios bastante bons.
Fati O utubro-D ezcm bro, cu resisti com êxito a um com eço de depressão
que superei por mim próprio, sem hospitalização. Apesar das nossas discus
sões perpétuas, mas sem pre separadas por grandes períodos de paz e de enten
dim ento profundo, as coisas corriam sensivelm ente melhctr. Do lado de
Hélène, com toda a certeza: as suas entrevistas com o meu analista tinham
alcançado nela resultados m anifestos aos olhos de todos. Ela estava infinita
m ente mais paciente, m enos cortante, controlava m uito m elhor as suas reae-
ções no trabalho e, só p o r isso, arranjara por lá amigos que a estimavam e dela
gostavam deveras, referindo-se a ela com o a um a personalidade de excepção
ejue transform ara, pelo seu conhecim ento e com preensão dos m ecanism os
sociais, políticos e ideológicos, os próprios m étodos dos inquéritos sociológi
cos tjue eram uma das especialidades da casa, a Sedes. Apurara uma m odali
dade original de investigação de cam po que conquistara num erosos adeptos
entre os seus colegas de trabalho. Já não era só eu a «mostrar-lhe» os meus am i
gos, era ela ciuem me convidava para cada dos dela. Q uando se reform ou (para
dar lugar aos mais novos), organizou com grande coragem um a activ idade pes
soal não rem unerada de inciuérito de cam po, em Fos-sur-Mer. onde ia de
quinze em quinze dias. Tratava-sc de um resultado espantoso. Acabara p o r gos
tar até das m inhas amigas, com o Franca, que íbi visitar sozinha e p o r sua p ró
pria iniciativa a Itália quando ela adoeceu gravem ente; quando a sua cunhada
(iiovanna ficou seriamente deprim ida, organizou para ela uma váagem a Veneza.
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qLie conhecia liem: (hovaiina ainda hoje me fala com emoção dessa generosa
iniciativa. Gostava muito de Hélène, com o todos os c|ue sc tinham e s f o r ç a d o
minimamente por conhecè-la, mas nunca imagintira semelhante atenção tão
cheia de delicadeza pttr parte dela. Ser-me-ia fácil multiplicar os e x e mp l o s .
Pelo meu lado, as coisas estavam também a m elhorar li \erdade cjue — e
sem saber ao certo porquê — tinha cada cez mais dificuldade em dar aulas,
esforçando-me com tenacidade, mas sem graitde efeito, l-intrincheirac a-nte na
correcção das dissertações e das exposições dos alunos, que para eles com en
tava em privado, e em certas intervenções pontuais sobre este ou aquele pom o
da história da filosofia. Mas as minhas relações com as minhas amigas m ulhe
res tinham m udado seriamente.
Penso numa de entre elas. que conhecia desde 1969. De inicio, d escon
fiando de que ela tinha por mim uma paixão intensa, começara, segundo a
minha reacção e a minha técnica de protecção, ao mesmo tempo por dar os
primeiros passos e por me barricar furiosamente a seguir, Como ela era forte
mas de uma sensibilidade extrema, muito inquieta e capaz de reacções vivas,
tivemos durante muito temjso contactos tumultuosos, sobretudo por culpa
minha, de bom grado o reconheço. Depois, ou por, sob o efeito da minha aná
lise, eu ter c\'oluído o suficiente, ou por ter com preendido que ela na realidade
não queria «deitar-me a mão» e ciue não tinha qualquer «ideia a meu respeito»,
em breve passei a ver nela uma verdadeira amiga, e as nossas relações, m elhor
ou pior, não sem choques, mas já muito menos \ i\as. fonim melhorando. Ela
deu-me uma enorm e ajuda, que nem todos os meus amigos apreciaram igual
mente (na sua opinião, com o na de muitas enfermeiras, deveria ter sido muito
mais enérgica comigo), durante a m inha longa hospitalização (1980-1983) e
ctintribuiu largamente para me ajudar a sobreviver. ,V nossti amizade transfor
mou-se para nós num hem partilhado.
.Mas além disso tornara-me extremamente atento à minha maneira de
abordar as mulheres, e quis e sobretudo pude dem onstrar a mim pniprio
quando, por \'olta de Ih^^s, ac istei p o r acaso, no fim de uma Feira do Li\ ro,
quando os pa\ ilhões estavam quase todos já sem ninguém e a enorm e sala
quase vazia, uma mulher jovem, baixa, morena e com o famoso perfil. Delgada,
tímida, pudica. acançava no vazio da enorme sala em direcção ao pa\ ilhão
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:n^ estigação sobre a relação eonereta entre o aspecto p rá tic o dos mo\ imeiitos
populares e a sua relação (directa, indirecta, perxersa?) com as ideologias e as
doutrinas teóricas que lhes tinham estado ou continuam a estar associadas no
decorrer da história. Naturalmente, a questão da constituição destes mo\ imen-
:os em organizações não podia deixar de col(.)car-se a propósito da constitui
rão ou da transformação das ideologias e das doutrinas teóricas : fazia parte do
:iiesmo problema. Um projecto de muito grande alcance, que eu acha\ a de
ictualidade para a investigação e m esmo para a vida teórica c política, foi
então delineado, sob a sigla de CEMPIT (Centrt) de Estudos dos Mo\ imentos
Idipulares, das suas Ideologias e Doutrinas 'leóricas). Conseguiu o apoio da
eiirecção da Éeole tjuc me concedeu alguns fundos e a promessa de nlai^
- poios po r parte do ministério; obtive o acordo de uma boa centena de histo
; '.adores, sociólogos, politólogos, economisas, epistemólogos e filosott» dc
eidas as competências e tendências, p rom ori na École, em Março de 1980.
-ima reunião inaugural e diversos grupos começaram a trabalhar. Intencionai-
nente, queríamos trabalhar sobre «casos» tão diversos com o o movimento
perário ocidental, o Islão, a China, o cristianismo, os campesinatos, para che-
, .irmos, se possível, a resultados comparativos. Fizemos várias reuniões com a
cTcsença de especialistas que consegui que viessem da província e m esmo do
1 'trangeiro. l i n h a contactos pessoais com três historiadores, stteiólogos e filó-
' ifos soviéticos notabilíssimos: um trabalhava sobre os mo\ imentos populares
ãi Rússia pré-revolucionária, o outro sobre as religiões de África e o terceiro
- 'bre as ideologias, oficial e outras, na URSS. O projecto estava bem encami-
iiado — com grandes receios de um ou dois amigos mais chegados que,
-..liando-me um tanto hipomaníaco. temiam o j a i o r , c os grupos formados em
ena actividade, quando ti\e de enfrentar uma jaequena dificuldade pessoal
italmente inesperada, mas que acarretou pesadas consequências.
Nos finais de 19^9. comecei com efeito a sofrer de vivas dores do esofago
. .1 restituir o mais das vezes aejuilo que ingeria. O dr. Etienne, generalista, é
-erto. mas gastroenterologista dc formação, m andou-m e fazer uma endoscopia
, perante os seus resultados inquietantes m andou-m e radiografar: hérnia hia-
f. Tinha tjue ser operado, caso contrário era de temer a prazo o aparecimento
, L úlceras do esôfago, cujo prognóstico é muitas vezes bastante gra\ e. Por duas
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\ezes foi fixada a data da operação, antes da Páscoa de 1980, c por duas \ezcs.
presa como que de um grave pressentimento (dizia a quem me quisesse ouvir
que «a anestesia ia baralhar tudo»), adiei a operação. Perante a insistência dos
médicos, acabei por ceder. operação teve lugar, depois tia nossa feliz viagem
à Grécia, na Maison des Gardiens de la Paix, no boulen ard Saint-Marcel. Até ao
últimt) instante continuei a trabalhar intensamente na minha pequena cama de
hospital nos dossiers do (diMPIl’ que levara comigt).
Tecnicamente a operação correu bem. Administraram ine as drogas de
uma anestesia profunda, e eu acordei presa de uma angtfstia incoercívcT
(quando alguns anos antes recebera por causa de uma hérnia inguinal e de
uma apendicite duas anestesias sem tiuaist|uer conseciuèncvas). Esta anestesia e
a primeira angústia precipitaram-mc jsouco a pouco num a no\a «depressão»
ciue. pela primeira vez. já não foi de feição neurótica e «dut idosa», não franca,
mas uma n/eiaiico/hi aguda clássica, cuja gravidade alertou seriamente o meu
analista: «Pela primeira vez, t[ue eu soubesse, disse-me ele mais tarde, vocé
apresentat a todos os sintomas de uma melancolia clássica aguda e além disso,
grave e inquictante.»
Arrastei-me corno pude. como sempre tentando lutar com todas as minhas
forças, «empurrando o tempo» interminfu el, com o .ipoio de liélène, do rncu
analista, etc,, contra a minha angústia c o meu desejo de ser posto ao abrigo
numa clínica, mas desta \ cz sentia bem que não era com o no passadi.).
Contudo, o meu estado não paraxa de se agrax ar. P no dia 1 de ju n h o de
1980 entrei de nox t) para uma clínica, desta x'cz a clínica de Parc-Montsouris
(rue Dax itj ), e nãt.) com o antes para o \ esinet. Os directores do Nesinet, M. e
Mme. Leullier. ambos psitpiiatras e xelhos amigos do meu analista, tinham-se
reformado, e o meu analista não conhecia o seu sucessor. Mas não era essa a
sua razão essencial: queria poupar a Héléne as intermináveis x iagens de metro
(uma boa hora e meia, pelo m enos trés horas de ida c volta) entre a Ecoie c
o Vésinct.
É preciso com preender em c|ue estado sc enctjntraria Pléiène. Durante
anos, tix'cra tjue suportar o peso e a angústa das minhas depressões e dos meus
estados hipomaníacos, não só das minhas depressões mas, o que era ainda infi-
nitamenie mais duro, xis intermináveis meses (ou semanas) t[ue eu vivia, numa
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não era capaz nem de acom panhar nem de articular, nem a fo r tio r i a minha
escrita, e apresentava formas de discurso delirantes, Além disso, não para\ a de
viver à noite pesadelos atrozes, cpie se prolongar am denutradamente no estado
de \igilia, e «vivia» os meus sonhos no estado de \igilia, quer dizer, agia
segundo os temas e a lógica dos meus sonhos, tom ando a ilusão elo^ meus
stmhos pela realidade, e achava-me incapaz de distinguir então em estado de
rigília as minhas alucinações oníricas da simples realidade. lira nes[a^ eondi-
ções que desenvolvia sem descanso perante quem me r isitar a temas de perse
guição suicidaria. Pensar-a intensamente tiue havia hom ens tiue queriam a
minha morte e se prepararam para me matar: um barbudo em especial, que
der ia ter r isto algtires no serviço: melhor, har ia um tribunal reunido na sahi
ao lado para me condenar à morte; melhor, hom ens armados de espingardas
com mira telescópica que iam abater-me apttntando para mim das janelas das
casas fronteiras; por fim as Brigadas Mmmelhas tinham-me condenado à morte
e iam irromper no meu quarto de dia ou de noite. .\ão conservei na memória
todos estes porm enores alucinantes, ejue fictiram encobertos, excepto num ou
noutro clarão, por uma pesada amncvsia, mas conheço-os pelos numerosos
amigos t]ue me vieram visitar, pelos médicos cjue me trataram e pela c o n c o r
dância exacta e coincidente das suas observações e testemunhos que mais
tarde recolhi.
lo d o este sistema «patológico» era acom panhado por um delírio suicidá-
rio. C ondenado à m orte e ameaçado de execução, só tinha um recurso: anteci
par a mttrte infligida matando-me prerentivamente. Imaginei todas as espécies
de soluções mortais, e além disso queria não só destruir-me fisicamente, mas
destruir também todo o rasto da minha passagem pela terra: em particular des
truir até ao último os meus livros e todas as minhas notas c igualmente incen
diar a École, e ainda, «se possírel», suprimir, já agora, a própria Hélènc. Pelo
menos confiei-o a um amigo que mo referiu nestes mesmos termos. (Acerca
deste último ponto, só recolhi esse testemunho isolado, i
Sei que os médicos ficaram extremamente incjuictos a meu respeito.
Recear am, não que eu me matasse — disso estar a a salr-o. ao que parece, dadas
as condições e protecções de vigilância da clínica — embora em tais casos
nunca se saiba — , mas recearam acima de tudt) que estas graves perturbações
2 6 .â
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um outro tema, latente nela havia meses, mas qtie desta feita assumiu uma
torma m edonha. Declarou-me cjtie não tinha outra solução, dado o inonsiro
que eu era e o sofrimento inumano que lhe impunha, a não ser matar-se.
Ostensivamente, juntava e exibia as drogas nee'essárias para o seu 'uicídio, mas
falava também de outros meios, incontroláeeis: o nosso amigo Nikos Poulant-
zas não se suicidara recentemente atirando-se. numa crise aguda de persegui
rão, do alto do vigésimo segundo andar da torre de Montparnasse - Outro ati-
rando-.se para debaixo de um camião pesado, e um terceiro para delxiixo de
um comboio? Citava-me estes meios, com o se me desse a escolher entre eles.
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a\'iso bem \ isível onde escrevera à mão: «ausentes de m om ento; não insista».
Alguns amigos, que tinham tentado telefonar-nos e leram este texto na parede,
disseram-me, passado muito tempo, que nunca se perdoariam por não terem
então procurado «forçar a minha porta». Mas se o tivessem tentado, tiue teriam
podido fazer, a m enos que se decidissem a arrom bar a porta uma vez que eu
não abria?
ü tempo deve ter passado nesta horrível clausura e solidão imóvel,
naquilo a tiue alguns amigos mais tarde chamaram um «beco», um «inferno a
dois» ou ainda, contando bem, «um inferno a três», incluindo além das nossas
pessoas a do meu analista que responsabilizaram explicitamente por se ter abs-
tido de intervir.
No entanto o meu analista interr iera. De\'o-o ter visto pela última \ez no
dia IS de Novembro, e ele disse-me que atjuela situação não podia continuar,
que eu tinha que aceitar ser hospitalizado. Informara-se acerca do novo tlirec-
tor do Xésinct, que não conhecia pessoalmente. As informações obtidas eram
excelentes. Deixando de lado todos os inconvenientes que Le \"ésinet apresen
tara para Hélène. concluira que eu seria lá realniente bem recebido (lembro
aqui que conhecia muito bem Le Nésinet. tinha lá as minhas com odidades e
todos os meus tratamentos pelo imao tinham sido notárel e rapidamente bem
sucedidos) e bem tratado (não ficara com uma boa recordação da minha esta
dia em Montsouris, julgando que as condições desse lugar não me eram far o-
ráveis). Lie telefonara para o \'ésinet, e eu poderia lá ser recebido dentro de
dois ou três dias. Penso que disse que não, mas seja com o for não me lembro
do que respondi ao certo.
Os dois ou três dias passaram, nada aconteceu. Soube mais tarde que na
quinta-feira dia 13 e na sexta-feira dia 14 de Novembro, Hélène esteve com o
meu analista e que lhe implorou um prazo de três dias antes de qualquer hos
pitalização. O meu analista deve ter sem dúvida cedido à sua súplica, e ficou
assente que, salvo novidade, eu entraria no Vésinet na segunda-feira dia 17 de
Novembro. Encontraria muito mais tarde no meu extrreio da École uma carta-
-expresso de Diatkine, com data e carimbos da tarde de sexta-feira l4 de
Novembro pedindo a Hélène uma resposta telefônica de «extrema urgência».
A carta chegou à escola a 1“ , não sei po r que razão (atraso do correio? ou seria
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O F i I r R o 7 i; r / 7 o F M p o
o porteiro que não pôde entregar-ma uma \ez que eu não atendia o telefone
nem respondia à campainha da porta?): seja como for. depois do drama, Faço
lembrar que o meu analista não podia telefonar para mim nem para Hélène:
u á s n ã o a te n d ía m o s.
26"
XXI
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o / r / i R ) M r I I o i h M P (I
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/. o r I s ,1 L 7 // 7 ,S ,S /:
para fazerem o silêncio à sua volta e para protegerem um dos seus dos rigores
da «regra», ou talvez m esm o da lei. Hm suma, eu fora protegido pelo AlE do
ensino de que era membro. Q uando se sabe que os comentários se prolonga
ram p o r muito tempo, porcjue foi preciso tempo para cjue chegassem primeiro
os resultados da autópsia, depois a decisão de im procedència — imagina-se
em cjue atmosfera de «caça ao homem», ainda mais temível por ter sido difusa
com o o rum or público que acompanhava os golpes de uma certa imprensa,
ticcram de viver os meus amigos desamparados. Digo os meus amigos, porque
não tinha família. O meu pai m orrera em 19"'5 e a minha mãe, muito envelhe
cida embora muito lúcida, estava totalmente indiferente. Bousquet, muito
digno, teve de interc ir pessoalmente para rectificar na imprensa informações
totalmente inexactas e difamatórias. Teve essa coragem, e assumiu publica
mente os seus riscos. Ciarantiu que eu sempre desem penhara o meu serviço e
o meu ensino de maneira perfeitamente honesta e irrepreensível, que era para
ele na École um colaborador perfeito, conhecendo m elhor do que ninguém os
meus próprios alunos, e que um doente tem direito a ser defendido pelo seu
director. Hste arquólogo cheio de brandura, que não vivia e não vive senão
para as suas esca\ações de Delfos, mostrou-se um hom em de coragem, de
acção e de generosidade. Bem entendido, fui também «defendido» não só por
todos os \ igilantes da École. mas também por todos os filósofos que, segundo
um jornalista, «formaram um bloco em torno de Althusser».
De tudo isto, naturalmente, nada soube na altura, e ainda durante um
km gü período posterior. O m édico que me tratou em Sainte-Anne, com uma
atenção e uma generosidade que muito me comoveram, velava para que
nenhum a notícia pudesse chegar até mim: receava justificadamente que isso
me traumatizasse e agravasse o meu estado. Foi po r essa razão que «blo
queou» a imensa correspondência que então me foi endereçada, o mais das
vezes po r desconhecidos que me cobriam de injúrias (comunista criminoso!)
o mais das \ezes carregadas de intensas ressonâncias, até ameaças sexuais.
Foi também pela mesma razão que tomou a decisão de proibir todas as visitas,
pois não sabia quem poderia aparecer nem para me contar o quê. Acima de
tudo (e esse m edo inspiraria todos os meus médicos não só em Sainte-Anne,
mas muito tem po depois em Soisy, para onde fui transferido em Junho de
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(> / r / r R o M t / /■ o M p
.irtigo escandaloso. Este receio nada tinha de imaginário. Soube m a i' t a 1 11L' C.j l í v'
lado na minha cama e diante dos meus três companheiros dc lsi n ' a r a i a .
O semanário tencionava publicar este tktcumento com o título: m ‘ ! 1 f I ■-.! ) ! i )
2""l
/ o ! í S I /. r H l S V /: A>
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não só durante esse drama, mas igualmente perante a sua própria angústia, e
talvez perante o «rumor» público perverso e insistente que foi alimentado à
minha volta p o r certos hom ens dos meios de comunicação, inconscientes ou
desdenhosos do sofrimento e do drama dtts hom ens e que extraíam uma satis
fação pessoal (não quero saber qual) do facto de alimentarem estes rumores c
as suas perversas ambiguidades.
É preciso também levar em conta as circunstâncias para com preender
certos aspectos do comportamentet dos meus médicos.
Finalmente, depois dos choques e das melhoras que me causaram, o meu
médico aceitou, mas com uma infinita prudência, e passo a passo, que eu
começasse a ter visitas. Primeiro duas, depois três, depois cinco, mas não mais
do que isso, e de amigos dos cjuais ele pudera certificar-se serem absoluta
mente seguros. Voltei assim a^ver amigos queridos, e duas amigas queridas,
uma das quais teve uma dificuldade dos demetnios em ser admitida e st) o co n
seguiu à força de intervenções e de energia. Estas visitas nem sempre eram
para mim absolutamente repousantes: o passado despertava em mim na pre
sença deles e delas, o m undo exterior e o m edo terrível que me inspirar a
lulguei-me perdido para sempre e o m undo exterior, que não pensava voltar
ver, inspirava-me uma grande angústia). De certa maneira o meu médico
nnha razão: as visitas po d e m reactivar as angústias ou agravá-las. Mas eu não
^onseguia suportar ficar só, velha obsessão que mais tarde causaria em mim
urandes devastações, e suplicara que os meus amigos fossem autorizados a
,;parecer: o meu m édico soube aceitar um compromisso, segundo o qual r ir i
„tc ao fim da m inha estadia em Sainte-Anne.
Mas uma vez pensei em pregar uma rasteira tramada ao meu médico. Dei
1 meu amigo Dominique, que podia sair, uma lista de núm eros de telefone,
cncarregando-o de prevenir assim outros amigos e de lhes marcar os dias c as
.oras em ejue eu desejava vê-los. Ele desem penhou a tarefa. Não sei com o o
- >ube o meu médico, mas vi-o aparecer furioso (pela única vez) no meu
aarto, disse-me que não tinha o direito de convidar assim amigos sem a sua
.uorização, pediu-me o núm ero de telefone deles e prer eniu-os de que não
:cr iam vir. Foi o único m om ento de frieza, de resto rapidamente ultrapassado,
,ic conheci nas minhas relações com ele.
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i o r i s I / / // r ,s ,v
2-’6
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.ürcito m edico a seu favor, mas era preciso ter a simples coragem de o in\a)can
^le me defender dizendo que eu não era nem perigoso nem \'iolemo lo que era
mais do que evidente), c foi assim que pude, sem o saber, escapar à sorte mais
extrema a cjue sem dúvida não teria sobrevi\ádo, ou a que pelo menos não
|socieria ter escapado, por certo para toda a \'ida. Mas é \ erdade que os meus
.iinigos teriam certamente alertado a opinião c que as coisas não se teriam pas-
'.ido com o queria «o mais alto nível». Entretanto tieeram lugar as eleições de
1Õ81 e o ministro da Justiça, meu «colega» da Mormale. foi substituído p(.)r
Hobert Badinter. Os meus amigos respiraram fundo e eu pude ser ene iado para
soisy-sur-Seine.
Todavia os meus médicos ainda não tinham visto o fim dos seus traba-
Õios; eu não queria sair de Sainte-Anne! Resistia ferozmente aos argumentos do
ncu analista que teve de voltar ã carga não sei quantas vezes. ,Sentia-me bas-
inte bem em Sainte-Anne onde, com o tantas vezes no meu passado, fizera a
minha «toca», tinha lá um amigo tiue não queria perder, e alimentava-me da
ida do imenso edifício classificado onde os rostos mudavam sem parar, onde
rranjara um amigo cheio de tacto e de compreensão entre os enfermeiros, um
.ornem das Antilhas, corpulento, sempre franco e de bom humor. Tinha um
_r.mde m edo da mudança, e naturalmente transbordava de argumentos; é \er-
.i.íde ciue conhecia Soisy, mas ficava a quarenta quilômetros de Paris, eomo
' oderia lá ter visitas? O meu analista em vão me dizia — e eu sabia-o por expe-
icncia própria — que seria lá mais bem tratado e estaria mais conforta\el-
'lente instalado, cjue longe de Paris e dos seus riscos poderia. pelo menos no
.rande parcjtie, beneficiar de uma maior liberdade de m o\im entos. que seria
xira ele mais fácil seguir-me, que de resto iria )á ver-me regularmente, eu não
,'.e dava ouvidos. Mantinha-me firmemente decidido: não queria sair de
'.unte-Anne. Mas, no final, com o se tratava dc escolher ou eu pensava que sim,
,ntre Carcassonne e Soisy, acabei por ceder, mas com a morte na alma.
Em Junho de 1981, saí portanto de Sainte-.\nne numa ambulância, Como
.'.edida de precaução, o meu médico anunciara a minha saída para as cinco
iras da tarde, mas a ambulância levou-me às duas horas. Os e\entuais jorna-
'tas e fotógrafos tinham sido fintados.
XX I I
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/. o ( l s A r T H I V V /;
em relação ao horário estabelecido. Foi nesta altura que com preendí que o
médico não tinha um poder absoluto sobre os seus enfermeiros, que tinha que
negociar com eles, ou m esmo fechar os olhos (nunca consegui que mc dessem
a minha droga da noite a horas, excepto uma vez quando um jovem estudante
de medicina muito amável ficou no turno da noite, mas não foi p o r muito
tempo). Cheguei m esmo a pensar, o que era um exagero, que neste serviço,
apesar de muito liberal e bem organizado, e sem dúvida a fo r tio r i noutros ser-
\iços, m enos «avançados», com enfermeiros m enos informados, o médico
estava com frequência subordinado «à ditadura do corpo dos enfermeiros».
Ainda que esta impressão deva ser matizada, acho que contém algo de essen
cial para a compreensão das relações e da atmosfera que reinam em qualquer
regime de encerram ento psiciuiátrico, K com que efeitos perniciosos!
(guando o meu médico aparecia de m anhã no meu quarto, havia já muito
tempo que eu estava só ã espera dele e agarrar a-me à sua presença atenta. Fazia
um esforço enorm e nessa altura para sair dos meus pesadelos nocturnos, que
persistiam durante a \ igília. contava-lhe em sonhos os meus sonhos pavorosos,
ele ouvia-me. dizia algumas palavras, mas era a sua «escuta» o essencial do que
eu esperav a dele. Por vezes, ele arriscava uma espécie de interpretação sempre
cheia de prudência. Na aparência eu encontrava-me inteiramente submetido ãs
suas palavras, Mas acontecia-me muitas vezes ir ter a seguir com uma enfer
meira para lhe pôr a seguinte pergunta: «Mas o doutor sabe o tiue está a fazer?
Sabe o ejue está a dizer? » De nov o a dúv ida me inv adia, e também a angústia:
de facto a angústia de estar só, uma vez mais, com o sempre, abandonado,
O meu analista vinha ver-me uma vez p o r semana, aos domingos de
manhã, ao pavilhão quase sem vivalma (só ficava no seu posto uma vigilante
de urgência). Andava sempre às voltas com ele, mas sem nunca mc sentir cul
pado, em torno da razão profunda do meu assassínio. Lembro-me (já a formti-
lara diante dele em Sainte-Anne) de lhe ter apresentado uma hipótese: o assas
sínio de Flélène teria sido «um suicídio por pessoa interposta», Ele ouvia-me
sem me aprovar nem desaprovar. Soube mais tarde pelo meu m édico que
o meu analista se encontrava periodicam ente com ele e o apoiava. Já uma
vez. quando eu fora admitido nos serviços de reanimação de Sainte-Anne, o
meu analista, que conseguira, à custa de negociações incríveis, visitar-me
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cni f u tão exigente, tão tirânieo (sim, no sentido próprio) em matéria de visi
tas? Sem dúvida por causa da «omnipotêneia da depressão», e também porque
podia exercer essa «omnipotêneia» para pôr provisoriamente fim à angústia da
solidão, do abandono, que me sufocava tão intensamente, Q uando alguém fal
tara, quando acontecia t[ue um amigo ou uma amiga me desse a impressão de
um abandono, recaía num a forma de depressão agravada.
Foi o que me aconteceu no com eço de 1983. quando consegui passar
várias semanas no meu apartamento. Não sozinho, claro: os meus amigos, por
ordem taxativa do meu médico que insistia nessa cautela (uma rez tiue eu lhe
falara em me atirar do sexto andar), assistiram-me dia e noite. Mas a impressão
de ser abandonado voltou a precipitar-me num a depressão extrema tiue obri
gou o meu médico a hospitalizar-me de novo. Começou então a dar-me \áva-
lan. tjue causaria lentamente meias-melhoras, conduzindo à minha saída muito
precária do hospital em ju lh o de 1983. para umas férias de campo no Leste do
país.
Mas entretanto tinham-se passado tantas coisas! A impressão do meu
medico (confiou-mo mais tarde) era tiue eu tinha estado tanto tempo e tão gra-
rem ente doente, tão desamparado, que nunca mais me livraria daciuilo, que
nunca mais podería sair da segurança e da protecção do hospital. Era esse o
seu maior medo. Mas soube «aguentar», tal era a única linha fundamental que
rapidamente fixara para si mesmo, «aguentar» acom panhando todas as infle
xões do meu mal. mas m antendo sempre o mesmo rumo. Contudo as coisas
não foram nada sim]tlcs para ele, fazendo eu pelo contrário todos os possíveis
para as complicar.
Tinha um m edo atroz do m undo exterior. Não tanto das interpretações ou
intervenções maldosas que eram a obsessão dos meus médicos e enfermeiros
(quando em Soisy a cjuestão não se punha) e que o m eu médico continuou a
recear por mim depois de pelo meu lado eu ter deixado de lhes ser sensível,
mas da própria realidade do m undo exterior, cjiie eu considerava definitiva
mente fora do meu alcance. Durante muito tem po esta angústia assumiu uma
forma precisa. Todas as minhas coisas tinham então sido mudadas (os meus
amigos passaram nisso dias inteiros) da École para um apartamento do xx
bairro que comprara com Hélène para quando me reformasse. Os meus amigos
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Mas isto não era ainda o pior. E aqui chego a qualquer coisa que é ao
mesmo tempo terrivelmente determinada mas também extremamente singular,
('ertamente, vi\ i a minha hospitalização como sempre vivera as minhas hospi
talizações anteriores: com o um refúgio quase absoluto contra as angústias do
m undo exterior. Estaca ali com o num a fortaleza, fechado na sua solidão por
muros insondáw is: os da minha angústia, e com o sair deles? O meu médlctt
sentia-o muito bem e, com preendendo, entrac a assim no meu jogo: no jogo da
minha angústia, e ficava ele próprio, por contágio, angustiado, tal como os
enfermeiros a quem eu não paraca de com unicar a minha angústia. Lembro
-me até de um dia em que fiz ao meu m édico a terrível pergunta pensando
muito precisamente num a amiga cuja base do pescoço contemplara um dia
com pavor interrogando-me com angústia: e se eu recomeçasse (a estrangular
uma mullter)? O meu médico sossegara-me: claro tjue não!, sem me dar mais
nenhum a razão. Mas soube mais tarde tjue as enfermeiras tinham medo, depois
do cair da noite, de entrar sozinhas ik ) meu quarto, m edo de t]ue eu me ati
rasse a elas e as estrangulasse... com o se tivessem «captado» o meu terrível
desejo e m o lc id o em angústia, ,Se falo deste contágio, é porque o encerra
mento o prococa dc m odo inevitável. angústia do paciente, do médico, dos
enfermeiros e dos amigcjs dc \ isita comunica-se e comunicou-se tão bem,
redobrando de efeitos, que o meu médico se \ iu \ árias vezes em situação crí
tica, senão relatie amente aos seus enfermeiros (nunca me falou disso) pelo
menos diante dos meus amigos, que deram por isso. Com o é cjue o médico
pode então escapar a este jogo de angústias múltiplas, em que ele é ao mesmo
tempo causa e consequência? Condição extraordinariamente difícil, que só se
pode resolver por meio de compromissos. O meu médico soube descobri-los.
mas não sem efeitos secundários.
Creio pcjder situar exactamente o lugar do principal destes efeitos secun
dários: diz respeito ã «natureza» ao mesmo tem po objectiva e fantasmática da
«fortaleza» que eu vi\ ia com o protecção e refúgio contra a angústia do c o n
tacto impossível com o m undo exterior. Ora esse m undo exterior não existia
apenas no meu fantasma: era-me de facto trazido todos os dias pelos meus
amigos que chegavam do m undo exterior e a ele voltavam todos os dias. Vou
dar um único exemplo: Eoucault veio pessoalmente visitar-me duas vezes, e
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lembro-me que era duas ocasiões falámos de tudo o que se pa-^aN a no mundo
intelectual, com o eu fazia praticamente com tacini os meus amigos, das purso-
nagens que o povoam, dos seus projectos, obras c contiuos, Pa sjtuaç.lo polí
tica. Eu era então perfeitameníe «normal», cstae a pcrfeitamentc ,io corrente de
tudo, as minhas idéias voltavam, dcv'oivia por \ezes com malicn, .i boLi ,i 1ou -
cault, que voltou para casa convencido de que eu esta', a h.rt.mtc bem \oaitra
ocasiãe), Cjuando ele me foi ver, eu estava na companhi.t do padre Breton
Instaurou-se então entre eles, sob a minha própria arbitragem e egide, uma
extraordinária troca de idéias e de experiências que nunca na minri.i \ ida
cseiuecerei. Foucault 1'ahna das suas incestigações sobre os oaiores do. sristia
nismo do século I\ , c fazia a seguinte obsercação da maior importância se ,i
Igreja colocara sempre muito alto o amor, destonfiara sempre \i\a m e n ie da
amizade, tiuc os filósofos clássicos e sobretucU) Epicuro colocaram pelo c o n
trário no centro da sua ética concreta, Naturalmentc, clc. homossexual, não
podia [deixar de| aproximar a repulsa da Igreja pela amizade da repulsa, quer
elizer (outra ambivalência ainda), da predilecção de todo o aparelho da igreja
e da r ida monástica pela homossexualidade. Foi então tjue, de maneira assom-
brí)sa. o padre Breton interreio, não para lhe dar referências teológicas, mas
para lhe com unicar a sua experiência pessoal. 'Fendo nascido sem conhecer os
pais, recolhido pelo padre C[ue, notando a sua vir acidade de espírito, o inscre
vera no seminário de Agen, tinha feito ;ií uma parte dos seus estudos secundá
rios. Filtrou aos quinze anos no noviciado, ler ando por lá a r itht clieia da aus
íeridade de um monge — impessoalidade sem mim (não sendo Cristo uma
pessoa, mas um impessoal sulrsumido no \crbo). r ida composta de obserr án-
cias estritas. Por obediência, esquecia o seu eu [no| superior: regra pensara
por nós. e é porque pensaram por nós tiue todo o pensam ento pessoal se torna
um pecado de orgullio.» Só mais tarde, dada a erolucão dos costumes, se p ro
curou respeitar um bocadinlio mais, a faror daquilo a que se chamar a o perso
nalismo cristão, a originalidade de cada um. mas ainda assim uma medida
limitadíssima! .Neste sentido. Breton, retomando uma expressão de foucault,
dizia que «o hom em era uma descoberta muito recente nos conr entos. Breton
não ter e um único amigo na sua \ ida. contm uattdo a arntzade a ser suspeita
por degenerar em amizade particular, forma la n a r de homossexualidade:
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F I I r R o M l I I o / /:' M P O
Mas antes, gostaria de insistir nos danos que pro\oca. por si so, a institui
ção psiquiátrica. E um facto bem conhecido que numerosos (.iocnte^. atingidos
por uma crise aguda, portanto transitória, c que são lançado^ compulsiva e
como que mecanicam ente no internamenut psiquiátrico, podem tornar-se. por
acção das drogas e do cnclausuramento, «crtánicos . \ erdadeiro'' doentes m en
tais, incapazes de voltarem a sair do recinto do hospital Fste efeito e bem
conhecido por todos os C[ue tentam eliminar o mecanismo da hospitaliz.icão e
lhe preferem intervenções ambulatórias, ou o hospital de dra. ou o dispensá
rio, etc. Tal é o sentido profundo da reforma realizada lou antes, adiogaclai em
Itália pt)r Basaglia. O que Basaglia queria era presen ar tanto os casos agutlos
como os «tornados crônicos» dos malefícios mecânicos do internamento
fechando os hospitais psiquiátricos e confiando os doentes ou a clínicas, ou a
famílias vaduntárias. Naturalmente, esta reforma só podia ser concehicla num
período de grandes movimentos populares, com o auxílio dos sindicatos e dos
partidos operários. Em França é dificilmente concebível, dadas as constantes
de uma mentalidade repressiva. Na própria Itália, com o se sabe, a reforma
Basaglia foi literalmente um fracasso. Que fazer pois para arrancar os doentes
,io inferno das determinações conjuntas de todos os AlH em causa?
Mas o que já é menos sabido, menos conhecido, são os efeitos do interna
mento psiquiátrico sobre os próprios médicos, sobre a sua representação dos seus
doentes e das angtástias dos seus doentes. É impressionante que. no meu caso.
o médico mais bem intencionado do m undo e também o mais bem armado para
.1 «escuta» do seu paciente tenha projcctado sobre ele (eu) a sua própria angústia
da «fortaleza» total, e em prte se tenha enganado, por força dessa projecção e con
fusão. sobre o c|ue se passava efectivamente em mim. Não era tanto o mundo exte
rior cjue fixava e provocava a minha angústia mas o intenso terror de lã estar íh'k
abandonado, de ser impotente para resolv er fosse que dificuldade fosse, a minha
impotência para ser, para muito simplesmente existir. Ao passo que a atenção do
meu médico se fixavai assim numa angústia determinada que ele me atribuía mais
d(.) que a observava em mim, deslocando-a assim do seu ohjecto». ou antes, da
.lusència de qualcjuer ohjecto. da perda de qualquer «ohjecto » sobre a figuração
c a representação da sua própria angústia projectada em mim. desenvolvia-se em
mim uma «dialéctica» completamente diferente: a do «luto».
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prodigiosa regressão que nela \ ivia, a velha compulsão inaugural, tantas \ezes
repetida (cf. o episódio da carabina), sob tantas form as, de tjuc eu não era mais
do que uma existência de artifícios e de imposturas, cjtier dizer, afinal nada de
autêntico, portanto nada de verdadeiro nem de real. li de que a morte e'ta\ a
inscrita em mim desde os primórdios: a morte desse l.ouis. morto atr.is rie
mim, c[Lie o olhar da minha mãe fixava através de mim, condettam.!o-me a essa
morte c|ue ele conhecera no céu alto de Verdun e que ela não parae a de repetir
compulsivamente na sua alma e na repulsa desse desejo que eu não parara de
realizar.
Foi então que compreendi (e acabo de o com preender a partir das pala
vras tão elarivident.es da minha amiga) que o luto que eu vivia de Hélène. não
era desde a m orte (a destruição de Hélène) que o vivia e trabalhava sobre ele
mas desde sempre. De facto. sempre estivera de luto jsor mim próprio, pela
minha própria morte po r mãe e mulheres interpostas. Como prova tangív el tie
não existir, quisera desesjacradamcnte destruir todas as provas da minha exis
tência. não só de Hélène, a prova mais alta, mas também as provas secundárias,
.1 minha obra, o meu analista e por fim eu próprio, lodavia não notara que
abria neste massacre geral uma excepção: a dessa amiga que me abriria os
olhos dizendo-me muito recentemente que aquilo de t|ue não gostava cm mitn
era da minha vontade de me destruir. Não se trata por certo de um acaso: a tal
jsonto tentara amá-la de maneira compictamente diferente da das mulheres do
meu passado, ela. na minha vida. a única excepção.
Sim, nunca deixara desde sempre de estar de luto por mim próprio e foi
'c m dúvida esse luto que viv i nas minhas estranhas depressões regressiv as ciue
:iã(.) eram verdadeiras crises de melancolia, mas uma maneira contraditória ele
morrer para o m undo no exercício da omnipoténcia. a mesma omnipoténcia
que me apanhava nas minhas fases de hipomania. Impotência total para ser
gual a omnipoténcia sobre tudo. Sempre a ternvel amhh alencia, cujo equiva-
ente se encontra aliás na mística cristã medieval: tntum = u ib il
Poderei passar em claro a continuação' ,\ão interessa a ninguém. ,\Ias
.om p re e n d o agora <.) sentido das transformações que sc produziram em mim;
,mi todas no sentido da (re)iomada em mãos da minha própria existência. Isso
.om eçou antes do mais pela iniciativa que assumi de chamar o meu «advogado»
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i o r I s T H l S V K
29Í
XXI I I
m velho amigo médico que nos conhecia ha\ ia muito, a Hclcne c a mim.
U Mostro-lhe este texto. E muito naturalmente favo-lhe a pergunta;
«Que SC terá passado então nesse domingo J6 de Novembro entre mim e
Hélène, para acabar naquele assassínio medonho?»
Eis a sua resposta, exactamente tal com o ma deu;
«Eu diria tjue se verificou uma sobreposição de factos puram ente aciden
tais quanto a uns, não fortuitos quanto aos outros, cuja conjunção era total
mente imprevisível e teria podido ser muito facilmente evitada sem grande
esforço justamente se...
«A meu ver três factos dom inam a situação:
«1. Por um lado, como comprovaram os três médicos especialistas, tu
estavas em “estado de dem ência" e portanto de irresponsabilidade: confusão
mental, onirismo, ficaste totalmente inconsciente antes e durante o acto, na
base de uma crise de melancolia aguda, logo. não responsáv el pelos teus actos.
Daí a inimputahilidade, regulamentar em tais casos.
«2 . 'SVàü, p o r outro lado. houve uma coisa que impressionou no local os
investigadores da polícia: não havia o m enor sinal de desordem nem ntts vos
sos dois quartos, nem na tua cama. nem nas roupas de Hélène.
' Fste capimlo, niimeniclo a seguir aos oucr(,)s. tora igualnunie inritulado pelo auto r iDifiroce-
LÍencia. (.V, d o fnw cès)
293
/. o r / V .1 L T H r ,S ,S A’
29 - t
o /• r i r R o M i / / o 1 t i; /-> o
29 ó
L O ( / V ,4 /. 7 H I S ,S 7: 77
«O que também se pode dizer é que tu, que lhe deste sem dúvida a morte
tah ez querendo apenas massajá-la com cuidado, uma vez que não se observ i .
cjLialciuer sinal externo de estrangulamento, terás querido realizar o teu descí
de m orte e, ao mesnitt tempo que lhe prestavas o imenso serv iço de a mat„
em lugar dela (porque ela era realmentc incapaz de se matar), terás ao mesni
tem po ciuerido realizar inconscientemente o teu próprio desejo de autodc'
truição através da morte da pessoa que mais acreditav a em ti, para ficares ber.
certo de não seres senão essa personagem de artifícios e de imposturas t|u.
sempre te obsidiou. De facto a m elhor prova que podem os dar-nos de n.í
existir é destruirmo-nos a nós próprios destruindo aquela que nos ama .
acima de tudo acredita na nossa e x istên c ia .
«Sei que há-de haver sempre pessoas, e até amigos, c]ue dirão: a Hélén.
era a doença dele. ele matou a sua doença. Hle matou-a porque ela lhe tornav.
a Vida impossível. Ele matou-a porque a odiav a, etc. Ou, mais elaboradamente
ele matou-a porque vivia no fantasma da sua própria autodestruição e porqu.
essa autodestruição passava "logicam ente" pela destruição da sua obra, da -i:.
celebridade, do seu analista, e por fim de Hélène que resumia toda a sua v id..
«Ora o c|ue é extremamente incôm odo neste tipo de raciocínio (mui;
difundido porque muito tranquilizador — com ele temos de facto unt.
"causa" indubitável) é o p o rq u e que introduz nisto uma necessidade sc:t
apelo, sem levar minimamente em conta a acumulação dos elementos aleat
rios objectivos.
«Ora todos nós temos, todos nós, fantasmas inconscientes agressivos, u.
mesmo de homicídio, de assassínio. Se todos os que alimentam dentro dc '
tais fantasmas passassem ao acto, tornar-nos-íamos todos, necessariamente
percebes?, todos assassinos. Ora a imensa maioria das pessoas pode perfeit.
mente viver com os seus fantasmas incluindo os de homicídio, sem nunca p.o
sar ao acto para os realizar.
«Aqueles que dizem: ele matou-a p o rq u e já não podia suportá-la, porqu-.
mesmo inconscientemente, desejava desembaraçar-se dela. não compreendei'
nada do que se ptissou. ou não se dão conta do que dizem. Se aplicassem .i '
próprios esta lógica, eles que alimentam a mesma lógica também neles pr
prios. fantasmas de agressão e de assassínio (e cjuem não os alimentai'), qt,.
296
/ V / r R o M I I I o I / 1/ /> o
29'"
/. o r / .V _1 /, •/ n r V ,s /;' A'
298
o J' l I l R O M r / / o 7 7; \l R O
Só uma palavra mais: que aqueles que pensam saber e dizer mais a este
respeito não receiem dizè-lo. Já não podem senão ajudar-me a viver.
L.A.
299
os E4CTOS
19“ 6
om o fui eu que organizei tudo. rnais \ale cjue me apresente sem mais
C delongas.
Chamo-me Pierrc Bergcr. Não é \erdade. fsse é o nome do meu avò materno,
que morreu de cansaço em !93<S. depois de ter dado cabo da vida nas m o n ta
nhas da Argélia, em pleno mato, sozinho com a mulher e as duas filhas, como
guarda florestal contratado pela administração das Aguas e Florestas da época.
Nasci com tiuatro anos de idade na casa florestal do Bois de Boulogne,
nas alturas de Argel. Havia, além dos caealos e dos cães, um grande tanque
com peixes, pinheiros, gigantescos eucaliptos cujas grandes folhas de casca eu
apanhava quando vinha o Inxerno, limtteiros. amendoeiras, laranjeiras, trange-
rineiras, e sobretudo nespereiras. que eram o meu regalo. A minha tia. então
solteira, subia às árvores como uma cabra, e dava-me os melhores frutos. Eu
estava um bocadinho apaixonado por ela. Cm dia. houve um grande medo
Porque tínhamos também abelhas, criadas po r um velho que se aproximava
delas sem véu. e lhes falava. Ora. por uma razão desconhecida, talvez por ele
estar a resmungar, as abelhas lançaram-se sobre o meu av ò. que correu a m er
gulhar no tanque, para grande terror dos peixes. .Mas a vida era sossegada
naquelas alturas. Via-se o mar largo muito ao longe, e eu olhava para os barcos
que chegavam de França. Cm deles chamava-se Chenies-Roux. Durante muito
temjso admirou-me o facto de não se lhe verem as rodas '.
\ 'c r n o i a p. 0.
30,3
/ o r I s 1 / V H i s s /: K
O meu avô era filho de camptuieses pobres do Mor\ an. Oantava na missa
ao domingo, com um grupo de rapazes reputados pelas suas vozes, no coro do
fundo da igreja, de onde podia ver todo o povo de Deus, e a minha avó que
rezav a no meio da multidão, frágil rapariguinha educada na escola das freiras
Q uando chegou o tempo de a casarem, as freiras decidiram que o Pierre Ber-
ger era suficientemente moral e suficientemente pobre para se tornar seu
marido. O negvvcio foi fechado com as duas famílias, apesar dos grunhidos ds.
minha bisavó que ninguém conseguia afastar da guarda da vaca, e que falava
tão pouco com o esta última. Mas antes do casamento, houve uma espécie de
drama, Porque o meu avv) que não tinha vintém nem nesga de terra metera na
cabeça, nesse tempo de imperialismo francês à maneira de Jules Ferry, partir
para as colônias com o guarda, e tinha, sabe Deus porquê, a conquista — Rana-
valo. ou a imprensa católica — decidido que seria para Madagáscar. A minha
avó pôs os pontos nos is e estabeleceu as suas condiçêtes: Madagáscar nem por
sombras, quando muito a Argélia, caso contrário ela não se casava com o
304
o t- A C I O S
que chega\a das montanhas, e discutia coisas sérias. Ainda falava dele no Mor-
van, mais tarde, depois de se reformar: esse era um hom em que fazia a sua
obrigação.
O meu avô e a minha avó tinham os dois os mesmos olhos: azuis, e a
mesma teimosia. Quanto ao resto... O meu a\ (') era pequeno e maciço, passava
o tempo a bramar contra tudo e a tossir. Xinguem lhe liga\ a. minha a^'ó era
alta e esbelta (sempre me pareceu, de longe, uma rapariga i. calava-se. pensava,
compadecia-se (lembro-me das suas pala\ ras quando lhe li um dia V E spoir de
Malraux. onde se contam as atribulações dos republicanos espanhóis; «pobres
crianças!») e, quando era preciso, sabia ser deterntinada. Xo princípio do
século, ejuando eclodiu na Argélia a insurreição popular armada dita de ,\lar-
gueritte, os acontecimentos deram-se numas montanhas que não ficaram
longe da casa florestal. O meu avô não estava nessa noitc: andava cm serviço
por fora, com o sempre. A minha a\ é) estava sozinha em casa com as suas duas
filhas, de três e cinco anos. Era muito estimada pelos árabes locais. Mas não
tinha ilusões, sabia cjue uma insurreição é uma insurreição, e ejue o pior pode
então suceder. Ficou de vela, com uma espingarda e très cartuchos: não eram
para os árabes. A noite passou, e finalmente rompeu o dia. O meu avô chegou
pouco depois, praguejando contra os insurrectos com quem se encontrara:
desgraçados, vão arranjar maneira de os matarem.
Portanto nasci ali, nas alturas de Argel, na casa florestal de final de car
reira: um pouco de paz. Foi numa noite de Outubro de 1918. pelas cinco horas
da manhã, o meu avô saiu a cavalo a caminho da cidade e foi buscar uma
médica russa cujo nom e esqueci, mas que disse, segundo parece, «pelo tama
nho da cabeça», que eu tinha a sorte de vir um dia a ter coisas lá dentro, vá-se-
-lá saber, disparates pelo menos teria com certeza. O meu pai estava então na
frente de Verdun, na artilharia pesada, era tenente. Regressara à frente de c o m
bate depois de uma licença durante a qual visitara a minha mãe, então noiva
do irmão dele, Louis, que acabava de m orrer em \érd u n . no avião que o levava
com o observador. O meu pai pensara ser seu dever substituir o irmão junto da
minha mãe, que lhe deu t> sim que se impunha. Há que se com preender a
situação. Os casamentos faziam-se de qualquer m odo entre as famílias, a opi
nião dos filhos pouco contava. Tudo fora arranjado pela mãe do meu pai
305
/. o V l s -i /. 7 77 7' S ,S l. R
que. casada cia também com um hom em das Águas e Florestas, sem nada de
seu mas funcionário, distinguira na minha mãe a jovem modesta, pura e traba
lhadora que convinha ao seu primeiro filho, querido c predilecto, e já adm i
tido na École Normale Supérieure de Saint-Cloud. Louis era o preferido, por
uma razão simples, c cpie não ha\ ia meios para pagar os estudos a dois rapazes,
portanto fora necessário escolher, c o escolhido fora ele, por razões ligadas ã
ideia que a minha avó paterna fazia das Fscolas. Mas. em compensação, o meu
pai tivera que começar a trabalhar aos treze anos: de início paquete num
banco, trepara em seguida no emprego, pois era inteligente embetra sem baga
gem escolar. Ele costumava lembrar-me muitas vezes, como exemplo do rigor
seco da sua mãe. que não perdia de vista um vintém nem o futuro, o episódio
da Eachoda: assim que se tornara conhecida a ameaça de guerra, mandara o
meu pai catm toda a urgência comprar quilos de feijão seco. supremo recurso
contn! a escassez alimentar, e retom ando assim, tal\'cz sem o saber, a mais
antiga tradição dos povos miseráveis da América I.atina, da Espanha e da Sicí-
lia. Os feijões, contanto que sejam protegidos dos insectos, conservam-se inde
finidamente, mesmo em tempo de guerra. ,A mesma avó, não o esqueci.
ofereceu-me um dia uma ratiueie, enquanto víamos d;i sua varanda o desfile
das tropas, no l-r de julho, ao longo dos cais de .Krgel.
O meu pai levava-me com frequência ao estádio de futebol, onde se dis-
putac'am então partidas épicas, entre franceses, ou entre franceses e árabes.
E as coisas aqueciam a valer. Foi lá ejue ou\ i o primeiro tiro da minha vida.
H om e um m om ento de pânico, mas o jogo continuou, uma vez que o árbitro
não fora ferido () meu pai levar a-me também, mas com a minha mãe, às corri
das de cavalos onde entrava gratuitamente, conhecendo do banco onde traba
lhava um porteiro cjue o deixava passar clisfarçadamente. Apostava. Natural
mente quase nada. e perdia sempre, mas ficava satisfeito, nós também, e
\ iam-se lindas senhoras, que o meu pai contemplava com uma complacência
um pouco excessiva a avaliar pelos silêncios da minha mãe. que tinha os seus
motivos de t|ueixa. O meu pai levou-me só uma vez, mas sozinho, ao tiro de
espingarda, numa grande carreira militar, que ressoava dos tiros repetidos co n
tra alvos distantes. Era muito diferente do tiro de pressão de ar das feiras, a que
eu estava habituado, tendo descoberto a maneira de acertar no ovo que dança
.^06
o ,s r A c 1 o ,s
307
L O V I S .4 / r H l ,V S /; K
silêncio tudo o que trazia comigo. Ele calou-se. Confesso que é uma coisa cjue
ainda hoje me faz tremer.
Por comparação com este incidente, a questão do Bois, apesar de tal
com o a bofetada me ter apanhado de surpresa, não era grande coisa. Estáva
mos a gozar o sol e a relva, a minha mãe, a minha irmã. eu e uma amiga da
m inha mãe acom panhada dos seus dois filhos, um rapaz e uma rapariguinha.
Também então, po r dá cá aquela palha, dei po r mim a chamar de repente «Tor-
tecuisse» à rapariguinha, expressão que lera num livro com o ofensiva, e que
lhe infligi sem razão aparente. O caso foi encerrado por uma troca de descul
pas entre mães. Eu estava espantado po r ser possível ter-se idéias sem as ter.
Em contrapartida, o que me impressionou para toda a vida foi um inci
dente ocorrido mais tarde, em jMarselha, quando com a minha mãe, metendo
p o r uma rua leprosa mas larga perto cia place Garibaldi, vimos no chão uma
m ulher que outra m ulher arrastava pelos cabelos cobrindo-a de insultos vio
lentos. Havia também um hom em , ali, imóvel, saboreando a cena, e repetindo:
cuidado, ela tem um revólver. A minha mãe e eu fingimos nada ter visto nem
ouvido. Já era bastante ficar cada um de nós com aquela imagem para si e
arranjar-se com ela o m elhor que pudesse. Eu não me saí lá muito bem.
Depois da escola primária, fiz a sixièm e no liceu de Argel, de que co n
servo uma recordação apenas: a de um magnífico \bisin branco descapotável
c]ue esperava, com o motorista fardado e de boné, um dos meus condiscípulos
que não me falava. Lembro-me também de uma visita a casa de um proprietá
rio árabe que o meu pai conhecia, e que nos deu a comer, antes do chá, uns
doces de abóbora que nunca mais voltei a descobrir. O meu pai enfiava-nos
igualmente no velho Citroen de um amigo seu. que nos levava às montanhas,
até ao lugar onde, muitos anos antes, o meu avô salvara da m orte uma equipa
sueca, segundo julgo, que se aventurara a sair durante uma tempestade de neve
que não permitia manter qualquer sentido de orientação. O meu avô. que
detestava (como aliás o meu pai) as condecorações, recebera por este feito de
armas a cruz de guerra, com citação e palmas de reforço. Guardei todo este
material depois da m orte da minha avó.
A casa florestal do Bois de Boulogne ficou na minha m em ória pela sua
situação excepcional: dominava Argel inteira, a baía e o mar, que se via até ao
308
o s A c 7 n s
309
I. (} (' / ,s .1 L I H !' ,S ,S /; R
310
o s 1 .4 4 / O S
com couves. Era ura belo espectácuU). o meu pai comia em silêncio, seguro cia
sua força, e nc)s trc^cávannís comentários sobre <4S méritos comparados e d e si
guais dos regimes com carne e vegetariano, discretamente e para bom entende-
dor... Mas o meu pai não queria saber, e partia a sua carne em sangue com uma
faca de alto lá com ela.
O meu pai tinha violências c]ue me aterravam, ( crta noite em c|ue os vizi
nhos do lado estavam a cantar, pegou num caldeiro e numa concha, foi para
a varanda e fez uma algazarra terrível, que nos aterrttu a todos, mas pòs fim às
cantigas. C) meu pai tinha também, à noite, pesadelos, que descmbocawim cm
longos uivos atrozes. Não se dava conta do facto. e quandet acordava, dizia não
SC lembrar. A minha mãe sacudia-o para o fazer parar. Não diziam nada um ao
outro, nada tjue pudesse levar a pensar cjue se amavam. Mas recordo c]ue uma
noite ouvi o meu pai, t]ue devia estar com a minha mãe nos braços, na cama
do cjuarto deles, murmurar-lhe: «minha coisa só minha,..», o que me fez estre
mecer o coração. Recordo-me também de dois outros episódios cjue me sur
preenderam. Um dia em que tínhamos voltado ao apartamento de .Argel,
depois de sair do navio que nos trouxera de França, na varanda, o meu pai
sentiu-se mal. Esta\a sentado numa cadeira, e caiu ao chão. A minha mãe teve
medo, e falou-lhe. Nunca lhe falava. Recordo-me também de uma noite no
comboio, quando íamos a caminho do Morvan, e dessa vez foi a minha mãe
quem se sentiu mal. O meu pai fez-nos apear à noite na estação de Châlons,
e fomos à procura de um hotel que aceitasse receber-mrs. A minha mãe estava
muito mal. O meu pai falava com ela, cheio de inquietação. Nunca lhe falava.
Há com o que um cheiro a morte nestas duas recordações. Amavam-se po r
certo sem nunca se falarem, como as pessoas se calam à beira da morte e do
mar. Mas conservando, apesar de tudo. entre eles meia dúzia de palav ras tac-
teantes para se certificarem de cjue estavam de facto presentes. O problema era
deles. Mas a minha irmã e eu pagámo-lo terrivelmente caro. Só muito mais
tarde o compreendi.
Uma vez que estou a falar da minha irmã. lembro-me também de um inci
dente na zona alta de Argel, onde descobríamos, se os procurássemos, p e q u e
nos ciclames debaixo dos arbustos. Estávamos então num caminbo de terra, e
avançávamos tranquilamente, quando apareceu um jovem de bicicleta. Não
,S 1 1
/, o !■ / ,S .1 /. T II I ,s s i:
sei que manobra fez, mas atirou a minha irmã ao chão. O meu pai lançou-se
sobre ele, e julguei que ia estrangulá-lo. A minha mãe interpôs-se. A minha
irmã esta\a ferida, roltám os à pressa para casa, trouxe apesar de tudo alguns
ciciames entre os dedos, mas perdera todo o interesse pelas flores. Esta violên
cia do meu pai, à ciual a minha mãe era, na aparência pelo menos, completa
mente indiferente, enquanto passava o tem po a queixar-se do martírio da sua
vida, e do sacrifício em que tivera que consentir, forçada pelo meu pai. a aban
donar uma carreira de mestra-escola cjue a fazia feliz, parecia-me uma coisa
estranha: ele tão seguro das suas atitudes, perdia a cabeça de súbito sem conse
guir controlar a sua violência, mas devo dizer que tudo se passava como se afi
nal também a controlasse, pois ciue se saía sempre bem. Tinha «hciraka», e
tudo o que acontecia acabava por resultar em seu benefício. Sabia abster-se
quando necessário, foi o único director de banco de Lyon a não aderir à
Legião de Pétain entre 1940 e 1942, enquanto se encontrara na cidade, Não se
contou entre os partidários do general Juin, quando este tentou «fazer com er
palha» aos m arroquinos e, ainda que dilacerado nos seus sentimentos de «pied-
-noir» ', não se opôs a De Gaulle qtiando ele optou pela independência arge
lina. resmungou o mais que pôde, mas ficou-se por aí.
Soube pelos seus empregados, depois da sua morte, que o meu pai tinha
uma maneira muito especial de dirigir o banco, quando acedeu ao cargo de
director. Tinha, senão um princípio, pelo menos uma prática: era calar-se ou
proferir pala\ ras absolutamente ininteligíveis. Os seus subordinados não se
atreviam a dizer-lhe que não tinham percebido nada, iam-se embora e
arranjavam-se, cm geral muito bem. p o r si próprios, mas sempre a pergunta
rem-se se não se teriam enganado, o que os m antinha alerta. Nunca soube se
o meu pai utilizav^a este m étodo deliberadamente ou não, porejue se servia
mais ou m enos dele também para connosco, mas, em contrapartida, quando
estava com os clientes ou os amigos, era de uma loquacidade imparável, e per-
feitamente inteligível. Estava sempre a gracejar, o que colocava os seus interlo
cutores numa posição de inferioridade e de fascínio, desconcertando-os. Tal
vez me tenha deixado um pouco desse gosto pela provocação. O meu pai
’ L itcralm cntc <'pc negro» n o m e p o r qu e eram designado,'^ os co lo n o s franceses da Argélia. (A" d o 7.)
.4 1 2
o V f ,1 (. 7 O V
313
/, o r / .s .1 /, y yy y ,s ,s a r
dizendo que eu adquirira, para o pôr aos berros, um horrível sotaque amcr
cano aprendido nas docas. Adorava ser desafiado, e não lhe recusávamos C"
prazer. O que, muito britanicamente, se passava segundo as regras. De cac
vez, um aluno, antecipadamente designado, instala\a-se atrás da secretária ü
professor, que se sentava num a cadeira a alguns metros de distância, e conit
çava a comentar em inglês um texto ciuakiuer, geralmente britânico, línhanv -
antecipadamente combinado entre nós introduzir, no m elhor m om ento l;
explicação, um verso de Béranger: «Deus dá-vos, filhos meus, uma boa morte
ou «Como se está bem num celeiro aos vinte anos». O efeito nunca falhav.
Sempre que o com entador se aproximava do instante crítico e começava
dizer: «Esta passagem não pode deixar de nos lembrar irresistivelmente a hi:
mula de Béranger...», o nosso professor le\'anta\a-se, com o que projectado p^ :
uma mola, e entrava no mais belo furor teatral que alguma vez me foi dado \ c'
Isso durav a dez minutos, ele punha o aluno na rua e retomav a pessoalmentc
explicação, evitando falar de Béranger. Sentia-se extremamente feliz, o que -
lhe via pelo cabelo espetado e pelas mãos que tremiam.
f m dia, houve alguém ciue lhe fez uma surpresa. Tratav a-se de comem,
três versos de John Donne. O aluno, um magnífico rapaz louro, poeta n„-
horas vagas e constantemente apaixonado por uma rapariga da nossa turma
qual falarei, com eçou por uma tradução no seu estilo próprio:
A m ei-te p o r três dias
E hei-de a m a r-te m a is três a in d a
Se fiz e r sol.
Estava nesse dia a chover a cântaros no parque. Pouco importav a. Ü alun
pegou nestas palavras do texto para começar a «associar». E disse: «Amei-te
isto lembra irresistivelmente a canção de Tino Rossi...» e trauteou já não
que estribilho. Sucederam-se assim todas as canções em voga, cada um a d e i . -
a propósito de uma das expressões do poema. O professor não abriu o bie
até ao m om ento em Béranger despontou no horizonte. Então apanhou a si,
fúria regulamentar.
Num outro dia, um outro aluno, que viria a ser um oratoriano célebre
e a quem toda a gente chamav^a Fanfouet, porque ele era saboiardo, send
316
o V i C 7 O S
o seu pai chefe de uma gare que fora suprimida (imaginem-se os gracejos
'Obre o arrendam ento da estação), com eçou a explicar outro texto, sempre
cm inglês, mas com um m étodo de dissecação inédito. Distinguiu exacta-
mente quarenta e três pontos de vista, a começar pelos mais clássicos, o
ponto de vista histórico, o ponto de \ ista geográfico, para acabar nas disci
plinas menos frequentadas, como a ornitologia (cjue teve muito êxito junto
do professctr apaixonado por a\es marinhas), a cozinha, a «fragologia» iver-
-se-á dentro de m omentos porquê) e outros disparates. Béranger surgiu e\ i-
dentemente a propósito da poesia, desencadeando o clássico furor.
Quanto a mim, quando fui «apertado», tomei uma opção diferente. Prt)-
curei nos livros e na memória de um amigo hispanizante uma citação de um
monge do século x \ l, inquisidor calejado. Dom Gueranger, e introduzi-o
contendo a respiração no m om ento crítico, julgando ter o iu id o falar de
Béranger, o professor preparava-se para a fúria hahitual, e tive a maior difi
culdade do m undo para o fazer reconhecer o seu erro, garantindo-lhe que
Dom Gueranger nada tinha a ver com Béranger, pois nascera dois ou três
'éctilos antes e nunca fizera poesia. No fim do ano, pagou-nos uma rodada,
.1 sombra das árcores do part[ue, no bufete, havia barcos no lago, e raparigas
lá dentro, perguntando-nos nós o que estariam elas ali a fazer, com aquele
«alor.
Também com o «velho Hours» m antínham os relações de desafio. Ele
«ostumava, tjuando tinha que dizer alguma coisa em inglês, petr exemplo
Wellington, parar de falar, aproximar-se ckt cjuadro preto e. desculpando-ce
de «não pronunciar a língua inglesa», escrevia a palac ra cm questão no qua
dro, sublinhando-a. para que todos entendessem. Falava copiosamente. com
uma das mãos apoiada na secretária, consultando com a outra, para s a b a r as
.iparências. algumas vagas folhas que prova\ elmentc não continham quais
quer notas, e era impossível detê-lo... Dizia: j á \ t)s disse que a Inglaterra era
uma ilha?» e esperava a resposta que não aparecia. Do que tirava então toda
a e,spécie de conclusões. Depois da Guerra, disse-me um dia na presença de
Hélène, que militara na Resistência, que esta teria sido absolutamente impos-
'í\e l em Inglaterra, não p o r se tratar de uma ilha, mas porque, m orando
todos os ingleses em cottages, a clandestinidade se tornava impossível para
L O l I S A !. I n r S S l: R
mundiais de tênis, mas demasiado indolente para fazer fosse o que fosse, e qi
veio a ser, para contrariar toda a gente, um dos jornalistas mais célebres l
imprensa francesa. Hours mal começara a falar e já ele se abatia na carteir.; .
adormecia, para nosso grande gozo, uma vez que ressonava sonoramen:,
Todo o problema era então para nós: por cjuanto tempo? porque o «\c!:
Hours» acabava sempre por dar por isso. Pntão aproximava-se com pés tk
do aluno adorm ecido e sacudia-o com o a uma árvore de fruto gritando: 1
Charpv! Chegámos, toca a sair do comboio!» Charpy abria um olho, con^t"
vando o vnitro — nunca se sabe — fechado, e voltava a ack)rmecer. O «vc!:
flours», considerando Cjue fizera já mais do que o seu dever, recomeçav.
explicar-nos que a Inglaterra era uma ilha.
Ridos nós (excepto o poeta, e um rapaz que, sem avisar ninguém, par:
um dia para Hspanha. nas Brigadas Internacionais, para lá sc deixar m.,:.
como toda a gente) éramos nesse tem po mais ou menos monárquicos, cl:)-
era de Chambrillon, um esteta brilhante, e de Parain, cujo pai era fabricante .
fitas para chapéus em Saint-Étienne, t|ue tocava admiravelmente piano c e«i.:
apaixonado por uma m ulher que ainda não encontrara, mas sentia-se que o
encontrar, chidas as idéias que lhe enchiam cabeça e coração. Tratava-se de .
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o V /' A ( / O V
3 19
L O l I S .1 I. I II I S ,S I R
parte de Parain, a quem eu disse não ter qualquer mérito, uma r ez que o i'
texto fora escrito dc antemão. Por fim, é deste tem po que conservo a mem
de uma vocação religiosa possírel, mas falhada, e de uma certa d ispov,
para a eloquência eclesiástica.
coisa não podia ter grande influencia na questão, mas acresccnti=
nos Dttmbes, não havia raparigas, quando durante o resto do tem po tropev-
mos nelas em todo o lado. Não só sob a aparência de Mlle Molino, que c'..
fora de causa disputar a Bernard (nome do nttsso poeta), mas nt) parcpic
dins. ruas e igualmente no famoso café onde tive. como todo o novo «recri.:
que pagar o meu quinhão de cerveja e discursos. O discurso que fiz ficvi.
memétria de alguns colegas meus. Eles aterravam-nos, estavam ali para i "
nós tremíamos dando-lhes desse m odo todo o prazer desejado. A hora c hc.
por fim. Lembro-me de ter com eçado assim: «Cãozinho cãozinho cãozí
càozinho, dizia o miúdo. E a mãe: po r tiue é cjtie não fizeste chichi antc'
entrar?» A seguir a esta entrada decisiva, o resto já não tinha importàncl.i '
tava-se, creio eu. de u m p a stic h e de Valéry em que entre outras coisas eu
«Não depus a minha espada por dá cá aciuela palha», mas sem dizer pvr,
nem tiue espada era a espada, nem que palha era a palha. Fosse como r> -
intenção nem a todos escapou, o que me foi ciaramente dado a ente
320
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foi para lá fazer, mas feria sido com certeza para fugir a Pétain. Havia por fim
urna figura encorpada cjue só pensa\a em mídhercs. Acabara por descobrir
uma. que se deitava juntameme com os ca\alos e fazia amor na palha, e ele
sustentava que isso valia todo o ouro do mundo, pois ela não estava com ceri
mônias, queria sempre mais. e ele chegou mesmo a arranjar-lhe um quarto de
hotel, era caro mas mais prático, excejsto cjuando o \im o s r oltar para junto de
nós a dizer que a rapariga cra uma cabra porque lhe pregara um esquenta-
mento. Na altura, não era coisa que se curasse com excessi\a facilidade. Este
episódio confirmou-me na ideia que era preciso desconfiar das mulheres,
sobretudo quando dormiam na palha dos ca\ aios
Como o tempo passasse e a guerra se irrolongasse sem a\ançar. isergunta-
ram-nos se nos oferecíamos com o xoluntários para a a\ãação. Béchard e os
outros disseram que sim, Eu tive m edo c adocei tiurante o tempo necessário
para me esquivar à opção. 'Eive febre que bastasse para o conseguir, e julgo ate
que esfregava conscienciosamente o term ôm etro para obter o rcstiltado dese
jado. () médico passou, \ iu a minha curva de temperaturas e não insistiu.
Fiquei soz.inho com Courbon. que preferia a equitação à aciação. .Vias a cthsa
perdera a graça.
ü que restava de nós foi m andado para a Bretanha, para Vãnnes, a fim de
completarmos a instrução. Deparei aí com uma nova companhia, menos
hom ogênea e menos dicertida. Agora trabalhavamos a valer: saídas nocturnas,
ã caça de espiões (descobrimos um dia, rasgados, papéis pertencentes a espa-
nhétis em fuga), tiros fictícios em espaços balizados, marclias forçadas, exames
escritos, etc.
Entretanto, chegaram os refugiados, com as suas miserá\ei> bagagens,
E em breve as tropas alemãs se aproximaram, enquanto nós no.s preparár amos
para defender o «reduto bretão de Paul Rem aud. que largar a entretanto para
Bordeaux com o g o rerno em debandada. Vannes foi proclamada «cidade
aberta», e nós esperámos a pé firme os alemães, m ontando guarda à volta dt)
nosso quartel para impedirmos os soldados refugiados de voltarem para casa
com o desertores. Eram as ordens do general Eebleu, tiue aplicara assim um
plano bem reflectido, destinado a entregar-nos ao exército alemão, em virtude
do princípio: mais vale, c mais seguro politicamente, que os hom ens sigam
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para iim cativeiro alemão do que \ ão para o Sul de França onde Fariam sab,
lá o què. dar ouvidos a De Gaulle por exemplo. Raciocínio irrepreen.M\.
eficaz.
Os alemães chegaram em side-cars. prestaram-nos as honras devida' .
vencidos, mostraram-se corteses, prometeram iibertar-nos dentro de d o i' .
e preveniram-nos caridosamente de que se fugíssemos, haveria reprc'..
sobre as nossas famílias uma vez que o seu poder chegava a toda a p.a
Alguns fizeram orelhas moucas e puseram-se ao fresco, sem escrúpulos !
tava um trajo civil e meia dúzia de francos. Foi de resto o tiuc fez o mei; :
antigo prisioneiro de It, ciue conhecia a cantiga e não se deixou enib..
Arranjou, não sei como, um trajo ci\ il, roubou uma bicicleta, e seguiu tra,r,.
lamente o seu caminho, dando-se até ao luxo de atrat essar o l.oire. a preu
de ir mijar na outra margem («sou canhoto, senhor oficiaF>), c um belo dia .
receu à mulher completamentc siderada: «mas tu ainda nos vais arranjar «
plicações». O meu tio era de earácter suficientemente ruim para ficar d c ',.
sado. Morreu mais tarde, depois de criar a família e de atormentar a mui
mas isso é outra história.
Quanto a nós. os alemães transportaram-nos atenciosamente, par.i
perm itir visitá-los antes da partida, para diversos locais, chamados carnpi-
prisioneiros mas cheios de correntes de ar. ainda na Bretanha. Lembro-nu
um desses campos onde bastava apanhar a ambulância para se ficar cá fora
outro onde bastava uma pessoa descer do com boio e perder-se na aldciaz::'
por detrás da estação para reconc]uistar a liberdade. Mas havia o problem..
deserção e a promessa de fazermos tudo respeitando as regras. Aliás O' .
mães tinham-me apreendido uma pequena Kodak, que o meu pai me d«
mas naturalmente era para a guardarem em lugar seguro antes de ma deva
rem. Podíamos escrever. Tudo parecia correr bem. Bastava esperar.
Entretanto, tínhamos já feito os exames escritos regulamentares dos f.‘
O primeiro classificado foi o padre Dubarle, Como no concurso geral a:
não com o no concurso da Feole Normale. onde ficara cm sexto lugar, creic ;
em Julho de 1939. tendo tido 19 em latim, nada menos, e 3 em grego, que r
celière me perdoe, e de ter feito um a exposição filosófica sobre a causalid.:
eficiente c|ue não tinha a httnra de conheer. que agradou á boa alma que
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concentração, mas nós também não. e fosse com o fosse eles sempre estacaiv,
em m elhor posição do cjue nós para o que desse e viesse.
Acabámos por chegar a uma gare sem nome. no meio da charneca con-^
tantemente varrida pela c h m a e pelo vento. Mandaram-nos apear e pusemo-
-nos a caminho, sob a ameaça dos chicotes e das espingardas, ao longo de qua
renta cjuilómetros. Numerosos camaradas ficaram pelo caminho, mas, de tiir.
m odo geral, os alemães não os lic[uidaram. Mandaram \ ir cavalos para os le\ a
rem. Lembro-me que para o que desse e viesse, e tendo presente o dizer dc
Goethc, surripiara uma espécie de impermeável britânico de oleado que
pusera por baixo da camisa, a fim de qtie os alemães mo nãtt confiscassem. 1 1/
os meus ejuarenta cjuikxmetros com aquela coisa em cima da pele, escusadi
será dizer que transpirei um bom bocadtj, e fiquei com medtt. ao chegar
tenda, de apanhar no mínimo uma constipação, mas nada disso, e de resto ni
dia seguinte os alemães confiscaram-me a minha pseudo-camisa, declarandi
que lhes podia ser útil. Acho que sim. .A partir daí, habituei-me à chuva, e de--
cobri que uma pessoa pode molhar-se sem se constipar.
.A noite na tenda foi inacreditãwl, ITnhamos fome. sede, mas acima dc
tudo estáram os estoirados. e caímos no sono de tal maneira que no di.i
seguinte tiw ram que nos puxar pelos jsés para nos acordar, a fim de sermo^
submetidos aos exames de controlo do catiw iro alemão. .Mas eu tinha apren
dido ciue os hom ens se aquecem uns aos outros, principalmente quando se
sentem infelizes e fatigados, e que, apertados uns contra os outros, as coisa-
acabam por se arranjar.
.Mas não para toda a gente. O nosso campo confinava com um outro
campo, onde r íamos vaguear seres esfaimados. t|ue deviam ter vindo do lestc
da Polônia, uma vez que falavam russo, não se atreviam a aproximar-se do-
arames farpados electrificados. e então n é)S atirávamos-lhes um bocado de
pão, algumas roupas, e algumas palavras que sabíamos perfeitamente que ele-
não perceberiam. mas não interessava, sempre lhes fazia bem a eles e bem a
nós, ficávamos menos sós na nossa miséria.
Depois, fomos distribuídos p o r com andos separados. Tive direito, junta
mente com alguns estudantes e trezentos camponeses e pequeno-burgueses, a
um campo especial, porque se tratava de escavar reservatórios subterrâneo-
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que ela vivesse, e tratei de que isso fosse possirel. se ela estivesse de acordo.
Fugiriamos os d(tis num barco, ao cair da noite, e fariamos am or no alto mar,
na condição de não haver vento, mas apenas um bocadinho de brisa garantindo
o fresco e o prazer. Não tive tempo de terminar esta obra-prima, onde o Girau-
doux dos ouriços tinha a sua parte, porque adoeei scriamente: dos rins, ao que
parece, segundo o médico francês do campo, um liomem do norte, altivo e
competente, que explicou aos alemães que o caso não era para brincadeiras,
tinham de me e n v ia r de urgência para o hospital central do campo. Chegou
uma ambulância branca, e pela primeirti vez fui transportado ciewigar. ao longo
de quilômetros de terra desolada, a caminho cio campo de Sehleswig. Dei
entrada no hospital, onde fui bem assistido por um médico alemão cansado
que, ao cabo de quinze dias. me declarou curado e me m andou \o ltar para o
campo. Mas tratava-se agora do campo central. l'm mundo. Os prisioneiros
polacos, que tinham sido os primeiros a chegar, ocupavam todos os postos-
-chave, e uma pequena guerra opunha os franceses, os belgtts. os sér\ ios a esses
polacos, que acabaram po r abrir mão de alguns postos. Fiquei cm condiçêtes de
trabalhar no exterior, descarregar carvão, c a\ar trincheiras, fazer jardinagem,
antes de penetrar nos lugares do campo: na enfermaria onde reinava o médico
que me m andara para o hospital, c um profético brejeiro, que jsassava o tempo
a m andar tabletes de chocolate às mulheres ucranianas do campo fronteiro para
que elas de longe lhe mostrassem as coxas abertas. Con\erti-m e assim em
«enfermeiro» sem nunca o ter sido, e tratava de toda a espécie de doentes. \ i
assim m orrer um pobre cançonetista parisiense com uma gangrena provocada
por uma operação a céu aberto praticada por um jo\ em médico nazi alemão
que queria adquirir experiência. A maior parte dos meus doentes eram-no por
fingimento. Emagreciam por meio de jejuns a fim de serem considerados como
sofrendo de uma úlcera de estttmago p o r meitj de uma radiografia tirada depois
de terem engolido um pedaço de fio com uma bolinha de prata de chocolate
amarrada na ponta. A coisa nem sempre resulta^ a. Fu tentei, mas em vão. Tentei
fazer-me reformar com o enfermeiro, pedindo que me enviassem certos pajséis
que, como p o r acaso, descobriria diante de um guarda ao abrir uma e n c o
menda. Não tive êxito, porque me tinha esquecido de tirar da minha caderneta
militar os dados que provavam que fora aluno oficial da reserva.
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a Mia solidão: cada um por si, com a sua terra, separado dos outros, mas domi
nado pelos grandes, inclusivamente nas cooperaiix as e nos siiulicatos campotie-
ses. Não foi o que se passou depois da Guerra com os jovens agricultores, enqiur
drados pelas organizações católicas, que alterou fosse no cjue fosse esta sittiação
continuam a ser os grandes cjue dom inam e ditam a lei aos médios, aos petiuenos
e aos pobres. Os camponeses não foram educados pelo capitalismo industrial
como o foram os operários fabris, concentrados no local de trabalho, submeti
dos à disciplina da divisão e da organização do trabalho, explorados rigida
mente, e obrigados a organizarem-se à luz do dia para se defenderem. Permane
cem isolados, cada um para o seu lado, e não conseguem reconhecer os seus
interesses comuns. São uma presa de antemão disponível para o Estado burguês,
que os pou p a (impostos quase inexistentes, créditos, etc.) e os tem assim ã sua
mercê para os conxerter em dócil clientela eleitoral. São um dos elementos dessa
«barreira» persistente cuja existência foi um dia reconhecida por um secretário
de federação do Partido Comunista, p o r volta de 19~3, na setiuência da «t|uebra»
eleitoral do Partido, Mas eu não tinha conhecido operários. Pequeno-burgueses.
sim, tanto oficiais sulbalternos de carreira, com o funcionários, ou empregados,
ou comerciantes, ou universitários. l'm outro mundo, falador, este, apressado,
á\ ido de voltar a ver mulher, filhos e emprego, pronto a engolir todas as notícias,
sobretudo as mulheres, com m edo dos russtis. mais m edo dos russos do que dos
alemães, habilidosos, dispostos a tudo para conseguirem ser repatriados pra
guejando contra De Gaulle sem dizerem bem de Pétain porque De (jatille fazia
com que a guerra se prolongasse, m andando \ ir de França encomendas sum p
tuosas, que aliás partilhaxam de bom grado com todos os outros. pre(.teupados
com a sua aparência, c falando de mulheres o dia inteiro. Lembro-me de um
corso que foi obrigado a deitar-se na sua cama de tábuas, a ciuem tiraram as cal
ças e masturbaram à força. Passou-se isto num barracão onde todas as noites um
professor de Clermont chamado Ferrier organizaxa uma «emissão» de rádio.
Iodos os barracões enviax am os seus representantes, e Ferrier dava as notícias
militares e políticas do dia que ouvira numa emissora alemã, num escritório
h onde trabalhava e conseguira conquistar a confiança do seu guarda, um com u
nista alemão. Ferrier alimentava o moral de todo o campo. Por xezes é suficiente
que um simples indivídtio tenha certa iniciatixa para o clima se transformar.
3.31
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No entanto \'eio tinta vez uma mulher ao eampo: uma francesa, cantora,
:io bonita, e toda a gente ficou de cabeça perdida. Cantou no teatro, a
, _air DacM convidou-a para a sua mesa pessoal, num encontro a sós que deve
^ acabado bem. Também ele gostava de mulheres, e de bom grado se punha
o.l.ir delas. Contava as stias aventuras de jm entude. o jogo de «pctker des
ço com certas jovens, entre as quais a fillia do embaixador da China, e
c.io arranjavci sempre maneira de perder, o que lhe permitia ganhar o que
.cria. Como conquistara no campo a simpatia do oficial encarregado de o
. mpanhar na fiscalização dos comandos a bordo de um camião conduzido
r um tipo cham ado Toto, jovem operário parisiense de soiatpie cerrado.
. cl conseguiu um dia titie esse oficial o levasse a Hamburgo, até um t|uarto
de estava à espera dele uma belíssima polaca que soulte recebè-lo com as
. ' idas atenções, aventura que não deixava porém de ter os seus riscos para os
olicados. Que eu saiba, Daél não foi mais longe. .Ao regressar do cativeiro,
ivenceu uma jovem c[ue até então não conhecia de que poderiam enten-
cr-se. construir uma vida e ter filhos. Escreveu-me e n tã o : Não podes imagi-
. c o barulho dos saltos dos sapatos dela no passeio à minha direita... Manteve
'ua palavra, sem a m enor quebra de contrato, reduzido a vender filmes para
' outros, cjtte miséria quando pensamos no hom em tjue ele era. Pelo menos
■ou umas belas crianças, os seus filhos. A m ulher sobrev'iv'e-lhc ainda, nas
r.iias da Mancha. Há cora certeza muitos hom ens em França (ele não tentou
itar a ver ninguém) que pensa ainda e por muito tempo continuarão a pen-
- nele, como num a figura de milagre e semi-fabttlosa.
Tenho de contar aqui mais um episódio que se desenrolou entre mim e
..el, por tim lado. e, por oumv lado. a adversidade. QuancU.i Daél. fatigado,
vindonoti t) seu cargo de hom em de confiança, depois de termos reflectido
v-moradamente nos impasses da situação, perguntãmo-nos se não valeria a
cita tentarmos evadir-nos. A dificuldade residia no facto de durante as très
emanas que se seguiam a cada evasão, todas as forças da guarda e da polícia
éemã serem mobilizadas na perseguição aos evadidos. que po r isso ficavaim
r.iticamente sem hipóteses. Tratava-se portanto de contornar esta dificuldade,
iiaginámos a seguinte solução: bastava dei.xarmos passar o período de três
emanas e, para não provocarmos o desencadear das medidas de controlo, não
3.^.^
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nos cvadirmos durante as mesmas trcs semanas. O que só era possí\el nur
condição: ficarmos à espera no campo, depois de consideracios oficialme-'
com o evadidos, durante as três semanas necessárias. Para tanto bastava ciiie n
escondéssemos num sítio qualquer, deixando depois passar o tempo, coma;'
que o esconderijo fosse seguro.
Ora nada mais fácil do tiue descobrinm)s no camptt central um escont.
rijo seguro. Instalámo-nos nele com a cumplicidade de alguns amigos exr
rientes, que nos traziam alimentcjs e informações animadoras sobre o afã l;
alemães, e deixámos passar as três semanas. Dejaois pusemo-nos ao largo fa>.
mente, com Daêl a permitir-se cum prim entar de passagem, com o de costu;r
a sentinela embasbacada. As coisas correram muito bem, conform e o pre\ i':
se exceptuarmos esse pequeno imprevisto que foi encontrarm os um funcic;
riozinho dos Correios que, num lugarejo qualquer, nos perguntou a mor.: ,
exacta de um destinatário que não conhecíamos. O que o fez desconfiar e
^aleu uma recompensa pela nossa captura, conform e o previsto.
Acrescento, para dizer toda a verdade, que esta história foi de facto pre;
rada por nós tal com o a contei, mas cjtie não chegámos a sair do campo
gando-nos stificientemente compensados |')elo nosso esforço de imaginaç.ã
pela descoberta do princípio da solução. ,\ão o esqueci, desde que volte
ocujoar-me de filosofia, pois no fundo o problema dos problemas filosófio -
políticos e militares ) ê saber como sair de um círculo continuando dc.' o
dele.
Q uando as tropas inglesas chegaram a cinquenta quilômetros do can"
a derrocada alemã agravou-se e Daêl aplicou outros princípios estratégu
Foi ter com os alemães para lhes propor um negócio: vocês vão-se eml^ -
nós ocupamos os vossos lugares e em troca eu passo-\x)s certificados de n
comportam ento. Eles aceitaram e deixaram, durante a noite, tudo no cair :
A seguir bastou-nos proceder à nossa instalação. Foi uma grande revoluçã.
nossa existência. Para começar, Toto conseguiu p o d e r deitar-se com a a k
que lhe chamara a atenção, graças ao seu perfume, de longe, num escrir -
Formaram-se casais, mais ou m enos abençoados pelo padre Poirier. Os ab,:-
cimentos foram organizados em grande, po r m eio de batidas que rendiam .
uma delas a sua carga de gamos, corças, e também lebres e outros animak
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legumes ou álcoois subsequentes. Des\ iámos uma ribeira para eonstguir água.
Por fim fizemos pão franeès. Reunimos a população jsara lhe darm os inform a
ções e formação políticas. F.nsinámos com o manejar armas, e também inglès e
russo aos jovens alemães e às jo\ens alemãs, inicialmente aterrorizados, depois
'crenos. Jogámos futebol e fizemos teatro com mulhercv a valer. Ura domingo
todos os dias, quer dizer, o comunismo,
Mas os malditos ingleses não ha\ i;i ni.ineira dc chegarem, Daél e eu c o n
cebemos o projecto de ir ao encontro delc' par.t o ' inínrm arm os da situação,
.Cpoderámo-nos de uma \ iatura. de um motorista uirn hoc.ido ecsgoi c m ete
mos pela estrada direittxs a tlamlsurgo, onde os ingleses nos atolheram tão
friamente t|ue preferimos igracais a um c.xpediente do motoristai deixar a sua
companhia e voltar ao campo, onde fomos muitt) mal r e c eb i d o s , julgando os
nossos camaradas tjue os tínhamos «abandonado», incluindo o padre Poirier.
que tinha a sua moral (há coisas ciue não se fazem), (lonsolámo nos com um
beltt guisado de gamo. e esperámos pelo epie \ iesse a seguir.
Os ingleses acabaram apesar de tudo por chegar e asseguraram-nos trans
porte na ctmdição de ali deixarmos todos os nossos tesouros pessoais, de
.ivião. primeiro para Bruxelas, a seguir para i^aris, e para mim a seguir ainda
para Marrocos, onde então vi\ iam os meus pais e onde o meu pai continuava
,1 jogar tênis e percorria o império cherifiano a duzentos ã hora. excepto
quando os camelos, que nunca dão prioridade a ninguém no seu caminho, lhe
cortavam o passo. Tinha um mtttorista espanhol que dizia; <^Maclanie. ele tem
medo dos camelos, do Senhor não tem ela medo.»
Foi um reencontro muito difícil. Ku tinha a impressão de estar \elho. de
ter perdido o comboio, c de já não ter nem genica nem nada na cabeca. ,\'ão
me sentia capaz de \oltar ã Fcole. embora esta me t i r o s e en\iacio livros e
continuasse de portas abertas para mim. FOi então que íi\e a primeira das
minhas depressões. Passei por tantas, tão graces. tão dramáticas, desde há
rrinta anos (devo ter passado ao todo uns bons quinze anos em hospitais ou
clínicas psiquiátricas, e lá estaria ainda com toda a certeza se não fosse a aná
lise), tjue me perm itirão não falar do assunto. De resto, com o falar da angíistia
que é litcralmente intolerável, vizinha do inferno, e do vazio que é insondável
c apavorante?
5,s5
/, o ! / V 1 í / // í V ,s i:
,^.^6
o s / -1 f / o s
D i m i n i i ti v o d o p si q u i a t r a j u l i a n Ajuriagucra . ( .V d o 7. )
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galinhas, c p o r conseguinte o\os, gatos que da\ am pelo nome, o que é raro, e
não havia cães. Havia duas grandes ca\x's, uma para a lenha do Inverno, outra
para o vinho, e o meu avô instalar a-se lá no \erão. ao fresco, para ler La Tri-
bune cíu fo n c tio n n a ire sentado num banquinho de madeira. Havia também
uma cisterna alta, de onde po r duas \ ezes sah ei um dos no>sos gauts c]ue caíra
lá dentro, e era um espectáculo algo terrír el \ er o animal aílito. ü mesmo gato
enfiou um dia na cabeça uma lata de conserr as \azia, ti\e uma \ez mais que
o livrar dac]uilo, ainda hoje não sei por que milagre: o g.ito soltou um miado
de terror e durante vários dias andou fugido de casa fm contrapartida, eu era
poupado à matança das galinhas e dos coelhos. Tinha um fraco por esses ani
mais idiotas e incapazes de se defenderem. Chegara até. para lhe' denurnstrar
a minha amizade, a fabricar uma seringa de madeira de sabugueiro escaziada
do miolo, e regava-os de longe com ela, o que pro\a)ca\a sempre reflexos ines
perados, cacarejos de surpresa nas galinhas alticas, considerando de cabeça
levantada e olho arregalado aquele acontecimento que atentava contra a sua
dignidade, fuga relâmpago dos coelhos que não parar am de correr às roltas
nas suas coelheiras. Mas quando chegava a hora da verdade, pediam-me que
me afastasse. ,Sei que o meu avô assentava então um murro na nuca do coelho,
e que a minha avó rasgava com uma tesoura ferrujenta o pescoço das galinhas.
Quando era um pato, cortavam-lhe simplesmente a cabeça com um golpe de
podoa, e o pato continuava ainda a correr pelo chão durante uns segundos.
As batatas e as azedas desempenhavam o papel principal na nossa alimen
tação, juntamente com as castanhas no Inverno (o Morvan vivia então de très
criações: os porcos, os bovinos e as crianças da Assistência Públicai. Eu ia ã
escola oficial, cujos muros altos ficavam perto do poço. por trás de uma
grande pereira titie dava uns frutozinhos duros, com que a minha avó fazia
uma compota avermelhada como nunca mais voltei a comer. Na escola, umas
vinte crianças da região, das quais oito ou nove da .Nssistència Pública estuda
vam, sob a vigilância de um mestre-escola socialista. .M. Boucher. bonito e
bondoso hom em . Fui recebido pelas partidas do costume, ejue se prolongaram
por um bom mès, tendo os miúdos uma predilecção especial pelo jogo que
consistia em perseguirem um de entre eles. cjue depois deitavam no chãtv e a
quem tiravam as calças, para lhe verem o sexo, fugindo a seguir aos gritos.
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SoLibe mais tarde que se trata\ a de uma prática próxim a do que se faz em cer:,
sociedades primitivas. Tive que suportar a prova, e a seguir dcixaram-mc t
paz. Jogava à barra no pátio, e bastante bem, o que me valeu algum apreço. Cá)r
o professor me considera 4’a bom aluno, as coisas iam andando. ITn dia mandi
-mc fazer o exame do concurso das bolsas em Nevers. Nesse dia, o meu a\ ò w
tiu o seu fato de ir à cidade, ptàs um boné novo, e apanhàmtts os dois o combo:
A seguir escolheu cuidadosamente um hotel, e eu tive ocasião de conhece;
maravilhosa Igreja de Saint-Étienne que tem os mais belos tons de luz e soml'
do mundo. Fiquei em 6 .” lugar no concurso, o que me valeu, por escolha minl
uma carabina como prenda paterna. Ciom esta carabina aconteceu-me uma o
algo estranha. Com efeito o meu pai adqtiirira, a seis cjuilómeíros da n o "
aldeia, um terreno de seis hectares com uma casa velha, uma espécie de quír.
Fica\ a num alto para lá da linha de caminho de ferro, mais ou m enos inacessíw
a tal ponto tudo se encontrava coberto de castanheiros e fetos, mais do t]ue abi,
dantes. C) meu avô saía quase todas as manhãs que tinha livres, pelas cin,
horas, a caminho das Fougères, naturalmente a pé (na altura não havia aiitom
veis na região) e, velho guarda florestal aguerrido que era. rasgava uma passagt
para ter acesso à casa. Havia colmeias na zona. Deve dizer-se que era uma paix
dos meus pais. depois da experiência da \elh a casa florestal de Argel. oiv.
M. Quéruet as criara, virem a ter abelhas. Flavia-as também no Bois-de-\e:
onde o meu avô tinha um campo que me ensinou a cultir ar, plantando lá i
pouco de tudo, mas principalmentc trigo, que aprendi a ceifar e a enfeixar. c
batatas que aprendi a arrancar sem as cortar. Portanto, íamos às vezes em e \c .
são familiar às Fougères. e eu passeava pelos carreiros dos bosques com a mirb
carabina a postos, carregada. Lembro-me de que um dia, em que não atirei .
alvo, deitado, com o em Argel com a arma de guerra, \ i uma rola, e disparei sob
ela sem lhe acertar. Voltei a carregar a minha arma, e continuei o passeio. Pass.
-me então pela cabeça a ideia louca de a disparar na barriga, para \ er o que aci
tecia. Estava convencido de que não tinha bala no cano. No último segundo he-
tei e abri a espingarda: havia uma bala lá dentro. Fiquei coberto de suor. mas n.i
me vangloriei do incidente.
íamos muitas vezes às Fougères, num a carroça guiada p o r um jovem camj'
nês plácido, que seria m aire local durante a Frente Popular, e puxada por u:'
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música, executava alguma árias à minha maneira de tjue ele não desgost..
Queria cjue eu aprendesse música. Hu respondi-lhe tjue já tinha aprendic
quando tivera lições de violino, (iom efeito a minha mãe pusera-nos a a p ri
dència «Mas por cjue é que pós dois exergos no seu texto, primeiro a m ú'i ,
de René Clair: "o conceito é obrigatório porque o conceito é a liberdade
depois as pala\ ras de Béranger: “ mais \ ale um conteúdo do tiue duas pronie-
sas?“ » Tu respondi: «Para resumir o conteúdo.» Ele calou-sc e insistiu: M
po r tiue é tjue fala de círculo em Hegel, não seria m elhor falar de circulac.f
do conceito?» Eu respondi: «A circulação é um conceito de Malebranche. be
com o a reprodução, e a prova está em que Malebranche c o filósofo dos iím
cratas. que Marx disse serem os primeiros teorizadores da circulação na rep r
dução.» Ele sorriu-me e deu-me 18. Era em Outubro de 194"’. eu tinha passa«;
o \'erão, depois da terrível depressão da Primavera, a redigir à pressa esta tc'
cjue me ajtressei a abandonar à «crítica corrosiva dos ratos». Martin fizera ca :
o mesmo Bachelard, e com desenhos obscenos por epígrafe, uma tese mui:
boa sobre o indivíduo em Hegel. Falava de problemas que eu sé) jsarcialmer.:
compreendia, apesar das explicaçétes dele. Tudo era dom inado nessa tese pci
conceito de jsroblemática, cjue me deu que jsensar, e tratava-se de uma filosot;
materialista, que jsrocurava chegar a uma ideia justa da dialéctica. Discutia--
Ereud, fazia-se (já!) uma crítica ponderada de Eacan, c no remate surgia
comunismo, ainda me recordo: «onde já não há pessoa humana, mas ajsen.i
indivíduos».
342
o s f .1 c I o s
Na École. conhcci Tran Duc Thao, que st* celebrizara publicando muito
cedo a sua tese sobre a fcnomenologia e o materialismo dialéctico: extrema'
mente husserliano, tal como perm aneceu, a julgar pelos artigos que tem
enviado de Hanói, onde reside desde 1956. para Ia Pensée l hao data-nos
aulas particulares, e explicava-nos: «Xdcès são todos egos transcendentais e são
todos iguais enquanto egos.» ' F. c om eçata então ;i expor uma teoria do
conhecimentí) bastante fiel a Husserl, que eu voltaria ;t encontrar mais tarde na
boca de jean-Toussaint Desanti. com a mesma preocupação de casar Husserl e
.Marx, o cjue era contrário àcjuilo que Martin sustentatai, I hao conhecia muito
bem nessa altura Domarchi, brilhante teórico de economia política, que coti\ i-
dámos para a École. Deu um curso fulgurante e incompreensível sobre \\ ick-
scll, e desapareceu, apaixonado po r uma m ulher que não deixou de perseguir
com os seus assédios, mas com quem não conseguiu casar. Fliao e Desanti \ei-
culavam então as esperanças da nossa geração, com o mais tarde Desanti. .Mas
não as cumpriram, e a culpa foi de Husserl. Será de acrescentar qualquer coisa
ainda sobre Gusdorf, ciue então instaurara o terror do seu governo sobre os
candidatos à agregação de filosofia da École? Fizera a tese durante o cativeiro
trabalhando todos os diários íntimos que conhecia, e dera-lhe por título La
D écouverte de soí. Recebeu um dia uma carta do director do Falais de la
Découverte que resumidamente lhe dizia; não sendo estranho ao Falais de la
Découverte nada do que diz respeito à descoberta de si. ficar-lhe-ia muito
grato se... (iiisdorf foi ao Falais, voltou com cumprimentos, um prospecto, e a
impressão de ter sido logrado. Mas a partir de então o seu li\ ro figura nas
estantes da biblioteca do Falais. Gusdorf tinha a mania de responder a qual
quer pergunta embaraçosa por meitt da expressão; <<e a tua irmã'», e quando
nos despedíamos dele no seu gabinete, onde tinha uma secretária Luis X\' de
imitação, dizia; «desculpe-me se não o acompanho», palavras que proferia
igualmente ao telefone, juntamente com «dcixc-sc estar com o chapéu». Fra
um hom em que dispunha de um ntimero reduzido de expressões, mas que
delas se servia sempre muitíssimo bem. Da\a-se mal com Fauphilet. nom eado
' Iro c a d ilh o b a .s c a d o na h o m o fo n ia, in c.x iste iitf cm p o rtu g u ê s, en tre egos e é g a u x (ig u a isi
i V d o r. I
34 3
/. o (■ I s A I. 7 H r S S F R
Idade Média) e a sua predilecção pelos «bailes populares» onde recrutava con
assiduidade discípulos de um tipo especial, a quem recitava versos de Francc' '
Villon c]ue sabia de cor. Poi enterrado atrás do cubículo do porteiro da Kco!^
para não se sentir deslocado. Ninguém o sabe. ou toda a gente o esc|ueccL.
exceptt) algumas rosas belíssimas que ali crescem po r acaso, e que o porteir
rega regularmente até que m urchem. Sempre pensei que Pauphilet. tjiie gi '
tava de mulheres e de dores, apreciaria tal atenção.
Gusdorf tinha um método, que se revelou excelente, pessoalíssimo, de n> -
preparar para a agregação. Não dava aulas, não nos punha a fazer exercíci -
(iontentava-se com ler-nos, sem os comentar, extractos da sua tese sobre -
diários íntimos. Daqui tirei a lição, proveitosa, de c|ue a m elhor maneira vi
preparar a agregação não é seguir aulas nem po r conseguinte dá-las, mas
trechos seja do cjue for. Porque lá tive que fazer a minha agregação. Arran i
outra depressão, c no fim do ano estava a postos. Fui o primeiro na pr>
escrita (tendo-me Alquié dito na minha primeira dissertação sobre o ter
«Será possível uma ciência dos factos humanos?», que eu fizera a partir
Leibniz e de Marx, que a minha primeira parte tinha 19, a segunda 16, m.o
terceira, dado tudo o que eu dizia sobre Hegel e Marx, com muita pena
só podia ter l4). Fiquei em segundo na prova oral, por causa de um com :
-senso a propósito de uma passagem de Spinoza onde confundi a solidão o
o sol, o que era um aristotelismo algo excessivo. Flélène estava ã minha espm
ao fundo da rue Victor-Cousin, e abraçou-se a mim. Tivera muito m edo de ç.
eu não conseguisse sair da minha depressão. Nunca deixei, pobre Hélènc ,
a assustar com as minhas depressões.
A vida filosófica na École não era particularmente intensa. Esta\ ;
m oda exibir desdém p o r Sartre, que estava na moda, e parecia reinar de im; :
alto sobre todo o pensam ento possível, pelo m enos em França, esse «b.i»::,
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o ,v h A ( / O V
34 5
/. n l l S 1 /. / // ! S S F. R
.^-í6
o V /■ ,l C. / (J s
,s-t
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3 -Í8
o s /•' -1 ( i o s
.. ilc Icilc azedo. A rcíeição fiea\ a-llic sempre muito cara, mas hoje que e p ro
p o r titular, eondecorado, pai de família casado com uma matemática, pai de
:’i n o rn ia lien («tinha espírito, o miúdo» i. continua, com agrado, mas perto
grande buraco dos Halles, onde descobriu um restaurante à sua medida que
L s e n e pés de porco com compota de casais Sn\ tlers tinha um grande p ro
nto. ao cjual te\e infelizmente t[ue renunciar, criar um CiXRC. Centro .\acio-
,i de Incestigação Culinária C .Sustentax a que «e pocleriam extrair efeitos
Mcressanles do matadsorrão frito e da compota dc palha, h um caso a estudar.
lendo ICtuphilet, antes de m orrer nome ado Frigent. que \ iniia das Breia-
vas. para a Mcole. e afastado (msdorf. fui nomeaelo adiunio daquele, graças à
"lizacie da «\elha Porée». essa mulher que fez funcionar a iiojle, apesar de
dos os directores que tece, durante cerca ele quarenta anos. primeiro como
..arregada da rouparia, depois com o secretária do directot. futha carácici.
.cias acerca da correspondência e da pedagogia, e soeibe tratar t o m o de\ ui os
oiiães quancUj estes apareceram uma bela manhã para prender Bruliat. Deeo
L muito, e não sou o único. Morreu na solidão de um horríxel lar de velhos,
. plena floresta, a cem cjuilómetros de Paris, tjuasc sem visitas. Coisas assim
; .io proibidas quando transformarmos a sociedade.
seguir ã minha agregação, na qualidade de monitor, tive ciue me encar-
_.ir dos meus jovens colegas que preparar am as suas provas de agregação —
vco. l.ucien Sè\e e uma dezena de outros ainda. l'i\e a fraqueza de pensar,
.-'ar dos a\ isos dc (lusdorf, que devia ministrar-lhes um ctirso: foi sobre Pla-
. comigo a debitar-lhes salgalhadas sobre a teoria das idéias e a remimsccn-
.. como teoria-recordação-encobridora para mascarar os [troblemas da luta
. classes. Extraí alguns belos efeitos de Sócrates como ese|uecimcnto, c do
rpo com o esquecimento, portanto do corpo dc Sócrates como esqueci-
u nto. do corpo de .Mênon como recordação, c desemharacei-nic como pude
-"C impossível ( ‘râtilo. onde Platão sustenta e nega qiic 'c puseç dizer que
1 boi é um boi. C) que me fascinara em Platão era 'c r poschel ser->e a tal
nto inteligente e conserrador, ou mesmo reaccionário. ter culiir ado os reis
' jor ens, falado tão bem do desejo e do amor. e de tockis os ofícios da r ida.
349
L O I / V .1 I. j II I s s i: R
até da lama, c|uc também tem algtires no céti a sua idcia, juntamente com O'
sapatos e o Bem. Fra também um hom em de misturas, sabia fazer compota^
com o um dia confiei a Snyders ciue me olhoti com o um louco. De facto, conti
nuei a ser louco, perm itindo-m e uma depressão anual ou quase, o que resoU ;.
o problema das aulas. Mas tendo os n o r m a lie m adcpiirido o hábito de passar
na agregação, excepto quando partiam para as Índias ou numa grande aventur.:
de amor, assunto de cjiie tratava Mme Porée (espere até à agregação, meu rapa/
terá depois todo o tempo ejue for preciso), tudo isto acabava po r não tc'
importância. x\liás o padre Étard. bibliotecário da École. dava-lhes. na qual
dade de sucessor de Lucien Herr, todas as indicações bibliográficas iitcn
A única contrariedade era que, ciuando íamos ter com o bom do httmem er.
preciso termos desmarcado antecipadamente todos os outros encontros c.
uma semana bem contada. Ele não parava de falar da história das religiõc'
citando a esse propósito uma tese de doutoram ento cjue tinha na cabeça, m..-
não arranjara tempo para passar ao papel. Aliás falava de toda a gente, tanto l/.
Herriot como de Soustelle. Soustelle não fizera ainda a sua grande carrer
argelina. Mas Etarci dizia dele: é incapaz de fazer seja o que for sozinho, 'c:
sempre um seguidor. E tinha razão. Soustelle gerira sob a direcção de Boug ,
antes da guerra, um centro de docum entação em que participaram Aro:'
alguns alemães fugidos ao nazismo, ciue a Écctle albergou. Contavam-se en::.
eles, segundo creio, Horkheimer, Borkenau e alguns mais. Borkenau infeé
mente acabou mal, ao serviço do Pentágono, segundo creio, mas a guc:
explica muita coisa. Depois da m orte de Bouglé, o centro desaparecera, s^-
preciso esperar por Jean Elyppolite para que fosse restaurado sob novas forr. . ■
mais adequadas às exigências m odernas da economia política e da inform.i:
Dupont, químico especializado na resina de pinheiro, sucedeu a Paur
let Dizia: «lam ento muito, mas escolheram-me a mim porque os melh
morreram durante a guerra. «Infelizmente, era verdade. Foi um director ir.
ciso, teve alguns acessos de cólera breves e inofensivos, ciue Raymond W.
então C a ím a u ' de grego, resumia em espírito e verdade: «É absolutaiiK
indispensácel... ejue alguém assuma as minhas responsabilidades.» Dupon; .
.^50
o ,s /' -1 C I o s
'■'istido eni l.ctras pelo manso (diapouthier. que fiea\a ingenuamente sur-
'reendido ao ver que «rapazes tão novos e bonitos casam tão cedo», o que o
■.r.instornava. Q uando fica\a na bcole, com os alunos, à espera dos resultados
:,i agregação, comia com eles, c durante a maior parte do tempo fazia-se con-
idado. porque a mulher não lhe deixa\ a um \ imém nos bolsos. Hspantou-se
,:m dia ao ver Michel Foucault doente, eu dís^e-lhc tjue não era grave, mas ele
,ontinuou espantado por Foucault. que \ ira transtornado nos corredores, não
.lie ter dirigido a pala\'ra, Foticault foi nesse mesmo ano ,ipro\ado na agrega-
,ào. Acabaria, com o é sabido, ou começaria, no (iollègc de France, oride tinha
.ilguns amigos.
Por fim Hyppolite, depois da morte de (ihapouthier foi nom eado director
.idjunto, antes de assumir a direcção da Ecole. Fra um homem entroncado,
atarracado, com uma enorm e cabeça de pensador, semjire a fumar, dorm indo
irès horas por noite, sem nunca parar de pensar e de procurar a amizade dos
m\estigadores científicos entre os quais Yves Rocard, organizador genial,
ditar a a lei. f h ppolite pós as coisas em pratos limpos logo no seu discurso de
chegada; «Sempre soube que viria a ser um dia director da Ecole... a École
deve ser uma casa de tolerância, estão a perceber.» E com eçou a organizar
'cminários. palavra que tinha sempre na boca. A coisa soube-se, e ele recebeu
um dia uma longa carta escrita por uma mão tremula, e assinada por um coro
nel de car alaria na rese n a , \iv e n d o em Cahors, ejue lhe falava do seu interesse
pelas iniciatiras dele, lhe confiava as suas próprias experiências pedagógicas
no exército, onde também ele desde havia muito organizara seminários, e pro
punha um intercâmbio de experiências, \ i n h a apensa uma outra carta, assi
nada pela filha do coronel, dizendo que o paizinho se interessava realmente
muito pelo problema, e seria óptim o cpie lhe respondessem ,,. Hyppolite res
pondeu, e uma longa correspondência, que duraria anos. estabeleceu-se entre
os dois. O coronel, apesar dos seus ferimentos de guerra, veio a Paris visitar
Hyppolite, e fez na École uma conferência que agradou, apesar da sua term i
nologia um tanto excessivamente militar. O coronel chamava-se C. Minner.
Hvppolite tinha uma maneira muito peculiar de dirigir a École: a adminis
tração vem a reb(.)cjue. De hicto. adi;intava-se. sob a direcção de Eetellier, tjue
tinha ares de senhor e não olhava a despesas. E deste período que datam os
351
/ o r / s A /. / II I S S I: R
que não esqueci. mas vocè também tem um corpo, não? Oito dias de
corpo de .Merleau traía-o de repente: o coração.
.vs-
o .V /■ ,1 c r o V
’ Hste texto não foi enco n trad o nos arquivos de Louis Althusser. (A', do E. fm u c ê s ).
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/, o V / V ,1 A 7 H (’ S S t: K
mentos dele. Militava também no «sindicato dos alunos», que era ilegal e
batia po r ser oficialmente reconhecido. Foi nele que consegui, se assim p -
dizer, o meu primeiro sucesso político de massa, obtendo a demissão do ' t .
tariado inteiramente nas mãos dos socialistas, no que contei com a coLi ' ■
ção de Maurice Caveing.
Conservo também a memória de um vivo incidente que me opôs a A sí :.
SNES, num dia em que os agentes da École, em greve, queriam ir manifc' . *
354
/. o í / V ,1 r H ( S S E R
École os elem entos da história do m ovim ento operário. Foi assim que falaram
a nosso convite, Racamond, e Frachon, e Marty (duas vezes, com grande autc
ridade professoral).
Estávamos na época da guerra-fria e do Apelo de Estocolmo. Andei n.
recolha de assinaturas porta a porta no bairro da estação de Austerlitz e n:'i<
consegui lá muitas adesões, excepto a de um trabalhador do lixo, que recrut.;
m os para o Conselho Com unal, e de uma jovem tiue assinou por compaixãi
dínham os instalado um painel para afixar cartazes na rue Poliveau, no cjual ci
actualizava todos os dias a docum entação sobre a am eaça da guerra e os pr:
gressos da resposta popular. Deixavam-me fazê-lo sem entraves, mas as pesso.;-
pouco liam os nossos cartazes,
Tudo isto teve p o r desfecho um a história hcarrível. Já falei do Consellv
C om unal do v bairro: não se confundia com a secção do Partido do
em bora alguns m ilitantes fizessem parte das duas organizações. Ora, um di.
em ejue Hélène tinha ido buscar cartazes à rue des Pç ramides, foi reconhecid.
por um ex-responsável das Juventudes Com unistas de Lyon, cjue a denuncio,
im ediatam ente com o provocadora bem conhecida pelo nom e de Sabine. F .
m áquina repressiva do Conselho Com unal pôs-se em m ovim ento, apesar dc
um apelo a Yves Farge, que se m anteve em silêncio, quando um gesto seu teri.
sido suficiente.
Para se com preender o caso, é necessário evidentem ente recuar no tempí
Flélène, que fora uma das poucas a não pôr em causa o pacto germ ano-sor ic
tico. que m ilitara nos anos trinta no xv bairro ao lado de Michels, Timbaud ^
outros de cpiem gostara muito, vira-se, com o a m uitos aconteceu, sem con
tacto com o Partido em 1939. Nem p o r isso deixara de m ilitar num a organiz..
çáo não-com unista da Resistência, continuando a tentar entrar em contact
com o Partido, mas cm vão. Todavia conhecera m uito bem Aragon e Eis.;
356
o V F A c r o S
liem com o Éluarcl e alguns outros com unistas da Resistência, mas que se
cncontrac am tam bém sem contactos com o Partido. Iodos esses amigos e m ui
tos outros se encontravam nos Cahiers du Sud. em casa de jea n e Marcou Bal-
iard. Foi na setiuência de um a história idiota, conhecida pelo nom e de «meias
da Elsa», que Aragon rom peu com Hélène. Ele queria uma certa cor de meias,
c Hélène não as conseguira arranjar dessa cor. Do m esm o m odo ou tiuase.
I.acan, cjue ela tinha conhecido em .\ice, rom pera com Hélène po r ela não ter
^onseguido descobrir para a m ulher dele. judia, a casa de refúgio de que ela
precisava. O certo é tjue a ruptura com os Aragon ganhou um aspecto m uito
arave, cjuando Hélène. tendo na altura da libertação de Lyon im portantes res
ponsabilidades, e estando em jogo a sorte jurídica de prisioneiros nazis e de
..olaboracionistas franceses, se tornou alvo de um violento atacjue conduzido
oelo cardeal G erlier e toda a com panhia dos colaboracionistas locais, com
Fferliet à cabeça. Foi acusada de crim es imaginários, de ter protegido crim ino-
'os de guerra, que na realidade queria m anter vivos para deles extrair informa-
LÕes preciosas ou para os trocar por resistentes presos em M ontluc (com o o
padre Larue, que m orreria sob as balas alemãs na véspera da libertação da
cidade). Efectivamente, usava nessa altura o pseudetnimo de Sabine, e tam bém
um outro pseudônim o . Legotien. Tinha em resum o três nom es, o que lhe foi
«ensurado com o um sinal suspeito. Daí a actisarem-na de ser agente da Ges-
:apo, era um passo ejue os acusadores do Conselho Com unal não hesitaram em
dar. Aragon acusara-a de facto, ainda em Lyon, de pertencer ao Intelligence
'ervice.
Foi nestas condições que tive de assistir às sessões do Conselho. Hélène
um vão invocou o testem unho de resistentes que a conheciam m uito bem e
ju e estavam ao corrente da sua acção em Lyon. isso de nada serviu. Foi acu-
'.icla de todos os crim es, e de os ter escondido. Entre os m em bros do Conse-
hü, houve alguns hom ens ejue se calaram, dignam ente, inseguros quanto ao
uízo a proferir. Mas não se opuseram em bloco aos outros, que tinham o
poder de condenar,
Hélène foi portanto excluída do Conselho Com unal nestas condições infa-
niantes. Os m em bros do Partido entenderam -se entre si. Lembro-me que a
arande preocupação dos m em bros da m inha célula bem com o dos Desanti.
l o f / V .1 í 7 H r 5 5 E R
era «salvar Althusser». Fizeram pressão sobre mim não sei bem com cjue objc^
tivo, mas eu não lhes prestei qualquer atenção.
Hélène e eu fomos para Cassis, para nos afastarm os um pouco desta hisn
ria horrível. Era literalm ente alucinante verm os o mar, impassível, continuar .
despejar as suas ondas na praia, debaixo de um sol im placável. Recompuse
m o-nos, nem eu sei bem como, e quinze dias mais tarde retom avam os o cam;
nho de Paris.
Foi a v'ez de entrar em cena o Partido. Gaston Auguet convocou long..
m ente Hélène, e repetiu todos os argum entos da acusação. Foi buscar históri. '
sinistras de um certo Gayman, expulso do Partido, e que p o r isso não pod;.
testem unhar, mas que saberia a verdade sobre a pertença ou não de Hélène
Partido em 1939, na altura do pacto. Imposssível p o r conseguinte saber-se
Hélène era ainda ou não m em bro do Partido. Auguet deixou-a com esta ir
form ação, dizendo-lhe que podia recorrer. Mas ao m esm o tem po inform ou-m .
de que eu era obrigado a separar-m e im ediatam ente de Hélène. Eu não nv
separei.
Esta história m edonha, que me precipitou de novo na doença (por poui
não me suicidei nes.sa altura), juntam ente com o suicídio do m eu prim cir
secretário de célula, abriu-me os olhos para a triste realidade das práticas es:.;
linistas no Partido francês. Eu não tinha então a serenidade de Hélène qu;
segura de si, não se deixou afectar, considerando que o caso lhe dizia respci:
a ela, ao passo que eu o sentia com o um a prova pessoal atroz. Fosse cor.
fosse tudo isto pôs fim a algumas das nossas relações. Tiv^emos, com o aconu
ceu a todos os expulsos, que viver num a solidão quase com pleta, pois o P.o
tido não nos dat a tréguas nem deixava as coisas a meio. Desanti vincou as s u .-
distâncias, com o bom amigo de Casanova que era, em bora guardando p '
mim um a espécie de amizade. Os m eus camaradas de célula, com Le R
Ladurie à cabeça, faziam com o se não me conhecessem . Ficava-me a ma: -
parte dos que preparavam a sua agregação, e alguns cam aradas corajo> -
com o Lucien Sève, sem pre fiel, e Michel Verret, que com preendia. Mas er.r
raríssimos, e foi uma v'erdadeira travessia do deserto.
Apesar de tudo continuei a trabalhar por m im , e pouco a pouco conscg
escrever alguns artigos. Militava então na Associação dos Professores .
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o ,v F A C I O S
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L O l I S A L r H l V ,V H R
360
o V / I c / o s
a alma pura do papa. Sob a sua aparência exterior ele borguinhão am ante do
tinto, era um hom em de grande ingenuidade e de uma generosidade profunda,
com laivos de utopia, com o veremos. Com efeito, em mim interessou-se pelo
m em bro do Partido Com unista Francês e expIicou-m e dem oradam ente que
tinha o desejo de reconciliar a Igreja Católica com a Igreja O rtodoxa. Precisava
de interm ediários para conseguir de Brejnet as base' de um acordo unitário,
\ â o escondia t) seu jogo. Eu objectei com tts dificuldades ideológicas e p o líti
cas de sem elhante iniciatir a. com a situação de M indszemt. por quem ele pro
fessava um desprezo com pleto (está m uito bem onde esta; pode lá fic.in. e
muito sim plesm ente tam bém com a tensão internacional e com o anticom u
nism o reinante na Igreja. F.lc declarou-m e que se encarregaria pessoalm em e
desse últim o aspecto se os com unistas estivessem dispostos a um pequeno
gesto. F,m vão lhe rctorqui que esse gesto era m uito difícil de conseguir, que
nem m esm o o Partido italiano o faria, t|ue o Partido francês estava ainda pior
colocado para isso, e ele por pouco não me descom pós, dizendo-m e que a
Igreja de França era galicana e que isso dev ia pelo m enos servir jvara alguma
coisa, que a aliança franco-russa era uma antiga tradição, etc. Deixei-o deso
lado com a m inha im potência, sem conseguir convencê-lo de que era apenas
eu quem ali estava. Voltei a vê-lo em duas ocasiões, sem pre com a m esm a reso
lução e sem pre igualm ente irritado por este problem a que levava a peito.
Fmeontrei-me com De Gaulle em condiçêtes espantosas, pois não o c o n h e
cia pessoalm ente, Foi num a rua do vu bairro. Um hom em alto que tinha na
boca um cigarro pendente pediu-m e lume. Eu dei-lho. Ele perguntou-m e sem
mais aquelas-, quem ê vttcê? o que é que faz? Eu resjvondi-lhe: ensino na École
Xormale. F. ele: o sal da terra. Eu: do mar. a terra não é salgada. Q uererá dizer
que é lübrica? Não: c suja. ' Ele resjaondeu-me: vocabulário não lhe falta. Eu:
c o m eu trabalho. Ele: os militares não o têm tão rico. Eu: o que é que o
senhor faz? Ele.- sou o general De Gaulle. E de facto era. Oito dias mais tarde
o PBX da Ecole. desvairado, transm itia-m e uma cham ada da Presidência da
República, convidando-m e para jantar. De Gaulle fez-me perguntas atrás de per
guntas, sobre m im , sobre a m inha v ida, o meu cativeiro, a pttlítica, o Partido
' ,|()go de palavras intraduzível entve sei (sab, salace d ú b rico i c sale (sujo). ( V. da T.)
b61
L O I I S A L T U r S S /:’ R
Com unista, mas sem me dizer uma palavra que fosse sobre a sua pessoa, Trc-
horas. Depois despedi-m e. Voltei a vê-lo durante a sua travessia do deserto.
dessa vez foi ele a falar. Disse-me tudo o ejue se sabe que ele dizia: o pior p o '
sível dos militares, m uito bem de Estaline e de Thorez (hom ens de Estado
m uito mal da burguesia francesa (não tem estofo para produzir hom ens
Estado, com o o dem onstra o facto de ser obrigada a dirigir-se aos militarc-
que, apesar de tudo, teriam mais que fazer). Também ele estava preocupad
com o Partido Com unista: «Acha que eles são capazes de perceber que eu so.
o único a p o d e r m anter a América em respeito? e a instalar em França um.
coisa parecida com o socialism o de que eles falam? Todas as nacionalizaçõc-
que quiserem , e m inistros com unistas, claro, eu não sou com o os socialist. -
que correram com eles p o r ordem dos am ericanos. A Rússia? Eu trato dis«
A grande questão é o Terceiro Mundo, já dei a liberdade a quase todos os terr
tórios. falta a Argélia, vai ver que a puta da burguesia francesa me há-de cf .
m ar quando as coisas lhe com eçarem a correr mal, Guy Mollet é o seu home
de serviço, mas não passa de um incapaz, e Lacoste é p ior ainda. Estou so/
nho? Sim. sem pre o estive, mas com o escreveu Maquiavel. é sem pre preço
estar-se sozinho quando se com eça uma coisa grande, mas o povo francc' .
gaullista, e eu tenho alguns amigos fiéis, veja o Debré, veja o Buis, dei-lhes u
pedaço mais de céu.» Q uando leio as descrições de Malraux, que explor,;
fundo algumas frases dt) grande hom em e as tem pera à sua m oda, penso nco:
afirm ações simples, na sua grandeza e na sua rigidez: o arame do funâm bic
Era um equilibrista político de gênio. Muito duro a respeito dos cam pone/c-
só pensam nos im postos, e aliás o fisco p o u p a -o s; e acerca da Igreja: põem -
a balir para dom esticar o lobo, não sabem que é preciso ser-se mais lobo .
c|ue o lobo; mas respeitava certos católicos com o M andouze: esses saber,
que é estar sozinho. Extraí daqui a lição de que uma certa solidão é por \ c,
necessária quando nos querem os fazer ouvir.
Eu conhecia a solidão através das clínicas psiquiátricas onde passa\ a re_
larm ente as m inhas tem poradas. Conhecia-a também nos raríssim os m om er:
em que, saindo das depressões, voltara à tona, e, im pelido não sei por .
vaga, subia mais alto do que eu. num a espécie de exaltação em que tud
tornava fácil para mim. em ciue conseguia inevitavelm ente uma n o ra rap.;: _
362
o V /■ .1 ('. / o s
que SC convertia na m ulher da m inha vida. a quem ler axa às cincx) da manlrã
os prim eiros crttissants quentes de Paris, juntam ente com as groselhas da Pri
mavera (porque curiosam ente, quando eu voltava à tona, era sem pre Maio ou
Junho, com o mc fazia notar m aliciosam ente o m eu analista, nem todos os
meses são iguais, os das férias são um bocadinho diferentes, e sobretudo os de
vésperas de ferias). Nessas alturas inxentava toda a espécie de loucuras, que
faziam trem er Hélène, porque ela assistia sem pre da prim eira fila ao m eu furor,
e inquietavam tam bém os m eus amigos, apesar de estes estarem habituados às
m inhas fantasias incontroláx eis.
Tinha um fraquinho pelas facas de cozinha ejue enferrujam , roubei uma
quantidade delas num arm azém , e le\ei-as no dia seguinte outra \ ez para lá.
pretextando que não me conx inham . para as recender ã mesm a em pregada
espantada. Decidi tam bém roubar um subm arino nuclear, caso que foi natural
m ente abafado pela im prensa. Telefonei ao com andante de um dos nossos sub
m arinos nucleares de Brest, fingindo ser o m inistro da .Marinha, para lhe
anunciar uma im portante jrromoção, e lhe dizer que o seu sucessor ia apresen-
tar-se-lhe im ediatam ente, para o substituir no m esm o instante. Efectixamente
apareceu um oficial fardado, trocou com o ex-com andante a docum entação
regulamentar, assumiu o com ando, e o outro foi-se em bora. O segundo reuniu
então a tripulação e com unicou-lhe que, para com em orar a prom oção do seu
ex-com andante, lhes concedia oito dias de licença extra. A sua arenga foi sau
dada por e ivas. Toda a gente desceu de bordo, excepto o m estre-cuca que
quase ia fazendo ir tudo por água abaixo a pretexto de uma ratataoiiiU c que
tinha a apurar a lume brando. Mas até ele acabou p o r partir, tirei o m eu boné
de circunstância, e telefonei a um gangster cjue precisara de um subm arino
nuclear para fazer chantagem com reféns internacionais, ou com Brejncv. a
dizer-lhe que podia levantar a encom enda. Foi nest.i m esm a época que fiz o
célebre assalto sem sangtie à Banque de Paris et des Pays Bas para ganhar uma
aposta com o meu amigo e ex-condiscípulo lherre .Moussa. que o dirigia.
Reservei unt cofre no banco, fiz-me acojnpanhar até lá. abri-o e m eti-lhe
dentro ostensivam ente um núm enr consicieráxel de notas falsas (para dizer
a verdade bastavam alguns pacotes com a form a das notas de quinhentos
francos) diante dtj guarda do cofre. Fui então ter com Moussa e disse-lhe
36,^
L O V / .V ,1 A r U V S S E R
que queria fazer uma declaração sob palavra de lK)nra acerca do valor do nu
depósito: um bilião de francos novos. Moussa, que sabia das m inhas relaçõ.
com Moscovo, não pestanejou. No dia seguinte, voltei ao banco, pedi que ir
abrissem o cofre, e verifiquei com estupefacção que estava compIetameiT
vazio: gangsters habilíssimos, abrindo todas as portas, tinham no visita^,
durante a noite. O mais extraordinário era cjue de\ iam estar a par do m ontan
do depósito que estava no m eu cofre, pois não tinham assaltado outros cofin
(assaltado, é com o quem diz, um a vez que tinham as chaves). () guarda, o ;
vocado, confirm ou tam bém que o cofre, que vira cheio na céspera, est,;
vazio. Moussa igualmente, fazendo com que a Lloyds pagasse no espaço -
oito dias. Mas Moussa não se deixara levar. Pediu-me uma pequena contrib:.
ção jaara a caixa de solidariedade dos antigos directores de bancos, e par.;
associação dos antigets alunos da Ecole Normale. As contribuições em car,-
ficaram registadas nos anuários das duas associações. Devo dizer que o pr,
feito da polícia do tem po te\e uma atitude m uito correcta: é assim, as b-
m aneiras fazem parte da Alta Administração. Pus ao corrente da história o in.
pai, t]Lie riu baixinho: conhecia bem Moussa, que fora um dia visitá-lo a .M.
roct)s para lhe explicar a situação local. O meu pai ouvira-o sem dizer pahn.^
e apertara no fim a m ão de Moussa transm itindo-lhe alguns endereços que b
perm itiríam encontrar belas finlandesas (Moussa tinha então um fraco po r c "
gênero de m iúdas) e bourbon repescado do fundo do mar. Rctubei muK
outras coisas, incluindo uma avó e um sargento de cavalaria na reserva, n
não é aqui lugar para falar disso, pois acabaria p o r arranjar com plicações o
o Vaticano, uma vez que o sargento pertencera ã Guarda Suíça. Eu tinha b>
relações com o Vaticano, tendo tido a honra de ser recebido (entre cent-
nocenta c dois outros estudantes parisienses, levados a Roma pelo padre Ch
ies em 19-tó) por Pio XII, que me pareceu sofrer do fígado, mas era m uito car
364
o V /' 1 c I O s
Não conheci nem João XXIII, esse hom em fabuloso, que era com o o cônego
Kir mas em santo, nem Paulo VI, essa \elh o ta inquieta sem pre de um lado para
o outro e que só tem um sonho na sua vida: encontrar-se com Brcjncc', Mas
Jean G uitton conhecia-os p o r mim. um a vez que os livros dele eram as suas
obras de cabeceira, ejue eles trocavam correspondência com ele. e toi assim
que m e m antive ao corrente dos casos do dia a dia do Miticano c tjue ptide
preparar o golpe do sargenttt suíço que, um a vez regressado ao estado ci\ il.
queria ir ter com a bem -am ada aos Grisons,
Naturalm ente este \e n to de loucura, durante o ciual me apaixonei ainda
por um a arm ênia c|ue vic ia em Paris, bela com o um pano cru. com cabelos de
um a cor diferente e olhos ejue vogavam docem ente na noite, não se prolongoti
por m uito tempo. Voltei a uma das m inhas casas de saúde. Tinha feito alguns
progressos desde o Esciuirol. Fui para Soisy, onde não davam electrochoques.
mas se faziam curas de sono fictícias, tiue me davam a im pressão de m e curar.
Recolhi em Soisy uma experiência algo surpreendente, que deveria abrir cam i
nho à antipsiquiatria. Toda a gente, excepto os m édicos e o porteiro, se reunia
num a grande sala cheia de cadeiras: os doentes, os enferm eiros, as enferm ei
ras, etc. E toda a gente se olhaca antes de se calar. O cjue duraca horas, (ãra um
doente se levantava para ir mijar, ora outro acendia um cigarro, ora uma enfer
m eira tinha um a crise de choro, e quando acabavamos de conversar, toda a
gente ia ou comer, ou deitar-se po r causa da cura de sono. Sempre tive uma
extrem a adm iração pekts m édicos: arranjavam sem pre m aneira de não apare
cer, não conseguíam os sequer vê-los em particular, sustentavam que a sua
ausência fazia parte do trabalho, o que os não im pedia de estarem ocupadíssi-
mos a tratar fora do hospital um a outra clientela priwtda que precisava dos
seus cuidados: ou então faziam a corte às enferm eiras com quem casavam,
quando não lhes faziam filhos. A que ponto podiam ser perigosas as curas de
sono, eontrariam ente a uma opinião geralm ente aceite que não leva em conta
o sonam bulism o, foi algo de que me convertei através de um incidente que me
sucedeu em pleno Int erno, quando o solo da região estar a coberto p o r uma
cam ada de vinte centím etros de n e \e endurecida. Fui encontrado p o r \o lta
das três horas da m anhã, com pletam ente nu no m eio da neve, a duzentos
m etros do meu pavilhão, e ferira o pé num a pedra. As enferm eiras tireram
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L O I I S .1 L r H r S V E R
maldição, e o receio aterrador de ser uma madrasta, coisa que não é de m.;
neira nenhum a, sendo pelo contrário de um a sim patia m aravilhosa para con
as pessoas, com quem às vezes se m ostra hrtisca, é certo, mas sem maldade
quando lhe falam dem asiado cedo de m anhã durante o seu peqtieno-alm oci
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cam inho às negociações de Grenelle com Pom pidou frente a Frachon e Séguy
e às eleições que lhe dariam , a seguir à m anifestação dos Champs-Élysées, uma
m aioria inencontrável.
O m ovim ento de Maio, em que os operários em greve e os estudantes
revoltados se tinham m om entaneam ente cruzado (no dia 13 no grande cortejo
que atravessou Paris), extinguiu-se pouco a pouco. Os operários, uma vez satis
feitas as suas reivindicações essenciais em Grenelle, retom aram pouco a
pouco, p o r vezes com relutância, o seu trabalho. Os estudantes dem oraram
mais tem po a aceitar a derrota: mas acabaram, com a evacuação do O déon e
da Sorbonne, p o r baixar os braços. Era um grande sonho cpie abortav a. Toda
via não desapareceu das m em órias. Conservou-se, conservar-se-á por muito
tem po a recordação desse mès de Maio, em que toda a gente estava na rua.
onde reinava uma verdadeira fraternidade, onde qualquer pessoa podia falar
com t]ualquer pessoa, com o se se conhecessem desde sempre, onde tudo se
tornara de súbito natural, onde todos pensavam que «a im aginação estava no
potler» e que p o r baixo das pedras da calçada havia a suavidade das praias
Depois de Maio, o mov im ento estudantil assumiu a form a de seitas, ou de
3-O
o V f .1 (. I (> s
antes de publicar as suas conversas com Sartre que o tom ara com o secretário
particular.
O verdadeiro esquerdism o. o esquerdisnu; operário, anarco-sindicalista e
populista, refugiou-se noutros lugares: num a parte do Fsp na CFDT. Mas
esta era um a \'erdade ejue os estudantes france^c' não queriam reconheer: há
dois esejuerdismos, um m uito amigt). o e-querdism o operário, e outro muito
recente, o esquerdism o estudantil, e encjuanto o prim eiro que faz parte do
m ovim ento operário tem possibilidades de futuro, o segundo não pode, se
gundo os seus princípios, deixar de afastar-se do m ovim ento operário. A situa
ção é diferente em Itália e em Espanha, por razões históricas, pois ejue aí po d e
m os ver, ;i esquerda d(t Partido Com unista, form ações políticas com uma base
não apenas estudantil mas tam bém operária, o que é actualm ente impossível
e im pensát el em França, com o bem sabe a direcção do Partido francês tendo
dado p ro \as disso m esm o com a sua táctica em Maio de 68 e posteriorm ente.
Bastou-lhe fechar-se na sua «fortaleza operária», a C(>T e o Partido, para que se
decom pusesse por si, apesar das im precações, o esquerdism o estudantil,
m aoísta ou não maoísta.
Devo falar aqui de uma iniciatic a que tom ám os em grupo na Primavera de
1967: fundar um grupo de trabalho a que dem os o nome, transirarentc, de ,Spi-
noza, A m aior parte dos meus amigos participaram , m em bros do Partido ou
não. Foi um a experiência interessante porcjue profética. Estávamos na altura
convencidos de que as coisas se desencadeariam na fnixersidade, O resultado
seria um livro, assinado apenas por Baudelot e Fstablet po r razões de dix ergên-
cia política, sobre A Escola C apitalista em Eya)iça. E um outro grande traba
lho de Bettelheim sobre as lutas de classes na l RSS.
Em preendêram os também um estudo das relações de luta de classes em
França mas que, po r falta de meios e de tempo, não põde ser concluído.
O grupo acabou po r se d isso h e r por si (em consequência de uma das minhas
depressões e da conjuntura, e da saída de Alain Badiou. um dos nossos mais
brilhantes colaboradores, que decidiu que era necessário preparar a reunifica
ção dos grupos maoístas em França a fim de renovar o Partido). Badiou
publica actualm ente na M aspero uns fascículos interessantes, onde descobri
m os curiosam ente a fiktsofia sartriana da revolta que ele nunca renegou, ao
, á '’ l
/, o /_■ I s A L r n r s s i: k
burguesas, Esta últim a determ inação era evidentem ente de longe a mais im p o r
tante. Portanto era preciso pensar e aceitar a natureza ideolétgica de ciasse d>
substrato da teoria burguesa da econom ia política, Mas era preciso ao mesm.
tem po aceitar reconhecer cjue esta form ação da ideologia burguesa se apresen
tara sttb a forma de um a teoria, abstracta, rigorosa e até, em certo sentid-
o ,s / .1 C 7 O s
form al, científica. Foi assim que Marx tratou o pensam ento de Ricardo, e
m esm o de Smith, na ilusão de que essas teorias tinham podido ser científicas
porque a luta de classes conhecera um período de trcy u a' em Inglaterra ísíc t.
tese tiue toda a obra de Marx desmente, F ne-ta ikoão que hoje se me afigura
indispensável procurar, no próprio Marx, e não ap en a' nas o h ra' de jtoxmtude
mas em O C apital, a origem de num erosos m al-entendidos, que lecarana a
um a má interpretação do m arxism o, ou ã sua falsificação \ oluntária. 'Iodaria
a ideia simples segundo a qual. se Marx fundou de tacto uma ciência, essa
ciência, com o qualcpter ciência, dererá ser. senão revista, pelo m enos reto
m ada, os seus princípios m elhor fundam entados e as suas conclusões tornadas
mais precisas, pode ser fecunda. O resultado será uma enorm e sim plificação
de um a obra acerca da qual .Marx pensou, na m esm a ilusão, que o seu
«começo» seria «árduo», ettmo em qualquer ciência, o que é falso; uma revisão
da 1.‘* secção do Lir ro I do C apita! para que chamei a atenção há vários anos,
e sobretudo a distinção cuidados entre o que Marx escreveu em O C ap ita i e
nos seus rascunhos de leitura, com o as «'lêorias da mais-valia», onde muitas
\ezes se contenta com copiar pura e sim plesm ente os textos de Smith sobre o
trabalhador produtivo, por exempk), teoria, distinta da do trabalho produtivo,
que desaparece do C apitai. Haveria po r certo m uito mais coisas a dizer, e eu
tentarei dizê-las, acerca de todos estes mal-entenditU)s cuidadosam ente alim en
tados po r gente dem asiado interessada na falsificação da obra de Marx.
Contentar-m e-ei de m om ento com algumas palavras sobre a questão da
filosofia m arxista. Depois de ter durante m uito tem po pensado que ela existia,
mas que Marx não tivera tem po para a formular, ou depois que não tivera os
m eios necessários para iss(t. depois cie ter pensado durante m uito tem po que
bem vistas as coisas, e apesar de .Materi^ilismo e E»!pirocritici.c?>/o. tam bém
Lenine não tivera tem po ou. mais tarde, os meios necessários para a sua for
mulação, cheguei com dificuldade a uma ideia dupla, Primeiro, contraria
m ente ao que eu julgara e afirmara. Marx não descobrira uma filosofia nova,
no estilo da sua descoberta das leis da luta de classes — mas adoptara uma
nova posição em filosofia, portanto num a realidade (a filosofia) que existia
antes dele e que continua a existir depois dele. Em seguida, esta posição nova
ligava-se em iiltima instância à sua posição teórica de classe. .Mas se esta últim a
3^3
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proposição fosse verdadeira, implicava que toda a filosofia (pelo m enos toda
a grande filosofia, e talvez até as peciuenas) era determ inada em últim a análise
pela sua posição de classe, e portanto a filosofia, tom ada no seu conjunto, não
passava, em últim a instância, de «luta de classes na teoria», luta de classes c o n
tinuada. com o Engels bem vira. no interior da teoria. Naturalmente, esta tese
colocava problem as temíveis, não só no cjue diz respeito aos inícios da filoso
fia, mas cjuanto às formas desta luta de classes, e t|uanto às relações evidentes
entre a filosofia e as ciências. Portanto era necessário reconhecer que a filoso
fia não é exclusiva dos filósofos de profissão, não é a sua propriedade privada,
mas p rópria de qualquer hom em («todo o hom em é filósofo», Gramsci). C on
tudo era preciso reconhecer à filosofia dos filósofos uma form a particular, a
da abstracção sistem ática e rigorosa, diferentem ente das ideologias (religiosa,
moral, etc.), e reconhecer tjue no lab o ra tó rio da filo s o fia dos filó so fo s
alguma coisa se elabora que não é coisa nenhum a, mas tem efeitos no dom ínio
das ideologias cjuc são a parada seguinte das lutas de classes filosóficas. Que
poderia ser esse qualquer coisa que se elabora assim no laboratório da filosofia
dos filósofos •' Durante m uito tem po pensei que se tratava de um a e.spécie de
com prom isso, de «remendo», destinado a reparar no tecido filosófico os estra
gos feittts pela irrupção das ciências (acarretando os cortes epistem ológicos
rupturas filosóficas) na unidade filosófica anterior. Mas dei-m e conta de c)ue as
coisas eram m enos m ecânicas, e de que a filosofia tinha, com o toda a história
testem unha, uma relação com o Estado, com o poder do aparelho de Estado,
m uito precisam ente com a constituição, quer dizer, com a unificação, a siste-
m atização da ideologia dom inante, peça m estra da hegem tm ia ideológica da
classe no poder. Re\elou-se-m e então que a filosofia dos filósofos assumia o
papel de contribuir para unificar com o ideologia dom inante, tanto para uso da
classe dom inante com o para uso da classe dom inada, os elem entos co n tra d itó
rios de ideologia que toda a ciasse dttm inante descobre ao chegar ao poder
diante dela, ou contra ela.
A p artir desta perspectiva, as coisas tornavam -se relativam ente ciaras, ou
pelo m enos inteligíveis. C om preendia-se que todo o hom em fosse filósofo
uma vez ejue vi\ ia sob um a ideologia im pregnada de consequências filosófi
cas. efeito do trabalho filosófico de unificação da ideologia em idectlogia
3-4
o s /■ .1 ( I o s
dom inante. C om preendia-se também que fosse necessário à classe dom inante
que existissem filósofos profissionais, trabalhando em e ista dessa unificação.
C om preendia-se finalm ente que houvesse categorias filosófica' cm acção na
prática científica, um a vez que nenhum a ciência do m undo sc d c se n \o h e ,
nem a p rópria m atem ática, fora quer das ideologia' reinantes, quer da luta
filosófica, que tem com o alvo a constituição da ideologia domin.ante em ideo
logia unificada. As coisas antes obser\aida' ordenar am -'e a " im . c começár^a-
m os a entender o singular silencio de Marx e de Lenine, com o os fracassos dos
filósofos (com o Lukács) que cm ralo harãam tentado c o n 'titu ir uma filosofia
m arxista, ou por m aioria de razão d aq u ele' que tinham degradado icom o fista-
line e os seus émulos) a filosofia em simples ideologia de justificação pragm á
tica. Marx e Lenine tinham podido calar-se a respeito da filosofia, uma rez que
lhes bastar a adoptarem uma posição de classe proletária para tratarem em c o n
form idade as categorias filosóficas de que precisaram , quer para a ciência da
luta de classes (o m aterialism o histórico), quer para a prática política. O que
não quer naturalm ente dizer que não seja necessáritt aprofundar a elaboração
dos efeitos filosóficos dessa posição de classe proletária, mas a tarefa assumia
agora um aspecto com pletam ente diferente: nàt) se tratava de fabricar uma
n o ra filosofia na form a clássica da filosofia, mas de remodelar, a partir das
novas posições, as categorias existentes, e que existem em toda a história da
filosofia. As palavras de Marx em A Ideologia A lem ã , a filosofia não tem his
tória. ganhar a então um sentido inteiram ente novo, inesperado, uma r ez que
é em toda a história da filosofia que se repete a mesm a luta, aquilo a que eu
üutrora chamar a ainda o m esm o traçado de dem arcação, o m esm o «r azio de
um a distancia assumida». E então podíam os partir em busca, em toda a h istó
ria da filosofia, dos m elhores traçados, que não são forçosam ente os de data
mais recente. Então podíam os atribuir um sentido m aterialista ã r elha intuição
espiritualista de p h ilo so p b ia pereiinis. com a diferença de que para nós a
«eternidade» em causa não passara da repetição da luta de classes. Não, a filo
sofia não é, com o pretendia ainda o jovem .Marx. neste ponto discípulo fiel de
Hegel, a «consciência de si de um a época histórica», é o lugar de um a luta de
classes que se repete e que só atinge as suas formas mais aproxim adas em cer
tos m om entos da história, em certos pensadores: para nós, antes do mais.
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mas está quase term inado hoje, e posso falar um pouco do assunto. Redescobri
por mim aquilo que Freud descret e nos seus li\ ros, a existência dos fantasmas
inconscientes, a sua extrem a pobreza de princípio, c a extrem a dificuldade em
negociar o seu apagam ento progressito. Tudo se passar a cm rosto a rosto, e
para aum entar as dificuldades, o m esm o hom em js.issou a receber também
Hélène, mas m uito mais tarde, e som ente uma \ez por semana, durante meia
hora. H ouve episódios dram áticos, umas quinze depressões, e tam bém
m om entos pouco duradouros de exaltação maní.íca em que eu fazia tudo e
mais alguma coisa. Punha-m e por exem plo a roubar, não para possuir, mas ã
laia de dem onstração.
De \'0 dizer aqui algumas pala\ ras sobre a m inha análise. Pertença.) a uma
geração, ou pelo m enos a uma cam ada social, que não sabia que a análise exis
tia, e que podia curar as neuroses e ;ité psicoses. Entre lh a s e hoje. muitas coi
sas a este respeito m udaram em França. Já disse com o entrei em contacto com
um m édico que trataea por m eio de narcose. e com o uma amiga m uito querida
m e convenceu um dia a ir consultar D. «que tem costas suficientem ente largas
para ti». De facto, tinha que ter as costas largas para me ajudar a arranjar uma
saída, um a \ ez que as coisas se prolongaram por quinze anos: de depressões,
quer dizer, na realidade de resistências. Nada é tão simples com o os elem entos
inconscientes a partir dos quais o analista trabalha, mas nada é tão com plicado
com o as suas com binações individuais. Com o um amigo me disse um dia. o
inconsciente é com o o tricô, com a mesm a lã os pontos podem \a ria r até ao
infinito. Q uanto a mim, o que em breve emergiu foram, com o sempre, fantas-
m as-encobridores, e principalm ente o duplo tema do artifício, e do pai do pai.
Tinha a im pressão de só por im postura ter conseguido fazer tutk) o que conse
guira fazer na \ ida: antes do mais os meus êxitos escolares, um a vez que
copiara provas, e inventara citações para ter sucesso. E com o sõ seguia os meus
m estres para lhes dem onstrar que era m elhor do que eles. a im postura e a \’ité)-
ria assim conseguida eram uma só e a mesm a coisa. Remoí longam ente estes
temas, quando outros apareceram . Antes de tudo o m edo do sexo feminino,
abism o onde m e podia perder sem regresso, o m edo das m ulheres, o m edo da
mãe, essa mãe que não parava de gem er por causa da sua \ ida, e que sem pre
tivera na cabeça um hom em puro ao qual se confiar a — o n o iro m orto durante
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