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N esta m esm a colecçao

JORGH AM AD O
C onversas com A lice R a illa rd
I /6 dc \(tiv ii/h m de I9SO. o unindo eslremeeen:
l.onis .Mlhnsser. o célehiv lihisofo iiinrxisln. o uiesire
inconlesindo de Ioda ninn '^ernçdo de inleleeliuiis
e íielirisins /lolílieos. es/rnn_í>nlnrn a snn jim lirin innlher.
Ilelene. nincndo de ninn crise de deiiiêncin. \ n o honre
processo, item condenação: considerado iniiupnldrel.
encerrado nnin hospício psirpiidlrico. ahalen-.se sohre ele
niiia pesada cortina de silêncio. Pnlrelanlo. com a crise
do m arxism o, os sens Urros, (pie tin h a m sido rerdadeiros
hreridrios. transform aram -se em peças de m nsen.
O nando Althn.s.ser morren. em O ntnhro de IhdO. jd ha
m nito tinha m orrido na m em ória das piuites (' do tempo.
,SVi (pie então .se de.scohre (/ne. d u ra n te e.s.ses í /c : <tiios.
.Mthn.s.ser não ce.s.sara de rejlectir. de pensar, de escretvr.
/ ipie no meio do .sen espólio, d a ctilo p ra fid o p o r ele.
pronto para pnhiicação. lutt ia um d o cum ento trópico e
extraordinário em <pie o f 'iloso/ó. com o tpie respondendo
no proce.sso ipie não tere. explicara o .sen crim e e
m erpnlhara nas raízes m ais fniidíts da sna demêncict: este
( ) ruuiro é M liíIo Tniipo,
/;' esta extraordinária e d ram ática con/i.s.sáo /lóstiinut de
.Mthn.s.ser — a cpie se ju n ta na juvsente edição n m ontro
eshoço antohioprálico inédito. O s IsiU o s, redipido em
I9M ) — . (pie as lidtçéies . l.S. l se orpnlham de apora
aju e.sentar (to leitor jiortiipnês. fioncos me.se.s de/xiis do
retnm hante sucesso ohtido pela edição oripinal francesa.
LOUIS ALTHUSSER
O FUTURO É MUITO TEMPO
SEGUIDO DE

OS FACTOS
ED IÇ Ã O O RG ANIZAD A E APRESENTADA POR

OLIVJER CORPET E YANN MOULIER BOUTANG


TRAD U Ç ÃO

MIGUEL SERRAS PEREIRA

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ín d ic e

A presentação. 9

O FLJTURO É MUITO TEMPO 19

OS FACTOS 301
APRESENTAÇÃO

ouis A lthusser m orreu a 22 cie O utubro de 1990. Os dois textos autobio­


L gráficos publicados neste volume foram descobertos, cuidadosamente guar­
dados nos seus arquivos, quando estes últim os nos foram confiados, em Julho
de 1991, no Institut M émoires de 1’Edition C ontem poraine (IMEC), juntam ente
com a missão de garantirm os a valorização científica e editorial do fundo.
Dez anos separam a redacção dos dois textos. Dez anos a m eio dos quais,
no dia 16 de Novem bro de 1980, o destino de Louis Althusser soçobra no
im pensável e no trágico com o assassinato de sua mulher, Hélène, no seu apar­
tam ento da École Norm ale Supérieure, na rue dTJlm , em Paris.
A leitura destas duas autobiografias — cuja existência, sobretudo no
tocante a O F uturo é M uito Tempo, se tornara quase um m ito — levou Fran-
çois B oddaert, sobrinho de Louis Althusser, e seu único herdeiro, a decidir a
sua publicação com o prim eiro volum e da edição póstum a de num erosos iné­
ditos descobertos no Fundo Althusser. A edição com preenderá, além desses
textos, o seu J o u r n a l de c a p tiv ité {D iário de C ativeiro) escrito p o r altura do
internam ento do Autor num stalag na Alem anha entre 1940 e 1945, depois um
volum e de obras mais estritam ente filosóficas, e p o r fim um conjunto de tex­
tos diversos (políticos, literários...) e de correspondência.
Para preparar esta edição, recolhem os vários testem unhos, p o r vezes
divergentes, de amigos de Louis Althusser que num m om ento ou noutro
conheceram ou se cruzaram com a história destes m anuscritos, tendo-os
alguns deles lido, na totalidade ou em parte, num a fase ou noutra da respectiva

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L O I I S A L T U [’ S S E R

redacção. Reunimos de igual m odo docum entos de todo o tipo (agendas,


notas, recortes de jornais, cartas...) que muitas vezes se encontravam dispersos
nos arcjuivos, mas que podiam ser\ ir de indícios, ou até de provas ou referên­
cias acerca das «fontes» utilizadas p o r Louis Althusser. O dossier preparatório
integral desta edição, incluindo evidentem ente os próprios m anuscritos e as
diferentes versões ou acrescentos, poderá ser consultado, o que perm itirá aos
investigadores especializados o estudo da gênese das duas autobiografias. Por­
tanto. lim itar-nos-em os a indicar aqui os dados principais sobre a história dos
textos que esclarecem esta edição, as características materiais dos m anuscritos
e os critérios adoptados para a sua transcrição, sabendo que as circunstâncias
de p o rm en o r da sua redacção serão longam ente relatadas e analisadas no
segundo volum e da biografia de Louis A lthusser ’.

A análise dos docum entos e dos testem unhos até aqui reunidos perm item
adiantar com segurança os pontos seguintes: a redacção de O F uturo é M uito
Tempo foi despoletada, ainda que o projecto de uma autobiografia seja m uito
anterior, pela leitura, no M onde do dia 14 de Março de 1985, de um «bilhete»
de Claude Sarraute intitulado «Petite fa im » . (Mnsagrado essencialmente ao assas­
sínio antropofágico de uma jovem holandesa pelo japonês Issei Sagawa e ao êxito
que conheceu em seguida no Japão o liv ro onde este narrava o seu crime, depois
de ter sido repatriado na sequência de um a declaração de im procedência e de
uma breve estadia num hospital psicjuiátrico francês, o artigo de Cdaude Sarraute
evocava de passagem outros «casos»: «[...] Nos m edia, assim que descobrim os
um nom e de prestígio imiscuído num processo suculento — Althusser. Thibault
d Orléans — transform am o-lo em grande acontecim ento. A vítima? Não merece
três linhas sequer. A vedeta é o culpado [ ..].»
Após a publicação deste «bilhete», diversos amigos de Louis Althusser
aconselharam -no a protestar junto do jornal contra a alusão a um «processo
suculento». Mas ele seguiu o conselho de outros amigos, que em bora criticas­
sem a m aneira com o a coisa fora feita, achavam que, em todo o caso, Claude
Sarraute punha em evidência um ponto essencial, e para ele dram ático: de

Veja-sc \un i.h;r liorr.wí., to iiis Althusser. u n e biograpbie. tom o i, Cirasset, 1992.

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A l’ R R S E T .4 Ç A O

tacto, a ausência de «processo», devido à im procedência de que «beneficiara».


\ o dia 19 de Março de 1985, escreve a um dos seus amigos mais chegados,
D om inique Lecourt — mas não chega a enviar-lhe a carta — que não poderá
voltar a aparecer na cena pública» sem antes se ter explicado sobre o que lhe
aconteceu, quer dizer, sem ter escrito «[...] uma espécie de autobiografia, na
qual entrariam [as suas] explicações sobre o dram a e o seu "tratam ento" tanto
policial e judicial com o hospitalar, bem com o naturalm ente a sua origem»,
Esta preocupação de escrever um a autobiografia não é sem dúvida uma novi-
viadc: já em 1982, p o r exemplo, ao sair do seu prim eiro internam ento p o ste­
rior ao assassínio, redige um texto teórico sobre o «materialismo do encontro»,
que com eça do seguinte m odo; «Estou a escrever este livro em O utubro de
1982, ao sair de um a provação atroz tjue durou três anos, e cuja história, quem
sabe, talv^ez um dia conte, se ela puder servir para esclarecer outros, quer sttbre
as suas circunstâncias quer sobre o que suportei (a psiquiatria, etc,). Porque
estrangulei a m inha mulher, que era tudo para mim neste m undo, no decurso
de um a crise intensa e imprevisível de confusão m ental, em Novem bro de
1980, a m inha m ulher que m e amava a ponto de só querer m orrer p o r não
poder viver, e eu, na m inha confusão e na m inha inconsciência, sem dúvida
"lh e prestei esse serviço”, do qual, sem se defender, ela m orreu.» O texto co n ­
tinua depois com considerações filosóficas e políticas sem vxtltar a estas pri­
meiras alusões autobiográficas.
Em Março de 1985, decidido desta vez a contar a «história», do seu p r ó ­
p rio ponto de vista, Louis Althusser escreve a vários amigos no estrangeiro,
pedindo-lhes que lhe enviem todos os recortes de textos saídos na im prensa a
seu respeito a p artir de Novem bro de 1980. Faz a m esm a coisa quanto à
im prensa francesa e reúne ou pede aos amigos que lhe forneçam um a abun­
dante docum entação tanto sobre os problem as jurídicos da im procedência e
sobre o artigo 64.“ do Código Penal de 1838 com o sobre a questão das perita-
gens psiquiátricas. Pede além disso a algumas pessoas mais chegadas que lhe
com uniquem os seus «diários» correspondentes a estes anos, ou que lhe co n ­
tem os acontecim entos cuja recordação, sob certos aspectos, perdeu. Interroga
o seu psiquiatra e o seu psicanalista acerca dos tratam entos que seguiu, os
m edicam entos que tev e de tom ar (por vezes passa «a limpo» as suas explicações
l o V / ,v A L r H V S S f. R

e interpretações), regista em folhas soltas ou agendas um conjunto global de


factos, de acontecim entos, de afirm ações, de reflexões, de citações, de frases
isoladas, em suma, de indicações tanto factuais e pessoais com o políticas ou
psicanalíticas. Os seus arquivos conservaram os vestígios de todo este trabalho
de elaboração que serviu para a redacção de O F uturo é M uito Tempo.
Segundo toda a probabilidade, a redacção propriam ente dita e o bater à
m áquina do texto ocuparam apenas algumas semanas, dos últim os dias de
Março a fins de Abril ou com eços de Maio de 1985. No dia 11 de Maio, dá a
ler a Michelle Loi um m anuscrito, sem dúvida já com pleto, e a 30 de Maio
passa à m áquina um a versão de um novo texto teórico intitulado «Que fazer?».
Logo na segunda página, alude à autobiografia que acaba de com pletar; <derei
presente um prim eiro princípio fundam ental de Maquiavel que com entei lon­
gam ente no m eu pequeno livro: O F uturo é M uito Tempo «Pequeno» é
um a figura de estilo porque o texto tem p erto de trezentas páginas e constitui,
tanto quanto sabemos, o m anuscrito mais longo que algum a vez foi escrito po r
Louis Althusser, cuja obra publicada se distribui até aí po r opúsculos e com pi­
lações de artigos. No dia 15 de Junho, presa de um a crise hipom aníaca p ro ­
funda, será de novo hospitalizado em Soisy.
Tal parece ter sido o calendário da redacção de O F uturo é M uito Tem­
p o — um calendário que corresponde exactam ente à datação de certos factos
ou acontecim entos referidos no corpo do texto (por exem plo: «Há quatro
anos, durante o governo Mauroy», p. 15 do original francês, ou: «Apenas há
seis meses, em O utubro de 84», p. 119 do original, ou ainda: «tenho sessenta
e sete anos», p. 272). Os retoques posteriores parecem ter sido de somenos.
O núm ero das pessoas que pôde ler o todo ou um a parte significativa
deste m anuscrito lim itou-se a uns poucos amigos chegados, entre os quais se
destacam Stanislas Breton, Michelle Loi, Sandra Salomon, Paulette Táíeb,
André Tosei, H élène Troizier, Claudine N orm and. Sabe-se de resto que o Autor
evocou p o r div-ersas vezes a sua existência na presença de alguns editores e
que lhes expressou o seu desejo de ver publicado o m anuscrito, sem contudo
o mostrar, pelo m enos na totalidade. Tudo indica portanto que Louis Althusser
tom ara precauções extrem as para que este m anuscrito, ao contrário do que em
geral acontecia com os seus outros textos, não «circulasse». Aliás, nos seus

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,4 P R t: S E N T A Ç A O

arquivos não havia qualquer fotocópia dele. Um dos seus amigos, André Tosei,
conta que só o p ô d e ler, em Maio de 1986, na presença do Autor, em casa deste
c sem tom ar notas.
Acrescente-se p o r fim que para a redacção de O F uturo é M uito Tempo,
Louis Althusser, sobretudo no que se refere aos prim eiros capítulos, se inspi­
rou com toda a evidência e em grande m edida na sua prim eira autobiografia
intitulada Os Factos, de que conservara duas versões m uito parecidas.
Esse texto. Os Factos, que publicam os na segunda parte deste volume, foi
escrito em 1976 (a indicação do ano figura na prim eira página), e de acordo
com toda a verosim ilhança, no decorrer do seu segundo semestre. Louis
Althusser propôs e entregou o texto a Régis Debra)-, que o destinava ao
segundo núm ero de um a n o \a revista, Ça ira, cujo núm ero zero fora publi­
cado em Janeiro de 1976 e que acabaria p o r não ver a luz do dia. Do co nheci­
m ento de alguns amigos de Louis Althusser, esta autobiografia perm aneceu
tam bém até à data totalm ente inédita.

O m anuscrito original de O Futuro é M uito Tempo apresenta-se sob a


form a de trezentas e vinte e três folhas de form ato A4, de cor verde ou
branca, tendo um a dezena delas um cabeçalho da École Norm ale Supérieure.
A m aior parte das folhas foi agrupada em séries de «cadernos» agrafados e
num erados, o mais das vezes de acordo com a distribuição dos diferentes
capítulos. Com a excepção de algumas páginas inteiram ente m anuscritas,
todas estas folbas foram — segundo o seu costum e — dactilografadas di-
rectam ente pelo próp rio Louis Althusser, salvo, ao que parece, a página da
advertência, cuja dactilografia original — acom panhando o m anuscrito
— e elaboração definitiva foram efectuadas p o r Paulette Taieb n o u tra
m áquina.
Na página de título, m anuscrita, Louis Altbusser escrevera; O F uturo é
M uito Tempo, seguindo-se um subtítulo ríscado; Breve H istória de u m Asscis-
sino, e de um outro título: D 'u n e n u it Vaube {De u m a N oite a A urora), igual­
m ente riscado, que corresponde a um a prim eira tentativa de introdução da
qual subsistem as prim eiras nove folhas dactilografadas, interrom pidas a m eio
de um a frase.

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/, o r I s A l. T U C S S E R

Muitas das páginas dactilografadas de O F uturo é M uito Tempo co m p o r­


tam m últiplas correcções e acrescentos entre as linhas ou nas margens, e po r
r ezes no r erso do papel. Q uando estas m odificações tornavam o m anuscrito
ilegível. Louis Althusser procedeu a uma nova dactilografia, incluindo novas
correcções. Conservara, num a capa à parte, a prim eira versão corrigida das
setenta e um a páginas iniciais, excluindo a advertência e as duas páginas de
entrada que descrevem o assassínio (capítulo i). Mas. com esta excepção, cjue
perm ite exam inar as variantes (aliás m ínimas) de uma rersão dactilografada
para a outra, os arquivos de Louis Althusser continham apenas um a versão ori­
ginal do texto.
Devemos acrescentar que Louis Althusser p o r vezes introduzira entre as
páginas do seu m anuscrito pequenas folhas hrancas. de form ato reduzido, com
cabeçalho da École Norm ale Supérieure, contendo, relativam ente à página em
causa, uma pergunta ou uma observação mais ou m enos lapidar indicando a
sua vontade de retom ar mais tarde a frase ou o desenvolvim ento em causa. Em
diversas outras passagens uma indicação gráfica à m argem, o mais das vezes a
caneta de feltro, testem unha igualm cnte que o texto o não satisfazia em abso­
luto e que ele pensava p ro ced er a correcções.
Pelo m anuscrito ficam os tam bém a saber que o Autor imaginara vários
arranjos diferentes do seu texto, cifrando-se em quatro os projectos de pagina-
ção, que afectam sobretudo a segunda parte, sem que nos tenha sido possível
reconstituir p o r com pleto as diferentes versões a que estas paginações dariam
lugar. Mas o m anuscrito, tal com o foi encontrado p o r nós e tal com o é aqui
publicado, organizava-se segundo uma sequência ordenada de capítulos num e­
rados em rom anos pelo Autor (com um esquecim ento ilógico no início, que
nos levou a num erar vinte e dois capítukts em vez de vinte e um, co rrespon­
dendo, no prim eiro estado do m anuscrito, a um a paginação de 1 a 276 que
não leva em conta certas interversões de páginas nem vários acrescentos para
os quais o Autor deixou indicações frequentem ente bem precisas). Foi esta ver­
são que adoptám os para a presente edição.
M encionarem os p o r fim que não figuram nesta edição de O F uturo é
M uito Je)Hpo dois capítulos intitulados «Maquiavel» e «Spinoza», que Louis
Althusser acabara po r retirar do conjunto e substituir pelo «resumo» que figura

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A P R E S E S T .1 Ç A O

.iqui nas páginas 237-241 ^ O m esm o se passa com a últim a parte - do capí­
tulo consagrado a análises políticas sobre o futuro da esquerda em França e a
'itu a ç ão do Partido C om unista (aqui capítulo XIX ). Ao que parece Louís
Althusser pretendia utilizar estas páginas para uma outra obra sobre A Verda­
deira Tradição M aterialista. Mas, para lá destes três capítulos, representando
sessenta e um a folhas m etidas num a capa à parte que tem o título referido, não
existem outros elem entos de inform ação mais precisos acerca deste projecto de
li\ ro inacabado; as páginas em causa talvez venham a ser objecto, nom eadamente
os dois capítulos sobre Maquíavel e Spinoza, de um a publicação posterior.
Em últim a análise, optám os p o r publicar este texto de O Futuro é M uito
Teuipo. quase sem indicações de variantes, à excepção de alguns raros acres­
centos à margem para os quais o Autor não procedera às ligações indispensá-
^x4s e que apresentam os p o r isso em nota, rem etendo os investigadores para o
dossier preparatório e para o m anuscrito. Q uanto ao resto, as indicações edito­
riais extrem am ente precisas (sublinhados, m udanças de parágrafo, inserção de
acrescentos, etc.) deixadas por Louis Althusser foram integralm ente seguidas e
só introduzim os correcções editoriais m enores e correntes no dom ínio das
concordâncias verbais e da pontuação, bem com o precisões sobre os nom es
próprios das pessoas citadas. Os erros de facto ou de datação foram deixados
com o estavam: para a sua eventual «verificação», o leitor poderá reportar-se à
biografia do Autor que é publicada ao m esm o tem po que este texto. Naigumas
passagens, todavia, o acrescento de uma palavra ou de uma locução, entre parên­
teses rectos, revelar-se-ia indispensável para um a leitura mais ciara do texto.
O m anuscrito de Os Factos, pelo seu lado, apresenta-se sob a form a de
uma dactilografia com m uito poucas correcções e acrescentos, sendo portanto
as variantes m ínim as e relativas sobretudo à ordem dos prim eiros parágrafos.
Louis Althusser conservara nos seus arquivos apenas duas fotocópias do
m anuscrito, co rrespondendo a duas versões sucessivas e m uito próxim as um a
da outra.

' De «Mas ames de chegarmos a Marx |...|» a «|..,| Penso que ainda não esgotám os este pensa­
m ento sem precedentes c infelizmente sem continuidade.»
- .V seguir a «|...| po r causa do qual não deixariam de o atacar» (p. 263).

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A O V / S .-4 /, 7 / / / .V ,S E R

É a segunda versão a aqui publicada, mas c evidente que o texto deve ter
conhecido anteriorm ente um a ou várias redacções, pois que num a carta a San­
dra Salomon, no decurso do Verão de 19"^6, Louis Althusser anuncia: «Vou
p o d er reescrever a m inha “ autobiografia" que enriquecerei consideravel­
m ente com recordações reais e outras imaginárias (os meus encontros com o
João XXIII e com De Gaulle) e sobretudo com a análise das coisas que conto,
juntando depois em anexo todos os itiateriais. Estás de acordo? Será a política
pelo lado de dentro e pelo lado de fora ao m esm o tem po e isso perm itir-m e-á
introduzir coisas cjue com certeza não hão-de desiludir quem as ler [...].»

Esta opção editorial de não fazer soterrar as duas autobiografias sob a


massa das notas ditas explicativas, excepto nas raríssimas passagens em que
estava em jogo a própria com preensão literal, liga-se essencialm ente ao esta­
tuto dos dois textos. Tal com o acontece com as Confissões de Jean-Jactiues
Rousseau ou as M em órias do Cardeal de Retz, as suas páginas não devem ser
lidas com o uma biografia. Num projecto inicial de prefácio a O Futuro é
M uito Tempo, intitulado «Duas Palavras». Louis Althusser precisara cjue não
tencionava descrever a sua infância tal com o fora, nem os m em bros da sua
família em term os de realidade, mas sim restituir a representação cjue de uma
coisa e de outra fora sucessivam ente levado a formar: «Só falo deles tal com o
os percebi, senti, sabendo m uito hera que, com o em qualquer percepção psí­
quica, aquilo que terão podido ser foi sempre-já investido nas projecções fan-
tasniáticas da m inha angústia.»
E foi com efeito uma história dos seus afectos, dos seus fantasmas, o que
Louis Althusser elaborou. Estamos em plena fantasia, no sentido forte que a
palavra possuía ainda no tem po de Montaigne: o de um a ilusão, ou até m esm o
alucinação, «Pretendo, de facto, ao longo de todas estas associações de lem ­
branças — escreve ele em O F uturo é M uito Tempo — ater-m e estritam ente
aos factos: mas as alucinações são factos também.»
E este ponto conduz-nos à singularidade mais forte dos textos. Colocam-
se deliberadam ente cada um deles em dois registos diferentes. Os Factos no
do m odo côm ico, O Futuro é M uito Jèmpo. no do trágico, fora do alcance dos
critérios binários do verdadeiro e do falso, cujas fronteiras a biografia tem

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A P K E S E ,V r A Ç A O

"rccisamente p o r função d e lim ita r'. Teremos assim passado para o lado da
ncção, ou seja, de um im aginário feehado circularm eiite no sistema sim bólico
C l texto, rem etendo apenas para si p róprio? Em certo sentido sim, e o caracter
.ütamente trabalhado dos m anuscritos de que dispom os, com as suas diferen­
te ' etapas, conduzirá verosim ilm ente, com o acontece com qualquer criação
literária, a conceder mais tarde a prio rid ad e à crítica interna do texto. E c o n ­
tudo. tam bém não podem os ler estas páginas com o um rom ance de Céline ou
tima novela de Borges, para citarm os dois autores a que Althusser gostava de
'C referir.
Se entram os, com os dois textos, na escrita da fantasia, da alucinação, é
porque a sua m atéria é a loucura, quer dizer, a única possibilidade para o
'u jeito de se declinar com o louco, e depois assassino, e no entanto, e sempre,
ao m esm o tem po, filósofo e com unista. Estamos aqui em presença de um tes­
tem unho prodigioso da loucura, no sentido em que, contrariam ente aos
docum entos nosográficos» com o a M em ória do Presidente Schreber estudada
por Freud, ou o de Pierre Rivière (Moi, Pierre Rivière, a y a n t égorgé m a mère,
m a soeur, m a fe m m e ) apresentado po r Michel Eoucault, com preendem os pela
sua leitura de que m aneira um intelectual, superiorm ente inteligente e filósofo
de profissão, habita a sua loucura, a sua m edicalização sob a form a de doença
m ental pela instituição psiquiátrica, e as roupagens analíticas com que se
enfeita. Neste sentido, este bloco a utobiográfico, com o seu núcleo constitu-
ti\’o presente desde Os Factos, form a p o r certo o indispensável correlato da
Ftistoire de la fo lie de Michel Eoucault. Escrito de um sujeito a quem a inim-
putabüidade retirara de facto a qualidade de filósofo, e inextricável m escla de
«factos» e de «fantasmas», O F uturo é M uito Tempo exibe sem dúvida experi­
m entalm ente, num ser de carne e de sangue, aquilo cujo lugar fora designado
p o r E oucault: a vacilação da distinção entre loucura e razão. Com o é possível
que o pensam ento se apoie na loucura sem ser sim plesm ente seu refém ou seu
prurid o m onstruoso? Com o pode a história de um a vida deslizar assim em

■ Para u m a di.scussão acerca d o s de.sfasam enlos, d o s lapso.s, d o s e s p a ç o s cm b ra n c o d as d u a s


a u to b io g ra fia s, rc la tiv a m c m e à v id a real, v e r yan.n moi lier b o it a x g , L o u ís A lth u sser, u n e b io g r a p h ie .
to m o I, op. cít.

15
A O I I S A A 7 íl /' V ,V 7' K

direcção à loucura, e o seu narrador m anter-se a tal ponto consciente desst


facto? Com o pensar o autor de tal obra? O «caso Althusser» p o d erá ser dei­
xado aos m édicos, aos juizes, aos bem -pensantes da separação entre o pensa­
m ento público e o desejo privado? Pelos dois textos da história da sua vida,
ele ter-lhes-á sem dúvida escapadt) no seu destino póstum o.
Neste sentido, estes textos autobiográficos vèm m uito naturalm ente e
— digam os a palavra — com toda a autoridade, tom ar lugar, e um lugar essen­
cial, na o b ra de Louis Althusser. E só a leitura — inevitavelm ente plural, co n ­
traditória, que deles for feita — nos dirá que transform ações terão provocado
na p rópria obra, e no olhar lançado sobre ela — sem que seja p o r ora possível
prever-se qual o sentido e a extensão dessas transform ações.

Olivier CORPET
Yann MOULIER BOUTANG

Q uerem os agradecer a todos os que nos perm itiram realizar a edição deste
volume, e em prim eiro lugar a François B oddaert, herdeiro de Louis Althusser,
que tom ou a decisão de publicar estes textos e nos testem unhou incessante­
m ente a sua confiança. Mas tam bém devem os os nossos agradecim entos a; Régis
Debra\, Sandra Salomon, Paulette Taíeb, Michelle Loi, D om iniqtie Lecourt,
André Tosei, Sianislas Breton, Elélène Troizier, Fernanda Navarro, Gabriel
Albiac. Jean-Pierrc Salgas... pelos docum entos e preciosos testem unhos que nos
forneceram , perm itindo efectuar a edição destes textos nas m elhores condições
possíveis, sem que, no entanto, possam ser considerados responsáveis p o r um
trabalho que po r completo nos cabe assumir. Os nossos agradecimentos igualmente
aos colaboradores do IMEC que nos deram o seu auxílio, e m uito em particular
a Sandrine Samson que assegurou grande parte da classificaçãcj do Fundo Althusser.

Nota d o Tradutor; à semelhança d o que fizeram os organizadores da edição francesa deste


\o lu m e . decidim os respeitar — apesar dos problem as de transposição considerá\ eis — na tradução p o r ­
tuguesa. e tanto quanto possível, o «desalinho» (faltas de concordância, irregularidades da pontuação,
lapsos, e tc .) do original. Assim, salvt) raríssimas excepçõe.s, nada acresceníam os. no capítulo de observa­
ções auxiliares da leitura, ao trabalho de ( 'orpe i c Boutang.

16
o FUTURO E MUITO TEMPO

1985
provável que haja quem ache chocante que eu me não resigne ao silencio
E depois do acto que com eti. e depois tam bém da declaração de inim puta-
bilidade que o sancionou e da cjual, segundo o m odo de dizer espontâneo,
beneficiei.
Mas se não tivesse beneficiado dessa declaração, teria tido ciue com pare­
cer no tribunal. E se tivesse tido que com parecer, teria tido qtie responder
perante ele.
Este livro é essa resposta a que noutras condições teria sidtt obrigado.
E tudo o que peço é que ma concedam : que me concedam agora o que antes
poderia ter sido uma obrigação.
Bem entendido, estou consciente de que a resposta que aqui tento não
corresponde nem às regras de um processo que não teve lugar, nem à forma
que num tribunal teria assum ido. Pergunto-me todavia se a ausência, no pas-
sadtt e para sempre, do julgamento, com as suas regras c a sua form a próprias,
não acabará p o r expor ainda mais o que tentarei aqui dizer à apreciação e à
liberdade públicas. Tal é em todo o caso o m eu desejo. É meu destino não
p o d e r pensar em acalm ar um a inquietação a não ser expondo-m e a uma série
indefinida de outras.

19
1

al com o a conservei num a recordação intacta e precisa até aos p o rm e n o ­


T res mais ínfimos, gravada em mim através de todas as m inhas provações
e para sem pre — entre duas noites, aquela de que saía sem saber que noite era,
e aquela em que ia entrar, vou dizer quando e com o: eis a cena do assassínio
tal com o a vi vi.
De súbito, estou de pé, em roupão, ao fundo da m inha cama no m eu apar­
tam ento da École Normale. Uma claridade cinzenta de Novem bro — era
dom ingo, dia 16, p o r volta das nove horas da m anhã — vem pela esquerda,
da janela m uito alta, há m uito em oldurada po r velhíssimas cortinas verm e­
lhas Im pério rasgadas pelo tem po e queim adas pelo sol, ilum inar o fundo da
m inha cama.
Diante de mim; Hélène, deitada de costas, tam bém de roupão,
A bacia assenta-lhe na beira da cama, e as pernas abandonam -sc na alcatifa
do chão.
Ajoelhado junto a ela, inclinado sobre o seu corpo, m assajo-lhe o pes­
coço. Muitas vezes me aconteceu massajá-la em silêncio, na nuca, nas costas e
nos rins: aprendera essa técnica com um cam arada de cativeiro, o pequeno
Clerc, futebolista profissional, com jeito para tudo.
Mas desta vez é a parte da frente do pescoço dela que estou a massajar.
Introduzo os m eus dois polegares na cova de cerne que orla o cim o do esterno
e. carregando sempre, atinjo devagar, um polegar para a direita e um polegar

21
L O C l S .4 r r II ( s s E R

para a esquerda, enviesados, a zona mais dura cjue fica por baixo dos ouvidos.
Massajo em \'. Sinto um a grande fadiga m uscular nos a n te b r a ç o s b e m sei,
massajar dá-me sem pre dores nos antebraços.
O rosto de Hélène está imóvel e sereno, os seus olhos abertos fixam-se no
tecto.
E de repente fere-me o terror: os olhos dela estão interm inavelm ente fixos
e sobretudo há um a breve ponta de língua que repousa, insólita e tranquila,
entre os dentes e os lábios dela.
Claro que já vi m ortos, mas nunca na m inha vida \ i o rosto de uma estran­
gulada. E no entanto sei que é um a estrangulada. IVIas com o? Ponho-m e de pé
e g rito : estrangulei a Hélène!
Precipito-me, e num estado de pânico intenso, correndo o mais que
posst), atravesso o apartam ento, desço as peciuenas escadas com corrim ão de
ferro que dão para o pátio da frente com o seu alto p o rtão de grades e diri­
jo-me, sem parar de correr, para a enferm aria onde sei que se encontra o
dr. Étienne. que m ora no prim eiro andar. Não me cruzo com ninguém , é
dom ingo, a Escola está semi-vazia e adorm ecida ainda. Sempre a gritar subo a
quatro e quatro os degraus das escadas do m é d ic o ; «Estrangulei a Elélène!»
Bato com força à porta do m édico, que. também ele de roupão, acaba po r
\ár abrir, desnorteado. C ontinuo a gritar sem descanso que estrangulei Hélène.
agarro o m édico pela gola do roupão: tem cjue v ir v è-la com a m áxima urgên­
cia. senão pego fogo à Escola. Étienne não acredita em mim. «é impossível».
Descem os a toda a pressa e eis-nos junto a Hélène. C ontinua com os m es­
mos olhos fixos e o seu pedaço de língua entre os dentes e os lábios. Étienne
ausculta-a: «Nao se pode fazer nada, é tarde de mais.» E eu: «Mas não se pode
reanimá-la? — Não.»
A seguir. Étienne pede-m e licença por uns m inutos e deixa-me sozinho.
Mais tarde, com preenderei que dev«e ter ido telefonar, para o Director, para o
hospital, para o com issariado, sei lá para onde mais! Fico à espera, num tre­
m or interm inável.
As longas cortinas verm elhas rasgadas e em pedaços pendem dos dois
lados da janela, uma delas, a da direita, contra os pés da cama. \ó lto a ver o
nosso amigo jaeques M artin, que num dia de Agosto de 1964 foi encontrado

22
o F U T U R O k M U I T O T F M P O

m orto no seu m inúsculo quarto do xvi bairro, estendido na cama ao cabo de


vários dias e tendo no peito o longo pé de um a rosa escarlate: m ensagem
silenciosa para nós dois, que éram os seus amigos havia mais de vinte anos, em
m em ória de Beloyannis, m ensagem de além -túm ulo. Agarro então num dos
estreitos panos esfacelados da longa cortina verm elha e. sem o desprender,
conduzo-o até ao peito de Hélène, onde ficará estendido de través, da saliência
do om bro direito até ao seio esquerdo.
Étienne regressa. Neste ponto tudo se confunde. Dá-me. ao que parece,
um a injecção, volto a passar com ele pelo m eu gabinete e vejo alguém (não sei
quem é) levar de lá alguns livros trazidos da biblioteca da Escola. Étienne fala
do hospital. E afundo-m e na noite. O «despertar» aconteceria não sei quando,
mais tarde, em Sainte-Anne.

23
II

erdoem -m e os leitores. Este pequeno livro, escrevo-o antes do mais para


P os m eus amigos, e para mim se possível. Era breve as m inhas razões se
tornarão com preensíceis.
Muito tem po depois do dram a, soube que dois dos m eus amigos mais che-
gadt)s (e não terão sido sem dúvida eles os únict)s) tinham feito votos de que
eu não \ iesse a ser objecto da declaração de im procedência cjue sancionou os
très exames m édico-legais realizados em Sainte-Anne na sem ana que se seguiu
à m orte de Hélène. mas com parecesse em tribunal. Infelizmente. tais votos não
passariam disso mesmo-, votos piedosos.
Gravem ente afectado (confusão m ental, delírio onírico), não estava em
condições de aguentar a com parência perante uma instância pública; o juiz de
instrução que m e foi ver não conseguiu arrancar-m e um a palavra c[ue fosse.
Além disso, posto com pulsivam ente sob tutela po r decisão do prefeito da p o lí­
cia, eu já não dispunha nem de liberdade nem dos m eus direitos de cidadão.
Privado de toda a escolha, encontrava-m e de facto nas m alhas de um processo
oficial a que não me podia esquivar, a que não podia deixar de me submeter.
Trata-se de uma figura que tem vantagens evidentes.- protege o acusado
considerado irresponsável pelos seus actos. Mas dissim ula tam bém inconve­
nientes temíveis, apesar de m enos conhecidos.
Sem dúvida, após a experiência de uma provação tão prolongada, com o
dou po r mim a com preender as m inhas amigas! Q uando falo de provação, falo

24
F fi r V R o F. M V I r o T E M P O

não só do que vivi no m eu internam ento, mas também do que \iv o desde
então, c tam bém , com o claram ente o vejo, do que estou condenado a viver até
ao term o dos meus dias se não intervier pesso a lm en te e p iib lic a m e n te para
fazer ouvir o m eu p ró p rio testem unho. Foram tantos os que m ovidos pelos
m elhores ou piores sentim entos assum iram até aqui o risco de falar ou calar
em vez de mim! O destino da im procedência é, com efeito, a pedra tum ular
do silêncio.
Essa declaração de im procedência que foi proferida em m eu favor em
Fevereiro de 1981 resume-se na realidade ao célebre artigo Ó4 do Código de
Processo Penal, na sua versão de 1838: artigo que continua em vigor apesar de
trinta e duas tentativas de reform a, todas elas sem êxito. Há quatro anos.
durante o governo Mauroy. uma com issão voltou a ocupar-se desta questão
delicada, que põe em causa todo um aparelho de poderes adm inistrativos,
judiciais e penais em ligação com o saber, as práticas e a ideologia psiquiátrica
do internam ento. Esta com issão deixou de reunir. Aparentemente, não conse­
guiu descobrir m elhor solução.
O Código Penal opõe. com efeito, desde 1838, o estado de não-responsa-
hilid a d e de um crim inoso que perp etro u o seu acto em estado de «demência»
ou «sob coacção» ao estado de responsabilidade puro e sim ples reconhecido
a qualquer hom em dito «normal».
O estado de responsabilidade abre cam inho ao processo clássico: compa-
rência perante um tribunal, debate p ú b lic o onde se defrontam as intervenções
do M inistério P úblico que fala em nom e dos interesses da sociedade, testem u­
nhas. advogados de defesa e da parte civil que se exprim em p u b lic a m e n te e do
próprio réu que apresenta a sua versão pessoal dos factos. Todo este processo
m arcado pela publicidade dos respectivos trâm ites é rem atado pela delibera­
ção secreta dos jurados que publicam ente se pronunciam ou pela absolvição
ou por um a pena de prisão, sendo o crim inoso reconhecido com o tal co n d e­
nado a um a pena de prisão definida, supondo-se que pagará assim a sua dívida
.1 sociedade, «lavando-se» p o r conseguinte do seu crime.
O estado de não-responsabilidade juríd ico -leg a l, em contrapartida, eli­
mina os trâm ites públicos e contraditórios da com parência perante o tribunal.
\o ta a título prelim inar e directo o assassino ao internam ento num hospital

25
L o V I S .4 L T H V S S E R

psiquiátrico. O crim inoso é então colocado «na im possibilidade de prejudicar»


a sociedade, mas po r um tem po indeterm inado, e considera-se que deverá ser
objecto dos cuidados psiquiátricos requeridos pela sua condição de «doente
mental».
Se o assassino for absolvido após o seu processo público, poderá voltar
para casa de cabeça erguida (em princípio pelo m enos; porque a opinião
pública po d erá indignar-se de o ver absolvido, fazendo-lho sentir, Há sem pre
vozes versadas neste gênero de escândalo prontas a fazer as vezes da má cons­
ciência pública).
Se for condenado a um a pena de prisão ou ao internam ento psiquiátrico,
o crim inoso ou o assassino desaparece da vida social.- p o r um tem po d efin id o
pela lei no caso da prisão (cujo tem po po d e ser encurtado p o r reduções de
pena); p o r um tem po in d e fin id o no caso do internam ento psiquiátrico, com
a seguinte circunstância agravante; considerado privado do seu são juízo e
portanto da sua liberdade de decidir, o assassino internado p o d erá p erder a
personalidade jurídica, delegada pelo prefeito num «tutor» (hom em de leis),
ejue passa a dispor da sua assinatura e a agir em seu nom e e seu lugar —
enquanto cjuakjuer outro condenado a perde apenas em «matéria criminal».
É pelo facto de o assassino ou o crim inoso ser considerado perigoso, tanto
em relação a si próp rio (suicídio) com o em relação à sociedade (recidiva) que
é posto na im possibilidade de causar danos, na sequência do internam ento
carcerário ou psiquiátrico. Para resum irm os a questão, notem os que num ero­
sos hospitais psiquiátricos continuam a ser ainda, apesar dos progressos recen­
tes. uma espécie de prisões, e que neles existem mesmo, para doentes «perigo­
sos» (agitados e violentos), serviços de segurança ou de força cujos fossos
profundos e cujos aram es farpados, cujas camisas de forças físicas ou «quími­
cas» despertam as piores recordações. Os serviços de segurança são muitas
vezes piores do que boa parte das prisões.
Encarceram ento de um lado, internam ento do ou tro ; não é de adm irar
que a proxim idade das condições induza na opinião com um , não esclarecida,
um a espécie de assimilação. Em todo o caso, o encarceram ento ou o interna­
m ento continuam a ser a sanção norm al do assassínio. Exceptuados os casos de
urgência, ditos agudos, que não levantam problem as, a hospitalização não se

26
O F U T U R O E M U / T O T F M P O

faz sem prejuízos, tanto para o paciente, que m uitas vezes transform a em c rô ­
nico, com o para o m édico, obrigado tam bém ele a viver num m undo fechado
onde se considera que ele «sabe» tudo sobre o paciente, enquanto com fre­
quência tem que viver num frente a frente angustiante com o paciente que
com excessiva frequência controla po r m eio de um a insensibilidade postiça e
de um a agressividade acrescida.
Mas isto ainda não é tudo. A opinião corrente considera de bom grado
que o crim inoso ou o assassino, potencialm ente reincidente, e por isso cons­
tantem ente «perigoso», deve ou deveria continuar indefinidam ente separado
da vida social — tendenciaIm ente d u ra n te toda a vida. É por isso que se
ouvem tantos coros de indignação, nos quais alguns, cultivando para fins p a r­
tidários a angústia e a culpabilidade sociais, se tornam especialistas, em nom e
da segurança de pessoas e bens, contra as autorizações de saída ou as liberta­
ções antecipadas concedidas aos condenados «bem com portados» antes do
expirar da sua pena. É p o r isso que o tem a da «prisão perpétua» obsidia tantos
com entários, não só enquanto substituição da pena de m orte, mas tam bém
enquanto sanção «natural» de um a série com pleta de crim es considerados p a r­
ticularm ente odiosos para a segurança de «crianças, velhos e polícias». Nestas
condições, com o poderia o «louco», tido no limite com o mais «perigoso» p o r­
que m uito mais «imprevisível» do que o crim inoso com um , escapar à mesm a
reacção de apreensão um a vez que o seu destino de internado po r natureza o
liga ao destino do culpado «são de espírito»?
Porém, é preciso ir mais longe. A condição resultante da declaração de
im procedência expõe com efeito o louco que é objecto de internam ento a
m uitos outros preconceitos alim entados pela opinião com um .
Na imensa m aioria dos casos, de facto, o culpado confesso que com parece
perante um tribunal sai deste condenado a um a pena geralm ente lim itada no
tempo, dois anos, cinco anos, vinte anos, e sabe-se que a prisão perpétua, pelo
m enos até ao presente, pode dar lugar a reduções do tem po de pena. Pressu­
põe-se que o culpado durante o tem po que dura o seu encarceram ento «paga
.1 sua dívida ã sociedade». Uma vez paga a «dívida», pode p o r conseguinte
regressar norm alm ente à vida sem que, em princípio, tenha que prestar outras
«ontas seja a quem for. Digo «em princípio», porque a realidade não é tão

27
L o f J S A L 7 H r S S F. R

simples, não se ordena im ediatam ente segundo t> direito — disso são testem u­
nho por exem plo a confusão tão difundida entre o acusado (reputado ino­
cente encjuanto a prova da sua culpa não for produzida) e o culpado, as marcas
por m uito tem po sensíveis do escândalo local ou nacional, os rum ores da acu­
sação, dem oradam ente e sem cautelas repercutidos pela im prensa e os meios
de com unicação a pretexto de inform ação, todos os boatos que duradoura­
m ente podem perseguir com a sua m alevolência não só o acusado inocente e
absolvido, mas tam bém o crim inoso condenado que «honestamente» cum priu
a sua pena. Mas em todo o caso. é preciso dizê-lo igualmente, a ideologia da
«dívida», e da «dívida liquidada» para com a sociedade, age apesar de tudo em
benefício do condenado que cum priu a sua pena e, em certa m edida, protege
até o crim inoso posto em liberdade, enquanto a lei o defende de toda a impu-
tação contrária à «causa julgada»: o crim inoso que prestou devidam ente contas
ou o am nistiado podem intentar processos po r difam ação contra quem invo­
que contra eles um passado infamante. C onhecem -se mil exem plos do caso.
A pena «extingue» portanto o crim e e com a ajuda do tem po, do isolam ento e
do silêncio, o ex-crim inoso pode recom eçar a sua \’ida. Também aqui, graças
a Deus. os exem plos não faltam.
O m esm o não acontece no caso do «louco» assassino. Q uando o inter­
nam. é evidentem ente sem lim ite p re visív e l de tempo, ainda que se saiba ou
devesse saber que em p rin cíp io qualcjuer estado agudo é um a situ ação
tra n sitó ria . Mas é verdade que os m édicos são o mais das vezes, se não sem ­
pre. radicalm ente incapazes, até m esm o para os estados agudos, de fixar um
prazo ainda ejue aproxim atico para o prognóstico de cura. Mais: o «diagnós­
tico» inicialm ente escolhido não pára de mudar, porque em psiquiatria todo
o diagnóstico é evolutivo-, è a evolução do estado do paciente o único factor
que perm ite fixá-lo, ou p o r conseguinte m odificá-lo. E com o diagnóstico,
fixar ou m odificar, bem entendido, o tratam ento e as perspectivas de prog­
nóstico.
Ora. para a opinião com um , cultivada p o r certa im prensa sem nunca dis­
tinguir a «loucura» dos estados agudos mas passageiros da «doença mental»,
que é um destino, o louco é im ediatam ente considerado doente m ental, e
quem diz doente m ental quer evidentem ente dizer doente para toda a vida. e.

28
O F l' 7 í/ R O E M r I T O r E M P O

por consequência, internável e internado para toda a vida-, nLebenstodty> ^,


com o tão bem o disse a im prensa alemã.
D urante todo o tem po em tjue está internado, o doente m ental, excepto
no caso de conseguir matar-se, continua evidentem ente a viver, mas no isola­
m ento e no silêncio do asilo. Sob a sua pedra tumular, fica com o m orto para
os que o não visitam , mas cjuem o visita? Porém , com o não está realm ente
m orto, com o não foi anunciada, no caso de ser conhecido, a sua m orte (a
m orte dos desconhecidos não conta), torna-se lentam ente uma espécie de
m orto-vivo, ou antes, nem m orto nem vivo, e não p o d endo dar sinais de vida,
excepto aos seus mais chegados tsu aos que se preocupam com ele (caso rarís-
simo: m uitos internados praticam ente n u n c a têm visitas — com provei-o com
os m eus olhos tanto em Sainte-Anne com o noutros lados!), não p o d endo além
disso exprim ir-se publicam ente no exterior, figura de facto, arrisco o term o, na
rubrica dos balanços sinistros de todas as guerras e todas as catástrofes do
m undo: o balanço dos desaparecidos.
Se falo desta estranha condição, é porque a vivi e de certo m odo ainda
hoje a vivo. Emhora livre desde há dois anos do internam ento psiquiátrico,
sou, para um a opinião que conhece o m eu nom e, um desaparecido. Nem
m orto nem vivo, não ainda enterrado mas «sem obra» — o m agnífico term o de
Foucault para designar a loucura: desaparecido.
Ora, diferentem ente de um m orto, cujo óbito põe p onto final à \id a de
um indivíduo sepultado na terra de um a tum ba, um desaparecido faz a opi­
nião correr o risco singular de p o d er (com o é hoje o m eu caso) reaparecer à
luz do dia da vida (Foucault escreveu de si p ró p rio : «em pleno sol da liberdade
polaca», quando sentiu que se curava). Ora é necessário saber — e trata-se de
algo que todos os dias se verifica — que este estatuto singular de um desapare­
cido que p o d e reaparecer alim enta um a espécie de m al-estar e de má cons­
ciência a respeito da sua pessoa, porque a opinião receia surdam ente um desa­
parecim ento incapaz de p ô r definitivam ente term o à existência social de um
crim inoso ou de um assassino internado. Intervém aqui com efeito a angústia
de m orte e a sua ameaça, pulsão incontornável. Para a opinião com um , o caso

' «Morto-vivo» (cm alcniao no originat), (,V. d o 7. )

29
/. o f I s A L T H l■ S V t: R

deveria ser definitivam ente resolvido peltt internam ento, e a má consciência


surda mas difusa, que acom panha o acontecim ento com os sobressaltos da
apreensão, é redobrada pelo m edo de que não se trate de um a sttlução para
sempre. E se suceder que o «louco» internado reapareça à plena luz do dia da
\ ida, ainda que com o aval dos m édicos com petentes, eis a opinião forçada a
procurar e a descobrir um com prom isso entre esta últim a evidência inespe­
rada mas extrem am ente incôm oda e o escândalo anterior do assassínio, des­
pertado pelo retorno do crim inoso que dizem e se diz «curado». Ora, trata-se
de uma situação infinitam ente fret|uente nos casos de crise aguda. Que poderá
fazer o indivíduo? Reincidir? Os exem plos não faltam! Será possível que ele,
o «louco», tenha voltado a tornar-se «normal»? Mas se for esse o caso, n ã o o
seria j ã no p r ó p r io m o m e n to do c rim ei Na consciência surda e cega, pois
obnubilada por toda um a ideologia espontânea (mas nem po r isso m enos cul­
tivada tam bém ) do crime, da m orte, da «dívida para toda a vida», do «louco»
perigoso e imprevisível, eis que o processo que nunca chegou a ter lugar se
encontra prestes a recom eçar, ou melhor, a com eçar p o r fim, na praça pública,
e sem que. tal com o antes, o assassino louco tenha o m enor direito a expli­
car-se.
Temos cjue enfrentar este ponto estranham ente paradoxal, O hom em que
é acusado de um crim e e que não beneficia de uma declaração de im procedên-
cia tem que sofrer sem dúvida a dura proração da com parència pública
perante um tribunal. Mas pelo m enos, aí tudo se transform a em m atéria de
acusação, defesa e explicação pessoal p ú b lica s. Nos trâm ites «contraditórios»,
o assassino incrim inado tem pelo m enos a possibilidade, reconhecida pela lei,
de p o d er contar com testem unhos públicos, com as defesas p ú b lic a s dos seus
advogados, e com os pontos p ú b lic o s da acusação; acim a de tudo tem o
direito e o privilégio inapreciável de se exprim ir e se explicar p u b lic a m e n te
em seu n o m e e em pessoa, acerca da sua vida, do seu assassínio e do seu
futuro. Q uer seja condenado ou absolvido, pôde pelo m enos explicar-se p o r
si p ró p rio p u b lica m en te, e a im prensa tem pelo m enos o dever de consciência
de reproduzir publicam ente as suas explicações, bem com o a conclusão do
processo que encerra legal e publicam ente a questão. Se se julgar condenado
injustam ente, o assassino pode proclam ar a sua inocência, e é sabido que esta

30
O F IJ T U R O E M U I T O T E M P O

proclam ação pública acabou, e em casos m uito im portantes, p o r acarretar a


reabertura do processo e a absolvição do acusado. A sua defesa po d e ser publi­
cam ente assum ida p o r com issões criadas para esse efeito. Por todos estes m oti­
vos, o acusado não fica nem sozinho nem desprovido de recursos públicos: a
instituição da publicidade dos trâm ites processuais e dos debates era já consi­
derada pelo legista italiano Beccaria, no século xvin. e por Kant depois dele,
a garantia suprem a de todo e qualquer incrim inado.
Ora, lam ento ter de dizê-lo, tal não é propriam ente o caso de um assassino
que beneficia de um a declaração de im procedência. Há duas circunstâncias,
inscritas com o m áxim o rigor nos factos e no direito processual, que lhe p ro í­
bem o direito a um a explicação pública: o internam ento e a anulação correla-
tiva da sua personalidade jurídica, p o r um lado e, p o r outro lado. o segredo
médico.
Que é dito ao público? Que foi p erpetrado um crim e: depois, através da
im prensa, o público tom a conhecim ento do resultado da autópsia do cadáver
(a vítim a m orreu na sequência de um «estrangulamento», nem mais uma pala­
vra); e tom a conhecim ento a seguir da declaração de im procedência, ocorrida
alguns m eses mais tarde, em nom e do artigo 64, sem mais com entários.
Mas o público ignorará tudo dos porm enores, quesitos e resultados das
peritagens m édico-legais secretas, a que entretanto procederam especialistas
designados pela autoridade adm inistrativa. O público ignora tudo do diagnós­
tico (provisório) que decorre quer destes exames de peritos quer das prim ei­
ras observações clínicas dos m édicos. Nada saberá das suas apreciações, do
seu diagnóstico e prognóstico no decurso do internam ento do paciente, nada
dos tratam entos prescritos ao paciente internado, nada das dificuldades por
vezes terríveis que os m édicos têm de enfrentar e dos impasses angustiantes
em que por vezes lhes acontece caírem , ao m esm o tempt) que continuam a
m ostrar a m esm a cara de sempre. E naturalm ente ignorará tudo das reacções
do assassino «não culpado», dos esforços desesperados que este desenvolve
para tentar com preender e explicar a si p ró p rio as razões, próxim as ou rem o­
tas, de um dram a em que foi literalm ente precipitado na sua condição de
inconsciência e delírio. E quando sair do hospital (se sair.,.), o público igno­
rará tudo acerca do seu novo estado, das razões da sua liberdade recobrada.

31
L O r I s A L 1 II r S S /: R

do terrível período de «transição» a que tem de lazer frente, o mais das veze;
só, ainda que não esteja isolado, e dos lentos e dolorosos progressos que
passo a passo, insensivelm ente, o vão eonduzir ao lim iar da sobrevivência (
da \ ida.
Falo da opinião pública (quer dizer, da sua ideologia) e do p ú b lic o ■
. o;
dois term os talvez não correspondam ao m esm o conteúdo. Mas aqui pouct
im porta isso. Pois é rarta um público que não seja contam inado pela opiniãc
pública, quer dizer, p o r uma certa ideologia reinante nessas questões de crim e
de m orte, de desaparecim ento e de estranha ressurreição: uma ideolctgia que
põe em jogo todo um aparelho m édico-legal e penal, as suas instituições e os
seus princípios.
Mas gostaria de falar tam bém das pessoas mais chegadas, das famílias c
dos amigos, c para além destes, eventualm ente dos conhecidos. As pessoas
mais chegadas, quando viveram do seu lado e à sua m aneira um dram a que
para elas continua sem explicação, se este as transtornou, vêem-se dilacerados
entre a realidade de um dram a atroz e da exploração que dele faz certa
im prensa, que venda escândalos, por um lado, e p o r outro a sua afeição pelo
assassino, que conhecem hem e a quem m uitas vezes (nem sem pre) têm amor.
Dilacerados, não conseguem fazer coincidir a imagem do seu parente ou
amigo e a figura desse m esm o hom em transform ado em assassino. Também
eles, desam parados, procuram uma explicação que não lhes é dada ou que lhes
parece irrisória em extrem o ejuando um m édico se aventura a confiar-lhes uma
hipótese: «palavras, palavras!» E a quem poderiam dirigir-se a não ser aos
m édicos encarregados do tratam ento quando pretendem form ar uma prim eira
ideia do incom preensível ? Deparam então, a coberto da figura do «saber psi­
quiátrico», redobrado pelo segredo profissional, com hom ens obrigados
quanto ao essencial ao silêncio im posto pela sua deontologia, e que muitas
vezes só se m ostram seguros de si para superarem a sua p ró p ria incerteza, ou
até a sua própria angústia, e para com baterem nos outros os efeitos do seu
próp rio sofrim ento interior (caso m uito frequente).
Com eça então muitas vezes a actuar um a estranha «dialéctica» entre a
angústia do paciente que. nos casos mais graves e mais intensos, mais pesa­
dos tam bém de ameaças e de consequências (com o foi o meu), conquista

32
i / r R o M I I 7 O 7 7: v; p o

r.ipidamcnte o m édico e os enferm eiros — e a angústia dos amigos oii parentes


mais chegados. O m édico precisa de se «aguentar» ta nto contra a sua própria
angústia com o contra a angústia da «equipa terapêutica», com o ainda contra a
das pessoas mais chegadas. Mas este «aguentar» não é coisa que se dissimule
Lom facilidacte: nada é m enos tranquilizador para o paciente e para os que lhe
'ã o próxim os do cjue esta luta dem asidado sensível e perceptía el que o m édico
prossegue contra aquilo que, com grande frequência, lhe poderá parecer a
possibilidade de um destino irre\ersí\'el, .Sim, no horizonte do pensam ento do
m édico e da expectati\'a das pessoas mais chegadas delineia-se tam bém, mas
por outras razóes, o destino de um in te n ia m e n to p a r a toda a vida do
paciente.
Se o doente reem ergir para a \ ida e nela se instalar à custa de esforços
gigantescos quer sobre si pró p rio quer sobre todos os obstáculos reais ou fan-
rasmáticos que o tolhem , e ainda que as pessttas mais íntimas o auxiliem real­
mente, de m odo constante, indefcctí\el (tal foi o m eu caso), isso não faz com
«jue deixem de \ i\e r presas da m esm a angústia: conseguirá ele alguma \ ez sair
da situação em que estár' For m om entos sucede que isso não seja crÍAcl. E se
de no\(). no próprio hospital, ele «recomeçasse»? lalvez a matar, apesar de
todos os m eios de protecção, mas sobretudo a cair de novo na doença? E se
lor preciso hospitalizá-Ut de novo para enfrentar uma recaída no estado de
crise aguda, coltará ele a recom por-se•' E se conseguir, apesar de tudo, sobrevi-
\ er. po r que preço o cttnseguirá? Não ficará para sem pre m arcado pelo dram a
e pelas suas sec|uelas? ficará para sem pre um hom em prostrado (com o há tan­
tos!) ou precipitar-se-á na loucura de uma mania irreprim ível com iniciativas
perigosas que nem ele nm ninguém estará em condições de controlar?
£, mais gravem ente ainda, com o conciliar as explicações que cada um
esboçou do seu lado (para cada íntimo, a sua explicação; cada um deles terá
a sua visão retrospecti\ a própria destinada a tentar com preender e suportar o
insuportável) para esclarecer m elhor ou pior o dram a do assassínio de uma
m ulher que nem sem pre conheciam bem. mas sobre a qual, em função de cer­
tos indícios e aparências de superfície e de humor, tinham — p o r força — for­
jado apesar de tudo um a ideia própria, e nem sem pre facorável (a amiga de
um amigo nem sem pre é coisa fácil de suportar), com o conciliar, então, as

33
L o ( / S A /. 7 / / r s s /: A>

idcia.s pró]7rias que fazem do dram a com as «explicações» que o seu amigo s
prop(.')e e llies propõ/e, explicações privadas, confidências, que o mais dí
\ezes não passam de tenfeios desconcertantes em busca, sem pre na noite d
«loucura», de uma clareza impossícel?
bi-los. portanto, esses amigos, num a posição bem singular. Acerca d
período cpie precedeu o drama e do temp(/ interm inável da lK)spitalização. poí
SLiem muitas \ezes observações e porm enores que o doente, envolvido n
am nésia profunda que o protege com o urna defesa, esqueceu. Sabem por issi
mais do ejue ele sobre num erosos episódios, exceptuando o m om ento d(
dram a. Hesitam em confiar ao seu amigo aquilo cjue sabem, com m edo de des
penarem nele a terrível angústia do dram a c das suas sequelas, sobretudo as alu
sões m aldosas de certa im prensa (sobretudo quando o caso é o de um hom en
«conhecido»), as reacções de uns e outros, e talvez sobretudo o silêncio d<
alguns, tam bém eles, toda\ ia. m uito chegados. Sabem m uito bem que cada un
deles procurou pelo seu lado. ou fez tudo para estjuecer (essa tentati\ a im possí
\el) e que as suas confidências ameaçam afectar, dec ido às reacções do sei
amigo, à sua solidariedade fraternal, não só a fraternidade tjue os liga ao sei
amigo com um , mas a própria fraternidade que os ligava uns aos outros, ü qut
entre eles se joga não ê com efeito apenas a sorte do seu amigo, mas também,
tahez. sem dúvida, certam ente, a sorte da prétpriti amizade ciue os une.
Tal foi a razão — dado que até aqui todos puderam falar em vez de mim e
que juridicam ente me foi proibida qualcjuer explicação pública — p o r que
resoh i explicar-m e publicam ente.
Faço-o em prim eiro lugar para os meus amigos c se possível para mim : para
Iccantar esta pesada pedra tum ular que assenta sobre mim. Sim, para me libertar
sozinho, po r mim prceprio, sem o conselho nem o parecer seja de ciuem for.
Sim, para me libertar da condição na qual a extrem a graiidade do m eu estado
(me puseraj (os m eus m édicos julgaram-me por duas vezes fisicam ente m o ri­
bundo), do m eu assassínio, e tam bém e sobretudo dos efeitos equívocos da
declaração de im procedência de que beneficiei, sem poder, nem de facto nem
de direito, opor-m e aos seus trâm ites. Porque foi sob a pedra tum ular da impro-
cedência. do silêncio e da m orte pública que ftii obrigado a sobreviver c a
aprender a viver.
u /-' r 7 r R o k ,1/ r / 7 o 7 7 .t/ p o

His alguns dos efeitos nefastos da im proeedèneia e eis as razões p o r que


'.>l\i explicar-m e publicam ente acerca do dram a que \iv i. Não pretendo
'tc m odo senão Icnantar a pedra tum ular sob a qual a declaração de impro-
dcitcia me enterrou para toda a vida, dando a todos e a cada um as inform a­
L' de que disponho.
Dar-rae-ào, espero, o benctício de considerar que inter\x*nho com o
,\im o hum anam ente possível de garantias objectivas-, não pretendo comu-
. .-.r ao público apenas os elem entos da m inha subjectividade. Por isso con-
:ci dem orada e cuidadosam ente todos os m édicos cjue me trataram , não só
r.mte o meu internam ento, mas m uito antes e até depois, (ionsultei tam bém,
;J,idosam entc, todos os num erosíssim os amigos que acom panharam de
II tudo o cjue me acttnteceu, não só durante o m eu internam ento mas
...ti I antes (dois de entre eles m antiveram dia a dia um diário de bordo desde
ÚV) de 1980 a ju lh o de 1982). Consultei também especialistas em farm acolo-
, c biologia m édica acerca de questões im portantes. Naturalm ente com pulsei
..iior parte tk)s artigos publicados na im prensa p o r altura do assassínio da
mulher, não só em França mas em diversos países estrangeiros onde sou
iucido. Pude aliás \erifica r que com raríssimas excepçóes (de inspiração
rifcstam ente política) a im prensa foi extrem am ente «correcta». F fiz o cjue
autim tinha querido ou podido fazer até acjui: retini, confrontei, com o se
r.aa^se do caso de um terceiro, toda a «documentação» disponível, à luz do
« \ i\ i — e inversamente. E decidi em plena lucidez e responsabilidade
.V por meu turn o finalm ente a palavra para me explicar publicam ente,
''l.mter-me-ei deliberadam ente afastado de qualquer polêm ica, forno
:.i .1 palar ra: naturalm entc far-me-ão o favor de pensar que só a mim com-
'.icto.
l)i^seram-me: «\'ais fazer o caso voltar ao princípio. .Mais vale calares-te e
:.!/ercs ondas.» Disseram-me: «Só há uma solução, a resignação e o silêncio,
■' I da sociedade é tal que a tua explicação nada poderá mudar.» Não acre-
ic«tas precauções. Não penso de m odo nenhum que as m inhas «explica­
' \ ão fazer renascer a polêm ica em torno do m eu caso. Penso pelo contrá-
-le estou em condições não só de me explicar com alguma clareza acerca
!V próprio, com o de le\ ar os outros a reflectirem sobre um a experiência
/, (J I I s .1 /, / u í V s /■; R

concreta cuja «confissão» crítica não tem t|uase precedentes (exccptuada a


admirável confissão de Pierre Rivière publicada p o r Michel Foucault, e sem
dúvida outras que nenhum editor quis difundir por razões filosóficas ou p olí­
ticas) — uma experiência vivida nas form as mais agudas e mais atrozes, que
me excede p o r certo pois põe em causa e em jogo grande núm ero de questões
jurídicas, penais, m édicas, aqalíticas, institucionais e em últim a instância id eo ­
lógicas e sociais — num a palavra, aparelhos que talvez interessem alguns dos
nossos contem porâneos, p o d en d o ajudá-los a lançar um pouco mais de luz
sobre txs grandes debates recentes acerca do direito penal, a psicanálise, a psi­
quiatria, o encerram ento psiquiátrico, e as relações entre eles inclusive na
consciência dos m édicos que não escapam às condições e efeitos das institui­
ções sociais de toda a ordem .
Infelizmente, não sou Rousseau. Mas ao form ar este projecto de escrever
sobre mim e o dram a t|ue vivi e ainda vivo, pensei muitas vezes na sua audácia
inaudita. Não que pretenda dizer com ele, com o no início das Confissões: «Formo
um em preendim ento que nunca teve exemplo.» Não. Mas penso poder subscre­
ver honestam ente a sua declaração: «Direi bem alto; eis o que fiz, o que pensei,
o que fui.» E acrescentarei sim plesm ente: «O que com preendí ou julguei com ­
preender, aquilo de que já não sou completam ente senhor mas em que me tornei.»
Aviso: Aquilo que se segue não é nem diário, nem m em órias, nem auto­
biografia. Sacrificando tudo o mais, quis somente conservar o impacto dos afec-
tos em otivos que m arcaram a m inha existência e lhe deram a sua forma: essa
em que me reconheço e em tiue penso que será possível reconhecerem -m e.
Este levantam ento ora segue po r vezes a ordem do tem po, ora a antecipa,
ora a cham a à m em ória: não para confundir os m om entos, mas pelo contráriv)
para põ r em evidência atrav és do encontro entre os tem pos aquilo que co n sti­
tui duradouram ente as afinidades m estras e distintas dos afectos em torno dos
titiais po r assim dizer me constituí.
Este m étodo impõs-se-me naturalm ente: a cada um caberá julgá-lo pelos
seus efeitos. Tal com o poderá julgar pelos seus efeitos a força na m inha vida
de certas form ações violentas a cjue outrora cham ei Aparelhos Ideológicos
de Estado (AlE) e que, para m inha surpresa, não pude deixar de utilizar para
com preender o cpie me aconteceu.

á6
lU

' .ivci no dia 16 de O utubro de 1918, às quatro horas e meia da m anhã, na


N Lasa florestal do «Bois de Boulogne», com una de Birmandreis. a quinze
m etros de Argel.
[)isseram-me c]ue o m eu avô, Pierre Berger, desceu a correr para prevenir
- ^imos da cidade um a m édica russa, conhecida da m inha avó; que essa
. :icr. brutal, jovial e calorosa, trepou até m inha casa, assistiu a m inha mãe
parto e. ao avistar a m inha grande cabeça, garantiu; «Este não é com o os
Estas palavras, transform adas, perseguir-m e-iam por m uito tempo.
. : "ibro-me de a m inha prim a direita e a m inha irm ã repetirem a m eu respeito,
_ .indo eu me aproxim ava da adolescência.- «O Lotiis é um tipàparte.» As três
,i\ ras form avam um a só.
Q uando vim ao m undo, o m eu pai estava ausente havia n o \x meses: pri-
ic;ro na frente, depois retido cm França até à desmobilizaçâo. Durante seis
ir'CS, não tive portanto pai à cabeceira, e até iMarço de 1919 vivi com a m inha
' .Ic sozinha, na com panhia do m eu avô e da m inha avô m aternos.
Eram ambos filho e filha de cam poneses pobres da região de Fours, no
' irsan (Nièvre). Em novos, cantavam todos os dom ingos na igreja, o meu
. o jovem Pierre Berger, ao fundo da igreja no cadeiral do coro que
ncima a grande porta de entrada junto à corda que puxa o sino, com os rapa-
c ' da aldeia. A m inha avó, a jovem M adeleine Nectoux, junto ao altar com
raparigas. M adeleine andava no colégio das freiras que arranjaram o casa­
mento. Decidiram que Pierre Berger era um rapaz sério e que cantava bem. Era

3'
L O r / s ,1 / / // r S V /:

encorpado e pequeno, um tanto fechado, mas por trás do seu bigode recente,
bonito moço. O casam ento fez-se. com o então era costum e na região: sem his­
tória. Mas nem do lado dos pais do meu avô nem do lado dos pais da m inha
a\ ó havia terra suficiente para instalar e alim entar o jovem casal. Iam ter cjue
descobrir um lugar para viverem noutro lado. Eram os tem pos de Jules Ferr\
e da epopeia colonial da França. () meu avó), nascido junto das florestas e não
querendo abandoná-las, sonhaca com uma carreira de guarda florestal em
Madagáscar! M adeleine não estava pelos ajustes. Antes do casam ento, precisara
em term os im perativos os seus pontos de vista: «Guarda florestal, está bem,
mas nunca mais longe do c]ue na Argélia, senão não caso contigo!» O meu at ò
tet e que ceder, seria a prim eira, mas não a últim a \ez. A m inha avó era uma
m ulher com cabeça, sabia o que queria, mas m antinha-se sem pre serena e
com edida nas suas decisões e pala\ ras. D urante a \ ida toda foi ela o elem ento
de equilíbrio do casal.
Foi assim que os Berger se expatriaram para a Argélia e que o m eu avô aí
fez uma carreira de guarda florestal nas m ontanhas mais recuadas e selvagens
cia .\rgélia, cujos nom es me voltaram à m em ória quando se tornaram , nos anos
60, os lugares pri\ ilegiados de refúgio e de com bate da Resistência argelina.
O meu avó arruinou a saúde cm interm ináveis correrias diurnas e n o c tu r­
nas a cavalo. Os árabes e os berberes gostavam dele. Tinha p o r tarefa proteger
as florestas contra as cabras que trepavam às árvores e devoravam os rebentos
novos, mas sobretudo com bater os fogos, que podiam incendiar os bosques.
Mas estava tam bém encarregado de traçar estradas nos acidentes de um relevo
difícil, e de vigiar as obras, fím a noite, cjuando a neve cobria todo o m aciço de
Ghrca, partiu sozinho a pé para a m ontanha em socorro de uma ecjuipa de sue­
cos c]ue po r lá se tinham aventurado e perdido. O m eu avó conseguiu, nunca
ninguém soube como. encontrá-los e fê-los chegar, três dias e três noites mais
tarde, extenuados, á casa florestal. Foi condecorado por este acto de dedica­
ção: guardo ainda com igo a sua cruz.
Durante todo o tem po cpie duravam as suas saídas e obras, a m inha avó
ficava sozinha, dia e noite, na casa florestal isolada nas matas. Insisto neste
ponto, que não deixa de ser importante. Lançados sem transição do cam po
m ort andês. onde reinava a convivialidade cam ponesa tradicional, nas florestas

38
o F V I r o M ( / / o 7 F M F O

recuadas e selvagens da Argélia, os meus avós \ i\eram cerca de quarenta


.mos praticamente sozinhos, até mesmo cjuando mais tarde chegaram as suas duas
vllias. A única sociedade de que podiam gozar era a dos árabes e dos berberes
CO lugar, que nunca era o mesmo, e da inspecção irregular (uma \ ez de ano em
..no) dos «patrões» das Matas e Florestas da Argélia, entre os quais lunia um certo
'c n h o r de Pet rimoff, para quem o meu pai alimentava e alm ofaça\ a cuidadosa­
mente um belo cavalo de raça, que só para esse .Senhor s e n ia . Além disto, algu-
o.ias raras visitas às povoações próxim as ou às cidades longínquas. F era tudo.
O meu a\ ò nunca para\a, sem pre com uma inquietação diabólica, a res-
oungar sem descanso, não se concedendo um único instante de repouso, sem-
ore nas suas andanças ou preparando-se para elas. Q uando partia, muitas \ ezes
oor vários dias e noites, a m inha ac ó ficaca sozinha. Falou-me am iúde da
.nsurreição de «Marguerite». Estava sozinha na casa florestal com as suas duas
rilhas e as tropas dos árabes exaltados ameaçavam passar nas cercanias imedia-
r.i', e. no seu furor, em bora o m eu avó e a m inha avó fossem amigos dos indí-
aenas do lugar, com o as tropas vinham de outras partes e de bastante longe,
v idia recear-se o pior. A noite de m aior risco passou-a a m inha avó sem dor-
iir. com as duas filhas pet|uenas (uma das tjuais era a m inha futura mãe) des-
-.insando sem receio ao pé delas m ergulhadas no sono. Mas durante toda a
' lite conservou uma espingarda de caça nos joelhos. Contou-m o: duas balas
.1 culatra para as m inhas duas filhas, e uma terceira ao alcance da m ão para
r.im Até de m anhã. A insurreição passara ao largo.
Refiro esta recordação encobridora porque contada pela m inha avó m uito
:,m p o depois, uma vez que me ficou com o um dos meus terrores de criança.
Conservei uma outra recordação, tam bém contada pela m inha a\ ó, que
' c fez tremer. Era uma casa florestal diferente, no m aciço do Zacear. a uma
nga distância de Blida, a cidade mais próxim a, A m inha futura mãe e a sua
' nã. com seis e quatro anos aproxim adam ente, brincavam na água de uma
. 'ga e rápida vala de água fresca que corria ao ar livre entre duas margens de
mento. L’m pouco mais adiante a água engolfava-se num sifão; e não se vol-
,i a \ è-la reemergir. A m inha futura mãe caiu à água, foi arrastada pela cor-
me e ia desaparecer no sifão, quando a m inha avó acorreu para a salvar no
Imo segundo agarrando-a pelos cabelos.

39
/ o r / ,s .1 A / A/ / S ,S A A>

Havia deste m odo ameaças de m orte na m inha cabeça de criança, e


quando a m inha avó me contava estes episódios dram áticos, tratava-se da
m inha própria mãe, da sua morte. Durante m uito tem po trem i po r causa deles,
naturalm ente (ambivalência), com o se a tivesse desejado inconscientem ente.
No m eio deste isolamento, não sei com o a m inlia futura mãe e a sua
jovem irm ã conseguiram estudar. Imagino que a m inha avó se tenha encarre­
gado do caso. Veio a guerra. C) meu a\ ò foi m obilizado para o lugar ttnde se
encontrava e no final da sua carreira o Senhor de Per rim off fè-lo nom ear para
o posto da bela casa florestal do Bois de Boulogne que dom inava toda a cidade
de Argel. Era um sítio m uito m enos isolado, e o trabalho m enos duro. Apesar
de tudo a cidade ficava a quinze cjuilctmetros, e era preciso andar ciuatro quilô­
m etros a pé para se apanhar (na paragem da Colonne-Voirol) o eléctrico que
seguia ate à place du G ouvernem ent, em plena cidade, m uito perto de Bab-el-
-Oued. com as suas ruas ruidosas e pululantes de pequenos brancos (franceses,
espanhtns, maltcses. libaneses e outros m editerrânicos que falavam «sabir»).
Mas o meu a\ ò e a m inha avó nunca desciam à cidade, excepto em raríssimas
ocasiões. Numa delas, travaram conhecim ento, nos escritórios das Matas c Flo­
restas locais, com um funcionário subalterno, cham ado Althusser, casado e pai
de dois rapazes. Charles o mais velho e Louis.
.Mais uma família de emigrados recentes! Não conheci o avó Althusser, mas
a mãe sim, um a m ulher extraordinária, direita com o um fuso, de fala rude e
carácter inabalárel. Via-a raramente, o m eu pai não lhe tinha grande amor,
retribuindo-lhe os sentimenUts que ela lhe dedicava e nos dedicava a todos nós.
Mais um a recordação pungente. Os Althusser tinham , em 187], escolhido
a França, depois da guerra de Napoleão 111 e de Bismarck. e com o num erosos
alsacianos que queriam continuar franceses, tinham sido literalm ente «depor­
tados» para a Argélia pelo governo da época.
Uma vez transferido o pai Berger para o Bois de Boulogne, a m inha futura
mãe (Lucienne) e a sua jovem irm ã (.fuliette) puderam frequentar a escola da
((olonne-Voirol. A m inha mãe foi um a aluna exemplar, ajuizada, virtuosa com o
já não há. e tão disciplinada perante os seus m estres com o o era diante da sua
mãe, A m inha tia, em contrapartida, era a fantasista da família, a única de
resto, sabe Deus porquê.

40
o F r r r r o / M r I r o 1 F M p o

Os Berger e os Althusser passaram a ver-se de tem pos a tem pos, os


Althusser «subiam» p o r vezes aos dom ingos até à casa florestal e tendo os res­
pectivos filhos crescido e achando-se com idades relativam ente condizentes
quer dizer, sendo as raparigas m uito mais novas do que os rapazes, p orm enor
^Lija im portância se revelará mais tarde), os pais puseram -se de acordo para os
.asar. Não sei porquê Louis, o mais novo, com Lucienne e o mais velho, Char-
ics. com Juliette. Ou antes, sei m u ito hem-, para respeitar as afinidades que
prontam ente se tinham m anifestado e im posto. Porque Louis era também ele
piuito bom aluno, m uito atilado e m uito puro. dado à literatura e à poesia: ten-
.lonaca preparar-se para o concurso de adm issão na Norm ale Supérieure de
''.lim -Cloud. iMal o m eu pai, o mais velho, acabou a escola prim ária, a m inha
,i\d m aterna pô-lo autoritariam ente a trabalhar com o m oço de recados num
"^anco: o m eu avô paterno não pôde dizer uma palavra. Com efeito, não havia
em casa dinheiro suficiente para pagar os estudos dos dois rapazes, e a m inha
-P Ó paterna detestava Charles, o seu filho mais velho. Q uando o pôs a traha-
har, ele tinha treze anos de idade.
Conservei duas recordações desta avó impossível. Lana bastante engra-
e.ida mas cheia de sentido, vem-me do m eu pai, que me contou am iúde o caso
Je Fachoda. Ao despontar de uma am eaça de guerra entre a França e a Ingla-
:crra por uma pequena fortaleza em África, a m inha a\ ó paterna não hesitou;
rdenoii no m esm o instante ao m eu pai que corresse a com prar trinta quilos
.Ic feijão seco, boa receita contra a fome, os feijões ct)nservam-se bem se não
,.)U\er gorgulhos e alim entam com o se fossem carne. E vinte quilos de açúcar.
i"cnsei muitas vezes nesses feijões secos desde que soube que constituíam a
'.ise da alim entação dos países miseráveis da América Latina, sem pre os adorei
: ponto de me em panturrar deles (mas isso vinha-m e do m eu avô m aterno no
‘ lorvan), esses grandes feijões encarnados italianos de que estendi uma tra-
L^sa a Franca, a esplêndida jovem siciliana por quem mais tarde me apaixona-
i.i loucam ente, desse m odo me declarando, enquanto ela se cahna, para Icnar
m elhor no seu coração.
Numa outra altura (o que não teve graça nenhum a, e trata-se de uma lem-
:-.inça m inha) vi essa terrível a\'ó num apartam ento que dom inava a avenida
ÍTeira-mar. onde se realizava em Argel o grande desfile m ilitar do la de Julho

41
/. o í / s ,1 L t H r V S /: A’

debaixo de um sol de chum bo, diante dos barcos em bandeirados no porto


\ ã o sei p o r que é que estacam os naquele apartam ento dem asiado rico para
nós. Depois do desfilar das tropas, essa avó que eu sentia repugnância em bei
jar, porque tinha, m ulher-hom em que era, bigodes debaixo do nariz e pèlos
que «picavam» por toda a cara, sem nada exibir de agradácel, nem sequer um
sorriso, tirou da som bra uma raciuete barata (eu com eçaca então a jogar tênis
em família): era uma prenda para mim. Tudo o que vi foi a dureza de fuso da
m inha avó e a dureza do cabo ordinário da m inha raquete. I ma repulsa. Deci­
didam ente não conseguia suportar as m ulheres-hom ens incapazes de um sim ­
ples gesto de am or e dádic a.
Chegou então a guerra. A m inha mãe (ainda adolescente ou quase, quando
o conheceu, dezasseis anos, mas nunca antes ela conhecera outro hom em ,
nem m esm o com o amigo) sentia-se bem na com panhia de Lotus. Adoraca
com o ele os estudos em que tudo se passa apenas na cabeça, e nunca no
corpo, s(tb o o m agistério e a protecção de bons m estres cheios de virtude e
de certezas. O que fazia com que se entendessem em profundidade. 'lãtt atila­
dos e puros — sobretudo puros — um com o o outro, vivendo no m esm o
m undo de especulações e de perspectivas etéreas, sem quaisquer consequên­
cias para o corpo, essa «coisa» perigosa, tornaram -se rapidam ente cúm plices
na troca das suas paixões puras e dos seus sonhos desencarnados. Mais tarde,
eu havia de proferir diante de um amigo ejue ma recordou esta frase terrível:
«O p ro b le m a é que há corpos, e p io r a in d a , sexos. »
N'a família, Lucienne e Louis eram considerados noivos, e em breve fica­
ram prom etidos. Q uando Charles e Louis partiram para a guerra. Charles na
artilharia, Louis no que viria a ser a aviação, a m inha m ãe alim entou uma
interm inável correspondência pura com Louis. A m inha mãe guardou sem pre
consigo um m aço de cartas fechadas que me intrigava. De tem pos a tem pos os
irmãos, alternadam ente ou juntos, vinham de licença. O m eu pai mostraria a
toda a gente as fotografias dos seus gigantescos canhões de longo alcance, e ele
diante deles, sem pre de pé.
Um dia. mais ou m enos nos com eços de 1917, o m eu pai apareceu sozi­
nho na casa llorestal do Bois de Boulogne, e anunciou ã família Berger ciiie o
seu irm ão Louis m orrera no céu de Verdun, a bordo de um aeroplano onde

42
o / r 7 r A> o M r I I o I /; M F o

ra/ia o seu serviço de observador. Depois Charles cham a a m inha mãe de parte
ao grande jardim e acaba p o r lhe p ro p o r (os term os foram -m e repetichts muitas
\ ezes pela m inha tia, Juliette) «tomar ao lado dela o lugar de Louis». Afinal de
«ontas, a m inha mãe era bonita, jo \e m e desejável e o meu pai gostar a deveras
do seu irm ão Louis. Pôs sem dúvida nas suas palavras toda a delicadeza possí-
\ el. A m inha mãe ficou po r certo transtornada pela notícia da m orte de Louis.
que amava profundam ente à sua m aneira, mas confusa e perplexa pelo aspecto
m esperado da proposta de Charles. Mas bem vistas as coisas, o caso assim não
'.lia da família, das famílias, e os pais só podiam dar o seu assentimento. Tal como
era e tal com o a conheci, atilada, \ irtuosa, submissa e respeitadora. sem outras
uleias próprias para além das tjue trocava com Louis, a m inha mãe aceitou.
O casam ento deve ter sido celebrado na igreja em Fevereiro de 1918. no
Llecorrer de uma licença de Charles. Faitretanto, a m inha mãe tornara-se, havia
,im ano, professttra prim ária em Argel, num a escola próxim a dtt parejue de
i.alland onde, à falta de Louis, encontrara hom ens que podia o m ir, e com
,;uem podia falar de temas sem pre de uma igual pureza: professores prim ários
tem pos áureos, consciências, responsáveis pela sua profissão e pela sua
:ni'-são, sensivelm ente mais velhos do que ela (alguns poderiam ser seus pais),
"c^peitadores da caheça aos pés da jovem que ela era. Pela prim eira \e z a
cunha mãe com pusera um m undo seu, que se sentiti feliz por conhecer e fre­
quentar. mas nunca fora do quadro escolar. Lstavam as coisas neste pc quando
.m belo dia chegou o meu pai, \ indo da frente, e foi celebrado o casamento.
:\ m inha mãe escondeu-m e sem pre os porm enores deste casam ento hor-
v \e l. do qual não posso conservar e\id en tem en te tjualquer recordação pes-
- mI, mas de que a m inha tia, muittt tem po depois e muitas \ ezes, me falou. ,Se
: descrições tardias me im pressionaram tanto, não foi por certo sem razão:
eno-as ter rew stid o de um h orror bem meu para as inscrerer na linhagem
epetitixa de outros chociues afectiros com a mesma tonalidade e a mesma
lencia. Fm breve verem os que choc]ues foram esses.
( clebrada a cerim ônia, o m eu pai passou alguns dias com a m inha mãe
ntes de \o lta r a partir para a frente. m inha mãe conservou deles, ao que
irece, uma atroz e tripla recordação: a de ter sido violada no seu corpo pela
; lencia sexual do m arido, a de \ e r delapidadas p o r ele, num a noite de farra.

-íã
L o r 1 s 1 /, 7 H r S S li R

todas as suas econom ias de solteira (quem não com preenderia o m eu pai, que
ia \o lta r para a frente, sabia Deus talvez para m orrer, mas era tam bém um
hom em extrem am ente sensual que antes da m inha mãe tivera — horror! —
axenturas de rapaz incluindo um a amante cham ada Lotiise (esse nom e...) a
ciuem abandonara definitivam ente e sem um a palavra após o casam ento, uma
m isteriosa rapariga pobre da qual a m inha tia me falou tam bém com o sendo a
pessoa cujo nom e nenhum a pessoa da família devia pronunciar). Para com ple­
tar tudo o m eu pai decide inapelavelm ente que a m inha mãe deve abandonar
im ediatam ente a sua profissão de professora prim ária, ou seja, o seu m undo de
eleição, pois teria filhos e ele queria-a em casa e só para ele.
A seguir volta a partir para a frente, deixando a m inha m ãe transtornada,
roubada e violada, dilacerada no seu corpo, de.spojada dos poucos tostões que
pacientem ente econom izara (uma reserva, porque nunca se sabe — o sexo e o
dinheiro associam-se aqui intim am ente), cortada sem apelo de um a vida cjue
aprendera a construir para si p rópria e a amar. Se forneço estes porm enores,
c porque eles contribuíram por certo para form ar retrospectivam ente, p o r­
tanto para confirm ar e reforçar no inconsciente do m eu «espírito», a imagem
de uma m ãe m á r tir e a sangrar com o u m a fe r id a . Esta mãe associada a
recordações (narradas tam bém elas m uito depois), episódios de um a am eaça
de m orte precoce (evitada po r milagre), ia transform ar-se na mãe padecente,
votada a um a do r ostentada e cheia de recrim inações, m artirizada no dom icí­
lio pelo m arido, com todas as suas feridas abertas: m asoquista mas por isso
m esm o tam bém terrivelm ente sádica, quer para com o m eu pai que tom ara o
lugar de Louis (e portanto fazia parte da sua m orte), quer para com igo (pois
não podia deixar de querer a m inha m orte, do m esm o m odo que esse Louis,
que ela amava, estava m orto). Perante este doloroso horror, eu iria sentir inces­
santem ente um a angústia sem fundo, e a com pulsão de me dedicar a ela de
corpo e alma, de me consagrar oblativam ente a socorrê-la para escapar a uma
culpabilidade im aginária e para a salvar do seu m artírio e do seu m arido, bem
com o a convicção inextirpável de que tal era a m inha missão suprem a e a
m inha suprem a razão de viver.
Para mais. a m inha mãe via-se precipitada, desta feita pelo seu m arido,
num a nova solidão sem apelo possível, e com igo num a solidão a dois.

4 4
r r I i R o / M r I I o E M p o

Q uando vim ao m undo, baptizaram -m e com o nom e de Lt)uis. Sei-o bem


de mais. Louis: um nom e próprio que durante m uito tem po literalm ente me
iiorrorizou. Achava-o dem asiado curto, com um a única \ogal. e a última, o i.
terminava num agudo que me feria (cf, adiante (t fantasma do em palam ento).
F sem clúr ida dizia tam bém um pouco de mais e em m eu lugar; o n i (sim),
c eu revoltava-mc contra esse «sim» que era o «sim» ao desejo da m inha mãe,
c não ao m eu. Mas sobretudo dizia: lu i (ele), esse pronom e da terceira pessoa,
que, soando com o o apelo de um terceiro anônim o, me despojara de toda a
personalidade própria, e aludia a esse hom em horrível que eu tinha atrás das
^ostas: Lui, c ’éla it Louis (Ele, era Louis), o m eu tio. que a m inha mãe amava,
c não eu.
Este prim eiro nom e fora escolhido pelo m eu pai, em lem brança do seu
irmão Louis m orto no céu de Verdun, mas sobretudo pela m inha mãe, em
m em ória desse Louis cpie amara e que, durante toda a sua r ida, nunca deixou
de amar.
IV

f todo o tem po que passám os em Argel (até 1930), eonser\'o duas ordens
J L ^ de reeordações insustentat elm ente e afortunadam ente contrastantes.
As dos m eus pais cuja vida em família partilhaea e da escola onde andava, e as
dos meus a\ ()s m aternos durante todo o tem po que \ it eram na casa florestal
do Bois de Boulogne.
A recordação mais longínqua que guardo do meu paí (mas tão «precoce»
tiLie por certo se trata de uma recordação encobrídora recom posta mais tarde)
é o pró p rio instante do seu regresso de França, seis meses após o fim da
(iiierra. F assim o que vejo ou creio ver, A m inha mãe que na obscenidade
elos seios quase descobertos me envergonha, transbordante de v ida. está comigo
ao colo quanelo se abre a porta do rés-do-chão, que dá para o grande jardim,
até ao infinito do m ar e do céit: na m oldura da porta, contra o fundo do ar
primaveril. surge uma silhueta altíssima e esguia, tra/endo atrás de si, por cima
da cabeça, nas alturas das nuvens, o longo charuto preto do D ixm ude, esse
dirigível alem ão cedido à França a título de reparação, e que dentro de ins­
tantes se afundaria no incêndio e no mar. Não sei nem quando, nem sobre­
tudo conto, mas devo, retrospectivamente, ter constituído ou reconstituído esta
imagem, em qtie o m eu pai me apareceu tendo po r pano de fiinekt um sím ­
bolo dem asiado claro, sexo e m orte na catástrofe, Mas esta associação, ainda
cjue seja efeito de uma construção retrospectiva, tem sem dúvida a sua im por­
tância, com o veremos, no cortejo das m inhas marcas inaugurais.

46
/ i / r R o f .1/ ( / y o r ! u !>

O meu pai era um hom em de elc\ada estatura (um m etro e oitenta e qua­
tro). .senhor de um belo rosto alongado, mtircado por um nariz fino e bem
desenhado («um im perador romano»), enfeittido por um bigodinho que ele
eonservou inalterado até à m orte, com a testa alta e cheia de inteligência e
malícia. De facto, era na verdade extrem am ente inteligente e não apenas em
term os de inteligência prática. Disso deu provas aliás na sua profissão, uma \ ez
que. tendo entrado para o bttnco com o simples m oço de recados e com o
diplom a do ensino elementar, subiu todos os escalões da Com pagnie Algé-
rienne, a b so r\id a tardiam ente pelo Banejue de 1'Union Parisienne, c depois
pelo Crédit du Nord. Acabou cttmo director-geral das sucursais m arroquintis
da (iom pagnie Algérienne, depois com o director da im portante delegação de
Marselha, após uma dupla etapa, prim eiro em Marselha com o deleg;u.lo. depoí.''
em Lyon com o sub-director. A sua com petência e a sua com preensão d:is tjiie»-
tões financeiras e dos negócios, para não falar das técnicas e da organização d;i
produção (adttrava ir verificar pessoalm ente o andam ento de todos os uego-
cios em que o seu banco intervinha) foram m uito apreciadas pelos seu^ supç
riores de Paris, m otivo das suas prom oções e deslocaçêtes sucessi\as c «ias
peregrinações (entre Argel, Marselha, Casablanca e Lyon) que impôs à nossa
pequena família, com essas m udanças de casa de que a m inha mãe não para\ a
de se c(ueixar abertam ente a ejuem quisesse ouvi-la: tam bém neste capítulo, ela
não passava de um lam ento perp étu o que me fazia sttfrer horrixelm cnte
O meu pai, no fundo extrem am ente autoritário, e sob todos os aspectos
m uito independente, até m esm o e talvez sobretudo em relação aos scus. líttha
de uma vez p o r todas separado os dom ínios e os poderes: para a m ulher ape
nas o lar e os filhos, para ele a sua profissão, o dinheiro e o m undo exterior.
.\o cjue se referia a esta divisão m ostrou-se sem pre intratável. Nuncti tontou a
m enor iniciativa a respeittt do interior da casa ou da nossa educação Pni um
dom ínio em que a m inha m:ie dispunha de todos os poderes. Km co n trap ar­
tida, nunca falou em família da sua profissão nem das suas relações no exterior
Icom cxcepção de r/o/s dos seus amigos que conhecem os atra\ és dele. e um
dos quais tinha um carro ciue nos levou um dia até à neve de Chré.i). St) seis
meses antes de m orrer, no pequeno pavilhão de Viroflay para onde se retirara
após a reform a, o meu pai falou. Deve dizer-se que fui eu quem ter e. ni:i:s tão

4
!_ o r I s .I /, / II i s s /.

tarde!, a audácia de o interrogar, cnejuantt) ele sentia, além disso, aprttxiniar-se


o fim, ou. com o ele dizia, a «decrepitude». (otm eçou |?or me dizer que sou
hera m uito de antem ão o que o esperava no banctj.
Q uando se encontrax a em la o n durante os prim eiros tem pos do governt)
de \'ich \ (até 19 i2), recusara-se a tom ar parte num a associação ele banciueiros
cjue aehogaxam a Revolução Xacional. Do m esm o moelo, em Marrocos,
qttando o general Juin jimtii fazer M oham m ed \' «comer palha», o meu pai,
que era a figura mais im portante da banca m arrttquina, e enquanto a tribo dos
directores bancários fazia a sua corte ao Residente, guardou ostensivam ente,
aos olhos de todos, uma reserx a deeiarada. Q uando se reform ou, tinha com pe­
tência. experiência e currículo bastante para ciue a Adm inistração de Paris
assumisse, com o era seu costum e e seu interesse, a decisão de o associar ao
grupo. «Sabia que nunca o fariam, eu não era da família, nem polytechni-
cien '. nem protestante, nem casado com um a filha deles.» 'finham -se lim i­
tado a agradecer-lhe os seus ser\ içtts. sem mais uma palavra. E contudo, que
comjsetència e largueza de \ istas as suas! Quando, nesse dia, o interroguei
>ohre a conjuntura econôm ica e financeira, aquele hom em de idade avançada,
m uito dim im tído m.) físico mas de espírito lúcido, fez-me uma exposição notá-
\ el sobre a situação não só financeira c econétmica, mas também política, c]ue
me assom brou pela sua inteligência, pela sua penetração, pelo seu sentido dos
problem as e dos conflittts sociais, Quv hom em atiuele. com quem eu me c ru ­
zara, sem dar po r nada! Mas ele m antivera-se toda a vida calado acerca da sua
pessoa, e eu nunca me atrevera a fazer-lhe perguntas, a levá-lo a falar de si. De
resto, ter-me-ia respondickt? Devo acim a de tudo confessar t|ue durante m uito
tem po odiei o meu pai por ele fazer a m inha mãe sofrer aciuilo c]tte eu vivia
com o um m artírio para ela, e portanto também para mim.
( ma vez, no entanto, em .Marselha, depois da guerra, aconteceu-m e estar
com ele no seu gabinete, onde viera buscá-lo, num a altura em que entraram
tam bém diversos colaboradores para subm eterem os seus dossiers à apreciação
dele O meu pai tinha fama de decidir sem pre sem hesitações. Em silêncit) per-
ctvrreu lentam ente os dossiers, ergueu a cabeça e dirigiu algumas palavras aos

■ rnçcnlu.-in> form.ido pcl.i Hcolc Polyicchniquf, (.V, do ]

-f8
/ r / r R o f: M i / I o I H M F O

lIoís hom ens qne espera\am à sua frente. Algumas palavras entre dentes, semi
c'tro p iad as e para mim totalm ente ininteligíveis, ü s seus colaboradores saí-
.am. sem perguntar mais nada. «Mas eles não perceberam ! — Não te aflijas;
hão-de perceber.» Foi assim cjue. p o r acaso, descobri com o dirigia o m eu pai
' seu banco. Esta im pressão seria confirm ada mais tarde por um dos seus anti­
gos colaboradores cjue conhcci em Paris: «O seu pai. mal conseguíam os
cntendè-lo. e m uitas vezes saíamos sem nos atreverm os a fazè-lo repetir o que
nos dissera. — E depois? — Depois era a nossa vez de arriscar!» O m eu pai
governava» assim: sem nunca chegar a fazer-se entender bem. uma m aneira
nilvez de deixar os seus colaboradores perante um a responsabilidade que
otbiam sancionada, mas não explicitam ente definida. Conheciam sem dú\ ida
o seu ofício, ele form ara-os sem dúv ida havia m uito segundo a sua escola, e
'cm dúvida sabiam o suficiente do m eu pai para com preenderem em que sen­
tido se inclinava, Nem sequer o seu m otorista chegava sem pre a entendè-lo
guando havia um novo itinerário! O m eu pai transform ara-se assim num a per-
'onagem cheia de bonom ia mas autoritária e a tal ponto enigm ática nos seus
vtrborigm os que os seus cttlaboradores tinham aprendido, para não sofrerem
.; dureza das suas reprim endas, a antecipar-lhe as decisões cjuase ininteligíveis.
Dura escola do «governo dos hom ens», que nem sec|uer Maquiavel teria imagi-
n.ido, e cujo êxito foi surpreendente. Antigos colaboradores do m eu pai que
^onheci após a sua m orte confirm aram -m e o seu estranho com portam ento e
'' respectivos efeitos. Não o tinham esquecido e falavam dele com uma adm i­
ração que raiava a devoção: não havia ninguém com o ele. Um «tipàpartc».
Nunca soube que parte de consciência deliberada ou de indecisão
nterna, ou até de m al-estar interior, entrava no com portam enttt do m eu pai
:ais suas relações com os outros, senão m esm o consigo próprio. Foda a sua
^um petência e a sua inteligência tinham que coabitar com uma dificuldade
orofunda de expressão clara perante outrem , com um a reserva, não tanto de
princípio com o de factv), sustentada po r uma reticência ancorada na alma. Este
iiomem autoritário, arrebatado às vezes po r explosões violentas, via-se ao
lesm o tem po e sem dúvida profundam ente paralisado na sua expressão po r
ama espécie de im potência em se m ostrar perante outrem , m edo que o preci-
mtava na sua reserva e o tornava incapaz de decisões claram ente afirmadas.

49
o y r 7 r K o M I / / o / /; 1/ P (J

\ ivia sem parar na apreensão dos seus gritos de fera insustentáx eis que nunea
pude esqueeer. Q uando mais tarde, assum indo eom extrem a agressi\'idade a
defesa da m inha mãe m ártir contra ele, eu o provoca\a até ao limite da sua
paciência, o meu pai levantava-se m uito direito, saía da mesa antes de acabar
a refeição, e soltando a única palavra que então di/ãa, «Fautré!» ', batia com a
porta e sumia-se na noite. Apoderava-se de nós, ou pelo m enos apoderava-se
de mim, uma angústia atroz: o meu pai abandonara a m inha mãe. abandonara­
-nos (a m inha mãe parecia indiferente): teria partido para sempre? \o ltaria ou
desapareceria de \ez? Nunca descobri o que fazia ele nessas alturas, quando
ficava sem dúvida a vaguear nas ruas nocturnas, iMas de todas as vezes, ao cabo
de um tem po que me parecia interm inár el, voltava a entrar e sem dizer palac ra
ia deitar-se, sozinho. Sempre me perguntei o que poderia ele dizer depois à
m inha mãe. a mártir, ou se lhe diria sequer alguma coisa. Achava-o incapaz de
lhe dizer fosse o que fosse. F. tanto antes com o depois da sua explosão, tín h a­
mos direito ao m esm o hom em , incapaz de nos tratar de outro m odo que não
fosse mtxstrar-nos silenciosa e ostensivam ente «má cara». Depois, tudo pas-
'a^ a.
Mas isto era só um dos aspectos da sua pessoa. Q uando estava com am i­
gos (os raros que conhecíam os), longe das preocupações do trabalho, tornava-
se de uma ironia m ordaz e irresistível. Brincava com as pessoas e consigo p ró ­
prio, acumulava as intervenções espirituosas e as arrem etidas provocadoras,
sempre mais ou m enos carregadas de alusões sexuais, tudo com um a htrça de
inrençáo incrível, aprisionando os interlocutores no seu riso, riso cúm plice e
t.imbém mal-estar: era dem asiado forte e ninguém frente a ele ctmseguia ter a
última palavra. Ninguém, c m enos do que todos os outros a m inha mãe. era
capaz de entrar no jt)go dele e de enfrentar os seus assaltos. Tratava-se pr>r
certo de um a defesa ainda, para evitar ter que dizer acjuilo que pensara ou
qtieria, talvez p o r não saber ao certo o que queria, mas não ciueria, sob o \é u
transparente de uma ironia desenfreada, senão dissim ular um mal-estar e uma

' í a n tr i' paluMu invcniaüd pelo pai üc l.oiii.s Altluis.scr. c om bina ndo pro\ avclmcntc «íaute»
■isncira). «outre ■ (indignado) c «lallcv \ o u s íairc) fouirc» (foda sc). Isto com base numa informação
i'>rnccida pelos organizadores da edição francesa. ( \. d o 7. )

51
/ o I I s A / 7 H r S S /. K

indecisão profundos. Acima cie tudo gostar a de p ro ro car as m ulheres dos seus
amigos, cjue espectáculo! E eu sofria pela m inha mãe a \ ê-lo fazer-lhes assim
uma corte «escandalosa». Excitava-o particularm ente a m ulher de um dos seus
colegas de escritório, um dos raros amigos cjue lhe conhecíam os. Ela cham ava­
-se Suzy, era um a m ulher bastante bonita, cheia de vida, segura dos seus
encantos e encantada por se r e r provocada daquela m aneira. O m eu pai lan­
çava o assalto diante de nc>s, e com eçava um torneio erótico interm inável que
fazia Suzy derreter-se de confusão, riso e prazer. Em silêncio eu sofria pela
m inha m ãe e pela ideia Cjue eu pró p iro d evia fazer do m eu pai.
De facto, este hom em poderoso era profundam ente sensual, gostava de
\ inho e de carnes mal passadas, tanto com o gostava de m ulheres. Foi então
cjue um belo dia, em Marselha, a m inha m ãe se encantou po r um certo dr.
Om o — mais um espírito puro que conquistou a sua ingenuidade. O m édico
possuía um a bela casa de cam po nos jardins floridos do norte da cidade, onde
cultiva\a os legumes que com punham a sua dieta, e pregava um vegetaria­
nism o estrito (uns frascos pequenos que vendia razoavelm ente caros). A m inha
mãe obrigou-nos então, à m inha irm ã e a mim, a seguir com o ela um regime
puram ente vegetariano — e que se prokm garia po r seis anos! O m eu pai não
levantou qualquer objecçào, mas exigiu continuar a ter todos os dias o seu bife
em sangue. Então nós com íam os co m es, castanhas e uma m istura de mel e
am êndoas ostensivam ente raladas diante dele. que partia tranquilam ente a sua
carne, enejuanto lhe m anifestávam os com toda a clareza a nossa com um rep ro ­
vação. Acontecia-me então provocá-lo e atacá-lo com extrem a violência:
nunca me re.spondeu, mas po r vezes saía-lhe; «Fautré!»
E verdade que o m eu pai procurava de quando em quando um a cum plici­
dade da m inha parte. Levou-me algumas vezes ao estádio, onde adorava
introduzir-se sem pagar, sob o olhar cúm plice de um empregadet do banco que
arredondava os seus rendim entos vigiando as entradas. Fascinava-me a sua arte
de «entrar à borla». Coisa em cjue eu não me atreveria sequer a jvensar, ins­
truído com o fora pela m inha mãe e jselos m eus m estres nos grandes jvrincíjsios
da honestidade e da virtude. Mau exem plo que me deixou uma recordação
m edonha, à entrada de um estádio de tênis, ü m eu pai entrou com o habitual­
m ente sem jsagar. Eu, que ia atrás dele, não jvude entrar. E ele deixou-m e ali
o F r M r I 1 F M p o

ficar sozinho. Mas mais tarde seria um a séria inspiração para mim a sua arte
das «borlas». Ele entrava, eu seguia-o, assistíam os ao desafio, que se desenro­
lava num a atm osfera tum ultuosa. Lembro-me de que po r duas vezes, em Saint-
-Hugène, houve tiros entre o público. Sempre tiros! (Que sím bolo...) Tremia
com o se m e fossem destinados a mim.
É aliás desse tem po que guardo um a horrível recordação. Andavam en­
tão a explicar-nos nas aulas as Cruzadas, e as cidades pilhadas e incendiadas,
os seus m oradores passados a fio de espada: o sangue corria pelas \aletas
das ruas. Eram tam bém em palados num erosos indígenas. Eu tinha um sem ­
pre diante dos olhos, um que assentava sem qualquer outro apoio na lança
que se lhe enterrava lentam ente pelo ânus até ao ventre e ao coração, sendo
só então que ele m orria no m eio de sofrim entos atrozes. O sangue corria-lhe
ao longo da lança e das pernas até ao chão. Que terror! Era eu que era então
trespassado pela lança (talvez p o r esse Louis m orto que continuava a trá s de
mim). Conservei desse tem po um a outra recordação que se me deve ter
deparado num livro. Uma vítim a era fechada num a virgem de aço m unida de
alto a baixo de longas pontas finas e duras que lhe furavam lentam ente os
olhos, o crânio e o coração. Era eu quem estava fechado na virgem de aço.
Que atroz m aneira de m orrer lentamente! Ficava durante m uito tem po a tre­
m er de m edo e sonhava com isso à noite. Acreditem se quiserem , mas a ver­
dade é que não faço, nem aqui nem noutras passagens, uma «auto-análise»,
deixando esse trabalho para todos os finórios de um a «teoria analítica» à
m edida das suas obsessões e fantasmas próprios. Descrevo sim plesm ente os
diversos «afectos» que m e m arcaram para toda a vida, na sua form a inaugural
e na sua filiação retrospectiva.
Uma outra vez, um a só vez, o m eu pai, esse hom em regressado da guerra
com inúm eras fotografias da sua divisão de artilharia, onde o víam os sempre
de pé em frente de canhões gigantescos, peças de longo alcance, levou-me a
uma carreira de tiro m ilitar em Kouba. Fez-me apontar com a pesada espin­
garda de guerra encostada ao om bro. Senti no om bro um chociue terrível e caí
de costas no m eio do estam pido insuportável da detonação. Ao longe agi­
taram-se bandeirolas indicando que eu falhara o alvo. Teria talvez nove anos.
O m eu pai sentia-se orgulhoso de mim. Eu continuava aterrado.

53
L O l / ,S ,1 L 7 H l' V V 7: 77

Mas quando, mais tarde, a m inha candidatura foi aceite (m uito para o
. ; ' da lista, eu cjue era tão bom aluno) no concurso para as «bolsas» de 1929,
leu pai perguntou-m e que cjueria que me desse ele com o prenda. Respondi
' l :ii hesitar «uma carabina 9 mm da M anufactura de Armas e Bicicletas de
'..int-Htienne», cujo catálogo eu po r essa altura devorava e tantas coisas ciue eu
n.inca tivera nem \ ira. ao alcance do meu desejo.. ). b consegui sem mais difi­
culdades a m inha carabina com cartuchos e balas, ante a reprovação da m inha
ni.le. mas sem que o m eu pai discutisse po r um segundo sequer a m inha esco-
I h. i — essa carabina da qual faria um dia um tão estranho uso.
Desde m uito cedo cjue me tornara bastante hábil em toda a espécie de
iiros: no atirar pedras a latas de c o n ser\a vazias, na funda tam bém . Experi-
ruentei atirar aos pássaros, mas falhava sempre. Hxcepto um dia, no cam po do
n e ii a\ ò em Bois-de-Vélle, quando me pus a caçar frangos que vinham bicar os
ur.uis das semeaduras. De bastante longe (a uns vinte m etros) avistei um belo
u.il ) w rm elh o perto da sebe. \'isei-o com a m inha funda, e com terror vi o
u.do. atingido em cheio num olho, saltar de dor, bater \ iolentam entc com a
^.fnvça no chão c fugir aos tropeções. Fiquei com o coração a galopar durante
;v ir.i',
(^luanto à carabina, eis o que se passou. De início só me servia dela para
ue treinar com alvos de papelão, com os quais me saía bastante bem. Mas um
cm que estávam os num a pequena propriedade. Les Raves (Os Rabanetes),
cc.ic o meu pai achara p o r bem adquirir num a zona inacessí\el de tão alta,
ttcti-me pelos bosques com a m inha carabina na mão cm busca de alguma
re-.i \()látil. Avistei de repente uma rola e atirei: a rola caiu, procurci~a inutil-
: ente entre as e r\a s secas, convencido no fundo de cjue falhara o tiro e de que
el.i «o caíra po r m anha, para me escapar. C ontinuei o meu cam inho e veio-mc
Ce 'u b ito ã ideia, sem ter alguma vez pensado no assunto e sem saber porquê,
. je poderia apesar de tudo tentar matar-me. O rientei então o cano da arma
, :itra o meu ventre e ia a carregar no gatilho quando me reteve uma espécie
lIc escrúpulo, nunca soube p o r que motivo. Abri então a culatra: havia uma
vi!,i l.i dentro. Com o podia ela ali estar? Fosse com o fosse não fora eu quem
.1 .i pusera. Nunca soube com o foi que aquilo aconteceu. Mas ficiuei brusca-
n e n te c oberto de um suor de pânico, trem iam -m e os m em bros e tive que me

~i4
o /• f / r /*■ o I M I / 7 o I h \í P O

deitar dem oradanicnte na terra antes de r oltar para a quinta, mais do que p e n ­
sativo. Uma vez mais se tratara da m orte: mas directam ente da m inha, desta
feita.
Não sei porquê, aproxim o esta recordação de uma outra, posterior, que
desencadeou em mim o m esm o terror pânico. Em Marselha, a m inha mãe e
eu, depois de sairm os do nosso apartam ento da rue Sébastopol, tínham os
m etido para cortar cam inho p o r urna larga trans\ersal ladeada de m uros
altos. Avistámos então, ao longe no passeio da direita, duas m ulheres e um
hom em . As duas m ulheres, em fúria e aos gritos, batiam-se \ iolcntam ente.
Ihiia estata caída no chão. a outra arrastava-a pelos cabelos. () hom em , ao
lado, imóvel, contem plava a cena sem intervir. Q uando passám os p erto do
grupo ele soltou em nossa intenção um aviso perfeitam ente sereno: «Cui­
dado, ‘ ela" tem um revólver!» A m inha mãe continuou o seu cam inho, cris-
pada, olhando para diante, sem nada querer \e r nem ou\ ir, cxtmpletamente
insensível. Nem som bra de em oção. Nunca me disse um a palavra sequer
sobre este dram ático incidente. Era claro para mim que devia ter intervindo.
Mas eu era um cttbarde. Deviam reinar relações bem singulares entre a m inha
mãe e eu, entre a m inha mãe e a m orte, entre o meu pai e a m orte, entre
mim e a m orte. Só as com preendi infinitam em e mais tarde, durante a m inha
análise.
T i\e realm ente um pai? Sem dúvida, usava o nom e dele e ele ali estava,
presente. Mas n o utro sentido: não. Porque ele nunca interveio na m inha \ ida
para a orientar m inim am ente, nunca me iniciou na sua que me teria podido
servir de introdução quer à defesa física, nas lutas de garotos, quer mais tarde
ã virilidade. Neste últim o capítulo foi ainda a m inha mãe quem por dever tra­
tou das coisas, apesar do h o rro r que lhe inspiras a tudo o que dissesse respeito
ao sexo. Ao m esm o tem po, o m eu pai procurava m anifestam ente mas sem pre
em silêncio a m inha cum plicidade: na sua prática de borlista com o mais tarde
nas suas alusões ãs m inhas relações femininas. Naturalm ente que nunca quis
ouvir falar das m ulheres que eu pudesse conhecer, nem do que pudesse fazer
com elas, mas sem pre que me despedia dele. ele lançaca em m inha intenção,
diante da m inha mãe silenciosa, um a simples frase que nãtt exigia nem co m en ­
tário nem resposta: «Fá-la feliz!» La!'
i o r / ,s .) /. I n V V s n R

Pensava sem dúvida que fizera a m inha mãe feliz! Mas ter-se-á tornado já
e\ idente que tal não era o caso: no fundo o m eu pai era dem asiado inteligente
para alim entar a esse respeito a m ín im a ilusão. A m inha mãe era em nova
unta m ulher m uito bela, onze anos mais nova do que o meu pai, uma eterna
criança que passara sem transição da tutela dos pais para a do m arido, sem
qualquer experiência da vida, nem dos hom ens nem das m ulheres: tendo por
única e eterna nostalgia no seu coração a m em ória desse Louis, desse esguio
noi\ ü m orto no céu, e dos professetres prim ários com ejuem se cruzara durante
a sua efêm era carreira profissional, a que o m eu pai bruscam ente a arrancara.
T i\era igualmentc, em Argel, um a única amiga da sua idade, um a rapariga tão
pura com o ela, que se fizera m édica, mas fora brutalm ente arrancada à existên­
cia pela tubercuktse. Chamava-se Georgette. Q uando nasceu a m inha irmã,
m uito naturalm ente a m inha m ãe deu-lhe o nom e da amiga m orta: Georgette.
■Mais um m tm e próp rio de m orto.
A m inha mãe, sobre o pequeno, loura, rosto regular, belíssim os seios t]ue
vejo com um a espécie de repulsa na m inha m em ória, cpier dizer, nas fotogra­
fias dela, am ou-m e sem dúvida profunclamente. Era o prim eiro filho do seu
corpo, e um rapaz, seu orgulho. Q uando nasceu a m inha irmã, vi ser-me c o n ­
fiado o cuidado de olhar por ela a todo o m om ento, de a am im ar e mais tarde
de lhe dar a m ão para atravessar as ruas com todas as precauções devidas, e
mais tarde ainda de cuidar dela pela c ida fora e em todas as ocasiões. Cum pri
fielmente, o m elhor possível, esta missão de criança e adolescente prom ovido
a uma tarefa de hom em , ou m esm o de pai (o meu pai tinha pela m inha irm ã
fraquezas cpie me revoltavam, e suspeitava abertam ente de que ele procedesse
a tentativas incestuosas quando a sentara ao colo de um a m aneira que me
parecia obscena), missão que, pela gravidade solene de que se revestia, devia
ser esm agadora para a criança de pouca idade que eu era de com eço e m esm o
para o adolescente que depois fui.
A m inha mãe não parava de me explicar que a m inha irmã era frágil (sem
dúvida com o ela própria) por ser mulher, e conservo ainda no espírito um a
outra recordação obscena c(ue me horrorizou e escandalizou. Estávamos em
Marselha, a m inha m ãe lavava a m inha irm ã nua na banheira do nosso aparta­
mento. Igualm ente nu. eu esperava que chegasse a m inha vez. O uço ainda a

56
/• r V r o w r / / o 7 /; .1/ r o

m inha mãe dizer-m c; «Estás a ver, a tua irm ã é um ser frágil, está m uito mais
exposta do que um rapaz aos micróbios» — e juntou o gesto à voz para m ostrar
m elhor as coisas — «tu S(3 tens cíoís buracos no corpo, mas ela, ela tem très>K
Senti-me inundado de vergonha p o r esta intrusão brutal da m inha mãe no
dom ínio da sexualidade com parada.
Vejt) hoje hem cjue a m inha mãe vivia literalm ente dom inada pelas fobias:
tinha m edo de tudo, m edo de se atrasar, m edo de deixar de ter (bastante)
dinheiro, m edo das correntes de ar (estava sem pre com dores de garganta, e eu
tam bém até à altura do m eu serriço militar, tiuando a deixei), um m edo in­
tenso dos m icróbios e do seu contágio, m edo das m ultidões c do seu ruido.
m edo dos vizinhos, m edo dos acidentes na rua e noutros lugares, e acima de
tudo m edo dos maus encontros e das com panhias duvidosas que podem dar
maus resultados: falemos claro, acima de tudo, m edo do sexo, do roubo c da
violação, quer dizer, m edo de ser agredida na sua integridade corporal e de
com isso perder a integridade problem ática de um corpo ainda fragmentado.
G uardei dela ainda outra recordação, c|ue para mim tudo excedeu reco­
berta por afectos posteriores, mas de uma lem brança dos meus treze ou
catorze anos, extrem am ente precisa e isolada enquanto tal, sem que qualcjuer
p o rm en o r se lhe tenha depois acrescentado. Que o seu afecto tenha sido
retrospectivam ente reforçado por outros incidentes do m esm o tettr. é possível
e verosímii, mas esses incidentes limitaram-se depois a acentuar no seu sentido
próprio a \erg o n h a atroz que na altura senti e a m inha revolta indignada.
Estávamos cm Marselha, e eu andaria pelos m eus treze anos. Desde há
algumas sem anas observo com um a satisfação intensa que à noite prazeres
\ ivos e escaldantes me chegam do m eu sexo, seguidos de um apaziguam ento
agradáv el — e de m anhã grandes m anchas opacas aparecem nos m eus lençóis.
Terei sabido que aquilo eram poluções nocturnas? Pouco im porta: seja com o
for, sei m uito bem que se trata do m eu sexo. Ora, certa m anhã depois de me
ter levantado ettm o de costum e e quando estou a tom ar o pequeno-alm oço na
cozinha, a m inha mãe entra, solene e grave, e diz-me: «Vem cá, m eu filho.»
Leva-me até ao m eu quarto. Diante de m im abre os lençóis da m inha cama,
aponta-m e com o dedo sem lhes tocar as grandes m anchas opacas e en d u re­
cidas dos m eus lençóis, contem pla-m e p o r um m om ento com um orgulho

57
L O r / ,s I l. i II r s s F R

constrangido a ciue se m istura a convicçãtt de que chegou um instante


suprem o c de que ela deve m anter-se à altura do seu dever, e declara-me:
Agora, m eu filho, és um homem!»
Fiquei acabrunhado de vergonha e de um a insuportável revolta contra ela
dentro de mim. () facto de a m inha mãe se perm itir rem exer nos m eus lençóis,
na m inha intim idade mais recôndita, no recato íntim o do meu corpo nu, quer
dizer, no lugar do m eu sexo com o se o fizesse nas m inhas cuecas, entre as
m inhas coxas para agarrar o meu sexo com as m ãos e o brandir (com o se ele
lhe pertencesse!), ela que sentia h o rro r po r tu d o o que era sexo. e o facto de
para mais se forçar, com o por dever (eu bem o sentia) àquele gesto e àquela
declaração obscenos — em m eu lugar, ou pelo m enos no lugar dtt hom em em
que eu me transform ara m uito antes de ela dar por isso e sem nada lhe
dever — foi uma coisa cjue me pareceu, pelo m enos senti-o desse m odo e
ainda hoje o sinto, o cúm ulo da degradação m oral e da obscenidade. Uma vio­
lação e uma castração propriam ente ditas. Era assim \io la d o e castrado pela
m inha mãe, que se sentira, ela, \ iolada pelo m eu pai (mas o problem a era dela
nesse caso, e não meu). Decididam ente, não havia m aneira de sairm os de um
destino fa m ilia r . E o facto de esta obscenidade e de esta violação serem obra
da m inha mãe, que com excessiva evidência se \iolentava contra a sua natureza
para cum prir o que considerava com o seu dever (quando teria sido ao m eu pai
que caberia tratar do assunto) com pletava o quadro de horror. Não digo uma
pala\ ra, saio batendo com a porta, vagueio pelas ruas, desam parado e rumi-
nando um ódio desm edido.
Sttfria no m eu corpo e na m inha liberdade a lei das fobias da m inha mãe,
Eu que sonhava jogar ao futebol com os gaiatos pobres que via do alto dos
quatro andares do nosso apartam ento da rue Sébastopol, a correrem num
grande terreno baldio, estava proibido de jogar à bola: «Cuidado com as más
com panhias, e além disso podias partir um a perna!» Eu que me sentia fasci­
nado pela com panhia das crianças da m inha idade, com quem queria travar
conhecim ento, para deixar de estar sozinho, para ser aceite e reconhecido
com o um dos deles, para trocar com eles palavras, berlindes, pancada até, para
aprender a tm eles tudo o que ignorava da vida, para ter amigos (ao tem po não
tinha nenhum )... tiue sonho! Proibido.

58
/■
•r 7 i: R o 7: M r I r o 7 7; M p o

Q uando estávamos em Argel, a m inha mãe mandava sem pre acom panhar-
me até à escola da com una, distante de onde m oravamos (rue Station-Sanitaire)
apenas trezentos m etros e com um a só rua tranquila para atravessar, uma criada
indígena, cujos serviços contratara. Para que não houvesse atrasos (essa fobia
da m inha mãe), chegavamos m uito adiantados diante da escola. Os rapazes, fran­
ceses e indígenas, jogav am ao bilas contra as paredes ou corriam com grandes
gritos, a ver qual chegava primeiro, na sua liberdade infantil. Eu, pelo meu lado,
chegava hirto com o o dever cum prido, acom panhado pela m inha «mourisca»
sem pre calada, desprezível e envergonhado até ao mais fundo da alma daquele
privilégio de rico (quando nesse tem po éram os pobres), e em vez de esperar
cá fora que a porta da escola se abrisse, tinha, graças à protecção dos antigos
colegas da m inha mãe, o privilégio de entrar sozinho e antes dos outros todos,
para ficar ã espera no pátio que os professores chegassem. Invariavelmente, um
deles, um hom em alto, seco e delicado, parava diante de mim e perguntava-me,
nunca soube porquê: «Louis, com o se cham a o fruto da faia? — A fa fn e » '
icom o ele me ensinara). Dava-me um a palm adinha na cara e ia-se em bora. Uns
bons dez m inutos mais tarde, a m inba solidão terminava.- todos os m iúdos entra-
\ am a correr e a gritar, mas para se precipitarem nas salas de aula: acabava-se
a m inha esperança de me juntar a eles. Suportava, se assim posso dizer, cheio
da vergonha que me acabrunhava ao ser assim designado com o «menino bonito»
dos professores, essa cerim ônia insuportável, que tinha por único fim tranqui­
lizar a m inha m ãe contra todos os perigos da rua.- as más com panhias, o co n tá­
gio dos m icróbios, etc.
Nova recordação violenta. Um dia em que estou no pátio, durante o
recreio, jogo ao berlinde com um rapaz m uito mais pequeno do que eu. ,Sou
m uito hábil no jogo do bilas e ganho sempre. E eis que abafo todos os berlin­
des do miúdo. Mas ele quer a todo o custo ficar com um. O que é contra as
regras do jogo! E de chofre, sem que saiba de onde me vem este im pulso vio­
lento, atiro-lhe uma bofetada com toda a força. Ele foge. E eu. acto contínuo,
Lorro atrás dele, indefinidam ente, para reparar o irreparável: o mal que lhe fiz.
Decididam ente, bater era-me intolerável.

>Dcsigna<,-ã() cm fr;mccs da glande da faia. (.V. do T.)

59
L O I / ,S A l. T H r ,S S E R

E já que estou a falar das recordações mais m arcantes desse tem po, aqui
\ ai outra. Estou na sala de aula com o excelente professor que entre todos me
estima. O professor está a escrever no quadro de costas para nós. Nesse
m om ento o rapaz que está precisam ente atrás de mim dá um peido. O profes­
sor vira-se e olha para mim com um olhar desolado, cheio de recrim inações:
«Tu. Louis...» Não digo nada, a tal ponto me convenço de que fui eu o autor do
peido. Fico coberto de vergonha, com o qualquer autêntico culpado. Em deses­
pero de causa, conto o caso à m inha mãe, que conhecia m uito bem aquele p ro ­
fessor ejue a orientara na sua form ação, e de quem ela gostava m uito: «Tens
m esm o a certeza de que não foste tu quem» (não se atreveu a dizer a palavra)
«fez essa coisa m edonha? Ele é tão bom hom em , não se pode ter enganado.»
Sem com entários.
A m inha mãe amava-me profundam ente, mas só m uito mais tarde, à luz
da m inha análise, com preendí de que m odo. Diante dela e fora dela sentia-me
sem pre esm agado por não existir p o r m im p ró p rio e para mim próprio. Tive
sem pre a im pressão de que havia ali um a distribuição de cartas errada, e que
não era deveras para mim que ela olhava nem deveras eu quem ela amava. Não
a quero acusar de m aneira nenhum a, ao indicar este aspecto-, a infeliz vivia
com o podia aquilo que lhe acontecera; ter um filho que não conseguira im pe­
dir-se de baptizar Louis, o nom e do hom em m orto que amara e na sua alma
amava ainda. Q uando me olhava, não era eu sem dúvida que ela via, mas, por
trás de mim, nas m inhas costas, no infinito de um céu im aginário para sem pre
m arcado pela m orte, u m outro, esse ou tro Louis cujo nom e eu usava, mas que
não era eu. esse m orto do céu de Verdun e puro céu de um passado sem pre
presente. Eu era assim com o que atravessado pelo seu olhar, desaparecí para
mim nesse olhar que me sobrevoava para alcançar na distância da m orte o
rosto de um Louis ejue não era eu, que nunca seria eu. R econstituo aqui o que
vivi e o que com preendí do que vivi. Pode fazer-se sobre a m orte toda a litera­
tura e toda a filosofia que se queira; a m orte, que circula ptar toda a parte na
realidade social onde é «investida», do m esm o m odo que a m oeda, nem sem ­
pre está presente sob as mesmas form as na realidade e nos fantasmas, No meu
caso. a m orte era a m orte de um hom em que a m inha mãe amava acima de tudo.
para além de mim. No seu «amor» po r mim, alguma coisa me penetrou

60
/■ r / r /í (; r .V/ r / 7 7) /■ /; .1/ p o

e m arcou desde a prim eira infância, fixando p o r m uito tem po o que devia ser
o meu destino, já não se tratava de um fantasma, mas da própria realidade da
m inha r ida. É assim que para cada um o fantasma se torna vida.
Mais tarde, adolescente, quando vivi em Larochemillay com os m eus avós
m aternos, sonhei ter o nom e de jaeques: o do meu afilhado, o filho da sensual
Suzv Pascal. Talvez seja jogar um tanttt em excesso com os fonem as do signifi-
cante — mas o j de Jaeques era um jacto (o do esperm a), o a profundo (Jc/c-
ques) o m esm o que o de C harles, nom e do m eu pai, o qties com excessiva evi­
dência a queue '. e jaeques era ainda x ja eq u e rie, a surda revolta cam ponesa
de cuja existência eu tom ara então conhecim ento através do meu avó.
Em todo o caso, desde a prim eira infância, tive direito ao nom e de um
hom em que não deixara de viver de am or na cabeça da m inha mãe: o n o m e
de u m m orto.

Litcralmcntc- «cauda», mas designando em gíria o m em bro viril. (,V. do Ti)

61
V

portanto possível reconstituir e talvez com preender a contradição, ou


E antes, a am bivalência na cjual eu csta\a desde o com eço condenado a
ciccr.
Por um lado, com o cjualquer criança alim entada ao peito, e vivendo do
contacto físico, psicológico e erótico do corpo da mãe, que oferece o seio, o
calor do ^ entrc, da pele. das mãos, do rosto, da voz. eu estava visceral e eroti-
cam ente apegado à m inha mãe, am ando-a com o um a bela criança cheia de
saúde c de r ida pode am ar a mãe.
Mas soube desde m uito cedo (as crianças percebem inacreditavelm ente
aquilo que escapa aos adtiltos, mas por certo que não é «ao nível» da tamscièn-
cia que a percepção se opera) que esta m ãe que eu amava com todo o meu
corpo am ara um outro através e para lá de mim, um ser ausente em pessoa
através da m inha presença em pessoa, quer dizer, um ser presente em pessoa
atrar és da m inha ausência em pessoa — um ser acerca do qual só m a is tarde
eu descobriría que estava m orto havia muito. Quem dirá quando se pode p ro ­
duzir esta «resolução em acto»? F. claro que julgo tudo isto «retrospectiva­
mente» pelos seus efeitos, tão inscritos e tantas vezes em afectos repetidos c
escaldantes da m inha r ida: outras tantas figuras imutáveis c incontornáveis.
(iom o fazer-me pois amar po r uma mãe cpie não me amava em pessoa, e me
condenar a assim a não ser mais do que o pálido reflexo, o outro de um m orto,
propriam ente um m orto? Para sair desta «contradição», ou antes, desta am biva­
lência, não possuía evidentem ente outro recurso senão tentar se d u zir a m inha

62
O I I J I K U M ( (j / l

mãe (com o se seduz uma pessoa de passagem , uma estranha) para cjue ela cor
sentisse em olhar-m e e amar-m e po r mim próprio. Não só no sentido correm
em ejue o rapazinho tiuer, com o já dizia D iderot, «deitar-se com a mãe», m;
no sentido mais profundo a que necessariam ente devia decidir-me. para cor
quistar para mim o am or da m inha mãe, para me to rn ar eu própritr no hom ei
que po r trás de mim ela amava, no céu da m orte para sem pre puro: sediizi-l
rea liza n d o o seu desejo.
Tarefa possível e impossír el! Porque eu não era esse outro, não era no fund
de mim esse ser tão ajuizado e tão punr que a minha mãe sonhava em mim. Quani
mais longe fui, mais senti com efeito as formas, até m esm o violentas, do mc
proprio desejo, e antes do mais esta forma elementar: não vi\ er no elem ento nei
:ii) fantasma da m orte, mas existir para mim próprio, sim, sim plesm ente exist
c antes do mais no m eu corpo que a m inha mãe tanto desprezava, porque (t:
.v m o esse Lotus que continuava a amar) lhe tinha horror.
De mim, rapazinho, conservei a imagem de um ser magro e m ole c
-nibros estreitos, c]ue nunca seriam os de um hom em , com a cara branc:
prim ida po r um a fronte dem asiado pesada e perdido na solidão das ále;
r.incas de um parque im enso e \azio. Não chcga\a sequer a ser um rapaz, m;
. penas um rapariguinha fraca.
Esta imagem, que me perseguiu durante m uito tem po, e cujos efeitos ;
;'..,inifestarão mais tarde, nítida com o uma recordação encohridora, redesce
»:i-a p o r milagre soh form a m aterial num a fotografiazinha recolhida entre <
.ipéis do meu pai depois da sua m orte.
Sou realm ente eu, aejui estou L)e pé, num a das imensas áleas do parqt
, c (lalland, em Argel, p erto da nossa casa. Sou efectivam ente este rapaz magí
, rr.igil. sem om bros, a cabeça com um a testa dem asiado grande coberta pt
chapéu, também ele pálido. Seguro pelo braço esticado, um cão minúseul
^lo Senhor Pascal, m arido de Suzy), esse m uito vivo e puxando a trela. S
: : grafia, exceptuando o cãozinho, estou só: ninguém nos arruam entt
/los Dir-me-ão que esta solidão pode não querer dizer nada, ejue o Sr. Pasc
. 'Oerara que os transeuntes desaparecessem . A realidade é a seguinte; esta sol
: tah ez desejada pelo fotógrafo, reuniu na m inha lem brança a realidade
r.intasma da m inha solidão e da m inha fragilidade.

6.S
/ o I I V .1 / / II r s s i k’

Porque estou ab so lu la n ien te só em Argel, com o estarei m uito tem po


sozinho em Marselha e Lyon, e mais tarde terrivelm ente só depois da m orte de
Hélène. Não tenho n e n h u m verdadeiro com panheiro de brincadeiras nem
sequer entre aqueles com quem me confundo sob vigilância no pátio de
recreio, árabes, franceses, espanhóis, libaneses, a tal ponto entende a m inha
mãe proteger-nos (-se) de qualc[uer c o n c i\èn c ia duvidosa, ciuer dizer, dos
m icróbios e do perigo de nos levarem sabe Deus para onde! Digo bem
n e n h u m com panheiro, e por m aioria de razão n e n h u m am igo. E quando a
seguir à escola com unal for adm itido no liceu Lvautey de Argel, na sixièm e.
nenhum com panheiro terei tam bém , sequer no pátio de recreio. Pior, guardo
de facto a lem brança de rapazes ricos perfeitam ente desem baraçados, altivos,
desdenhosos e cínicos, que não queriam v er-m e nem falar-me, e dos m agnífi­
cos carros desportivos tpie os esperavam à saída, m otorista ao volante (havia,
entre outros, um esplêndido Vtusin), A m inha única com panhia era a família,
a m inha mãe volúvel e o m eu pai silencioso. Tudo o resto eram refeições, sono,
trabalhos escolares nas aulas e em casa: em perfeita obediência «livremente
consentida».
.Na escola prim ária eu era um aluno exemplar, de quem os professores
gostav am. .Mas na sixièm e. no liceu de Argel, fiquei perdido e tornei-m e p erfei­
tam ente m edíocre, apesar dos m eus esforços. Foi só em Marselha (T9.â0-193ó),
e depois em Lyon (19,36-19,39, nos preparatórios para Ulm ') que passei a ser
o prim eiro da turm a. Através da m inha mãe fiz-me em Marselha escuteiro de
França e naturalm ente chefe de patrulha, sagrado po r um capelão dem asiado
inform ado para ser honesto, sentira bem em mim a culpabilidade que me
levav a a assum ir a prim eira responsabilidade que se me deparasse. Portanto era
atilado, excessivam ente atilado, e puro, excessivam ente puro, com o a m inha
mãe o desejava. Posso dizê-lo sem me arriscar a errar: sim. realizei assim — e
por quanto tempo! até aos vinte e nove anos! — o desejo da m inha mãe: a
pureza absoluta.
Sim, realizei o que a m inha mãe desejava e esperava desde toda a eterni­
dade (o inconsciente é eterno) da pessoa do outro Louis — e fi-lo p a ra a seduzir-.

l’or mcioníniia, a Ccolt Normalc SupOricurc, sediada na rue d l Im, cm Paris. (.V do T.)

6 4
o ? '/ r R o \i i /: i; p o

.1 ponderação, a pureza, a virtude, o intelecto puro, a descncarnação. o sucesso


escolar, e para concluir uma carreira «literária» (o m eu pai teria preferido para
mim a Polytechnit]ue, soube-o mais tarde, mas nunca o deixou transparecer) e,
para coroar o conjunto, o acesso a um a École Norm ale Supérieure, não a de
'aint-C loud, a do m eu tio Louis, mas m elhor ainda do que essa, a da rue
lÍ 1 Im. Mais tarde transform ei-m e nt) intelectual que se sabe, que se recusou
rcrozmente a «sujar as mãos» nos m eios de com unicação (ó pureza!) e, com o
neu nom e na prim eira página de alguns livros que a m inha mãe lia com orgu-
ho. num filósofo conhecido,
Mas teria conseguido deste m odo seduzir a m inha mãe? Sim e não. Sim,
'o rq u e reconhecendo em mim a realização do seu desejo, ela se sentia con-
o n te comigo, e extrem am ente orgulhosa. Não, porque nesta sedução ti\ e sem-
ç:e a im pressão de não ser eu, de não existir deveras, mas de existir som ente
r })iei(> cie a rtifício s e no interior de artifícios, precisam ente os artifícios da
-eJução tom ados po r im p o stu ra s (do artifício à im postura passa-se depressa),
'cm por isso ter realm ente conquistado a m inha mãe, conseguindo no m áxim o
-L Jiizi-la artificiosa e artificialm ente,
Artifícitts: porejue eu tinha tam bém os m eus desejos, ou se se tjuiser,
,.nia sim plificação extrem a, o m eu desejo próprio: ao tem po o impossivel.
desejo de \ iver p o r conta própria, de me juntar aos garotos que jogavam
:ebol nos baldios, de me m isturar com os pequenos franceses e árabes da
ila prim ária, de brincar nos parques e nos bosques com m iúdos en contra­
' por acaso, rapazes e raparigas, cjue a m inha mãe nos p ro ib ia sem pre de
oo.uentarm os porque «não conhecíam os os pais deles», ainda que estivessem
e passos, ou sentados no m esm o hanco: estava fora de questão dirigir-lhes
.ia\ ra, nunca se sabe ejuem nos pode aparecer pela frente!! Em \ ão resmun-
- .. para com igo; continuava a obedecer. Existia apenas no desejo da m inha
j e nunca no m eu. inacessivel.
Mais um a recordação de m onta. Estamos, a m inha mãe, a m inha irmã e eu
:d «resta do Bois de Boulogne, junto de um aloés com o seu enorm e dardo
. uma lança de em palar). Chega um a senhora com duas crianças: um rapaz
. 1.1 rapariga. Não sei com o se terá a m inha mãe resignado a isso, mas o
u é que com eçám os a brincar. Não p o r m uito tem po! Nunca soube o que

65
i o r I s ,1 /, 7 II r s s i: A’

mc dcLi, mas a certa altura esbofeteei a rapariguinha dizendo-lhe: «es um..


Tourtecuisse!» (Tinha lido este nom e que me parecia denso de sentido num
livro, sem fazer ideia do que queria dizer). Estou ainda hoje a ver a minh.i
mãe: lev'ou-nos im ediatam ente para longe das duas crianças e da mãe deles
sem dizer uma palavra. Mais um gesto de violência súbita que me escapara,
com o no pátio da escola. Mas desta feita com etido contra uma rapariga
Lembro-me de não ter sentido nem vergonha nem qualquer desejo de repara­
ção. Pelo m enos havia «isso» a ganhar!
Sentia-me dilacerado, sem dúvida, mas sem defesa nem contra o desejo da
m inha mãe nem contra a m inha dilaceração. Fazia tudo o que ela tiueria, aju­
dava a m inha irmã a atravessar as ruas, tão perigosas, segurando-a bem pela
mão, com prava no regresso da escola dois pãezinhos com chcxatlate, gastando
a quantia exacta que ela me dera, sem nunca ter um tostão m eu na algibeira
(até aos dezoito anos!), porque uma pessoa pode sem pre ser ro u b a d a e tam ­
bém nunca se sabe o que uma criança poderá com prar de nefasto ou supér­
fluo: sentido de econom ia exacerbado acom panhado pelo m edo de um co n tá­
gio alim entar e do risco de um rolibo. Eu fazia atiladam ente os meus deveres
em casa e ficava à espera da hora das refeições. A única saída era a c]ue mais
tarde, em Argel, me conduzia, sem pre com a m inha irmã, ao apartam ento de
um casal fatigado, magro, desencarnado e ilum inado, não um casal conjugal,
mas um casal compe^sto por um irm ão ou uma irm ã (com o nós) solteiros e
atrelados um ao outro para toda a r ida, em que a m inha mãe (ante a sua m ani­
festa pureza) depositara plena confiança: a m inha irm ã para o piano, eu para
o violino, a fim de que pudéssem os mais tarde tocar tam bém nós a dois, com o
irm ão e irmã. Não pude fazer nada ccmtra estas imposições. E com o teria sido
capaz de fazer o t)ue quer cpie fosse, sendo a pessoa ejue era? O resultado foi
para mim um sólido ódio à m úsica, reforçado mais tarde pela obrigação sem a­
nal m aterna (o m eu pai nunca ia) dos concertos clássicos de Marselha! Tran-
ciuilizem-se os leitores: hoje para meu regalo ttteo piano (à falta de ter apren­
dido. im pro\ iso o tjue toco, mais tarde se \ erá como). Sim, que teria eu
podido fazer contra estas im posições musicais e outras? Não tinha qualquer
recurso no exterior, e sobretudo nenhum recurso do lado de dentro, do lado
do meu pai. Os únicos amigos que conhecia eram os raríssim os amigos que o

6 6
F c r r F o M r / / o T F M F o

- 1 pai nos apresenta^'a. Para dizer a verdade ha\ ia um único: esse Pascal,
ega de escritório do m eu pai, seu subordinado, cabelo parco, m acio com o
ado, sem som bra de vontade própria diante da mtilher, a petulante Suz\.
\u m ano em t]ue a m inha irm ã apanhara \aricela (era uma criança que
:,;\a sem pre doente) a m inha mãe, para evitar o contágio (uma vez mais)
aiLi aos Pascal ejue me recebessem em casa deles. Conheci então o seu ninho
aichegado de casal sem filhos e as suas manias, o esplendor de Suzy, \o lu p -
'i , sem pre de seios à m ostra, e a sua calorosa autoridade, bem com o a
na de M, Pascal cpie lhe ohedecia em tudo com o o cãozinho que condu-
pela trela no grande jardim do parque, Na m inha cama, eu tinha sem pre o
lvuo pesadelo: do cim o do arm ário saía um anim al m uito com prido, de\a-
" uma longa serpente sem cabeça (castrada?), uma espécie de m inhoca
-,imesca que descia na m inha direcção. Acordava a gritar, Suzy acudia e aper-
,-m e generosam ente contra o seu peito generoso, Eu sossegava.
( crta m anhã, acordei tarde. C om preendí que o Sr. Pascal já saíra para o
^.ilho. l.evantei-me e, aproxim ando-m e com cautela, ouvi, por trás da porta
Lozinha, Suzy que se afadigava (o pequeno-alm oço ou o lavar da louça?).
^ei com o o soube, mas sonhe que ela estava n u a na cozinha. Im pelido
- um desejo irresistível, e seguro, vá-se lá saber como. de cjue não corria o
;.or risco, abro a porta e contem plo-a longam ente: nunca vira um corpo nu
mulher, os seios, o \e n tre e o seu velo e as fascinantes nádegas! A atracção
:ruto proibido (eu teria talvez uns dez anos)? O esplendor sensual das suas
-:n.iv transbordantes? Saboreio longam ente o meu prazer. Depois ela dá por
c. longe de me ralhar, puxa-m e para si e fica longam ente a beijar-m e con-
" seus seios e entre as suas coxas cjuentes. Nunca mais voltám os a falar no
',:nto os dois. Mas nunca esejueei esse m om ento de «fusão» intensa e sem

\ o ano seguinte, tendo a m inha irm ã apanhado escarlatina (sempre


ente. a m inha irmã), a m inha mãe, para evitar o «contágio», m andou-m e
casa dos meus avós m aternos, então «reformados» no seu M or\an natal.

l)c um m o d o geral, deixám os deliberadamente ficar as abre\iaturas á maneira francesa de


m a d a m e . etc. ( \ . do /.')

67
VI

Q
ueridos avós! A a \ó direita e magra, de olhos azuis claros e francos.
sem pre activa mas ao seu próp rio ritm o e sem pre generosa para com
todos, sobretudo para com igo tiue adorava mas sem ostentação, para todos
refúgio da serenidade e da paz. Sem ela, o m eu avô nunca teria sobrevivido ao
seu trabalho extenuante nas florestas da Argélia. As suas filhas... deve tê-las
educado segundo princípios de saúde e de virtude, que fizeram de ambas belas
raparigas aprum adas e puras, O avô nervoso, inquieto, sem pre a resm ungar e
a soprar p o r trás do seu boné c dos seus bigodes, mas b o ndoso com o nin­
guém: os dois constituíam a m inha verdadeira família, a m inha única família,
os m eus únicos amigos no m undo.
lé m cpie se reconhecer que os espaços rasgados onde vivi junto deles,
onde fui ter com eles, eram de m olde a exaltar um a criança, até então enclau­
surada na solidão de exíguos apartam entos citadinos — a m enos que, mais
verosim ilm ente afinal, fosse a sua presença e o am or que m e dedicavam e que
eu lhes retribuía ao transform ar num paraíso de criança as casas, os bosques e
os cam pos onde eles viviam.
Foi de início, antes de o meu avô se reform ar para voltar ao Morvan natal,
a grande casa florestal do Bois de Boulogne, dom inando o conjunto de Argel,
e foi mais tarde, por fim, a casinha de Larochem illay (Nièvre) com o seu jardim
e os seus cam pos de Bois-de-VelIe.
O Bois de Boulogne! (ionserco uma lem brança deslum brante da sua casa
florestal aninhada no centro de um jardim enorm e. As divisões eram baixas

68
V U 7 i' R O M U l 1 O 7 7: M P O

trescas. Descobri nela um a lavandaria som bria e m isteriosa onde corria uma
.;ua eterna: um a estrebaria onde cheirava ao feno doirado do penso, onde se
c'pirava o m aravilhoso esterco de cavalo e o arom a luzidio de dois esplèndi-
: animais de raça palpitantes de \úda nos seus flancos lisos: os belos cavalos
:c sela de que o m eu avô cuidava com igo para os Senhores da Direcção. Conti-
■jo a achar os cavalos os anim ais mais belos do m undo, infinitam ente mais
cios do que os mais belos seres hum anos. Uma noite, os animais fizeram
' Liito barulho, assustando-m e: tinham sido sem dúvida ladrões de galinhas,
r.as os cavalos, mais vigilantes do que os cães, tinham -nos posto em fuga com
'Cu alarme.
A vinte m etros de casa erguia-se um tanque com prido e alto e, quando me
c antavam em braços, eu via lá dentro estranhos peixes pálidos, verm elhos,
crdes e violeta, desaparecendo lentam ente debaixo das com pridas ervas
caras e flexíveis que frem iam. Mais tarde, ao ler Lorca, voltaria e encontrá-las.
c'^as flexíveis coxas de truta da m ulher adúltera que parte para o rio: peixes
or.u essando os caniços que se entreabrem .
Ha\ ia na casa florestal canteiros de flores fabulosas (aquelas aném onas,
.tciueles frésias de perfum e erótico e violento, aqueles ciclam es tím idos e
" de-rosa, com o o cor-de-rosa fem inino da Simone de Bandol, mais tarde,
I 'u a folhagem verde-negra), onde, na Páscoa, a m inha irm ã e eu íamos pro-
r.ir os ovos de açúcar, muitas v^ezes já encetados pelas formigas. c[ue lá
n.mi sido escondidos em nossa intenção; e os gigantescos gladíolos multi-
rc'. de que o m eu pai levava todos os dom ingos um grande ram o para os
crcccr longe da nossa presença a um a «jovem lindíssima», de nom e belga.
_ c nunca vimos. E a im ensa horta cheia de nespereiras do Japão! Essas nespe-
. Davam frutos ovais de um am arelo pálido que continham um par
. ..ido de caroços castanhos escuros, lisos e brilhantes e duros com o testícu-
' de hom em (mas é claro que então eu nada sabia disso, pelo m enos cons-
, ■itemente], caroços que eu acariciava dem oradam ente entre as mãos com
i; .tlegria estranha. Q uando a m inha jovem tia Juliette, a fantasista da famí-
irepava po r mim às árvores com o um a cabra para as colher nos ramos e
estender, a mim cpie esperava debaixo dela cobiçando o interessante inte-
■ : das suas saias, com o seu líquido m acio e açucarado a desfazer-se-me

69
L O r / V -1 I. T n l A S 1: R

na b(5ca c separando o par de caroços luzidios, que sabor e que prazer! Mas
estas m esm as nêsperas eram m uito m elhores ainda quando as apanhava da
terra, onde queim adas pelo sol tinham com eçado a apodrecer no perfum e
rude e acre da terra! Mais adiante, havia ainda um tanquezinho, este da m inha
altura, cheio de uma água ciara e cantante (uma fonte?) e bem lá ao fundo, por
trás de grandes ciprestes negros, uma dúzia de colm eias dispostas em fileira
que um ex-professor prim ário bretão, o Senhor Kerruet, vinha muitas vezes
visitar, com o seu chapéu de palha na cabeça, mas sem véu nem luvas, pois
cpie as abelhas eram amigas dele. Não o eram sem dú\ ida de toda a gente, p o r­
que num dia em que o meu avô se aproxim ara dem asiado, enervadas e incjuie-
tas com o seu nervosism o e a sua inquietação, elas saltaram-lhe para a cara em
massa tendo elc ficado a dever a sua salvação a uma corrida desenfreada e a
um m ergulho no tanque grande. Mas curiosam ente dessa vez não experim entei
somhra de medo.
E sobretudo, m esm o no fundo do jardim à esquerda, erguia-se uma alfar-
rt)beira im ensa e redonda cujas vagens lisas, alongadas e escuras (titie eu teria
gostackt de provar — mas a m inha mãe dissera: proibido!) me fascinavam. Tra­
tava-se de um ponto de obsercação im previsto de onde, sozinho, eu descobria
aos meus pés, deitada ao sol, m inúscula e interm inável, a im ensa cidade, as
suas ruas, praças, prédios e porto, onde repousavam grandes navios imóveis
com as suas cham inés, e formigavam centenas de em barcações num m ovi­
m ento perpétuo. De m uito longe, no m ar sem pre liso e pálido, eu conseguia
a\ istar prim eiro um fum ozinho m inúsculo no horizonte, depois a pouco e
pouco m astros e um casco, com o que imóveis de tão desesperadam ente len­
tos: os navios da linha Marselha-Argel tjue acabavam, se eu tivesse paciência
jrara tanto, p o r act)star com infinitas m anobras e precauções ao longo dos
raros cais li\ res do porto. Sabia que um dos navios (depois de tantos Général-
-C hanzy e outros) se chamava Charles-Roux. Charles com o o m eu pai (eu
acreditava então firm em ente que todas as crianças, ao chegarem à idade
adulta, m udaram de nom e para se passarem a cham ar (Charles, e só Charles!).
Imaginava que t> navio avançava por acção de rodas escondidas sob o casco,
surpreendendo-m e que ninguém tivesse ainda dado p o r isso '.

'X otar a liomofonia entre Rou.x e rones (rodas), que ,sc perde na tradução. (.V, d o T.)

*"()
/ r /' r A- o .1/ r / ■/ o 7 7: .17 7' o

Depois saía na com panhia do m eu a\’ò para as matas. Qne liberdade! Com
j nunca havia o risco de proibições. Que felicidade! Ele, tão «resmtmgão»,
:.i um caracter que toda a gente declarava im possível (com o Hélène mais
.rdei. falava-me sem alardes com o a um seu igual. Mostrava-me e explica-
. -me todas as árvores e todas as plantas. Era sobretudo os eucaliptos intermi-
. eis que me fascinavam: gosta\’a de sentir debaixo da m inha m ão a escama
.L' 'uas longas cascas tubulares que de súbito se desprendiam estrepitosa-
eute do alto dos ramos e ficavam então a p en d er sem fim com o braços inú-
. ' ou farrapos (os farrapos que, mais tarde, eu gostaria de trazer vestidos, os
.rrapos das grandes cortinas verm elhas do m eu ejuarto de cama da École Nor-
■ilci — as suas folhas tão lisas, tão com pridas, curvas e pontiagudas, c|ue com
rodar do ano passavam do verde escuro ao verm elho ensanguentado, e o seu
0 to-flor de pólen delicado e perfum e m ágico de «remédio farm acêutico».
-O ia tam bém a descoberta sem pre nov a dos ciclam es cor-de-rosa bravos sem-
n escondidos p o r baixo das folhas escuras e cujas vestes era preciso levantar
.,r.i se descobrir o rosa da sua carne mais íntim a: espargos bravos, rijos com o
r\o s espetados, cjtie podia m order crus ejuando saíam da terra. Depois os ter­
eis aloés protegidos por espinhos e pontas, c p o r vezes (uma vez de dez em
ez anos?) atirando para o céu um im enso dardo lentam ente coroado p o r uma
r inacessív'el!
\ iv ia uma intensa felicidade, livre e plena, na com panhia do m eu avô e da
nha avó, m esm o t]uando os meus pais me acom panhavam , no paraíso da
florestal, do seu jardim e da sua im ensa mata.
Com frequência antes de a alcançar havia dramas. No cim o da mata
'cuia-se m esm o à beira da estrada de terra que percorríam os a pé (quatro qui-
nctros) uma casa alta c branca habitada po r um capitão cm funções,
1 Lemaitre (que n o m e ...)', pela sua mulher, o seu filho crescido, já com
tte anos de idade, e a filha pequena. Era sem pre aos dom ingos: o dia feriado
meti pai e tam bém o dia de descanso de M. Lemaitre. Q uando subíam os
■;r.i a casa florestal, ele estava ali sempre, em família, mas muitas vezes explo-
,m cenas horríveis entre o pai e o filho. O filho tinha o dever de trabalhar

l.í> m aitre- «o senhor», «o mestre», ete. (.V. do T. )

71
I. o V í s A I. T íJ ( s s i: a

com os seus livros, no quarto, e quando se recusava a fazè-lo, o pai fechava-o


à chave. Era o que acontecia todos os dom ingos. O capitão, com uma fúria tre ­
m enda, explica-nos as razões da ausência do seu filho. De repente ouvim os um
enorm e barulho de m adeira quebrada.- o filho estava a arrom bar a porta do
quarto, e sai aos berros para desaparecer no bosque, O pai então entra precipi­
tadam ente em casa. volta a sair com um revólver em p u n h o e corre atrás do
filho. Mais um pai violento, mais gritos e um revólver! Mas desta feita havia um
filho violento erguido contra a violência do pai. A mãe calava-se. Um pouco
afastada, no prim eiro degrau das segundas escadas da casa, a rapariguinha,
Madeleine, fica sentada com a cara banhada em lágrimas. Sinto-me pro fu n d a­
m ente com ovido, Vou-me sentar ao lado dela, tom o-a nos braços e ponho-m e
a consolá-la. Tenho a im pressão de um im enso acto de piedade e de abnegação
da m inha parte, com o se descobrisse um a vez mais (a seguir à m inha mãe) uma
n m a e definitiva razão de ser c a missão oblativa de toda a m inha vida; salvar
aciuela petiuena mártir. Além de mim, aliás, ninguém se ocupa dela, o que
aum enta a rainha exaltação. O filho regressa, com o pai atrás dele, de revólver
em punho, para voltar a fechá-lo à chave num dos quartos, enquanto nós saí­
mos do cenário de violência e desolação familiar trt)cando-o pela paz da casa
florestal, m uito próxim a. Desta vez, eu tinha tido de novo m uito medo, mas
— com o dizer — descobrira naquilo um a espécie de felicidade arrebatada ao
tom ar nos m eus braços a pequenina M adeleine (o nom e da m inha avó. Ah! os
nom es... Lacan tem toda a razão em insistir no papel dos «significantes», na
esteira de Freud. que fala nas alucinações de nom es).
Espantava-me a m aneira com o o m eu avô, que não parava de fazer má cara
e de resm ungar diante de toda a gente p o r tudo e p o r nada, p o r trás do seu
bigode mas sem pre a meia-voz, era com pletam ente diferente comigo. Para
dizer tudo, nunca tive m edo de que ele m e abandonasse. Q uando lhe aconte­
cia perm anecer silencioso comigo, nunca eu experim entava com isso qualquer
angústia (que diferença em relação ao m eu pai e à m inha mãe!). Porque ele só
se calava para me falar. E era sem pre para me m ostrar e me explicar as m aravi­
lhas da floresta que eu ainda não conhecia: sem nunca m e p edir nada, mas
pelo contrário sem parar de me encher de dádivas e surpresas. Foi assim que
devo ter form ado um a prim eira ideia do que acontece quando se ama. Era

72
f r 7 (/ R o / M r I i o / }'. 1/ i> o

ic tu o tn ttn d ia : sem pre uma dádiva sem troca, cjue me provava que
,.„to existia. Ele m ostrava-me tam bém , contíguos à cerca da casa tlores-
■Ltos m uros de segurança de tijolo da residência da Rainha Rana\alo,
;x a ninguém via. Soube mais tarde que as tropas francesas ao invadirem
.1'Lur nos tem pos áureos da cam panha colonial tinham capturado a rai-
pais para a fecharem naquela residência com pulsiva, estreitam ente
; na parte mais alta de Argel. Mais tarde, em Blida, vi do m esm o m odo
rnie negro de óculos, sem pre protegido por um im enso guarda-chuva
i - c a sua fotografia em postais) que abordava todas as pessoas com
' t cruzava estendendo-lhes a mão, e dizendo-lhes «Amigos, todos ami-
r ra Béhanzin, o antigo im perador do Daom é, também ele desterrado
Argélia. Condição que me pareceu estranha: tratou-se sem dúvida da
prim eira lição de política.
o F V T U R O E M r / / o 7 /; M P O

■issim que eu o entendia: sem pre um a d ád i\a sem troca, que me provava que
eu de facto existia. Ele m ostrava-m e tam bém, contíguos à cerca da casa tlores-
tal, os altos m uros de segurança de tijolo da residência da Rainha Ranavalo.
que nunca ninguém via. Soube mais tarde que as tropas francesas ao in\ adirem
Madagáscar nos tem pos áureos da cam panha colonial tinham capturado a rai­
nha do país para a fecharem naquela residência compulsic a, estreitam cnte
vigiada, na parte mais alta de Argel. Mais tarde, em Blida, vi do m esm o m odo
um enorm e negro de óculos, sem pre protegido por um im enso guarda-chuNa
(vendia-se a sua fotografia em postais) que abordava todas as pessoas com
quem se cruzava estendendo-lhes a mão. e dizendo-lhes «Amigos, todos am i­
gos!», Era Béhanzin, o antigo im perador do Daom é, tam bém ele desterrado
para a Argélia. Condição que me pareceu estranha: tratou-se sem dúvida da
m inha prim eira lição de política.
VII

uando o m eu avô se reform ou, creio que cm 1925. acabou-se a casa ’


Q restai (nunca mais voltei a vè-la) e as suas maravilhas.

Os meus av()S regressaram então à sua região de origem , o Morvan


adquiriram uma casinha em Larochemillay. peciuena aldeia a quinze quilói
tros de Chàteau-Chinon e a onze quilôm etros de l.uzy, num a zona acidem.
e cheia de bosques. Nova maravilha para mim. Era longe de Argel, sem düvi.
mas passavam os lá grandes \'erões. o mais das vezes sem o meu pai que fica
a trabalhar cm Argel. Primeiro, tínham os que atravessar o mar. num dos C,c
v e n ie u r G énéral X... que garantiam as ligações, navios lentos e d e sco n fo r
veis, em que o cheiro dos corredores e cabinas encardidos de um a espécie i
gordura espessa fedendo a vom itado me fazia enjoar, antes ainda da partici
Enjoei sem pre a bordo, com o a m inha mãe e a m inha irmã, mas nunca
meu pai.
Era a seguir a rápida descoberta do porto de Marselha, a Joliette, as mal.
as inquietações da m inha m ãe (e se as roubam !), e mais tarde o com boio. A*
o combctio! O cheiro dos grandes jactos de fum o das locom otivas a vapor
ruído flexível das bielas, os dem orados cham am entos do apito ao longo d(t tr
jecto (por que seria? por causa das passagens de nível, com certeza), e depo
ao chegar às estações e à partida o deslizar infinito e tranquilizador sobre i
carris, escandido pelo choque regular e apaziguador das juntas. Q uando a jti'
ção se faz com o deve ser as coisas encaixam , tudo corre bem, A m inha m.í
receava a todo o instante um acidente. Eu não. A paisagem , essa desconhecid.
o F F 7 r F O i ,u r / / o 7 /; ,1/ F O

passava do outro lado dos \ idros. Com íam os ser\ indo-nos do apoict dos joe­
lhos, depois de a m inha m ãe tirar do cesto as pro\ isões. preparadas de ante­
mão, cm Argel, N unca nos foi dado conhecer os esplendores do vagão-restau­
rante; econom ias!
Em Chagny, apnhávam os um ramal secundário: Chagny-Ne\ers M udá\a-
mos de com boio (cuidackt com as malas!) e subíam os para carruagens bem
mais rústicas puxadas p o r uma vagarosa m áquina ofegante. Mas está\am os
então cada vez mais perto da «terra», iMuito rapidam ente passei a conhecer e
a reconhecer as estações, e nos taludes rentes à linha do com boio (que seguia
a um ritm o de dispnéia) tentava ac istar por entre as ervas daninhas os prim ei­
ros m orangos braços com t]ue tencionava regalar-me: estariam já m aduros?
Por fim chegavam os ao term o da nossa viagem; a Millay, pequena garezinha
insignificante, mas era aí que se iniciaca a verdadeira aventura.
Por trás da estação, espera\a-nos uma tipóia, Da prim eira \ez, bac ia uma
chuc a fortíssim a, que nos toldava p<tr com pleto a casta, mas ficámos ao abrigo
da cobertura de lona, encolhidos po r causa do frio — mas das outras vezes,
quase sempre, fazia um belo sol. M. D ucreux, que viria a ser m aire de Laroche
em 1936, obtendo o lugar contra o senhor conde, conduzia tranciuilamente
uma bela égua baia de garupa possante e em brece coberta de espum a, e cuja
longa fenda carnuda, que me ficava debaixo dos olhos, me interessava p rodi­
giosamente. Seis quilôm etros de ascensão, depois as alturas de Bois-de-Velle de
onde se descortinaca uma imensa paisagem de m ontanhas frondosas (carva­
lhos. castanheiros, faias, freixos, cárpeas, para não falar das avelaneiras e sal­
gueiros), em seguida um a descida ligeira mas prolongada ao longo da cjual a
egua adoptava um trote familiar, e po r fim a aldeia. A encosta m uito abrupta
de um cam inho bastante m au: passácam os diante da escola com unal (em gra­
nito), e logo a seguir «a casa», com a m inha avó m uito direita que nos esperava
á porta.
Desta vez, a casa não era m uito grande, mas tinha duas grandes caves fres­
cas, um grande sótão mais ou m enos arranjado a abarrotar de rom ances de
Delly recortados página a página da revista Le Petit Écho de la m o d e ejue a
m inha avó sem pre lera, alpendres para os coelhos e um grande galinheiro
L O l' I S A I. 1 II I’ S S f. R

gradeado onde deam bulavam as aves de criação cheias da sua lenta suficiênc:.
mas de olhos sem pre alerta. Havia um a boa cisterna de cim ento (onde às \cv.
os gatos caíam e para m eu terror — ó dram a! — (outra vez os m ortos) se afog
vam) destinada a recolher as águas da chuva. E acim a de tudo um belo jardir
inclinado com uma bela vista para um a das m ontanhas mais altas do Morva;
Touleur. Ao tem po, nem água corrente na aldeia nem, é claro, electricidad;
íamos buscar a água em baldes a casa de duas solteironas que viviam ei
frente, alum iávam o-nos com candeeiros de petrtãleo — ah! a bonita luz tii,
eles faziam, sobretudo quando, para m udarm os de cjuarto, levá va m o s a In
connosco e passavam então pelas paredes sombras móveis e com frequênc;
desconcertantes: que segurança, a de quem leva a luz consigo!
Mais tarde o m eu avô m andou abrir um poço a valer depois de consuh..
o vedor que. varinha na mão, decidiu que era ali, junto à grande pereira, c
determ inada profundidade. O poço foi escavado à mão, imagine-se, em plen
cam ada de granito cor-de-rosa! Que trabalho de força e p recisão-. cavavam-s.
minas, cpie se faziam explodir, e depois era preciso tirar os blocos e escavar d,
no \'0 minas com um a haste. A água apareceu à profundidade exacta precist
pelo vedor. Ficou-me desse tem po uma verdadeira consideração pela arte du>
hom ens da varinha de aveleira, consideração que transferiria m uito mais tarch
para o «velho Rocard», director do Laboratório de Física na École Norm ale :
pai de Michel Rocard (um estranho para mim e aparentem ente tam bém para <
pai), que procedia a estranhas experiências de m agnetism o, saindo a pé con
a sua varinha pelos jardins da Escola, aos dom ingos (quando não havia nin
guém a observá-lo), ou de bicicleta, de carro e até de avião! Este hom em fabu
loso, que conseguira equipar os laboratórios de física de 1936, com pletam entc
vazios, a seguir à penetração das prim eiras tropas francesas na Alemanha, fre
tando p o r sua iniciativa cam iões militares e trazendo dos laboratórios alem ãc'
c das grandes fabricas todo o m aterial de que precisava. O que forneceu ao ser
Laboratório de Física, um dos prim eiros de França (onde trabalhou Louis Kas
tler que viria a ser Prêm io Nobel), m aterial com que funcionava. O mesm<.
Rocard pai tinha fama de ser «o pai da bom ba atôm ica francesa», o que nunc;;
foi nem confirm ado nem desm entido; mas esse título ou pseudo-título va
lia-lhc a hostilidade política da m aior parte dos iio n n a lien s. Rocard foi c

■^6
/' l 7 r R o \t r / / o l 7: .)/ 7" o

-rim eiro físico do m undo a m ontar um sistema de detecçfut das explosões


.Licleares com base na propagação pela crosta terrestre c na triangulação
Linha construído num erosas casinhas bastante co n fo rtáteis num a vintena dc
ugares, o mais das vezes inacessíveis, em França-, con\ idou certa vez para uma
delas o Dr. Étienne que voltou assom brado — eu não) registando (t instante da
Jteg ad a das ondas. Nesse tem po ficava inform ado sobre a explosão de uma
^omba, ainda que subterrânea, um tjuarto de hora antes dos am ericanos e
di'SO (m odestam ente em bora) se orgulhava bastante... Eu adm iraca as suas
_.ipacidades de «pirataria»; sabia contornar a m aior parte das im posições adm i­
nistrativas. que desprezata, e para grande escândalo das direcções da escola,
era assim detentor de um «saco azul» com o qual ele, um físico, aceitou pagar-
m e durante um ano inteiro uma dactilógrafa a m eio tem po que passoti à
máquina o m eu curso para insestigadores científicos de 196^! Também isso,
c^sa autêntica astúcia, engenho, audácia, ausência ttttal de preconceitos, junta-
nicnte com um a grande generosidade, foi algo tiue nunca esqueci. O velho
Rocard, surdo ou fazendo-se dc surdo em certas ocasiões, im itado (tam bém
d c ') por todos os seus assistentes nos seus mais ínfimos gestos e m aneiras dc
nizer, resm ungava cttm o o m eu pai ao dar as suas ordens e era um m estre em
borlas», excedendo em m uito as tím idas audácias do meu pai: foi para mim,
.1 ^eguir ao m eu a\ ô, e sem que jamais tivesse chegado a sabê-lo, um verda-
Jeiro segundo pai.
Cavado o poço, o m eu a \ô m andou colocar sobre o seu rebordo uma
r.impa de metal, e cinquenta centím etros acima um pequeno telheiro de zinco
protegendo a abertura do poço. Era em cima deste telheiro que na estação
.erta caíam de m uito alto, dia e noite, produzindo um barulho seco interm i­
tente que até de casa se ouvia (apesar de esta ficar a cintjuenta m etros e da p ro ­
tecção das suas paredes) as m inúsculas pêras \crm elhas, im p e n e tn u e is pela
t.ica. com que a m inha avó fazia uma com pota deliciosa, com o nunca provei
'iitra na m inha \ ida. A pereira tinha uns bons trinta m etros de altura. Por trás
dela. depois das sebes e de um atalho, erguiam-se os grandes m uros do pátio
da escola com unal onde, quando chegavam e partiam no m eio dc uma gritaria
tum ultuosa, o tu ía m o s o clam or agudo dos alunos de tam ancos, com as suas
«rincadeiras de antes da entrada na sala dc aula, e a seguir, de repente, o
/ o ( / s .1 /, / H I S S J: R

silencio da form atura, o bater de palmas do m estre-escola, os tam ancos a]!!


nhados nas escadas, e por fim o profundo silêncio da aula.
Muito perto, no eim o da colina alta, havia o cem itério (onde repousam o
meus avós sob uma laje de granito cinzento) dois ou três abetos enfezados. =
depois para lá, no cam inho enlam eado, o m iserável bairro dos «pobres» (um,
família inteira, uma m ulher dehtrm ada pelos num erosos partos, um \elh.
doente e muitas crianças num a única divisão que tresandaca). Mais adianu
com eçava um pedaço de estrada lisa e po r fim os bosques aos quais se acede
por uma m agnífica fonte, coberta de visco, a «fonte do Amor», e um lacadoun
para as m ulheres abundantem ente freciuentado. Perto, na orla do bost|iie, ü,
um dia na com panhia da m inha mãe m uito inquieta a descoberta de um verd.i
deiro cam po de tenros cogum elos com estíveis, bastante raros na região, direi
tos no seu eaule e crispados com o sextjs erectos; processtt sem sujeito nen
fins, fascinantes para mim, mas cxtmpletamente indiferentes (pelo m enos n »
aparência) para a m inha m ãe insensível. C om preendo dem asiado bem p o r qiu
conservei esta intensa recordação.- não sabia então que fazer do meu próprii
sexo, mas sentia perfeitam ente que tinha um. Lembro-me de que mais tarde
adolescente, durante alguns meses que passei, com o se verá, em casa dos meu''
av ós, me acontecia passear sozinlu) no fundo do jardim, num lugar onde nin
guém podia ver-me, com o m eu sexo esplendiclam ente erecto p o r baixo d,!
m inha bata escolar negra, acariciando-o sem mais nada tentar, intermintivel
m ente; com o prazer a levar a m elhor sobre a vergonha do interdito. Ignoravu
então tudo das delícias da m asturbação que, po r acaso, descobriría um a noite
ciuando prisioneiro, aos v inte e sete anos!, e que desencadeou em mim uma
em oção tal que me fez perder os sentidos.
Os bosques variados nos seus perfum es (havia tam bém grande núm ero de
belos fetos e de giestas, entrecortados p o r vezes de clareiras onde aparecia
uma tjuinta) eram bastante acidentados, enfeitados p o r nascentes claras e rega­
tos cheios de lagostins e rãs. Lram algo acidentados, mas de uma grandeza
tranquila; o sol brincava lentam ente p o r entre as folhas. Uma mata com pleta­
m ente diferente das argelinas! O ejue não im pediu que o m eu avô, filho do
M orvan, nela me iniciasse com o antes fizera. Ensinou-m e cjuando e com o c o r­
tar as boas hastes de castanheiro (ah, o seu jacto frágil e poderoso de seiva...
o /• r / r K o / \í I I I O I I: u r

V, fazer com elas a estrutura das cestas cam ponesas que me ensinou a fahri-
na ca\e, e m ostrou-m e quais eram os jo\ens rebentos de salgueiro que se
;am entrelaçar entre os arcos da arm ação. Fmsinou-me tudo. os tanques, as
os lagostins, mas igualm entc toda a região c as pessoas que nela se encon-
,im e com quem ele cavaqueava no falar local.
O Morvan era então um a terra m uito pobre, \avia-se por lá quase exclusi-
'.ente da criação de bovinos charoleses brancos, mas sobretudo da criação
■o>rc(ts e.,. de crianças da Assistência Pública colocadas em grande núm ero
região. Acrescente-se a isto a batata abundante, um pouco de trigo, ce^■ada.
_ i-mourisco (que se dava m uito bem p o r lá. na com panhia dos castanhei-
■ a castanha e a caça, nom eadam ente aos javalis durante o Inverno, alguma
:a e a lista fica com pleta.
\ a aldeia, num ponto elevado, a igreja, recente, sem graça nem realce, e
fe dela o clássico e m edonho m onum ento aos m ortos da Guerra de 19Ia-
"S, coberto de inum eráveis nom es, aos tjuais se acrescentariam mais tarde,
jvouco po r toda a parte, as listas dos m ortos de 1939-1945, a seguir o nom e
.iguns deportados, enfim a lista das vítimas das guerras dt) Vietname e da
,clia. triste balanço dem onstrando até à ev idência tjue com o sem pre essas
rras tinham ceifado a juventude dos campos. l'm antigo com batente da
jrra de 1914 assegurava o serviço eclesiástico, dizia a missa, em que eu
,i\a parte com o m enino de coro, dava o catecism o ejue frequentei mais
c:l num a m inúscula salinha aquecida de Inverno po r um pequeno fogãt) ao
ro O padre, desiludido de tudo, bonacheirão, generoso em relação aos
,.idos e sobretudo aos apetites ou até m esm o aos actos sexuais, sem curiosi-
,ies m órbidas na confissão, sem pre tranquilizador para as crianças, com o
cachim bo das trincheiras sem pre na boca, era a indulgência em pessoa:
;is uma figura de bom «pai».
Saía-se bastante bem nas suas funções, porqtie a região era ainda dom i-
d.i pela autoridade aristocrática indivisa do conde, cujo alto palácio do se­
io x\ II se escondia por trás de altíssimas árvores m ultisseculares. Tratava-se
um grande proprietário de terras, possuía à vontade dois terços da fregue-
era de direito m aire, e controlava estreitam ente a m aior parte dos cam po-
'cs, seus rendeiros, ou mais frequentem ente ainda seus caseiros: subsidiava

■"9
I. o ( / ,v , I /. r II i V V / R

c m antinha sob a sua jurisdição através da esposa — a condessa, m ulher alta e dt


aspecto am ácel que vi um a única vez dentro da sua esplêndida residência con
móveis polidos pelo tem po — uma escola particular para m eninas. F.stava entíu
no seu auge a disputa entre o p artido do conde e o partido do m estre-escoia
tam bém este, todavia, um hom em cheio de generosidade. Mas o ejue tinha tjtu
ser tinha que ser, era um a lei de estrtittira. O padre, bom hom em e bom «pol)
tico», m anobrara de tal m odo tiue não tinha um único inim igo na região.
O m eu a\ (ã contava-m e as coisas da terra quando andácam os pelos bos
cjues ou quando eu o acom panhara nos trabalhos da horta cheia de pés de
m orangueiro rastejantes, de não sei quantas árvores de Irtito e de toda a espé
cie de ervas arom áticas, para não falar de um a azeda que não estiueci ainda a
tal ponto a sua acidez me picar a a língua. (Quando, mais tarde, na Ecole. qui'»
oferecer aos Chàtelet. que ainda hoje me falam disso, um lúcio com azedas,
tentei descobrir as azedas na rue Mouffetard, e quandt) as pedia aos v endedo­
res de legumes e err as de tem pero que as não tinham , obtinha sem pre — trinta
rezes! — a mesm a resposta: «Se tivéssem os disso não estáram os aqui!») O meti
ar‘ò ensinou-m e tudo. a semear, a plantar, a arrancar, a enxertar as árvores e até
a fabricar estrum e p o r trás da casa de banho, recolhendo mijo e a m erda tk)s
habitantes da casa. F.ssa sala de m adeira estreita, uma porta m esm o em cirna do
nariz e sem janelas para fora! Fu por lá ficar a indefinidam ente com um Delir-
na mão, sentado no rebordo de madeira, cu a descoberto, aspirando o deli­
cioso arom a a mijo. m erda, terra e folhas apodrecidas que a invadia, mijo e
m erda de hom ens e m ulheres! A casa de banho era dom inada por um sabu­
gueiro frondoso, cujas bagas me eram rigorosam ente proibidas pela m inha
mãe (um veneno terrível!). Soube mais tarde que os alemães faziam com essas
bagas uma sopa suculenta... lati sabugueiro cujas flores inebriantes me em bria­
garam contra at]uele fundo de mijo. de m erda e de estrum e de terra.
C) m eu avô chegou a ensinar-m e a m atar coelhos com um m urro na nuca
\ ibrado de baixo para cima e a cortar com uma po d o a no cepo de m adeira o
pescoço de patos cujo c o rp o continuava a correr durante mais alguns m inutos.
Com ele eu não tinha m edo. Mas tjuando a m inha avó com eçava a golpear a
carótida das galinhas introduzindo-lhes uma tesoura afiada na garganta, não
me sentia orgulhoso desse horror, sobretudo vindo da parte dela.

80
o / r / r o p ,ií r / T o / lí M P

Todas estas coisas m e causavam uma grande alegria, mas devo reconhecer
que tudo isto se passava durante o Verão e que, term inadas as férias, tínham os
tlLie voltar para Argel. Contudo, não chegara ainda ao cúm ulo das m inhas sur­
presas nem da m inha felicidade.
l'm dia a m inha avó, a m inha mãe, a m inha irm ã e eu partim os para Fours,
onde a m inha bisavó m aterna, a velha Nectoux, viúva ha^ ia muito, vivia sozi­
nha num a única divisão, terrivelm ente só na com panhia da vaca. Mais uma
m ulher velha assustadoram ente aprum ada e seca e além disso m uda, se excep-
tuarm os algumas interjeições de um falar arcaico c que eu não com preendia.
Mas lem bro-m e m uito bem de um incidente que me im pressionou com grande
intensidade, junto à pequena ribeira do lugar onde ela levara a sua pesada e
dócil \ aca a pastar. Hu estava a brincar com as libélulas coloridas que passavam
de flor em flor (st)bretudo as «flores do prado» intensam ente arom áticas).
,\ certa altura vi a m inha bisavó, que nunca largava um grande bordão nodoso
ipor causa da vaca e para se apoiar nele ao andar) entregar-se a um co m p o rta­
m ento deveras estranho. Sem uma palae ra, estava m uito direita, e o ruído forte
de um intenso jacto saía de baixo da sua longa saia negra. Corria-lhe um regato
claro aos pés. Le\ei certo tem po a «realizar» que ela estava assim a m ijar m uito
direita, p o r baixo da saia, sem se ter agachado com o as m ulheres fazem, o que
'ignificava que não tinha nada p o r baixo da saia. Fitjuei estupefacto: com tjue
então havia m ulheres-hom ens, sem vergonha do seu sexo, e que chegavam ao
ponto de m ijar diante de toda a gente, sem reserva nem \ergonha, sem se
darem sequer ao trabalho de avisar fosse ciuem fosse! Que descoberta...
Embora ela fosse sim pática para comigo, tudo se confundia: seria um hom em ,
aquela mulher, e que hom em , que dorm ia com a vaca, a guardava, e mijava
com o um hom em diante de toda a gente mas sem puxar o sexo para fora da
braguilha e sem se esconder p o r trás de um tronco de árvore! Mas era igual­
m ente uma m ulher pois não possuía um sexo de hom em , e era capaz de me
amar com dureza, sem dúvida, mas tam bém com a ternura contida de um a boa
mãe... Aquilo nada tinha a ver com a mãe do m eu pai. Este episódio surpreen­
dente não me inspirou m edo algum mas deixou-m e dem oradam ente pensa-
ti\o. Naturalmente a m inha mãe não dera por nada e nunca falou do assunto.
.\h! a insensibilidade da m inha m ãe perante tudo o que m e pudesse tocar...

81
/. o r / V ,1 A 7 7/ r ,S ,S A «

Quando, no princípio de Setembro de 1928 (d e\ia eu ter dez ou onze


anos), a m inha irmã apanhou escarlatina (sem pre doente, essa m iúda, tiue se
defendia desse m odo, com o podia, po r m eio da fuga para a doença orgânica)
a m inha mãe tom ou as grandes m edidas que no seu espírito se im punham
dom inado pela fobia dos contágios. Consultou os m eus avós, depois p ergun­
tou-m e a mim se eu aceitava não voltar para Argel, mas ficar em Larochemillay
para aí passar um ano inteiro. Imagine-se se aceitei ou não! Decididam ente,
aquilo que eu não sabia ainda serem as fobias da m inha mãe podiam — astúcia
da psique — ter o seu lado bom , e de que m aneira.
Cdaro. um ano inteiro significava tam bém , consequentem ente, um ano
escolar ali, na escola com unal da aldeia. Sabemos já que a escola ficava a dois
passos de casa. Estava a cargo de um hom em cheio de brandura, de firmeza e
de generosidade, M. Boucher, m uito a gosto de m inha mãe, grande amante das
consciências, e de m olde a trancjuilizá-la. Calcei uns tamanctts, que gosta\a
m uito de usar para não parecer um estranho, e enverguei a bata negra da praxe.
Fiz então, assim vestido, a m inha entrada no m undo dos pequenos cam pone­
ses que durante anos, com um a inveja terrível, ou\ ira brincarem ruidosam ente
no pátio, ou depois, à nossa porta, subirem lentam ente ou descerem a correr
o cam inho abrupto e em mau estado que passava fronteiro à casa, entre cha­
m am entos, invectiras e gritos de alegria, num perp étu o barulho de fundo de
tam ancos, porque o calçado de cabedal nesse tem po e naquela região era
dem asiado caro e os tam ancos eram fabricados artesanalm ente (chegiiei
m esm o a talhá-los em toros de m adeira com essas m aravilhosas ferram entas —
«goivas» cortantes cjue se adaptavaim bem à mão), essas m aravilhas lustrosas e
duras nos pés, que de com eço feriam o calcanhar mas a que uma pessoa se
habituava depressa, e que protegiam tanto do frio com o do calor, sim. que a
m adeira é má condutora do calor e do frio — mas o couro não.
Entrar na escola era enfrentar um m undo desconhecido e antes do mais a
linguagem dos rapazes dos cam pos; o falar m orvandês, um a língua feita de res­
saltos inesperados de consoantes e vogais, e sobretudo de deform ações co e­
rentes (pelo adensam ento e prolongam ento dos fonem as) das vmgais e d ito n ­
gos. e po r fim de construções e expressões que me eram desconhecidas. Não
era de m aneira nenhum a a língua interna das salas de aula, onde o professor

82
/ r 7 r /(■ o t: ,U 7' / I o T i: M F o

ensinava francês c a pronúncia clássica da lIc-cIc-France, mas uma segunda e


outra língua, uma língua estrangeira, a língua m aterna deles, a língua dos
recreios, da rua e p o r isso da vida. A prim eira língua estrangeira que aprendi
(em Argel não tivera a m enor ocasião de aprender o árabe da rua. portiue a rua
me era proibida pela m inha mãe. que apesar disso com eçara a aprender o
árabe «literário»). Tive que me habituar.
7\pliquei-me a isso com uma paixão, um a rapidez e uma facilidade que
não me surpreenderam m inim am ente, de tal m ttdo era azada e fascinante para
mim esta conversão linguística. Só m uito mais tarde, tendo tido ensejo de
aprender a falar um pouco de polaco (mas com um sotaque tal, nessa língua
de pronúncia tão difícil, ejue passava p o r um polaco de raiz), o alem ão dos
campt)s de prisioneiros e o alem ão literário, para não falar do inglês do liceu
que pronunciava com um m aravilhoso mas provocante sotaque am ericam t que
aprendera sabe Deus onde. sem dü\ ida na rádio, e que m uito me di\ ertia (para
grande cólera dos meus professores de inglês; mais uma m aneira de form ar
um a língua m in h a cujos sons e m odos descobrira sozinho, para me dem arcar
do exem plo e da autoridade dos m eus mestres). Aprendi estas línguas com
uma facilidade tal que pensei cpie devia ter por certo, com o costum a dizer-se,
o «dom» das línguas. O dom ! O m esm o será dizer que é a \ irtude dorm itiva do
ópio que faz dorm ir. É daqui que data a m inha hostilidade à ideologia dos
dons (m uito do agrado de Lucien Sève. que se bateu longam ente e com razão
camtra ela, mas com argum entos inteiram ente diferentes, m uito mais políticos
do que os meus, tenho que o reconhecer!). Mais tarde ainda reflecti que a
aprendizagem do falar, mais preeisam ente da pronúncia exacta dos fonem as
das línguas estrangeiras, a p onto de iludir os outros acerca da m inha origem .
de\ ia vir-me tanto do m eu desejo de im itação e p o r isso de sedução, com o
ta m b ém e ao m esm o tem po do êxito m anifesto daquilo a que cham ei uma
espécie de educação fís ic a dos m úsculos, um jogo extrem am ente agradá\ el
dos m úsculos dos lábios, dos dentes, da língua, das cordas vocais e dos m úscu­
los que com andam a cavidade bucal. De facto. era habilíssim o a jogar com
todos os m úsculos do m eu corpo, era capaz de agarrar e até de atirar pedras
com os meus dedos dos pés, apanhar do chão diversos objectos que levava às
mãos ou poisava num a mesa. Soube até m uito cedo «mexer as orelhas» em

83
/. o r / ,s .1 L T II r V ,s i: R

todos os sentidos c m esm o independentem ente uma da outra (o m eu maie


sucesso junto dos m iúdos) c m anejava com o ninguém uma bola de futebt
(excepto com a cabeça que sentia dem asiado grande e vulnerável), e chegui
a inventar sozinbo novas utilizações do pé, da sola, do calcanhar, dos joelho
ou ainda rm n im entos «ao contrário» cjue mais tarde tive ensejo de ttbservar ei
jogadores experim entados.
Mais tarde, finalmente, pude notar a seguinte circunstância singular: é qi
[praticando] os próprios exercícios que aprendera com os meus pais (com o
tênis, a natação ou a bicicleta, que aprendi «em familia») chegara (e disso fize
ferozm ente questão) a reconstituir po r m im , sozinho, técnicas das quais (
meus pais nada tinham sabido ensinar-m e. Assim, o m eu pai servia no tén
batendo de cima para baixo com a raquete num a bola que cortava. Desperdíc
de forças! A custa de longas observações de jogadores a valer e de fotografi
de Lacoste e Tilden, aprendi sozinho a servir com o hoje se serve, p o r m eio (
uma rotação da raquete atrás do om bro, aplicando toda a força possível do s(
im pacto na bola e tornei-m e m uito hábil neste serviço. O m eu pai també
nadava apenas bruços, mas tinha uma predilecção pelo m ovim ento dorsal co
a particularidade de não se servir nem dos braços nem das coxas, pois ava
çava rem ando com as duas m ãos contra os flancos (progredindo aliás co
grande rapidez) e sobretudo conservando cuidadosam ente q uer a cabeça qu
os dedos dos pés levantados fora de água. estranho m odo de nat egar que p(
m itia reconhecê-lo de longe. E ria-se com aquilo! Eu, observando os nadad
res a valer e fotografias, reflecti e aprendi sozinho a mergulhar, quer diz
antes do mais a conservar o tem po que fosse preciso, controlando a respi
ção, a cabeça debaixo de água (a cabeça dentro de água! que audácia, era pe
goso, dizia a m inha mãe, um a pessoa pode afogar-se!) e finalm ente, acresce
tando a isso o bater das coxas e dos pés, aprendi sozinho a nadar craivl. De:
m odo já não imitava ninguém , já não queria seduzir ninguém , a não ser si
p reendendo os outros com as m inhas proezas. É de crer t]ue fosse então p;
mim um ponto de honra dem arcar-m e r isírel e efectivam ente das técnic
familiares, c senão já «pensar p o r mim p ró p rio no meu corpo», pelo m er
ciuerer apropriar-m e do m eu p ró p rio corpo po r mim próp rio e segundo o m
desejo, com o que para com eçar a sair das regras e norm as da família.

84
O F r / 1/ R o M r / 7 o / /; V7 /J o

Foi assim que me atirei com grande facilidade e extrem o prazer ao falar
m orvandês, tendo em breve deixado de me distinguir fosse no que fosse dos
rapazes do lugar. Apesar disso eles flzeram-me sentir com dureza e durante
m uito tem po que não era um deles. Lembro-me, cjuando a prim eira neve caiu
e cobriu o pátio da escola, de ter sofrido um a sessão terrível em que me m as­
sacraram literalm ente com as bolas que me atiraram à cara. e \ cjo ainda hoje
a arvorezinha m agra junto à qual caí inanim ado debaixo dos seus golpes.
O m estre-escola, avisadamente, absteve-se de Intervir. Eu tivera a m inha conta,
mas sem som bra de angústia, e eles o seu prazer e a sua desforra. Depois, len­
tamente, senti que me adoptavam . Que alegria!
Lembro-me ainda com em oção do m eu últim o dia de aulas no Morvan,
quando, p o r um privilégio excepcional, m e deixaram escolher para o últim o
recreio o jogo que quisesse. Escolhi a barra, cujas corridas de surpresa me
embriagavam, e a m inha equipa ganhou.
«Eles». Era antes do mais o co n d u to r dos jogos e do grupo, um rapaz atar­
racado, corado e forte, de cabelo preto, cham ado Marcei Perratidin, vago
prim o afastado dos meus avós. Tinha um a vitalidade prodigiosa, e com o tan­
tos outros cam poneses m orreria mais tarde na guerra. Mais um m orto na
m inha t ida. De com eço, perseguia-m e sem piedade nem tréguas, eu sentia
abertam ente m edo dele, estando longe de igualar a sua força e sobretudo a sua
audácia, e tendo um m edo pânico de me ver obrigado ao com bate físico: o
m edo, sem pre o mesmo, de ver o m eu corpo lesado. De facto, nunca, nem
u m a só vez, em toda a m inha vida me bati fisicamente.
Não havia apenas jogos físicos entre rapazes, mas sobretudo uma brinca­
deira predilecta que consistia em cair em grupo e de surpresa em cima de um
tipo m om entaneam ente isolado, atirá-lo ao chão num recanto mais escuro do
telheiro, dom iná-lo, abrir-lhe com pletam ente a braguilha e pôr-lhe o sexo de
fora, o que era sem pre m otivo de grande regozijo e gritaria. Também eu sofri
essa sorte, sem dúvida que lutando, mas com um estranho prazer a apoderar-se
de mim. C onheci igualm ente na escola um rapaz da Assistência Pública, vindo
não se sabia de onde, m uito inteligente, e que me disputar a o prim eiro lugar
na aula. Era frágil e pálido (com o eu) e m urm urara-se com com placência que
ele «brincava aos pais e às mães» com uma rapariga do colégio das freiras.

85
/, o r I V .1 / / H r s s ] A’

também ela da Assistência Pública, entre as ervas altas do parque da condessa.


Q uando um dia se falava da coisa diante de mim, achei por bem intervir de
m odo perem ptório: é impossível, eles não tem idade para isso!... Com o se
tiw sse idéias com provadas acerca do sexo e do seu com ércio: limitava-me a
veicular os preconceitos e m edos da m inha mãe. Dois anos mais tarde, soube
que aquele rapaz brilhante mas enferm iço m orrera de tuberculose. Nova figura
de um destino trágico: mais um nutrto, e frágil e pálido com o eu.
l.em bro-m e desse terrível Inverno de 1928-1929, quando o term ôm etro
desceu a m enos 35 em Larochem illa\, e em tiue todos os lagos e ribeiras gela­
ram. o m esm o acontecendo até à água do balde da cozinha, apesar de colo­
cada perto da lareira acesa. A neve cobria tudo com uma espessa camada
m uda. Não se ouviam sequer os pássaros. Deles, viam-se apenas as marcas
estreladas das suas patas na neve. Lembro-me do deleite com que, bem abri­
gado, desenhei para a escola uma paisagem de neve. e com o amei atitiela neve
que tudo cobria: era para mim a protecção suprem a, o refúgio na casa quente
e abrigada, que me guardava de todos os perigos exteriores — sendo o próprio
m undo exterior, debaixo da mesma n e \e c]ue o cobria, garantia de paz e segu­
rança — e a certeza absoluta de que sob essa leve cobertura de silêncio e de
paz nada de mal me poderia acontecer. Tanto o dentro com o o fora eram
seguros.
Poderei acrescentar um p orm enor a in d a ' Na escola não me chamavam
Louis Althusser. excessivam ente com plicado... Mas Pierre Berger: o nom e do
m eu avô! Qtie me assentava bem de mais.
Kntretanto o m eu avô era tjuem continuava a ensinar-m e tudo acerca da
\'ida e dos trabalhos dos campos. E quando adquiriu, no Bois-de-Velle, um
hectare e m eio de terra e dois velhos casebres tiue lhe serviam para arrum ar as
alfaias, ensinou-m e então a sem ear o trigo, a cevada, a aveia, o trigo-m ourisco,
o trevo e a luzerna, e a ceifá-los com a seitoira e a foice, a atar os feixes de
cereal, a prendê-los com galhos de castanheiro ou tranças de palha que era
preciso, com um jeito rápido do pulso, saber ligar, a virar ao sol com a forqui-
Iha ou o ancinho o trevo e a luzerna. a fazer m ontes deles bem arredondados,
e a carregá-los nos braços (que peso!) para a carroça de um vizinho que vinha
buscá-los ao campo.

86
r i r I R o M r / T o 1 E M p o

O trigo, a areia, a ccrada, le\ava-os o arx') à debulhadora (o 4oaUoi>re^>)


única na região, cjue dava a volta às quintas, e todos os vizinhos e amigos eram
então alternadam ente m obilizados para a grande festa da debulha. l'm dia, só
um a r ez, o meu ar o levou-me consigo. Descobri com estupefacção a «máquina
de debulhar», um a enorm e massa de m adeiram entos, com plicada e ensurdece­
dora, cheia de mor imenttts e estalidos incom preensíveis. :iccionad:i através de
uma com pridíssim a correia de couro perigosa porque «saltava» muitas rezes
por um a outra m áquina, a r apor e alim entada a carvão; espectáculo im pressio­
nante. De cima das carroças os feixes eram lançados à forquilha para cima da
cobertura. Aí, dois hom ens em poeirados soltaram os feixes e espalharam à
pressa os feixes de cereal pela goela ávida da m áquina de m adeira que os sor­
via, num ruído infernal de palha esmagada.
Num ar que o enfardam ento do trigo e da areia tornara irrespirárel,
hom ens tossindo, cuspindo e praguejando sem parar para se fazerem our ir no
estrépito infernal, iam e vinham com o fantasmas num a estranha noite em
pleno dia, c(tm os seus lenços rerm elh o s atados à volta dt) pescoço. No
extrem o e na base da mácjuina, o trigo «corria» c(tmo uma água borbulhante
mas silenciosa para os sacos cjue as mãos seguravam. Por cima, a máciuina
expulsava a palha partida, despojada dos seus grãos. Faziam-se com ela fardos
toscos. L m cheiro espesso e m aravilhoso a carr ão. a fumo, a jactos de água,
óleo, pano de juta dos sacos, suor de hom em , im pregnara o grande estaleiro
O meu avó tentar a no m eio do barulho explicar-m e os m ecanism os da
m áquina, e eu estava ao pé dele quando o sett trigo corria para dentro dos se//s
sacos: que esplendor e que com unhão perante o milagre do trabalho e a sua
recom pensa!
Ao m eio-dia toda a gente parava e estabelecia-se num golpe brutal um
grande silêncio inaudito interrom pendo o estrépito. O cheiro dos hom ens e
do suor invadia então a grande divisão da casa de quinta onde a patroa risonha
serr ia uma refeição copiosa. Que fraternidade no esforço e no repouso, as
grandes palm adas nas costas, os cham am entos, interpelações de ponta a ponta
da saia, os risos, as pragas, as obscenidades.

' Icrm o do f;il;ir local; a palavra francesa para «debulhadora» é «hatteuse». (.V, do T.)

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o / r 7 r 77 o \í r I 7 o 7 h V p o

O trigo. ;i aveia, a ce\ada, le\ava-os o a\'ò à debulhadora (o «-hattoère»)


única na região, Cjue da\ a a \o lta às c|uintas, e todos os \ izinhos e amigos eram
então altcrnadam entc m obilizados para a grande festa da debulha, l m dia, só
um a vez, o meu avô levou-me consigo. Descobri com estupefacção a «máquina
de debulhar», uma enorm e massa de m adeiram entos, com plicada e ensurdece­
dora. cheia de m ovim entos e estalidos incom preensíveis, accionada através de
uma com pridíssim a correia de couro perigosa porc[ue «saltava» muitas vezes
por um a outra m áquina, a vapor e alim entada a carvão: espectáculo im pressio­
nante. De cima das carroças os feixes eram lançados ã forquilha para cima da
cobertura. Aí, dois hom ens em poeirados soltavam os feixes e espalhavam à
pressa os feixes de cereal pela goela ávida da m áquina de m adeira que os sor­
via, num ruído infernal de palha esmagada.
Num ar que o enfardam ento do trigo e da aveia tornava irrespirável,
hom ens tossindo, cuspindo e praguejando sem parar para se fazerem ouvir no
estrépito infernal, iam e vinham com o fantasmas num a estranha noite em
pleno dia, com os seus lenços verm elhos atados à volta do pescoço. No
extrem o e na base da máciuina. o trigo «corria» com o uma água borbulhante
mas silenciosa para os sacos que as mãos seguravam. Por cima, a máciuina
expulsava a palha partida, despojada dos seus grãos. Faziam-se com ela fardos
toscos. Um cheiro espesso e m aravilhoso a carvão, a fumo, a jactos de água,
óleo, pano de juta dos sacos, suor de hom em , impregnava o grande estaleiro.
O m eu avô tentava no m eio do barulho explicar-m e os m ecanism os da
m áquina, e eu estava ao pé dele ciuando o sen trigo corria para dentro dos setis
sacos; que esplendor e que com unhão perante o milagre do trabalho e a sua
recom pensa!
x\o m eio-dia toda a gente parava e estabelecia-se num golpe brutal um
grande silêncio inaudito interrom pendo o estrépito. O cheiro dos hom ens e
do suor invadia então a grande divisão da casa de quinta onde a patroa risonha
servia uraa refeição copiosa. Que fraternidade no esforço e no repouso, as
grandes palm adas nas costas, os cham am entos, interpelações de ponta a ponta
da sala, os risos, as pragas, as obscenidades.

' Tcniio do falar local: a palavra francesa para «dehnlliadora» é «batteuse». (.V. d o I. }

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L O l I S A L T H r S S t: R

Eu circulava livrem ente neste m undo de hom ens esgotados e embriag.i


pelo trabalho e pelos gritos. Ninguém m e dirigia a palavra, mas ninguém
fazia tam bém qualquer observação, era com o se eu fosse um dos deles, l i
a certeza de que tam bém eu, um dia, me transform aria num hom em c(:
aqueles.
Depois, de repente, com a ajuda do vinho — que corria abundante
copos grandes e nas gargantas largas —, nascia o prim eiro rum or desajeíí,
de um canto, balbuciante, procurando-se, falhando, perdendo-se, para fi:.
m ente se encontrar e explodir num a cacofonia exaltante.- um velho canto
luta e rer olta cam ponesa (um canto de ja e q u e rie — o nom e de Jaeques qiu
queria ter tido), em que condes e padres apanhavam a sua conta. E eu, eis t,
subitam ente me encontro, sim, na com panhia de hom ens autênticos, translv
dantes de suor, de carne, de vinho e sexo. E estendem -m e de bom grado c
copo cheio de vinho desafiando-m e com gracejos desbragados: o m iúdo be
ou não beber' és um hom e ou não? E eu que nunca tinha bebido vinho s
m inha vida (a m inha mãe: um perigo, sobretudo na tua idade — doze a n o '
eis-me c[ue bebo um pedaço e que os outros me aclamam . Depois o canto so!
de novo. E na ponta da grande mesa o m eu avô sorri-me.
Permitam-me, em nom e da verdade, um a confissão cruel. Esta cena tf
cantos caóticos (que certam ente ou\ i de fora, com o no dia em que a m air;
se encheu de gente, quando, em 1936. M. Ducreux foi eleito contra o c<mc
para o lugar de m aire). esta cena do copo de vinho, não a vivi do lado de d e r
tro da grande divisão caseira. Portanto sonhei, quer dizer, apenas desejei intei
sam ente vi\ ê-la, Não teria sido impossível. Mas. na realidade, tenho que a con
siderar e apresentar tal com o foi através da m inha recordação: uma espécie cf
alucinação do m eu desejo intenso.
Q uero com efeito ao longo de todas estas associações de lem branças ater
-me estritam ente aos factos: mas as alucinações são factos tam bém .

88
VIII

m 1930 , tinha eu então doze anos, o meu pai foi nom eado procurador do
E seu banco em jMarselha. Instalám o-nos no n.‘’ 38 da rue Sébastopol,
bairro dos Quatre-Chem ins, e m uito naturalm ente, m atriculam -m e no liceu
Saint-Charles, que não fica longe. Loiiis, Charles, Simone: há decididam ente
nom es cjue são «destinos», com o diz Spinoza no seu tratado de gram ática
hebraica. Spinoza!
Em casa, a m esm a vida de sem pre: com pletam ente solitário. iNo liceu a
at entura continua. Na cinquièm e, para que entro, conquisto o m eu lugar na
turm a, acho-m e em breve entre os prim eiros, sem pre igualm ente atilado e
estudioso. Ib d a a m inha vida se passa entre o liceu (belo, em bora vetusto, mas
dom inando um dos lados da cidade) e do outro lado, a linha de cam inho de
ferro conduzindo à grande estação term inal: Saint-Charles. Sempre adorei
as estações «terminais» onde os com boio param — pois não podem ir mais
longe — contra grandes batentes. D ando para o lado da linha há um cam po de
jogos e ginástica. O interesse dessa ginástica está em que fazemos m uito poucos
exercícios, pois em breve o prof. dá a sessão por term inada e deixa-nos jogar
futebol. Desta feita ganhei. Improvisam-se ecjuipas, não sei porquê atiram-me
para a frente, e ganham os pois temos nas redes um rapaz que mergulha com o
se nunca tivesse feito outra coisa na vida: um tal Paul, Falamos, entendem o-nos
c eis que rapidam ente se esboça entre nós um a singularíssima amizade.
Paul não é tão forte nos estudos com o eu, nunca o será, mas tem não sei
o quê que me falta: sem ser alto, é largo de om bros, possui mãos robustas.

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VIII

m 1930. tinha eu então doze anos. o meu pai foi nom eado procurador do
E seu banco em Marselha. Instalám o-nos no n." 38 da rue .Sébastopol.
bairro dos Quatre-Chem ins, e m uito naturalm ente, m atriculam -m e no liceu
Saint-Charles, que não fica longe. Louis, Charles. Simone; há decididam ente
nom es que são «destinos», com o diz Spinoza no seu tratado de gram ática
hebraica. Spinoza!
Em casa, a m esm a vida de sem pre: com pletam ente solitário. No liceu a
aventura continua. Na cinquièm e, para que entro, conquisto o m eu lugar na
turm a, acho-m e em breve entre os prim eiros, sem pre igualm ente atilado e
estudioso. Toda a m inha vida se passa entre o liceu (belo. em bora vetusto, mas
dom inando um dos lados da cidade) e do outro lado, a linha de cam inho de
ferro conduzindo à grande estação term inal: Saint-Charles. Sempre adorei
as estações «terminais» onde os com boio param — pois não podem ir mais
longe — contra grandes batentes. D ando para o lado da linha há um cam po de
jogos e ginástica. O interesse dessa ginástica está em que fazemos m uito poucos
exercícios, pois em breve o prof. dá a sessão po r term inada e deixa-nos jogar
futebol. Desta feita ganhei. Improvisam-se equipas, não sei porque atiram-me
para a frente, e ganham os pois tem os nas redes um rapaz que m ergulha com o
se nunca tivesse feito outra coisa na vida: um tal Paul. Falamos, entendem o-nos
e eis que rapidam ente se esboça entre nós uma singularíssinia amizade.
Paul não é tão forte nos estudos com o eu, nunca o será, mas tem não sei
o quê que me falta: sem ser alto, é largo de om bros, possui mãos robustas.

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/_ o r / ,s .1 /, I n r s s /•: r

c entroncado e acima de tudo cheio de coragem . A m inha mãe dá-se conta de


cjue eu fiz um amigo, informa-.se acerca dos pais dele: um pai no m undo dos
negócios, uma m ãe extrem am ente afável, um conjunto respeitá^’el, católico,
luz \erde. Tudo se consolida mais ainda cpiando a m inha mãe me inscre\e nos
Escuteiros de França. Paul entra tam bém : um a garantia mais. St)u até autori­
zado a visitar Paul, que m ora com os pais num prédio onde o pai arm azena as
suas m ercadorias, passas de uva, am êndoas, pinhões, etc., cujo perfum e ainda
hoje me persegue.
Trata-se de uma paixão instantânea. Tornam o-nos cúm plices e insepará­
veis. Rapidam ente elaboram os projectos com uns: Paul escreve poem as estilo
Albert Samain, eu experim ento tam bém , faremos pois um a revista poética que
abalará o m undo. Q uando nos separam os, e já antes, ainda em Marselha, m an­
tem os uma correspondência exaltante,- uma verdadeira correspondência de
apaixonados.
D urante algum tem po fui literalm ente perseguido, na cin q u iè m e e na qua-
trièm e. po r um rapaz forte e enorm e. ru i\o , G uichard de seu nome. Era
«povo», tinha uma m aneira de falar, atitudes e m odos «ordinários» ou que
assim me pareciam . Era facilm ente grosseiro, estava-se nas tintas para os p ro ­
fessores, contínuos, censor e reitor, enfim, para toda a autoridade, parecia
detestar os bons alunos, e a mim acima de todos os outros. Não parava, pen-
sa\'a eu, de provocar-m e, enquanto era sem dúvida eu quem — inconsciente­
mente, com preendi-o m uito mais tarde — o devia provocar com as m inhas ati­
tudes m orais. Desafiou-me a lutar e deixou-m e o seu repto. Lutar, eu, ainda
p o r cima contra um rapaz assim, alto com o um hom em ! Era-me impossível de
todo, sentia-m e realm cnte aterrorizado, tinha m edo de ficar com o corpo
d a n ific a d o para sempre, e com o m orto. Depois, sem eu ter com preendido
porciuê, o outro pareceu acalmar-se. Mas em breve descobri a razão. Apesar do
seu extrem o «pudor» (palavra para nós mágica). Paul confiou-m e um dia que
lutara ele, fora do liceu, no passeio, de mãos nuas, contra G uichard em vez de
mim, no m eu lugar, para me defender, e isso sem me avisar. Fiquei aliviado por
ter evitado o perigo, e o meu am or por Paul redobrou.
Inseparáveis, éram os ambos «chefes de patrulha» nos Escuteiros, ele dos
«Tigres», eu dos «Linces», tendo po r chefe um tal Pelorson. a que cham ávam os

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o /- r 7 7 77 O i; M r I 7 o 7 7: 1/ 7^ 77

Fck), e que era objecto. p o r causa da sua pequena estatura e da sua lábia, da
benevolência do capelão, senhor de um grande nariz cheio de pêlos: Pêlo, um
caçador de saias desgraçado, pelo m enos disso se gabava alto e bom som. o
que me parecia extrem am ente incongruente naquela organização católica
dedicada à pureza dos costum es.
No Verão, partíam os para longas estadias de cam pism o, nas m ontanhas
dos Alpes.
Desta vez estam os perto de Allos num a bela pradaria dom inando os \ ales.
e Paul e eu, tal com o os outros, rodeám os o espaço ocupado pelas nossas ten­
das, o nosso «domínio» p o r conseguinte, com pequenos m uretes de pedras
precedidos p o r um pó rtico alto construído com ram os leves de bétula.
Ilido parecia preparar-se para correr ãs mil maravilhas. Ora contava-se
entre os da m inha patrulha um rapazito, mais velhtt do que eu, mas pobre,
enferm iço, desajeitadtt, que não tinha a mesma educação do que eu, mas uma
m aneira de falar e m odos «ordinários», recusando-se agressicam ente a ob ed e­
cer-me, apesar de ser esse o seu «dever». Encarregado da responsabilidade
opressi\a com que me haviam oprim ido, não parava de tentar trazê-lo à
«razão». No fim, tam bém ele queria bater-se com igo para acabar com a histó ­
ria. Por uma vez era eu de longe o mais forte, mas nem po r isso ele deixava de
me responder apenas com insultos, am eaças e proxocações obscenas. As coi­
sas entre esse rapaz e eu p ró p rio ganharam tal feição que acabei por desespe­
rar da m inha autoridade e caí num a espécie de depressão, a «primeira» da
m inha vida, p o r assim dizer. Como, não sei por que razão, o m eu amigo Paul
se sentiu, por seu turno, tam bém mal, talvez dos intestinos. Pêlo decidiu
m andar-nos retirar pro\ isoriam ente para o refúgio de um grande celeiro, num a
quinta abandonada a quinhentos m etros dali. Levavam-nos lá a com ida. Ficá­
mos sós. finalm ente sós. ternam ente enlaçados na nossa desgraça com um , e
chorando a nossa sorte. Lembro-me m uito nitidam ente de que durante os abra­
ços que trocávam os senti agitar-se o meu sexo: não mais do que isso, mas era
extrem am ente agradável sentir essa erecção surpreendente.
A m esm a coisa sucedeu no decorrer daquilo a que então se chamava a
«viagem da prim eira classe», prova destinada a fazer-nos ganhar um «distintivo»
especial e a obter um a prom oção de patente. Tratava-se para nós os dois

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/. o r / ,v ,1 L 7 H 7 ,S -V /; Á’

(sem pre inseparáveis) de percorrer a pé um a longa distância no cam po e nas


colinas dos arredores de Marselha, m ochila às costas, e de registar cuidadosa­
m ente tudo o que fosse observável, estado dos cam inhos, paisagem , flora,
fauna, encontros, palavras dos «indígenas», etc. Os nossos pais, reunidos sob a
dupla bênção de Pélo e do capelão, assistiram com a gravidade que se im pu­
nha à nossa partida solene. Partimos de concerto e m etem os pelo campo,
sobre o c]ual em breve caiu a noite. O nde dorm iriam os? Tínhamos um a tenda,
é certo, mas um a vez que com eçara a chover pusem o-nos à procura de um
abrigo. D escobrim o-lo num a m inúscula aldeia batendo à porta do pároco, epte
nos abriu o palco do seu teatrozinho paroquial. D eitám o-nos para ali, com as
nossas mantas, nos braços um do outro, Para nos aquecerm os? antes p o r am or
e ternura. E de novo senti levantar-se o m eu sexo. O m esm o acontecim ento se
reproduziu no dia seguinte ao m eio-dia, cjuando, m etidos nos desfiladeiros.
Paul se sentiu mal, com muitas dores nos intestinos: contorcia-se sem sair do
m esm o sítio. Para o sossegar voltei a abraçá-lo e senti de novo o m esm o prazer
incom pleto na base do meu ventre quente (na m inha ingenuidade, eu não
sabia que o podia completar, só o soube po r acaso, mais tarde, quando estava
prisioneiro, aos vinte e sete anos!). Não conseguim os term inar a «viagem» e
voltám os para Marselha, envergonhados e extenuados a bordo de um autom ó­
vel que nos recolheu.
Poderia pensar-se que, sem que me fosse dado desconfiar disso, eu estava
destinado à hom ossexualidade, mas não! Havia sempre, a par do grupo dos
rapazes, um grupo de raparigas, dirigido po r «chefas». Uma delas m orena,
grande de mais para o m eu gosto, mas de perfil típico e interessante, era m ui­
tíssim o bonita e fascinas am e . Paul apaixonou-se po r ela, tendo-m e m uito
naturalm ente confidenciado. Tinham-se ambos declarado de noite, diante de
um grande «fogo de campo» que iam alim entando com ram o s: a cham a, a sua
cham a subia na som bra do céu às escuras.
Passei então a olhar para essa rapariga com o se a amasse e entreguei-m e
intensam ente a esse am or p o r procuração. Eles casariam mais tarde, durante a
guerra, em Luynes, a aldeia do pai de Paul onde os dois, solitários, tínham os
passado férias exaltantes. Durante a missa, fui eu ciuem tocou acordeão im pro­
visando a m eu m odo. Mas a beleza e o perfil daquela rapariga haviam-me

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h l 1 r R o 7 M I l l O 7 R M r O

m arcado para toda a vida; digo bem, c isso há-de tornar-se elaro, p u r a toda a
vida.
Certo Verão, um colega do meu pai, que tinha uma m oradia em Bandol,
arrendou-nos o seu piso superior. O m eu pai ficava a trabalhar cm Marselha,
mas a m inha mãe, a m inha irm ã e eu instalám o-nos em Bandol. Ora o rés-do­
-chão da m oradia cm breve foi ocupado pela m ulher c as duas filhas do colega
do m eu pai. A filha mais velha, Simone, im pressionou-m e assim que a vi: a
m esm a beleza, o m esm o perfil que o am or de Paul. m orena e ainda p o r cima
mais pequena: exactam erde segundo o m eu desejo. Nasceu em mim um a pai­
xão violenta. Imaginava toda a espécie de ardis para a encontrar, segurar
diante das nossas mães a asa de um a cesta, segurando ela a outra! E até m esm o
ensinar-lhe os rudim entos do craivl am parando-lhe os seios e o baixo ventre
com as m inhas mãos, e po r fim acom panhá-la (soh a «vigilância» da sua irmã
mais nova, condição exigida pela m inha mãe!) às alturas da Madrague, a dez
quilôm etros de Bandol, num a grande colina cuja areia fina corria dchaixo dos
nossos pés. Estava a desfazer-me de desejo p(tr ela. Cm dia dei-m e conta de
que, não tendo audácia bastante para a acariciar (ha\ ia a irm ãzinha à esprei­
ta — e m esm o na sua ausência eu não me atreveria sem dúvida a nada de pare­
cido), podia pelo m enos fazer correr entre os seus seios punhados de areia
lenta. Â areia descia-lhe para o ventre, alcançava-lhe a curvatura do púbis.
Então .Simone punha-se de pé, afastava as coxas e a parte de baixo do fato de
hanho, a areia caía para o chão e eu podia, durante o clarão de um instante,
entrer er ao alto das suas esplêndidas coxas nuas a profusão do seu velo negro
e sobretudo a fenda cor-de-rosa de um sexo: rosa de ciclame.
A m inha m ãe rapidam ente descobriu a m inha inocente mas \ iolenta pai­
xão. Cham ou-m e de parte e teve a audácia de me declarar: tens dezoito anos,
.1 Simone dezanove, é im pensável pois seria imoral, dada a diferença de idades,
vjue se passasse algum a coisa entre vocês. Não era «conveniente»! E de qual­
quer m aneira tu és ainda m uito novo para amar!
O p ior aconteceu num dia de m uito sol, à tarde. Sabia que Simone tomava
»,mho num a praia do lado da Madrague. M ontei-me na m inha bicicleta de co r­
rida e ia partir para ir ter com ela quando a m inha mãe apareceu, vinda de
dentro de casa. O nde vais? Eu sabia que ela sabia. Tornava-se impossível ir ter

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/, o I I s ,1 /. / // r s V /: A>

com Simone. Sem hesitar um segundo, e num a reacção que não com preendí
nem controlei, indiciuei à m inha m ãe a direcção directam ente oposta ã do
m eu desejo-, «\'ou a La Ciotat!» Pedalei depois com um a rai\a intensa, lem bro­
-me bem, a chorar com uma revolta intensa m ontado na m inha bicicleta.
A p artir de então, o episódio da violação («és um hom em , m eu filho!») e
o episódio do interdito de Simone passaram a constituir um só na m inha
m em ória, e aliaram-se à repulsa obscena que me inspirara, em criança, ou
num a recordação projectada na infância, a imagem dos seios da m inha m ãe e
da sua nuca branca levem ente frisada de louro: obscenos. Uma repulsa, um
ódio viscerais; com o podia ela tratar assim os m eus desejos? E digo: «a partir
de então». No m eu inconsciente po r certo, mas não na m inha consciência. Só
m uito mais tarde, à luz retrospectiva bem conhecida dos afectos, vi claram ente
estes episódios, a sua afinidade e a sua recomposição-, ao longo da m inha
análise.
D urante todo este tem po de Marselha, continuei com as m inhas façanhas
escolares. Éramos dois a disputar o prim eiro lugar da turm a: um rapaz de rosto
ingrato, atarracado, fortíssim o em m atem ática (m atéria em que eu, de acordo
com «o desejo da m inha mãe» era m edíocre), cham ado Vieilledent. Dentes
\ elhos / casas velhas (Althusser: alte-H aüser no falar alsaciano), cpie estranho
par. Lembro-me de que ele tentou um dia alistar-me nas juventudes do coronel
La Roque, mas eu não quis. O que não se de\ eu com certeza a um a consciência
política, mas à prudência, tal e qual com o o m eu pai.
Desforrava-me dele nas puras letras. Conservei uma memciria nítida da
minha turm a da première. a partir da qual creio ter mais tarde apreendido um
elem ento im portante da m inha estrutura psíquica, línham os um grande profes­
sor de letras, M onsieur Richard, hom em alto e magro, m uito frágil e sempre
adoentado, com um longo rosto branco, tam bém ele esmagado por uma pesada
fronte, constantem ente afligido pelas dores de uma garganta que trazia sempre
em brulhada em cachecóis de lã (com o a m inha mãe e eu próprio, naturalmente,
nesse tem po); um hom em de um a doçura e de uma delicadeza infinitas; tam ­
bém ele m anifestam ente um puro espírito, desligado de todas as tentações do
corpo c da matéria, com o a dupla imagem com posta da m inha mãe e de mim
(do que me dou conta neste preciso instante, ao escrevê-lo); iniciava-nos, e com

9a
<) / r 7 r 77 o F V r / 1 I F \i p o

que calor, ternura e êxito!, nos grandes hom ens de letras e poetas da história.
Idcntifieava-mc eom pletam ente com ele (tudo a isso se presta\a). imitei de
pronto a sua letra, adoptei as suas construções de frase peculiares, fiz meus os
seus gostos, os seus juízos, cheguei ao ponto de lhe im itar a \'oz c as inflexões
de ternura, c nas m inhas dissertações devolvia-lhe exaetam ente a imagem da
sua figura. Ele notou im ediatam ente os m eus m éritos. Que m érito ao certo? Eu
era sem d ú\ ida um bom aluno, m uito sensível, m ovido se assim posso ex pri­
m ir-me p o r uma inquietação constante de fazer as coisas bem feitas. Mas mais
tarde com preendi que se tratava de faeto de algo diferente.
Em prim eiro lugar identificava-m e com ele, pelas razões que acabo de
expor, ligadas à m inha p rópria imagem de mim e da m ãe e, para além dela. à
imagem do tio m orto: Louis. Foi iM. Riehard quem me convenceu a preparar
mais tarde o concurso para a Eeole Norm ale Supérieure da rue d lHm, que os
meus pais e até m esm o a m inha m ãe ignoravam. De faeto com preendi que ele
representar a uma imagem po sitira dessa mãe que eu amava e que me amava,
uma pessoa real eom quem eu podia realizar essa «fusão» espiritual conform e
ao desejo da m inha mãe, mas ejue o seu ser «repugnante» me vedava.
Mas durante m uito tem po acreditei (e m esm o no com eço da m inha aná­
lise) que representava com ele o papel de filho amante e dócil, que, conside­
rando-o então com o um bom pai, pois desem penhara na ocasião a seu res­
peito o papel do «pai cUt pai», fórm ula ciue durante m uito tem po me seduziu
e me pareceu dar conta dos m eus traços afcctivos, Era a m aneira de solucionar
paradoxalm ente a m inha relação com um pai ausente atribuindo-m c um pai
imaginário, mas com portando-m e com o o seu p ró p rio pai.
E efeetiram ente achei-m e em diversas ocasiões repetitiras na mesma
situação e com a mesm a im pressão afeetivas de me conduzir perante os meus
m estres com o o seu p ró p rio mestre, tendo senão tudo a ensinar-lhes. pelo
m enos que me encarregar deles, com o se tivesse o sentim ento m uito \iv o de
ter que controlar, vigiar, censurar, ou até reger o com portam ento do meu pai
sobretudo em relação à m inha mãe e ã m inha irmã.
Mas ai! esta bela construção, justa a certo nível, revelar-se-ia bem unilate­
ral. C om preendi com efeito, mas m uito tarde, que negligenciava então o ele­
m ento mais im portante: os m eus artifícios, a im itação da voz. dos gestos e

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i o r I s .1 L í H I ,V ,S E R

da letra, dos fraseados e dos tiques do m eu professor, que me davam não s<>
p o d e r sobre ele mas existência para mim. Hm suma, u m a im p o stu ra fu n d a
m en ta l, este p a recer ser aquilo que não podia ser: esta falta de corpo não
apropriado e portanto do meu sexo. C om preendi então (mas tão tarde!) que s<>
usa\a assim de artifício, exactam ente com o um «borlista» o usa para entrar
num estádio (o m eu pai), para se d u zir o m eu professor, e mc fazer am ar por
ele justam ente por m eio do jogo desses artifícios. Que quer isto dizer? Que
não tendo existência m inha, existência autêntica, duvidando de mim a pont<'
de me crer insensível, sentindo-m e p o r isso incapaz de m anter relações afecti-
vas fosse com quem fosse, me \ ia reduzido para existir a fa ze r-m e am ar, c
para am ar (porque am ar exige que se seja am ado) reduzido assim a artifíciers
de sedução e de im postura. A sedução por m eio de artifícios e em últim a aná­
lise à im postura.
Não existindo realmente, não passava na vida de um ser de artificio, um
ser de nada, um m orto que não conseguia am ar e ser am ado a não ser por
m eio de artifícios e de im posturas tom ados de em préstim o àcpieles por quem
queria ser am ado e que tentava am ar seduzindo-os.
Por isso nada era dentro de mim p ró p rio senão um ser não só consciente­
m ente hábil a m over e dispor os seus m úsculos, mas sobretudo inconsciente e
diabolicam ente hábil a seduzir e a m anipular os outros, ou cm todo o caso
acjueles po r ejuem queria ser amado. Esperava deles p o r m eio deste am or fictí­
cio o reconhecim ento da existência de cjiie atrozm ente duvidava, p e rp e tu a ­
mente, num a angústia surda que só aflorax a na m inha consciência quando eu
falha\a nas m inhas tentativas de sedução.
Só m uito recentem ente me dei conta da «verdade» desta com pulsão reflec
tindo sobre a estranha aventura seguinte. Eu era um óptim o aluno, prom etido
pelos m eus m estres a um grande futuro intelectual. Fora assim que o m eu p ro ­
fessor da escola prim ária me propusera outrora ao concurso nacional das «bol­
sas» pensando que eu ficaria nos prim eiros lugares. Ora fui dos últim os a ser
adm itido. C onsternação! Foi assim tam bém que M. Richard e todos os profes
sores, cada um na sua especialidade, me propuseram para as provas do C on­
curso Geral. Reproduziu-se a m esm a provação no últim o ano do secundário
Ora em nenhum a das ocasiões, apesar dos meus brilhantes m éritos, quer

96
f I / r K o .1/ r / / (■ ; / /: 1/ /'

(.iizcr, dos méritos reconhecidos pelos mctis professores. ob ti\e a mínima


distinção. Cíonsternação! Hoje explico a mim próprio este resultado decepcio­
nante apenas pela razão de ter conseguido manter com os meus mestres rela­
ções de identificação c portanto de sedução tais que eles se tinham involunta­
riamente iludido acerca do meti verdadeiro \alor.
Tendo-me tornado em relação a eles «pai do pai», ou antes, pai da mãe»,
quer dizer, tendo-os propriam ente seduzido pela imitação das suas persona­
gem e maneiras, eles tinham-se reconhecido a tal ponto cm mim que projecta-
vam em mim a ideia que faziam de si próprios, ou a que inconscientemente
lhes proporcionat am as suas nostalgias ou esperanças. Daqui os meus frat as-

sos quando comparecia diante de juizes que não ti\era a possibilidade de sedu­
zir! Então todos os meus artifícios, que eram artifícios a d hnniineni e só
agiam na relação de sedução que eu conseguira impor aos outros nas suas cos­
tas, deixavam de agir, falhavam. Consternação! Durante muito tempo o facto
perturbou-me, pois não conseguia com preender algo que é preciso «tempo
para com preender».

9^
IX

uando o meu pai foi nom eado para Lyon pelo banco, isso representou
V ^ / uma nova m udança de ares, para a minha mãe um novo exílio e suplíciíx
e para mim a entrada no Lycée du Pare, para os preparatórios do exame dt
admissão à Normal Sup.
A preparação do exame prolongava-se por três ou até quatro anos. O '
mais jovens viam-sc confinados à hypokhãgne, e os outros à khágne. '
Senti-me literalmente perdido. Não conhecia ninguém, tinha diante de
mim rapazes já formados em todos os truciues e usos, que celebravam tradi­
ções colectivas e cultivavam o culto dos «antigos» admitidos (muito raros
naquela cidade de província). Para mim uma solidão duríssima de viver e que
se tornava ainda mais penosa pela convicção de que não sa b ia n a d a , mas
nada mesmo, que tinha que me preparar para tudo e sem o auxílio de nin­
guém.
Mantinha ao tem po um diário de bordo (por recom endação de Guitton.
de quem já falarei), e todos os dias começava a minha página pela invocação
da «vontade de poder», fórmula que eu apanhara algures e que me servia de
resolução de sair do \ azio e de me afirmar pela força de uma vontade vazia
tiuc não era capaz de substituir a natureza. A par dela figuravam longas decla­
rações de am or p o r Simone, que nunca tive a coragem de lhe mandar. «Isso
não se faz», respondera-me a minha única esperança, a m inha tia, a quem

' Preparatórios para a secção de tetras da F.cole Normalc Supérietire. (,V. d o 7. )

98
F r T I R o \i r I 1 o M P o

eu perguntara se podia apesar de tudo en\ iar a Simone um li\ ro de poemas


^em uma palavra...
O primeiro professor que me fez pasmar foi jean Guitton. Acabava de sair
da Normale, tinha trinta anos, uma grande cabeça (a «cúpula de Roma») enci­
m ando uma pequeno corpo enfermiço. Respirava bondade, inteligência e sua-
\ idade, mas também uma espécie de malícia que nos apanhava sempre despre­
venidos. Era extrem am ente cristão, discípulo de Chevalier. do cardeal
.\ew m an e do cardeal Mercier, e explicava-nos à laia de curso de filosofia c o m ­
pleto que o cristianismo se confrontara na sua história e se inscrevera em
diversas «mentalidades». Consagrar-se-ia a uma carreira de conselheiro parti­
cular de João XXflI c de Paulo VI. Considerava Hélène e eu como «santos», e
provou-o, depois do artigo de Jean Dutourd sobre a m orte de Hélène, inter­
rom pendo uma emissão na televisão para proclamar que conservava em mim
sob todos os aspectos uma confiança total e estaria sempre ao meu lado nas
piores procações. Tenho-lhe um reconhecim ento infinito p o r algo que era
então muito simplesmente um acto de coragem público.
Em breve nos deu um exercício de dissertação que tínhamos que redigir
sobre um tema que esqueci. Eu não sabia «fazer uma dissertação» e também
não sabia grande coisa de filosofia (em Marselha tínhamos tido um professor
sem talento). Lancei-me num a composição lamartiniana: lamentações líricas
sem raciocínio nem rigor. Ti\ e direito a um severo em 20 e a breve com entá­
rios a d h o c . <onuito m a l elaborado». Eiquei desfeito po r esta primeira sanção
que me afundava na minha noite.
Com as coisas neste pé, pouco tem po tardaria a altura da primeira c o m p o ­
sição escrita. Escrevíamos na grande sala de estudo onde trabalhavam depois
das aulas, e entre eles todos os «antigos», velhos finórios conhecedores de
todos os truques. Guitton dera-nos com o tema: «O Real e o Fictício». Eu esfor­
çava-me em vão por tirar da cabeça algumas vagas noções, e vi-me de novo
perdido quando um antigo se aproximou de mim, com meia dúzia de folhas
na mão. «Toma lá, fica com isto, talvez te possa ajudar. Aliás o tema é o
mesmo.»
De facto, Guitton devia ter dado o mesmo tema no ano anterior e o antigo
oferecia-me maliciosamente o seu próprio exercício corrigido po r Guitton.

99
/ o r / V . i /. / H r V /: R

l'iquei c\ identem entf cheio de \ ergonh;i, mas o meu desespero era mais fone
não tugi nem mugi, apoderei-me da p ro \a corrigida pelo mestre. conser\ei =
essencial dela (as partes, os seus temas e a conclusão) que adaptei o melho
que pude a meu modo, ciuer dizer, ao que já conseguira apreender com o send<
a maneira de Guitton. letra incluída. Q uando Guitton nos entregou public;;
mente as provas, cobriu-me de elogios sinceros e estupefactos: tinha feito tat
tos progressos em tão pouco tempo! F.ra o primeiro com 1" em 20 ,
Bom. Belo meu lado. eu tinha muito simplesmente copiado as correcçõt
de Guitton, fizera batota, «cravara» e pilhara o seu te x to ; supretno artifício
impostura para conquistar os seus hivores. Sentia-me confust): era impossí\i
ciue ele não tivesse dado por nada! \ãv) me estaria a m ontar uma armadilin:
Porque pensei que ele percebera tudo e por generosidade mo queria escontk
.Mas ciitando, passado tmiito tempo, talvez trinta anos. ele me voltou a fal..
C(.)tn adniiraqão desse exercício e.xcepcional e eu lhe respondí contatido-lba
verdade, ele ficou ainda mais estupefacto. Nem p<tr um instttnte desconfitira
minha impostura e continuav;i a não querer acreditar nel:i!
(guando eu dizia cjue tim mestre não destesta qite lhe devolvam a su;i pr.
pria imagem, e t|ue muitas vezes nem sequer a recotthece, sem dúvicht s».
efeito d(t prazer consciente/inctmsciente qtte ela lhe dá de se reconhecer nin
tiluno escolhido...
(^)ue benefícios tirei eu próprio do caso ? Setii dúv id;i a vantagem de pass.:
directtimente pant a frente da ttirma, de gozar finahnente da consideração d<
meus jovens colegas — sobretudo dos veterantts — e de ser aceite pela turm.
.Mas a c|ue preço! Ao preço de utna verdadeira impostitra que, daí em dian;
não parou de me atligir. Já suspeitava de epte só conseguia existir à custa c
artifícios, d;i contracção de ernpréstitnos cpie tne eram estranhos. Mas d e ­
leita já não estav am em caitsti artifícios de qtte eu pelo menos me podia coti:-
derar o hábil autor, mas de uma im p o stu ra e de um roubo, ejue detnonstrav a*
claramente que eu só era capaz de existir à ertsta de utna verdadeira falsifit
ção da minha verdadeira natureza, pelo desvio sem escrúpulos do pens
triento. do próprio raciocínio e das fórtmilas do meu mestre, quer dizer, de m
outro diante do qual eu queria aparecer para aparentar seduzi-lo. Quandi,
culpabilidade intervém, a não-existència para si deixa de ser um problet

100
o F I I l R O F ,17 7 / 7 T F i; /' o

técnico para sc transformar num prt)hlcma moral, Dora\antc não mc senti ape­
nas não-existente. mas também cu lp a d o de >iâo existir.
Naturalmente beneficiei do que acontecera. Não só porque Guitton me
distinguira e a partir daí alimentou a meu respeito um amor puro e uma verda­
deira admiração de confrade. Eu era o seu outro. Fez-me confidências sobre os
seus trabalhos, chegou a levar-me a Paris onde tive de condenar filosofica­
mente (com a ajuda de Racaisson) o materialismo perante um público de reli­
giosas. Guitton, de resto, continuou a seguir a mim a exposição que achara da
minha parte um tanto seca.
ãbdavia cu aprendera com Guitton, pedagogo admirável senão grande
filósofo, duas \'irtudcs propriam ente unicersitárias, c]ue mais tarde ti\eram
grande papel no meu sucesso: em primeiro lugar a mais extrema clareza de
escrita, em seguida a arte (sempre um artifício) de c o m por e redigir sobre
qualquer tema. a p r io r i e como por deduçãtt no vazio, uma dissertação cjuc se
sustente e conc ença. Se o consegui com o o fiz no concurso para a Normale, e
depois nas p ro\as de agregação de filosofia, é de facto a ele que o devo. Por­
que ele me transmitira (sem que eu tivesse tido que os forjar laboriosamente)
o conhecimento não de artifícitts arbitrários, mas justamente dos artifícios cer­
tos para obter (ainda c]ue como impostor, mas justamente eu não tinha então
outro caminho) o reconhecim ento na Unitersidade ao seu mais alto nível.
É claro que a partir de então concebi, como de mim próprio, uma ideia
pouco gloriosa c pouco respeitadora da Universidade, ideia cpie nunca me
abandonou e que, como é compreensível, ao mesmo tempo me prejudicou e
me serviu.
Guitton ficou apenas um ano anunciando-nos cpie seria substituído por
um certo M. Labannière. No ano seguinte, vimos chegar Jean Lacroix. Guitton,
deixara-nos com uma estranha pirueta.
\'ivi com Lacroix, hom em íntegro, católico «personalista», amigo de
Emmanuel Mounier, filósofo conhecedor da história da filosofia, utilizando os
artifícios herdados de Guitton-, fui sempre o printeiro em fiUtsofia. mas com e­
cei a aprender apesar de tudo e graças a ele alguma coisa da matéria. Lacroix
desposara uma jovem da casta mais fechada da burguesia de Lyon, que o consi­
derava o dem ônio e Iho fazia vivamente sentir, uma \ez tjue ele não era do

101
L O r / s A L T H r S S E R

grupo nem partilhava as suas idéias reaccionárias, Lacroix foi, neste contexto
de exclusão p o r certo muito duro de viver, um hom em de extrema coragem
que se em penhou na resistência e apoiou depois da guerra todas as causa^
generosas.
Mas o hom em mais espantoso da K hâgne de Lyon era o professor de his
tória Joseph Hours, a que chamavamos p o r afeição o «velho Hours». Detesta\a
cordialmente Guitton, de quem dizia que não era um hom em , mas uma
mulher, e, pior ainda, uma «mãe». Oh! minha mãe... Baixo, atarracado, com
uma cara e um bigode à Lavai, estava muito metido na política, sendo um do»
fundadores de VAuhe com Georges Bidault, e apresentando a singularidade d<
ser um católico convicto, mas jacobino e naturalmente galicano, ferozmentc
contrário ao ultramontanismo do partido europeu em que continuar a a ver a
herança do Sacro Império. Não hesitava em nos elucidar em voz alta e na pró
pria sala de aula (e mais tarde em sua casa quando o visitavamos, privilégio
ciue lentamente fui conquistando) sobre a situação política francesa. Em 19.^“
segundo recordo, dizia-me: «A burguesia francesa odeia tanto a Frente Populat
que de hoje em diante lhe prefere Hitler. Hitler vai atacar e a burguesia fratt
ccsa vai escolher a derrota para escapar à Frente Popular.» Contento-me com
esta frase, mas que se apoiava numa análise minuciosa da situação das força»
sociais e políticas e também da personalidade e da carreira de hom ens políti
COS cujo com portam ento ele observava com atenção. Deste m o d o distinguira
em particular iMaurice Thorez entre os melhores, e punha todas as suas espe
ranças não nos privilegiados mas no «povo de França» do qual escreveu uma
pequena H istória — um pouco sem dúvida na esteira de Michelet. É ao velho
Flours que devo as minhas primeiras perspectivas sobre a política e o que nela
estava em jogo, e também sobre o comunismo, que para mim se reduzia a T h o ­
rez. Hac ia nele não sei o quê que me lembrava, fisicamente e pelos seus cons­
tantes resmungos, a mem ória do meu avô, que m orreu nesta altura, deixando
por vinte anos ainda, a minha avó) sozinha na sua casa de Larochemillay,
Foi então que tentei realizar um grande desígnio que elaborara a só)s
A Igreja lançara, para fazer frente ao desenvolvimento do socialismo, aquilo a
que se chamava os movimentos da Acção Católica. Não se tratava de um m ovi­
mento global, mas de movimentos especializados para as diferentes camacLi'

102
F l' T i' R O M V / 7 O T /:' .17 P O

\s()cio-profissionais», uma Juventude Agrária Cristã para os camponeses OAC),


uma Juventude Operária Cristã para os operários (JOC). uma Jut entude Estu­
dantil Cristã para os estudantes yEC). Não havia nenhum «círculo» da JEC no
Lycée du Pare. Meti na cabeça criar um. e para tanto comecei a procurar um
capelão: era impossível passar decentemente sem ele. A partir já não sei de
que indicações, subi um dia até Eourvière e bati à porta de um jovem jesuíta,
o padre Varillon, alto, magro, enfeitado com um enorm e nariz muito direito.
Ele aceitou e a partir desse dia passou a assistir às nossas reuniões, que agrupa-
\a m antes do mais os alunos dos últimos anos, e portanto da nossa turma.
Uma vez mais tinha assumido responsabilidades, mas pela primeira vez so zi­
nho. «Vontade de p oder»! Eazíamos de tempos a tempos retiros num convento
trapista de Dombes, a cem quilômetros de Lyon, no meio de grandes lagoas.
Acolhidos pelo único monge ciue tinha o direito de falar — que tagarela! —,
penetravamos em silêncio em enorm es edifícios que tresandavam a cera e a
sabão velho, dorm íam os em celas e éramos acordados várias vezes durante a
noite pelos sinos dos ofícios a que assistíamos. Sentia-me fascinado pela vida
dos monges, dedicados à castidade, ao trabalho manual e ao silêncio. Este tri­
plo voto convinha-me bastante bem. Aconteceu-me muitas vezes mais tarde
pensar na retirada para o convento com o num a solução de vida para todos os
meus problemas insolúveis. Desaparecer no anonimato, minha única verdade:
continuou a sê-lo sempre e hoje ainda, apesar da e contra a m inha notoriedade
que me faz sofrer de m odo horrível. No convento realizávamos também as
nossas próprias reuniões de círculo e lembro-me de ter sido incum bido de
proferir uma breve alocução sobre a virtude do «recolhimento». Pus nela uma
tal exaltação contida, uma tal insistência na «fusão» e nas conv icções piedosas
que arrastei todos os meus companheiros na mesma emoção. Pela primeira
vez, descobri que tinha uma espécie de força de eloquência contagiosa, mas
que para a manifestar recorria espontaneamente a uma outra v-ariedade de arti­
fício: justamente um escesso no ritmo v^erbal, no p a th o s e na emoção contida
que queria como p o r contágio fazer partilhar. Sempre o mesmo desejo nos­
tálgico de «fusão». Como se, para acreditar no que dizia e fazer com que se
acreditasse nisso, tivesse que «carregar nas tintas», visar nas minhas palav^ras e
nas minhas emoções muito acima do fim a alcançar e, ao entregar-me a este

103
l o l ! V A !. / // / V V / R

cxacerliamcnto, ficava ao mesmo tempo comovido até às lágrimas, como se


tivesse também cjue chorar, m ostrar uma emoção de excesso para arrastar com
ela os meus ouvintes, e sobretudo obrigar-me a mim prétprio a acreditar. Só
com preenderia o sentido desta disposição singular muito mais tarde. Fui antes
do mais alertado com torça pelas palavras de uma amiga muito querida que me
declarou um dia: «Não gosto quando exageras» (acima de tudo com ela. bem
entendido) e de facto, eu amava-a então com uma espécie de excesso de fusão
de tiue ela se dera perfeitamente conta. Foi esta mesma amiga, decididamente
cheia de perspicácia, que ourã dizer a meu respeito as palavras decisivas de
que falarei na decida altura: «O que não me agrada em ti é quereres destuir-te
a todo o custo.» Eu não com preendera ainda cjue vontade de exagero, digamos
contade paranóica, e vontade suicidaria eram uma única e mesma contade.
Fui admitido no concurso da École em Julho-Agosto de 1939, mobilizado
em Setembro — e só entraria po r isso na École em Outubro de 19a5, seis anos
mais tarde.

1(J4
; mobilizado cm Issoire, num grupo dc alunos oficiais dc rcscr\a (1X)R)
F .í artilharia hipomóvcl. Conhcci as tristes reservas do exército francês,
•idos cavalos de tiro requisitados, os turnos dc guarda da noite, as estre-
>nde uma rapariga esplêndida, pequena e escura, com o perfil que se
,,iiis absolutamente dorm ir comigo na palha — mas eu naturalmente
,is suas ofertas. Conhecemos as brincadeiras do comandante de pacoti-
.irbon de Casteljaloux, e arranjei excelentes amigos, dos quais desgraça-
vc só um sobret iveu.
,.imos até à Primaxera de 19-iü em Issoire, com a instrução a arrastar-se
, .1 tiròle (le guerre» Guitton estava em Clermont no estado-maior, e
,ic \ ez em quando visitar-me. Eu tinha muito m edo da guerra, não tanto
oorto com o de ficar fe r id o e, continuando a ser crente, descobrira uma
I para me ajudar a adorm ecer em paz: «Meu Deus, seja feita a Mtssa

Maio de Ib tt), solicitaram xoluntários para a aviação. Eu não. Excesso


a o (O meu tio Louis morrera num avião). Já disse que tinha um medo
lIc combater, m edo de correr o risco de ser ferido, quer dizer, lesado
. trágil corpo. Io dos os meus companheiros embarcaram na axentura.
riquei sozinho. Tinha escolhido... Depois, não sei porc[uê. um pouco

j qut designa to lo q u ia lm e n tc o p e ríodo entre a ab ertu ra oficial das hostilidades e a

'ago da França no início da Segunda tira nde (T iierra {X. do 1. \

105
/, o í l s Á l T U l ,S E R

mais tarde, vi-me também eu ameaçado pela aviação. Fingi adoecer e, ante^-
que o m édico \ iesse ver-me, tentei certa noite viciar o meu termômetro, esfrc-
gando-o vigorosamente na coxa. Mais uma batota desonrosa. E sem resultado,
segundo creio, () médico apareceu e não me deu baixa.
Entretanto, o meu pai, felicíssimo com os seus enorm es canhões, era
mobilizado para os Alpes, aiema de Menton: mas desta \ ez debaixo de cúpula-'
de cimento: despreocupado. Comia e bebia muito bem na cantina com rancho
melhorado dos oficiais. Atirava-se de vez em quando um obus contra um porto
italiano, para «manter o moral». Mas nada de muito sério.
A m inha mãe saiu de Lyon e foi ter com a minha avó à casa d(J Morc an
Estava finalmeiite sozinha! E acontcceu-lhe então uma coisa mararilhosa
Tornou-se secretária da m airie, e teve de enfrentar numerosos problema
locais, agravados ainda pela derrocada de Maio-Junho de 1940. Desempenhou
a tarefa de maneira admirável, sem o menc:)r incôm odo de saúde. Deixac:;
finalmente de estar sob a autoridade do marido, podia finalmente fazer o que
queria, sentia-se feliz e todas as suas doenças desapareceram.
Q uando hoje a \ ou ver à sua clínica, mal me reconhece, mas diz-se muite
feliz, tem uma saúde perfeita apesar da sua idade ar ançada e recusa-se a sn
tratada por Mme Althusser. É Lucienne Bergen o seu nom e de solteira, nada
mais. Assunto resolvido, mas sô com sessenta anos de atraso!
Em Março-Abril de 1940, mandaram-nos para Vannes. onde a instrução fo'
acelerada. Elouve um exame final, no qual fiquei naturalmente em último lugar
O primeiro foi o padre Dubarle, hoje muito doente. Se tiver oportunidade ck
me ler. saiba que nunca o esqueci e que li os seus belos livros sobre HegcT.
As tropas alemãs aproximavam-se de rajada. Paul Reynaud anunciara qiu.
nos bateriamos no «reduto bretão» mas, umas atrás das outras, as cidadc'
foram sendo, e entre elas Vannes, declaradas «abertas». Os nossos oficiais [esta
vam] sob o com ando do sinistro traidor general Lebleu, que por m edo dO'
«comunistas» que podíamos ser ou vir a ser, nos impediu de nos m ovim entar­
mos na direcção do Loire, então livre em Nantes. passando depois para Sul
Mantcc e-nos reclusos no cjuartel. sob a nossa p r ó p r ia g u a rd a , inclusive n.;
altura em ejue os alemães e os seus carros de assalto chegaram, «Se abandona
rem os vossos postos, serão considerados desertores e fuzilados!»

106
o /• r / r /í o ,u r / 7 o 7 7: ,17 P o

Os alemães, que habilmente nos anunciaram a liberdade para daí a oito


dias, quinze dias, a seguir um mês, ameaçavam-nos, por seu turno, de represá­
lias contra as nossas famílias se fugíssemos. Durante três meses inteiros, tive­
mos mil ocasiões elementares de fugir de campos franceses mal guardados: as
viaturas de reabastecimenttr e da Cruz Vermelha entravam livremente nos cam ­
pos e ofereciam-nos lugar se cjuiséssemos fugir. Éramos demasiado crédulos:
não se foge a coberto da Cruz Vermelha, Pessoalmente, não tive coragem para
tanto e não fui um caso isolado.
Finalmente o longo com boio de vagões de gado conduziu-nos em cjuatro
dias e quatro noites até Sandbostel, no norte da Alemanha, um imenso campo
de areia e urz.es, onde pela primeira vez vimos, do outro lado dos arames far­
pados electrificados, prisioneiros russos quase nus no frio já intenso, lír idos,
cadavéricos e implorando o pão que lhes íamos dando das nossas parcas
rações.
Um jovem estudante de Brive fez-me com panhia durante toda a viagem.
Mijá\ amos para dentro da mesma garrafa. Era ele o meu único amigo ali. Con­
tara-me espantosas iiistórias de miúdas passadas nos jardins próxim os do
liceu. E em particular a seguinte, que me comoveu até às lágrimas: «Metíamos
a mão no cu das raparigas, p o r trás, sem as avisar e trás! Ora um dia uma
miúda a tpie eu apalpara o cu disse-me num longo lamento carregado de cen­
sura: "Oh! por que é que não me disse que gostava de mim!,.."»
Vários de entre os meus companheiros estudantes e eu próprio fomos então
enviados com outros trezentos prisioneiros franceses, quase todos camponeses
da Normandia, para um gigantesco estaleiro da Luftwaffe que, dirigido por
empresas privadas tjue engordaram ã nossa custa, construía enorm es depósitos
de gasolina subterrâneos. Foi, apesar da fraternidade dos prisioneiros, um ano
duríssimo. Rebentavamos de fome. Fomos obrigados a trabalhos pesados
durante os frios piores (atingindo nesse ano os 40 graus negatiros). Só à noite
tínhamos tréguas, no calor intenso dos grandes dorm itórios e de casinhas cujos
grandes fogões ao rubro alimentavamos com hulha. Aos domingos tínhamos
direito, ó maravilha!, ao repouso e a uma almôndega de carne regada de molho.
Todos os meus amigos estudantes tuberculizaram e foram repatriados. Eu
ficava de novo sozinho. Pelo meu lado, resistia bastante bem. Gostara dos

107
I. o r j V ,4 I. I n r s s /: R

camponeses norm andos com quem trabalha\a. Alguns, a coisa era mais forte
do que eles, esforçaram-se para m ostrar os «Chleubs» com o se trabalhara em
França. Nós, os estudantes, fazíamos o mentts possível e não éramos bem ras­
tos pelos nossos camaradas normandos. Estes últimos acusar am-nos tranquila­
mente de «sabotagem»!
Conheci então hom ens para mim inauditos. Sobretudt) Sacha Simon,
grande jronalista de L Est ré p iib lic a in . sempre a contar histórias pornográficas
que me deixavam siderado. Masturbara duas mulheres ao mesmo tempo por
baixo da toalha da mesa de um grande jantar, «nada mais fácil, elas não c)uerem
outra coisa». iMais tarde ouvi muitas outras semelhantes. Em particular as aven­
turas de uma amiga funcionária internacional que só tem uma ambição na
rida; fazer ejacular p o r baixo da mesa os oficiais superiores do Exército Ver­
melho. Um deles sucumbiu até de um enfarte devido à emoção. Entretanto eia
já «comeu» a imensa maioria dos presidentes da república e diversos bipos e
cardeais. O seu objectir o último, ainda não alcançado segtindo creio, é o
papa. H ela ria, ria sem parar!
Um dia adoeci, ao que parece dos rins, e para meu grande espanto, por
decisão do médico francês do campo, o tenente Zeghers. que eu voltaria
depois a encontrar no cam po central, uma ambulância alemã extremamente
confttrtável conduziu-me. num dia de caminho, ao hospital do campo. Fitiuei
por lá oito dias, e fui colocado no referido campo, Schleswig, staUig XA.
C) meu número, cheit) de zeros, era ~06~(). Ficava-me bem. Continuei a ter que
fazer trabalhos pesados, descarregar tagões de carvão, etc.
Sentia-me perfeitamente à vontade nestes exercícios de força e sentia-me
feliz acima de tudo com a com panhia fraterna dos meus camaradas cam p o n e ­
ses: território que eu conhecia desde a infância.
O campo albergav a contingentes de polacos que, tendo sido os primeiros
a chegar, haviam deitado a mão a todos os serviços e viam com muito maus
olhos os franceses que tinham «traído» em 1939. Havia também belgas reple­
tos. oficiais subalternos de carreira entre os c]uais um flautista e um actor que

IVrmo coloquial que designava os aíemfie.s. i;V. do T. ]

108
/ r / r K o /: .1/ / / / o 7 /; _u /" o

fazia dc m ulher no teatro, e «sérr ios» misertueis dos quais vÁrios se enforca­
ram nas suas camas.
Segundo a letra da Convenção de Genebra de 1929. cada nacionalidade
deveria estar representada junto das autoridades alemãs por um «homem de
confiança» eleito pelos seus camaradas. O primeiro, um certo Ceruiti — ven­
dedor de automóveis na Suíça —, fora oficiosamente designado pelits alemães,
sem dúc ida por falar muito bem alemão. Durante algum tem po fui «despejado»
na enfermaria do campo, onde me tornei especialista na arte das injecções,
que pessoahnentc não me doíam nada (quase pelo contrário) ejuando tinha
que ser eu a sofrè-las (o contrário da lança de empalar!). hncontrava-me sob
a protecçãt) do dr. Zeghers. sempre eatita no seu impecável uniforme, bu tinha
conscguidtí aprender sozinho algum a lem ão: fui assim chutado para «enfer-
meiro-chefe». ¥ vi-me, com o outrora na minha patrulha de escuteiros, e mais
tarde no liceu Saint-Charles, frente a um enorm e fura-v ídas parisiense de calão
e \ oz fortes que não queria \ergar-sc às minhas «ordens». .Só queria partir-me
a cara. Recuei perante ele, forçatkí a engolir a minha vergonha.
Este suplício durou até ao dia em que os alemães, para o recompensarem,
repatriaram o «seu» hom em dc confiança. Como Pétain obtivera de Elitler em
.Vlontoire o «privilégio» (contrário à Convenção de Genebra) de ser a França a
«nação protectora» dos seus próprios prisioneiros e com o Pétain aproveitara
esse «acordo» para m andar para os campos oficiais franceses «ctjlaboracionis-
tas» cjuc faziam propaganda da Rer olução Nacional e po r lá cria\ am lir remente
Círculos Pétain. os alemães consentiram que o novo hom em de confiança
fosse eleito, mas apresentando o seu candidato: o presidente do (.írculo
Pétain, um jor em de sangue azul e de uma beleza admirar ei.
Mas, aü, não tinham contado com o espírito de contradição da arraia-
-miúda francesa! Uma campanha eleitoral clandestina e gigantesca foi desenca­
deada em dois dias, sob o impulso de um parisiense, profético anarquista dc
falas insolentes. .Uu.xiliava um miserável oficial dentista baboso e m edonho
de SC r er, que passar a o seu tempo, diante de todos, a atirar bocados de c h o c o ­
late às desgraçadas ucranianas do campo vizinho para elas lhe abrirem as p e r­
nas robustas, a dez metros de distância. E o oficial dentista masturbava-se
então diante do sexo exposto das prisioneiras. Todo o campo estava ao

109
L O r í s 7 // !' S S /: R

corrente do facto, que era um espectáculo quotidiano para ciuem quisesse


assistir,
Foi eleito triunfalmente um certo Robcrt Dael. muito estimado no campo,
O seu primeiro gesto foi chamar para o seu lado o presidente do Círculo
Féiain, o hom em dos alemães. Cma imensa vaga de críticas abateu-se então
sobre Dael que nada respondeu. Mas um mès depois. Dael, que trancjulizara os
alemães com o seu gesto hábil, obteve dos alemães o repatriamento imediato
do presidente do Círculo Pétain. que também não tjueria outra coisa. C om ­
preendemos. E eu começava a com preender o que era um hom em de acção.
Dael chamou-me então para o seu «gabinete» juntamente com o arquitecto
Mailly e alguns ttutros. E vi de perto Dael em acção. Com firmeza e tartamu-
deando um alemão inverosímil de confecção sua, retomou de um dia para o
outro aos alemães o controlo integral dos víveres, vestuário e calçado envia­
dos pela França, p o n d o fim ã sua pilhagem quase integral pelas autoridades do
campo.
Obteve [dos serviços] de Pétain um camião para proceder pessoalmente ã
distribuição dos Liebesgabeii ' en\ iados de França, até nos mais pequenos
com andos que nunca lhes tinham posto a vista em cima. com o nem de resto
o hom em de confiança dt) campo central! Eu acompanhava-o por \ ezes nas
suas deslocações. Admirava tanto o seu descaramento incrít e! com o alemão
que o vigiava e que ele com prou de um dia para o outro com duas barras de
chocolate, com o o seu calor para com os mtssos camaradas prisioneiros, até
então totalmentc abandonados.
Com preendi então o que era a acção, próxim a dtts princípios, mas muito
diferente da sua simples aplicação, pois é necessário levar em conta os im p o n ­
deráveis da cttnjuntura, dos homens, da sua paixão, dos inimigos e, para esse
fim, pòr em jogo recursos hum anos que não são a simples clareza e rigor dos
princípitts.
A primeira e importantíssima conclusão que se me impôs consistiu em dar
um sentido totalmente inesperado à minha mania dos artifícios. Começava a
com preender pela prática que os artifícios, subterfúgios e outros ardis podiam

ofertas, (JáUivas. (,V. do T. )

110
() /'■ i; 7 V R o M l / 7 O r ii M p o

ser coisa diferente de imposturas, que podiam muito pelo contrário produzir
efeitos benéficos para o seu autor e para os outros homens, na condição de se
saber o que se queria e de se dom inar toda a culpabilidade, em suma, se se
fosse livre, o cjue a minha análise havia de me ensinar. Sem que então o sou­
besse e sem nunca cfectuar a mais pequena aproximação disso com a minha
mania-medo dos artifícios que me constituíam, aproximava-me — só muito
mais tarde o descobri — das regras enunciadas pelo único hom em — digo
bem. o único hom em —, que reflectiu sobre as condições e as formas da acção
— em política apenas —, o único hom em que, muito antes de Freud, como
penso explicar um dia, an tecip o u em g ra n d e m ed id a a sua descoberta ■
.
iMaquiat el. Porém eu estava ainda muito longe de aí chegar.
O que me ensinou também a experiência do cativeiro, [foi] '(t bem que
me sabia \ iver na com panhia já não de pai e mãe e no universo (sem sombra
de exterior) dos estudos, das aulas e do apartamento familiar; em suma. já não
sob o terrível, digo bem, terrível, ouves-me, R obert F ossaertí ouves-m e de
dentro do teu h o rrível tiím ulo, Gramsci?, do terrível, do assu sta d o r e do
m a is m edonho de todos os aparelhos ideológiccjs de Estado que é, num a
nação onde bem entendido o Estado exista, a fa m ília . E se eu disser que
até em Lyon, durante três anos — quando tinha entre dezoito e vinte e um
anos! —, fora dos meus companheiros de khâgne e dos meus professores, eu
não conheci a b so lu ta m en te ninguém'': E isso po r que razão, a não ser por
uma mescla atroz de medo, de educação, de respeito, de timidez, de culpabili­
dade, que me fora inculcada por quem? pelos meus próprios pais, apanhados
eles próprios e encurralados com o nunca na estrutura ideológica atroz para a
minha mãe e também para o meu pai, po r muito cjue as aparências indicassem
o contrário, e isso porquê senão para inculcar a uma criança todos os elevados
valores c|tie correm na sociedade em cjue ela viv e, o respeito absoluto por toda
a autoridade absoluta e acima de tudo pelo Estado que, após Marx e l.cnine.

^ A inclusão pelo auto r ele uma longa digressão acerca do papel da família. relaii\ amente a uma
primeira versão deste capítulo, levou-nos no presente parágrafo e no seguinte a efectuar duas correc-
(,'ões mínimas que figuram entre parênteses rectos e que perm item restituir a coerência do desenvolv i­
mento. (,V. d o E. fra n c ê s )

111
L O I / S I / / II I S ,S I: R

sabemos, graças a Deus, ser uma lerrí\el «máquina» ao serviço (sim, Fossaei
sim, Gramsci), não da classe dominante, ciue nunca está sozinha no poder, m
das classes cpie constituem o «bloco no poder», tão bem designado por lu
certo Sorel aqui em França e no meio da indiferença teórica e política gem
Mas por tjuanto tem po os espíritos mais informados e mais inteligentes se ck
xarão iludir pelo que é ainda mais cegtj e mais cegante do que o terríx'.
veneno surdo do inconsciente, que Freud soube pescar no mais fundo di
mares com a sua longa rede de malhas, por quanto tempo se deixarão ek
ainda iludir pela evidência ofuscante da natureza profunda do aparelho itleok'
gico de Fstado da F arnüia t Deveremos dizer hoje depois cias três grandes fei
das narcísicas da Humanidade (a de CFaUleu, a de Darvvin e a do inconscienii
que existe uma ejuarta ainda mais profunda, pois a sua revelação é absttlut.*.
mente inaceitável pelo indi\ íduo (porque a família é com efeito a todo i
m om ento próprio lugar do sagrado, e portanto do p o d e r e da religião) e
realidade irrefutável da Família surge deveras com o t) mais poderoso tios apa
relhos ideológicos de Fstatk)?
,\o cativeiro tinha pela frente [além dissoj um m undo completamentc
diferente do da maldita família: hom ens maduros e desligados, pelo meno''
para o melhor, da sua fa m ília , pois que adultos e livres: esses camponese»
norm andos e peciueno-burgueses belgas, e estes oficiais subalternos de carreira
polacos que não paravam de evocar em voz alta quer os seus repastos panta-
gruélicos dos tempos de paz. quer as suas av enturas e obsessões sexuais até ao^
porm enores mais crus e mais íntimos, ensinavam-me de certo m odo o que c
ser-se adulto e sexualmente liv re, ainda que o não fossem nem econom ica­
mente, nem socialmente, nem politicamente, nem ideologicamente, muito
pelo contrário, pois eram sob todos esses aspectos hom ens «alienados» (ou
seja, para deixarmos de falar com o Feuerbach ou Hegel, hom ens exploradores
ou explorados, opressores ou oprimidos, inculcadores ou inculcados!). Ora
tjue descobri eu neste m undo novo? A minha obsessão de querer sempre
poder dispor de reservas. F, foi um ponto capital para me com preender a mim
próprio.
Durante o primeiro ano, quando nos davamt ao todo e no máximo duzen­
tos e cinquenta gramas de pão escuro e cinquenta gramas de chouriço de

112
o /■ / / r A’ o / M r / / o I /: 1/ /'

sangue alemão, sentindo um medo pânico de \ ir a ler falta de alimentos, eu


eorta\ a todos os dias uma fatia de pão e uma fatia de chouriço preto, tjue guar-
thna na cabeceira cia minha enxerga: um verdadeiro tesouro de rese n a . nunca
se sabe!
Mas quando tive de abandonar o m eu primeiro comando, tudo o cjue
encontrei debaixo da minha enxerga foi um amontoado de p o d rid ã o . Perdera
todas as minhas resercas à força de as querer deixar de reser\ a. A \ erdacle, a
realidade desta reserva revelava-se diante dos meus olhos e das minhas mãos
e do meu nariz e da minha boca: porcaria] Mas fui incapaz cie extrair a lição
da minha cruel experiência, absolutamente incapaz e isso durante sessenta
anos! Em tempos melhores posteriormente, continuei todos os dias a com por
reservas, primeiro ele pão. de biscoitos, de chocolate, de açúcar, de sapatos
(tantos pares deles que tenho hoje cerca de uma centena nos meus armários!),
roupas — a mesma coisa — e bem entendido de dinheiro, a reserca das reser­
vas, Marx bem o m ostrou depois de muitos outros dos cpiais o m elhor foi sem
dú\ ida Locke (o dinheiro para I.ocke é com efeito o único hem que não a p o ­
drece...) e o único que se define por essa qualidade de excepção entre todos
os bens pcrecíccis. Mais tarde finalmente, constituí resercas de amigos e por
último de mulheres. Porejuè? Simplesmente para não me arriscar a achar-me
um dia sozinho sem u m a m u lh er ao alcance da mão, se por acaso uma das
minhas mulheres me deixasse ou viesse a m orrer — e a coisa aconteceu-me
muitas \ezcs, e sc tive sempre a par de Hélène uma reserva de mulheres, foi
de facto para ter a certeza de que se Hélène me abandonasse ou morresse, eu
não ficaria nem po r um instante sozinho na vida. Sei demasiado bem que esta
terrícel compulsão fez sofrer horric cimente as «minhas» mulheres e em pri­
meiro lugar Htdène. Uma das minhas amigas disse-me recentemente, e como
tinha razão quando o disse: «Sabes utilizar de m odo notável os teus amigos
(ela não disse as tuas amigas...) mas não os respeitas», palavras que, nesse ins­
tante (há quatro meses), me surpreenderam e me deram bastante que pensar,
mas passei completamentc ao lado do seu sentido.
Eu associaca com efeito muito naturalmente esta compulsão de me dotar
de resercas de toda a espécie às fobias da minha mãe e em particular ã sua
obsessão, mais forte do que qualquer razão, de limitar todas as despesas e de
l o V í s A l T H r V A /: M

acumular economias sem um único motivo razoável senão o de enfrentar


todas as ameaças possíveis do futuro, a c im a de tudo o roubo.
Como todas as mulheres da sua geração (e do tem po da sua própria mãe),
a minha mãe escondia, pelo m enos quando saía ou viajava, o dinheiro debaixo
das saias, portanto m u ito p erto do sexo. com o se fosse um dever proteger de
todas as maneiras possíveis de todos os maus contactos e dos seus perigos ao
mesmo tem po o sexo e o dinheiro. E, sem dúvida, eu não era então, nem fui
durante muito tempo, mais livre no ejue se refere ao meu sexo do ejue em m até­
ria de dinheiro. Modo de viver apenas na repetição do m esmo presente, sem
nunca ter a coragem, ou antes, a simples liberdade de enfrentar livremente
(sem a garantia antecipada de reservas), o futuro a não ser sob a forma acum u­
lada do passado, acumulado sobre si próprio e supostamente gerador de juros
usurários.
Conseguir escapar p o r fim realmente a esta obsessão foi decerto uma das
pro\ ações mais rudes de toda a minha vida, até há dois meses somente, e num
instante vou dizer porquê e como.
Agora parece-me que sei. de fonte segura, que nã(t há vida sem dispèndio,
nem risco, nem por conseguinte stirprcsa, e que a surpresa e o dispèndio (gra­
tuito. não mercantil: trata-se da única definição possível do comunismo) não
só fazem parte de toda a vida, mas são a própria vida na sua verdade última,
na sua Ereignis. no seu surgimento, ntt seu acontecimento, com o tão bem o
diz Heidegger.
Assim, quando hoje visito a minha mãe. que vivia, desde Marrocos onde
apanhara aquilo a que se chama amibas, no terror das dores de barriga,
empanturro-a de grandes chocolates, muito caros, os melhores da confeitaria
Hédiard. Outrora, nunca ela se teria perm itido semelhante com portam ento e
nunca m o teria também autorizado; muito pelo contrário, tê-lo-ia proibido,
com ferocidade, a si própria e a mim. Eloje atira-se aos meus chocolates da
Hédiard sem sequer se informar sobre o seu preço, e ela, que tinha tanto
m edo das amibas (é sabido que os chocolates são estritamente contra-indi­
cados quando se tem amibas), não sofre com isso o m enor incômodo, nem
na barriga nem em parte nenhuma, nem cjualquer dos seus inumeráveis
males hipocondríacos que exigiam, quando o meu pai ainda vivia, visitas

114
r c r r a> o .1/ r i í o í /: M r o

diárias de médicos diversos e cuidados inacreditá\ eis, tanto de medicina como


de dietética: ei-la cjue devora gulosamente os meus chcolates sem ficar mini-
manente doente!
Uma pessoa po d e portanto curar-se perfeitamente de uma série incurável
de fobias sem q u a lq u er análise-, basta p o r exemplo que o marido morra, que
Mme Althusscr volte a ser Lucienne Berger e tudo regressa à ordem, tah e z nã<t
a do desejo e da liberdade, mas em todo o caso a do prazer, que enquanto p rin ­
cípio de prazer tem apesar de tudo, segundo Freud, algo de sério a e er com a
líbido, esse Espírito Santo dos crentes (a m inha mãe foi sempre muito crente),
Vircr apenas no presente! É verdade c|ue não sabíamos que o catiw iro
duraria cinco anos, mas dia após dia, mès após mês, o tem po ia passando,
sobretudo depois do dia 21 de Junho de 1941, data da abertura da Frente Leste,
e arrastando todas as nossas esperanças, Mas de facto, devo reconhecer que me
instalei bastante bem no cativeiro (um verdadeiro confttrto, fruto da \ erdadeira
segurança sob a guarda das sentinelas alemãs e dos arames farpados): sem
sombra de preocupação com os meus pais, e confesso que cheguei a descobrir
naquela vida fraterna, entre verdadeiros homens, com que suportá-la comt)
uma vida fácil, feliz pois bem protegida. Estávamos no meio dos arames farpa-
ck)s e sob as armas dos guardas, submetidos a todos os vexames das chamadas,
das buscas, do trabalho, passámos muita fome no primeiro e no último ano,
mas com o dizè-lo?, sentia-me em segurança, protegido de todo o perigo pelo
próprio cativeiro,
iNunca pensei seriamente em evadir-me, apesar do exemplo de vários
camaradas, que chegaram a tentar a sua sorte seis vezes, como esse marac i-
Ihoso Clerc, minúsculo (um metro e cintjuenta) campeão de futebol, incom pa­
rável jogador de cabeça apesar da sua estatura, que conquistara com a sua
equipa de Cannes a Taça de França em 1932. Fm contrapartida, imaginei um
cenário de evasão que mais tarde me deu muito que pensar.
Tendo observado que os alemães, uma vez \erificada a evasão de um dos
nossos, alertavam toda a polícia e as tropas num perím etro imenso, o que o
mais das vezes levava à detenção do audacioso, imaginei que o meio mais
seguro de evasão era fa z e r crer n u m a evasão e deixar passar o tem po de
alerta generalizado que não durava mais do que três ou quatro semanas, para

115
/ () r / s A L I II I \ S l K

rcalmcntc partir de/)ois. 'Irata\'a-se portanto dc desaparecer (eu tinha já pois


uma vocação de «desaparecido»!) do campo para le\ar a crer c|ue se tinha par­
tido. antes de rumar ao largo uma vez passacU) o alerta. Fara isso, bastava não
fugir, mas desaparecer, cjuer dizer, ficar escondido no próprio campo (o que
não era impossível) e jogar a cartada da fuga só a seguir, passado o tempo (três
semanas) das medidas de alerta. F,m suma, eu descobrira o meio de me cr adir
do campo sem de lá sair\ E por conseguinte, de continuar no meu cativeiro
para lhe escapar! Tendo elaborado bem este projecto, não lhe dei seguimento,
orgulhosíssimo de ter achado a «solução»: com o prestara provas, não [trecisava
de passar à acçTut. Pensei com frequência mais tarde que esta «solução» \ inha
em mim de bastante longe, unindo o m edo do perigo e a necessidade absoluta
de protecção para semelhante audácia fictícia. Se o meu amigo Rancière tivesse
conhecido este «episódio» quando mais tarde mc acusou de criticar o Partido
Comunista para lá continuar, creio que ele lhe daria bastante que reflectir.
Protecção! Sim, estaca protegido no campo, e era a coberto dessa protec­
ção que podia permitir-me numerosas audácias. Protegido, ftii-o primeiro pelo
dr. Zeghers, depois po r Daêl. Daêl. esse hom em com dois metros de altura,
delicado comigt) com o uma m ulher (a verdadeira mãe que não tive), esse
«homem de verdade» também, que sabia enfrentar sem a mínima angústia os
perigos e os alemães (como um verdadeiro pai que não tive), era para mim
uma protecção sem par. E no interior da sua afeição protectora. eu repetia o
meu velho com portam ento obsessivo; tornei-me, ao abrigo da sua protecção,
seu conselheiro em tudo, o conselheiro até das suas audácias, transform an­
do-me assim prontam ente (como ames com Zeghers) em «pai do pai», ou
antes, e ao mesmo tempo, «pai da mãe», com o que para re s o h e r uma vez mais
à minha maneira a minha sttlidão e a minha contradição de nunca ter tido nem
\erdadeira mãe nem verdadeiro pai. Dou-me bem conta de que estava a meu
m odo muito «apaixonado» po r ele. Q uando voltámos a Erança. na altura em
que o deixei em Paris de onde em breve ele mc confiou tjue ou\ ia com agrado
«o barulho dos saltos dos sapatos de uma m ulher pelo seu braço nos passeios
da cidade», fiquei horrivelmente ferido de ciúmes. Cheguei mesmo a aconse-
Ihá-lo de Marrocos, onde me reunira aos meus pais, a n u n c a se casar. O que
ele prometeu, mas não cumpriu, deixando-me entregue à minha dor.

116
f r 1 I R o M i / / o / / lí R O

Quanto às minhas «audácias» pessoais, revelaram-se todas \ às. Quando, no


slalag, maquilhei a minha caderneta militar com escritos e carimbos íalsos
para a transformar retrospectivamente em caderneta de en fen n eiro (porque
nessa altura os alemães repatriavam os enfermeiros) e fingí descobri-la no
pacote vindo de França aberto por uma \’elha sentinela quase cega (operação
de extrema facilidade), esquecí dentro dela p o r acaso um atestado do general
Lebleu C]ue me colocava com o a todos os FOR de Vannes, <ãs ordens da
região». E a minha caderneta tinha apenas duas páginas, tendo eu arrancado
dela tudo o que pudesse comprometer-me! Duas páginas e um «esquecimento»
tamanho! ü capitáo alemão cleca)lveu-me os meus documentos com um sor­
riso entendido. Como pudera eu esc)uecer-me daquela folha numa caderneta
de duas páginas? Decididamente, tenho cjue acreditar — única explicação pen-
sável — que inconscientemente não queria sair do campo! E se tinha p a ra
Dael todas as audácias, incluindo as mais loucas, era completamente incapaz
de ter uma única verdadeira audácia por minha conta. Decididamente não
queria de maneira nenhuma, e p o r efeito de uma força mais coactiva do cjue
a minha consciência e os meus projectos reflecticlos, escapar àquele caticeiro
que me assentava com o uma lu\a. Peguei-me um dia com o médico alemão,
mas cjuando ele me chamou à sua presença, sob a atenção silenciosa de todo
o estad(^-maior polaco da enfermaria que se preparava para me «avaliar», quer
dizer, medir as minhas aparentes pretensões e audácias de revoltado, tudo o
que consegui foi balbuciar de m odo lam entá\el. Apanhei um mes de prisão e
conheci então as enxovias onde miseráveis russos eram deixados a apodrecer,
Einalmente os Aliados aproximaram-se. O campo deu duas horas de refle­
xão aos seus guardas, que desapareceram na noite. Foi um incrível período de
liberdade, de caçadas, de mulheres e de farra: mas eu deixei-me ficar de fora.
Os ingleses continuavam sem chegar. Concebi então sozinho (que audácia!) o
projecto de os ultrapassar, convenci Daêl, que comigo abandonara o seu posto
de hom em de confiança, mas tendo os dois, para grande estupefacção dos ale­
mães, recusado o repatriamento da praxe. Descobri um carro e um motorista
e partimos clandestinamente para o sul: Flamburgo e Bremen. Mas fomos «fei­
tos prisioneiros» pelos ingleses em Flamburgo, escapámos-lhes por uma unha
negra graças ao gênio do nosso motorista, mas vimo-nos obrigados, uma vez

117
L O V I S A L T H r V ,S /: R

que as estradas estavam cortadas, a retroceder. Voltámos ao cam po sob a c o n ­


denação geral dos nossos amigos, que não nos perdoacam o nosso «aban­
dono». O mais consternado de todos foi certamente o padre Poirier, capelão
do campo, de quem gostavamos muito e que nos pagava na mesma moeda:
também ele se sentia triste com uma iniciativa que quebrava a fraternidade do
campo. Ao tentar por uma vez arrastar Daél num a a u d á c ia m in h a , as coisas
acabaram bastante mal. Decididamente eu não era feito nem para as provas de
força nem para a audácia dos aventureiros.
Noto por fim que foi no campo que, pela primeira vez, ouvi falar do m ar­
xismo pela boca de um advogado parisiense de passagem — e eonheci um
comunista, apenas um.
Este último. Pierre Courrèges. apareceu no campo nos últimos m ese s;
acabava de passar um ano em Ravensbrück num com ando disciplinar durís­
simo para irredutíveis. Dael deixara havia muito de ser hom em de confiança.
Sucedera-lhe um rapaz alto e bastante apagado, que vinha de uma agência
funerária, e com ele algumas das irregularidades ou cumplicidades anteriores
haviam voltado à superfície. Oh! não muita coisa! Sem mandato de ninguém,
apenas em seu nom e e em nom e da honestidade e da fraternidade, Courrèges
interveio e esse facto produziu um efeito inacreditável. Era simples, directo,
caloroso, natural, agindo e falando sem qualquer esforço aparente. A sua pre­
sença bastou para transformar o campo e deixou-nos profundam ente espanta­
dos. Todas as facilidades, os semi-compromissos com os alemães, desaparece­
ram de um dia para o outro, e no campo respirava-se uma atmosfera que nunca
mais fora conhecida por lá desde o «reinado» de Daél. Bastara um so hom em
e um hom em só. mas po r certo que «diferente dos outros», um «tipàparte» (os
comunistas «não são homens com o os outros», ie itm o tiv de uma propaganda
com que travei conhecim ento mais tarde) para causar este resultado surpreen­
dente. Ganhei uma admiração profunda pelos militantes comunistas: e igual­
mente a ideia de cpie era possível agir de maneira diferente de Daél, de que
existiam pois outras formas de acção e de relação com a acção, em que a habi­
lidade se torna secundária quando a acção se inspira em «princípios » verda­
deiros e autênticos com o em claras razões de agir que podem então dispensar
a arte da «pirataria» e da astúcia. Espantoso Gourrèges que me deu a minha

118
o r V r u K o M ( I I o 7 I: M F O

primeira lição prática de comunismo! Voltei a vè-lo em Paris: continua tão


caloroso com o antes, mas é um hom em com o os outros. Não pensara que ele
pudesse ser também um hom em com o os outros...
Em todo o caso, os que imaginaram que eu fora convertido ao comunismo
por Hélène devem ficar a saber que o fui por Courrèges.

Q uando finalmente os ingleses chegaram, fomos encam inhados de avião


para Paris. Fui visitar Jean Baillou, secretário da École Normale. Estar a tão
desesperado que lhe declarei sem mais: «Sei falar alemão (aprendera a língua
enquanto estivera prisioneiro), um pouco de polaco (iciem) e o meu inglês do
liceu. Arranje-me trabalho, peço-lhe.» Eles respondeu-me: «Primeiro \ olte para
casa, depois veremos.» Fiz-me passar (a m inha primeira p ir a ta r ia pessoal a ter
êxito, mais uma impostura) p o r oficial e a esse título embarcaram-me num
avião directo para Casablanca, onde o meu pai fora colocado em 1942. Os
meus pais receberam-me o m elhor possível. O meu pai, que dispunha de um
automóvel do banco, levou-me a visitar à pressa algumas cidades de Marrocos.
Eles davam-se então muito e exclusivamente com os Ardou\ in, um casal com-
plctamente dissonante, ele minúsculo e retorcido, ex-colega de liceu do meu
pai, que não parava de se meter com ele, trabalhando nos caminhos de ferro
de Marrocos, ela alta, bastante bonita, intelectual, professora de francês num
colégio, uma m ulher cheia de coração e agradando em extremo à minha mãe,
com cjue era capaz de falar de estudos, de letras e poesia. Era sempre a mesma
coisa: o meu pai não descansava, assediando-os e arreliando-os com os seus
gracejos. Continuava igual a si próprio. Sempre o mais forte em hu m o r e malí­
cia. Mas, em três meses, não conheci mais n in g u ém . A minha mãe estava
doente, tornara-se hipocondríaca, sofria dos intestinos e de mais isto e aquilo,
de tudo. Eu só tinha uma ideia na cabeça, sabe Deus porquê: certificar-me de
que não fora contam inado po r uma doneça venérea. Consultei dez médicos
militares, que me acharam de boa saúde, mas continuava de uma vez para
outra convencido de que escondiam alguma coisa. Via-me, longe da fraterni­
dade dos meus camaradas de cativeiro, num m undo completamente fechado,
longe de Daél em que não deixava de pensar, no limiar da depressão. Não sei
como consegui evitá-la. Sem dúvida que precipitando o meu regresso a França.

119
/ o I A /. / // / S / /í

Tivera contudo a lucidez suficiente para concluir desses dois meses que tinha
de ajudar a minha irmã (que interrompera os estudos para se tornar enfermeira
de crian(,as pequenas e tivera que cuidar dos terríveis feridos do bom bardea­
mento de Casablanca) a sair dacjuele m undo sem saída. Assumi então a causa
dela, convenci a minha mãe, que ma «confiou», velho estribilho, e partimos
juntos, num navio avariado que só avançava em semi-círcuUts. parava e voltava
a arrancar Quatro dias e noites de m ar no meio de um cheiro fétido para che­
gar a Marselha. Descobri um quarto para a minha irmã em Paris e entrei final­
mente para a École.
Cm desastre! Não conhecia lá ninguém (era o único da minha le\a a ter
sido feito prisioneiro, e de resto, provinciano com o era, nunca teria co n h e ­
cido, mesmo em 1939, ninguém do m esm o ano). Sentia-me irremediavelmente
velho e ultrapassado po r todos os acontecimentos. Já não sabia nada do ciuc
outrora aprendera e chegara de um m undo completamente diferente do da
l ni\ersidade. Hsse «outro mundo», e a impressão de ser completam ente estra­
nho ãs pessoas, aos costumes e à \ada universitárias, nunca dei-xaram de me
perseguir. De resto nunca estabeleci qualquer relação pessoal fosse com que
uni\ersitário fosse, excepluados Jean-Toussaint Desanti e (leorges Canguilhem,
mas \er-se-á depois porque. ,Se mais tarde defendi uma tese, foi sob a insistên­
cia premente de Bernard Rousset. presidente da l PR de ,\miens, que desejava
que um «parisiense», «conhccitkt pela sua notoriedade» (Heine), desse um
pouco de relevo a .Amiens. Pm suma. estar a coinpletamente sozinho, sentia-me
além disso doente (as minhas obsessões sexuais e perturbações da visão insis­
tentes — de facto simples «moscas ratadoras» — que me faziam recear a
cegueira) e sem quaisquer perspectir as. Outrora, influência sem dúvida tk)
«relho Hours» e já gosto pela política, teria gostado de fazer história. Mas
recuara diante desse objectivo (já não tinha memória, ou pelo m enos pensti-
ra-r>). Agarrei-me à filosofia, dizendo para comigo ejue afinal de ctmtas me
chegaria saber fazer uma dissertação bem feita. A minha ignorância pouco
importara, conseguiria sempre safar-me.
O médico da Pscola, o jovem dr. Étienne, para me proteger, embora sem
acreditar minimamente nas minhas afecções oculares (tinha toda a razão!),
admitira-me na enfermaria da Hscola onde ocupei um quartinho mesmo ao

120
r i / r R o I M r i i o / /: i; o

fundo do corredor do primeiro andar, ao lado do Pierre Moussa. antigo lio-


nc.s', que aprendi a conhecer. Nesse pequeno cubículo comecei por recelrer
a minha irmã, a única pessoa que conhecia em Paris; ela la\a\a-m e as meias
e fazia chá. Endereçara-lhe uma correspondência muito lírica, ciuase ajraixo-
nada. no tempo do meu cativeiro, reportando sobre ela não sei bem o què,
e sem dúvida que para não ter c[ue escrever aos meus pais, a quem nada
tinha a dizer. Ponto que continua a ser obscuro para mim. a menos ciue ima­
gine algum deslocamento. Foi aí que conheci Georges l.esèvre, conhecido
por .Séveranne, vindo também de Lyon, que recolhera, com o era então cos­
tume nas khágnes de província t]ue não contavam com muitos e s co l h i d o s , a
minha «lenda» local (da boca de Lacroi.x e de Flours). e que fora retardado na
sua entrada para a École por um longo trabalho na Resistência, no cjual c o n ­
forme eu mais tarde viria a saber, conhecera bem Flélène. Mas um só homem,
cujo passado e cujo à-\ontade ainda p o r cima me esmagavam, não era
grande coisa.
Não sei com o me arranjei, mas desejava de facto ter uma ligação femi­
nina qualquer. Lembro-me de que durante algum tem po aprendi a dançar com
uma rapariga afectada, numa boite horrível de Montparnasse, tendo em v ista
o baile da Ecole... onde sabia que apareceriam algumas Sérrieunes (as alunas
da Normale para raparigas). Na noite do baile de 194S. av istei o perfil que me
assombrava havia muito: uma rapariga baixa, encantadora, tão muda com o eu,
e com quem dei alguns passos de dança. Entrei acto contínuo em inacreditá­
veis fantasias amorosas. Ela chamav'a-se Angeline, um nom e sobre o qual teci
variantes infinitas, auge, angelette. am eline, am elinette, rouscirdelette... \'i-a.
voltei a vê-la, cscrevi-lhe, e por uma espécie de preconceito de exaltação,
esforcei-me por não pensar senão nela, até ao dia em que ela com eçou a cor­
responder-me, mas os seus pais comunicaram-lhe que não podia ser. Entre­
tanto. Lesèvre arrastara-me sob os auspícios das Jio e n tu d e s Republicanas (na

' Acrcsccniado na margem do texu). sem que a ligação com o resU) da frase tenha sido feita
pelo autor; «sobre quem Helène. lendo-o c o n h ec id o cm Lyon. tinha idéias hem definidas, com o as
tene o meu pai q u a n d o recei)eu a sua visita a (iasablanca e fez dissimuladamenie p o u c o dele contando-
-Ihe «patranhas» (podia-se contar com a discrição e o h u m o r feroz do meu pai)> . <.\. do J.. fríuicès)

121
L O V I S A L T H V S S V K

dade comunistas), presididas po r Herriot, para umas viagens à Checoslová-


quia. Lesèvre era comunista e tinha então contactos um pouco por toda a
parte junto dos numerosos resistentes das suas relações. Em Praga, no Vltava
meio seco e fétido, com preendi que uma das jovens de viagem, Nicole, estava
apaixonada por mim. Fiquei com um tal m edo que não era capaz de lhe tocar.
Tinha sem dúvida vontade de me julgar apaixonado p o r uma rapariga, mas
não conseguia suportar que o estivesse ela p o r mim. Repulsa de longa data,
com o se vê.
Foi então que travei conhecim ento com Hélène.

122
XI

TV T uma noite de Dezembro de 46, com Paris coberta de ne\e, Lesèr re con-
X^ vidou-me a visitar a sua mãe, que regressara da deportação num triste
estado, no apartamento dela ao cimo da rue Lepic. Ainda me vejo a atravessar
ao lado de Lesèvre, que falava por dois, a ponte da Concorde, coberta de neve.
Ele falava-me da mãe. Foi então que me disse: «Vais conhecer também a
Hélène, uma grande amiga minha, um bocado louca, mas absolutamente
extraordinária pela sua inteligência política e pela generosidade do seu cora­
ção.» Um bocado louca? Que poderia isso significar ao pé de tamanhos elo­
gios? «Encontramo-nos com ela ao fundo da rue Lepic à saída do metro.»
Efectivamente ela lá estava, esperando-nos no meio da neve. Uma m ulher
pequenina, embrulhada numa espécie de capa que a dissimulava quase p o r
completo. Apresentações. E logo a seguir caminhada até ao cimo da rue Lepic,
pelos passeios cobertos de gelo. O meu primeiro movimento inteiramente ins­
tintivo, foi dar-lhe o braço para a amparar e a ajudar a subir a rua inclinada.
Mas foi também, sem que eu jamais tenha sabido porquê (ou antes, sei-o dem a­
siado bem: um apelo de am or impossível, juntamente com o meu gosto do
p a th o s e do exageres dos gestos) fazer no mesmo instante escorregar a minha
mão por baixo do braço dela até à sua, e tomar-lhe assim a mão fria no calor
da minha. Fez-se silêncio, estávamos a subir.
Conservo uma recordação patética do serão. Ardia na lareira um grande
lume. Mme Lesèvre. feliz po r voltar a ver o filho, recebeu-nos calorosamente.
Era uma m ulher alta, que as provações tinham completamente descarnado.

123
L o í I S .-1 [ r H l S S f K

pálida e quase apenas uma sombra; nunca sorria. Fala\a devagar, procurando
bem as palar ras para evocar as memórias exaltantes da Resistência e os pesade
los «sinistros» da deportação: os campos de deportação não tinham de facto
nada a ver com os campets de prisioneiros que eu conhecera, e nem sequer
com as cttndições da Resistência cjue tlélène e Georges tinham vi\ ido. Com
eíeito eram algo que não se podia sequer im aginar. Georges sempre fora dis
ereto quanto aos seus feitos nos Alpes e na cidade de Lyon. Fai ouvir afalar dos
deportados, mas era a primeira \e z que conhecia um deles, e trata\a-se para
mais de uma mulher, que se mantivera bem direita e firme nas suas provações
Recordo que cu trazia então vestido (sentido da economia, pelo que não com
prara outro) o casaco estreito e de mau corte, um casaco castanho tpie mal me
ser\ ia, que me tinham impingido barato em Paris após o meu regresso do cati
\eiro. Mais tarde, Flélène falou-me muitas vezes desse casaco e da sua emoção
ao \er-m e tão mal \estido. com o um adolescente desajeitado, completamentc
indiferente ã sua aparência, um fantasma regressado de outro mundo.
F de facto durante muito tempo vesti-me com fatos desengraçados, c o m ­
prados feitos, sem arranjos nem retoques h p o r economia e uma espécie de
deleite em ajtarentar pertencer ao m undo dos sem recursos, os pequenos ára
bes da minha infância e os soldados do meu cativeiro. Lembro-me de que
nessa noite disse apenas algumas palavras para evocar a Guerra de Fspanha.
recordação do «velho Flours» e também da minha avó que, um dia em que
estac a a ler-lhe em Larochemillay algumas páginas de VH spoir ác Malraux, não
foi capaz de reprimir a sua campaixão: «Pobres crianças!» Hélène, atentíssima
às palavras de Mme Lesèvrc, e depois às minhas escassas afirmações políticas,
não disse quase nada. Nada da sua própria miséria, nada dos seus amigos fuzi
lados durante a guerra pelos nazis, nada da sua infelicidade desesperada,
Entrec i nela apesar de tudo uma dor e uma solidão insondáveis e julguei c o m ­
preender retrospectivamente (mas não era c erdade, já o disse) por que é que, na

' Acrescento miinuscrito à margem do texto sem que a iiga<;ão com o resto da frase tenha sido
íeita pelo autor «nunca por m edida lexcessivamenie caro) até que a belíssima e amaniíssima (daire. o
meu primeiro a m or paralelo a lléiène, me ensinou a vestir-me com certa elegância. Ilélcne sempre Ihe
reconheceu esse mérito». {.V. cio /;. francês)

124
/ r / r /í" o I M / I r <> I i: M /' o

rue Lcpic. tomara a sua mão na minha. A partir desst m om ento fui ineadido
p(.)r um desejo e uma oblação exaltantes: salvá-la, ajudá-la a \ i\er! ,\Linca em
toda a nossa história e até ao fim. me separei desta missão suprema c]ue não
deixou de ser a minha razão de ser nem no iiltimo momento.
Imagine-se o encontro: dois seres no auge da solidão e do desespero que
por acaso se \è e m cara a cara e reconhecem um no outro a fraternidade de
uma mesma angústia, de um mesmo sofrimento, de uma mesma sttlidão e de
uma mesma expectativa desesperada.
Pouco a pouco, eu ficaria a saber quem ela era. Oriunda de tima família
jtidaica dos confins da Rússia e da Polônia, fugida aos pogromes, R\ tmann de
seu nome. nascera em França, no x m ii bairro, do lado da rue Ordener, mas
brincara com os filhos da xaleta nas ruas da cidade. Conser\ara uma recorda­
ção atroz da mãe que. não tendo leite para lhe dar, nunca lhe deu o seio. nunca
a teve nos braços. A mãe odiax a-a, porque queria um rapaz, e atjuela rapariga
escura e selvagem alterava todos os planos do seu desejo. Nunca essa mãe te\c
um gesto de ternura j)ara ela: ódio e só ó d i a Hélène que, com o qualquer
criança, desejac a ser amada pela sua mãe e \ ia que tudo lhe era recusado, o
calor do leite e do corpo, a atenção dos gestos de am or e de acolhimento, aca­
bou por se identificar irrevogavelmente com a m edonha m ulher tjue a odiava,
e também com a imagem arroz que a mãe fazia da filha: detestada porque recu­
sada, negra e seh tigem, pequeno animal rebelde impossít el de e\ itar, sempre
a transbordar de furor e violência (sua única defesa). ,A composição, a sobre­
posição da imagem de uma mãe m edonha e cheia de ódio e da imagem que
essa mãe, toda ela ódio. fazia da sua menina, um animalzinho negro, raixoso
e \iolento lutando pela sobrexivència. constiluiria durante toda a xida dela e
até ao fim o horríxel fantasma de Hélène: tinha um m edo incontrolável de ser
para sempre ela própria uma m ulher m edonha, uma megera, cheia da mais
extrema injustiça e violência, espalhando o mal à sua xolta, sem nunca ser
capaz de dom inar os excessos atrozes cm que essa força, mais forte do que ela.
sem tréguas a lançava.
Também atiui não podem os garantir que Héléne pudesse ter a pretensão
de representar fosse no que fosse o reflexo objcctivo exacto da sua mãe real,
nem das intenções conscientes, e por maioria de razão inconscientes, dessa

125
L O r / ,s A I. r If f S S H R

mãe. Podemos quando muito dizer que este fantasma inaugural não era arbitrá­
rio, antes se agarrava a «indícios» de realidade através dos quais o desejo (o
desejo implacável) do inconsciente e da «vontade» da mãe podia investir-se.
É verdade que Hélène em criança era raquítica, escura e violenta. Mas os aces­
sos de violência... deste modo, até a coberto da memória, algo de bem real se
expressava, algo que, literalmente, proibia Hélène de t'iver. tão atroz era o seu
pavor de não passar de uma megera m edonha, para sempre incapaz de ser
amada, de ser amada — porque amar, isso ela sabia-o, e de que maneira! Julgo
que nunca vi num a m ulher tamanha capacidade de amor, não em fantasmas
mas nos actos: provou-mo tanto!
Em contrapartida, conservara uma boa recordação do seu pai. Esse
hom em brando e atento tinha uma pequena loja de legumes no x\ iii bairro.
Na comunidade jucaica do lugar, era considerado um «sábio» consultavam-no
e ele estava sempre disposto a socorrer o próximo. Tinha uma p a ix ã o ; os cava­
los (também ele). Acabou por com prar um, do qual tratava com a filha, c estes
cuidados partilhados em intenção do animal, no meio da confiança e da afei­
ção do pai, davam a Hélène uma verdadeira alegria, que nunca percebera
com o é que o pai, a não ser graças a uma paciência infinita, era capaz de \ iver
com a mãe. Em breve trocariam o x\ lu bairro por uma casa pequena no vale
de Chevreuse. Foi aí que se desenrolou o drama.
O paí teve um cancro. Os irmãos e a irmã de Hélène viviam ao que parece
por sua conta, sem grandes atenções para com os pais. Foi Hélène, aos dez,
onze anos, quem passou sozinha meses e meses à cabeceira do pai a assisti-lo
e a tratar dele, tarefa que a mãe alijara por completo nos ombros da má filha.
Havia sem dúvida o bom dr. Delcroix, de quem Hélène gostava muito porque
a ajudava com o um hom em de verdade, caloroso e atento, sendo o seu único
socorro num a solidão e nesta responsabilidade de molde a esmagar uma
criança. Mas ai! um dia o bom m édico tentou, num m om ento de confiança,
brincar com as cuecas e o sexo da rapariguinha. Foi como se o seu único
amigo no m undo a tivesse abandonado. Continuou a cuidar do pai, e foi a ela
que o dr. Delcroix pediu, nos últimos m omentos de sofrimento, que desse ao
pai a derradeira injecção de uma dose elevada de morfina. A rapariga horrível
tinha assim com o que assassinado o pai ejue a amava e ciue ela amava.

126
H V 7 V R O li M r 1 T O I í: i; )> o

Passado um ano, a mãe teve também um cancro, e rcpetiu-se a mesma


situação, Foi uma vez mais Hélène quem tratou da mãe e olhou por ela, por
essa mãe que a detestava. Depois, de novo, nos últimos momentos, o dr. Del-
croix receitou a injecção fatal. Foi Hélène quem a administrou à mãe A rapari-
guinha m edonha matara também a mãe que a detestava. Aos treze anos'
Não sei lá muito bem o que aconteceu a seguir, mas Hélène. sozinha,
arranjou maneira de trabalhar, ganhar m elhor ou pior a vida. e depois até de
ler e seguir algumas aulas na Sorbonne, onde ouviu entre outros Albert
Mathiez de quem me falou muitas vezes. Na Sorbonne, conheceu a sua pri­
meira autêntica amiga, que a aceitou tal com o ela era, sabendo distinguir para
lá dos impulsos selvagens dacjuela rapariga um fundo de incomparável inteli­
gência e generosidade. Chamava-se Émilie, dedicava-se à filosofia, era uma
apaixonada p o r Spinoza e Hegel, e comunista. Partiu um dia para a URSS, onde
continuou os estudos para ser finalmente deportada para a Sibéria, enfiada
num a enxovia e p o r fim executada com um tiro na nuca. Este último p o rm e ­
nor só chegou ao conhecim ento de Hélène nos anos 50. Mas sem se dedicar
pessoalmente à filosofia (queria estudar história), Hélène aprendera e retivera
com Émilie que a filosofia era vital e essencial para a política. O que c o n ­
tribuía para que me compreendesse quando a conheci e nos conhecem os
melhor.
Hélène aderiu ao Partido Comunista nos anos 30 e tornou-se. ela. uma
jovem, uma militante excepcional do xv bairro perto das fábricas Citroen
(lavei) onde a repressão era de tal ordem que só do exterior se podia fazer
qualquer trabalho sindical ou político. Adquiriu aí uma reputação excepcional
mantendo, contra ventos e marés, e sob os insultos e o escárnio d(5s adcersá-
rios fascistas, um posto de venda de l ’H u m a n ité pzrx os operários da Citroen.
Tornou-se muito popular junto dos operários, temível para os fascistas das
ligas com a sua determinação e a sua coragem, e foi aí t[ue teve como amigos
os extraordinários militantes que foram Eugène Hénaff (Gégène) que amou
com um verdadeiro amor, Jean-Pierre Timbaud, e também Jean-Pierre Michels,
que seria mais tarde deputado do x\ bairro: ambos fuzilados em Chàteau-
briant. No V H u m a n ité, conhecera igualmente muito bem Paul Vaillant-
-Couturier de quem se fez amiga, e do m esm o m odo (mas a uma distância

12:
/. o r / s .1 / 7 // i s s

maiori André Mart\, cuja fabulosa eloquência c cujo «mau feitio» a impressio-
na\ ani. Xo dia 9 de Fevereiro de 193b, participou na batalha física de rua c o n ­
tra os fascistas, ao lado dos seus camaradas operários mobilizados pelo sindi­
cato e pelo Partido. Fra a época de Maurice Thorez: «.As bocas que se abram,
não queremos manequins no Partido!» Um dia chegou mesmo a conhecer jac-
ques Duelos, num bar onde jogou ao bilhar com ele. vencendo a partida: «As
inocentes saem de mãos cheias!» com entou Duelos, zombeteiro.
Foi nesta época que nasceu nela a paixão da sua \ ida: a sua paixão p ela
«classe operária». Fima verdadeira paixão, total, exigente e por certo que em
parte mítica, mas que a protegia eficazmente de um outro mito. o da organiza­
ção e dos dirigentes da classe operária. Nunca, nem na sua vida nem perante
mim, ela os confundiu: muito pelo contrário, chegou até o momento, a seguir
a 19és8. em que ela dizia a quem a quisesse ouc ir que «o Partido traíra a classe
operária» e já não compreendia que eu continuasse no Partido. Dos meus
livros, repetir-mc-ia sem descanso que «davam à classe operária o que por
direito lhe pertencia», e era por essa razão que os a p ro \a \a e estimulava. Para
ela, em política apenas contavam a classe operária, as suas \irtudes, os seus
recursos c a sua coragem revolucionários.
Posso enfim a este propósito \arrer aqtii definiti\am ente um mito tenden­
cioso que correu de boca em boca. acerca de Héléne e de mim, até mesmo
entre alguns dos meus amigos (mas sem d ú \id a que não entre os mais chega­
dos): m m e a Hélèiie f e z a m ín im a pressão sobre m im . nem no dom ínio filo­
sófico nem no dom ínio político. ,\ão foi ela. mas sim Pierre Courrèges, c
depois Sé\'eranne e os seus amigos, as minhas próprias experiências sindicais
na École Normale onde me opus aos socialistas e consegui c'encè-los na dis­
puta pela direcção do sindicato, e jean-Toussaint Desanti, e Tran Duc Thao,
ciue, comunistas e filósofos, ensinar am na Fcole Normale, e cujos cursos segui
após a agregação. !\u n ca , nos meus manuscritos, que naturalmente lhe dava a
ler. ela fez a m enor observação destinada a orientá-los de outro m odo: não se
julgava competente nem em filosofia nem em teoria política, não conhecia
O C apital, mas tinha uma experiência incomparável quer do Partido cjuer da
acção política. Contentava-se com aprovar-me, e só interr inha para me sugerir
modificações de molde a reforçar ou atenuar esta ou aquela fórmitla. Sobre

128

w
O I I / r R n u r I 7 / / D

estas c]uestões, onde pessoas sem informação quiseram \ e r as prímíeias de


um conflito entre nós, sempre houve e somente um entendimento profundo.
Naquilo que eu escrevia ela redescobria v) eco da sua experiência da prática
política. Naquilo que ela me di/.ia desta última, eu descobria como (]ue a ante­
cipação vivida datiuilo que escrevia,
Foi de um otitro lado, completamente diferente, que surgiram as nossus
dificuldades pessoais, Como veremos.
Q uando aprendi a conhecè-la, em lf)t6, descobri muito rapidamente que
não só ela perdera todos os seus amigos, entre os quais um jaadre extraordiná­
rio, o padre Farue, t[ue conhecera e amara com um grande am or em Fvon, na
Resistência, e cjue morreu fu/ilado pelos nazis em .Monlluc nos últimos dias de
19a4, com o com uma operação audaciosa dos Corpos Francos, mas c]ue
p ro ib h h í pelo P artido e ])elo com issário da República em I voir \ \ e s Farge.
nom eado por De Caulle, se teria podido libertá-lo. e com ele todos os prisio­
neiros de Montluc. Durante toda a sua v ida Hélène se recriminaria, com o se a
culpa fosse sua, pevr não ter conseguido convencer os responsáveis a intervi
rem a tempo jvara tentarem libertar os resistentes, reféns dos na/is em .Vlontluc.
O padre Farue (liá uma pequena praça de Fourvière com o seu nome)
compreendera-a e amara-a verdadeira e profundamente, a sua milagrosa histó­
ria comum arrebatara-a com uma alegria profunda e exaltantc, e ei-lo que m o r­
rera e que ela se recriminaria para sempre por não ter sido capaz de o sah ar.
Descobri também que ela vivia na miséria. Perdera todo o contacto com
o Partido, que passara à clandestinidade em 19.á9. Ffurante a guerra, sem
poder retomar esse contacto, depois de ter rompido com Jean Renoir. tjue
assistira em muitos dos seus filmes (conhecera Françoise (liroud. a quem cha­
mavam, dado o seu físico, maldosamente, a «chouriça»), mas sem nunca acei­
tar que o seu nome figurasse nos genéricos, e que trocara a França pela ,\mé-
rica, empenhara-se numa importante organização resistente (Fibération-Sud,
julgo eu, mas não tenho a certeza) e para passar informações, dinheiro e armas
da Suíça para França, adquirira a representação da editora Skira para França, o
que lhe permitira encontrar e conhecer os maiores pintores do seu tempo.
Através dos Ballard. Jean e Marcou, seus amigos dos Cahiers da Sucl de Marse­
lha, tiue davam guarida ou recebiam numerosos resistentes e hom ens de letras.

129
/ o r / s . 1 / / u r s V /: A’

conhecera também todos os grandes nomes do m undo da literatura francesa


do tempo. Foi assim que conheceu bastante bem Malraux e se ligou de perto
com fVragon e Éluard, ejue. também eles, por razões de segurança draconiana,
não tinham podido retomar o contacto com o Partido clandestino. Conhecera
muito bem igualmente Lacan, que. em Nice, onde residia com Sylvia, lhe fazia
intermináveis confidências na p ro m e n a d e des A nglais, muito pela noite d e n ­
tro. Lacan disse-lhe um dia estas palavras, que o meu prtõpritt analista, igno­
rando o juízo de Lacan, me confirmaria mais tarde: «Você teria dado uma
extraordinária analista!» Por causa da sua «escuta» excepcional, sem sombra de
dúvida, e do seu insight surpreendente.
De todas estas relações, amizades e amor, nada, absolutamente nada, lhe
restava em 19í5. e eu direi porquê. Em todo o caso, quando a conheci, estava
numa negra miséria. .Subsistia vendendo algumas primeiras edições de Mal­
raux. de Aragon e de Eluard. Morava num sórdido quarto de cima num hotel
da praça .Saint-Sulpicc, mesmo no último andar.
Foi aí que,'a seguir ao nosso encontro em casa dos Eesèvre, mc convidou
a visitá-la. Certamente, se não me tivesse chamado desse modo, nada se teria
passado entre nós. Behi o seu chá, ela falou-me do meu casaco (trazia-o ainda
vestido) que tanto a tocara, disse mesmo algumas palavras soltre o meu rosto
e a minha testa que achaca «belos», e saímos para a praça, sentando-nos num
banco. .\o m om ento de se despedir, ela le\ antou-se e com a mão direita acari­
ciou imperceptivelmente os meus cabelos louros, sem uma palavra. Mas eu
compreendia demasiado bem. Fiquei afogado em repulsa e terror. Não era
capaz de suportar o cheirt) da sua pele, que me pareceu obsceno.
Foi ela de novo a chamar-me de vez em quando. Eu andava então com
Eesèvre nas nossas expedições à Europa Central, e continuava a fazer a minha
corte a Angeline, Nicole continuava apaixonada por mim, e eu nem por som ­
bras, Cheguei a ir a Roma. num a expedição universitária de visita ao papa,
organizada pelo padre Charles cuja vulgaridade de maneiras voluntária e
demagógica me causava horror. Ele era então capelão da Ecole, e eu consegui
«pô-lo a andar», com argumentos irrefutáveis. \'ive hoje em Montmartre e
nunca me deve ter perdoado o caso — pelo m enos se ainda se lembrar disso,
pois trata-se de um hom em que esquece depressa — , sem querer perceber

130
/■ r / r />■ o M I / / o '/ /: ,V/ F O

que é um padre sinistro. Eu era ainda erente. Escrevi já não sei em que diário
dois artigos sobre a \ iagem. As grandes destruições em Itália ainda eram muito
recentes. O nosso co m b o io percorria devagar interm ináveis pontes de
madeira, suspensas a uma altura vertiginosa sobre o vazio, e que oscilavam.
Quandv), de noite, começámos a avistar Roma, rezámos o Credo em coro.
Impressionante e comovente com o um raio. O papa (Pio XII) recebeu-nos em
grupo, mas teve, num francês inverosímil, uma pergunta e uma palavTa para
cada um de nós. Perguntou-me se estava na École Normale — sim — letras ou
ciências? — letras. Pois bem. seja um bom cristão, um bom professor — e
sobretudo (sobretudo!) um bom cidadão! Pio XII resumiu-se todo neste
«sobretudo». E deu-me a sua bênção. Verifico que não correspondi exacta-
mente às suas expectativas.
Foi em Fevereiro de 19-t" que o primeiro drama começou. Eu continuava
a cortejar Angeline, nesse caso fora eu quem tomara a iniciativ^a, e estava assim
em vantagem e m elhor posição. Continuava também a ver Elélène de tempos
a tempos: ntas fora ela quem tomara a iniciativa, não eu: extremamente incô­
modo. Tiv e então não a ideia, mas a compulsão irresistív el de apresentar Ange­
line a llélène: não foi a última vez cjue me meti num a provocação e impasse
semelhantes, mas estava ao tem po muito longe de desconfiar dos motivos de
tão bizarra ideia: o desejo irresistível de obter de Flélêne a sua aprovação para
uma escolha amorosa que não lhe dizia respeito a ela mas a uma outra mulher.
Convidei-as para um chá em minha casa, no meu pequeno cubículo da
enfermaria. Eu tinha perto de trinta anos. Hélène trinta e oito, Angeline vinte.
Já não sei o que dissemos, mas sei muito bem com o as coisas acabaram: com
uma troca de opiniões acerca de Sófocles. Angeline defendeu já nã(t sei que
ideia, por certo que ainda muito escolar, acerca do grande trágico, eu não me
lembrava de nada que pudesse dizer. Ouvia. Foi então que Hélène. pouco a
pouco, tentou criticar a opinião de Angeline. Primeiro muito serenamente e
com argumenttts sérios, e com o Angeline lhe resistisse, o rosto e a voz de
Hélène começaram a transformar-se, ela tornou-se cada vez mais dura e intran­
sigente, cortante, e acabou com uma espécie de «cena» ofensiva (a primeira e
não a última do seu gênero, infelizmente, a que assisti). que atingiu profunda­
mente Angeline e a deixou banhada em lágrimas. Eu estava aterrado com

1. ^1
I o l I s A A / II r S S A A'

aquela explosão de \ iolèneia que não com preendia (por que e que Angeliiu
resistira assim a argumentos perleitamente razoá\eis?) e perante a qual me v ia
sem recursos. Angeiine t'oi-se embora e eu fiquei em silêncio. Percebi qm
ílélèaae não suportara a outra rapariga nem sobretudo a cerimônia que eu Ihc
impusera, a cerimônia, ou digamos antes a provocação, e que tudo se encoii
trava doravante partido e desfeito entre mim e Angeiine. Não voltaria a vè-la
Hélène tinha entrado com v iolência, mas sem v iolência contra mim, na minha
vida...
O «drama» precipitou-se uns dias mais tarde ejuando Hélène. sempre n*. ■
mesmo quartito da enfermaria, sentada na minha cama ao meu lado, me bet
jou. Hu nunca beijara uma mulher (aos trinta anosl). e sobretudo nunca for.i
beijado por uma mulher. O desejo subiu dentro de mim, fizemos am or en;
cima da cama. e era uma coisa nova, arrebatadora, exaltante e v iolenta. D epon
de ela partir, abriu-se em mim um abismo de angústia que nunca mais voltou
a fechar-se,
No dia seguinte, telefonei a Hélène para lhe comunicar violentamente qtic
nunca mais faria amor com ela. .Mas era demasiado tarde. A angústia já não me
deixava, e cada dia que (vasstiva a fazia mais intolerável. Será preciso dizer que
não eram os meus princípios cristãos que estavam em causa? Muito longe
disso 1 fratava-se de uma repulsa bem mais surda e violenta, etn todo o caso
mais forte do que todas as minhas resoluçêtes e tentativas de me recom por
moral e reiigiostunente. Os dias passaram e afundei-me nas primícias de um.i
intensa depressão. Acontecera-me viver m omentos difíceis, com o na minha
pturulha eni .Mios, depois durante o cativeiro, e por fim em Casablanca. Mas
natia de comparável, e tudo durara apenas alguns dias, ou até algumas horas,
acabando em bem. lentei agarrar-me ã vida como podia, agarrar-me ao meu
amigo médico, o dr. Htiennc: impossível, de dia para dia afundava-me cada vez.
mais no vazio assustador da angústia, ttma angústia que rapidamente deixava
de ter losse que objecto fosse: aquilo a que os especialistas chamam, penso eu.
uma «neurose de angústia sem objecto».
.Muito inquieta. Hélène aconselhou-me a consultar um especialista. Conse­
guimos uma entrevista com Fierre .Màle, o grande psiquiatra e analista da
época. Cjue me interrogou demoradam ente e concluiu tiue eu exibia um estado
/ r / r /<> o .1 / í / / /; .1/ /' o

dc «demência precoce» (!). Por conseguinte, exigiu a minha hospitalização


imediata em Sainte-Anne.
Fui acolhido no pavilhão Estiuirol, num a imensa sala comum, e fiejuei de
um m om ento para o outro isolado do m undo exterior, sendo-me todas as visi­
tas, e por isso igualmcnte as de Hélène, proibidas do m odo mais rigoroso. Foi
uma estadia atroz, de vários meses, e que não esqueci. Ibmou então conta de
mim uma psiquiatra, comovida pt>r certo com a minha juventude, e talvez tam­
bém com a minha qualidade de intelectual eonsagrackt à filosofia e com o meu
drama, disposta a pensar que eu a amava, com a certeza pelo m enos de amar
deveras e de ser ela tjuem me iria «salvar» por meio do seu amor. .\atural-
mente, ela pensava (foi a primeira, mas não a última) que se eu estava doente,
era por culpa de Flélème. Não sei o que me receitaram, mas o meu estado foi-se
agravando seriamente. Graças ao engenho de rtedé-ne. tinha arranjado maneira
de comunicar com ela. Da casa de banho do primeiro andar, havia uma janela
minúscula que dava para o exterior. .Não sei como ela se arranjou, mas FIélène.
que não vi uma única vez dentro do pav ilhão Fsciuirol, apareceu com muita
frecjuència por volta das treze horas debaixo da janela, e eu pude assim falar
com ela de longe e por meias palavras. A minha ideia era que não me estavam
a compreender, a ideia dela era que estavam a fazer tudo mal (sobretudo a psi-
tiuiatra com o seu terrível «amor»), e que era preciso romper o círculo em que
eu me achava fechado cttmo que para sempre (um demente precoce 1). Combi­
námos que ela tentaria chegar a julian .Ajuriaguerra, que eu conhecera um dia
tuiando. convidado por (icorges (hisdorf, ele fora falar ã Fscola. Fra então,
como ainda hoje, extremamente difícil um médico de fora introduzir-se num
serviço de hospital e sobretudo aí intervir, para mais tratando-se de um imi­
grante espanhol como ele era ainda. Nãt) sei cjuc terá ele feito, mas um dia vi-o
entrar na grande enfermaria, acompanhei-o a um gabinete e pude conversar
com ele. Fie concluiu: não se trata de uma demência precoce, mas de uma
melancolia gravíssima. Aconselhou electrochoques. que eram então de uso
recente, mas se empregavam com êxito em casos como o meu. .V psiquiatra
concordou. F eu sofri cerca de v inte e quatro choques, um de dois em dois
dias, na imensa enfermaria. Mamos chegar, com a sua grande caixa eléctrica na
mão, um hom em atarracado e de bigodes a quem, pela incrível parecença

l.b^
L O l l S A L í H r S S F R

dc iodas as feições, pela sua atitude e pelo seu mutismo zombeteiro, os pacien­
tes tinham posto a alcunha de «Estaline». Instalava-se tranquilamente em cada
uma das camas (éramos à vontade uns trinta a sermos tratados por electrocho-
ques), e diante de todos os outros que esperavam a sua sorte, accionava o
manipulo, e o paciente entrat a num impressionante transe de epilepsia. O dra­
mático da situação é que víamos Estaline aproximar-se ao longe, as suas \ íti-
mas entravam umas atrás das outras em sobressaltos desordenados e ele pas­
sava ao doente seguinte, sem esperar pelo fim da crise do anterior. Ha\ ia o
risco de fracturas ósseas (sobretudo das pernas). TTnhamos que apertar entre
os dentes uma toalha: para mim foi sempre a mesma, a minha única toalha
imunda, para me impedir de cortar a língua. Conservei durante anos na boca
o gosto ignóbil e aterrador, pois ejue anunciava a «pequena morte», o gosto
daquela toalha sem forma nem nome. Chegava a m inha cez, após todos os
espectáculos que os meus vizinhos me haviam proporcionado. Estaline, sem­
pre silencioso, aproximava-se, punha-m e o capacete, eu cerrava os dentes e
preparava-me para morrer, e depois havia uma espécie de relâmpago e mais
nada a seguir. Acordava passado pouco tempo (ficat a adorm ecido somente uns
dois minutos, para meu maior desespero, tal era a minha \o n ta d e de me aban­
donar ao sono. enquanto quase todos os outros dormiam horas e horas, ou até
metade do dia!) sempre com a mesma pergunta: mas onde é que eu estou? ciue
me aconteceu? Quanto mais avançava mais o meu terror (de morrer) crescia.
No fim, era insustentável. Recusava com toda a energia a cerimônia de execu­
ção. mas amarravam-me solidamente à cama.
Gostaria de referir um pequeno incidente, mas que diz muito da atmosfera
do meio hospitalar, da imagem dos pacientes e da incredulidade total dos
médicos psiquiatras perante as afirmações dc um doente. Como não conseguia
dormir e não dispunha de bolas Quiès, para os ouvidos, pensei em fazer umas
com miolo dc pão, minha única matéria-prima disponível. Mas as bolas de
miolo de pão metidas à força no canal do ouvido decompuseram-se rapida­
mente (evidentemente, não são sustentadas pela rede elástica mas firme do
algodão das autenticas bolas Quiès) e os seus grãos viscosos entraram-me no
canal auditivo até ao tímpano. Esta dissolução e esta queda no tím pano causa­
ram-me sofrimentos índizíveis, dores de cabeça e de garganta insuportáveis.

134
() I r T V R o M r / i <j I H \1 P o

Falei disso aos meus médicos a todo o momento, mas eles não quiseram dar­
-me ouvidos, pensando que eu estava a delirar. D urante três senuum s. repito,
três sem anas, recusaram-se a fazer-me examinar po r um especialista de otor-
rino, e eu sofri o meu martírio. Uma vez mais foi necessária a interr enção de
Ajuria ' para os convencer e ao fim de três semanas de horrív el provação, aca­
baram p o r me levair ao otorrino que me livrou em dois segundos dos meus
pedacinhos de pão e do meu suplício... Os psiquiatras não tiveram para
comigo uma única palavra de desculpas ou para lamentar o sucedido!
Bem vistas as coisas, o tratamento aconselhado por Ajuria foi dando lenta­
mente os seus resultados e, passado muito tempo ainda, mas sem choques,
vários meses depois da minha entrada para o Esquirol, senti-me melhor, embora
continuasse vacilante, mas m enos angustiado, e saí do hospital, Flélène estava
à porta à minha espera. Que alegria!
Lev'Ou-me para o minúsculo quarto de um outro hotel onde uma criada de
quarto miserável lhe roubara todas as suas coisas: não tinha a mínima im por­
tância! Um roubo era para ela algo que não contava... p o r comparação comigo
— e com o que ela fizera p or mim — só o soube muito mais tarde, não por ela,
que conservou a esse respeito um silêncio total, mas por uma das suas amigas:
Hélène, que engravidara na sequência da nossa relação sexual isolada, fizera
um aborto em Inglaterra para que eu não sofresse o martírio de uma nova
depressão ao receber a notícia, de tal maneira lhe manifestara um horror atroz
por a ter amado com o meu corpo. Quem sabe o que é um sacrifício assim?
Ainda hoje me sinto transtornado e comov ido p o r ele em toda a minha alma
e todo o meu corpo. Havia [portanto] Véra, a sua amiga viva mas antiga, uma
m ulher muito alta, m orena e bonita, de origem russa e aristocrática. Hélène
guardou silêncio quanto ao roubo e a tudo o mais c eu fui recebido como
nunca. Também eu a tomei nos braços com uma ternura infinita, convencido
de que sem ela por lá teria ficado, talvez para toda a v ida.
Hélène e Jacques Martin (que eu começava a conhecer) descobriram para
mim um lugar de repouso: Combloux, que recebia estudantes fatigados ou
convalescentes. A calma e o esplendor da alta m ontanha que eu amava desde
os meus tempos de escuteiro, as atenções do casal Assathiany que dirigia a casa

Díminutivo dt‘ julian Ajuriaguerra (V. d o E. fra n c ês )

135
/ o l l s A A / // r S S A A’

com paixão, tacto c extrema dedicação deixando a cada um a maior liberdade,


a surpresa de lá encontrar um maravilhoso tiuarteto húngaro desconhecido, o
tiuarteto Vegh. então em fase de repouso, rapazes e raparigas da minha idade,
por fim os prazeres dos jogos de toda a espécie, incluindo os jogos de amor,
Distingui muito rapidamente uma rapariga, haixa, de cabelos negros e belo
rosto (não exactamente o meu perfil, mas quase): Simone. (outra \ez este
nome.,,) que me pareceu muitíssimo interessante. Fiz-lhe uma espécie de corte
\ iolentamente provocante, chamava-lhe Léonie. o caso não te\ e continuidade,
mas jogámos um jogo muito íntimo durante as très semanas da minha estadia,
e tornámo-nos amigos para o resto da vida, até ao dia em que, há apenas seis
meses, em Outubro de 1984. .Simone desapareceu da minha \4da com a
seguinte mensagem — «Sabes muito bem utilizar os teus amigos, mas não tens
nenhum respeito por eles.» Hla «acertara em cheio».
Saí de Combloux suficientemente recom posto e fui esperar Hélène que
de\ ia encontrar-se comigo perto de Saint-Rémy-de-Provcnce, numa pousada
dos Albergues de j u r e n t u d e ... Hla continuava sem dinheiro, tinha v indo à
boleia ao meu encontro, e um motorista tentara violá-la (em adolescente, perto
de Chev reuse. quando cuidava do pai moribundo, fora assaltada por ejuatro
jovens vadios cujas intenções não eram transparentes, e conseguira pô-los em
fuga pegando na carteira pela ponta da correia e usando-a como uma arma de
arremesso, mas sempre me falou do assunto com o mesmo terror e eu, iri
í>etto. ao ouvi-la. pensava que, ao contrário dela, não feria sido sequer capaz
de suportar a ideia de me bater. port]ue era no fundo de mim um cobarde).
Mas ela ali estava comigo, amava-me, eu sentia-me infinitamente orgulhoso
dela. ama\a-a, era Primavera nos campos, nos bttsques, nas vinhas, no céu e
no coração. Íamos fazer am or (eu já não tinha medo nenhum , pelo cttntrário!)
no primeiro andar de uma casa dc quinta ali perto, onde nos davam leite, pão,
manteiga e azeitonas. Os caseiros protestavam contra o barulho que fazíamos
durante as nossas expansões amorosas. Deve dizer-se que eu não me continha,
e dei mostras então de uma violência c|ue talvez lembrasse a violência amorosa
do meu pai. .Mas se conto estes pormenores, é porque um dia o .Albergue de
juventude (até então sé) nosso) foi subitamente ocupado po r um grupo de
jovens, rapazes e raparigas, desmazelados, mas cheios de graça e extrema­
mente divertidos. Trav ámos conhecimento, eu preparei até uma extraordinária

l.s6
/ r y i R n \i r / / o I I M P n

caldeirada da qual Hélène passado muito tempo continua\a ainda a talar-me.


Sempre gostei não das receitas de cozinha clássica^. mas dacjuilo a que chamo
a «in\estigação culinária» que oferece possibilidades de inxenção inauditas, ao
pé das quais os pratos clássicos ou m esmo inovadores dos nossos maiores
cozinheiros não passam de meras banalidades. Mas. «como por acaso», eu
escolhera no grupo uma rapariga morena, com o célebre perfil e que parecia
feliz por me ver cortejá-la á beira de uma lagoa sossegada onde lado a lado
nadámos em silêncio (ainda tenho as fotografias). O que era apesar de tudo
incrí\el! Passo meses no inferno da depressão mais terrí\el que conheci.
Hélène cttnsegue salvar-me, reencontro-me com ela na exaltaçat) da Prima\ era
e do amor, fazemos amor sem controlo nem angústia, e afinal hasta que pas­
sem ao meu alcance dois rostos, de Simone (na ausência de Hélène em Com-
bloux) e depois de Suzanne na com panhia de Hélène em ,Saint-Rém\, para que,
diante da própria Hélène, eu comece a assediar abertamente uma rapariga de
passagem, da qual nada sabia, mas que manifestamente excitava cptalquer coisa
de profundo em mini: sem dü\ ida que se tratava daquela rapariga em pessoa,
mas por trás dela h a\ia uma certa imagem de rapariga, e por trás ainda, o
desejo irreprimí\ el (em ambos os casos não consumado) de \ iver com estas
jovens algo que d e \ia faltar-me do lado de Hélène. O què? A situação repetir-
-se-ia ao longo de toda a minha r ida. Descobri muito recentemente que a
intensa excitaçãcj sexual era um dos grandes sintomas da hipomania, p o d endo
seguir-se à depressão. Mas na altura era completamente incapaz de apreender
as suas razões profundas. Naturalmente a minha m anobra amorosa não esca­
pou a Hélène que se contrisiou com isso, mas não me dirigiu a m enor censura,
nem deu mostras da mínima violência com o antes em relação a Angeline. Teria
então eu a apror ação delaC Pelo menos, é evidente que a procurar a.
Viremos depois no Midi, tendo Suzanne em breve partido com os seus
companheiros, meses de verdadeira felicidade, de uma liberdade ler e e exal-
tante. Arranjei maneira de levar Hélène até à aldeia de Pur Umbier. que tinha
razaães para conhecer e amar, uma r ez que a maravilhosa noir a e m ulher do
meu amigo Paul era de lá natural, Que lugar incom parárel. aos pés da santa.
Sainte-V ictoire, maciça tlor de pedra com tonalidades cambiantes e vir as, e em
frente a imensa planície de Flers contornada no horizonte pelo elevado recorte

l.S"’
L O r / ,v ,1 /_ 7 H l S S /; R

de Sainte-Baiimc e ao longe pelas torres da abadia de Saint-Maximin. Descobri­


mos, a pouca distancia da aldeia, um casal de pecjuenos funcionários reforma­
dos que. po r quase nada, aceitaram dar-nos guarida. Ao levantar, de manhã,
depois das nossas noites de amor, extenuados de paixão e de fadiga, descía­
mos para o terraço, ao sol ainda fresco de nascente, e Mme Delpit trazia-nos
o pequeno-alm oço à provençal; café, leite, queijo de cabra, alcachofras cruas,
mel. nata e azeitonas pretas. Que delícia e que alegria na paz do jovem sol de
Maio!
lã n dia, mais tarde, com Hélène à minha espera em casa dos Delpit, apa­
nhei o comboi em Paris e pondo no \agão de carga a minha bicicleta de cor­
rida, desci com ela em Cavaillon, montei-a e, numa espécie de embriaguez
pedalei (corrida muito diferente cia de Bandol!) em direcção à bem-amada, a
quarenta quilômetros de distância. Ela estava à minha espera na estradazinha
de terra batida que conduzia à aldeia e vira-me chegar ainda de longe. Sentia­
-me e.xtenuado mas desta feita não chorava, salvt; talvez de alegria. Que vin­
gança sobre a minha mãe! Transformara-me num homem.
E é verdade que estava orgulhoso da minha transformação. Q uando flé-
lène. sempre na miséria, descobriu, graças a mim, um minúsculo quarto ck
criada no topo de um belo prédio antigo do \âl-de-(jràce. em casa de um geó
grafo, Jean Dresch. conhecido professor da Sorbonne, eu ia a todas as horas do
dia e da noite, sobretudo da noite, visitá-la. e deixav a-a muito cedo, p o r volta
das quatro da madrugada. Com que animação e orgulho fazia então ressoar
sob os meus passos o em pedrado da rue Saint-jaeques deserta, leve no meu
corpo exultante, o m undo inteiro parecia-me belo quando o primeiro sol
vinha acariciar as paredes da Ecole, onde voltava a entrar devagar e onde todos
os alunos dormiam ainda: não tinham nem na vida nem no coração um amor
como o meu! Por nada deste m undo teria trocado fosse o tjue fosse pela
minha sorte, o meu tesouro, o meu amor e a minha alegria incomparáveis.
Deve dizer-se que havia motivos para o meu orgulho. Os meus camaradas
talvez tivessem, tinham por certo, ligações femininas, laboriosamente procura­
das ou facilmente descobertas nas suas relações estudantis (os alunos e alunas
da ÍSormcile frequentavam-se e casavam muitas vezes entre si, não saíam assim
da família, nem da easta. essa casta universitária que eu odiava pelo menos

138
/■ r / r A> o / .1/ f / / o / /; ,U F o

tão fortemente com o Hélène, tine possuía argumentos mais autorizados do que
os meus, porque sempre lhe fora exterior). Eu tinha pelo meu lado o privilégio
incomparável de amar uma m ulher (que me amava) e de uma qualidade muito
diferente! Não era p o r ela ser mais velha, e sensivelmente mais velha tkt que
eu — essa diferença nunca desem penhou qualquer papel entre nós; o im por­
tante era a sua lucidez, a sua coragem, a sua generosidade e a sua experiência,
tão casta e múltipla, o seu conhecim ento do mundo, dos maiores pintores e
escritores do seu tempo, as suas actividades na Resistência, onde chegara a
exercer importantes responsabilidades militares (ela, uma mulher, nesse
tempo: era um h o m em , o próprio Lesèvre o reconhecia). Tivera um papel
heróico excepcional, uma coragem sem falhas e assombrosa para uma judiazi-
nha com um «nariz judeu» identificável a cem passos de distância, com os
cabelos frisados, que soubera evitar as ratoeiras — inclusive nesse comboio de
L\'on para Paris onde foi identificada com o judia, detida por altura de um c o n ­
trolo da Gestapo, num m om ento em tiue tinha consigo material susceptível de
a fazer fuzilar instantaneamente, tendo sido salva apenas pelo seu sangue-frio
e por ter sabido impor-se pela sua audácia a um oficial nazi que acabou a
gaguejar diante dela. Contava essa história como se se tratasse de uma histo­
rieta quakiuer, tão trantiuila a narrá-la com o fora a vivê-la. Em suma, uma
mulher de excepção (pelo m enos foi assim que a senti, com o de resto todos os
seus camaradas da Resistência, Eesèvre e outros alunos da K hâgne de E\on
com t[Liem ela trabalhara e todos os que a conheceram mais tarde durante a
nossa longa vida em comum), maior, infinitamente, do que eu e que me dava.
sem que eu nada tivesse pedido, como sobre aquilo que pensava de mim, a
prodigiosa dádiva de um m undo que eu não conhecia, com que sonhara no
isolamento do meu cativeiro, um m undo de solidariedade e de luta. um
m undo de acção reflectida segundo grandes princípios fraternais, um m undo
de coragem: eu que me sentia tão desvalido e cobarde, recuando diante de
ciualquer perigo físico que atentasse contra a integridade do meu corpo, eu
ejue nunca me batera e ejue nunca seria capaz de me bater, p o r causa daquilo
que pensava ser uma cobardia irremediável; eu de quem ela dizia: «Se não
tivesses ficado prisioneiro, ter-te-ias alistado na Resistência e tinhas sido
com certeza morto, fuzilado com o tantos outros, graças a Deus o cativeiro

139
/, r> l / V A /, / H ( S S li R

gu;ird()Li-tc para mim!» Eu tremia dentro de mim à ideia do perigo mortal a que
escapara, com a certeza de que nunca teria tido nem a força nem a coragem
de enfrentar as provações físicas, mortais, da luta clandestina e armada, eu que
nunca disparara um tiro que fosse, esses tiros das armas de guerra que cm
criança me faziam tanto medo, eu cjue me teria ido logo abaixo diante do mais
pec]ueno perigo, cjue dádiva me oferecia ela e cjue confiança em mim! E e i s
que de súbito, graças a ela, não só me tornava igual a todos os combatentes
que ela conhecera, mas também, de muito longe, infinitamente superior a
todos aciueles p(tbres n o rm a lie n s cuja juventude e cujo saber me haviam
esmagado, ao pé dos quais me sentira tão irreparavelmente velho, tão velho
que toda a juventude — a mim que não tivera juventude — me parecera proi
bida. Sentia-me então jovem, com o nunca nem ninguém — e fiqtici-o sempre
crendo-nic po r exemplo sempre muito mais novo do que o meu analista, con
tudo exactamente meu contem porâneo — e noutro dia ainda, a semana pas
sada, houve essa médica, com trinta anos, sem especial amabilidade. a
perguntar-me a minha data de nascimento; dia 16 de Outubro de 1918 — não
pode ser. quer dizer 38! 38 é o ciue Você quer dizer! Como ela tinha razão, esta
juventude que para sempre devo a Hélène minha bem-amada.
É verdade que a certeza subjectir a desta juventude finalmente descoberta
não se dava sem razões que a pouco e pouco elucidei. Se era e me sentia enfim
tão novo, era porque Elélène era para mim ao mesmo tempo com o uma bo.i
mãe. enfim uma boa mãe, e também um bom pai; mais velha do que eu, con'
outra carga de experiência e de vida. amava-me como uma mãe ao seu filho
o seu filho miraculoso, e ao mesmo tempo com o um pai, um bom pai enfim
uma \ez cjue me iniciava muito simplesmente no m undo real, esse m undo infi­
nito no qual eu nunca pudera entrar (cxcepto uma vez mais po r efracção
excepto no cativeiro), e iniciava-me também, pelo desejo tjue de mim tinha
patético, no meu papel e na m inha \ irilidade de hom em : amava-me com o um.;
mulher ama um hom em ! Fazíamos deveras amor, com o m ulher e homem
quando os meus companheiros andavam ainda em busca da maturidade c
— eu tinha a certeza — se ficavam pelo balbuciar de um amor irrisório que
não saía da família e da École. Prova disso era que eu começara, após um pro
k>ngado tem po de sofrimento, a amar até o cheiro da pele de m ulher dela. qm
antes, com o a pele da minha mãe, não era capaz de tolerar. Transformara-mc

140
F r I r lí o M r / 7 o t / M p o

não só num hom em , mas num OLitro homem, capa/ de amar de%eras. até
mesmo uma mulher, e uma m ulher cujo primeiro cheiro de pele me parecera
obsceno!
Havia alguém, um amigo recente, Jacques .Martin, que partira para a Ale­
m anha com o S'rO e que. não p o r convicção política — gosta\ a dos c o m u ­
nistas — , mas p o r curiosidade intelectual, me compreendia, nos c o m preen­
dia. Tornara-se, ele um homossexual doloroso mas caloroso na distancia da
sua esquizofrenia latente, um amigo incomparável. Podia perguntar-lhe tudo.
ao contrário do tjuc se passava com os meus colegas da Hcole. a quem tinha
vergonha de recelar as minhas ignorâncias (eu pensa\a não saber realmente
nada, nunca soubera nada, ou esquecera tudo o que aprendera) e ele respon­
dia-me com o o verdadeiro irmão cjue não tive me teria respondido. Os seus
pais tinham-no abandonado deveras à sua miséria, o pai. um farmacêutico
aterrador que nunca abriu a boca diante dele, a mãe morta havia muito e de
quem ele herdara algum dinheiro. Vivia nem sei bem como, desse dinheiro.
Michel Foucault gostava dele tanto com o eu. Como eu, ajudou-o muitas vezes
com donativos monetários. Mas chegou um temptr em que, sem recursos, sem
esperança de os vir um dia a poder ter (ele tinha uma irmã distante de quem
gostava muito, mas cjue nada se preocupava com ele, farmacêutica também,
segundo julgo, em Melun), acabou, num dia de Verão de 1964, por se suicidar,
na solidão de um sinistro mês de 7\gosto, num miserável quarto do x\ i bairro
arrendado por uma m ulher de idade. Eu estava na altura em Itália, voltarei a
falar disso, precipitado no deslumbramento de um novo amor. e durante muito
tem po recriminei-me com uma vergonha indelével p o r lhe ter faltado, po r não
ter sabido ajudá-lo a tem po com o meu dinheiro, no m om ento decisivo, sim­
plesmente a sobreviver. Devo dizer que não tinha muito dinheiro, que o gas­
tava prioritariamente com Hélène e continuava com a minha obsessão pelas
reserras que me paralisava nos meus donativos. .Mas tinha dado muito
dinheiro a Jacc]ues. Tudo o cjue pude fazer, quando a irmã dele me perguntou
se emprestara dinheiro a Jacciues (sim, cerca de três mil francos do tempo.

' Scrx icc de Traxail O b lig ato irc íS erv iç o d e rra b a lb o O b rig ató rit)) ao abrigf) d o qual irabalba-
dore.s í r a n c c s e s e r a m d e p o r t a d o s p ara a .Alemanha d u r a n t e a O c u p a ç ã o , (.V. d o 70

141
/, o I / V ,4 /, 7 // r s s i: K

mais do que Foucault), foi responder-lhe; não. nada. Mas que resposta insign-
ficante, quando talvez eu o pudesse ter salvado! Em todo o caso, tratou-se (.í(
único dinheiro que en tã o nunca lamentei ter gasto sem retribuição. Em tod<
o caso. com jacques Martin, o suicídio entrara na minha vida, na nossa \ id.i
sem remédio nem retorno. Elavia, infelizmente, de me lembrar disso.
Jacques Martin não me ajudava, não nos ajudava apenas com a sua afeicã>
intransigente e confiante. Ajudou-me também a descobrir alguém do ofícii
capaz de me socorrer com a sua «ciência». Pode parecer singular hoje, mas ui
tempo, para os estudantes desprovidos de meios e sem informações que ént
mos, se já tínhamos ouvido falar de psicanálise, não conhecíamos nenhum psi
canalista a ciuem nos dirigir nem tínhamos maneira de conhecer. Ora JacqiR '
soube um dia, por uma amiga com um que tentara rnatar-se várias vezes, (maí^
um suicídio, mas falhado) a existência de um hom em , terapeuta que fazia atta
Uses «sob narcose», um bom hom em simpático, acolhedor e um pouco r ú stia
com a sua barriga saliente, que com eçou a tratar de Martin, tendo eu seguidí'
o seu exemplo. Durante doze anos, repito, doze anos, ele «tratou-me», tiucr
dizer, fez-me na realidade uma psicoterapia de apoio. Tinha um grande presti
gio aos nossos olhos (acabou p o r tratar toda a família, a minha irmã, a minha
mãe c muitos outros amigos chegados» porque mantinha, segundo dizia, rela­
ções pessoais, que foram sempre um tanto misteriosas, com médicos soviéti-
ct)s que lhe enviavam ampolas de «soro de Bogomctlcv» que fariam maravilha-'
«em quase todos os casos» e permitiram, ao que parece, à minha irmã, que
morria desse desejo, ter um filht) do hom em com quem casara, um jovem pari­
siense do povo, de pés bem assentes na terra, falando um calão transbordante.
com uma liberdade de linguagem sem dtávida excessiva mas de uma exemplar
honestidade e franqueza «populares», e ejue o meu pai, bem entendido, nunca
põde nem ver. Eu amava uma judia, a minha irmã casava com um hom em do
povo que ele achava «ordinário» ou demasiado simples: o desejo do meu pai
batia em retirada. O que ele b e iT i nos fez sentir ao recusar-se a receber Elélène
e Yves. Em resposta, ó natureza! só me resolvi a casar com Elélène u m ano
depois d a m orte do m eu p a i (magra consolação póstum a para ele) e a minha
irmã acabou p o r se divorciar, mas continuando a usar o nom e do ex-marido,
\Ves Boddaert, não querendo também ela chamar-se Althusser e, embora

142

W
o /' r 7 r K o \i r i r o l I: M i>

Icgalmente separada dele, residindíj no Midi, depois de numerosas alterações


psíquicas em c|ue a ajudei o m elhor que pude, quer dizer, com a minha dedica-
çã(j e a minha ignorância, a vinte c]uilómetros de distância, e visitamo-nos e
telefonamo-nos constantemente. Ela te\e. pois, graças a esse médico(?), um
filho cham ado François, tpie c a sua razão de viver, e ejue a ama deveras, mas
de longe (de Argenteuil, onde a sua competência e a sua seriedade lhe valeram
um lugar de secretário na m a irle local).
Se eu estava deslumbrado pelo am or de Hélène e pek) privilégio m iracu­
loso de a conhecer, de a amar e de a ter na minha vida. tentava corresponder-
-Ihe à minha maneira, intensamente e. se o posso dizer, obla tiva m en te. como
fiz.era com a minha mãe. Para mim. a minha mãe era e não podia deixar de ser
uma mártir, a mártir do meu pai, uma chaga aberta mas \ iva. Já disse como
tomara constantemente o partido dela, assumindo declaradamente o risco de
enfrentar o meu pai e os seus desaparecimentos. Dir-se-á que o risco era imagi­
nário, uma \ez que as minhas cóleras contra o meu pai nunca desembocar am,
como as do Lemaítre filho na mata do Bois de Boulogne, em violências da
minha parte, e uma vez que eu me limitava a fazer pouco dele, embora sem tré­
guas e muito asperamente, a coberto de c ontenções familiares tácitas, nunca
sendo de resto eu a sair porta tora (como no cativeiro, também nunca sendo
de resto eu a sair porta fora (como no cativeiro, também nunca encarei a cora­
gem de deixar a minha família, de me evadir do seu círculo infernal, com o o
fez a minha amiga mais querida, pois isso seria abandonar a minha mãe ao seu
próprio abandono aterrador). Era ele quem saía, e de que maneira! Até ciue
\'oltasse a sua saída mergulhava-nos, em todo o caso mergulhava-me a mim. na
angústia mais intolerável. Foi por isso, com o que em socorro de uma verda­
deira mártir, que nunca deixei de voar ou tiuerer voar em socorro da minha
mãe. A lavagem da louça, em particular, que eu considerar a para ela (mas p o r­
quê?) o maior dos suplícios, precipitava-me para a fazer em seu lugar, e aliás,
estranhamente, mas a coisa percebe-se. adquiri po r essa tarefa uma espécie de
gosto intenso e perverso. Mesmo o varrer da casa, o fazer das camas, o cozi­
nhar, que tentava poupar-lhe, e o põr e levantar da mesa. eram coisas que eu
fazia sozinho, diante dos olhos de todos, como uma acusação em acto endere­
çada á inactir idade insolente do meu pai — a minha irmã estar a-se absolutamente

143
j. o i / V 1 / / // r s s /: A>

nas tintas — , e toi assim que nie transformei com prazer num \erdadeiro
hom enzinho de interior, uma espécie de rapariga esguia e pálida (a minha ima­
gem encobridora no parque). Sentia-me de tal maneira assim nesse tempo que
tle\ ia efecti\ amcnte alguma coisa do lado da \ irilidade. Não era um
rapaz, ou pelo m enos não era um hom em ; uma mulher de interior. O mesmo
se passou em relação a Hélène, mas com tiue diferença!
ã inha-a conhecido no fundo do abismo, na miséria material mais sinistra.
«Sinistra»; era uma palav ra que lhe \ inha sem parar à boca, e que lhe continua­
ria a ser familiar até à morte. F uma palavra que ainda me faz estremecer
quando a ouço com uma insistência obsessiva na boca de uma outra amiga.
Sim, ela v ivia para si própria uma existência «sinistra». De seu, perdera tudo,
v)s amigos próxim os e distantes, assassinados durante ;i Guerra, Renoir o infiel,
e Hénaff, e o padre Larue, o seu único amor antes de mim. Perdera por fim
todo o contacto com o Partido. Quase não tinha alojamento, a não ser os
«sinistros» cubículos de criada, com o seu ambiente agressivo e duv idoso. .Não
tinha trabalho, e por isso também não tinha rendimentos, e viv ia de expedien­
tes, como vender alguns dos seus liv ros mais preciosos t)u bater ã máquina,
quase ao preço da chuva, teses de alunos da Ecole (a seguir ã minha) que eu
não sem vergonha lhe arranjava. F eu, pela minha parte, não tentava ajudá-la?
Claro, e de toda a minha alma. mas de começo todo o dinheiro que tinha eram
os Vinte francos da «bolsa» que a Fcole nos atribuía antes de conseguirmos por
meio da acção ilegal do sindicato que tínhamos fundado. Maurice Caveing e
eu, obtermos para nós e todas as FXS um regime de vencimentos. F não me
atrev ia a pedir um tostão ao meu pai, fazia excessivamente ejuestão de lhe
esconder as minhas «necessidades» e o tipo de mulher, judia, cjue frequentava
e amava, e que lhe pareceria po r certo áv ida de dinheiro; não são assim todas
as judias? Além disso, já sublinhei o bastante com o me (tbcecava o m edo de vir
a ter falta de dinheiro, <ju seja, de reservas, para que o leitor imagine como,
apesar das minhas intenções mais generosas, também eu nãt) me cansava de
contar os tostões a meu modo. Fembro-me ainda do dia em que, para FIélène
não ter demasiado frio no seu quarto de criada da rue du Val-de-Gràce, lhe

i;\S A1) r \ iuuira d c íicolc \ o r m a l c S u p cricu rc. ( \ . d<> 7. ).

14 4
/■ í I I A’ O / XI I I I O / l !/ /' D

comprei um fogãozinho a lenha de chapa metálica, frágil ele mais para não ser
perigoso e que de facto pouco aquecia — o cúmulo da dedicacáo e das d e s ­
pesas e da insignificância. Sim, não tinha meios ou transtorma\ a-mc em al­
guém sem meios para engrandecer tanto quanto possível a largueza das minhas
dádiras.
Tahez fosse aejui que tudo se jogava, ou pelo menos foi ae]ui t|ue tudo,
mais tarde, me pareceu jt)gar-se. E eis por que razão.
lãisse cjue me sentia ineapaz de amar, e conto insensível aos outro", ,to seu
amor, apesar de este não me ser poupatk), pelo menos por parte das m ulheres

e até mesmo por parte dos meus amigos homens, O que assim me ine.ipacitara
fora certamente o am or extremamente impessctal da minha mãe, uma \ ez c]ue
se não dirigia a mim, mas por trás de mim a um morto, inctipacitara me de
existir ao mesmo tem po para mim c para o outro, em particular uma outra.
Sentia-me com o que impotente, e tome-se esta palavra no seu sentido p l e n o ;
impotente para amar, sem dúvida, mas também impotente antes do mais etn
mim prétprio e acimti de tudt) no meu prétprio corpo. Era comt) se me tivessem
tirado aciuilo que teria podido constituir a minha integridade física e psíquica.
Pode-se justificadamente falar aqui de amputação, e por conseguinte de castra­
ção; quando nos tiram uma parte de né)s, que para sempre passará a faltar ã
nossa integridade pessoal.
E uma vez que estou neste campo, gostaria de regressar a esse fantasma
que \ivi com tamanha intensidade ao sair do cativeiro, qitando fui repatriado
para casa dos meus pais em Marroetts: a certeza de ter contraído uma doença
sexual, e portanto de nunca mais poder dispor deneras do meu sexo de
hom em . Na mesma «linha» de associações e de lembranças (e desta feita trata­
-se ainda de uma recordação muito precisa ciue conservei) lembro-me de ter
ficadt) muito angustiado com um fenôm eno ao que parece corrente e que tem
aliás um nom e em latim, a p h im o sis (nestas matérias o latim permite que se
digam basttmtes coisas impudicas,..), e cpie literalmente me envenenou a vida
durante anos em Argel e em Marselha,- passava o meu tempo a puxar pela pele
do meu sext) e não conseguia «descascar» a glande. Tinha então aquilo a ciue
se chamam «perdas brancas», que saíam de baixo do meu prepúcio e me
faziam pensar, imediata e interminav cimente, que sofria de uma grave afecção

145
/. o r 1 s A I. I H I' ^

üo sexo toruando-m e incapaz, sem estar doente, sem adoecer por causa disso,
de um a erecção completa e consum ada durante a evaculação. Puxava intermi-
navelmente a pele dorida, mas sem qualquer resultado. l ’m dia a m inha mae
alertou o m eu pai, que se fechou comigo na casa de banho. O m eu pai tentou
durante uma boa hora, no escuro da casa de banho (sem luz, por reserva ou
m edo de què?), puxar para trás a pele do meu prepúcio: cm vão — e naturah
mente sem uma palavra! h isto durou anos, durante os quais estive convencido
de que decididamente, sob este aspecto, não era completamentc normal
Como se faltasse ao meu sexo alguma coisa para ser um sexo de hom em , como
se de facto eu não dispusesse deveras de um sexo de hom em , com o se disso
me tivessem (quem?) privado. A minha mãe, claro, que, como os leitores se
lembrarão, litcralmente me «deitara a mão».
Por cjue é que insisto neste exemplo? Porque é simbólico, e para lá do meu
caso preciso, nos diz respeito a todos. O que é então p o d e r amar? É dispor da
integridade de si próprio, da «potência», não para o prazer ou por um excesso
de narcisismo mas, muito pelo contrário, para se ser capaz de uma dádiva, sem
ausência, resto, nem cjuebra, ou defeito. O c]ue é então ser amado, senão ser-se
capaz de ser aceite e reconhecido com o livre nas próprias dádivas, e de que
estas «passem», descubram a sua cida e caminho de dádivas, para se receber
airatés delas a contrapartida de uma outra d á d ita desejada do fundo da alma:
precisamente ser amado, trocar a livre dádiva de amor-' Mas para se ser o livre
«sujeito» c «objecto» desta troca, é necessário, como dizer, poder encetá-la, é
necessário começar por dar sem restrições se se cpúscr em troca (uma troca
que ê exactamente o contrário de um cálculo contabilístico de utilidade) rece­
ber a mesma dádiva, ou mais ainda do ejue aquilo que se deu. Para isso é pre­
ciso bem entendido e segundo toda a evidência não se ser limitado na liber­
dade do próprio ser que se é, c preciso não se estar danificado na integridade
do próprio corpo e da própria alma, é preciso, digamo-lo pois, não ser «cas­
trado» mas dispor da potência de ser (pensemos em Spinoza) sem amputação
de uma só das suas partes, sem o destino de ter que o com pensar ilusoria-
mente ou no \azio.
Ora eu fora castrado pela minha mãe, dez vezes, vinte vezes, na mesma
compulsão que ela vivia de tentar em vão controlar o seu terror de ser ela

146
h' r T I K o 1/ r / / o I /; 1/ i> o

própria castrada, roubada (amputada da soma dos seus bens ou das suas eco­
nomias) e violada (na dilaceração do seu próprio corptt). Sim, fui castrado por
ela, sobretudo c(uando ela pretendera fazer-me dom do meu próprio sexo,
gesto atroz que eu recebera com o a imagem da minha violação por ela, do
roubo e da violação do meu próprio sexo ao qual ela de facto «deitara a mão»
contra a minha vontade mais profunda, contra o meu desejo de ter um sexo
m eu, meu e de mais ninguém, sobretudo, ó suprema obscenidade, meu e não
dela — e po r isso sentia-me incapaz de amar porque mo tinham cierassculo.
porque fora d a n ific a d o no mais intenso da minha vida. Como poder, ou
sequer pretender, amar quando devassaram o mais íntimo de nós próprios, o
nosso desejo mais profundo, a fonte da nossa vida? Era assim que eu me sentia
e sempre me senti diante de Hélène atrarés da agressão íntima da minha mãe:
como um hom em (um hom em ? é dizer muito) incapaz do m enor dom \ erda-
deiro de am or autentico por ela, e através dela para com quem ejuer cjue fosse,
fechado em mim mesmo e sobre aquilo a que chamei a minha insensibilidade.
A minha insensibilidade? No fundo a da minha mãe que me pasmou quando,
de Marrocos, a pretexto de amibas nos intestinos ou de não sei já o quê. se
recusou a ir assistir a sua própria mãe m oribunda — e fui eu quem foi ao Mor-
van recolhê-la a seguir ao seu enfarte no frio matinal da igreja. A minha insen­
sibilidade? No fundo a da m inha mãe quando, por meio apenas do seu silên­
cio, me afastou de Simone para me precipitar no furor da minha corrida de
bicicleta até La Ciotat. A minha insensibilidade? No fundo a da m inha mãe
ejuando a vi, friamente, sem a sombra de uma emoção, depor um beijo frio na
testa do meu pai morto, a que se seguiu um simples sinal da cruz. de joelhos
e zás. porta fora. A minha insensibilidade? No fundo a da minha mãe quando
o meu amigo Paul e Many foram, uma vez que eram os únicos que a c o n h e ­
ciam, visitá-la ao seu pavilhão solitário de Viroflay para lhe anunciarem, sabe
Deus com c]ue precauções infinitas, que Hélène morrera e que eu a matara —
e então ela levou-os a visitar o jardim, sem dizer uma palavra como se nada
tivesse acontecido, com o espírito manifestamente ausente, bem de mais sei eu
onde. A minha insensibilidade? No fundo a da minha mãe quando, hoje li\re
de todas as suas fobias desde cjue ficou só e recusa o nom e de Mme Althusser
para guardar apenas o seu nom e de solteira: Berger, e se atira, desta feita sem

14'
i o r ! s A / / H I S S /: A’

m edo das amibas ou outros problemas intestinais aos magníficos chocolates


tjue eu lhe le\o! Meu Deus. estarei a ser injusto para com ela? Para com essa
m ulher recta nos seus princípios, transparente na sua \ ida, que nunca exerceu
uma violência sobre quem quer que fosse, calorosa (para com os seus raros
amigos), que manifestamente nos amou o m elhor que pòde, e imaginou sozi­
nha para nós os «bons» meios (música, concertos, teatro clássico. Escuteiros de
França) de nos garantir uma boa educação. A infeliz fez o que pòde, nada mais,
nada menos, pelo que julgou ser a sua felicidade e a nossa, mas na realidade
para minha desgraça, pensando que fazia bem, quer dizer, seguindo o que lhe
haviam ensinado os calmos terrores da sua própria mãe na solidão das flores­
tas selvagens da Argélia, e sob a inciuietação nervosa do seu pai.
Mas nada tem de surpreendente eu ter retomado por minha conta o m e d o ­
nho sentido dessa insensibilidade, e dessa impotência para amar de\ eras, para
referir tudo isso a Hélène, essa outra infeliz, mártir com o ela aos meus olhos,
e chaga aberta. Tal foi o meu destino, e o nosso: realizar a tal ponto os desejos
da minha mãe que nunca (até atiui) pude «recompor-me» para dar a Hélène
mais do que a caricatura horrível de um dom de artifício herdado da minha
mãe à laia de am or po r ela. É \erd a d e que amei Hélène com toda a minha
alma, com todo o meu orgulho exaltante, com todo esse dom total de mim que
lhe cx)nsagrei sem reser\as, mas com o fazer para se sair de vez da solidão
fechada à qual, sem dúvida com lapsos, reservas e pensamentos inconfessados,
eu estava então votado, com o conseguir responder à angústia dela quando ela
me repetia na cama e noutros sítios; diz-me qualquer coisa! quer dizer, dâ-m c
tudo o c|ue é preciso para eu sair enfim da terrível angústia de estar só e ser
a megera medonha, de o ser para sempre, sem am or possível à medida do meu
amor?
Não há ser no m undo que possa responder ao pedido da angústia: diz­
-me qualquer coisa! quando estas palavras querem simplesmente dizer dâ-m e
tudo, dá-me com c]ue existir enfim!, com que colmatar esta angústia de não
existir deveras no teu olhar c na tua vida. de não ser mais do que uma simples
(teasião transitétria, de não bastar para constituir a tua integridade danificada
em am or para sempre! E por trás deste apelo patético, eu sabia demasiado
bem. e a própria Elélène sabia demasiado bem, o que se dissimulava: o terror

148
o F r r r r M / / / o 1 /: M l> O

tantasmático dc Hélcne de não ser mais do que uma mulher má. uma mãe
m edonha, uma megera a fazer mal e mais mal, e acima dc tudo a quem a
amasse ou quisesse amar. À vontade impotente de amar não respondia então
mais do ejue a recusa (desejo) feroz, obstinada e violenta de ser amada uma \ ez
que o não merecia, uma vt'z ejue no fundo não passa\a de um animalzinho
pavoroso cheio de garras e de sangue, de espinhos e de furor. Matéria bastante
para fornecer todas as aparências tão fáceis de aceitar (tão fáceis, sim!) de um
casal sado-masoquista incapaz de quebrar o círculo do seu acorrentamento
dramático no furor, no ódio e na dilaceração mútuos.
Daqui as «atrozes cenas» domésticas entre nós, que horrorizar am ou revol­
tavam (conforme os casos) os nossos amigos, quando delas eram testemunhas
impotentes. Como o meu pai, Hélène saía. com o rosto subitamente transfor­
mado cm m árm ore ou papel, e mal a porta batia eu corria atrás dela, numa
angústia lancinante e atroz de ser abandonado por ela às vezes durante dias
inteiros e às vezes sem que nada tir esse feito para isso. Assim, que fizera eu em
Portugal, onde a levei de avião a seguir à Revolução dtts Cravos? Kla teve uma
crise de histeria no restaurante para que os nossos amigos desse país nos
tinham convidado porque as ruas eram d em a sia d o íngrem es em Lisboa, e tive
de a conduzir ao refúgio do alto castelo para aí esperar que o seu hum or acal­
masse. E que fizera eu em Granada quando ela recusou, não sei porquê, o auxí­
lio de um amigo que nos propunha uma visita ao Alcazar: não precisávamos
dele para nada! c foi uma cena terrível. Que fizera eu na Grécia quando ela
recusou — mas já de antemão recusara — a httspitalidade tradicional de uma
prodigiosa refeição peqtieno-burguesa de boas vindas em família. Ou ainda...
Sem dúvida, nestes casos, eu nada tinha feito de facto, mas infelizmente sei
demasiado bem que o mais das \ ezes fui eu a fazer dela um joguete, pror ocan-
do-lhe as reacções, perseguindo-a até ao fundo da sua intimidade para \ e r se
ela, sim ou não, concordava comigo.
Foi o que se passou com as minhas «histórias de mulheres». Ao lado dela,
experimentei sempre a necessidade de constituir para meu us(j uma «reserva
de mulheres» e de solicitar um a aprovação explícita de Hélène para a isso me
dedicar. É certo tjue eu «precisava» dessas mulheres com o de outros tantos
suplementos eróticos para satisfazer aquilo cjue a minha pobre Hélène não

149
/. o r / s A l I H I s ,s F n

não podia dar-me, um corpo jo\em e sem sofrimento e esse terno perfil que
eu perseguia em sonhos e que «faltavam» ao meu desejo danificado, prova de
que podia também, ao lado de um pai-mãe, desejar o corpo de uma mulher
simplesmente desejável. Mas nunca consegui em preender coisa nenhum a sem
a sua aprovação explícita, excepto muito recentemente.
Descobria nisto inconsciente mas soberanamente a solução de «síntese».
Apaixt)nava-me por mulheres segundo o meu gosto, mas suficientemente dis­
tantes de mim para evitar o pior: \ i \ e n d o ou na Suíça (Claire) ou em Itália
(Franca), portanto a uma distância inconscientemente calculada para só as
ver com intermiténcias (ao fim de très dias eu ficava regularmente, quer dizer,
inconscientemente cansado e enjoado apesar de Claire e Franca terem sido
mulheres excepcionalíssimas pela sua beleza e pela sua alma). Mas esta precau­
ção geográfica não me dispensar a das minhas cerimônias de apror ação e de
protecção. Qtianck) conheci Franca, cm Agosto de 19“-t. con\ idei de imediato
Hélène a conhecè-la. no dia 15 de Agosto. Fntenderam-se as duas muito bem
mas seguiram-se ao fim de alguns meses episódios dolorosos em que fiquei
dividido entre Hélène e Franca, não sei quantos telegramas e chamadas telefô­
nicas entre Panaréa (ilha siciliana) e Paris, entre Bertinori e Paris, entre Vfcneza
e Paris, sem outro resultado que não fosse a multiplicação das minhas provo­
cações sinuosas bem como o agravamento da situação.
Mas (j cúmulo chegou com as minhas «amigas» quando elas levantaram, de
m odo indirecto ou não, a questão de eu viver com elas e de ter um filho. Com
Claire, o caso deu-se no talude de uma estrada da floresta de Rambouillet: ela
falou-me do peqtieno «Julien» que tanto tiueríamos ter e propôs-me — p(tis
tinha «idéias a meu respeito» — partilhar a sua vida.- eu fiquei logo doente,
deprimido. Com Franca, essa magnífica italiana de trinta e seis anos, cjuc. na
sua idade, desesjserara de conseguir voltar a amar, as coisas foram piores. Um
dia ela chegou a Paris sob o pretexto de assistir às aulas de Lévi-Strauss, que
traduzira para a sua língua, e preveniu-me pelo telefone de que chegara e de
que eu podia fazer dela o que bem quisesse. Chegou a entrar em minha casa,
pois mal chegara a ver-me, galgando a janela. As coisas eram demasiado evi­
dentes. Adoeci de imediato, intensamente deprimido. Também ela tivera
«idéias» a meu respeito.

150

w
h l T r R O M I I I O I i: lí !> o

As minhas depressões sucessivas não foram, é \erdacle, todas da mesma


natureza. Mas foram estranhas depressões, que a hospitalizarão basta\a para
apaziguar quase instantaneamente como se a protecção maternal do hospital,
o isolamento e a «omnipotência» da depressão bastassem para saciar tanto o
meu desejo de não ser abandonado contra a minha to n ta d e como o meu
desejo de ser protegido de tudo. Depressões felizes, se assim posso dizer, que
me punham ao abrigo de todo o exterior e me lança\am na segurança infinita
de não ter que me bater, nem sequer contra o meu próprio desejo. () meu ana­
lista em vão me repetia que eram «falsas depressões» neuróticas e atípicas, não
havia nada a fazer. E como eram em geral muito breves (quinze dias a très
semanas) e com o apesar da sua expectativa terrível (mais dura e prolongada do
que a própria depressão), paravam com o tjue por milagre com a hospitaliza­
ção, como o meu trabalho e os meus projectos mal chegavam a ser afectados,
como saía da crise muitas vezes num estado hipomaníaco que me da\ a ttídas
as satisfações da extrema facilidade, de resolução aparente de todas as dificul­
dades, as minhas e as dos outros, no fundo não me sentia demasiado atingido,
trabalhava mil vezes mais e recuperava mil \ezes o pseudo-atraso em que
incorrera. Eram coisas que simplesmente se inscreviam no curso algo tum ul­
tuoso da minha vida.
O meu analista, que então visitava regularmente, esclareceu-me sobre um
aspecto das minhas depressões do qual evidentemente não desconfiara apenas
pelos meus meios. Disse-me: a depressão é a omnipotência. Eormalmente. tra­
ta-se de um ponto incontestável: retiramo-nos do mundo, «refugiamo-nos» na
doença, longe de todas as preocupações actuais e activas, na protecção de um
quarto branco de clínica, onde enfermeiras e um médico atento nos dispensam
cuidados maternais (a regressão muito profunda de qualquer depressão faz de
nós com o que uma criancinha, mas não abandonada, pelo contrário somos
nós que nos abandonam os à certeza tranquila e profunda de não voltarmos a
ser abandonados) sob o fetichismo cômico de drogas que, de facto, com o é
sabido, se limitam a a b re via r o processo de saída da depressão, que causam
sono e sossego, e obtemos sem nada fazer p or isso, e sem nada termos t]ue for­
necer em troca, o m undo inteiro às nossas ordens e segundo os nossos dese­
jos: médicos, enfermeiras, aquelas e aqueles que gostam de nós e nos vêm ver.

151
/. o I l s A ! 1 U l V s /; R

Sem nada ter já a recear do nnindo exterior, exercemo.s finalmente a om nipo


tència de uma criança finalmente amada por boa.s mães. bocle-se imagina!
com o esta explicação teórica me satisfazia: eu tjue, na vida, me sentia impo
tente, sem existência real (a não ser a que alcançava atrac és dos meus artificie»
e imposturas) descobria enfim dispor de uma potência tal com o nunca
sonhara. Daqui a pensar que só adoecia e só desejava a hospitalização em tais
casos (chegava a suplicar literalmente que ma concedessem, a passagem é
fácil, e veridica. Mas quando poderia chegar a desfrutar da mesma omnipotên^
cia na \ ida real? A ocasião para tanto era-me oferecida pelo período de excitti
ção hipomaní:tca que se seguia (nem sempre, mas cada vez mais) após a fase
depressica. Muito rapidamente passaca da depressão ã hipomania, que assumia
então o aspecto de uma autêntica mania extremamente violcnt;i. Sentia-me
depois efectivamente todo-poderoso, e perante tudo, o m undo exterior, os
meus amigos, os meus projectos, os meus problemas e os dos outros. Tudo me
parecia e era para mim de uma facilidade inacreditável, pairae a acima de todas
as dificuldades, minhas e dos outros, punha-me, não sem sucesso aparente, a
sokicionar, sem c|uc mo ti\essem pedido, os problemas alheios. Lança\a-me
em iniciaticas que os outros julg;ivam extremamente perigosas (para mim e
para eles), que os faziam tremer, mas passa\a por cima de todas as objecções
deles, não me preocupava com nada disso, absolutamente co n \e n c id o c[ue
estava de ser eu o senhor absoluto, o senhor absoluto do jogo. de todos os
jogos, e por que não, uma \ ez pelo menos, quase ã escala mundial... Lembro
-me de uma frase terrível que proferi po r volta de Ibó"^, e que infelizmente não
pude estiuecer: «Lstamos prestes a tornar-nos hegemônicos...» Quakjuer pes­
soa com preenderá c|ue havia nesta prodigiosa facilidade e pretensão uma
enorm e dose de agressividade, que se libertava nestas ocasiões, ou antes, que
se descomprimia no meio da excitação, com o um sintoma do meu fantasma de
impotência e por conseguinte de depressão, porejue tudo isto não passava de
uma defesa v irada contra a minha tendência para a depressão e contra os fan­
tasmas de impotência que a alimentavam. A tal ponto é verdade que a ambiva­
lência de que, depois de Spinoza, Freud tão bem falou, é activa em todos t)s
casos e era nitidíssima no meu. O meu m edo de ser totalmente impotente

152
o /■ r / I R O / .1/ r / / o / / 1/ /> o

c o meu desejo de ser omnipotcnte, a minha megalomania não eram senão os


dois aspectos de uma mesma unidade: a do desejo de dispor daqtiilo t|ue n/e
fa lta v a p a ra ser u m hom em pleno e livre, e tjue tinha o terror de \ e r faltar­
-me. O mesmo fantasma com duas faces (a sua ambicalènciai perseguia-me
assim, alternadamente, na om nipotència irreal da depres.são e na omnipoièn-
cia megalomaníaca cia mania.
De resto, se ohserxar hem os «temas» conscientes das minhas depressões
(passei po r uma boa cjuinzcna cicias, desde Ih-t" e até 1980, sempre breves,
excepto a primeira e a última, e sem qualquer conseqtiència «profissional»,
muito pelo contrário, e agradeço às direcções da Hcole que, tendo co m p reen ­
dido a situação, nunca me puseram de baixa uma vez que a seguir a cada
depressão eu fazia pelo menos vinte vezes o meu traballio). posso distribuí-las
por très rubricas: o m edo de ser abtmclonado (por fiélène, pelo meu tmalista
ou por este ou aquele dos meus amigos oti amigas), o medo de ser exposto a
uma exigência de am or que sentia com o a ametiça de «me deitarem a mão», ou
mais amplamente, e voltarei a este ponto, o m edo de que tivessem «idéias a
meu respeito», evidentemente idéias diferentes das minlias: e por fim o medo
de ser exposto publicamente na minha nudez: a de um liomem nulo, sem
ttutra existência além da dos seus artifícios e imposturas, e tochi a gente clesco-
briria então à luz do dia e para minha maior confusão, a minlia condenação
definitiva.
Penso que se terá tornado compreensível por que ê que o m edo de ser
tibandonado podia descncadetir em mim uma angústia cie molde a predpitar-
-me na depressão. ,Vo m edo de ser abandonado pela minha mãe somav a-se etn
mim o velho m edo das saídas de casa do meu pai durante a noite, reactivado
pelas saídas v iolentas de flêiène. que eu não eni ctipaz de suporttir: eram para
mim outras tantas ameaças de morte (e sabe-se t|ue relação activa sempre ali­
mentei com a m(.)rte). Psta «sobredetermintição» deixav a-me em pleno terror e
sem o mínimo recurso, já só podia ab:mdonar-me ao meu «destino» e cair
naquilo t)ue desejava, consumar ;i minha verdade, deixar de existir, desapare­
cer do mundo, em suma, fazer com que me hospitalizassem, mas com o pensa­
mento reservado e perverso dc me refugiar na doença onde ninguém mais me
ameaçaria de abandono, uma vez que eu estav a oficial e ptiblicamente doente.

15.S
i. o ( / ,s .1 A / H l S S E A'

c exigia e obtinha assim de maneira tirânica a assistência de todos. Repeti este


comportamento, e de m odo extremamente intenso, nos últimos episódios da
minha depressão seriíssima e prolongada, em Sainte-Anne e sobretudo em
Sois\. Voltarei ao assunto.

154
XII

E xperimentava também uma extrema repulsa e angústia perante a ideia (e


perante as situações que mo faziam pensar) de que me queriam «deitar a
mão». Temia antes do mais as iniciativas das mulheres. Associação mais do que
evidentemente na linha dos traumatismos e ataques, ia a dizer atentados da
m inha mãe, que não se coibira em relação a mim dessa agressão castradora. Se
uma m ulher me propusesse viver comigo (o que implicava, por conseguinte,
que eu fosse abandonado po r Hélène que nunca — no meu espírito — supor­
taria tal coisa), eu sentia-me aterrorizado e mergulhava na depressão. É algo
que poderá parecer surpreendente até m esmo a r ários dos meus amigos, mas
n u n c a tive a im pressão de que Hélène tivesse p reten d id o «deitar-m e a mão»,
ou com portar-se com igo com o u m a m ã e castradora -, em contrapartida, sem­
pre experimentei essa impressão quando amigas «laterais» ultrapassa\am os
limites que eu lhes impusera (valendo-se das circunstâncias ou escolhendo-as
insconcientemente), ameaçando-me assim (vejo-o hoje com toda a clareza) de
me privar de Hélène, ou seja. de provocarem o seu abandono. Para me defen­
der contra este risco insensato mas fatal, não recuei diante de nada. Evidente­
mente, recusava com ferocidade (por meio da demonstração a que procedia
caindo acto contínuo na doença), qualquer oferta do gênero, que sentia como
uma «manipulação insuportável», Preventi\amente, chegava a descobrir nesses
casos (para falar verdade sempre, mas sob formas diversas, implícitas ou explíci­
tas) acções e palavras insensatas. Assim, a uma jovem que. por carta, me decla­
rou um amor havia muito visível, respondí um dia por meu tu r n o : «Detesto ser

155
I. o ( I s A L 7 // l S S /, U

amado!», o que era eompletamente falso, mas em contrapartida significava:


detesto que tomem a in ic ia tiv a de me amarem, de me «deitarem a mão», por
tiuc não adntito que assumam esse gênero de iniciativa cujo pricilégio é pro
priedadc minha e de mais ninguém, de mais nenhum ou nenhuma, neste
niLindo; falo bem entendido do hom em , do indivíduo ciue eu era e não do filó­
sofo — em função desse desejo insensato de amar de cpie me sentia e experi­
m entara incapaz.
I ma variante mais geral desta recusa da iniciativa de qualquer mulher a
meu respeito, era aquela a cjue chamei um dia. numa \ iolenta (pelo meu lado)
explicação com o meu analista, a minha repulsa perante ejuem tiuer que pre
tendesse «ter idéias a meu respeito». Desta feita tratava-se não só das mulheres,
mas das mulheres e dos homens, acima de tudo dele, o meu analista, acerca do
qual compreendera muito mal ainda que representara para mim a «boa mãe»,
portanto uma mulher, a primeira entre todas. Dero precisar acjui que nunca
tire a impressão de ejue Hélène tiresse «idéias a meu respeito», a tal ponto ela
me aceitar a com o eu era, segundo o meu próprio desejo, h com efeito a ques-
tâ(í do desejo que se encontra aqui, como nas formas de expressão anteriores,
em causa. Sofrerá o bastante o desejo da minha mãe. a ponto de sentir cjue só
o podia realizar contra o meu, pretendia o bastante ter finalmente direito ao
meu prciprio desejo (embora fosse incapaz de o tornar para mim presente,
ri vendo apenas da sua falta, da sua amputação: da sna m orte) para suportar
cjue um terceiro, fosse quem fosse, me impusesse o seu desejo próprio e as
suas «idéias» como minhas e no lugar das minhas, (icneralizada a este ponto,
a reir indicação do meu próprio (mas impossír el) desejo constituiu de facto a
base da minha feroz independência quer em filosofia quer no interior do Par­
tido e. apesar da minha habilidade conciliadora, ou seja, de infleetir a meu
faror as opiniões dos meus amigos, constituiu igualmente a minha indepen­
dência perante os meus amigos mais chegados. Julgo que este traço ou «jeito»
não lhes escapou, e que por vezes os obriguei a pagá-lo bem caro. Talrez esteja
aqui a origem da reacção dessa amiga cujas palavras já referi: «Utilizas muito
bem os teus amigos, mas não tens o mínimo respeito po r eles.» Que extraí
desta independência (cuja «genealogia» negativa hoje vejo perfeitamente)
benefícios positivos, que contribuíram para a composição e imagem da minha

156
() h I 7 r R o M l l i o I l

«personalidade», é urn facto indubiláxel, Trata-^^e de um e\ern]do mais da


ambivalência, justificando sem dúvida outras dcpresM')e« em tjue me afundei,
Mas o caso sem dúvida mais expressivo dos m eto ten'(.)n,« t:lnt.^^mátic()s
— porque representa como que o fantasma da solução im p o " i\ e l ,i que me
via reduzido de parecer todo-poderoso quando em nada o era — , e o terceiro
«motivo» que provocou várias das minhas depressões, em particular ,i e»pec-
tacular depressão do (,)utono de 1965. Acabava tle publicar, cheio de euforia.
Pour M urx e Lire «Le Capital», saídos em Outtibro. Fui então tomado de um
terror incrível, ct>m a ideia de que esses textos me iam mostrar completa­
mente nu diante do mais vasto dos públicos: completamente nti. quer di/er.
tal com o eu era, um scr todo artifícios e impostunts, e nada mais. um fihísofo
que não conhecia quase nada da história da filosofia e t[uase nada de .Marx
(cujas obras de juventude estudara de facto em pormenor, mas de qtiem só
estudara scriamente o Liv ro I do C apital, nesse ttno de 196 t em t|ue orientei
o seminário cjue desembocaria em Lire «Le Capitai». .Sentiauue como um
«filósofo» lançado numa coitstrução arbitrária, bastante estranha ao própritt
Marx, Rtiymond Aron não se enganou por completo ao falar a meu respeito,
cotno a respeito de Sartre de «marxismo imaginário», só tiue não com preen­
dia, com o sempre, ele a quem até os trotskistas endereçaram louvores depois
da sua morte, nada do que ele próprio dizia — quando lhe acontecia dizer
alguma coisa importante — , e já não falo do resto. Hm suma. receava expor-
-mc a um desmentido público catastrófico. No meu receio da catástrofe (ou
no desejo dela; m edo e desejt) dissimuladamente caminham sempre a par),
precipitei-me na própria catástrofe, e «fiz» uma depressão impressionante.
Dessa vez bastante séria, pelo menos para mim, uma vez que não enganavti o
meu analista.
Nessa altunt conhecia o meu analista havia pouco tempo, e quero agora
fahtr dele. .Não seria compreensível ciue omitisse o seu papel decisivo na
minhtt V ida, quanto mais não seja porque, até m esmo na sua profissão e entre
numerosos tios seus amigos e dos meus, ele se tormtu alvo de severas críticas
por altura da m orte de Hélène. Ao que parece chegou a ser dirigida ao .Monde,
qtie não a publicou, graças à intervenção do meu ex-aluno Dominique Dhom-
bres, uma petição contra os seus «métodos», assinada por vários «heterodoxos»,
I. o l I s .1 / T H t S V /: R

alguns dos quais da sua escola. Fodem agora (agora não. pois ele está em Mos-
covo, mas no seu regresso) pedir-lhe explicações.
Foi Nicole, que se tornara uma amiga querida mas cheia de fobias cpie me
paralisavam, quem me aconselhou a ir consultá-lo. Começava a desconfiar que
os cuidados do meu primeiro terapeuta rele \a \am não de uma análise autên­
tica, mas de um excelente apoio sem verdadeiro efeito analítico. Esse homem
generoso ajudara-me de facto nos meus m om entos difíceis, interviera sempre
para me fornecer os medicamentos e os conselhos requeridos pelo meu estado,
e para me assegurar o ingresso em estabelecimentos ou clínicas de psiquiatria
(Épinay, Meudon, etc.). Eu levava-lhe os meus sonhos por escrito, e durante a
narcose que me causava tantas delícias, ele comentava-os longamente, indican­
do-me neles os «elementos positivos» a par dos «elementos negati\os». C om ­
preendí certas coisas, mas ele interveio pelo m enos uma vez na minha vida
pessoal, declarando a Eranca, cjuc solicitava a sua opinião enquanto eu era hos­
pitalizado: «O que se passou consigo não é grave, foi um am or de férias.»
E uma vez, quando eu estava hospitalizado na Vallée-aux-Loups (antiga resi­
dência de (ihatcaubriand) e era assistido por uma senhora de idade, uma das
duas filhas de Flekhanov. fiz uma séria tentativa de suicídio com uma faca
romba e comprida, porque o meu terapeuta tardava em prescrever-me os elec-
trochoques cjue eu reclamava numa aflição sem nome, cheio de violência. Em
suma, Nicttle aconselhou-me um verdadeiro analista, «um hom em com costas
suficientemente largas para ti». Fixei estas pala\ ras, e certamente cjue não foi
por acaso. Afinal de contas teria podido pensar no meu amigo Faul, que efecti-
vamente tinhas as costas suficientemente largas para se bater em vez de mim.
Antes do Verão de 1965, avistei-me com o meu futuro analista várias
vezes, em entrec istas preliminares, e finalmente ele disse que aceitava receber-
me regularmente para entrevistas «analíticas», m a s cara a cara. Explicou-se
sobre este ponto, mais tarde, em diversas ocasiões: eu trazia em mim uma tal
carga de angústia que na sua opinião nunca teria aguentado o divã, a angústia
redobrada de o não ver com os meus olhos, de suportar o seu silêncio. De
facto, rosto a rosto, vendo-o reagir com toda a sua face, e ouvindo-o responder
muitas vezes instantaneamente, embora muito raramente de m odo directo ãs
minhas perguntas, senti-me certamente tranejuilizado: ele estava ali c bem ali.

158
(> h [' 7 / K O M r / / o I /; M p o

Presença activa, visivelm ente atenta, o qiie muito me sossegava. Descobri ao


mesmo tempo (e verificava-o) que uma análise cara a cara é muito mais difícil
para o analista do que uma análise deitada, pois ele tem que controlar todos
os movimentos do seu rosto, sobretudo durante o tempo de silencio, sem
p o d e r refugiar-se no m utism o da respiração de uma poltrona, de um
cachimbo, do amarrotar das páginas de um jornal, etc., confortavelmente ins­
talado p o r trás do paciente.
Q uando os meus livros saíram, em Outubro, fui tomado de um pânico tal
que só falava de os destruir (mas como?) e por fim, solução última mas radi­
cal, de me destruir a mim próprio.
O meu analista viu-se confrontado com esta situação terrí\ el. Pensei m ui­
tas \eze.s desde então em numerosos analistas que, para respeitarem por assim
dizer a «letra» das regras analíticas, em nada intervém, recusando-se a c o m p o r­
tarem-se igualmente comt) psiquiatras e médicos e a darem assim ao seu
paciente a satisfação narcísica de o ajudarem (não só a descobrirem uma clí­
nica, mas até mesmo um psicjuiatra). Pois simplesmente acontece que ninguém
no mundo, dentro ou fora da profissão, se o paciente se mata, lhes censura a
sua ausência de intervenção. Um dos meus amigos mais tiueridos, então em
análise, suicidou-se assim em 1982, sem que, aparentemente (digo bem aparen­
temente, talvez esteja mal informado, mas conheço outros casos c]ue não dei­
xam margem para dúvidas, e até ao lado do próprio Lacan), o seu analista se
tenha perm itido a mínima intervenção de «apoio». O meu analista, que, em
1965 e até ao desenlace, me via todos os dias e me trazia com o cjue «ao colo»
(dir-me-ia mais tarde que tinha sido sem dúvida um tanto «hipomaníaco» por
demasiado seguro de conseguir resolver o meu caso), confrontado com a
minha ameaça repetida de suicídio, acabou por ceder à minha pressão e ace­
deu a fazer-me hospitalizar. Precisou: «num estabelecimento que conheço
hem, onde temos os nossos m étodos próprios: Soisy». Precisou ainda (para
maior segurança, penso eu) que ele próprio me acompanharia até lá. Foi
buscar-me de carro à École, e ainda hoje vejo de longe o meu velho amigo dr.
Étienne chegar ao portão e falar longamente com ele, com aquele hom em de
idade. Este último parecia ouvi-lo sem dizer grande coisa. Sempre pensei, e
continuo convencido, po r certos indícios, de que não me enganava, que
Étienne fornecia ao meu analista a sua versão pessoal dos factos: se eu adoecia.

159
/. o r I V 1 / / II r s s i: R

a culpa cra dc Hclènc. Fsta \crsâo fácil c tranciuilizadora tornar-sc-iu mais tarde
muito difundida ao nível do «diz-se», mas m u ito p o u co entre os meus amigos
mais chegados; de facto, esses conheeiam apesar de tudo Hélène e sabiam
(muito jsoucos, para dizer a verdade, o sabiam) que não formáxamos o célebre
casal «sado-masoquista» clássico e tantas \ ezes mortal.
Fui admitido em Sois\', belo hospital moderno, pa\ ilhões no meio de uma
pradaria imensa, e eu pedia em altos gritos uma cura de sono, acreditando
(sempre os mitos soviéticos) no seu milagre. Foi-me concedida satisfação par­
cial, puseram-me a dorm ir um bocadinho durante o dia, eu sosseguei muito
rapidamente (o que me espantou) e pude sair ao fim de um mès, recomposto.
Fosteriormente. quase sempre submeti o meu analista à mesma pre.ssão, e
como não podia, na minha angústia, suportar que ele não se ocupasse de mim.
uma vez que ele se acha\a apanhado por uma situação já mareada por um pas­
sado. ainda quando acabou por me deixar totalmente li\ re na minha decisão
de ser (ou não) internado, foi sempre no fundo por ele que a decisão passou,
pelo menos no que dizia respeito ao lu g a r da hospitalização, quer fosse para
ir primeiro para Soisy, quer para me refugiar em seguida no Xésinet. cujos
responsáseis eram amigos dele, e onde ele podia, atra\és deles, «acompa­
nhar-me», \ o Xésinet. todos os domingos de manhã. chega\a o meu analista
de autom ó\el. sua dedicação confundia-me. c mais confuso ainda ficiuei
quando soube, depois da primeira hospitalização, que ele me cobra\ a por esta
visita excepcional, incluindo um longo trajecto de automé>vel. o m esmo preço
(lue pelas minhas sessões habituais (pense-se na importância para mim — e
para os analistas' — das questões tle dinheiro), enquanto o meu pai, a quem
eu aliás não o solicitei, continuaxa a não me ajudar, cpiando ao tempo o teria
podido fazer sem esforço. F de todas as vezes eu recebia o meu analista num
estado de efusão que me levav a às lágrimas, como uma criança pequena junto
da sua mãe.
questão tornar-sc-ia ainda mais complicada posteriormente, em 19~t-
I9~s, Hélène, cujas perturbações «earacteriais» eram manifestas, aceitou
entrar em análise, eom uma mulher. Fsteve em tratamento eom ela durante
cerca de ano e meio, face a face. uma vez por semana, depois deixou-a brus­
camente na sequência de um incidente do qual apenas conheei a versão de

160
/ r 7 r R o M t I I n l /. 1/ /’

Hélcne, 'lendo a sua analista aludido a um tema clássico em l-reud (acerca do


tace a face), e tendodhe Hélène dito que não sabia do que se trata\a icfecti\a^
mente não tinha c|ualtiuer cultura teórica psicanalítica). a sua analista ter-lhe-ia
retorciLiido: «F impossível, está a tn o itir'» (Hélène tinha uma cultura geral de
ral ordem que a sua analista podería legitimamente pensar que ela conhecia o
termo, mas o recusava «\oluntariamente». se assim posso di/.è-lo.)
Hélène ficava desamparada, e eu ainda mais. por este terrh el abandono,
com o é fácil de imaginar. Pressionei o meu analista, com uma insistência suici-
dária. no sentido de ele descobrir uma solução, Hle aceitou (coisa que eu dese­
java de toda a alma), ter com ela uma entrevista terapêutica rosto a rosto uma
vez por semana, Foi assim que se «encarregou» de nós. por assim dizer, dos
dois, paralelamente, caso sem dtfvida extremamente raro na profissão mas não
sem precedentes (l.acan praticaca correntemente o m esmo método), e que,
após a morte de Hélcne. seria motivo de graves suspeitas contra ele. quer no
seu meio profissional quer entre alguns dos nossos amigos. l'm deles chegou
até a falar de «círculo infernal», de «arranjo a três», de «impasse total» e sem
outra saída possível c|ue não o drama. F verdatle que o meu analista me disse
sempre que eu era um caso «atípico» (mas não o será c|ualqtier «caso»?) e que
Flélène o era tambént. bem com o as nossas relações, pelo que a uma situação
atípica só se podia responder com uma solução igualmente atípica, que não
concordava evidentemente com a letra estrita das normas clássicas, mas que
não seria de excluir totalmente, na condição de se adoptar um com portam ento
em função do «caso», tanto estratégica como tacticamente.
Olhando para trás, tenho a impressão de que exercia uma tamanha pres­
são sobre o meu analista, numa relação constante de chantagem com o aban­
dono e o suicídio, que uma \ ez apanhado pelo precedente de 196S, ele ficou
com o que obrigado a perseverar nele, contra sua vontade, esperando que as
relações se desanuviassem o suficiente para se poder li\ rar e livrar-me de tal
fórmula: mas isso dependeria da evolução da minha ctira, logo, em última aná­
lise, de mim. F foi o que de facto se passou. A estratégia do meu analista foi
portanto confirmada pela experiência.
For várias \e/,cs, quando eu me encontrava em período de mania após
uma depressão, senti que a minha análise resultara. Nessas ocasiões miraculosas

161
I o V l s .1 /, / U I: S A i; R

chega\ a até a forjar uma metáfora sobre o fim da análise. A análise é como ur
camião pesado carregado de areia fina. Para o esvaziar, um macaco levanta ler
tamente a caixa, ciue se inclina. De início, nada cai. depois pouco a pouco a]"»!
nas alguns grãos de areia. E em seguida, de uma só \ cz a carga inteira cai n
chão. Metáfora demasiado bela, demasiado adaptada ao meu desejo. Aprend».
ria ã m inha custa que não era assim... Mas nessas ocasiões declarava ao nu
analista com uma certeza e um reconhecim ento absolutos: «Desta \ex g.
nhou!» E lembro-me, todas as vezes, do seu silêncio, exactamente o contrán
de uma aprovação muda, silêncio carregado de uma surda inquietação que ek
não conseguia dissimular apesar de todo o controlo que detinha sobre a su;
«contra-transferência». Recordo-me até de um gesto dele, cjue me revoltou, n<
final de uma dessas sessões de «libertação». Q uando ia a sair, extremam enu
eufórico, vi-o no último instante, pela porta entreaberta, esboçar com a mão
de cima para baixo, um gesto que queria dizer: vá devagar — e repetir vária»
\ezes o m esmo gesto. Senti-me revoltado. Tinha que me explicar violenta
mente com ele: «Ou você pensa que estou numa fase de hipomania com moti
\ 'O S inconscientes incontrolá\eis. e então com o é cjue quer cpie eu me con
trole, e com que direito me incita a uma prudência que não s(tu capaz dc
observar? Ou então acha que estou em estado de me controlar, e então, sc
tudo depende de mim, porquê esse gesto cjue nada acrescenta a nada? E por
fim: com que direito, “contrariando todas as regras da a n á lis e ', tanto num
“caso" como noutro, pretende você inter^'ir no meu comportamento?» Formal­
mente, é verdade que eu não errava. Nunca lhe perguntei a sua opinião acerca
deste ponto para mim tão pungente. Mas certamente que fui eu a enganar-me..
Na minha grande fase da explicação violenta com t) meu analista, que
durou vários meses, em 19^6-19^'’. acusei-o aberta e intensamente de ter tido
sempre «idéias a meu respeito», de me ter tratado não com o um simples
hom em comum, mas antes com o o hom em conhecido que eu de facto era, e
com atenções excessivas. Acusei-o de me ter confessado cjue os meus livros
eram «os únicos livros de filosofia cjue ele percebia», de ter por mim uma ami­
zade, ou até uma predilecção, analiticamente suspeitas, acusei-o em suma de
não saber nem conseguir dom inar a sua própria c o n tra -tra n s fe rê n c ia a m eu

re s p e it o , e comunic]uei-lhe mesmo um escrito com pretensões teóricas que

162
/- r / r /? o F .1 / r / / o / /; ,1/ r o

compus (em sua intenção) acerca da contra-transferència, no cjual desenvolvia


a ideia, bastante bem argumentada, de que desde o início não é a trunsterèn
cia, mas a contra-transferència cjue impera. Fie leu o texto e dcclarou-me fria­
mente: isso são cetisas bem conhecidas e desde há muito tempo. Fiquei h orri­
velmente hum ilhado e coneebi contra ele um rancor suplementar. Xão me
clava conta de ejue era eu cjuem podia estar na origem da cumplicidade que
sentia entre nós, eu que a prococara, buscara e alcançara, à custa de uma
gigantesca tentativa de sedução. Xão sabia nessa altura cjue, hom ens ou m ulhe­
res, eu a todos tentava sem descanso seduzir e reduzir à minha mercê, através
de uma provocação permanente, le rá o meu analista realmente cedido à
minha manobra, ou terá sido tudo apenas impressão minha? Não sou capaz de
o dizer, mas deixo aqui, com todas as minhas recordações dos meus traumatis­
mos marcantes, todas as minhas armas, quer dizer, as minhas fraquezas desar­
madas.
Sedução, mas também provocação. As duas coisas caminharam natural­
mente a par. Com as mulheres que encontrava quando estava nestas condições,
era de uma sedução irresistível e conejuistadora nos mais breves lapsos de
tempo: dez minutos, meia hora de assalto v i\o e a ejuestão decidia-se. Sempre
que o desejava, era eu a tomar a iniciativa, com o no caso da m inha mão na
mão de Hélène, embora depois pudesse ficar horrivelmente embaraçado com
o resultado, com m edo de me ter armadilhado a mim próprio ou de me ter
deixado armadilhar invadindo-me cheio de angústia.
Bem entendido, compensava a audácia insensata destes assaltos e a minha
inquietação subsequente, «exagerando», subindo a parada dos meus sentim en­
tos. convencendo-me de que amava deveras e até lá à loucura, e forjava então
da m ulher que encontrara uma imagem de molde a sustentar essa paixão exa­
cerbada. Quis sempre até aqui. até um período recente de tjue voltarei a falar.
\’iver as minhas relações factuais com as mulheres nas alturas de um senti­
mento desmesuradamente intenso e passional. Era uma maneira bem singular
mas bem minha de conseguir a impressão de «dominar» a situaçãtc quer dizer,
não só de ter na mão, mas totalmente na mão uma situação que não dominava,
e que sendo eu «fictício» com o era, não conseguia dom inar na sua realidade
efectiva. Teria sido necessário cjue eu aceitasse as mulheres que encontrava

163
I. o r / V ,1 /. / // r V s /; A>

tais como eram e. sobretudo, tiue me aceitassem a mim tal como era, sem t
gero», expressão que guardei de uma mulher que se me tornou extrem am er
querida: a primeira c[ue soube ver claro na minha maneira de ser. e sobreim:
dizer-mo cara a cara, sem sombra de hesitação nos termos: «O que não :
agrada em ti é quereres-te destruir.»
H.xacerbação. exagero: nisto entra, claro, também a pro\t)cação: não n
exprimimos diante de uma mulher nos termos de um am or insensato e desn»
dido sem c|ue nisso entre, inconscientemente, o desejo de que ela seja á iir ,

gem desse am or e a ele conform e o seu ser. t)s seus gestos, os seus ai. ;<
sexuais e os setis sentimentos. Ibdat ia eu estava tão div idido ciue, emhi
desejando as mais extremas confissões e ternuras das mulheres sobre as qu.:
me lançava, tinha ao m esmo tem po muito m edo das suas demonstrações p:».
v isíveis, m edo de que isso me deixasse à mercê delas, porque então a iniciar.'
teria mudatlo de campo, e o terrív el perigo de me desfazer entre as suas m.i
fazia antecipadamente empalidecer de angústia o meu rosto,
Com Hélène as coisas continuavam a ser da mesma natureza, mas p a "
vam-se de maneira muito diferente. Não tinha sombra de medo de que ei.i r
deitasse a mão. ou de qtie tivesse «idéias a meu respeito». Hav ia entre nós ur

comunfião e uma fraternidade tais que nie preservavam desse perigo. Conttr:
não parava de a provocar. Mas, e creio té-lo tornado perceptível, as min!,
provocações assumiam aqui outro sentido. \ ã o descansava até tiue ela coir
cesse, o mais depressa possível, as minhas novas amigas, para receber de!,
aprovação cjue esperava, afinal, de uma boa mãe com o nunca conhecera, '
Hélc-ne não se sentia de maneira nenhum a na pele de uma boa mãe, mas p«
contrário na de uma megera e de uma mulher m edonha. Reagia com o se p>
imaginar: de início paciente, depois primeiro pouco a pouco e por fim de sub

íe uma vez ejue fora paciente e tolerante de começo, eu deixava de comprec


der') retleclida, crítica, categórica e cortante. Não era tanto que fos.se ciunu :
tqueria-me «livre» e penso que era profundam ente sincera nisso, respeitav ,i ,
tudo os meus desejos, necessidades e até manias), mas ficava manifestamer
(sassado o primeiro m om ento de tolerância, a tal ponto na dependência
redependência do seu terrível fanttisma de ser uma megera, que por ensc|i
minha provocação macreditável. cedia a esse fantasma e comportava-se o

16-t
/■■ i 7 r K o If I / / o 7 /: .1/ F o

intimamente sentia terror de se com portar Noto exemplo de ambivalência.


Retrospectivamente, ela censurava-se horrivelmente, e repetia-me e]uc podia
fazer tudo o tiue quisesse, mas sob uma condicão, uma S(): n ã o lhe fa la r das
minhas ligações femininas. Ora este conselho e\ identemente avisado que ela
assim me datai com a calma de uma razão incontestável, eu nunca soube ou
nunca fui capaz de o seguir. De todas as t ezes caía na compulsão dc a procurar
mesmo diante dos seus olhos. 'ITnhamos em (>ordes uma casa belíssima, uma
antiga quinta que havíamos com prado quase de graça e que fora magnifica-
mente restaurada: um esplendor único em toda a região. .Vrranjei maneira de
que lá fossem todas as minhas últimas amigas, sempre a fim de ser aprotado
por Hélène. Só uma vez as coisas se passaram bastante bem: justamente com
essa amiga que foi a única a saber-me compreender.
Esta compulsão de provocação perante Hélène multiplicava-se evidente­
mente nos meus estados de hipomania. Como então tudo me parecia e era
efectivamente fácil, de uma facilidade risível, inventata, além destas apresenta­
ções pertersas. muitas outras formas de provocação, Hélcme sofria atrozmente,
pois sabia por experiência que estes estados dc hipomania não anunciavam
nada de bom, mas pelo contrário uma recaída na depressão e no seu cortejo
de sofrimentos tanto para mim como para ela, mas além disso sentia-se directa
c pessoalmcnte visada (e não se enganava, sei-o hoje) pelos meus com porta­
mentos inverosímeis. Porque eu tinha então uma imaginação tliabólica. Cma
vez, na Bretanha, durante um mès muito comprido, piis-me a praticar sistema­
ticamente um singular desporto: o do roubo nas lojas, que jsraticaca natural­
mente e sem dificuldades, c em seguida mostrava-lhe, de todas as \ ezes e com
grande orgulho, o produto \ariado e crescente dos meus furtos, pormenori-
zando-lhe os meus m étodos infalíxeis. Fram-no de facto, ,\o mesmo tempo,
andar-a atrás das raparigas pelas praias e de tempos a tempos, depois de as ter
rapidamente conquistado, le\ ava-as a Hélène para lhe pedir a sua apror ação ou
a sua admiração. Foi nessa altura que meti n;i cabeça assaltar um banco sem o
mínimo risco e até m esmo roubar (sempre sem risco) um submarino nuclear.
Compreende-se que ela ficasse aterrada, pois sabia que eu podia ir muito longe
na passagem aos actos, nunca se podia dizer até onde. Fazia-a assim viver na
insegurança e no terror mais totais. Tente imaginar-se a situação!

16S
L o l I S A L / // r S V /;■ R

Aconteceu-mt sujeitá-la em duas circunstâncias a provas ainda mais medo


nhas. A primeira foi séria, mas não podia evidentemente ter consequências
Estamos uma noite à mesa em casa de amigos, na com panhia de um casal
que até então não conhecíamos. Não sei o que me dá (ou antes, sei-o dema
siado bem) mas m onto durante o jantar, com o grande cópia de declarações (
convites provocantes, um assalto em regra contra a bela e jovem m ulher desce
nhecida. Tudo para chegar à conclusão perem ptória de que podíamos e devia
mos imediatamente e diante de toda a gente fazer am or em cima da mesa
O assalto fora conduzido de tal maneira que a conclusão se impunha como
evidente. Graças a Deus, a jovem defendeu-se muito bem: soube descobrir a''
palavras adequadas para esquivar a proposta.
Noutra ocasião, estamos em Saint-Tropez, alojados em casa de amigO'
ausentes. Eu convidara um amigo político a visitar-nos. Ele chega, na compa
nhia de uma mulher jovem e muito bonita, ã qual me atirei logo. Dou-lhe a ler
um manuscrito da minha autoria. Repete-se a mesma cena, desta feita diante
de Hélène e do homem, os dois sozinhos à mesa. Em cima da mesa evidente
mente nada se passa, mas chamo a rapariga de parte e com eço abertamente u
acariciar-lhe os seios, o ventre e o sexo. Ela consente, um pouco espantada,
mas preparada pelos meus discursos. Depois p ro ponho que vamos ã praia,
uma praiazinha habitualmente deserta, desta vez totalmente deserta, portjue o
mistral sopra e o mar está encapelado. Entretanto o meu amigo fica em casa.
mergulhado no meu manuscrito. Na praia, sempre diante de Hélène que não
sabia nadar, convido a jovem a despir-se, e entramos nus, os dois, nas vagas
temj^estuosas. Elélène já grita de medo. Nadamos um pouco em direcção ao
largo, e deptus quase fazemos am or em pleno mar. Vejo Hélène, completa­
mente desvairada, correr cheia de m edo ao longe na praia, a gritar. Avançamos
pelas ondas até mais longe e quando queremos voltar, verificamos que fomos
apanhados por uma forte corrente que nos arrasta para o mar. Tivemos que
nos entregar a esforços insensatos, durante uma ou duas horas, para conseguir­
mos por fim regressar à praia, Foi a jovem que me salvou, nadava m elhor do
que eu e apoiou-me nos meus esforços desesperados. Quando chegamos à praia,
já Hélène desapareceu. As casas mais próximas ficam a vários quilômetros.

166
í- r T f' R o M r I T u 7 7: .1/ 7^ O

para lá das ásperas colinas, e não há barco dc socorro ames do porto, longín­
quo, de Saint-Tropez. Teria Hélène desesperado, partido cm busca de socorro!''
Depois de intermináveis deambulações, acabo por descobri-la. à beira-mar.
mas longe da praia, irreconhecível, completamente metida para dentro de si
própria, a tremer num a crise quase histérica e com o rosto de uma mulher
muito velha, devastado pelas lágrimas. Tento tomá-la nos braços para a tran­
quilizar, dizer-lhe que o pesadelo acabou, que estou ali. Nada a fazer; ela não
mc ouve nem vê. Por fim, ao fim de não sei quanto tempo, abre a boca mas
para me m andar violentamente embora: «És ignóbil! estás m orto para mim!
Não quero voltar a ver-te! Já não aguento mais viver contigo! És um cobarde
e um sacana, um sacana, põe-te a mexer!» De longe, digo à jovem cjue se vá
embora, e nunca mais \oltei a vè-la. Foram precisas duas boas horas para que
Hélène, ainda em lágrimas e convulsa, aceitasse voltar comigo para casa.
Nunca discutimos este horrível incidente, que no fundo da sua alma ela por
certo jamais me perdoou. Decididamente, não se pode tratar assim um ser
humano. Percebi muito bem que no seu terror não havia o m edo dc me ver
m orrer na corrente das ondas, mas outro m edo mais terrível: o de m orrer ali
mesmo devido à m inha atroz provocação demente.
O certo é o seguinte: pela primeira vez a minha própria m orte e a morte
de Hélène formavam uma só coisa-, u m a só e mes7na m orte — não com a
mesma origem, mas com a mesma conclusão.
O rosto de Hélène! Não sou capaz de dizer com o me impressionou desde
o primeiro instante, nem com o me assombra ainda. A sua beleza estranha!
E contudo não era bela, mas havia nas suas feições uma tal agudeza, uma tal
profundidade e vida, uma tal capacidade também de passar, dc um m om ento
para o outro, da abertura mais total ao encerram ento mais mural, que eu me
sentia ao mesmo tempo deslumbrado e desconcertado. Lm amigo que a
conhecera muito bem disse-me a seu respeito que a compreendera ao ler o
verso de Trakl: ^<Schmerz versteinert die Swelle (A dor petrifica o limiar)», e
acrescentava que no caso de Fíélène seria necessário dizer ^<^Schmerz verstei­
n ert das Gesicht: a dor petrifica o seu rosto». Está ferido, este rosto, pelas
linhas, traços esculpidos p o r uma longa dor de viver no cavado das faces, os
traços de um longo e terrível «trabalho do negativo», de combate pessoal e de

167
/ o r / ,s / í lí r s s / R

dassc na história da ciasse operária e da Resistência. Mortos todos os sem


amigos, liénatt que cia amara, Timbaud, Michels, o padre Larue que cia amar,
com verdadeiro amor. mortos todos, fuzilados pelos nazis, tendo deixado ik
seu rosto estas linhas de desespero e de morte. A própria petrificação do seu
passado atroz.- cia era o que fora. «Wéxe/? ist wcis geicesen ííí: A essência ê o

tiue foi» (Hegcl). Q uando o meu amigo cita Trakl c Hegel. é com o se eu \o l

tasse a vê la a cia. Aquele pobre pecjueno rosto inteiramente fechado na sua


dor. c de súbito abrindo-se por completo à alegria, naquilo a que os seus ami­
gos cham a\am o «gênio da admiração» de Hélène (expressão de Emilie. a sua
amiga estudante de filosofia tjue foi executada pelo NK\ D na Sibéria), o si:u
incom pará\el entusiasmo pelos otitros, a sua generosidade sem fim para com
d e s c sobretudo para com as crianças, que a adoravam. Sim, «o gênio da admi­
ração». trata-se de uma frase de Balzac, que diz; «O gênio da adm iração, da
compreensão, a facu ldade através da q u al um hom em com um se torna
irmãio de um gran de p o e ta .>
■Assim era ela. capaz de se situar pela escuta, pela
compreensão do coração e pelo génii.) da admiração ao ní\el dos maiores, c
sabe Deus com o ela os conheceu e por eles foi amada!
Mas esse rosto tão aberto podia também encerrar-se na petrificação mtiral
de uma intensa dor que lhe \ inha das profundezas. Então ela não passava de
pedra branca c muda, sem olhos nem olhar, e o seu rosto fecha\ a-se numa fuga
sem linhas. Tantas vezes! e quantas vezes aqueles que a não conheciam o bas­
tante a julgaram impiedosamente p o r algumas aparências de superfície como
a horrírel m ulher que ela temia ser! Depois, algum tempo passado, po r vezes
uns poucos minutos somente, com frequência várias horas e por vezes mesmo
um dia ou dois (era m edonho mas raro), o seu rosto abria-se de novo para a
alegria do outro. Terrível provação, em primeiro lugar para ela e também para
os que lhe eram próxim os e acima de tudo para mim que me via então aban­
donado por ela. Durante muito tem po senti-me culpado pela transformação
brutal da sua voz e do seu rosto, com o sem dúvida a minha mãe por ter traído
Eouis. o amor da sua vida, ao casar-se com Charles.
Porque ela tinha a voz precisamente do seu rosto: incomparavelmente
quente, boa. sempre grave, c flexivel como a de um hom em , e até no silên
CIO (sabia ouvir como ninguém, Lacan bem o notara...) aberta com o nunca.

168
/ r 7 r A> o / 1/ r / / o / / u /’ o

c a seguir de repente dura e fechada, surda e finalnienu- muda para senipre.


Além do cpie sei do seu terror de ser uma horríxel megera, tiiie poderia jtrovo-
car nela a caga física do horror cjue lhe incadia o ro sto ' Nunca fui capaz de
entender exactamente a razão profunda dessa alternância dramática, assusta­
dora. mas deslumbrante: seria sem dúvida também a e.xtrema angústia de não
existir, de estar já morta e fechada debaixo da pedra ttimular da incompreensão.
bra, tiuando «aberta», extremamente divertida, tinha tim talento de narra-
dora extraordinário, e no riso uma ternura de coz irresistícel. hra igualmente
célebre entre todos os seus amigos pelo seu extravagante talento epistolar:
nunca li cartas assim tão vivas e imprevistas, como o curso caprichoso de um
jovem ribeiro por cima das suas pedras. Tinha todas as audácias de estilo, e
ciLiando mais tarde li jccyce. de que ela gostava muito, achei-a mil cezes mais
incentiva do que ele! Claro, não me darão crédito. Mas aqueles a ciue ela nunca
se cansou de escrecer [sabem-no|; a sua amiga \'éra, actualmente em Cam-
britige sabe-o — disse-mo recentemente ainda pelo telefone.
Mas o que por certo me comovia mais. pois nunca muclacam. eram as
mãos dela. Também elas petrificadas pelo trabalho, polidas pelo esforço e pelo
labor, mas acariciando com uma indizível ternura dilacerada e desarmada. As
mãos de uma m ulher muito celha, de uma pobre sem esperança nem recursos,
e que toclacia eram capazes de dar tudo cia sua pessoa. Partiam-me o coração:
tantos sofrimentos nelas havia gravados. Muitas cezes chorei nas suas mãos,
entre as suas mãos: ela nunca soube porquê, eu nunca Iho disse. Temia fazê-la
sofrer se Iho disesse.
Hélène, minha Hélène...

169
XIII

ei que esperam ver-me falar aqui de filosofia, de política, da minha posi­


S ção no Partido c dos meus livros, da sua audiência, dos seus amigos e ini­
migos irredutí\eis. Não ^'ou entrar sistematicamente nesse dom ínio que é, esse
sim. perfeitamente objcctivo, uma vez que existe nos seus resultados, acerca
das quais cada qual, se nãtj estiver já informado, poderá inteirar-se, quanto
mais não seja lendo-me (uma bibliografia imensa cm todos os países) mas que
— tranquilizem-sc os leitores — retoma indefinidamente alguns escassos temas
que se podem contar apenas com três dedos da mão.
Rm contrapartida, aquilo que devo ao meu leitor, pois que mo devo a
mim, é a elucidação das raízes objectic as do meu apego específico ao meu ofí­
cio de professor de filosofia da École Normale Supérieure, à filosofia, à polí­
tica, ao Partido, aos meus livros e às suas repercussões, a saber, o m odo com o
me vi (e não se trata aqui de reflexão lúcida, mas de um facto obscuro e em
grande parte inconsciente) levado a investir e inscrever os meus fantasmas sub­
jectivos nas minhas actividades objectivas e públicas.
Bem entendido, longe de todo o anedotário ou «diário de bordo» ou má
literatura que é hoje obrigatório em tjualquer autobiografia (essa decadência
sem precedentes da literatura), irei ocupar-me apenas do essencial.

' o autor colocara à entrada tlc.stc capítulo cinco páginas, segundo toda a probabilidade dactilogra-
tadas ulteriormenie, sem ter modificado cm conformidade a continuação do seu texto, o c]iie implicara diver­
sas repetições ou variantes dos mesmos factos, c om prom etendo a inteligibilidade da leitura do conjunto
tio capítulo l’or essa razão, achámos preferível manter a primeira versãt) do texto. (A', do E. francês)

170
/ o V I s .) /. 7 H I S S /. R

Primeiro facto: primeiro indício. Nunca saí da Hcole. Kntrei para ela, é
r erdade, com seis ano,s de atraso, mas nunca a deixei att? ao dia 16 de N<t\ em-
bro de 1980, A partir de então nunca mais lá \ oltei, nem sequer dc passagem.
Fui aprovado com uma tese sobre a noção de conteúdo em Hcgel. sob a
orientação de Bachelard: em exergo «Mais vale um conteúdo do que duas p ro ­
messas», falsa citação de não sei quem. e «O conceito e obrigatório porque o
conceito é a liberdade», música de Renc Clair que não falava do conceito mas
do «trabalho», quer dizer, se levarmos em eonta o «trabalho do negati\o» de
Hegel, e s t r i t a m e n t e a m e s m a c o i s a . C) meu trabalho fora escrito com itm
certo preciosismo (era o estilo que eu herdara da k h â g n e de Lr on, e em parti­
cular do exemplo dos meus confrades mais velhos, Georges Parain, Xa\ ier de
Christen e Serge Chambrillon. todos monárquicos — adeptos do conde de
Paris e não desse m ed o n h o Maurras — e excelentes estilistas, adoradores de
Giraudoux — cujos gostos eu então partilhava). Redigira o texto em Laroche-
millay, onde a minha avó me acolhera após a minha prolongada depressão de
194~. Sem a\ isar le\ ara Hclène comigo, e esta passou o tempo na «casa velha»
a bater o meu texto à máquina à medida que as suas páginas iam sendo escri­
t a s '. A minha avó recebera-a calorosamente, eomo eu esperava que fizesse.
Naturalmente percebera tudo acerca das nossas relações, mas aceitara-as como
óbvias, apesar de todos os seus princípios. Que generosidade!
Penso que Bachelard. muito ocupado, não lera o meti texto. Eu falara da
«circularidade do conteúdo», um dos meus temas principais. Bachelard rctor-
quira-me simplesmente: Estaria de acordo em dizer antes «circulação»? — Não.
E ele nada mais acrescentara. Na escola, nesse tempo, tínhamos por mestres
Desanti, pequeno corso ejue «caminhat a (já) com combati\ idade», expressão
sua que o retrata por inteiro, e Mauriee Merleau-Ponty. Este último, cujas aulas
seguíamos eom interesse (único curso que segui além das lições sempre repeti­
tivas de Desanti. «marxista» que perm anecera bastante husserliano), propuse­
ra-nos, a jactiues Martin, jean Deprune e a mim, publicar as nossas teses, ainda
antes de as ler. Recusámos os tres altivamente. Eiquei em segundo lugar na

> .Acrc.sccnto m anuscrito à margem do tc.xto, sem que o autor tenha ele ctuado a ligação ao
resto da frase: <ao lado das batatas que m andava assar: distinção subtil, ela não era c o n ti d a d a para a
mesa da m inha avo!» (A', do E. fra n c ê s )

171
o i r I i R o .1/ r I I n I I: M P (_)

agregação de 1948, depois de ter tomado a palax ra latina so iu m em Spinoza


por «sol»! Deprun era o primeiro. Justo mérito c desforra justíssima do seu
malogro do ano anterior, punindo uma audáeia escandalosa: falara na (trai sem
apontamentos.
Ser-me-á perm itido dizer que tanua na escrita como na oral tratei da maior
parte dos assuntos sem deles saber grande coisa? Mas sabia «fazer» uma disser­
tação e dissimular conaenientem entc as minhas ignorâncias com uma aborda­
gem a p r in r i de qualquer tema, e naturalmente segundo a ordem de uma boa
exposição universitária, com toda a atmosfera de surpresa tecãrica desejá\el.
com o de uma vez po r mdas me ensinara Jean Guitton.
Eu conquistara (com o meu am or pelas mulheres de idade, e também a
minha arte da sedução) as boas graças da «velha Poré», uma simples secretária
que fizera \ iver toda a Ecole durante os ancts duros da guerra, e que na prática,
já no tempo de Albert Pauphilet, a seguir à Libertação, continuava a dirigi-la de
alto a baixo e de ponta a ponta, por completo. Toda a gente, incluindo esse
grande preguiçoso negligente c «parisiense» que era Pauphilet, dependia dela.
Ela sabia tudo e conhecia toda a gente. Tenho de acreditar que lhe agradei p o r ­
que. quando (icorges (lusdorf saiu em ju lh o de 19 i8, ela me propéts ao <.lirec-
tor para lhe suceder a este último, muito naturalmente. apro\'ou a escolha.
Eoi assim que herdei o exíguo alojamento de (lUsdorf (uma divisão
pequena e um gabinete em pseudo-estilo Luís X \’ no rés-do-chão) e as suas
funções. Substituí a secretária Luís X \’ por uma velha e bela mesa de carvalho
arranjada na biblioteca. As funções de .‘caím an» eram mal definidas '; tínha­
mos que nos «ocupar dos estudantes de filosofia». Gusdorf ocupara-se muito
pouco de ntxs, fizera a sua tese durante o catix eiro {La D écouvert de soi, a p a r­
tir de «diários íntimos» que nos lia sem mais, à guisa de aulas! l 'm dia endere­
çámos-lhe uma carta atribuindo-a ao director do Palais de la Découverte:
«Monsieur (jusdorf, não nos sendo estranho nada do que diz respeito à desco­
b e r t a . ) e eu ia retocando essa tese em vista de um lugar num a faculdade: seria
nom eado para Estrasburgo. Tentei fazer melhor do que ele, o que não era difícil:

’ I c rm o t[uc na gíria estudanril designa uni encarregado de controlo na iicole Normale Supc-
ne i i r e ( A, d n I. >

n
/ r / r A' o i; í l i o i ! M !>

cm primeiro lug:ir um curso sobre IMatfio, que me ocupou durante dois anos,
em seguida sobre outros autores. Mas sobretutlo let ei os meu> alunos, que em
breve se tornariam meus amigos, a fazerem certos exercícios retóricos indis­
pensáveis. Merleau dissera-nos: no fundo, a agregação não passti de um «exer­
cício de comunicação» a partir de um mínimo de conhecimentos exigidos.
Coisa de que eu estava havia muito, e graças a (juitton. já com encido, .Mas
levei a coisa a peito e intiugurei uma prática algo pessoal da correcção dos
exercícios. Corrigia muito pouco ã margem, cxceptt) para rectificar um erro
declarado, ou para assinalar, com uma longa linha muda mas ap n n ttdora. ou
com um + , destinados a exprimir a satisfação do leitor, mas em seguida escre
via à máquina uma longa nota de uma, duas ou várias páginas segundo os
casos, na qual indicaca ao autor os pontos dignos de apreço mas sobretudo o
m odo com o e/e poclerúi e deveria ter con stru íd o o seu texto e a rg u m en ta d o
de m odo a d a r ct o rientação do seu p ró p rio p e n sa m e n to (fosse esta q u a l
fosse) toda a fo rç a de convicção requerida. Nunca propus a ninguém que
pensasse de outro m odo que não segundo a linha da sua própria escolha, e de
resto tigir diferentemente teria sido insensato. Fizera disso um princípio que
sempre segui, p o r simples respeito pela personalidade dos meus «alunos». Sob
este ponto de vista, nunca tentei «inctilcar» fosse o que fosse a quem quer que
fosse, contrariamente ã esttipidez de alguns jornalistas à caça de «caixas».
Nos primeiros anos dei um «choco» cheio de calor maternal aos meus
potros, «fiz-lhes a papa», chegando até a organizar para eles. entre a prt)\ a escrita
a oral da agregação, um estágio de repotiso em Royaumont, do cjual comparti­
lhara. Mais tarde tornar-me-ia mais reservado, mas perm anecendo iguaimente
atento às suas dificuldades e sobretudo à orientação do seu próprio pensamento.
Tornei-me rapidamente secretário da École, assistindo a todas as reuniões
da direcção, aconselhando os directores em numerosas matérias, «fazendo»
muitas vezes com cjue tomassem importantes decisões que continuam inscritas
nas paredes e instalações da casa bem com o muitas das suas práticas — sendo
o meu papel importante sobretudo nos períodos de intervalo entre os directo­
res cjue se sucediam. Nada mais normal. Eu estava ali permanentemente, ao
passo que os directores m orriam ou abandonavam as suas funçtóes (caso, por
exemplo, de Flyppolite, cjue passou para o Collège dc France).

17,^
/. o r I s A /, 7 7/ r ,v ,S /: A’

Em que se transformou a escola? Muito em breve, ou deveria eu dizer qm


desde o começo, num verdadeiro «ninho» maternal, o lugar onde eu ficava m
quente e em casa. protegido do exterior, de onde não precisava de sair para ve:
os outros, pois eles apareciam ou iam lá ter comigo, sobretudo quando me tor
nei conhecido — em suma, uma substituição, de novo, de um meio maternal
do lítitiido amniíÁtico.
l ’m belo dia, o apartamento exíguo de Gttsdorf converteu-se em presa do'
arquitectos, tjue tinham recebido luz verde do ministério (após um prazo inv e
rosímil, e nunca soube a pedido de quem) c se puseram a aumentá-lo com um.i
ampla sala de leitura destinada aos alunos, Fiquei então com muito espaço, eni
condições de receber FIélène quando esta deixou de poder suportar, no sci:
novo apartamento junto de Montparnasse, os uivos de dois cachorros que (
dono abandonava durante o dia para ir trabalhar, tendo sido impossív el fazè-lo
tomar fosse que providencia fosse em benefício dos vizinhos. (For aciui sc
pode fazer jideia] da v igilância dos porteiros e polícias, apesar de se tratar do
seu trabalho de rotina...) l ma vez mais eu «salvaiva» FIélène. Foi p o r v'olta de
19~0. ainda não tínhamos casado.
F a Vida corria assim, a enfermaria e o médictt muito perto, os serviços da
Escola (soldador, marceneiro, electricista, etc.) às minhas ordens, a biblioteca
(onde eu quase não entrava, para grande surpresa de Mllc Kretoíet, e de M. e
Mme Boulez. parentes directos e discretos do grande músico), o refeitório que
por vezes eu frccjuentava, os aposentos dos estudantes e, quando estes foram
nom eados prttfessores, de.lactiues Derrida e Bernard Fautrat, muito prétximos.
o correio a dois passos, o café-tabacaria, e não sei que mais ainda, tudo ao
alcance da mão. E foi algo ejue durou trinta e dois anos! Trinta e dois anos de
quase-reclusão monástica ascética (o meu velho sonho...) e de protecção.
E quando FIélène veio viver comigo, isst) complicou sem dúvida as condi­
ções das minhas relações femininas, mas também ela passou a estar ali,
comigo.
A imensa tarefa «oblativa» que eu me atribuía (sempre a mesma tarefa de
salvação em benefício de uma mãe ensanguentada) foi a de a fazer admitir
entre os meus amigos, na sua grande maioria meus antigos «alunos». O que
não foi nada fácil: a diferença de idades, o horror dela pelo m undo acadêmico.
o / r / r R o i. M I / T o T i: M R o

e também as dificuldades do seu caracter, rapidamente rer elado, pouco ajuda­


ram. Consegui muitas vezes o meu fito, mas à custa de algo que sentia como
uma enorm e abnegação da minha parte! E sempre com uma espécie de má
consciência, com o se tivesse po r minha conta que \ enccr, por ela e p o r mim.
a apreensão das suas bruscas mudanças de hum or possíveis. Também a este
propósito me dou conta agora (para dizer a verdade desde há bastante tempo)
de que devia «induzir» de algum m odo nos meus amigos (fizera-o em relação
ao dr. Étienne) com o que o juízo sobre ela que receava da parte deles. Anteci­
pando a sua possível reacção, comportav'a-me com o uma espécie de «culpado»
que pedia antecipadamente perdão por ela e p o r mim. Atitude cujos efeitos
devastadores pude comprovar. Hélène tinha as suas dificuldades, mas quando
se chegava a conhecê-la deveras, e tal fora outrora a impressão de Lesè^ re e de
todos os seus amigos mais ilustres, c]uando se venciam os primeiros m o m e n ­
tos, o mais das \ezes fruto pela sua reputação, descobria-se uma mulher excep­
cional na inteligência, na intuição, na coragem e na generosidade. Todos os
seus camaradas de trabalho, que apreciaram tanto a pessoa dela com o os seus
méritos, são unânimes em reconhecê-lo. E todavia as suas grandes amizades de
trabalho não foi a mim ciue ela ficou a de\ê-las, mas somente a si própria: por
uma vez eu nada tinha a ver eom o assunto, nada fizera ou tivera que fazer para
a «salvar» do seu m edonho destino de m ulher horrível.
Está à vista a incrível contradição em cjue eu me envolvia, por obra das
minhas próprias compulsões e dos meu próprios terrores fantasmáticos, em
que me envolvia, digo bem, po r minha conta, pois fui eu que, para a «salvar»
(ela não tinha então praticamente um único amigo), tive a iniciativa de lhe d a r
os meus, mas só o pude fazer induzindo e reforçando neles a imagem que
temia que eles fizessem dela, e que eu trazia em mim como uma maldição. Esta
iniciativa só «funcionou», ainda que ao preço de embates p o r vezes vúolentos,
em circunstâncias raras, quando Elélène descobria nos meus antigos alunos,
como Étienne Balibar, Pierre Machere}’, Régis Debray, Robert Linhart e Domi-
niejue Lecourt, bem como mais tarde em Franca, algo ejue lhe permitisse insti­
tuir uma verdadeira troca de idéias e de experiências, ou muito simplesmente
relações afectivas tranquilas e fecundas. Com outros, foi muitas vezes um
fiasco, que eu ruminava em silêncio e cheio de uma vergonha culpada. Uma

H5
/ o r I V t /, / n I s S /: A'

^l.is maiores iniciati\as da minha \'ida com Hclène salda\a-se assim por un
Lquí\x)Co doloroso que eu tenta\a sempre emendar, mas em \'ão. c os meus ira
cassos succssi\'os reforçavam-me no meu tem or e prtnenção duplos, refor
çando as dúv idas que eu alimentava acerca de ser deveras um hom em , capa,
de amar uma m ulher e de a ajudar a viver.
Seja com o for, o certo é que eu desempenhava funções de professor dt
filosofia, sentindo-me cada vez mais filósofo, a despeito de todos os meu''
escrúpulos.
r,\ identemente, a minha cultura filosófica dos textos era bastante redu
zida. Conhecia bem Descartes. Malebranche, um pouco Spinoza, nada de Aric
tóteles, dos sofistas, dos estóieos, bastante bem Platão, Pascal, Kant nada,
Hegel um pouco e por fim certas passagens de Marx lidas muito atentamente
(ionstruíra uma lenda acerca da minha maneira de aprender e por fim de saber
filosofia, com o gostav a de o repetir, por «ouv ir falar» (a primeira forma fruste
de conhecim ento segundo Spinoza), v alendo-me de jaeques Martin, mais ins-
trtiído do que eu, dos meus amigos, apanhando esta ou aquela fórmula de pas­
sagem, e p o r fim dos meus próprios alunos nas suas exposições e dissertações,
-Veabei assim, naturalmente, por fazer um ponto de honra altivo em «aprender
por ouvir falar», o que me distinguia singularmente de todos os meus amigos
universitários infinitamente mais instruídos do que eu. e repetia-o de bom
grado à laia de paradoxo c provocação, suscitando a surpresa, a admiração (!)
e a incredulidade de terceirtts. para minha maior confusão e orgulho.
Mas possuía sem dúvida uma outra capacidade bem minha. A partir de
uma simples fórmula, sentia-me capaz (que ilusão!) de reconstituir se não o
pensamento, pelo menos a tendência e a orientação de um autor ou de um
liv ro que não lera. Dispunha por certo de uma certa dose de intuição e sobre­
tudo de uma capacidade de aproximaçãt), quer dizer, de oposição teórica, que
me permitiam reconstituir o que pensava ser o pensam ento de um autor, a par­
tir dos textos a que ele se ttpunha. Procedia assim espontaneamente por co n ­
traste e demarcação, atitude ejue mais tarde viria a teorizar.
O meu gosto fantasmático pela autonom ia total e pelo combate nos limi­
tei de uma protecção absoluta, encontraria nestas práticas onde se investir. Além
disso eu era. pela minha experiência da prática política e o meu gosto pela
/ / 7 l K O II I I ! (I 7 /; 1/ /’

política, dotado de uma intuição bastante \ i\a da <eonjuntLira- e dov seus efei­
tos: mais um tema cjue viria a teorizar. Porque é no interior de uma conjuntura
teórica dada que podemos apreender as aproximaçõc'- e as oposicões filos(')Fi-
cas. De onde me \ inha esta sensibilidade à «conjuntura i' Sem dú\ ida da minha
extrema sensibilidade às «situaçetes» conflituais (sem saídai ciue não parara de
\'iver desde a minha infàneia. Acreseente-se a isto uma outra conxiccão de ins­
tinto segundo a qual c próprio da filosofia agir à distancia, no \a /io lo meu')
como o deus imóvel de Aristóteles, coisa que eu reencontrava na sittiacão analí­
tica (e Sacha iNacht numa breve fórmula impressi\a assinalara o m oti\oi, F.ra
portanto um filósofo, e como tal agia à distância, do meu refúgio na Pcole,
longe do m undo uni\ersitário de cpie nunca gostei, e que nunca frequentei. Ira-
tava d(ts meus assuntos sozinho, sem o auxílio dos meus pares, sem o auxílio
das bibliotecas, numa solidão que me \ inha de longe e da tjual eu fazia uma
doutrina de pensamento e conduta. Agir de longe era também agir sem pôr a
mão na massa, como sempre em posição segunda (o conselheiro, a eminência
parda de Daél e dos dircctores da Escola), segunda, quer dizer, ao mesmo
tempo protegida e agressiva, mas a coberto da protecção. Ser o «mestre do mes­
tre» ' continuava a ser a minha obsessão em surdina, mas justamente nessa dis­
tancia protegida pelos mestres relaticamente aos quais tomava justamente a dis­
tancia em que na verdade me comprazia. eu era sempre nesta relação perversa.
nã(t o «pai do pai», mas a mãe do meu pretenso mestre, impondo-lhe que reali­
zasse por pessoa e desejo interpostos o meu próprio desejo alienado.
Mas na realidade, e só agora me dou conta disso (escrever ajuda e reflec-
tir), procedia sob estas aparêneias de m odo inteiramente diferente. A fórmula
expressiva que fixava de um autor (do seu próprio texto) ou que colhia da
boca de um aluno ou amigo servia-me com o outras tantas sondagens Jm ifiin-
das de um pensam ento filosófico. Sabe-se que a pesquisa petrolífera nas gran­
des profundidades é feita igualmente assim por meio de sondagens. As sondas
estreitas penetram profundam ente no subsvtlo e da lá trazem para o ar livre
aquilo a que se chama «cenouras», que dão uma ideia concreta da composição

' .. h ’ <)ruiitn' d u m a d r e » , o q u e t a m b é m sc p o d e r i a i r a d u / i r p o r <o s e n h o r d o se n h o r»


j A', do '/, )-
L o r j s A / 7 // í S S 7: A’

cstratificada das camadas profundas e perm item identificar a presença do


petróleo ou de terras impregnadas de petróleo c das diversas camadas ho ri­
zontais acima c abaixo do lençol friático. Vejo agora muito claramente que
procedia do mesmo m odo em filosofia. As fórmulas descobertas ou recolhidas
serviam-me com o outras tantas «cenouras filosóficas» a partir da composição
(e da análise) das quais eu conseguia facilmente reconstituir a natureza das
diversas camadas profundas da filosofia em questão. /V partir daí. mas daí
somente, era capaz de com eçar a ler o texto de onde a «cemtura» fora extraída.
Foi assim que li com grande atenção certos textos limitados, e naturalmente
tentava lè-los com rigor, sem qualquer concessão semântica e sintagmática.
A título de curiosidade (tendo p o r certo um sentido, mas que me escapará tal­
vez para sempre), nunca fui capaz de penetrar, apesar de todas as minhas
cenouras psicanalíticas e de toda a minha experiência (como analisando) em
nenhum texto de Freud! nem em nenhum texto dos seus comentadores! Sou-
-Ihcs complctamente surdo... E a minha m elhor amiga não se cansa de me
repetir que assim é e que de resto cu sou uma nulidade cvtmplcta em teoria
analítica: tem toda a razão, O que conta na análise não é a teoria, mas (princí­
pio materialista e marxista fundamental) a p rá tic a .
Desde o início, com efeito, quer sob a influência do meu amigo Jacejues
Martin quer do Marx de A Ideologia A leniã. senti-me irremediavelmente em
posição muito crítica, ou m esmo devastadora perante a filosofia enejuanto tal.
/\ minha experiência política reforçou essa convicção, com o mais tarde a lei­
tura de Lenine, tão dura para os «professores de filosofia» (ver o meu opúsculo
Lénine et Ia philosophie. que recolhe o único discurso público que sustentei
em França, um verdadeiro desafio, na Société de Philosophie, onde Jean Mahl
nos convidou, a Derrida e a mim, a falar). O meu discurso causou um pequeno
escândalo, e valeu-me o conhecim ento de um espantoso teólogo e filósofo, o
padre Breton, que se tornaria um dos meus amigos mais queridos.

H8
XIV

entava conciliar esta crítica radical da filosofia com o impostura ideoló­


T gica (objccti\c): deixar de alimentar ilusões, única «definição» do matc-
rialismo a que sempre me ative) com a minha experiência da prática filosófica,
chegando inieialmente a fórmulas do gênero: «a filosofia representa a ciência
junto da política e a política junto da ciência», e mais tarde: «a filosofia é em
última instância' luta de ciasses na teoria». Continuo firmemente apegado a
esta última fórmula que, naturalmente, causou escândalo. Hm função da minha
concepção do materialismo, construí um sistema completo da filosofia como
não tendo tthjeeto (no sentido em que uma ciência tem ohjeetos), mas paradas
polêmicas e práticas, c empenhei-m e assim, a partir do m odelo do pensa­
mento político que a(j mesmo tempo trabalhava, num a concepção polêmica e
prática da filosofia: afirmar teses, que se opõem a outras teses existentes,
representando este K a m p fp la tz ' (Kant) na teoria o eco do campo da luta de
classes social, política e ideológica. Vê-se cjue em todas as circunstâncias, sem
ao tem po conhecer Gramsei. eu ligava estreitamente filosofia e política, sín­
tese inesperada, em suma, das lições políticas do «\elho Hours» e dos meus
estudos prtjpriamente filosóficos.
Que visava eu com esta aetividade? Não tenciono de maneira nenhum a
falar aqui dos seus efeitos teóricos objectivos, pois outros o fizeram c não me
compete a mim semelhante juízo, Quero apenas tentar se possível esclarecer

' «Campo dc batalha». CV. d o T )

f9
/ (; r / s , 1 /. / // r s s /:

motivos profundos c pessoais ettnseicntcs c sobretudo ineonseientes que


subjaziam a essa aeti\idade, na forma de que a re\esti.
Lá bem no fundo, havia eom eerteza aquilo a que ehamei a realização, sob
uma forma partieularmente pura e aeabada, quer dizer, abstraeta e ascética, do
«desejo da minha mãe». Hu transformara-me de faeto e objectivamente num
puro espírito universitário, n o n n a lie n e além disso autor de uma obra filosé)-
fiea, abstraeta e como cjue impessoal, mas apaixonada p o r si própria. L, ao
mesmo tempo, eatnseguira combinar eom o «desejo da minha mãe» o meu p r ó ­
prio desejo, o de viver no m undo e x te r io r ', o da vida social e da política.
Esta combinação podia ler-se nas minhas definições sucessicas da filosofia e
portanto da minha própria activiclade, mas no elem ento p n ro do pensam ento.
De faeto, que fazia eu então da política? Um pensam ento puro da política.
É verdade que Georges Marchais errou ao falar mais tarde dos «intelectuais
sentados à sua secretária» como se fosse esse o meu caso, mas a formula não
era inteiramente falsa nas suas ressonâncias, e todos os que, embttra achersá-
rios do Partido (iomunista. me atacaram longamente com o filósofo puro, des­
prezando do alto da sua teoria a realidade da prática (incluindo esse jornalista
Jean-Faul l:ntho\cn, ciue, um dia, a propósito da minha dedicatória a Walcleek
Rochet ~. escrcneu c]ue eu «cotttinuaxa a tresandar a aluno aplicado»...), atin­
giam-me. não me deixavam completamente ileso.
Mas isto não basta para dar conta da minha relação profunda eom a filoso­
fia c eom a minha concepção cia filosofia (que o exprimia também a seu
modo). Ficara muito impressionado e continuo a sentir-me impressionado
pelas palavras de Marx ao dizer que o filósofo exprime no conceito (cjuer
dizer, na sua concepção da filosofia) a sua «relação teétrica consigo próprio».
.\lém do que acabo de dizer, que procurava eu então exprimir de tão pessoal

' .\CR‘sut‘nt<) manusuriio à margem do texto cuja ligação ao resto da frase não foi operada pelo
autor <acti\amcnte por efeito da minha p rópria iniciativa, sem a iniciati\a de mais ninguém (Héléne.
Desanii. Merleau). excepto j. Martin que apenas me a juda\a com o um irmão mais velho (quando era
dois anos mais novo do que eu), mas, c o m o esere\ i numa nota necrológica. «com \ inte anos de avanço
sobre nós - ( V íi. f n w c è s )
~ «A \Xaldeck Rochet que admiraxa Spino/.a e deie me falou longam ente num dia de ju n h o de
I966> . dedicatória de flé/iiciiis cl autocrilicine. Paris. Hachette. 19"t ( do H. fra n c ê s )

180
o / r 7 r R o M l I I n / / 1/ 7^ f;

minha prática e na minha concepção da filosofia" Alguns dos meus leitores c


amigos, po r exemplo Bernard lidelman que muitas \ c/es mo disse com perspi­
cácia, notaram em muitos dos meus ensaios, em particular no meu brc\ e Mou-
tesíjuieu e no meu artigo sobre Freud e Lacan. a insistência de um tema. os
maiores filósofos nasceram sem p a i e viveram na solidão dt) seu isolamcnu)
teórico e do risco solitário que assumiam perante o mundo. Sim. eu não tieera
pai, e jogara indefinidamente a ser «pai do pai» para me dar a ilusão de ter tido
um, de facto para me dar a mim próprio papel de um pai em relação a mim
jtróprio, uma t ez que de todos os pais possíveis ou com que deparei nenhum
podia desem penhar esse papel. E eu rebaixava-os desdenhosam ente pondo-os
abaixo de mim, na minha subordinação manifesta.
Portanto tinha, filosoficamente, que me tornar também o meu próprio
pai. E isso só era possível se me conferisse a função por excelência do pai: a
dom inação e o d o m ín io (rnaitrise) dc toda a situação possível.
Foi o que fiz, na grande linha de toda a história da filosofia, assumindo
por minha conta a pretensão clássica e incessantemente repetida que quer,
desde Platão até ao próprio Fleidegger (nas suas fórmulas de teólogo nega-
ti\()), passando por Descartes, Kant e Hegel, que a filosofia seja a que abrange
tudo num só olhar (Platão: su n optikos), que pensa o todo, ou as condições de
possibilidade ou de impossibilidade do todo (Kant), quer se refira a Deus ou
ao sujeito humano, dom inado portanto «a Soma e o Resto» (fórmula dc Elenri
Lefebvre). O dom ínio (rnaitrise) do Todo, e antes do mais de si, quer dizer, da
sua relação com o objecto enquanto Todo: tal é a filosofia c]ue não é mais do
que «a relação txtnsigo do filósofo» (Marx). e tal é po r conseguinte o filósofo
também. Ora o Iodo só se pode pensar no rigor e na clareza de um pensa­
mento de pretensão total, tjue reflicta assim os elementos e as articulações do
Todo. Fui por isso um filósofo claro e que se queria rigoroso. Fsta pretensão
não deixou por certo de ter eco nas tendências ou expectativas pessoais dos
meus leitores, po r certo que os «agarrou» algures num a das suas exigências de
inteligibilidade e. como a minha linguagem era também ela uma linguagem de
d o m ín io (langue de rnaitrise)., controlando o seu próprio patético (cf. o pre­
fácio de Pour M a rx e a Réponse à Jo h n Leivis. etc,), é indubitá\ el que tocou
os meus leitores tanto com o o rigor da minha argumentação: por delegação de

181
/. o I I s .1 L í // l V V /r R

dom ínio (m attrise). E, bem entendido, porque aqui tudo se reforça de perto
(e não apenas em mim, sendo o pensamento e o estiJo função de uma mesma
«relação do filósofo» com o seu conceito) esta unidade do pensamento e da
sua clareza (um dom ínio em plena clareza, a clareza com o forma de domínio,
o que se entende) e da língua, conquistou-me um público que a minha argu­
mentação p o r si só nãtt teria sem dúvnda tocado de m odo tão profundo. Foi
assim c|ue para minha m aior surpresa soube, p o r exempkt por Claudine Nor-
mand, que tinha um «estilo» e era à minha maneira uma espécie de escritor,
E, bem entendido, desenvolvia com o teoria da filosofia uma teoria da filosofia
com o dom ínio {m aitrise) tanto de si como do Todo, bem como dos elementos
e das articulações desses elementos, e, para lá da esfera propriam ente filosó­
fica, um dom ínio (m a itrise) à distância através do cctneeito e da linguagem.
Como ciualquer filósofo, mas criticando radicalmcnte essa pretensão (criticava
deste m odo a própria ideia, risível para mim, de um pai todo-poderoso e pre­
tendendo sè-lo), considerava-me responsável de algo que dizia respeito aos
ideais hum anos e até m esm o à condução da história do m undo real. incluindo
aquilo que pretende conduzi-kt ao seu destino (um destino que só existe,
como muito bem disse Meidegger, na ilusão da consciência com um e dos polí­
ticos). a saber, a política e as políticas. Foi por isso que diversas vezes me aven­
turei no terreno concrett) da política, pronunciando-m e (arriscadamente sem
dúvida) sobre o estalinismo, a crise do marxismo, os congressos do Partido e
o m odo de funcionamenttt do Partido. (Ce q u i ne p e iit p lu s d u rer d a n s le
p a r ti eom m uniste. 19~8). .Vias tjue filósofo, no fundo de si próprio, o mais das
\ezcs abertamente entre os grandes, e sobretudo quando não consente em co n ­
fessá-lo, não cedeu a essa tentação, filosoficamente orgânica, de manter os
olhos postos no c]ue quer mudar, transformar no muncka? O próprio Heideg-
ger diz, é certo que falando apenas da fenomenologia (mas porquê apenas ela?
.Mistério), tjue esta visa «mudar o mundo». Foi por isso que critiquei as céle­
bres palavras das «léscs sobre Feuerbach», de Marx: «Já não se trata de interpre­
tar o mundo, mas de o transformar», m ostrando contra esta formula que todos
os grandes filó so fo s ciuiseram interc ir no curso da história do mundo, ou para
o transktrmar, ou para o fazer regredir, ou para o conservar e reforçar na sua
forma existente contra as ameaças de uma transformação tida p o r perigosa.

182
O F r 7 r R o F M l' I I o J F M P o

E neste ponto, a despeito da célebre e aventurosa fórmula de Marx, penso ter


tido razão e continuo a pensá-lo.
Mas avalie-se então a responsabilidade subjecti\a de que o filósofo sc
sente investido! Responsabilidade esmagadora' Porque ele não dispõe, como
nas ciências (que considerei a todas como experimentais), de qualquer disposi­
tivo ou qualquer m odo de verificação. Contenta-se com estabelecer teses sem
nunca as poder verificar pessoalmente. Tem sempre que antecipar os efeitos
das suas teses filosóficas sem saber sequer onde. ou como. esses efeitos p o d e ­
rão deveras manifestar-se! É verdade que não afirma as suas teses arbitraria­
mente, mas levando em conta aquilo de que se apercebe ou pensa aperceber
no Todo e na sua tendência, e contrapondo-as a outros sistemas de teses exis­
tentes no seu mundo. Como tem sempre que antecipar e se sente sempre p ró ­
ximo da sua subjectividade histórica, fica todavia muito só diante da sua p e r ­
cepção do Todo (a cada um o seu todo, não c?) e mais só ainda na iniciativa
que assume de afirmar, sem qualquer consenso, pois é aí cjue ele quer também
mudar alguma coisa, teses novas. Solidão do filósofo. Descartes no refúgio
heróico do seu fogão, Kant no seu tranquilo, ruminador, refúgio de Kónigs-
berg, Kierkegaard no refúgio trágico do seu drama íntimo, Wittgenstein no
refúgio florestal da sua casa de pastor da Noruega! E eu, com o qualquer filó­
sofo no mundo, ainda que rodeado de amigos, eu encontrava-me extrema­
mente só no meu gabinete, quer dizer, no meu pensamento, na minha preten­
são e na minha inaudita audácia. Só e, é claro, totalmente responsável pelos
meus actos e pelos seus efeitos imprevisíveis, sem outra sanção para além do
devir ulterior da história cio mundo, esse facto ainda não consumado. Achava­
-me extremamente só enquanto filósofo e contudo escrec i na Resposta a John
Lewis: «Um comunista nunca está só.» Toda a diferença está de facto aí. mas
torna-se compreensível quando se pensa que todo o filósofo quer efectiva-
mente «transformar o mundo» — o que não pode fazer sozinho sem uma orga­
nização comunista, mas realmente livre e democrática e em estreita ligação
com a sua base e para além dela com os movimentos populares de massa (ver
o meu panfleto de 1978).
Basta que se leiam os meus textos: encontra-se neles com o uma obsessão
o le itm o tiv da solidão, e o da responsabilidade. Quantas vezes não repeti que.

183
/ r / ,s I / 7 7/ r V s 7 77

tanto em política como em filosofia, não fazia mais do que in te rv ir sozinho


contra todos — c os ad\crsários longamente mo fizeram sentir — e «por
minha conta e risco». Sim, sabia que estava só, que corria grandes perigos,
bem mo fizeram sentir mas sempre o soube de antemão. () que ninguém pode.
ao ler-me, contestar é que sempre tive consciência c[uer da minha solidão radi­
cal perante a minha intervenção, quer da minha extrema responsabilidade
assentando em última análise apenas em mim, quer dos riscos e perigos a ciue
a minha solidão e a minha responsabilidade me expunham. Que tantos leitores
se tenham depois reconhecido nesta solidão, a deles, e a responsabilidade cjue
assumiam de aderir às minhas teses, e aos riscos ligados aos efeitos políticos
em que incorriam, não surpreenderá ninguém. Mas eles, pelo menos eles, não
se encontravam inteiramente sós na circunstância, uma \ez que eu me anteci­
para e podia assim servir-lhes de garante e de mestre (mestre de domínio
(niaitrise)). justamente porque fora o primeiro e estivera por conseguinte só
na minha iniciativa.
Sim, neste domínio, como sonhava no do amor. era de facto eu e mais nin­
guém que toma\ a a iniciatir a. eu c|ue me gabar a ocasionalmente (c sei que isso
magoou (juitton) de não ter tido mestres em filosofia (escrer i-o no prefácio de
Poiir Menw). e nem sequer em política (excepto Hours, Courréges, Lesèvre e
llélène). I nico responsárel. descobrira finalmente o campo da minha inicia­
tiva. uma iniciatira absoluta, a minha, onde realizara enfim o meu próprio
desejo, no limite o desejo de ter enfim um desejo meu (desejar ter um desejo
é sem dúvida um desejo, mas um desejo ainda formal, portiue é a forma vazia
de um desejo, e tomar esta forma vazia de um desejo po r um desejo real, tal
tora der eras o meu drama, do qual saí vencedor, mas em pensamento, em p e n ­
samento puro), apanhado como num destino na realização do puro desejo da
minha mãe, até na forma enfim alcançada da sua negação.
Como, em tais condições, não dar ao meu pensamento a forma abupta de
um corte, de uma ruptura? Reconhecer-se-á aqui um dos temas na verdade
objectiramente bem et}uír'ocos tiue sempre obsidiaram a minha reflexão.
Como escapar igualmente à necessidade de marcar, na própria linguagem do
meu discurso, o abrupto deste corte pelo abrupto de fórmulas abruptas, todas
as aparências do «dogmatismo» de que tanto me acusaram? Considerei em

18a
/ r / r R o I M l I I o / / 1/ /'

profundidade que, definindo-se pelas teses que afirniax a sem ciualquer isossibi-
lidade de xerificação experimental, toda a filosofia era na sua essencia clo^^nid-
tica, e cheguei a proclamá-lo no «Cours de philosojshie pour 'Cientifiques-
(196^), dizendo, afirmando a verdade das suas teses sem outras jsrccaucões
para além do acto de as afirmar. Muito simplesmente, sustentaxa a linguagem
da xerdade quer do que pensaxa e fazia (afirmando teses, por xezc' aberta­
mente. cf. Philosophie et p h ilosopbie spontanée des savants). quer do que
toda uma filosofia fazia antes de mim, quer o reconhecesse abertamente (São
Tomás, Spinoza, W ittgenstein, etc.) ou o calasse. Q uando nos sabemos únicos
responsáxeis tanto peb.i nossa solidão necessária à xerdade tiite afirmamos em
teses, com o pela xerdade do filósofo que somos, e pela xerdade de toda a filo­
sofia, a hon estid a d e mínima não será sustenttir uma linguagem conforme, até
nas sitas formas de ititerxenção e de interpelação (xer o papel epte conferi ã
iixterpelação a propósito da ideologia), com a natureza daquilo tjue fazemos-'
não será exprimirmo-nos na própria forma ejue exprime, e sem rodeios, aquilo
t|ue pensamos e fazemos?
() meu pai tartamudeaxa, a minha mãe era clara e sonhaxa com a clareza.
Hu fui claro, mas tão abrupto com o era o tneii pai no seu pensam ento interior
e nas suas interxenções brutais. Sem rodeios, o meu pai chamaxa as coisas
pelos nomes, até mesmo tiuando se calaxa, c era um hom em capaz de puxar
brutalmente pelo rex éílxer, e houve itm dia em que chegou a saltar, para o mas­
sacrar. sobre um ciclista infeliz, que, nas matas, derrubara a minha irmã. Esta
recusa x iolenta de «alimentttr ilusões», esta brutalidade sem rodeios, cjue sentia
ser a de um pai t|ue me faltara e, pelo menos, nunca me iniciara nessa atitude,
nunca me ensinara que o m undo não é itm m undo etereo mas um m undo de
lutas físicas e outras, eis tpie eu tinha finalmente a audácia e a liberdade de
endossar a sua realidade. Não me tornaria assim, por fim e realmente, o meu
próprio pai. quer dizer, itm homem?
Não dex’c procurar-se numa análise deste gênero a última palax ra acerca
do sentido objectixo seja de que filosofia for. Forque, sejam quais forem as
motivações internas, conscientes ou inconscientes, de um filósofo, a sua filo­
sofia escrita é um;i realidade objectiva. nisso fica inteira, e os seus efeitos ou
não sobre o m undo são efeitos ohjectiros que, no limite, não tém já qualquer

185
L O V I S A L 7 // r S S E R

relação com este interior que aqui descrevo, e graças a Deus! Porque a filoso­
fia, como aliás qualquer actividade, não seria então mais do que o puro inte­
rior de todas as subjectividades do mundo, fechada cada uma delas no seu
próprio solipsismo. Se alguma vez tivera dúvidas a este respeito, aprendê-lo-ia
com uma realidade terrível, a de política em pessoa, mas para com eçar no
interior da própria filosofia.

186
XV

orque qualquer hom em que intervém pela acção — e eu considera\a


P então a intervenção filosófica uma acção, no que não me enganava —
intervém sempre num a conjuntura para modificar o seu curso. Em que conjun­
tura filosófica era eu pois levado a «intervir»?
Era em Erança, a França com o sempre ignorante de tudo o que se faz fora
das suas fronteiras. E eu, pelo meu lado. tudo ignoraca de Carnap, Russell,
Frege, ou seja, do positivismo lógico, com o de Wittgenstein e da filosofia ana­
lítica inglesa. De Eleidegger, só tardiamente li a Carta a Jean B eaiifret sobre
o H u m a n ism o que não deixou de influenciar as minhas teses sobre o anti-
-humanismo teórico de Marx. Confrontava-me portanto com o que se lia em
França, quer dizer, Sartre, Merleau-Ponty, Bachelard, e infinitamente mais
tarde Foucault. mas sobretudo Cavaillès e Canguilhem. Depois um pcnico de
Husserl ejue nos chegaca por intermédio de Desanti (marxista husserliano) e
de Tran Duc Thao cuja tese me fascinava. De Husserl. nunca li senão as M edi­
tações C artesianas e a Krisis.
Nunca, por mil razões que um dia direi, pensei como Sartre que o marxismo
pudesse ser «a filosofia inultrapassável do nosso tempo», e por uma boa razão
que continuo a sustentar. Sempre pensei que Sartre, esse espírito brilhante, autor
de prodigiosos «romances filosóficos» como L Être et le X é a n t e a C ritique de Ia
raison dialectique, nunca compreendera nada nem de Hegel, nem de Marx,
nem bem entendido de Freud. Via nele, na melhor das hipóteses, um desses «filó­
sofos da história» pós-cartesianos e pós-hegelianos que horrorizavam Marx.

187
/. o r / ,v I /. 7 H I S S 7: R

Sabia, é certo, por c[uc \ ia,s Ilcgcl c Marx ha\ iam sido introduzidos em
França; através de K oic\eniko\’ (Kojève), emigrado russo com altas responsabi­
lidades no Ministério da Feonomia. Fui procurá-lo um dia ao seu gabinete
ministerial para o convidar a proferir uma conferência na Fcole. E ele foi,
hom em de rosto e cabelos escuros cheio de malícias teóricas infantis. Li tuck)
o t|ue ele esertoera e conrenci-m e rapidamente de cpie ele — ([ue todos,
incluindo Lacan, tinham escutado apaixonadamente antes da Guerra — não
com preendera rigorosamente nada de Flegel ou Marx. ,\ele tudo girava em
torno da luta de morte e do Fim da flistória, a que ele atribuía um espantoso
conteúdo burocrático, lérm in ad a a história, quer dizer, a história da luta de
classes, a história não acaba, mas nada mais se passa nela a não ser a rtttina da
a d m in istra ç ã o das coisas (vi\ai Saint-.Simonl). Gma forma de associar sem
dús ida os desejos do filósofo e o estatuto do grande burocrata.
Não com preendia como, a não ser considerando a total ignorância fran­
cesa em relação a Hegel, Kojè\e pudera fascinar tanto os seus ouvintes: Lacan,
Bataille. Queneau e muitos outros. Fm contrapartida, concebí uma estima infi­
nita pelo trabalho erudito e corajoso de um Ll\ ppolite que, em \ez de interpre­
tar Hegel, se contentava com dar-llie a palac ra na sua admirável tradução de ,*f
rc n o m e n o lo g ia do Espírito.
Tal era portanto a conjuntura filosófica em cjue eu me via na obrigação de
apensar». Fstava a redigir, como já contei, uma tese sobre Hegel, na qual me
orientoti o meu amigo jactiues .Martin, que possuía uma vasta cultura filosófica.
Facilmente me dei conta de que os «hegelianos» franceses discípulos de Kojève
nada ti>ihani com preendido de flegel. Bastasa, para se ter a certeza, ler o p ró ­
prio Hegel. Finham-se ficado todos pela luta do senhor e do escravo e pelo
absurdo total de uma «dialcctica da Natureza». .Mesmo Bachelard. notei-o pela
sua observação tjue atrás referi, nada compreendera. De resto, não tinha a esse
respeito quakiuer pretensão, pois não tis cra tempo para o ler. Sobre Hegel,/teVo
m enos em fra n ç a , continuava tuck.) por com preender e explicar.
Fm contrapartida, Husserl penetrara um tanto entre nós, através de Sartre
e de Merleau, F conhecido o célebre episéadio contado pelo Castor Raymond

\(>mc por que Sartre tratava Sinsonc tlc Bvuinoir t .\. do

188
F r 7 l R o / M I I I O 7 K M P n

Aron, o «bom amigo» d t Sartrc. passara em 1928-1929 um ano lecti\o em Ber­


lim. que o esclarecera sobre a ascensão do nazismo, mas onde digeria a pálida
filosofia e a sociologia alemãs subjcctic istas da história. ,\ron \oita para Paris
e vai ter extm Sartrc e o Castor ao seu café de sempre sartre e^tá a beber um
grande sumo de alperce. E Aron diz-lhe: «,\leu bom amigo, descobri n.i .\lema-
nha uma filosofia ejue te vai fazer com preender por que e que e-tás >entado
neste café. e bebes um sumtt de alperce, e por cpie é tiue isso te .tgrada Esta
fiktsofia era a de Husserl naturalmentc o antcpredicativo podia dar conta de
tudo, incluindo o sumo de alperce. Ao que parece Sartre ficou espantado e
começou a devorar Husserl, e a seguir o primeiro Heidegger' Podemos \ cr o
resultado na sua obra: uma apologia subjectivista e cartesitmti do su)eito tia
existência contra o objecto e a essência, o prim ado da existência sobre ;i essên­
cia. etc. .Mas nada que tivesse muito a \ e r com a inspiração profunda de lliis-
ser! ou dc Heidegger, ciue rapidamente marcaria as suas distâncias em relação
a Sartre. fratava-se antes de uma teoria cartesiana do cogito no campo de uma
fenomenologia generalizada e por isso completamente deformada. .Mericau,
filé)sofo muito mais profundo, seriti muito mtiis fiel a Husserl, sobretudo
depois de descobrir as suas últimtis obras, em particular E tfa h rtin g m u i Urteil
c as «Lições sobre a Consciência ckt lempo» ciue ct)menta\a de m odo admirá-
\el nas suas aulas da Ecole aproxim ando a teoria do antepredicatica) da praxis
em Husserl da teoria do juízo natural em Malebranche do pensam ento do
corpo prétprio em Maine de Biran e Bergson. Era tudo muito esclarecedor. Em
privado Thao dizia-nos: «Vocês são todos egos-iguais ' transcendentais 1» Sor­
ria ao dizê-lo, mas que verdade profundai
'fuclo isto era extremamente instrutivo ejuanto a Husserl. c[ue Merleau
nunca deixou de meditar para acabar num regresso à mais profunda tradição
francesa, a do espiritualismo, mas muito subtil na sua versão, e recheada de
perspectivais profundas sobre a criança. Cézanne. Ereucl, a linguagem, o silên­
cio e a pré)pria política marxista e sov iética (cf. H m m m isiiie et ie n v m : f.es
A ventures de ia dialecticjiie). Merleau. ao contrário de Sartre, esse romancista

■ \ a t r a d u ç ã o p c r d c - s c o t-fcilo j o c o s o p r o t l u / u l o p<-l.t h o n i o l o n i a dc c c,:cau\ ’ do orc-


iin al. I V . (to I. I

18 9
/. o r ! s .1 /. 7 II I s s i: R

filosófico à maneira de Voltaire mas de uma intransigência pessoal à maneira


dc Rousseau, cra rcalmentc um grande filósttfo. o último em França, antes do
gigante que é Derrida. mas nada esclarecedor quanto a Hegel ou Marx. Lem­
bro-me sobretudo, a este propósito, de Desanti. que era muito competente em
lógica e matemática (provou-o nos seus livros). Todos os anos, começava um
curso sobre a história da ktgica mas, «caminhando com combatit idade». nunca
passa^a de Aristóteles. Afinal de contas pouco im porta\a. O que importava
pelo m enos para mim é que quando lhe acontecia falar com o um filósofo
sobre Marx era para o pensar directamente nas categttrias de Flusserl. E, como
FlusserI propusera a soberba categoria da «praxis» antepredicativa (camada o ri­
ginária de sentido ligada à manipulação das coisas), o nosso bom Touki (nome
que lhe davam os íntimos) sentia-se felicíssimo por descobrir em flusserl o
sentido e n fim fu n d a d o da prática marxista. Mais uma figura. Touki, que (tal
com o .Sartre) pretendia fornecer a Marx o sentido originário da sua própria
«filosttfia». Evidentemente, eu, que graças a jaeques Martin começava a ler
directamente os textos de .Marx e a compreendè-lo, aliás indignado pelas pre­
tensões fundadoras-humanistas dos seus textos de juventude, não estava de
acordo, .\unca esti\c de acordo com as «interpretações» husserlianas de Mar.x
por Desanti, nem com qualquer outra interpretação «humanista» de Marx.
E adi\ inha-se porquê; porque tne horrorizava qualquer filosofia ciue preten­
desse fundar transccndentalmente a p r io r i qualquer sentido e qualquer \er-
dade numa camada originária por muito antepredicativtt que fosse. Desanti
nada tinha a ver com isto, excepto na medida em que não tinha o mesmo h o r­
ror que eu pela origem e pelo transcendental.
Comecei a desconfiar do seu «seguidismo» ejuando o vi acertar o passo
por Laurent Casanova, corso com o ele. em todas as suas manipulações políti­
cas da ciência burguesa e da ciência proletária, história em que nunca me dei­
xei cair. Sempre que me encontrt) com Victor Leduc, então quadro importante
para os «intelectuais» do Partido, ele lembra-me a m inha posição nas discus­
sões do tempo: «Tu eras contra a oposição entre as duas ciências, e eras pratica­
mente o único com essa posição entre os intelectuais do Partido.»
Muito naturalmentc os operários estavam-se lixando para isso. O que sei é
que para sua vergonha Touki escreveu «por encomenda», com o disse mais

190
() I- í r i R o f M r I / <> 7 /; u p o

tarde, um inconcebível artigo teórico em La X o nre/le Critic/ae para «fundar»


(sempre a mesma coisa) a teoria das duas ciências na luta de classes. Xinguem
lhe pedia em consciência que desautorizasse publicamente a sua consciência e
a sua cultura filosóficas. Mas ele fê-lo. e contudo não tinha a desculpa de um
processo no Conselho Comunal.
Mas o pior cpie tenho a censurar-lhe. e trata-se de um ponto sem apelo, foi
uma emissão televisiva que ele próprio fez sobre si próprio p(.)r volta de 19“ 5.
Aparecera sozinho no ecrã com um minúsculo fraldiqueiro de \elha senhora
que não parava de o arrastar de estátua cm estátua (para m ijar). e Touki falaca
sozinho. Falava do tempo do período das duas ciências, e em com o então fora
arregimentado. Tudo isto no tom de um autêntico palhaço (talento que pos­
suía) contando essa história medonha, que fez ou podería ter feito mortos, e
pelo mencas fez de Marcei Prenant um cadáver vic o, com o uma historieta de
bêbados: «Foi assim, disseram-nos que era preciso fazer aquilo, e nós fizemos.»
Tudo isto durante dez insuportáveis minutos: um m onólogo interrom pido ape­
nas p o r chamamentos do fraldicpieiro nas grandes áleas do Luxembourg e por
piscadelas de olho e esgares de cumplicidade, sim!, para os telespectadores.
Era preciso fazer aciuilo: mais tarde Touki saiu do partido e geriu uma carreira
universitária prudente. Dizem-me que, recentemente, tentou examinar o seu
passado husserliano. A ver vamos.
O mesmo ê dizer que eu tinha demasiadas razões ao m esmo tem po políti­
cas e filosóficas para me defender da sua inspiração e do seu exemplo. Decidi­
damente, tal «dupla verdade» não me convinha, Não concebia que se pudesse
ser um filósofo pensando pela própria cabeça na École e um cãozinhet pela
trela de «Casa» ^ no Partido. A unidade da prática e da teoria, essencial para o
marxismo e para os comunistas (Courrèges!) excluía para mim — o que será
óbvio para toda a gente — a existência da dupla \e rd a d e que me lembrad a as
práticas tão certeiramente criticadas aos padres por Helvétius e d Holbach no
século xviii. Que um filósofo que se pretendia marxista esti\esse ainda, em
1945-50, atrasado em relação aos princípios das Luzes, que eu contudo não
partilhava, era algo cjue me ultrapassava.

Diminuti\() dc C;isanov;i (Laurent a quem o auto r ;ur:ts fez referência). (,V. cio T. )

191
/. o r / s 1 I I II ! S S /: A’

Foi por isso que não tive cm filosofia, com o cscrc\ i no prefácio de Pour
Mcirx. nenhum verdadeiro mestre, nenhum mestre exeepto I hao, mas esse em
breve nos deixou para regressar ao Vietname e aí apodrecer entre tarefas de
varredor de lixo e a doença, sem medicamentos (os seus amigos franceses ten­
tam fazer-lhos chegar às mãos), e Merleau, mas com o este fora já atraído pela
antiga tradição espiritualista dominante, era-me impossível segui-lo
Inacreditável tradição francesa que então partilhava com a tradição dita
neo-kantiana de Brunsehvieg. tudo o que era filósofo da l niversidadel Tradi­
ção institucionalmente fundada po r \ ’ictor Cousin no início d(t século xjx
(ver o interessante primeiro livro de Lucien Sève) e ciue. pela sua obra e sobre­
tudo pelos seus programas oficiais bem com o por todas as elucubrações da
escola ecléctica, tão bem combatida pelo socialista Pierre Leroux. hom ens
com o Ravaisson. Bergson, Letiuicr e rceentemente Ferdinand Alquié tinham
í-engendrado». ,\o estrangeiro, não descobrimos nada de equivalente a esta tra­
dição. Xão deixou de ter «méritos», ó ironia da dialéciica da história, uma vez
que defendeu até quase aos nossos dias (até aos trabalhos de Jules Nuillemin e
Jactjues Bouv eressc) a França da invasão do positivismo lógico anglo-saxémico,
e da filosofia analítica da linguagem britânica (de resto extremamente interes­
sante). Fora destas duas correntes dominantes no exterior, uma obra como a de
W ittgenstein — jact|ues Bouveressc e Dominitpte Fecourt e .Mari na Argentina
bem o mostraram e demonstraram — permanecia para nós totalmcnte deset)-
nliecida. .Mas o qtie vale uma «protecção» por ignorância ou repulsa? Maciuia-
vel bem o demonstrou: as fortalezas são os pontos mais fracos de ciualc|uer dis­
positivo militar, e Lenine, na esteira de Cioethe, bem o disse: «Se quiseres
co nhecera teu inim igo, terás que p e n e tra r no p a ís do teu inimigo.-^ Tudo isto
era risível. F mesmo o neo-kantismo de Brunsehvieg, deform ando Spinoza no
espiritualismo mais raso, o da consciência e do espírito. Hoje, quando final­
mente se traduziram alguns textos, quando Fleidegger depois de Nietzsche tem
enfim direito de cidade entre nós, quando Bouveressc nos deu estudos de
grande erudição sobre o neopositivismo lógico e ciuando Wittgenstein ou

> lendo c,sia frase sido parcialmcntc riscada pelo autor, o que a tornava coxa e incompreensi-
\el. resíiUiimo ia acpii st)b a sua forma inicia] completa. (.V, do fnw cès)

192
o F r 7 r K o L M r 1 7 o 7 F M P o

Hegel e Marx se encontram abundantem ente traduzidos e com entados, as fron­


teiras estão finalm ente abertas.
Mas em 1945-1960 estávamos m uito longe disto. Tínhamos que nos «arran­
jar» com o que havia. Havia Descartes, é verdade, mas atra\ és de que interpre­
tações espiritualistas! com a excepção das de Étienne Gilson, de Émile Bréhier.
e tam bém de Henri G ouhier; G ouhier polem izando contra Alquié. que inter­
pretava Descartes em term os espiritualistas. Havia sem dúvida Martial Gué-
roult, esse erudito sem concessões na sua leitura dos autores, para dizer a \er-
dade o único grande historiador do nosso tem po, do qual descendem Jules
Vuillemin e Louis Guillerm it. Mas G uéroult era então som ente um grande
«comentador», e ninguém adi^’inhava que tinha na cabeça um a teoria e stru tu ­
ral dos sistemas filosóficos. Vuillemin e Guillem in e Guillerm it eram pratica­
m ente desconhecidos. Eu convidava-os para a École, mas Vuillemin estava (tal
com o Bouveresse, seu discípulo em amargura) tão cheio de ressentim ento c o n ­
tra a solidão intelectual a que se achava reduzido que arranjava sem pre
m aneira de reduzir o seu auditório a dois ou três alunos, para depois vir ter
com igo a com unicar-m e cjue desistia! A m esm a estranha provação se repetiu
com Bouveresse, m uito mais jovem. Fora meu «aluno» e nunca deixei de o
convidar para a École. Julgo saber que Bouveresse me acusou (e talvez me c o n ­
tinue a acusar ainda) de ser o responsável pela decadência filosófica francesa,
do m esm o m odo que no seu últim o livro cobriu de lama D errida, esse gigante
apelidado, com o Hegel outrora, de «cão morto» (se as palavras não são as m es­
mas, é-o a coisa). Também entre os filósofos há delírios declarados.
Fiz tam bém durante m uito tem po com que G uéroult fosse convidado pela
École, mas era com plicadíssim o! Tinha que o trazer e levar de autom óvel. Teve
grande êxito junto dos estudantes de filosofia da École. Era no tem po em cjue
D errida, acabado de nom ear para a École po r proposta m inha, séi e despre­
zado em França pela Llniversidade, ainda não era verdadeiram ente conhecido
entre nós. E eu ainda não sabia para onde ele acabaria por se encam inhar.
Q uanto a mim, que sentia a necessidade de intervir em filosofia por
razões de ideologia e política, tinha de me «arranjar» de facto com o que havia
e com os conhecim entos de que dispunha: um po u co de Hegel, m uito D escar­
tes, pouco Kant, bastante M alebranche, um pouco de Bachelard {Le N ouvel

193
/. o l l s .1 L I II r V V R

Fsprit scientifique), m uito Pascal, um pouco de Rousseau ao tem po, um


pouco de Spinoza, um pttuco de Bergson e a H istória da Filosofia de Bréhicr.
meu livro de cabeceira, e ainda, naturalm ente, um pouco mais tarde bastante
,Marx, o único capaz de nos arrancar à confusão dos gêneros.
Lancei-me portanto ao trabalho, com eçando por alguns artigos obscuros
(estes artigos estavam ainda m uito sob a influência do d ia -m a t. em bora eu dis-
tinguisse cuidadosam ente o m aterialism o dialéctico do m aterialism o histórico
sem conceder qualquer prim ado teórico ao prim eirtt sobre o segundo) da
Revue de F E nseignem ent philosophicfue. Ptibliquei igualm ente uma artigo
sobre Paul Ricoeur,
Finalm ente foi-me proporcionada ocasião de intervir cm La Peiisée. em
19[6J2. nas condições que referi no prefácio de Foiir M arx. Fiquei a devê-lo
exclusivam ente à amizade de Marcei C ornu cjue me apoiou indefectivelm ente
contra Georges Cogniot. então secretário de Maurice Thorez. Cogniot, ao
tem po director da revista, tinha (t cttstum e de espadeirar todos os artigos com
exclam ações violentas: estúpido! idiota! absurdo! insensato! Imagine-se
depois o redactor frente ao autor do artigo! No meu caso. Marcei ameaçara
pura e sim plesm ente demilir-se, o que conteve as investidas de Cogniot.
Até ao dia cm cjue, depois do meu artigo sobre «Contradição e sobredeter-
minação» e de um a resposta \ irulenta de Crilbert Mury sobre o «monismo». ins­
pirada po r Roger Garaudy então ainda todo-poderoso, Cogniot organizou um
«processo teórico» nas instalações do laboratório «Henri Langevin» de Orcei
que presidiu às sessões, rodeado da «nata» filosófica e política de La Pensée.
Era, po r com paração com o Conselho Com unal, uma com édia insignificante.
A coisa durou um mês e meio. todos os sábados à tarde. Cogniot não intervi-
nha, d a \a a palavra a este ou àquele dos ciue pretendiam refutar-me. Com o de
costum e desenhei no quadro alguns esquem as e respondi às críticas. Ao fim de
seis semanas, vi Cogniot com eçar a sorrir: no fundo, eu era um n o rm a lien
com o ele e percebi cjue, se não o convencera, pelo m enos o desarm ara. Da
última \e z que fui convocado, passado um mês e meio, respondi sim ples­
m ente: «Penso ter mais ou m enos respondido, e creio que as instâncias teó ri­
cas do Partido, que têm m uito de que se ocupar, fariam bem ao interrom per
este processo e tratar de questões mais urgentes.» E não com pareci.

194
F r 7 r A’ n M r I 1 o 7 /■ 1/ !> O

Ciniça.s a jacqucs M artin, descobri finalm cm e dois ]7cnsadores aos quais


o quase tudo. Hm prim eiro lugar Jean (;a\ aillès, do qual me contentava ape-
■com certas fórm ulas («o processo não de uma clialéctica mas de um con-
lO. ). e Georges Canguilhem , hom em com a fama de ter um feitio impossí-
com o o meu avô e com o Hélène, mas de factt) com o ele e com o ela um
:o,em maravilhost) de inteligência e de generosidade, .\cabou. ame a insis­
tia dos seus amigos, p o r aceitar apresentar a sua candidatura ao ensino
'cri(7r. Escrevera um li\ ro de inspiração nietzscheana sobre o norm al e o
•Kigictt. Escrevera tam bém um artigo celebre sobre «a psicologia que le\a
ao Collège de Erance ora à prefeitura da polícia»... Para concorrer ao
no superior, redigiu uma pequena tese sobre o conceito de reflexo,
oinstrando concretam ente o paradoxo segundo o qual a ideia de reflexo
-era num contexto não m ecanicista mas vitalista! O escândalo escorava-se
:extos e dem onstrações incontestáveis. O qtie me abria perspectivas assom-
'.i' sobre os efeitos de inversão das ideologias reinantes nas suas conse-
icias sobre as próprias ciências. Aprendi assim com ele várias lições decisi-
prim eiro que a cham ada epistem ologia à qual eu parecera consagrar-m e
osurda fora da história das ciências; em seguida que esta história, longe
nedecer ã lógica das Luzes, podia desem bocar nas suas descobertas a par-
.-quilo a que ele chamava, cjuase com o nós, «idettlogias científicas», repre-
tiãcs filosóficas actuando sobre a elaboração, as concepções e até m esm o
nceitos científicos, e com frequência de m aneira absolutam ente parado-
\ ã o deixei escapar esta lição decisita. Não posso dizer a que ponto a
-ncia de Canguilhem foi decisiva para mim e para nós. O seu exem plo
Li-me, afastou-nos (porque Balibar e Macherey e Lecourt seguiram -no
:iiais de perto do que eu) do projecto idealista tjue inspirava as m inhas
-iras definições teoricistas da filosofia com o teoria da prática teórica.
' Jizer, da prática das ciências, concepção quase positivista em que a filo-
c com o que a «ciência das ciências», definição que me apressei a rectifi-
ao no prefácio da edição italiana de Ler o C apital (em 1966). Estive
tem po sem o ver. l)m dia, depois de ler os m eus Iíc t o s , ele dissera-me:
preendo o que você quis fazer», mas não lhe dei tem po suficiente para
/er. Sei cjue em Maio de 68 perm itia que os alunos tom assem a palavra

195
L O i / S .1 /, / H r S S E R

para convocar um a m anifestação, um a greve, etc. Sou-lhe infinitam ente deve­


dor. Ensinou-m e as astúcias históricas desconcertantes das relações entre a
ideologia e as ciências. C onfortou-m e tam bém na ideia de que a epistem ologia
era uma variante da teoria do conhecim ento, essa form a m oderna (a p artir de
Descartes e Kant) da filosofia com o Verdade, logo. Garantia da Verdade. A Ver­
dade só se acha presente para garantir em últim a instância a ordem de coisas
estabelecida, a ordem estabelecida das relações m orais e políticas entre os
hom ens,
Foi assim que acabei por descobrir o m eu pró p rio lugar em filosofia no
K a m p fp la tz das oposições inextinguíveis, reflexos em últim a instância das
posições assum idas no jogo global da luta das classes sociais. Forjei deste
m odo um a filosofia pessoal, não sem antepassados mas extrem am ente isolada
no contexto filosófico francês, porque os m eus inspiradores, Cavaillès e Can-
guilhem , eram ou desconhecidos ou ignorados, quando não alvos de desprezo.
E quando chegou a m oda da ideologia «estruturalista», que apresentava a
r antagem de rom per com todo o psicologism o e todo o historicism o, pareceu
então que eu seguia esse m ovim ento. Não encontrávam os em Marx a ideia não
de com binatória (de elem entos arbitrários) mas de com binação de elem entos
distintos de m olde a constituir a unidade de um m odo de produção? Esta p o si­
ção estrutural e objectivista não punha definitivam ente term o ao hum anism o
«antropológico» de um Feuerbach, que eu conhecia m uito bem p o r o ter tra­
duzido e sido o prim eiro a editá-lo em Erança após as m edíocres e fragm entá­
rias traduções de Joseph Roy, o mau tradutor do C apitaH Ora, desde o início,
insistíram os na diferença estrutural entre c o m b in a tó ria (abstracta) e co m b i­
nação (concreta), âmago de todo o problem a. Mas quem o viu? Ninguém aten­
deu à diferença. Eui acusado em toda a parte de estruturalism o, de justificar a
im obilidade das estruturas na ordem estabelecida, e a im possibilidade da p rá­
tica revolucionária, quando afinal eu fizera mais do cjue esboçar a propósito
de Lenine uma teoria da conjuntura. Mas pouco im portava, o essencial era
arrastar pelas ruas da amargura esse indivíduo isolado que pretendia que Marx
fundara o seu pensam ento na recusa de qualquer fundam ento filosófico no
hom em , na natureza do hom em , o m esm o Marx que escrevera: «Não parto do
hom em , mas do período histórico considerado», o m esm o Marx que escrevera:

196
F a I V R o E M r I r o 1 t: M p o

A sociedade não se com põe de indivíduos mas de relações», etc. Isolado.


»'tava-o devieras em filosofia e em política, ninguém , nem sequer o Partido,
„ue se entregava a um hum anism o beato, queria reconhecer que só o anti-
iium anism o teórico autorizava um real hum anism o prático. Ü espírito do
cnipo, reforçado se possível pelos equícocos esquerdistas da prodigiosa
'c\ ()lta de 68, eram as dem agogias do coração e do \ i\ ido. e de m odo nenhum
. leoria. Raros eram os que aceitavam com preender quais os meus objectivos
: ac m inhas razões. E quando o Partido abandonou a ditadura do proletariado
.o m o se abandona um cão», nada m udou. Tive contra mim não só a m atilha
- " filósofos que escreviam contra Foucault e contra mim livros «pelo
mem» (Mikel D ufrenne e outros), mas tam bém todos os ideólogos do Par-
éo que não faziam segredo de me desaprovarem e de me tolerarem apenas
r não poderem , dada a m inha notoriedade, expulsar-me. Tempos maravilho-
■ A Alcançara po r fim o auge do m eu desejo: ter razão sozinho contra todos!
Para dizer a verdade não estava com pletam ente só: encontrava alguma
i-olação em Lacan. Numa nota dissim ulada de um dos meus artigos da
■: ue de V E nseignem ent philosophique, eu observara que, tal com o Marx
- Usara o «homo oeconom icus», Lacan recusava o «homo psychoktgicus», daí
traindo, com todo o rigor, as devidas consequências. Alguns dias mais tarde,
-un telefonava-me, e jantám os várias vezes juntos. Naturalm ente eu jogava
a vez mais com ele ao «pai do pai», tanto mais que ele estava num aperto
^utiado. Lembro-me do seu inenarrável charuto na boca e de mim a dizer-lhe,
;a de saudação: «Você tem -na torcida!» (Eu não, evidentem ente.) D urante as
-'.ic conversas, ele dizia-me horrores dos seus «analisandos» e sobretucfo das
heres deles que lhe acontecia analisar ao m esm o tem po que o marido.
:no o via em grandes dificuldades desde que fora am eaçado de ter que sair
-linica de Sainte-Anne, ofereci-lhe a hospitalidade da École. E foi a partir
"tr dia que, durante anos, às quartas-feiras ao m eio-dia. a rue d Ulm passou
Lher-se de luxuosos autom óveis ingleses que invadiam todos os passeios,
' i grande indignação dos m oradores do bairro. Nunca assisti a um Seminá-
ác Lacan. Falava para um a sala à cunha e cheia de fumo, o que viria mais
,;c a causar a sua perda porque o fum o invadia as preciosas prateleiras da
: )teca que ficava po r cima e Lacan nunca conseguiu, apesar dos avisos

197
L o r I s A l í H r S S F R

severos de Robert Flaceljère. fazer com que os seus auditores deixassem de


fumar. Um dia, transtornado p o r tanto fumo, Flacelière despediu-o. Eu estava
nessa altura longe da Escola, doente. Lacan telefonou-m e e insistiu durante
mais de um a hora com Hélène tentando obter a m inha direcção. Chegou a
dizer-lhe em certa altura: «Mas acho que estou a conhecer-lhe a voz. quem é
você?» ffélène respondeu: «Uma amiga.» E foi tudo. Lacan teve que deixar a
École, não sem grandes protestos.
Todavia, sem que eu continuasse a vê-lo (ele deixara m uito sim plesm ente
de precisar de mim), Lacan fazia-me de longe uma espécie de com panhia.
Tivemos até ensejo de nos m anterm os em contacto p o r terceiros interpostos
Havia m uito tem po que eu alimentava a ideia de que existem sem pre e em
toda a parte, corno diz iMarx. «falsos custos de produção» ou «desperdícios»,
perdas sem razão nem remédio. Descohrira-as antecipadas em Malehranche,
quando e\ oca «o mar, as areias e os grandes caminhos» sobre os quais a chuva
cai. sem qualcjuer fim determ inável. Foi então que m editei a m inha «história»
do filósofo m aterialista que «apanha o com boio cm andam ento» sem saber de
onde ele vem nem para onde ^ ai. E pensei nas «cartas» que em bora deitadas no
correio nem sem pre chegam às mãos do destinatário. Ora ali um dia num
escrito de Lacan que «uma carta chega sem pre ao seu destinatário». Surpresa!
Mas a ejuestão com plicou-se po r causa de um jovem m édico indiano que fez
uma brene análise com Lacan e que. no final, se atreveu a colocar-lhe a
seguinte questão: «Você diz que um a carta chega sem pre ao destinatário. Ora
Althtisser afirma o contrário : acontece que uma carta não chegue ao seu desti­
natário. O que é que acha da tese dele, a que ele cham a materialista?» Lacan
reflectiu uns bons dez m inutos (dez m inutos para ele!) e respondeu sim ples­
m ente: «Althusser não é um clínico.» C om preendi que ele tinha razão :
de facto, nas relações de transferência da cura, o espaço afectivo cncon-
tra-se estruturado de tal m aneira que não há nele qualquer vazio, pelo que

‘ ,N:i scquènci.i d t in tc r w n ç õ e s manuscricis que nfio parecera ser todas do p u n h o de Althusser.


os três parágrafos seguintes foram objeeto de uma elis:to nem sempre m uito nítida e que com prom ete
a legibilidade do texto Sempre que a com preensão do texto o exigia, nós mantivem os a versão inicial
do manuscrito. (,V. do F. francês)

198
() F I I F K O / M í / / O / / 1/ z" O

'cqu cn tem en te toda a m ensagem inconsciente realm cntc dirigida ao


, nsciente do outro, a ele chega necessariam ente. lodax la, não me ■-entia
o.ramente satisfeito com a m inha explicação: Lacan tinha ra/ão, mas eu
nem. e eu sabia que ele não m erecia ser acusado de idealismo, com o o
a a sua concepção da m aterialidade do significante. Foi então que descor-
j; a saída. Lacan falava do ponto de vista da prática analítica, e eti do ponto
ista da prática filosófica, dois dom ínios diferentes que eu não podia, se
"C consequente com a m inha crítica do m aterialism o dialéctico clássico
■zir um ao outro, nem o dom ínio filosófico ao analítico nem o contr.írio
ptirtanto a prática filosófica a um a prática científica ou vice-versa. O que
' da\a razão a ambos, mas nenhum de nós vira com clareza o fundo do
" ' diferendo. Em todo o caso, passei a conceber ainda m aior apreço pela
-oicácia de Lacan que, apesar do equívoco de algumas das suas expressões
l.i \azia, a fala cheia do «Discurso de Roma») ti\e ra o reflexo, talvez não
amente reflectido, de sentir a diferença, e de a «assinalar».
l i\c ainda, m esm o no fim (ele estava m oribundo), ensejo de me cruzar
Lacan. Foi p o r altura da sua últim a reunião pública no hotel PLM. Um
- ' m uito próxim o — que eu não quis voltar a ver na sequência do escan­
do seu com portam ento — , insistira com igo para assistir à sessão, «para o
. r . Ora esse amigo não apareceu nem disse nada. Abandonara-me. Entrei
i.cnso átrio sem qualquer autorização. Uma jo \em \c io perguntar-m e em
; de ciuè fora eu convidado, eu respondí: «Em nom e do Espírito Santo que
atro nom e da líbido.» Depois ostensivam ente, na imensa ala \azia que
'..\ a o público silencioso, avancei m uito devagar, cachim bo na boca. Parei.
apre em gestos bem calculados, bati com o cachim bo no tacão da m m ha
enchi-o e acendi-o, tendo-m e a seguir encam inhado na direcção de
’. a quem apertei dem oradam ente a mão. Ele esta\ a. lido o seu longo dis-
' m anifestam ente esgotado. Pus na m inha atitude todo o respeito que
- c grande velho, vestido com o um p ie rro t com um casaco de tw eed aos
.".idos em tons de azul, me inspirava. D epois tom ei a paLu ra em nom e
.malisandos», acusando vivam ente os assistentes de não falarem disso.
- vu-se uma voz indignada: «De que divã fala este senhorL Lu continuei
"turbavelmente a m inha intervenção. Já não me lem bro do que disse.

199
L O r i s -1 /, T H r s s t: R

mas não esqueci a sensação e os m ovim entos de silêncio agitado que as


m inhas palavras provocaram . Quis continuar a discussão depois de term inado
o discurso de Lacan, mas todos se esquivaram .
Para dizer tudo, a verdade é que me cruzara antes com Lacan num a situa­
ção dram ática. Certa m anhã, m uito cedo, batem -m e à p orta na École. Era
Lacan, irreconhecível, num estado assustador. Mal me atrevo a contar o que se
passou. Vinha com unicar-m e, «antes que eu o soubesse p o r boatos que o
poriam em causa pessoalm ente, a ele, Lacan», o suicídio de Lucien Sebag que
estava em análise com ele, um a análise que tivera que interrom per um a vez
que Sebag se apaixonara pela sua filha Judith. Diz-me que acaba de dar «a volta
a Paris» para explicar a situação a todos os que pudera en co n trar a fim de co r­
tar pela raiz todas as «acusações de assassínio ou negligência da sua parte».
Com pletam ente desvairado, explica-m e que não podia m anter Sebag em aná­
lise a p artir do m om ento em que este se apaixonara p o r Judith: «por razões
técnicas, era impossível». Conta-m e que apesar de tu d o não deixou de ver
Sebag diariam ente durante todos estes últim os tem pos, incluindo na véspera
ao fim da tarde. Ciarantira a Sebag que respondería a um a cham ada sua a qual­
quer hora, que tinha um M ercedes ultra-rápido. Todavia Sebag m etera uma
bala na cabeça à m eia-noite, e depois conseguiu p ô r term o à vida p o r m eio de
uma segunda e últim a bala p o r volta das três horas da m adrugada. Confesso
que não soube o que dizer-lhe. Mas queria perguntar-lhe se não teria podido
«intervir» para pôr Sebag a salvo m andando-o internar. Talvez ele me tivesse
respondido que não era essa a «regra» analítica. Pelo m enos, não teve um a
palavra sobre a protecção de uma hospitalização. Q uando se foi em bora, co n ti­
nuava tão trêm ulo com o antes. Deixou-m e de m adrugada para continuar a sua
ronda de visitas. Muitas vezes me perguntei que teria ele feito no m eu pró p rio
«caso» se eu tivesse sido um dos seus pacientes, e se m e teria deixado sem p ro ­
tecção (eu queria constantem ente m atar-m e) para não infringir a m ínim a
«regra» analítica. O m eu analista fora outrora a sua m aior «esperança», mas
afastara-se dele a p artir do dia em que se dera conta de que «Lacan era absolu­
tam ente incapaz de ouvir os outros». Perguntava-me tam bém o que teria ele
feito de Hélène, sem pre em função das famosas «regras» que nunca tinham
sido no espírito de Freud e dos seus sucessores imperativms inapeláveis mas

200
F r I V R o M r I 1 o 7 /: M F

simples «regras» técnicas gerais, ele. Lacan. que tivera em análise diversas
m ulheres dos m eus antigos alunos, seus pacientes, com o ele pró p rio m o dis­
sera p o r ocasião do nosso prim eiro encontro. Este incidente lançou sobre mim
estranhas perspectivas sobre as terríveis condições de análise e das suas fam o­
sas «regras». Perdoem -me, se possível, tè-lo narrado fielmentc. mas atracés do
infeliz Sebag de quem eu gostaca m uito e de Judith que conhecia bastante bem
(viria a casar com Jacques-Alain Miller, m eu antigo aluno), tratava-se de mim
tam bém: «De te fcih u la n a rra tu r» . Mas desta feita a «fábula» era uma tragédia,
não só para Sebag, mas sobretudo para Lacan, cjue então só exibia uma p reo ­
cupação m anifesta com a sua reputação profissional e o escândalo que se aba­
tería sobre ele. Que os analistas que dirigiam no seu tem po uma petição ao
M onde (não publicada) para denunciar os «métodos» do m eu analista façam o
favor de ver aqui o m eu depoim ento de testem unha.
Foi p o r essa altura (1974) ciue tive ensejo de fazer uma viagem a Moscoc o
para um Congresso Internacional de Filosofia Flegeliana. Só apareci no C on­
gresso para apresentar a m inha com unicação, que fora reservada para a sessão
cie encerram ento na im ensa sala de cerim ônias. Falava nela do jovem Marx e
das razões profundas da sua evolução. No final da m inha com unicação, da
qual a P ra vd a faria a cobertura... antecipada, fez-se o silêncio oficial, mas
alguns estudantes ficaram na sala e vieram fazer-me p erguntas; o ciue é o p role­
tariado? o cjue é a luta de classes? Manifestamente, não com preendiam que se
falasse disso. Fiquei estupefacto, mas viria a com preendê-lo bem.
C om preendi-o porque, durante esses oito dias em que não frequentei o
Congresso, o meu m uito ciuerido amigo Merab, um georgiano filósofo de gênio
que nunca viria a querer sair da l ’RSS, ao contrário do que fez o seu amigo
Zinoviev («porque aqui pelcj m enos se vèem as coisas a nu, e sem disfarces»)
deu-m e a conhecer uma boa centena de so\ iéticos de todas as condições, que
nie falaram tanto do seu país com o das condições materiais, políticas e intelec­
tuais de existência, e com preendi uma infinidade de coisas, que tudo o que de
sério li depois sobre a fTRSS me confirm ou.
A URSS não é o país habitualm ente descrito entre nós. É verdade, qualquer
intervenção pública na vida política é proibida e perigosa mas quanto ao resto,
que vida! Em prim eiro lugar, trata-se de um país imenso que resolveu o problem a
do analfabetism o e da cultura num a escala desconhecida, m esm o entre nós.

201
L o t I S ,1 /. / H í V V /; R

Fm seguida, é um país onde o direito ao trabalho se encontra garantido e é até,


se assim posso dizer, planificado e obrigatório: desde que foram suprim idas as
cadernetas de trabalbo, observa-se um a m obilidade prodigiosa dos trabalhadores.
Por fim. é um país onde a classe operária é tão forte que se faz respeitar e a polí­
cia nunca intervém nas fábricas, essa ciasse operária que descobre os seus esca­
pes no álcool e no trabalho negro, roubando os bens de equipam entos colectivos
para trabalhar para particulares, l m país sempre duplo, trabalho negro na indús­
tria, no ensino, na m edicina e (oficializado) na produção agrícola. Soube entre­
tanto, coisa que ao tem po ignorava, que se form am hoje equipas de trabalhadores
cjue r endem m uito caro os seus serviços às empresas, a fim de cjue estas recupe­
rem o atraso em relação ao plano, R algo ejue não conseguim os imaginar entre
né)s, apesar do trabalho negro, porque não são os «patrões» que ditam os preços,
mas as equipas de com panheiros que se organizam para vender os seus serviços
às empresas atrasadas. Penso que K. S. Karol. que conhece bem a URSS onde
\ i\eu durante muitos anos uma odisséia assombrosa que contou no seu notável
li\ ro iSoIik: trihiilations cVun je u n e honim e p o lo n a is dans la Russie eri giierre),
tem razão; com a ascensão das novas gerações áràdas de bens de consumo, contra
o pano de fundo de uma aculturação muito nítida c na base de um patriotism o
alimentatlo pela m em ória dos vinte milhões de m ortos da grande guerra patrió­
tica, apesar das práticas carcerárias e psiquiátricas escandalosas, mas que a outra
escala temos também em França (embora por razões nem sempre clirectamente
políticas, mas no fundo que diferença faz?), mas na base também da destruição
total do campesinato, do seu m odo de vida tradicional e até do seu saber-fazer (é
pela rádio cjue os campttneses sabem quando têm que semear e ceifar!! — ejue
ditêrença em relação à Cbinaü), podem os esperar pacientem ente, mas razoavel­
mente, lentas m udanças na liRSS. É necessário dar uma oportunidade à nova
geração e a Gorbatcher- cjue é o seu hom em , pela prim eira vez na histétria da
F'RSS. Evidentemente, dejsarei na L^RSS com um verdadeiro deserto filc^sófico. Os
meus livros tinham sido traduzidos, com o tudo o que é publicado no estrangeiro,
mas guardados no «trijalo inferno» das bibliotecas, só para especialistas de j7ri-
meira categoria politicam ente seguros. E quando o Deão da Faculdade de Filoso
fia me acom panhou ao aeroporto de Moscovo, a única coisa que arranjou para
me dizer foi: «Os m elhores cumjarimentos da m inha jsarte às miúdas de Paris!!»

202
X VI

política? Imagino que haja expcctati\ as sobre o que vou dizer nesse capí­
A tulo. De facto, teria uma infinidade de coisas a dizer, mas isso seria entrar
nas anedotas da pequena história: sem interesse para a «genealogia» retrospec-
tica dos meus traum atism os de afectos psíquicos. Anedotas? Há-as por aí para
dar e render, sobretudo «vender». E coisa que não me interessa. Disse com
efeito cjue só queira fixar atjui da m inha r ida os acontecim entos ou recorda­
ções de acontecim entos que, tendo-m e m arcado, contribuíram ou para inaugu­
rar a estrutura do meu psiquism o, ou, e sobretudo, senãt) sempre, na retrospec-
linclcide das repetições interm ináveis, para a reforçar, ou ainda, nos conflitos
de desejos, para a inflectir segundo form as estranhas às prim eiras, pelo m enos
na aparência.
Aqui tenho que lem brar ao leitor alguns factos c]ue ele já conhece.
O Partido desem penhara um papel m uito grande na resistência contra os
ocupantes nazis. E incontestável ejue em Jtm ho de 19-iO a sua direcção seguiu
uma linha nefasta. A teoria da III Internacional, que dirigia de facto. sob a
autoridade superior de Estaline. todos os partidos catmunistas (e o pró p rio Par­
tido francês, «controlado» pelo delegado da Internacional, o checo Fried.
hom em notabilíssim o ao que parece, e a quem Thorez ficou sem dtn ida a
dever m uito), era que a guerra era uma pura im p e r ia lis ta . op o n d o em
vista de fins puram ente imperialistas os franceses e os ingleses a<js alemães. Era
preciso deixá-los entredevorarem -se, enejuanto a l ’RSS esperava a sua cez de
aproveitar o conflito. ,Se concluira assim os acordos germ ano-soviéticos.

203
L O i; I s A /, 7 7/ S ,S E R

a razão era m uito simples: já m uito antes de Munique, as dem ocracias o cid en ­
tais se m ostravam renitentes no respeito pelo que tinham assinado, m anifesta­
m ente por m edo e fascínio de H itler e em virtude do célebre princípio «mais
\a le Hitler do que a Frente Popular», mais vale o nazism o do que a Frente
Popular e a fo r tio r i do que a revolução proletária. Com preende-se a burguesia
e tttdos disso tir em os a prova. A URSS negociara de m aneira desesperada após
a prim eira grande derrota do m ovim ento operário, em Espanha, onde inter-
viera am plam ente (armas, aviões, brigadas internacionais) para obter o acordo
das dem ocracias ocidentais. Mas nem D aladier nem Cham berlain tinham tido
a «coragem» de respeitar sim plesm ente os seus com prom issos form ais p o líti­
cos e militares: do que dariam provas públicas p o r ocasião do abandono da
Checoslováquia, prim eiro dos Sudetas, e em seguida de todo o país. E nesse
m om ento, nenhum a proibição, com o seria mais tarde o caso da Polônia fas­
cista, os im pedia de intervir.
dem onstração é incontestável: os factos são patentes e nenhum his­
toriador m inim am ente sério t)s contesta. Apesar de tais factos e apesar da
sua profunda desconfiança assente nesses factos históricos, a URSS co n ti­
nuou a tentar obter das dem ocracias ocidentais a constituição de uma frente
unida contra Hitler que se fazia cada vez mais dem ente e ávido de espaço
vital, acima de tudo das ricas planícies da Ucrânia. Evidentem ente para
Leste, mtiito longe da Erança e de Inglaterra. Foi nestas condições, cjuando
o atacjue hitleriano contra a Polônia se tornou iminente, quando a Polônia
fascista de Pilsudski proibiu ao Exército Vermelho que passasse pelos seus
territórios para entrar em contacto com a W ehrm acht, que a URSS, perante
a evidência e a cobardia histórica dos seus «aliados» ocidentais, teve de se
resolver p o r um a negociação de com prom isso com o Reich de Hitler.
Foram os célebres acordos germ ano-soviéticos e a partilha da Polônia, ine­
vitável: a URSS não podia abandonar a P olônia inteira à ocupação hitle-
riana. Devia necessariam ente fazer avançar a sua fronteira o mais possível,
in\()cando em caso de necessidade a razão histórica incontestável de recon­
quistar as terras da Rússia Branca cedidas à Polônia pelo Tratado de Versa­
lhes, a fim de dispor de uma posição de defesa avançada frente a um ataque
alemão.

204
o /• r 7 r R o M I / 7 o 7 7: .1/ P o

Tratou-se de um período dram ático para todos os militantes do m ovi­


m ento com unista internacional e para os seus aliados. Houve m ilitantes que
abandonaram então o Partido com o, cm França, Paul \iz a n e outros, tendo
naturalm ente sido considerados renegados (era a fórm ula da época). O Par­
tido, m uito tem po mais tarde, fê-lo sentir a Rirette Nizan. que Hélène conhecia
m uito bem , e aos filhos de Nizan, cpie Thorez sem pre se recusou a receber.
Que práticas! Com o num erosos m ilitantes. Hélène com preendeu que ;i I RS-S
perante a am eaça hitleriana e a «cobardia» política total das dem ocracias oci­
dentais, nada mais podia fazer. F que teria podido realm ente fazer? Que se atre­
vam a dizê-lo atiLieles que têm a audácia de pretender que era possí\ el agir de
outro m odo.
Deu-se então o com prom isso com uma estranha política, sendo que a
VRiS p a re c ia n ã o d e sm e n tir as teses nazis segundo as quais o nazism o luta\ a
contra o «capitalismo internacional», ao passo que toda a sua política anterior
e constante, desde m uito antes da Guerra de Espanha, provava o contrário. Mas
o ejue, durante algnm tem po, foi decisivo, foi a incrível confiança que Estaline
testem unhou a Hitler. Pensava no fundo que Hitler era sincero, que m anteria
a sua palavra e que não atacaria o país dos sovietes. Hélène, que tivera num ero-
los contactos e analisara cuidadosam ente todos os docum entos e testem unhos
da época, cham ou desde m uito cedo a m inha atenção para este facto su rp reen ­
dente, entã(t ignorado, mas que mais tarde seria dem onstrado am plam ente
Sabe-se que, p o r num erosas vias entre as quais Sorge e m uitos espiões soviéti­
cos no Japão, Estaline foi prevenido com grande antecedência do ataque im i­
nente dos nazis. Sabe-se que Roosevelt o avisou. Sabe-se até que um desertor
.ilcmão, um com unista, atravessou as linhas para prevenir às quinze horas os
'o t iéticos do ataque alem ão contra a l ’RSS na m anhã do dia seguinte. Foi exe­
cutado im ediatam ente. Sabe-se c[ue, durante as longas semanas dos ataques
aéreos nazis, Estaline deu a ordem de não ripostarf. pensando ejue se trata\ a
ou de um engano (sic) ou de uma simples m anobra m ilitar pacífica. Sabe-se
hoje tudo isto m uito cTaramente. O resultado foram as catástrofes que se sabe.
Nos partidos ocidentais, foi a confusão total. Em Erança. a Internacional
conseguira fazer «desertar» Maurice Thorez, que recusava ferozmente fazê-lo: mas
era uma ordem e uma ordem não se discutia. Passaria a guerra inteira num a

205
/. o r I s .) / ! H l V Y /; R

m inúscula aldeia do Cáucaso, com um aparelho de rádio inutilizá\el, aiastado


de tudo e em especial da íaamça. Em França, foi Duelos tjuem assumiu a direc­
ção do Partido ciandestintt (cujos deputados tinham sido presos em 1939-
-19-i0). C om eçou por aplicar a teoria da guerra iuiperialisla, sem distinguir
que se trata\a ao m esm o tem po de uma «guerra de libertação» (tese que só
mais tarde seria adm itida). Consecpicntem ente. não só foram dadas ordens
após a derrota para estabelecer contactos com as autoridades alemãs o cupan­
tes em \ ista da publicação de I H u n ia n ité a cargtt de Marcei Cachin, mas, o
que seria infinitam ente mais grave, a direcçãt) clandestina do Partido ordenou
sem apelo aos seus militantes responsáx eis e sobretudo conhecidos pelas m as­
sas operárias e populares, responsáveis sindicais e políticos, m aires, etc., que
se m ostrassem á luz do dia, realizassem com ícios. Decisão inacreditável! que
teve m uito sim plesm ente o resultado seguinte: os grandes m ilitantes do par-
tick), com o Flenaff, 1'imbaud. Micbels. e outros, foram detectados pelos ale­
mães que os prenderam e os m andaram para C bàteaubriant (jnde mais tarde os
fuzilariam. Foi assim tiue os m aiores amigos de Hélène desapareceram e foram
massacrados,
Mas entretanto, num erosos militantes que não tinham contacto com o
Partido organizaram por sua conta, no seu canto, a resistência popular, m uito
antes do .\pelo de 18 de Junho, Darei a]->cnas um exemplo, o de Charles Tillon,
t]ue Hélène e eu conhecem os m uito intim am ente graças a .Marcei Cornu. Não
só organizoit no Midi uma prim eira rede de resistência, mas quando lhe ch e­
gou da direcção clandestina do Partido a ordem de obedecer à linha oficial do
«pacifismo militante», recusou ahertam ente acatá-la e esteve m uito longe de
ser o único a ttgir desse m odo entre os comunisttis franceses. Os anticom unis-
t;is declarados natht tjtierem ou\ ir acerca destes acontecim entos com provados.
A partir de 19 tl, a linha fora rectificada pela Internacional: a guerra não
era apenas uma guerra inter-im perialista. mas tam bém e ao mesmt) tem po uma
«guerra de libertação», F tock) o partido entrou em massa na Resistência, desta
\ ez oficialmente, e a isso consagrou todas as suas forças.
Q uando penso nos ataques políticos que foram dirigidos contra o Par­
tido, aindti no tem po da tteupação alemã (possuo uma enorm e massa de d o c u ­
m entos dessa natureza) ou mais tarde e hoje ainda, por parte dos hom ens cjue

206
n / I I I R O / M I / / O M R n

;inham estado organicam ente e visceralm ente ligados às posições derrotistas


.la burguesia francesa (ainda que indi\ idualm ente tenham continuado a ser
patriotas), fico espantado. E neste contexto que assumem todo o seu sentido as
palavras de Mauriac ao falar da «classe operária Cjue foi a única enquanto
•.lasse a perm anecer fiel à pátria profanada», Forejue a história decide-se não
nela posição deste ou daquele indi\ íduo mas pelos afrontarnentos de classe e
posições de classe.
dodo o pós-guerra, de 19 t5 a 194'^, foi m arcado pelas consequências des-
:es acontecim entos grar íssimos. De Gaulle estar a no p o d e r cora m inistros
.om unistas no seu governo. Era preciso reconstruir o país e saber em caso de
necessidade «acabar com uma gre\e». Mas os m inistros com unistas foram dis-
nensados pelo socialista Ramadier por pressão directa dos am ericanos, c o Far-
:ido iniciou uma luta duríssim a. Com o po r acasr), tal foi o m om ento em que
eu decidi dar-lhe a m inha adesão.
Não era fácil, tão violento era o ataque anticom unista e a ameaça de guerra.
VERSS não tinha ao tem po a bom ba atôm ica que massacrara o Japão. Era p re­
ciso mobilizar amplas massas pt)pulares em torno do texto do Apelo de Estocolmo.
Esta luta era a única tarefa verdadeiram ente urgente. As questões internas
do Fartido nem sequer se levantavam, lendo saído \ itorioso da provação da Resis-
rciicia. reforçado nas suas tradições e nos seus princípios tjue tinham dado pro-
,is, o Fartido não parecia po r um instante sequer, fosse p o r que razão fosse,
poder ser diferente do que era. Muito pelo contrário, a sua direcção foi «mais
o.ipista do que o papa», quer dizer, do que Estaline (ciue mais tarde em endaria
' tiro em m atéria de linguística) sustentando com violência e publicam ente a
:L'se das «duas ciências», a burguesa e a proletária. Foram necessárias inumerá-
eis atribulações internacionais (Berlim, Budapeste, Fraga, etc.) para que alguma
«oisa com eçasse a m exer ao de lc\e, e m esm o assim tão poucol. dentro do Far-
:ido. e ao cabo de um período de m oratória interm iná\el, Xão passa\a então
ocla cabeça de ninguém (excepto de indivíduos com o Boris ,som arine. mas que
.mdiéncia era a sua?) a ideia de que o Fartido, construído segundo os p rin cí­
pios leninistas do Que fa z e r í'. quer dizer, da clam íestiuidade. essa clandestini-
«lade que praticara vitoriostimente na Resistência, podia t)u der ia atribuir-se uma
rormti diferente de organização apéts o destiparecim ento da clandestinidade.

20"
l o l / s .1 L / H {■ S S t: R

É por isso que não existia então objectivam ente n e n h u m a o u tra fo r m a


de intervenção fo lític a p o ssível dentro do P artido a não ser u m a in te rv en ­
ção p u r a m e n te teórica, e m esm o essa, só com t) apoio da teoria existente ou
reconhecida para a virar contra a sua utilização pelo Partido. E com o a teoria
reconhecida já nada tinha a \ er com Marx, mas se organizava segundo as inge-
nuidades perigosíssim as do m aterialism o dialéctico à m aneira soviética era
preciso — e era o único cam inho possível — regressar a Marx, a esse pensa­
m ento politicam ente adm itido de m odo incontestável, porque sagrado, e
dem onstrar ejue o m aterialism o dialéctico à m aneira de Estaline, com todas as
suas consequências teétricas, filosétficas, ideolétgicas e políticas, era com pleta­
m ente aberrante. Eoi o que tentei fazer com os m eus artigos em La Pensée,
com pilados a seguir em Pour M arx, e com os m eus alunos da Norm ale em
Lire «Le Capital», que foram publicados, recordo-o aqui, em O utubro de
1965. A partir de então, não deixei de seguir a m esm a linha de luta, prim eiro
teórica, depois directam ente política no interior do Partido, até à análise tiue
fiz do seu inacreditá\'cl funcionam ento interno {Ce cjui ne p e u t p lu s durer
da n s le PCP, 19~8). A seguir o dram a sobreveio. E não voltei a reaver o meu
cartão. Sou um «comunista sem partido» (Lenine).
É sabido que sem pre proclam ei que pretendia apenas «intervir com o filé)-
sofo na política e com o político na filosofia». De facto poder-se-ia, a propósito
da política, da m inha acção e da m inha experiência, detectar aqui o jogo
exacto dos meus fantasmas pessoais: solidão, responsabilidade, dom ínio {mai-
trise).
E na verdade estive m uito só, em bora ajudado pelos m eus amigos, que no
com eço se podiam contar pelos dedos de um a mão, ao aventurar-me, no inte­
rior do Partido, num a iniciativa teórica de oposição, antes de passar aberta­
m ente a um a atitude de oposição e de crítica políticas. Claro, o fantasma de
ser detentor da verdade sobre o partido e as práticas dos seus dirigentes levoti-
-me em várias circunstâncias a desem penhar o papel do «pai do pai». Por
exem plo dando altivam ente lições aos estudantes de 1964 num artigo de La
.\o u v e lle Critique. Q uer dizer que me deixava intim idar eu prétprio pelos ris­
cos da m inha atitude e pelos ataques de que era objecto po r parte de dirigentes
do PC que, esses sim, tinham clara consciência da m inha estratégia! Esse texto.

208
I r / r K o M r I i o I i: M p o

porém , que apresentava a vantagem estratégica de pôr o «de\ e r » de cada com u­


nista para com a teoria marxista acima da obediência ao Partido — ponto que
parece ter escapado a Rancière mas não a numerosos leitores, por exempk) v)s estu­
dantes gregos, entre outros, que lhe atribuem um grande valor político, na sua situa­
ção evidentemente — em breve passou a repugnar-me e eu ev itei incluí-lo em Pour
Marx. em 1965- (Quando Rancière me criticou violentam ente em La Leçon
cVAlthusser, assentou o fundam ental da sua dem onstração no texto desse artigo,
como se eu o não tivesse afastado de Poiir M arx, e no fundo foi essa a única acu­
sação séria que eu lhe dirigi.) Por exemplo ao esmagar em dois longos artigos de
France-Noiivelle o infeliz David Kaisergruber («Sobre um erro político») tom ando
contra ele a defesa dos professores auxiliares, «esses proletários do ensino público».
I\)r exemplo por vteasião das m inhas entrevistas com Henri Krasucki, então «res­
ponsável dos intelectuais», que reiterou as suas reticências insistentes (Ah! se tiv és-
^emos apenas diante de né)s dois hom ens, Aragon e Garaudy, que se apoiam um
,io outro e que I horez apoia, o que não seríamos capazes de fazer!). Ficava estu­
pefacto ao ouvir da boca dele que dois militantes bastavam para paralisar todas
,is iniciativ'as do Partido no dom ínio intelectual, c indiquei-lho com desagrado.
Mas ele nada replicou. Sentia-me ainda mais decepcionado por ter concebido antes
grandes esperanças de poder encontrar à cabeça dos intelectuais um verdadeiro
proletário, para mais dirigente da CGT. Soube então antecipadam ente que ele ia
comunicar-me que as edições do Partido por certo não publicariam os meus dois
livTOS (Pour M arx e Lire «Le Capital») e que até m esm o o prefácio a Pour Marx.
que Jacejues Arnault. corajoso e clarividente, me prom etera form alm ente publi­
car em La Nouvelle Critique, que então dirigia, foi proibido de ser publicado. Mas
não estava ainda no fim das minhas decepções.
Mais tarde, quando estive frente a frente com Waldeck Rochet no seu gabi-
netezinho, cheio de bons sentimentos a seu respeito, a respeito de um h(vmem cjue,
Lom ejuinze anos de idade, ao tem po operário agrícola, arranjara tem po e tivera
o gosto de ler Spinoza, desempenhava ainda, mas com delicadeza, o mesmo papel
de «pai do pai». Falámos do hum anism o (eu defendera em várias ocasiões a tese
vlo anti-humanism o teórico de Marx), e pus-lhe a questão. <E cjue pensam os ope­
rários do humanismo? — Estão-se nas tintas para isso! — E os camponeses?
— Estão-se nas tintas! Mas então porquê esses discursos sobre o hum anism o

209
L o l l S .1 /. / // r s S /: A>

marxista no Partido? — Bem vês, é jrrcciso falar urna linguagem que sirva a todos,
a todos os intelectuais, a todos os socialistas...» Caí das nuvens. E de outras nuvens
mais altas ainda quando ouvi Waldcck m urm urar com a sua voz calma: «Temos
que Fazer alguma coisa p o r eles, se não t ão-se todos embora.» Fiquei tão c h o ­
cado que não me atrevi secjuer a perguntar-lhe; mas qtiem são esses «todos»?
Muito depois, quando me encontrei com Marchais durante três longas
horas, na Ciolonel-Fabien. assumi ainda mais um a atitude de superioridade, e
esvaziei o saco de tu d o aquilo que censurava nas práticas do Partido,
apoiando-m e num a enorm e massa de factos precisos. Durante três horas bem
contadas, ladeado p o r Jacques Chambaz, Marchais ouviu-m e quase sem dizer
um a palavra e sem nunca me contradizer. Parecia m uito atento, c eu admirei
pelo m enos o desejo que ele manifestava de se inform ar: tinham -m e dito que
era um seu traço de carácter. E não falo dos meus encttntros com Roland Leroy.
que se armava em sedutor, em liberal, ciuando no fundo era m uito diferente:
um doutrinário, nem desse passeio que fiz na sua com panhia durante uma festa
de }'H n n u m ité , onde encontrei Renoit Frachon. razoavelm ente envelhecido, e
.\ragon, a quem fiz uma cena infernal de agressão e de insultos (já se verá p o r­
quê). e não pude im pedir-m e de desem penhar um papel de destaque num a dis­
cussão pública, para lam entar até ao fim da m inha vida ter-me deixado levar a
p ò r politicam ente em causa o infeliz Pierre Daix. que nunca me perdoaria essa
interv'enção estalinista. a única da m inha história política. Deverei acrescentar
que não fora eu quem solicitara estes encontros «de cúpula», mas que para eles
fora pessoalm cntc convidado pelos dirigentes do Partido, interessados em
saber quem era eu afinal e o que teria afinal na cabeça. Porejue as m inhas inter­
venções em La N ouvelle C ritique e em La Pensée (onde Marcei C ornu aberta­
m ente me protegia) tinham produzido efeitos políticos, em particular entre os
n o rm a lie n s que inauguraram novos m étodos de form ação e de acção na l'n iã o
das Juventudes Com unistas, cujos dirigentes (_lean Cathala) ultrapassavam ,
antes de saírem para form ar a União das Juventudes Com unistas Marxistas-
-Leninistas (UJCML), ejue. antes de 68. desenvolvería um a intensa actividade sob
a direcção de Kobert Linhart. um nos n o rm a lie n s que Hélène mais estimava.
F claríssim o que eu realizava assim no Partido o m eu desejo de iniciativa
própria, o meu desejtv de oposição feroz ã direcção e ao aparelho, mas no

210
O r- r T r r o .1/ / / / r; / 1/ o

interior do próprio Partido, tiuer dizer, sob a sua protecção. Com efeito, nunca
me pus em posição, excepto talvez em 19^8, e m esm o então ... de correr dc\e-
ras o risco de ser afastado. Nem secitier Roger Ciaraudç que a seguir a .\rgenteuil,
onde só se tratara, a propósito de problem as culturais, dele e de num. e tjue no
dia seguinte me dirigiu um telegrama: «Perdeste, vem falar comigo . me fez ceder
Nunca esti\'era com ele. nunca o vi. Sem dúvida, para além da força da.s no^sus
di\ ergèncias, eu devia sentir-m e suficientem ente seguro dos meu.s argum entos
e da protecção do Partido para o m andar passear a ele, o «vencedor» de Argenteuil,
Mas sob a fornta desta v i\a contestação, conduzida sob as garantias de
uma protecção cujos limites de tolerância nunca infringi, o que eu realiza\a,
antes do mais. eram seguram ente os m eus próprios desejos, longam ente recal­
cados ou censurados pelos meus, os desejos qtie com eçara a \ i\ er durante a
m inba passagem pela escola de Larochemilla). que redescobrira durante o ser-
\ iço m ilitar e po r fim no cativeiro. O desejo de me haver com o m undo real,
com o m undo dos hom ens cm toda a sua dicersidade, e sobrettido o desejo de
confraternizar com os mais despojados e tam bém os mais francos, os mais lím ­
pidos e honestos dos hom ens. Em suma, o desejo de ter um m undo m eu, que
fosse o m undo verdadeiro, o m undo da luta (acabei po r receber, com grande
esforço de determinaçãt), cacetadas a valer da polícia, durante as m anifesta­
ções, com o essa assustacktra m anifestação contra Ridgway, quando cheios de
entusiasm o nos reunim os aos operários da Renault, joviais e arm ados de
pequenos cartazes de chapa m etálica cortante cjue faziam m aravilhas nos
em bates... Esta com unidade de acção e de luta, eu perdido nas m ultidões
imensas (desfiles, com ícios), descobria enfim o que me interessava. Os meus
fantasmas de dom ínio (m aitrise) ficavam então m uito longe de mim.
Apesar de tudo ti\e cm certas circunstâncias, umas dram áticas, as outras
sobretudos cômicas, que enfrentar directam ente o aparelho repressiro do
Partido. Não é sét o Estado ejue dispõe de um aparelho repressiw): dele dispõe
também todo o aparelho ideológico, ciualquer qtie seja. Sc conto estes episó­
dios, é sem pre pela mesma razão: ver claro cm mim '.

' Suprimimo.^ :iqui u m a frase q u e se r\ ia d e liga(,':i<) n u m a p rim e ira \ e r s ã o deste capítulo, m as q u e


o au to r se e s q u eceu de elim in ar d ep o is de ter m o d ific a d o a o rg an i/aq ão d o s partigrafos, (.V. d o fraucès]

:ii
L O V / S A L r H í ‘í V /■: R

Aderira pois ao Partido em 1948. Era no tem po do Apelo de Estocolmo.


Subia e descia centenas de escadas nos prédios pobres do bairro da estação de
Austerlitz. O célebre porta a porta. Abriam-se muitas vezes, mas quase sempre
as pessoas se recusavam a assinar a petição que eu lhes m ostrava, l m dia, uma
bonita jovem em désbabillé (os seios dela,..), que me abrira a porta com um
sorriso e recusara c<tm uma expressão carrancuda, voltou a dirigir-m e a pala­
vra enquanto eu descia os degraus. Chamava-me para me dizer: «Afinal de c o n ­
tas, você é novo e bonito, e não sei po r que é que havia de lhe dar um des­
gosto,» E assinou. Afastei-me dela com sentim entos confusos.
Era no tem po em que eu queria (uma vez mais, mas nunca deixei de o
querer e de tudo fazer p o r isso — que coisas não fiz até à sua m orte!) «salvar»
Hélène do seu desespero, do seu abandono pelo Partido e da sua solidão. Não
podia, na m inha ingenuidade, conceber que o Partido ou as suas organizações
pudessem dispensar os serviços de uma m ulher tão inteligente, tão política, e
de um a m ilitante tão extraordinária. Com o sabia por ela que ela conhecia Paul
Eluard, consegui, sem lhe dizer nada e já não sei através de c]ue com plicadas
com binações, que ele me recebesse.
Uma jovem com pletam ente nua dorm ia num divã da sala. Comecei logo a
tratar por tu Eluard (entre camaradas...) que não pareceu apreciar o tratamento.
Defendi com argumentos m inuciosos e cheios de paixão a causa de Elélène. Não
poderia ele intervir para que lhe permitissem militar nas fileiras das Femmes fra n -
çaises? Ele contentou-se com responder-m e: «A Hélène é uma m ulher notabilís-
sima, conheço-a bem, mas está sempre a precisar da ajuda dos outros.» A entre­
vista terminara. Decididam ente nem todos os comunistas eram Courréges.
Hélène acabara p o r m ilitar com igo no Conselho Com unal do M ovimento
da Paz, no quinto bairro. Tudo parecia correr sem problem as, fazia amigos, e
eu sentia-m e feliz po r causa dela. iMas um dia em que estava na sede do Movi­
m ento, na rue des Pyramides, onde fora buscar cartazes, foi reconhecida por
um quadro inferior do Partido ejue a conhecera em Lyon. Ele relatou o facto
à direcção do Conselho do quinto bairro, e po r certo que tam bém a Farge, ten ­
do-se então desencadeado o processo mais odioso que é possível imaginar.
O pequeno funcionário do Partido contou que em Lyon «toda a gente sabia»
que Hélène, Rytmann de seu nome, mas conhecida po r Sabine, e presentem ente

212
.................

O F r r c R o F. M ( ! 7 O 7 7: M F O

por Legotien (Hélène, p o r ódio ao seu patroním ico. adoptara segundr) os dese­
jos do padre Larue o nom e de um dos prim eiros jesuítas a \ isitar a (ihinai. era
ao m esm o tem po agente do Intelligenee Service e da Gestapo (s/o . Efectiva-
rnente, tinham corrido boatos dessa natureza em Lyon, sendo aqui necessário
explicar-lhes a origem . Hélène estava ao tem po m uito ligada aos ,\ragon. e
durante o p eríodo da Resistência, levava-lhes muitas vezes da Suíça produtos
inencontráveis em França, especialm ente meias de seda para Elsa. Ora aconte­
ceu que um dia, as meias trazidas para Elsa não correspondiam à cor ou à qua­
lidade desejada p o r pessoa tão exigente. Aragon teve um a fúria enorm e e rom ­
peu com Efélène. E com eçou a acusá-la de ser um a agente do Intelligenee
Service! Além disso, Elélène, quando Lyon se tornou teatro dos com bates que
libertariam a cidade, tinha um corpo franco sob as suas ordens, um grupo de
rapazes que não estavam com meias m edidas. Capturaram um alto responsác el
da Gestapo que fecharam nas caves do prédio, torturaram -no e em seguida
executaram -no sum ariam ente. Ora Elélène dera ordens m uito rigorosas: p ri­
meiro, que ele fosse bem tratado com o todos os prisioneiros, segundo, que o
m antivessem vivo para p o d e r ser interrogado e para se p o d er arrancar-lhe um
m áxim o de inform ações úteis à Resistência e ao recente exército das FFI '. Os
rapazes do corpo franco tinham infringido as suas instruções formais, O rum or
desta execução difundiu-se em Lyon e chegou aos ouvidos do séquito do car­
deal Gerlier, cuja atitude durante a ocupação fora bastante duvidosa, lá n dos
seus íntimos, c|ue o tal m ilitante com unista descrevia com o um «padralhão».
foi pedir contas a Hélène e prodigalizou com entários sobre os m étodos de to r­
tura que ela «impunha» aos prisioneiros dos corpos francos. Outras tantas con-
tra-verdades evidentem ente, mas que «scr\ iam» de alibi à má consciência do
círculo de Gerlier, Não sei Cjuem espalhou a histõria e criou-se um boato que
dava Hélène com o agente da Gestapo. Nada m enos!
As «revelações» do funcionário do Partido causaram o efeito de um a bomba,
e em todo o caso forneceram o ensejo esperado para um ajuste de contas
público. Sabe-se c]ue Hélène, m em bro do Partido desde 19.^0, não conseguira

' Forces Françaises de rintériciir. organização de resistência armada criada cm Fevereiro de


19 ta. (,V. do r. )

213
I o I I s .1 /. 7 H I• S S i: R

reatar o contacto com o [’artido durante a guerra e ciue, depois da Guerra, o


Partidt) se recusara a aceitá-la nas suas fileiras. Invocou-sc então a assom brosa
história que se segue: Hélène fora tah e z afastada do partido em 1959. no
m om ento do Pacto Germ ano-Soviético, mas com o a única pessoa que o pode-
ria testem unhar era um tal Vital Gaym ann. que se transform ara entretanto em
renegado, o Partido não podia sujeitar-se a interrogá-lo sobre esse passado.
Entretanto, Elélène fora considerada pelo Partido com o altam ente suspeita; de
ter sido expulsa em 1959.
As «revelações» do funcionário, juntam ente com as suspeitas do Partido,
provocaram um terd ad eiro processo conduzido pela direcção do Conselho
Com unal. Sem dúvida que sob instrução do Partido. O processo durou um a
sem ana inteira, durante a qual foram proferidas contra Hélène as mais graves
acusações. Em \ ão acabou por conseguir que fosse ouvido o testem unho de
dois dos seus cam aradas da Resistência; isso nada m udou. O Conselho redigiu
uma resolução concluindo, na sequência de todos os considerandos desejá­
veis, pelo seu afastam ento do C onselho Ciomunal (nada de parecido se en co n ­
trava porém previsto nos seus estatutos, nem tão-pouco a possibilidade de o
órgão se erigir em tribunal). Eembro-me ainda da alta silhueta de je a n Dresch,
ejue ouvia sem dizer uma palas ra. Eu lutara com o um leão quandt) nos consi­
derandos se tratara do «padralhào». Os dirigentes do Conselho queriam a todo
o custo falar de um simples «padre» («para nãt; chocar os católicos»). Eoi o
únict) ponto em que cenci. Q uando chegou o m om ento de votação, todas as
m ãos se ie\ antaram (Dresch nãtt estava presente) e \ i para m inha própria ver­
gonha e estupefacção le\antar-se tam bém a m inha p rópria mãt): sabia-o havia
muito, era realm ente um cobarde.
O Partido convocou-m e, e o secretário «para a organização». Marcei
Auguet. intim ou-m e a rom per com Eltiène. Im pelida pelo secretário de céltda
da École. Emmantiel Ee Roy Eadtirie (t[ue tem a honestidade de se referir a este
ponto no seu livro Dc M ontpellier â Paris, e teve sobretudo a honestidade de
pedir desculpa a Hélène da prim eira vez tiue voltou a vê-la — e sublinho que
foi ele o único, sozinho, de todo o sinistro bando a desculpar-se ou a ter o
mais pequeno gesto nesse sentido), a célula tentou garantir a execução da
ordem . Mas o mais evidente da «v igilância» era que um vazio a b soluto se fazia

21-i
F V F V R O \i r I r o r F. M p o

à nossa volta-, na rua todos os cam aradas nos cn itaAam. única questão da
ordem do dia da célula era: «salvar Althusser».
Bem entendido não contem porizei. Hélène e eu partim os pouco tem po
depois para nos refugiarm os num a outra solidão, a de Cassis onde, se não
tínham os amigos, ninguém nos evitava: e depois, havia a consolação e a paz
do vento e do mar. Hélène era de um a coragem adm irát el. Repetia-mc; A his­
tória há-de dar-m e razão.» O certo, contudo, é que tínham os vivido um verda­
deiro processo de Moscovo em plena Paris, e mais tarde pensei muitas \ezes
que se na épctca estivéssem os na l;RSS, teríam os acabado com uma bala na
nuca.
() que m e deu evidentem ente acerca do Partido, das suas direcções e dos
seus m étodos de acção uma perspectiva singularm ente realista. Hsta articulava-
se com um a outra experiência cjue tivera pouco tem po depois da m inha ad e­
são. Levara então a célula a fundar um Círculo Politzer na École, para o qual
convidaríam os grandes líderes sindicais e políticos que nos falassem da histó­
ria do m ovim ento operário: foi assim que ouvim os Benoit Frachon, Henri
.Monmousseau, André Marty e outros. Mas, prudentes e disciplinados, decidi­
mos solicitar a opinião de Casanova, então destacado para os «intelectuais».
Fui ter com ele na com panhia de Desanti que, sendo corso, tinha um a relação
privilegiada com Laurent e que politicam ente o seguia, ele que m o perdoe,
com o um cachorrinho. Esperám os uma hora bem contada na antecãm ara,
separada do gabiirete dele po r um estreito tabiejue de m adeira. Lm hora de gri­
tos. de insultos e de descom posturas inauditas; ouvia-se apenas a voz de Casa­
nova dirigindo-se a um interlocutor praticam ente m udo. Em questão estava a
ciência proletária, pala\ ra de ordem da época. Ouvim os declarações espanto­
sas. inclusire sobre 2 -r 2 = -i. «Burguês», ao que parecia! Xo fim \ imt.ts sair
um hom em , anitiuilado: Desanti disse-me o nom e dele. Marcei Prenant. Entrá­
mos no gabinete de Casa, que retom ou diante de nós a dem onstração furi-
bunda tjue acabava de apresentar a Prenant, para depois, acalmando-se. ler o
m eu cartaz e mts dar a sua aprovação. Que lição!
O mais surpreendente é que este gênero de acidente, sobretudo o mais
h o rrírel, o prim eiro, não me precipitou em qualquer depressão que fosse, Eu
sentia-me desfeito, mas indignado, c essa indignação m antinha-m e sem dúvida

215
A O r I s ,-1 I. I H r S S h R

eni vida, juntam ente com o extraordinário exem plo da coragem de Hélène.
Estava a fazer-me um hom em .
Foi po r certo nestas prim eiras atribulações que descobri a força de realizar
no interior do Partido o m eu p ró p rio desejo de resistir e de lutar, com o fiz
constantem ente daí em diante. D escobrira por fim o m eu terreno de eleição,
mas com o continuava no Partido, a m inha luta desenrolava-se, com o já disse,
sob a protecção do próprio Partido. Nele fui atacado severamente, sem des­
canso, mas toleravam -m e sem dúvida p o r cálculo e devido à audiência que me
haviam valido as m inhas intervenções teóricas. Eu extraía seguram ente alguns
benefícios desta situação cjue com binava ao m esm o tem po um desejo de p ro ­
tecção até então inextirpável, e o m eu desejo de existir finalm ente num a luta
que até ao m om ento só p o r m eio de artifícios exercera. Desta feita, era a sério.
Foi-o, e cada vez mais, até 1980, ano do dram a.

216
XVII

gora que disse p o r que vias de acesso rem otas cheguei a Marx ou me
A «confortei» no seu pensam ento, com o m e expliquei sobre toda a história
da m inha relação com Marx quer em Pnur M arx (sobretudo no prefácio) cjuer
na «Soutenance dAmiens^^ *, posso ser mais sucinto.
A verdade é que posso dizer que foi em grande parte através d a s o rg a n i­
zações católicas da Acção CMtólica que to m ei contacto com a lu ta de classes
e p o r conseguinte com o m a rxism o . Mas não indiquei já a surpreendente astú­
cia da história que, através da exposição da «questão social» e da «política
social da Igreja», iniciou no socialism o um sem -núm ero de filhos de burgue­
ses, e de pequeno-burgueses (incluindo cam poneses da Juventude Agrária
Cristã), precisam ente devido ao m edo pânico de os ver passarem-se para o
cam po do «socialismo»? De facto, a Igreja, as suas encíclicas e os seus capelães
instruíram os seus p róprios m ilitantes sobre a existência de um a certa «questão
social» que a m aior parte de nós ignorava p o r com pleto. Bem entendido, um a
vez reconhecidas a «questão social» e as propostas dos ridículos rem édios para
ela, pouco bastava, p o r exemplo, no m eu caso, a visão política profunda do
«velho Hours», para quererm os ver o que se passava «por trás» das fórm ulas
nevoentas da Igreja Católica e aderirm os rapidam ente ao m arxism o, antes de
entrarm os no Partido Com unista! Tal foi o cam inho de dezenas de m ilhar de
m ilitantes das juventudes estudantis, operárias e agrárias cristãs (JEC, JOC,

' Defe.sa dc tese. (jV. d o T.)

217
o / c r r R o M i I / o 7 /: .1/ F o

ao m eu antigo problem a da evasão: com o sair do cam po ficando lá — mas


desta \'ez era ao co n trá rio e a sério). Frecjuentac a com Hélènc. não sei como.
o padre M ontuclard e as Juventudes da Igreja no Petit-Clamart. Ele dizia a
quem quisesse ouvi-lo: «O ateísm o é a fttrma m oderna da religião cristã, " Pala­
vras c]ue tiveram grande êxito no nosso grupo, locrco i na rco i>ta do grupo um
longo artigo sobre o estado da Igreja que ainda hoje os teiMogos da Libertação
me dão a honra de citar. Todo o Cristianism o se resumia para mim em Cristo,
na sua «mensagem evangélica» e no seu papel re\olucionario Contra Sartre
que adorava as «mediações», eu caansiderava que toda a m ediação ou é nula ou
é a própria coisa po r efeito de uma simples reflexão m inim am ente rigorosa, Se
Cristo era o m ediador ou a m ediação, era apenas a m ediação cio nada, logo
D eus n ã o existia. Etc. () padre Breton disse-me que estas fórm ulas tèm um
longo passado na teologia negativa e nos místicos.
Cheguei assim ao com unism o através de Courrèges e dos meus antigos
com panheiros de L\on resistentes fLesèvre. etc.), e naturalm ente através da
experiência dram ática de Hélène, que em nada desm entiu a m inha própria
experiência anterior, mas tam bém de m odo nenhum a precipitou,
Como fora m uito crente, interessava-me vivamente por Feuerbach e pttr
A Essência do Cristianism o. Durante anos dediquei-m e à sua tradução: um tra­
balho dem oradíssim o det qual só publiquei uma décim a parte, porque Feuer­
bach é um hom em que não pára de repetir-se. Abriu-me bem os olhos para os
textos de juventude de Marx, dos quais eu me viria a ocupar profundam ente.
Espantoso Feuerbach. esse grande desconhecido, cpie porém se encontra
na origem real da fenom enologia (a sua teoria da intencionalidade da relação
sujeito-objecto), de certos pontos de vista de Xietzsche e de Jacob von L ex-
küll, esse extraordinário biólogo filósoft), m uito apreciado por Canguilhem .
que retom ou de Feuerbach o conceito de Welt enquanto Lebensicelt. etc.
Tenho uma dívida infinita para com a leitura extrem am ente atenta que dele fiz.
Bem entendido, lia também as obras de juventude de Marx, mas rapidam ente
com preendi: elas eram, essas maravilhas então consideradas com o o pensa­
m ento originário e portanto definitivo de Marx, feiie rb a c h ia n a s de p o n ta a
p o n ta , até à «ruptura da nossa consciência filosófica de outrora» c)ue A Ideo­
logia A lem ã anuncia de m odo um tanto sumário, mas extraindo já em todo

219
L o [' I S A L 7 // V S S li R

JAC:) que travaram conhecim ento com quadros da CGT ou do Partido — n.;
m aior parte dos casos através da Resistência. Hoje. podem os esperar resulta­
dos mais im portantes do m ovim ento de massas que apoia a teologia da Liber­
tação.
Mas durante m uito tem po conservei a m inha «fé», até cerca de 19-4"’. Est.:
fora sem dúvida fortem ente abalada no cativeiro pela imagem, que me trans­
tornara p o r altura de uma «\ iagem dc camioneta» com Daél até aos co m an d o '
dos campos, pelo clarão da imagem de um a rapariga m uito jovem sentada n o '
degraus de uma escada, com os jo elh o s u n id o s e que, no seu silêncio, achei
inacreditavelm ente bela. Mas dou-m e conta neste instante de que estes «joelhos
iinidos^^ me lem bram um a espantosa aula de Elenri Guillemin que foi durante
quinze dias, em 1936, nosso professor de francês em L\'on. M andara-nos ler
A tala, e com o néts passavam os depressa de mais para o seu gosto pela descri­
ção do cadáver da bela rapariga e sobretudo pela «modéstia dos seus joelhos
unidos», ficou furioso, cham ou-nos «inocentinhos» e p o r fim, uma vez que
ninguém se atrevia a sugerir um a explicação, gritou-nos literalm ente; «Mas se
ela está com os joelhos unidos é porque ninguém lhe abriu as coxas para a
foder! É porejue ela é virgem, não? Depois da prim eira violação, os joelhos
abrem-se!» Esta «saída» pretensam ente explicativa deixou-m e, ccmfesso-o, bas­
tante pensativo. Em todo o caso, é possível c[ue entre os joelhos da pretensa
virgindade à Guillemin e os joelhos unidos da jovem e bela alem ã \ ista de pas­
sagem, tenha havidet alguma relação de afecto. De resto, na khâgne, em Lyon.
sentira-m e durante m uito tem po pertu rb ad o p o r um a ilustração de um m anual
de histétria literária latina que rcpresentaca dançarinas nuas e lascivas esculpi­
das no bronze de um baixo-relevo alexandrino. Fit[uei a tal ponto «comovido»
no m eu corpo que me fui confiar ao padre Varillon. Ele pregou-m e um dis­
curso sobre a arte e a sublimação. OK.
Seja com o for, tive m uito nitidam ente o sen tim en to de que deixava de ser
crente cm função de um a incom patibilidade gritante entre a m inha fé e os
meus desejos sexuais (lem bro-o uma vez mais; sem consequências).
C ontinuei todavia crente até cerca de 1947, até ao m om ento em que, com
Maurice Caveing, François Ricci e outros, organizám os o nosso sindicato ilegal
que lutava para ser legalmente reconhecido (situação que não deixava de ligar-se

218
L O U 1 S A L r H l; S S E R

O caso um certo núm ero de consequências revolucionárias sobre o m odo de pro­


dução e os elem entos da sua «combinação». Isso é algo que não encontram os
em Feuerbach e nem sequer em Hegel. Depois continuei a avançar dificilmente
na obra de Marx. Tinha feito um processo público ao «Jovem Marx» e aos M anus­
critos de 44 em La Pensée, anunciando o tema do anti-hum anism o teórico de
Marx, Ataquei então o surpreendente m anuscrito de 1858 (prim eira C rítica da
E conom ia Política) onde se encontra a seguinte fórm ula lapidar: «Não é a ana­
tom ia do m acaco que explica a do hom em , mas a anatom ia do hom em que
explica a do macaco.» Surpreendente po r duas razões: porque nega antes do seu
aparecim ento todo o sentido teleológico da concepção evolucionista da h istó ­
ria, e portiue é em term os precisos, em bora evidentem ente sob um a aparência
diversa, a antecipação da teoria freudiana da retrospectividade ■ . o sentido de
um afecto anterior dá-se apenas em e através de um afecto ulterior que ao mesmo
tem po o assinala com o tendo existido retrospectivamente e o investe no seu p ró ­
prio sentido ulterior. Mais tarde descobriría o m esm o pensam ento em Cangui-
Ihem, a propósito da sua crítica extrem am ente vigorosa do p r e c u r s o r '.
Com o já disse, só li O C apital em 1964-1965, ano do seminário cjue desem ­
bocaria em Lire «Le Capital». Foram Pierre Macherey, Étienne Balibar e Fran-
çois Regnault, se não me esqueço de ninguém , que, em Janeiro de 1963, me
tinham ido procurar ao m eu gabinete para que eu os ajudasse a ler as obras de
juventude de Marx. Portanto não fui eu quem tom ou a iniciativa de falar de Marx
na École, mas a isso me levou o convite de alguns n o rm a lien s. Esta prim eira
colaboração deu origem ao Sem inário de 1964-1965. Em Jun h o de 1964, orga­
nizámos o Seminário: Balibar, Macherey, Regnault, Duroux, Miller, Rancière, etc.,
estavam presentes. O que tinha idéias mais definidas sobre a questão era Miller.
Mas desapareceu com pletam ente durante o ano, vivendo num a espécie de pavi­
lhão de caça de Ram bouillet com um a rapariga que, dizia ele, «produzia pelo
m enos um conceito teórico p o r semana». Em todo o caso, acabava de inventar
um quando, passando lá perto com Hélène, fiz um a breve visita a Miller.

' \';i se q u ê n c i:i d e in te rv e n ç õ e s m a n u se rittis q u e n ã o p a re c e m se r to d a s d o p r ó p r io Althiis.ser,


o s d o is p artig rafo s q u e se se g u em fo ram o b je e to d e u m a e lisã o ejue n e m se m p re é n ítid a e c o m p r o m e te
a le itu ra d o texto. S em p re q u e a in te lig ib ilid a d e d o te x to o ex ig ia, m a n te v e -se assim a v e rsã o in ic ia l d o
m a n u s c rito . (N. d o E. f r a n c ê s )

220
o /•' r i V R o 7; M ( / 7 o 7 t U P O

Irabalhám os a partir do texto dt) C a p itai durante todo o \'erão de 1965,


:iM recom eço do ano lectivo foi Rancière quem . para nosso grande alívio.
. . itoLi a responsabilidade da estreia. Falou très vezes durante duas horas com
::.i precisão e um rigor extrem os. Ainda hoje digo de mim para mim que sem
V nada teria sido possível. Toda a gente sabe com o se passam as coisas nestes
- >s. Q uando o prim eiro relator fala tão dem orada e m inuciosam ente, os
,:nts beneficiam disso para o seu próprio trabalho. Foi o que eu fiz por
. nha conta, e reconheço abertam ente aquilo que nessa ocasião fiquei a dever
Rancière. Depois de Rancière tudo era fácil, o cam inho fora aberto e bem
crto. e aberto segundo as categorias em que então pensavam os, depois de
a aula que eu tinha dado sobre Lacan e onde Miller interviera para anunciar
: .1 descoberta conceptual»: a da «causalidade m etoním ica» (ou causa
'cm e). descoberta que viria a provocar um dram a. O ano passou: o mais
> de todos nós, Duroux, não abriu a boca. Mas quando Miller voltou em
;‘ h o de 1965 de Ram bouillet, leu os resum os policopiados das intervenções
J,c'Cobriu que Rancière lhe «roubara» o seu conceito pessoal de «causalidade
econímica». Rancière ressentiu-se terrivelm ente com a acusação. Os concei-
' n.lo são de toda a gente? Era essa a m inha opinião, mas Miller na altura não
rntendia assim. Não refiro este incidente ridículo para atacar Miller, há que
- ' «c indulgente com a juventude. E de resto, ao que parece, ele com eçou este
' a sua lição magistral sobre Lacan afirm ando solenem ente: «Não vam os
:iuiar Lacan m a s ser estudados p o r e/e» O que prova que ele tam bém é
p.iz de reconhecer a outrem a invenção e a propriedade de um conceito...
o ano acabou m uito m al: já não sei através de que dialéctica fui eu p ró ­
; I que vim a ser. em vez de Rancière, acusado por Miller de lhe ter roubado
.'in ce ito de «causalidade m etoním ica». Felizmente para ele. Rancière ficava
" in : de fora deste tenebroso caso. Os seus vestígios aparecem cm Lire «Le
.iiútal». Q uando em prego essa expressão («causalidade m etonímica») digo
-*ma nota que a tom ei de em préstim o a Miller... mas para a transform ar logo
'cguir em «causalidade estrutural», expressão que ninguém em pregara e que
rianto era bem m inha! Que história! Mas ela dá um a ideia do pequeno
ando que era o nosso, que tanto im pressionou Debray por altura do seu
icresso da Bolívia, e que deve parecer inacreditável aos leitores.

221
IO i i s I /. / // ( s s i: II

Hsta questão da autoria, soube-o reeentem enie da boca do padre Breton,


é um a Itistória m uito antiga. Sabe-se c]ue na Idade Média, contrariam ente ao
que se passa nos nossos dias, a ciência se ligava a um n o m e de autor-. Aristóte­
les. Hm contrapartida, a produção literária não contar a com qualquer nom e de
autor. Nos nossos dias, a situação inverteu-se p o r com pleto: os cientistas traba­
lharam no anonim ato de um esforço colectivo e quando m uito fala-se da «lei
de Nervton», contentando-nos nós o mais das vezes em falar da «lei da gravita-
ção». ou, no caso de Einstein, da relatir idade simples ou da relatividade geral.
F,m contrapartida, ciualquer obra literária, m esm o a mais m odesta, guarda para
sem pre o nom e do seu autor. Ora, Breton soube-o p o r um dos seus colegas,
medievalista de grande erudição, o padre Chatillon, São Tomás, num a acesa
controvérsia contra os arerroístas, pronunciara-se outrora contra o tema da
im pessoalidade (cjuer dizer, do «anonimato») de qualquer pensador singular,
argum entando mais ou m enos nos seguintes term os: todo o pensam ento é de
facto impessoal, uma \ ez que é obra do intelecto agente. Mas devendo todo o
pensam ento ser pensam enttt de um «inteligendo». deve ser por iss(t o retom ar
de um pensam ento impessoal por um «inteligendo» singular. H de direito, pode
usar o nom e desse singular... Hsta\a longe de supor que em plena Idade Média,
quando imperar a, com o nos dizia 1-oucault em Sois\, a lei tia im pessoalidade
literária, tinha har ido um São fomás. sem dúxada para satisfazer as exigências
da controvérsia contra os ar erroístas. a justificar em direito filosétfico a neces­
sidade da assinatura do autor...
No entanto, esta questão ridícula do «roubo de um conceito» tocava num
ponto de princípio e de angústia que calava profundam ente em m im ; a ejues-
tãü do a n o n im a to . Com o eu não existia para mim prétprio, concebe-se com
facilidade ejue desejasse consagrar essa inexistência por m eio do m eu prétprio
anonim ato. Fez-me sonhar então a fórm ula de Fleine que fala de um crítico
célebre: «/;7e era conhecido p ela sna notoriedade.» Gostei que Foucault
fizesse a crítica da noçãtt de «autor», noção inteiram ente m oderna, e desapare­
cesse na acção m ilitante junto dos presos com o eu nas fileiras da m inha célula
obscura. G ostara da m odéstia profunda de Foucault e sei que Étienne Balibar
aprecia em mim «acima de tudo» a feroz luta que travar a constantem ente contra
toda a publicidade em torno do meu nome. Tinha uma reputação de selvagem.

k
/’ r / r A’ o F. 1/ r / 7 o 7 7 .1/ p

enclausurado no meu velho apartam ento da École de onde quase nunca saía,
c se m antinha todas as aparências desta seh ajaria reclusa era para tentar entrar
no anonim ato em que pensava descobrir o m eu destino e por acréscim o a paz,
E agora que confio ao público que se dispuser a lè-lo este li\ ro pessoalíssimo,
é ainda, mas por via paradoxal, p a r a en lra r clefhiitivciniente )in anoni}}iato.
não já da pedra tum ular da im procedència, mas na publicação de tudo o que
de mim se pode saber, ficando de vez em paz perante as solicitações indiscre­
tas. Porque desta feita todos os jornalistas e outras pessoas dos meios de com u­
nicação ficarão saciados, mas há-de ver-se que não necessariam ente satisfeitos

Em prim eiro lugar porepie em n;id;i terão contribuído para o resultado e em


seguida por não poderem acrescentar nada ãcjuilo que eu ac|Lii escreeo. 1 in
com entário? Mas se sou eu prtáprio cjue o faço!
Assim, ejLianto mais penetrava em Marx, mais filosofia eu lia, e mais me
dava conta de tiuc .Marx pensara, sabendo-o ou não, no quadro de pensam entos
de grande im portância cujos autores o tinham precedido: Epicuro, Spinoza,
Hobbes, Maquiavel (parcialmente para dizer a \'erdade), Rousseau e Hcgcl,
E convenci-me cada vez mais de que a filosofiti de Hegel c Feuerbach servira ao
mesmo tem po de «ponto de apoio» e de obstáculo epistem ológico ao desen\ol-
\ imento dos seus próprios conceitos e até à sua form ulação (lacques Bidet
dem onstrou-o rigorosam ente na sua tese recente: Que fa ire du «Capital»}', edi­
ção de Méridiens-Klinksieck), O tiue naturalm ente perm ite pôr a Marx e a pro ­
pósito de Marx ejuestões ciue ele não soubera ou pudera pôr, O que significava
(,|Lie, se ciueríamos «pensar por nós próprios» peninte a assombrosa «imaginação
da história» contem porânea, precisácamos po r nosso turno de inventar no\as
formas de pensamentt.), novos conceitos — mas sempre seguncUj a inspiração
materialista de .Marx para «nunca alimentarmos ilustões», perm anecendo atentos
ã novidade e à in\enção da história. Bem com o ã ecolução de pensam entos do
maior interesse, ainda c[ue não se reclamem em nada de .Marx ou tenham a
reputação (?) de ser politicam ente anticom unistas — penso aqLii prccisamentc
no livro notabilíssimo de François Furet sobre a Recolução Francesa, que se
situa, a justo título, contra uma tradição puram ente ideológica nascida no
tem po da própria Revolução, dentro daquilo a que Marx clrania\ a a seu p ropó­
sito a «ilusão da política», no tem po dos com itês revolucionários parisienses.

22,â
II r / s .1 /- 7 77 r S S E R

Aqui está o que dom inou as m inhas relações com Marx e o m arxism o.
A partir de então descobri, com o qualquer outro pode fazê-lo (e com o no
essencial Marx reconheceu), que o essencial filosófico e não «científico» do
m arxism o foi enunciado m uito tem po antes de Marx (Ibn K haldoun, Montes-
quieii, etc.) — exceptuando essa «nebulosa» e literalm ente im pensável teoria
do valor-trabalho que Marx reivindica com o a sua única descoberta autentica­
m ente pessoal. Dos aspectos políticos desta actividade de aparência pura­
m ente teórica (ah! o que não se escreveu sobre o nosso «teoricismo», o nosso
«desprezo pela prática»!!), falo n o utro lugar.

224
XVIII

Q
uanto à m inlia relação com o m arxism o, é só agora que penso \è-la
cx)m clareza. Lana \ez mais, não se trata da objectiv idade do que pude
cscre\er, e portanto da m inha relação com um objecto ou objectos objecti-
\ ()s, mas da m inha relação com um objectt) «objectal», quer dizer, interno e
inconsciente. K unicam ente desta relação objectal cjue de m om ento c|uero
falar.
Eis como, hoje, isto é, desde que estou a escrer er este ensaio, as coisas me
aparecem .
De que m odo tinha eu acesso ao m undo, tão estreito e repetitivo, que mc
rodeava em criança? De que m odo, introduzindo-m e no desejo de m inha mãe,
podia eu esperar entrar em relação com o m undo? Com o ela, ejuer dizer, não
através do contacto do corpo e das mãos, através do seu trabalho a partir de
uma m atéria pré-existente. mas pela utilização dos m eus olhos. O olho é pas-
si\(), à distância do seu objccto. recebe a imagem deste, sem ter que trabalhar,
sem com prom eter o corptj em qualquer processo de aproxim ação, de c o n ­
tacto, de m anipulação (as mãos sujas, a sujidade eram uma fobia da m inba
mãe — e era por isso que eu tinha uma espécie de com placência pela sujidade ).
O olho é assim o étrgão especulativo po r excelência, de Platão e .-Vristóteles a
São Tomás e para além dele. Em criança, nunca eu teria «posto a mão no cu»
fosse de que rapariga fosse, mas era razoaw lm ente royeiir. traço que me ficou
por m uito tempo. Distância; a dupla distancia que mc era sugerida e imposta
pela m inha mãe. a que nos protege das intenções de outrem antes que outrem

225
I o I I s A I- 7 // r -V V 7: R

nos toque (roubo ou violação), a distancia a ciuc eu devia estar tam bém desse
outro Louis que a m inha mãe não paraca de olhar através de mim. Era assim
um filho do (dhar, sem contacto, sem corpo, porque é de facto pelo corpo que
todo o contacto passa. Dizem-me que, por \'olta de 19~5. proferi a seguinte
terrível frase: «E depois há corpos e os corpos tém sexos»! Com o não sentia
em mim qualcjuer corpo, não precisava seciuer de me defender de um simples
contacto com a m atéria das coisas ou do corpo das pessoas, e era sem dúv ida
p o r isso que tinha um meck) pânico de me bater, m edo de t[ue. nessas lutas
breves e violentas entre rapazes, o meu corpo (ou o c[ue dele eu tinha) pudesse
ficar ferido, danificado na sua ilusévria integridade — de me bater ou, ideia cjue
nunca me ocorreu antes dos vinte e sete anos, de me masturbar.
Ora penso que o meu corpo desejava profundam ente ter a sua existência
prétpria. De onde o m eu desejo de praticar futebol, de onde a extrem a habili­
dade com que me serv ia de todos os meus mtfsculos, tanto os da boca e da gar­
ganta com o os m úsculos dos meus braços e das m inhas pernas (as línguas, o
futebol, etc.). Este meu desejo perm aneceu no estado latente até ao tem po feliz
do meu av (í. prim eiro na casa florestal do Bois de Boulogne, mas sobretudo na
sua horta e nos seus cam pos de Morvan, \e jo agora claram ente que este
período exaltante foi aquele em que finalm ente reconhcci e finalm entc me foi
reconhecida a existência de um corpo, e em que me apropriei realm ente de
todas as virtualidades efectivas do meu corjvo. Ema vez mais o recordtv: os
cheiros, antes de mais o das flores, frutos, plantas, mas também o do seu ap o ­
drecim ento, o div inal cheiro do estrum e de cavalo, o cheiro da terra e da
m erda na peciuena casa de banho de m adeira no jardim por baixo de um sabu­
gueiro de perfum e intenso; o gosto dos m orangos bravos que eu apanhava nos
taludes, o cheiro dos cogum elos e sobretudo dos ejue se podiam comer, o
cheiro das galinhas e o cheiro do sangue; o cheiro do gato e dos cães, o cheiro
dos cereais enfeixados, do azeite, dos jactos de água a ferver, do suor dos ani­
mais e dos hom ens, do tabaco do m eu av ô. o cheiro do sexo, o cheiro violento
d <7 vinho e dos tecidos, o cheiro da serradura, o cheiro do m eu prétprio suor
no m eu corpo em m ovim ento; a alegria de sentir os meus m úsculos responde­
rem ao m eu impulso, a m inha força levantando os braçados à altura dos carros,
a erguer toros e troncos, com o tinham — os meus m úsculos — respondido tão

2 2 6
/• r / i R o M I I r o / h \i p o

I-)cm ;u) m eu desejo de aprender sozinho a nadar bem, de aprender a jogar bem
tênis sozinho, a andar bem de bicicleta com o um campeão. Tudo isto me foi
dado pelo M orvan, cpier dizer, pela presença actic a e benéfica do m eu avò
(enciuíinto a \ iolència do meu pai em Argel e Marselha nunca foi para mim um
m odelo, mas um terror).
Foi assim cjue com ecei a «pensar» com o meu c o rp o : isso ficar-me-ia para
sempre. Pensar nãct na dimensãt) distante passiva do olhar, dos olhos, mas na
acção da mão. do jogo infinito dos m úsculos, e de todas as sensações do corpo.
Q uando passeava no jardim ttu no cam po do meu avò e nos bosques, só p en ­
sava em trabalhar e rem exer a terra, ceifar o trigo e a cevada, afastar ã m inha
frente os ramos das árvores novas para os cortar com a m inha faca. ah' essa
faca, prenda do m eu avò, tão grande e afiada com o a dele, que alegria cortar os
ramos novos dos castanheiros para os arcos dos cestos, os rebentos de salgueiro
para os entrelaçar na sua arm ação, tiiie alegria entrelaçar eu próp rio esses ces­
tos, que alegria cortar a lenha m iúda dos m olhos secos com a podoa, ou rachar
a lenha grande à m achadada, no cheiro a vinho e a m ofo da cave!
O corpo, o seu exercício exaltante, as cam inhadas pelas matas, os trajectos
a pé. as longas fugas de bicicleta por ladeiras extenuantes — toda esta vida
enfim descoberta e tornada m inha substituira para sem pre a sim ples distância
especulativa do olhar vão. Disse que experim entei a m inha exaltação pessoal
nos trabalhos físicos do cativeiro, fím a constância profunda cjue fixou para
'c m p re o meu destino, para aí reconhecer o m eu próprio desejo (não o da
m inha mãe, que tinha um santo h o rro r p o r qualquer contacto físico, tão obce-
Lada era pela «pureza» do seu corpo que protegia de mil maneiras, e antes do
ntais com as suas inúm eras fobias, de todos os atropelos perigosos). Torna­
ra-me por fim feliz no m eu desejo, o de ser um corpo, de existir antes do mais
no meu corpo, na prova m aterial irrefutável que ele me dava de existir deveras
c enfim. Hu nada tinha a ver com o São Tomás da teologia que pensa ainda sob
.1 figura do olho especulativo, mas m uito mais com o São Tomé dos Fvange-
’.hos cjue t|uer tocar para acreditar. .Melhor, não me contentava com o simples
Lontacto da m ão para acreditar na realidade, precisava de a trabalhar, de a
iranstórm ar para acreditar, m uito para lá da realidade pura e simples, na m inha
própria existência, finalm ente conquistada.

7 7 ^
r o I ( s .1 / H (' s S li K

Q uando «descobri» o m arxism o, foi através cio meu co rpo que a ele aderi.
Não só porque representava a crítica radical de toda a ilusão «especulativa»,
mas porque me perm itiu nã(t só viver, atrav és da crítica de toda a ilusão espe­
culativa. uma relação verdadeira com a realidade nua e p o d er tam bém viver
doravante essa relação física (de contacto mas sobretudo de trabalho a partir
da m atéria social ou outra) no in terio r do p ró p rio pensam ento. .\o m ar­
xismo, na teoria m arxista, descobri um pensam ento cjuc levava em conta o
prim ado do corpo activo e trabalhador sobre a cvnvsciència passiva e especula­
tiva. e pensava esta relação com o sendo ela o próprio materialismo. Fiquei fas­
cinado com isto e aderi sem dificuldade a esta perspectiva cjue não era para
mim uma revelação mas um bem próprio. .Na ordem do pensam ento puro
(onde reinavam ainda em mim a imagem e o desejo da m inha mãe), eu desco­
bria finalm ente esse prim ado do corpo, da m ão e do seu trabalho de transfor­
m ação de toda a m atéria, tjue me perm itia pô r fim à m inha dilaceração interna
entre o meu ideal teórico, resultante do desejo da m inha mãe. c o m eu pró p rio
desejo que reconhecera e reconquistara no m eu corpo o m eu desejo de existir
para mim. a m inha própria m aneini de existir. Nao era p o r acaso que eu p e n ­
sava. no m arxism o, toda a categoria sob o prim ado da prática, e propunha a
fórm ula da «prática teó rica s fórm ula que satisfazia o m eu desejo de com pro­
misso entre o desejo (especulativo, teórico, resulttinte do desejo da m inha
m ãe) e o meu pró p rio desejo assom brado não tanto pelo conceito de prática,
com o pela m inha experiência e o m eu desejo da prática real, do contacto com
a m atéria (física ou social), e da sua transform ação no trabalho (operário) e na
acção (política). Ora esta fórm ula, «pensar é produzir», encontra-se já em
babriola. Ninguém deu p o r isso, mas quem tinha lido Labriola em França?
Tratava-se sem dúvida de um com prom isso. Nos meus prim eiros escritos,
eu exprim ia ainthi à minhti m aneira este com prom isso no elem ento, ainda
dom inante para mim, do puro pensam ento de... foi assim que, arranjando-m e
com o podia nr> interior deste cvtmpromisso, forjei em filosofia a dem asiado
célebre definição da filosofia com o «Teoria da prática teórica» (frágil m aius­
cula que tanto com oveu Ciesarc L uporini...), mas para ela renunciar rapida­
m ente sob as críticas de Régis Debray e sobretudo de Robert Linhart, que
sabiam, pelo seu lado. o que eram a acção política e o seu prim ado. De facto, se

228
/ i' I r K o E M r / 7 o 7 7 _U 7' o

os meus amigos me fizeram reconsiderar tão facilm ente e \o lta r ao bom cam i­
nho, era porque se tratava do mais fundo do que eu queria, com o meu p ró ­
prio desejo, e há m uito tempo,
Mas antes de chegar a Marx, tenho que falar do des\ io que fiz atrac és de
spinoza, Maciuiaxel e Rousseau: foram eles a m inha «estrada real para Marx.
Já o indiqtiei, mas sem apresentar as razões profundas.
Encontrara em Spinoza (além do célebre A pêndice do Li\ ro 11 uma p ro d i­
giosa teoria da ideologia religiosa, esse «aparelho de pensamento» que \ ira o
m undo ao contrário, tom ando as causas p o r fins e pensada inteiram ente na sua
relação com a sujectividade social. Que «decapagem»!
D escobrira no conhecim ento do «prim eiro gênero» não um conheci­
mento, nem a fo r tio r i uma teoria do conhecim ento — teoria da «garantia»
,ibsoluta de todo o saber, teoria «idealista» — , mas uma teoria do m undo ime-
«liatamente vivido (para mim, a teoria do prim eiro gênero era sim plesm ente o
m undo, quer dizer, o im ediato da ideologia espontânea do senso com um ),
E sobretudo descobrira no Tratado Teológico-Político, que pelo m enos inter­
pretava assim, o exem plo mais fulgurante mas tam bém mais ignorado do
conhecim ento do «terceiro gênero», o mais elevado, tjue proporciona a inteli­
gência de um objecto ao m esm o tem po singular e universal (era, devo reco­
nhecê-lo, um a leitura bastante hegeliana de Spinoza — nãca é p o r acaso que
Hcgel considera Spinoza «o maior» — mas não a julgo falsa): a da individuali-
«iade histórica singular de um povo (penso que Spinoza visava assim no «ter­
ceiro gênero» o conhecim ento de toda a indit idualidade singular e no seu
genero universal), a do povo judeu. E sentia-m e absolutam ente fascinado pela
teoria dos profetas que nele encontram os, reforçando em mim a ideia de que
-'pinoza alcançara uma consciência prodigiosa da natureza da ideologia. Sabe-
se com efeito que os profetas sobem à m ontanha para aí om irem a \o z de
Deus. Para dizer a verdade, o que lá ouvem é o estrépito do trovão e dos
relâmpagos bem com o algumas palavras, que referem sem as terem c o m ­
preendido ao povo da planície que aguarda o seu regresso. E o extraordinário
e que então é esse m esm o povo que, na sua consciência de si e no seu conhe-
«imento, ensina aos profetas surdos e cegos o sentido da m ensagem t[ue
Deus lhes entregou! Todos, excepto Daniel, esse imbecil que não só não

229
/, o r / ,s .1 A / // f' -V V A A

com preende o que Deus lhe disse (tal é a sorte de todos os profetas), mas nem
sequer aquilo que o povo lhe explica para o fazer com preender o que ouviu!!
Prova de que a ideologia pode, em certos casos, e por que não por natureza,
ser totalm ente opaca para aqueles t)ue se lhes encontram subm etidos. Isto era
para mim m oti \'0 de admiração, bem com o a concepção de Spinoza sobre as
relações entre a ideologia religiosa dt) povo judeu e a sua existência m aterial
no templo, os sacerdotes, os sacrifícios, as observàncias, os rituais, etc. Mais
tarde, seguindo-o neste ponto, com o tam bém a Pascal que admirava m uito, eu
insistiria fortem ente na existência m aterial da ideologia, não só nas suas con­
dições materiais de existência (o que encontram os já em Marx e, antes e depois
dele, em num erosos autores), mas na m ateriedidade da sua própria existência.
Mas eu ainda não chegara ao fim no cjue se refere a Spinoza. Ele era um
pensador que recusara toda a teoria do conhecim ento (de tipo cartesiano ou
mais tarde kantiano), um autor que recusara o papel fundador da subjectix i­
dade cartesiana do cogito, para se contentar com escrever, com o um facto: «o
hom em pensa», sem daí extrair qualcpier consequência transcendental. Era
tam bém um nom inalista, e Marx ensinar-m e-ia ejue o nom inalism o é a estrada
real para o materialismo. ou. para dizer a xerdade, trata-se de uma estrada ejue
apenas em si própria desem boca, e não conheço fo rm a de materialismo mais
profunda do que o nominalismo. Era por fim um hom em que, sem esboçar uma
gênese do sentido originário, enunciava o seguinte facto: «temos um a ideia
verdadeira», uma «norma da verdade» que nos é dada pela m atem ática — mais
uma vez um facto sem origem transcendental, um hom em que im ediatam ente
pensava xn fa c tic id a d e do facto: surpreendente no autor que alguns preten­
dem dogm ático deduzindo o m undo de Deus e dos seus atributos! Nada mais
m aterialista do que este pensam ento sem origem nem fim. Mais tarde eu
extrairia datjui a m inha fórm ula da história e da verdade com o processo sem
sujeito (originário, fundador de todo o sentido) e sem fins (sem destino esca-
tológico pré-estabelecido), pois recusar o pensam ento do fim com o causa ori­
ginária (no reenvio especular da origem e do fim) era deveras pensar com o
materialista. Servi-me então de um a m etáfora: um idealista é um hom em tiue
sabe ao m esm o tem po de tjue estação sai e qual é o seu destino; sabe-o anteci­
padam ente e quando apanha o com boio, sabe para onde vai, uma xez titie o

230
o F r T r K o M r i i o 7 F M F o

^om boio o le\'a. O m aterialista, pelo contrário, é um hom em cjue apanha o


com boio em andam ento sem saber de onde \em nem para onde \ai. G osta\a
também, citando Dietzgen, que se antecipara a Heidegger cjue o ignora\a. [de
dizer] que a filosofia era «der' H olziveg der Halzivege^^. o cam inho dos cam i­
nhos ciLie não levam a parte algum a — sabendo tam bém que Hegcl forjara
.intes a prodigiosa imagem de um «caminho cpie anda sozinho . abrindo-se ao
.idiantar o seu pró p rio trajecto pelos bosques e campos. Tudo isto era para
mim. ou veio a sè-lo, algo que estava inscrito e filigrana no pensam ento de Spi-
noza. E já não falo da sua fórm ula célebre: «o conceito de cão não ladra c que
distinguia ainda, mas desta feita no p ró p rio núcleo da concepção de um pen-
'am ento científico, conceptual, o conceito do seu referente sensível, quer
dizer, para mim ao tem po, da sua cobertura ideológica, a do «vivido», a tal
ponto a fenom enologia husserliana — e sobretudo o m arxism o husserliano de
Desanti — me enchiam de h o rro r teórico.
Mas o que sem dúvida mc im pressionou mais foi a teoria do corpo em Spi-
noza. Esse corpo, do qual num erosas potências nos são de facto desconheci­
das, esse corpo cuja m ens (mal traduzido por alma ou espírito) é a ideia,
'c n d o a p rópria ideia mal traduzichi po r este termo. Spinoza pensava-o com o
uma p o te n tia , ao m esm o tem po com o um im pulso (fo rtitiid o ) e com o aber­
tura ao m undo (generositas), com o dom gratuito. Nele descobriría mais tarde
.1 espantosa antecipação da líbido freudiana, do m esm o m odo cjue a teoria da
.imbivalência — espantosa quando pensam os que para Spinoza, para nos ficar­
mos p o r este exem plo só, o m edo é a m esm a coisa que o seu co n trá rio a
esperança, sendo ambas as coisas «paixões tristes», contrárias ao co natus
\ ital, todo expansão e alegria, do corpo e da alma, unidos com o os lábios e os
dentes.
Esta ideia do corpo convinha-m e às mil maravilhas, com o se pode imagi­
nar. D escobriría nela com efeito a m inha própria experiência, de um corpo
prim eiro fragm entado e perdido, de um corpo ausente, todo feito de m edo e
esperança desm estirados, que se recom pusera em mim e com o que se desco­
brira no exercício da apropriação das suas forças, em com panhia do meu avó
nas lides físicas dos cam pos e do cam po de prisioneiros! O facto de ser possí-
\ el redispor-se assim do pró p rio corpo, retirando dessa apropriação algo com

231
A O t I S A L r H V S S E R

que pensar forte e livremente, portanto pensar propriam ente com o corpo, no
corpo e p o r m eio do corpo, em suma o facto de o corpo p o d e r pensar, no e
pelo desabrochar das suas forças, era para mim absolutam ente deslum brante,
com o um a realidade e um a verdade que eu vivera e eram as m inhas. A tal
ponto é verdade, com o m uito bem disse Hegel, que só se conhece aquilo que
se reconhece.
No entanto teria ainda necessidade de outros filósofos para um a verda­
deira introdução a Marx. Em prim eiro lugar, foram, com o referi na m inha
«Soiitenance d Arniens». os filósofos políticos dos séculos xvii e xviii, sobre
os quais tinha então o projecto de elaborar um a tese de doutoram ento. De
Hobbes a Rousseau. descobria um a m esm a inspiração, profunda, a de um
m undo conflitual ao qual só a autoridade absoluta do Estado (Elobbes) pode
sem contrapartida garantir a segurança dos bens e das pessoas, pondo fim à
«guerra de todos contra todos»: antecipação da luta de classes e do papel do
Estado, a propósito dos quais sabem os que o p ró p rio Marx declara que os não
descobriu, mas foi buscar aos seus predecessores, em particular aos historia­
dores franceses da Restauração, apesar de estes serem m uito pouco «progres­
sistas», e aos econom istas ingleses, sobretudo Ricardo. Teria podido ir m uito
mais Umge. até ao célebre debate entre «romanistas» e «germanistas», sem falar
dos autores que acabo de citar. O famoso cardeal Ratzinger. a quem a luta de
classes tira o sono, faria bem em se instruir um pouco. Rousseau, cjue pensava
no estado de natureza «desenvoh ido» a mesma conflitualidade social, dava-lhe
uma outra solução: justam ente o fim do Estado, na dem ocracia directa do
«contrato» exprim indo um a vontade geral «que nunca morre». O que convida
a sonhar para um dia o a d \e n to do com unism o! Mas o que tam bém me fasci­
nava em Rousseau era (t Segundo Discurso e a teoria do contrato ilegítimo,
subterfúgio c astúcia nascidos da im aginação perversa dos ricos para subm ete­
rem o espírito dos m iseráveis: mais uma teoria da ideologia, mas desta feita
referida às suas causas e ao seu papel sociais, quer dizer, à sua função hegem ô­
nica na luta de classes. Considero Rousseau o prim eiro teórico da hegem o­
nia — após Maquiavcl. Eram tam bém os planos de reform a para a Córsega e
para a Polônia onde Rousseau nos surge com o exactam ente o contrário de um
Litopista, um realista que sabe levar em conta todos os dados com plexos de uma

2 3 2
/• U 1 V K O M r / r o / £ . 1; £ o

situação e de uma tradição, e respeitar os ritm os do tem po. \ ã o o fazia ele


igualm ente na sua espantosa teoria da educação de Émile. onde \em o s que é
nesessário respeitar as etapas naturais do desen\’ol\'im ento indi\ idual sem
nunca as exceder, respeitando portanto a obra do tem po no crescim ento da
criança (sem perder tem po para o ganhar)? Por fim, encomrac a nas CrDifissões
o exem plo único de um a espécie de «auto-análise» sem a m enor com placência,
onde m anifesiam ente Rousseau se descobria ao escrec er e ao reflectir sobre os
dados m arcantes da sua infância e da sua vida e, antes do mais. pela prim eira
vez na história literária, sobre o sexo, e sobre essa adm irável teoria do «suple­
mento» sexual que D errida com entou de m odo notável com o figura da castra­
ção. Por fim aciuilo que me agradava nele era a sua oposição radical à ideologia
escatológica, racionalista das Luzes, a dos «philosophes» que tanto o detesta­
vam (ou pelo m enos ele assim julgava, esse eterno perseguido), acreditanto
que o entendim ento dos povos era passível de ser reform ado p o r m eio da
reform a intelectual... que aberração acerca da realidade de toda a ideologia!,
oposição que voltaria a encontrar na lucidez sem com prom issos de Marx e de
Freud, e tam bém na independência radical do indivíduo Rousseau perante
todas as tentações da riqueza e do poder, e a exaltação de um a form ação de
autodidacta, que calava bem fundo em m im ...
Mais tarde, descobriria Macjuiavel que, na m inha opinião, foi em muitos
aspectos m uito mais longe do que Marx: justam ente ao tentar pensar as co n d i­
ções e as form as da acção política na sua pureza, quer dizer, no seu conceito.
Tm a vez mais o que aqui me im pressionaca era o radical levar em conta da
faculdade aleatória de t|uak|ucr conjuntura e a necessidade, para a co n stitu i­
ção da unidade nacional italiana, de que um hom em sem escrúpulos partisse
do nada e de um lugar qualquer, no exterior de qualquer Estado constituído,
para recom por o corpo fragm entado de um pais dividido em si próprio, e sem
a prefiguração da unidade nas fórm ulas políticas (todas elas más) existentes.
Julgo cjue não esgotám os ainda este pensam ento sem precedentes e infeliz­
m ente sem continuidade.
Em suma, foi a p artir de todo este passado pessoal, destas leituras e asso­
ciações, c|ue me apropriei do m arxism o com o de um bem próprio e me pus a
pensar nele, sem dúvida a m eu m odo, um m odo que hoje reconheço não ser

233
L (j r í s .4 r I H V s ,s r. R

exactam ente o de Marx. Vejo bem que não fiz mais do que tentar tornar os tex­
tos teóricos de Marx, m uitas vezes obscuros e contraditórios, ejuando não
lacunares em certos pontos im portantes, inteligíveis em si próprios e para nós.
Vejo bem que me m ovia nesta iniciativa uma dupla am bição sem apelo ■
. p ri­
m eiro e antes do mais não alim entar ilusões nem sobre o real, nem sobre o real
do pensam ento de Marx, e portanto distinguir neste aquilo a que cham ei a
ideologia (da juventude) e o pensam ento ulterior, ac|uele c|ue acreditava ser o
pensam ento da «realidade com pletam ente nua, sem contributo externo»
(Engels). «Não alim entar ilusões», esta fórm ula continua a ser para mim a
única definição do m aterialism o; e tentar, «pensando por mim próprio» (pala-
\ ras de Kant retom adas p o r Marx), tornar o pensam ento de Marx claro e co e­
rente para todos os leitores de boa fé e exigência teórica. Naturalmente, isto
conferiu uma form a particular à m inha exposição da teoria m arxista, de onde,
em num erosos especialistas e militantes, a im pressão de que eu fabricara um
Marx m eu. algo estranho ao Marx real, um m arxism o im aginário (Raymond
Aron). Reconheço-o de bom grackx porc]ue de facto suprim ia em Marx tudo o
cpie me parecia não só incom patível com os seus princípios materialistas, mas
tam bém o que nele subsistia de ideologia, acima de tudo as categorias apolo-
géticas da «ciialéctica». ou até m esm o a própria clialéctica. c|ue me parecia não
servir nas suas famosas «leis» senão com o apologia (justificação) retrospectiva
cio facto consum ado do desenrolar-se aleatório da história para as decisões da
direcção do Partido. Neste ponto nunca m udei, e é po r isso que a figura da
teoria m arxista que propus, e que de facto rectificava o pensam ento literal de
Marx em num erosos pontos, me valeu incontáveis ataques de pessoas apega­
das à letra das expressões de Marx. Sim, dou-m e bem conta de ter com o que
fabricado para Marx uma filosofia diferente do m arxism o vulgar, mas com o
esta fornecia ao leitor um a exposição já não contraditória mas coerente e inte­
ligível, pensava que o objectivo estava alcançado e que eu me «apropriara» de
Marx observando as suas exigências de coerência e de inteligibilidade. Era de
resto a única m aneira de «quebrar» a ortodoxia da II e desastrosa Internacional
da qual Estaline fora herdeiro a cem p o r cento.
Foi isto p o r certo que «abriu» a num erosos jovens, ao tem po, a seguinte
perspectiva nova: era possível pensar no quadro desta nova apresentação de

234
/' r 7 i li o 1 / 7 / 7 0 / /; .1/ 7' 77

Marx sem renegar em nada as exigências de coerência c de inteligibilidade,


podia-se assim prestar-lhe a ele e a nós o serviço de dom inar m elhor que ele
próprio o seu p ró p rio pensam ento, m uito naturalm ente apanhado nas malhas
das im posições teóricas do seu tem po (e nas suas contradições inec itá\ eis 1,
Era possível torná-lo assim verdadeiram ente contem porâneo. Tratou-se de uma
pet|uena revolução «intelectual» na concepçãtt da teoria m arxista. Mas creio
que não foram tanto as nossas ino\'ações bizarras que os nossos ach ersãrios
visaram, mas o próprio projecto de nos desligarm os da literalidade de .Marx,
para o tornar inteligível para o seu p ró p rio pensam ento. No fundo. .Marx co n ti­
nuava a ser para eles, até nas suas aberrações, uma figura sagrada, o \ elho pai
fundador inatacár el. Eu, pelo m eu lado, não gostava de pais sagrados, e adqui­
rira, sem dúvida havia muito, a certeza de que um pai é apenas um pai, uma
personagem em si duvidosa, impossível no seu papel, e aprendera e gostara de
tal m odo de fazer de «pai do pai» que esta actividade de pensar em seu lugar
o que ele deveria ter pensado para ser ele pró p rio me assentava com o uma
luva.
Acrescente-se a isto que apoiar-m e na autoridade de Marx, o pai fundador
em que oficialm ente se inspirava o Partido Com unista, me dava, contra a inter­
pretação oficial de Marx servindo de apologia às suas decisões políticas, ou
^eja, contra a sua política efectiva, um a força singular que me tornava dificil­
m ente atacável no interior dtt Partido. Com efeito, que fazia eu tiue não fosse
incocar o pensam ento de Marx contra as aberrações das suas interpretações,
intes do mais as dos soviéticos que inspiravam o Partido e inspiraram até as
reflexões de um espírito v igoroso, com o Liicien Sève que. retom ando impossí-
\ eis fórm ulas ultrapassadas porque insustentáveis sobre a ontologia, a teoria
do conhecim ento, as leis da dialéctica com o form a do m ovim ento, único «atri­
buto» da m atéria, não me [poupou] as suas críticas e. com o nunca me dei ao
trabalho de lhes responder, concluiu do m eu silêncio que eu nada tinha ejue
pudesse opor-lhe? Mas Lucien Sè\'e foi mais longe, tornando-se defensor da
famosa e nebulosa dialéctica e das suas leis, que m anipulava com o lhe convi­
nha para justificar a p r io r i todas as viragens do Partido, em particular o aban­
dono da ditadura do proletariado, continuando sem o saber a pensar, com o
bem dem onstrou André Tosei num ensaio recente sobre o pensamento de Gramsci

235
L O U l S ,1 L r H l S S E R

e dos italianos, na atm osfera inalterada do rf/a-ntaf (prim ado do «matcrialismo


dialéctico», term o atroz, sobre toda a ciência).
iNum tem po em tiue o prim eiro «filósofo cabelo», «filósofo unha» — com o
escreveu Marx da «decomposição» da filosofia hegeliana — pensa que o m ar­
xism o está m orto e definitivam ente enterrado, em que reinam os pensam entos
mais «estafados» contra o pano de fundo de um eclectism o inverosím il e de
um a pobreza teórica, a pretexto de um a cham ada «pós-m odernidade» onde, de
novo, «a m atéria teria desaparecido» para dar lugar aos «imateriais» da com uni­
cação (esta nova salada teórica, que naturalm ente se vale de índices im pressio­
nantes. os da nova tecnologia), continuo profundam ente apegado, não por
certo à letra — à qual nunca nie ative — , mas à inspiração m aterialista de Marx.
Sou optim ista: creio que esta inspiração atravessará todos os desertos e
que m esm o que assuma outras form as — o que é inevitável num m undo em
plena transform ação — há-de reviver. E tam bém pela seguinte razãtt de peso:
o pensam ento presente é teoricam ente tão fraco que só o rear ivar das exigên­
cias elem entares de um pensam ento autêntico — o rigor, a coerência, a
clareza — ]Sode ncj de\ ido m om ento contrariar o espírito do tem po de tal
m aneira que a sua simples m anifestação não poderá deixar de im pressionar os
espíritos desam parados pelo curso do m undo. É p o r isso que aprecio m uito
po r exem plo o esforço de um Régis Debray no sentido de lem brar apesar de
tudo às pessoas que têm a pretensão de julgar, realidades tão elem entares
com o estas: que o tem po do Gulag está apesar de tudo, nas suas form as m aci­
ças e dram áticas, ultrapassado na ITRSS; que a URSS tem mais em que pensar
do que num atacjue contra o Ocidente. E certo que Debray não vai m uito
longe, mas o sim ples recordar de factos tão patentes contra a im ensa ideologia
reinante tem um a função, com o Foucault gostava de dizer, de «decapagem».
E o ejue é a decapagem ? A redução crítica da cam ada ideológica das idéias p e r­
m itindo finalm entc o contacto cora o real «sem adições estranhas». Uma sim ­
ples lição, evidentem ente lim itada, mas realm ente m aterialista. Se acredito fir­
m em ente que sairem os do «deserto» actual, c porque no vazio de pensam ento
tpie sufoca os m elhores espíritos, este simples recordar, na sua excepção e na
sua coragem , pode ter efeitos decuplicados. Q uando tem os a coragem de falar
em voz alta no silêncio do vazio, fazem o-nos ouvir.

2 3 6
O I- I T r R o M r / 7 o 7 /: .17 /' D

Julgo ter deixado entender que não era seetário. Q ualquer pen.samento me
interessa e c-me indiferente que se considere e afirme de direita, quando fala
claro, atravessa a cam ada ideológica t|ue nos esmaga para atingir, com o que
através de um contacto físico m aterial (mais uma m odalidade da existência do
corpo) a realidade com pletam ente nua. É po r isso que penso que. na sua tenta-
tira de investigarem e dizerem a verdade acerca do real. os marxistas, graças
a Deus, estão longe de ser os únicos a fazè-lo no nosso tem po, porque p ró x i­
mos deles sem o saberem, há m uitos hom ens honestos possuidores de uma
experiência real da sua prática, e do prim ado da prática em relação a toda a
consciência, que desde já cts acom panham no reconhecim ento da \ erdade. ,se
form os capazes de tom ar consciência disto, para além de todas as oposições
de estilo, de hum or e de política, poderem os alim entar uma esperança razoá-
\e i.
.Não sei se a hum anidade chegará um dia a conhecer o com unism o, essa
\ isão escatológica de Marx. O ejue sei em todo o caso é que o socialismo, essa
transição forçada de que Marx falava, é «merda» com o o proclam ei em Ih^^h
em Itália e em Espanha perante auditórios desconcertados pela violência dos
meus term(.)s. Também a este propósito contei uma «história». O socialism o é
um rio m uito largo, de travessia perigosíssim a. Em breve terem os um a imensa
Irarca na areia: a das organizações políticas e sindicais para onde todo o povo
pode subir. Mas para transpor os sorvedouros, é necessário um «timoneiro», o
poder de Estado nas mãos dos rc\'olucionários, e na grande nave é necessário
que reine a dom inação de ciasse dos proletários sobre todos os rem adores
estipendiados (existe ainda o salário e o interesse p rirad o ). senão tudo se
\ ira! — a dom inação do proletariado. Põe-se na água a na\ e imensa, e durante
todo o percurso é preciso vigiar os remadores exigindo deles urna obediência
estrita, afastá-los do seu posto se desfalecem e substituí-los a tempo, ou san
cioná-k)s, Mas se este im enso rio de m erda for finalm ente transirosto, então até
ao infinito será a praia, o sol e o vento de uma jovem Primar era, 1'oda a gente
desce, já não há luta entre os hom ens e os grupos de interesses uma vez que
já não há relações m ercantis mas profusão de flores e frutos que cada um
poderá colher pura sua m aior alegria. Explodem então as «paixões alegres» de
.spinoza e até tj «Hino à Alegria» de B eethoren. Sustentei nessa altura a ideia de

2.J"
/ o I l s .1 /, 7 // r V ,S /:' 77

que as «ilhotas de eom unism o» existem já hoje, nos «interstíeios» da nossa


sociedade (interstíeios, term o tiue Marx aplicava — à imagem dos deuses de
Epicuro no m undo — aos prim eiros núcleos de m ercadores do m undo antigo).
onde n ã o rein a m as relações m ercantis. Creio com efeito — e julgo neste
ponto encontrar-m e na linha de pensam ento de JVIarx — que a única definição
possível do com unism o — se um dia este existir no m undo — é a ausência
de relações m ercantis, portanto de relações de exploração de classe e de
dom inação do Estado. Creio que existem deveras no nosso m undo presente
num erosíssim os círcukts de relações hum anas das quais se encontra ausente a
m ínim a relação m ercantil. Por ciue via estes interstícios de eom unism o p o d e­
rão conquistar o m undo inteiro? Ninguém pode prevè-lo — e pelo m enos isso
não se fará seguindo o exem plo da via soviética. Será através da conejuista do
p o d e r de Estado? Sem dúvida, mas esse aeto em penha-nos no socialism o (de
Estado — necessariam ente de Estado) que é «merda». Será então atracés do
deperecim ento do Estado? (iom certeza, mas num m undo capitalista-im peria-
lista cada \e z mais sólido nas suas bases, e tjuc torna a tom ada do p o d er de
Estado precária senão ilusória, com o encarar um deperecim ento do Estado?
Não são seguram ente nem a descentralização de Gaston Deferre nem as estúpi­
das palac ras de ordem dos nossos novos liberais à Reagan ou à Chirac que nos
desem baraçarão de um Estado indispensát el à dom inação da hegem onia eapi-
talista-internaeionalista burguesa. Se há uma esperança, é nos m ovim entos de
massas, dos quais (graças a Hélène. entre outras pessoas) sem pre pensei que
detinham um prim ado sobre as organizações políticas. É verdade que vemos
desenvolverem -se no m undo m ovim entos de massa desconhecidos e im pensa­
dos p o r Marx (por exem plo na América Latina, e até m esm o no interior de
uma Igreja tradieionalm ente reaceionária, sob as form as do m cwimento da
Teologia da Libertação, ou na Alemanha com os Verdes, ou na Holanda que se
recusou a receber o papa com o ele desejaria). Mas estes m ovim entos não se
arriscam a cair sob a alçada de organizações que p o r certo não podem dispen­
sar mas que não parecem ainda ter descoberto — apanhadas com o o estão nas
m alhas da tradição e dos m odelos m arxistas-socialistas existentes — uma
form a adequada de coordenação sem dom inação hierárquica? Sob este ponto
de vista, não sou optim ista, mas agarro-m e à seguinte ideia de Marx-, seja

238
/-■ l 1 l A> O M l I I O 7 I: M P (.)

. 'HK) for «a história tem mais im aginação do que nós», seja com o for estamos
'eduzidos a pensar «por mãs próprios». Não. não adopto a ideia de Sorel reto-
:i'..ida por Gramsci: o cepticism o da inteligência mais o optim ism o da vontade.
\ ã o acredito no voluntarism o na história. Em contrapartida, acredito na luci-
ãez da inteligência e no prim ado dos m o\ im entos populares Mtbre a inteligèn-
oa, A esse preço, porque não é a instância suprem a, a inteligência pode acom-
vinhar os m ovim entos populares, incluindo e sobretudo para evitar que eles
recaiam nas aberrações passadas e para os ajudar a descobrir formas de ttrgani^
'.icão realm cnte dem ocráticas e eficazes. Se apesar de tudo podem os alimen-
;.ir alguma esperança de ajudar a inflectir o curso da história, ê aqui que ela
e 'tá e só acjui. Ou pelo m enos nã (7 está nos sonhos escatológicos de uma ideo-
>gia religiosa que está a dar cabo de todos nós.
Mas eis-nos em plena política.

239
XIX

E is chegado o m om ento, que cada um dos leitores, imagino, espera tão


ansiosam ente com o eu, de me explicar não só sobre os meus afectos inau­
gurais, os seus filões de predilecção repetitiva e a dom inação tão forte que
o fantasma de não existir exerceu sobre todos os meus fantasmas secundá­
rios, mas de me explicar também sobre a relação dos m eus afectos com a
realidade do m undo exterior. Com efeito, se nos sonhos e nas em oções,
m esm o as mais dram áticas, o «sujeito» nunca tem a ver senão consigo, quer
dixer, com objectos internos inconscientes a que os analistas cham am objec-
tais (diferentem ente dos objectos exteriores objectivos e reais), a ejuestão
leg ítim a que cada um de nós se pode colocar é então a seguinte: com o é
que as projecções e os investim entos desses fantasmas puderam desem bocar
num a acção e num a ttbra perfeitam ente objecticas (livros de filosofia, inter­
venções filosóficas c políticas) dtrtadas de alguma repercussão na realidade
exterior, e logo, objectiva?
Ou para dizer a m esm a coisa noutros term os, m uito mais precisos, com o
é t|tie o encontro entre o investim ento am bivalene do objectal fantasraático
interno (objectal) pô d e ter preensão sobre a realidade objectiva, ou melhor,
com o pode haver, neste encontro, cjuak]uer coisa que «pega», com o se diz da
m aionese ou de um gelado que «pega», ou ainda de uma reacção quím ica que
«pega» sob o efeito de certos catalisadores? Sobre este ponto devo, a mim em
prim eiro lugar, mas tam bém a todos os meus amigos e leitores, senão um a
explicação, pelo m enos um a tentativa de elucidação.

240
i- r r ; r o I \í í / I o / I: :\i p o

Previno portanto que atjui passam os para um terreno novo: o do encontro


entre os m eus fantasmas inconscientes investindo o m eu desejo sob o dom ínio
da realização do desejo da m inha mãe, por um lado. e sob a realidade de dados
efectivos e objectivos, po r outro lado.
G ostaria antes do mais de m e e.xplicar acerca de um ponto, ao qual o meu
amigo Jacqties Rancière consagrou um livrinho e.xtremamente penetrante (La
L.eçon d ’A lthusser). Aquilo de cjue ele me acusa, a traços largos, é de ter conti­
nuado no interior do p artido com unista apesar dos desacordos explícitos e de­
ter assim im pelido, ou encorajado, num erosos jovens intelectuais, em França e
no estrangeiro, a não rom perem com o partido, mas a continuarem lá dentro.
Que esta acusaçãt) e esta atitude possam referir-se aos próprios «objcctos >
internos de Rancière, que estava pessoalm ente m uito próxim o de mim no
com eço das nossas relações, é verosímil, mas não posso, e se pudesse, não
querería, entrar aqui nesse tipo de exame que lhe é íntim o e próprio. É \ er-
dade tjue ele extraíra m uito rapidam ente a conclusão da m inha «contradição
objectiva» saindo do Partido, não para trair a causa da classe operária, mas
m uito pelo contrário para p artir em busca dos seus sonhos, reacções e projec­
tos inaugurais, consagrando duas obras m ttáveis às expressões populares das
prim eiras form as do m ovim ento operário. No plano prático, não o contesto,
estávam os em posições próxim as mas distintas, e a sua tinha todas as vanta­
gens da aparente lógica que animava os m eus escritos e as m inhas interven­
ções. Por que ficava eu então no Partido com todas as consequências subse­
quentes, tanto para mim com o para os jovens intelectuais que pudesse
influenciar, se é que (e afinal de contas trata-se de um a possibilidade ) chegtiei
a ter alguma influência pública?
Acerca desta questão, seria dem asiado sim ples (quer para Rancière quer
para os que partilham da sua impressão, um a vez que abro publicam ente o
meu jogo «subjectivo» no qual ê fácil explicarem-m e. quer dizer, fecharem -m e
para sem pre) ficar-se satisfeito com um recurso ao que acabo de expor dem o-
radam ente das «raízes» e das «estruturas» im pressionantes da m inha «subjectivi-
dade» inconsciente. Vou dizer porquê.
Em prim eiro lugar tive a prova concreta, e de cjtie força!, de que os meus
«discípulos» mais chegados, os meus alunos da École, sob a assombrosa direcção

241
L O r / V ,1 / / H r s S lí R

dc Robert Linhart (c não falo já de Régis Debray que m uito cedo mas só traçou
o seu cam inho fora do Partido para se em penhar ao lado do Che na guerrilha
boliviana), esses alunos-discípulos, depois de terem conquistado a organiza­
ção das Juventudes Com unistas p o r dentro, a abandonaram logo a seguir (sem
o m eu acordo) para fundarem no exterior do p artido uma nova organização,
a União das Juventudes Com unistas m arxistas-leninistas (UJ(i m-1) que co n h e ­
ceu um a grande expansão, se organizou em escolas e grupos de form ação teó­
ricos e políticos, e passaram à acção de massa, form ando em especial os com i­
tês Vietname de base que tiveram antes de iMaio de 68 um a ampla expansão.
O Partido era literalm ente ultrapassado entre os estudantes, a tal ponto que,
com o ta h e z saibam, em Maio de 68 houve apenas um punhado, digo bem um
simples punhado (tendo Cathala ficado naturalm ente no seu gabinete), de
estudantes com unistas presentes no im enso m otim da Sorbonne.
E os rapazes da LJC m-1 tam bém lá não estavam. Porquê? Tinham adop-
taclo uma «linha» aparentem ente rigorosa que foi na altura a sua perda: ir para
as portas das fábricas tentar realizar a unidade dos estudantes-trabalhadores
com os operários. Ora não com petia a estudantes esquerdistas, mas a m ilitan­
tes do Partido irem pedir aos operários das fábricas que se juntassem no Qtiar-
ticr I.atin à insurreição estudantil. Aí residia o erro fundam ental de Linhart e
dos seus camaradas. Os operários, com raras excepções. não apareceram na
Sorbonne porque o Partido, única instância que tinha autoridade para isso,
não lhes pedira ciue o fizessem. A palavra de ordem poderia ter sido justa com
efeito se o Partido não desconfiasse com o da peste da revolta «esquerdizante»
das massas estudantis e tivesse deitado m ão à ocasião, a «fortuna» com o diria
Maquiavel, de desencadear e apoiar com toda a força do seu p o d e r e das suas
organizações (sobretudo a CGT que sem pre lhe foi fiel desde a cisão de 1948)
um m ovim ento de massas poderoso, capaz de arrastar não apenas a ciasse o p e­
rária mas amplas cam adas da pequena burguesia, cuja força e cuja resolução
poderiam objectivam ente abrir cam inho a um a tom ada do p o d e r e a um a p rá­
tica revolucionárias. Já Lenine escrevera, com o talvez alguns saibam, que no
tem po do caso Dreyfus, que nunca deu lugar a m otins de massa declarados
nem a barricadas, a agitação teria po d id o abrir cam inho a um a verdadeira
revolução em França se o Partidcj O perário não se tivesse posto à m argem dos

242
O /■ r 7 r A’ o 7 u r / 7 o 7 7: u p f;

acontecim entos, po r Gue,sde considerar na cegueira do seu «classe contra


classe» que o caso D re\fus era uma tiuestão puram ente «burguesa», que de
m aneira nenhum a interessava à luta da classe operária. I: \ erdade que em 1968
só Paris se levantara; a província não se agitou no m esm o grau. Será possítel
fazer uma revolução exclusivam ente na capital (seis m ilhões de habitantes)
num país de sessenta milhtões de habitantes?
Ora, em Maio-Junho de 1968, num erosos operários em num erosas fábri­
cas julgavam a revolução efectiva, esperavam -na, e sc) aguarda\ am para a faze­
rem um a p a la \ra de ordem do Partido. Toda a gente sabe o que se passou.
O Partido, com o sem pre com vários com boios de atraso e aterrorizado pelos
m ovim entos de massas argum entando que estes estavam nas mãos dos esquer­
distas (mas p o r culpa de quem ?), fez tudo o ejue era possível para im pedir a
junção, durante os com bates m uito violentos que ocorreram , dos grupos e stu ­
dantis e do ardor das massas operárias que realizavam então a mais longa greve
de massas da história m undial, chegando para isso ao ponto de organizar
m anifestações separadas, O Partido o rg a n izo u de facto a derrota do m ovi­
m ento das massas forçando a CXfT (que para dizer a verdade não teve que vio­
lentar, dados os laços orgânicos que m antinha com ela) a sentar-se à tranquila
mesa das negociações econôm icas e, não as tendo os operários da Renault
aprovado, adiando-as para mais tarde, ao m esm o tem po cjue recusava também
qualquer contacto com Mendes em Charléty, num a altura em que o poder
gaullista estava praticam ente vacante, com os m inistros a abandonar os m inis­
térios e a burguesia a fugir das grandes cidades para o estrangeiro levando co n ­
sigo t)s seus bens. Um sim ples exem plo: em Itália, os franceses não podiam
trocar os seus francos p o r liras, o franco deixara de ser aceite, Jâ n ã o valia
n a da. Q uando o adversário considera que a partida está para si definiti\a-
m ente perdida, Lenine repetiu-o dez vezes, quando no topo já nada funciona
e na base as massas partem ao assalto, não só a revolução está na «ordem ck)
dia», mas a situação é efectivam ente revo lu cio n á ria .
Por m edo das massas, por m edo de p erder o controlo sobre elas (essa
obsessão do prim ado das organizações sobre os m ovim entos populares, que
continua a vigorar), e sem dúvida tam bém para obedecer (para isso não havia
necessidade de instruções explícitas!) aos m edos da L RSS que. na sua estratégia

243
L o r 1 s A L 7 II r S '' / K

m undial, preferia a segurança conservadora de De Gaulle aos imprevistos de


um m ovim ento revolucionário de massas que podia (c isto não era utópico)
servir de pretexto a um a intervenção política ou até m ilitar dos EGA, ameaça
a que a URSS não estava em condições de íàizer frente, o Partido fez tudo o cjue
pôde, e a experiência provou tiue a sua força de organização e de enquadra­
m ento político e ideológico não era então um a palav ra vã para ciuebrar o
mov im cnto p opular e para o canalizar no sentido de meras negociações e c o ­
nôm icas, «O m om ento actual, a ocasião» (Lenine), que «é preciso agarrar pelos
cabelos» (iMaquiavel, Lenine, Trotsky, Mao) e que não pode durar mais do que
algumas horas, passaram, e com eles a possibilidade de transform ar em revolu­
ção o curso da história; De Gaulle, que tam bém ele, e de que m aneira!, sabia
o que é a política, depois da encenação do desaparecim ento, voltou a apare­
cer, disse algumas palavras graves solenes na telev isão, decretou a dissolução
da Câmara e convocou novas eleições. Tudo o que a França contava, e Deus
sabe por quanto tem po!, de burguesia e petiuena burguesia e cam pesinato c o n ­
servadores ou reaccionários recobrou ânimo, a seguir à m anifestação fantás­
tica dos Champs-Élysées, Fora tudo por água abaixo e a prolongada e violenta
luta estudantil e a prolongada greve operária que continuou durante meses
não puderam mais do que sofrer pouco a pouco a sua própria derrota num a
prolongada e dolorosa retirada. burguesia tirava a sua cruel desforra. Resta­
vam os acordos de Grenelle (um salto sem precedentes na ordem «econô­
mica») mas pagtts por uma derrota revolucionária sem precedentes desde os
dias da Com una. Decididam ente, e antes do mais devido ao instinto conservat-
do r do aparelho do Partido perante a espontaneidade das massas, o m ovi­
m ento popular saldava-se por uma derrota em cam po raso, desta feita (pela
prim eira vez na história dos m ovim entos populares em França) quase sem efu-
são de sangue, com num erosos estudantes m altratados mas não m ortos (um
estudante afogado em Flins, dois operários m ortos a tiro em Belfort e alguns
outros ainda), p ortanto unicam ente através do efeito «pacífico» da hegem onia
capitalista im perialista burguesa, do seu prodigioso aparelho de Estado, do seu
AIE m ediático e da «figura» do Pai da Pátria capaz de dom inar qualcjuer ev en ­
tualidade; o rosto e a voz solenes de De Gaulle obtiveram o seu efeito de tea­
tro político que tranquilizou a burguesia. Mas C[uando um a rev olta term ina com

244
o /•’ !’ T V R O f M l / T O T l: M F

uma derrota sem massacres de operários, pode dizer-se que isso não é forçosa-
m ente bom sinal para a classe operária que não fica com m ártires para chorar
ou celebrar. Os esquerdistas, que se dacatm conta do faeto. souberam ou julga­
ram poder «explorar» os seus poucos m ortos, com o o infeliz 0 \ erneç. Lem bro­
-me da frase que não parei de repetir à m inha volta, no próp rio dia do funeral
com ovente e prodigioso deste infeliz m ilitante da Cause cíu peiiple i dois
m ilhões de pessoas no enterro no m eio das bandeiras e do silencio, e na ausên­
cia do Partido e da CGT): «Não é O verney que vai boje a e>iterrar. é o esquer-
clismo.» O que se seguiu rapidam ente m ostrou que eu avaliara bem a situação.
Ora este simples facto perm ite-m e abordar um outro argumento, .\lém de
que se trata de um a concepção m uito singular da determ inação e da ideologia
(pessoal) e da história considerar — com o o faria tão exacerbadam ente um
G lucksm ann — um indivíduo, a sua obra e a sua eventual influência capazes
de provocar entre num erosos jovens estudantes e intelectuais (os únicos atin­
gidos) opções políticas decisivas e, no limite desta lógica, massacres em massa,
é preciso ver o que representava ou podia representar para jovens burgueses
ou pequeno-burgueses a experiência da existência, da organização, das p ráti­
cas da linha econôm ica, política e ideológica do Partido. Expliquei-m e mais
tarde sobre o seu funcionam ento. Fora do Partido, fora de um a experiência
algo prolongada das práteas do Partido, não se pode fazer uma ideia do Par­
tido e não são li\ ros anticom unistas com o os de um Philippe Robrieux que, no
tem po do Conselho Com unal, foi o dirigente mais estalinista de todos e o mais
atroz em agitar até à m inha célula os horrores das condenações do Conselho
Com unal, que podem esclarecer quem quer que seja, excepto le m b n m ã o aos
que p o r lá passaram certo núm ero de dados cjue já conheciam ou de que des­
confiavam . Nada substitui a experiência directa e os que não passaram po r ela.
se lerem os estudos, ou antes, os quase-panfletos raivosos de um jornalista
obcecado e sem assunto com o Robrieux, adquirirão quando m uito um vago
conhecim ento livresco que não os m arcará, se não estiverem já m arcados por
outras razões. Porque, no fundo, o que pode dizer esse gênero de trabalho,
senão o que uns já aprenderam p o r dentro ou o que outros já ouviram sob for­
mas m enos precisas, sem dúvida, da im ensa cam panha anticom unista, valen­
do-se ontem de Soljenitsyne e hoje de M ontand, que desde sem pre dom ina a

245
/. o l ' / s .4 L 7 H r S S E K

ideologia burguesa do nosso país e se difunde por toda a parte? Além do que.
nos anos 50, não havia à esquerda nada a não ser o Partido e a CGT. que eram
as únicas forças reais, e aliás im pressionantes, era preciso alinhar com elas e
n ã o h a v ia ab so lu ta n ien te n a d a que n a su a ordem as substituísse.
Oni. se eu tive algunvA «influência», co m o escreve Rancière nesse peq u en o
panfleto que m e deu m uito gosto ler porque era honesto no seu fu n d o e p ro ­
fundam ente sincero e com alguma consistência teórica e política (mas só
alguma), em que é que essa influência pode consistir, senão em convidar
alguns (ou m uitos, mas com o sabê-lo?) a não abandonarem im ediatam ente o
Partido, mas a perm anecerem dentro dele? Ora estou convencido de que
nenhum a outra organização em França, digo bem , nenhum a outra organização
em França, podia então oferecer a m ilitantes sinceros um a form ação e um a
experiência política práticas com paráveis às que se podiam adquirir m ediante
uma prolongada presença m ilitante no Partido. Não pretendo que o tenha
sabido conscientem ente, que não tenha tido outras m otivações pessoais para
continuar no Partido (disso já falei longam ente, mas agora quero falar de efei­
tos e de factos perfeitam ente objectivos). Não pretendo ter sido tao lúcido
com o Rancière ou outros (cujas razões m uito raram ente eram tão puras). Mas
é um facto: adoptei essa atitude. Nunca escrevi ou fiz de outro m odo cam pa­
nha pública ou privada para convencer fosse quem fosse a ficar no Partido, e
HLinca nem publicam ente nem em pricad o desautorizei ou condenei os que
s a i a m ou queriam sair. Cada um deve decidir em consciência: tal era a m inha
regra de acção. Talvez eu tivesse más razões pessoais para ficar ou não suficien-
ten^ente boa.s para sair: é um tacto, fiquei, mas todos os m eus escritos m ostra-
- m « bastante que nas questões fundam entais, tanto filosóficas com o p o líti­
cas c .d c „ l„ s ,„ s , M,b,c c,u „,f.cs cic linha (cf le x x m C o „ ,n x ,

interna, era preciso fázê-Jo- Eu fi-lo E


Parttdo receava que eu q u is e s s e m e . ■' " " " """ ^
■lum .,e.ntid<> raaofe.a Ti,eram h n n m c ' '' T " ' "

246
F r ( R o 7; 1/ r / 7 o 7 /: _t/ 7^ o

da L'EC um n o rm a lie n e uma sévrienne ’ que podiam informá-los directa-


m ente — segundo pensavam — sobre as m inhas intenções e as m inhas actir i­
dades! É claro que se coloca um a questão; p o rq u e '
Mas a questão essencial não é essa. Não podem os le^ ar em conta apenas
a França. Para m inha desgraça ou não, eu era tam bém lido no estrangeiro c
contudo em cjue contexto tão diferente! Quantos filósofos e políticos ou ideo­
lógicos, peço desculpa de o dizer, se reclam avam de mim c tentar ant enr eredar
pelos cam inhos semi-m aoístas então rasgados pelos meus escritos críticos. Um
único exem plo; um a das m inhas alunas, a chilena Marta Harneckcr. que esteve
em Paris entre 1960 e 1965 se a m inha m em ória me não trai. regressou à Amé­
rica Latina (Cuba) para aí redigir um pequeno m anual de m aterialism o h istó ­
rico. Saber-se-á que este teve uma tiragem de dez m ilhões de exemplares? Não
era m uito bom mas constituía pelo m enos — à falta de m elhor — a única base
teórica e política de form ação para centenas de milhar, senão para dezenas de
m ilhões de m ilitantes da América Latina, pois era ao tem po a única obra do
seu gênero no continente. Ora o m anual retomava à letra, ainda que com fre-
ciuência as com preendesse mal, as idéias que Balibar e eu tínham os proposto
em Lire «Le Ccipital» \ Q uando se pretende analisar a influência de um indiví­
duo e da sua obra sobre e dentro do Partido, tem que se considerar não só o
Hexágono e a sua m iséria política, mas o que se passa tam bém no resto do
m undo. Sem dúvida, os m ilitantes latinct-am ericanos sabiam que eu estava no
Partido, mas sabiam tam bém que eu tinha um a inclinação fortíssim a pelo
m aoísm o (Mao chegara até a conceder-m e um a entrevista, mas por razões
«políticas francesas», fiz a asneira, a m aior da m inha vida. de não comparecer,
com m edo da reacção política do Partido contra mim. mas na realidade que
poderia ter feito o Partido, m esm o supondo que a notícia de uma entrevista
com Mao fosse objecto de um com unicado público e oficial? apesar de tudo
eu não era um a grande «figura»!).
Nestas condições, a distinção entre fora e dentro teria então o m ínim o
sentido? A m enos, e ainda assim ..., que nos lim item os apenas à França, com o
quer a velha tradição do nosso provincianism o inveterado, quer dizer, essas

' A lu n a d e S è^res. (/V. d o J.)

247
L O r j s A L T H r S S i: R

incríveis pretensões francesas, enraizadas num a história dem asiado longa de


dom inação cultural que hoje vai m etendo água po r todos os lados...
Ora eu tinha pelo m enos um a consciência extrem a de tudo isto. Q uando
ficava no Partido, pensava (e tratava-se em grande parte de uma m aneira de ver
m egalom aníaca, reconheço-o) que ficando no Partido num a posição tão aber­
tam ente oposicionista (a única m inim am ente coerente e séria que existia, e
que a im ensa m aioria dos oposicionistas que não eram oposicionistas de p rin ­
cípio, mas contestatários de hum or, nunca, mas nunca me perdoaram , e nunca
m e perdoarão, nem m esm o depois de terem lido este livrinho), pensa\'a pois
que podia provar assim, pelo m enos form alm ente, que um a acção de oposição
no interior do Partido era possível a partir de bases teóricas e políticas sérias,
e po r conseguinte que talvez, a longo prazo, fosse possível um a transform ação
do Partido. H com o m antinha um contacto estreito com todos os ex-com unis­
tas que conhecia (os cjtie tinham sido afastados ou se tinham afastado depois
da in te r\e n ç ão soviética na Hungria, os de 68 depois da intervenção na
Cihecoslováquia — tendo-m e sido dado conhecer directam ente os esforços
desesperados e dram áticos de Wáldeck Rochet. posto na rua a pontapé da
em baixada soxiética de Paris, provação atroz de ciue o infeliz nunca se
recom pôs — e tantos outros expulsos notár eis que se tornaram m eus amigos
m uito chegados, com o Tillon), com o m antinha tam bém contactos estreitos
com todos os grupos escjuerdistas povoados de antigos alunos meus, e m esm o
com certos trotskistas que nunca me apreciaram m uito, em bora eu nunca
tivesse atacado Trotsky, que respeitava profundam ente (apesar da sua obsessão
m ilitar-obsessiva e da sua estranha prática de estar ausente nos m om entos e
lugares decisivos da história soviética), com o todas estas pessoas sabiam o que
eu pensava, o cjue eu dizia e o que eu escrevia (pois não escondia a ninguém
as m inhas im pressões — só Héléne me perguntava o que eu andava a fazer
num p artido que «traíra» a classe operária em 68, e tinha toda a razão), nin­
guém se enganava nem sobre mim nem sobre os meus sentim entos e as m inhas
posições, nem sobre a «estratégia» dos m eus actos e com portam entos. Deverei
lem brar a sim ples título de exem plo que a seguir ao dram a do Conselho
Comunal eu teria tido m elhores razões do que Rancière para sair do Partido?,
que. quando denunciei na Bastilha o abandono da ditadura do proletariado.

248
F r r r k <> M i I / o 7 F M p o

tive até a surpresa de ver o jornalista de I H u m a n ité . que assistira à m inha


«saída» vibrante («não se abandona um conceito com o um cão»), redigir ali
m esm o na com panhia de Lucien Sève a sua notícia, que me deu a ler (eu nada
tinha a objectar), e que V H u m a do dia seguinte publicou sem m udar uma
palavra ?
Só talvez os que não lidavam de perto com igo e os que não frequentac am
os esquerdistas, os expulsos e outros, que me conheciam apenas p o r interm é­
dio deles, podiam enganar-se, E, de facto, n u n c a n en h u m dos antigos cam ara­
das que tinham sido expulsos do Partido ou o tinham deixado em m om entos
críticos me acusou de ter ficado, Rancière foi o único a censurar-m o puhlica-
mente, e m uitos dos meus amigos ex-com unistas ou esquerdistas deploraram
abertam ente na m inha presença a sua tom ada de posição.
O que considero com efeito essencial e, repito-o, não via então com cla­
reza mas — muitas vezes foi assim que procedi — com o p o r instinto surdo, foi
que estar no Partido era ao tem po excepcional, contanto que não se ocupasse
nele um a função de quadro perm anente com pletam ente cortado do m undo
exterior, para p ro porcionar aos m ilitantes um a experiência e m elhor ainda
um a form ação política incom paráveis. Hm prim eiro lugar, podia-se conhecer
po r dentro o Partido e julgá-lo pelos seus actos com parando as suas formas de
organização, de direcção, de pressões m uitas vezes despudoradas, em suma,
julgar os seus actos pelos seus princípios. Talvez não saibam que com frequên­
cia aconteceu o Partido, em disputas eleitorais, po r exem plo recentem ente em
Antony — mas o exem plo está longe de ser único — , provocar a candidatura
de um m ilitante da CGT ou até m esm o do Partido desconhecido da população
local, suscitar sob a etiqueta da extrem a d ireita a sua candidatura para enfra­
quecer a p ró p ria extrem a direita, dividindo-a no m om ento da contagem dos
votos. Talvez não saibam c]ue a «chapelada» eleitoral era m oeda corrente nos
m unicípios controlados pelo Partido? Os outros faziam o m esm o nos seus
m unicípios. (_Iean-Baptiste D oum eng, com quem me encontrei duas vezes
— ele queria que eu lhe explicasse Gramsci — ele, esse c elho estalinista in co n ­
dicional da URSS, era um hom em de negócios seguram ente m ultim ilionário
mas perfeitam ente respeitador de todas as leis. se bem que em caso de necessi­
dade e com o qualquer hom em de negócios que se preze, as contornasse e

249
/. o r / ,s A L 1 H {■ S S n R

aldrabasse o fisco! Infeliz D oum eng, alvo do L iberation e do C a n a rd en-


chciiné: ele lá sabia o que fazia e estava-se nas tintas para as críticas «tortuo­
sas»: «Tenho, dizia ele, a m inha consciência do m eu lado» e esta valia bem, cem
vezes mais até, a de todos os seus m iseráveis críticos escrupulosos!) E não falo
já das práticas dos m unicípios, dos gabinetes de estudos urbanísticos, dos
pseudo-arquitectos nem das sociedades de im port-export cujos lucros c o n tri­
buíam em larga escala para os cofres do Partido — e se os outros partidos se
calaram acerca de todos estes casos mais ou m enos duvidosos, foi porque pra­
ticaram tam bém , talvez num a escala m enor e com m enos riscos (tinham o
Estado na m ão) as mesmas vigarices.
M ilitando activam ente dentro dele, era possível pois ficar-se com uma
ideia extrem am ente real das práticas do Partido e da contradição patente entre-
as suas práticas e os seus princípios teóricos e ideológicos. Atirei tudo isto à
cara de Marchais que. naturalm ente, não disse um a palav ra. Que podia ele, de
resto, ter dito? Era o prim eiro a estar a par.
Mas. além do conhecim ento do Partido, das suas forças, do seu funciona­
m ento (essas eleições censitárias em quatro voltas para o Congresso que
denunciei publicam ente em 19"8 em Le M oiide c num opúsculo, actualm ente
impossível de encontrar), podia tam bém adquirir-se um conhecim ento co n ­
creto da com plexidade da classe operária organizada no Partido e na CGT.
Digo bem «organizada» antes do mais no Partido, e podia assim descobrir-se,
não sem estupefacção, que o núcleo duro desses m ilitantes de vanguarda e
incondicionais do Partido tinham continuado m uito depois do XX Congresso
soviético e do XXII congresso francês incondicionais da URSS e das suas inter­
venções na Hungria e na Checoslováquia, e mais tarde no Afeganistão! Podia
descobrir-se que esses m ilitantes e o próp rio Partido viviam com pletam ente
isolados das cam adas de operários aderentes à EO e à CEDT ', dos operários
não sindicalizados, da massa dos imigrantes (cf. o bu lld o zer de Vitry), dos
em pregados, quadros e intelectuais e pequeno-burgueses de toda a casta que o
Partido se esforçava p o r influenciar através de organizações a d hoc\ segundo

' Force Ouvrière (F.O.) e Confcdération Française Démocratiqiic dii Travail (C.F.D.T): ccntrai.s
sindicais Francesas. (.V. do T.)

250
O F V 7 r K o M I I 7 O 7 M P O

OS princípios oficiais da linha de união da esquerda. A mesm a coisa com os


católicos, com os ejuais havia as m aiores preocupações, bem com o com esses
teólogos, padres ou frades, que aceitavam assinar todas as petições e apekcs ao
voto com unista (sem pre me recusei secam ente a assinar fosse o que fosse em
m atéria de recom endação eleitoral, e quase nunca assinei uma petição de
outro tipo), A m esm a coisa com os católicos, cujas razeães profundas os res­
ponsáveis (cf, Garaudy e mais tarde iMury e a seguir (iasano\ a i afinal despreza­
vam, sem nada perceberem das suas reacçtões m esm o quando estas eram publi­
cam ente favoráveis ao Partido, e assim por diante, Que experiência, não só da
prática do Partido na sua aliança com as camadas «aliadas», mas ao m esm o
tem po dessas cam adas em si mesmas, e sem pre com a vantagem de uma com ­
paração crítica que opunha com uma evidencia gritante a imagem oficial que
o Partido, na sede da sua Fortaleza de Fabien e das federações \ igiadas de
perto p o r m em bros do C om itê Central ou do Gabinete Político, ciueria dar de
si, e a realidade da ideologia, das atitudes e dos com portam entos destas cam a­
das! E não falo dc7s cam poneses que, em bora tir esse ao seu serv iço o .Modet,
o Partido nunca cjuis com preender (neste ponto Flélène era de uma experiên­
cia concreta intransigente, fizera, sobre o traçado das auto-estradas e m uitos
outros projectos, inquéritos de cam po que a tornaram célebre no seu emprego,
a Sedes, e m uito mal vista na com issão agrícola do PC),
Flaverá alguma experiência que, seja onde for, até m esm o no PSfT ou na
Liga Com unista ou nos grupúsculos esejuerdistas, tenha proporcionado aos
militantes o equivalente da experiência social, política e ideológica da luta de
classes que proporcionavam aos militantes a passagem e a perm anência no Par­
tido? Por certo que ninguém o pode contestar. Mas evidentem ente, a análise e
a tom ada em m ãos das relações sociais implicavam que o Partido rom pesse
com todo o mov imento, sobretudo ligado ao salariato. pela simples m elhoria
dos salários, etc., para visar o processo de p r o d u ç ã o ■
. ora isso só fora dele se
fez, e nas form as ineptas da autogestão! F ainda que indivíduos iscjlados
— com o Souvarine ou Castoriadis que forneciam sobre num erosos pontos
inform ações e idéias justas mas estavam abandonados a si próprios e privados
de qualquer contacto orgânico (esta expressão de Gramsci é decisiva no p ro ­
blem a) com a população activ a organizada ou fora de qualquer organização de

251
L o V I S A 1. 7 H U S S /■; K

luta — tenham sido capazes de exprim ir críticas e p o r \ ezes até (mas em casos
infiniiam ente mais raros) esboços de perspectivas, de organização, de práticas
e de luta em relação com os «m ovimentos populares» (caros ao m eu amigo
Alain Tourainc, que teve grande m érito teórico e político neste ponto), que
im pacto podiam efectivam ente ter estes indivíduos isolados sobre os operários
e as massas? E é preciso estabelecer um a diferença considerável entre os desi­
ludidos e ressentidos que sa íra m do Partido porque a sua experiência do Par­
tido os repelira e aqueles que, sob a influência de um rum or ideológictt difuso,
foram desde sem pre desiludidos, ressentickts e contestatários, sem nunca
terem passado pelo Partido. Um ressentido que teve a experiência directa e
concreta das práticas do Partido e da insustentável contradição entre os seus
princípios oficiais e as suas práticas efectivas é um ressentido tjtie sabe o sufi­
ciente para poder, se quiser, reflectir sobre as causas d a su a decepção, pois
conhece quanto baste aquilo de que fala. Julgo ser destes últimos, com o todos
acjueles que foram rejeitados pelo Partido ou o deixaram após experiências
m uitas vezes revoltantes, quando não pessoalm ente aterradoras (casos feliz­
m ente raros em França, mas pense-se em Marty e em Tillon!); reflectir e p o r­
tanto p o d er adoptar com todo o conhecim ento de causa com parativo uma ati­
tude e uma linha pessoais. Um ressentido que é ressentido antes de cjualquer
experiência do Partido e sem possuir qualtjuer experiência do Partido não
passa de um desiludido e de um ressentido não po r experiência mas por
hum or, tiue se limita a reflectir no conforto da sua consciência isolada, tem pe­
rada pelos horrores do gulag incrivelm ente repercutidos pelos Glucksm ann,
B.-H. I.évy, etc., acerca de quê? acerca da vaga ideologia de que é portador,
uma ideologia tjue lhe chega de fora e dos raros contestatários soviéticos com ­
pletam ente isolados do seu povo, ideologia que aceita com o um dado sem a
m enor crítica, e c]ue o torna incapaz de uma verdadeira reflexão sobre a p o lí­
tica tanto do Partido com o de qualquer outra organização ou qualquer outro
mov im ento de massas espontâneo, ainda cjue justo e fundam entado.
É nisto t|ue não posso im pedir-m e de ver a razão profunda do fracasso
clam oroso dos esquerdistas saídos de Maio de 68 em França e em Itália, sobre­
tudo na Alemanha e na Itália, onde o esquerdism o desem bocou no h o rro r de
uma política de atentados que talvez tivesse a ver alguma coisa com Blanqui

252
o I- r 7 l' R o M ( / r o I I- M !> o

— forçando um pouco a nota! — , mas m uito mais com as m anipulações in\ i-


NÍ\eis e então inconcebíveis (mal com eçam os agora a e n trc \e r alguma coisa do
que foram ) dos serviços secretos internacionais em que os agentes am ericanos,
so\ iéticüs, palestinianos e israelitas se encontra\ am num mcMiio terreno e nas
mesmas práticas; as de um a subversão na aparência clemente mas cujos resul­
tados políticos (antes do mais a «desestabilização- e a desm obilizacão das clas­
ses oprim idas organizadas, pelo seu lado, à luz do dia da lei e do direito i estão
m uito longe de ser para desprezar. Mas nunca onde ha\ ia quent pensasse
encontrá-los sem nunca os ter procurado seriam ente: a desestabilização desta
ou daquela parte do m undo para abrir cam inho a revoluções do tipo marxista-
-leninista e m esm o m aoísta sem qualquer futuro (o Cambodja. o Sendero
Luminoso do Peru), ou a ditackiras declaradas e torcionárias pcir delegação do
im perialism o dos EbA. Não, os «esquerdistas», isolando-sc do Partido que os
detestava — em nada quero desculpar o Partido — , privaram -se do unico
meio então existente de agir p o litic a m e n te , quer dizer, realm ente sobre o
curso da história, ciue passava então pela luta dentro do Partido, Hoje, t mais
do que evidente, as coisas m udaram .
Tal c a traços largos o que tenho a dizer sobre os «efeitos» da duração da
m inha presença no Partido e dos setis aparentes paradoxos. Q uando exam ino
bem tudo isto, os argum entos à prim eira \ ista respeitáveis de Rancière e dos
seus amigos afiguram-se-me m uito superficiais. Julgo ter, m elhor ou pior, e em
condições extrem am ente difíceis servido e sert ido bem não o aparelho do
Partido que, tal com o Hélcne, não podia nem ver, mas o com unism o, a ideia
de um com unism o nãt) alinhado pekt detestável exem plo do «socialismo real»
c da sua degenercscència so\ iética, ou seja, a ideia e a esperança dat]ueles que
em f rança e m esm o em todo o m undo (o que é um facto, e nada tem de ilusão
hipom aníaca) cjueriam e querem ainda pensar no advento para um dia, mas
quando?, de uma sociedade liberta das relações m ercantis, pois tal é a defini­
ção c[ue insisto em repetir: a do com unism o sem mais, um a com unidade
bitimana despojada de todas as relações m ercantis.
Hoje as coisas m udaram muito. Hélène tivera razão, tinha-a ha\ ia m u ito :
o Partido, senão directam ente, pelo m enos indirectam ente, «traiu a ciasse o p e­
rária» de que se reclamava. Depois do assassínio de Hélcne cm 1980. não reavi

253
L O l / .S .1 l 1 H í V ,S E R

O m eu cartão. Houve toda a m inha história dolorosa ao longo da qual o Par


tido e 1’H tim a foram extrem am ente correctos para comigo. Fiquei juridica­
m ente privado de qualquer iniciativa e não quis im por ao Partido o peso de
um perigoso «assassino» p o r causa do qual não deixariam de o atacar.
Poderia tam bém explicar-m e sobre as m inhas razões subjectivas do m eu
«encontro» excepcional (para m im ) com Maquiavel, Hobbes, Spinoza e Rous-
seau. Mas prefiro deixar esses desen\olvim entos para um outro livrinho '.
G ostaria apenas de dizer aqui que o que de mais precioso achei em Spi­
noza Ibi a natureza do «conhecim ento do terceiro gênero», o de um caso ao
m esm o tem po singular e universal, de que Spinoza nos oferece um exem plo
fulgurante e muitas vezes ignorado na história singular de um povo singular, o
povo judeu (no Tractatiis tbeologico-politiciis). Que o m eu «caso» tenha sido
um «caso» desta ordem , com o todo o «caso médico», «histórico» ou «analí­
tico», obriga a que ele seja reconhecido e tratado na sua singularidade; mas
que esse cas(j singular seja uni\ersal, é o que ressalta das constantes repetidas
(e não das leis \ erificá\eis-falsificáveis à m aneira de Popper) que afloram em
cada caso e perm item induzir o tratam ento teórico e prático de outros casos
singulares. .Macjuiacel e .Marx não procedem de outro m odo, num a lógica que
passou C[uase despercebida c que será necessário desenvoh er.
ü ejue de \'0 também directa e pessoalm ente a Spinoza é a sua espantosa
concepção do corpo, que possui «potências desconhecidas po r nós», e da
m ens (o espíritt)) que é tanto mais livre cjuanto mais o corpo desem m lve os
m ovim entos do seu conatiis, a sua vírtu s o\i fo rtitu d o . Spinoza oferecia-m e
assim uma ideia do pensam ento cjue é pensam ento do corpo, ou melhor, p e n ­
sam ento com o corpo, ou melhor, pensam ento do p ró p rio corpo. Esta intuição
concordac a com a m inha experiência de apropriação e de «recomposição» do
m eu co rpo cm ligação directa com o desenvolvim ento do m eu pensam ento e
dos m eus interesses intelectuais.
O que devo a ,Maquia\ el é a ideia-lim ite perfeitam ente assom brosa de que
a fortuna na sua essência não é mais do que vazio, e p o r excelência o vazio

' C) auto r remete aqui para o seu projecto não concluído de um a obra sobre A Verdadeira Tra­
d içã o M a teria lista esocada na «Apresentação» do presente \ olume. (A. do H. francês)

254
o / (: ] V R O / M r II o / /: M P o

interno do Príncipe, o t|ue coloca em prim eiro plano no equilíbrio e no jogo


das suas paixões o papel da raposa, que perm ite justam ente introduzir entre o
sujeito-Príncipe e as suas paixões uma distância onde o ser de\ e poder apare­
cer com o o não-ser e o não-ser com o o ser. Esta concepção assom brosa, por
pouco que a explicitem os, concorda de facto com a experiência analítica mais
profunda, a da tom ada de distância perante as próprias paixões, digamos mtiis
exactam ente perante a p rópria contra-transferència. C) que li em Spino/a e
.Maquiavel, vivera-o eu concretam ente e foi sem dúvida p o r isso que me inte­
ressou tanto «redescobri-lo» neles. Porque no fundo, o tiue proelam .tta
.\laquia\el senão, m uito antes de Tchernitchevski e de l,enine, o problem a e a
pergunta: que fazer? P ejue nos indicava já Maquiavel, senão o facto capital de.
sob a própria figura do Príncipe, os partidos políticos, entre os quais o PCK
serem partes integrantes do aparelho ideológico de Kstado, o aparelho político
ideológico constitucional parlam entar, com tudo o que isso implica na form a­
ção ideológica das massas populares ejue \o ta m e «acreditam», com a ajuda do
Partido, no sufrágio universal? E verdade que não há sufrágio universal para
Maquiavel. mas há o aparelho ideológico de Estado do tem po, aquele ejue é
c o n stitu íd o pela im agem p ü b lic a -p o p u la r da personagem do Príncipe.
Pequena diferença apenas, mas cujo estudo atento é extrem am ente instrutivo
até para os nossos partidos, e antes de mais para os PC c]tie visam, com o
Ciramsci tão hem com preendeu, a hegem onia ideológica, \ ia de acesso ã
tom ada pura e sim ples do aparelho de Estado — não através do seu cerco pela
cham ada «sociedade sivil», mas através de um a luta m onolítica directa das
organizações políticas operárias contra o prétprio aparelho de Estado.

255
E stá\amo,s cm 19‘’9-I980. O ano anunciava-se sob auspícios bastante bons.
Fati O utubro-D ezcm bro, cu resisti com êxito a um com eço de depressão
que superei por mim próprio, sem hospitalização. Apesar das nossas discus­
sões perpétuas, mas sem pre separadas por grandes períodos de paz e de enten­
dim ento profundo, as coisas corriam sensivelm ente melhctr. Do lado de
Hélène, com toda a certeza: as suas entrevistas com o meu analista tinham
alcançado nela resultados m anifestos aos olhos de todos. Ela estava infinita­
m ente mais paciente, m enos cortante, controlava m uito m elhor as suas reae-
ções no trabalho e, só p o r isso, arranjara por lá amigos que a estimavam e dela
gostavam deveras, referindo-se a ela com o a um a personalidade de excepção
ejue transform ara, pelo seu conhecim ento e com preensão dos m ecanism os
sociais, políticos e ideológicos, os próprios m étodos dos inquéritos sociológi­
cos tjue eram uma das especialidades da casa, a Sedes. Apurara uma m odali­
dade original de investigação de cam po que conquistara num erosos adeptos
entre os seus colegas de trabalho. Já não era só eu a «mostrar-lhe» os meus am i­
gos, era ela ciuem me convidava para cada dos dela. Q uando se reform ou (para
dar lugar aos mais novos), organizou com grande coragem um a activ idade pes­
soal não rem unerada de inciuérito de cam po, em Fos-sur-Mer. onde ia de
quinze em quinze dias. Tratava-sc de um resultado espantoso. Acabara p o r gos­
tar até das m inhas amigas, com o Franca, que íbi visitar sozinha e p o r sua p ró ­
pria iniciativa a Itália quando ela adoeceu gravem ente; quando a sua cunhada
(iiovanna ficou seriamente deprim ida, organizou para ela uma váagem a Veneza.

256
/ / / f' R O / M I 1 7 O 7 7- 1/ /' í)

qLie conhecia liem: (hovaiina ainda hoje me fala com emoção dessa generosa
iniciativa. Gostava muito de Hélène, com o todos os c|ue sc tinham e s f o r ç a d o
minimamente por conhecè-la, mas nunca imagintira semelhante atenção tão
cheia de delicadeza pttr parte dela. Ser-me-ia fácil multiplicar os e x e mp l o s .
Pelo meu lado, as coisas estavam também a m elhorar li \erdade cjue — e
sem saber ao certo porquê — tinha cada cez mais dificuldade em dar aulas,
esforçando-me com tenacidade, mas sem graitde efeito, l-intrincheirac a-nte na
correcção das dissertações e das exposições dos alunos, que para eles com en­
tava em privado, e em certas intervenções pontuais sobre este ou aquele pom o
da história da filosofia. Mas as minhas relações com as minhas amigas m ulhe­
res tinham m udado seriamente.
Penso numa de entre elas. que conhecia desde 1969. De inicio, d escon­
fiando de que ela tinha por mim uma paixão intensa, começara, segundo a
minha reacção e a minha técnica de protecção, ao mesmo tempo por dar os
primeiros passos e por me barricar furiosamente a seguir, Como ela era forte
mas de uma sensibilidade extrema, muito inquieta e capaz de reacções vivas,
tivemos durante muito temjso contactos tumultuosos, sobretudo por culpa
minha, de bom grado o reconheço. Depois, ou por, sob o efeito da minha aná­
lise, eu ter c\'oluído o suficiente, ou por ter com preendido que ela na realidade
não queria «deitar-me a mão» e ciue não tinha qualquer «ideia a meu respeito»,
em breve passei a ver nela uma verdadeira amiga, e as nossas relações, m elhor
ou pior, não sem choques, mas já muito menos \ i\as. fonim melhorando. Ela
deu-me uma enorm e ajuda, que nem todos os meus amigos apreciaram igual­
mente (na sua opinião, com o na de muitas enfermeiras, deveria ter sido muito
mais enérgica comigo), durante a m inha longa hospitalização (1980-1983) e
ctintribuiu largamente para me ajudar a sobreviver. ,V nossti amizade transfor­
mou-se para nós num hem partilhado.
.Mas além disso tornara-me extremamente atento à minha maneira de
abordar as mulheres, e quis e sobretudo pude dem onstrar a mim pniprio
quando, por \'olta de Ih^^s, ac istei p o r acaso, no fim de uma Feira do Li\ ro,
quando os pa\ ilhões estavam quase todos já sem ninguém e a enorm e sala
quase vazia, uma mulher jovem, baixa, morena e com o famoso perfil. Delgada,
tímida, pudica. acançava no vazio da enorme sala em direcção ao pa\ ilhão
/, o r i s I /. 7 7/ 7 V ,V /: R

o n d f cu ficam ainda. Comprou-me um li\ro, falámos, garanti-lhe que se a


pudesse ajudar nos seus estudos e aulas, o faria de boa vontade. Nem uma
pala\ra nem um gesto mais: teria ficado muito mal comigo próprio, a tal
ponto mc enchia a convicção de que não devia cair de n o \ o nas minhas
manias antigas, mas sim tratá-la com o máximo respeito, respeitando o ritmo
que ihe era próprio. Na realidade, o que importa é que eu lenha poí//r/o mudar
a tal ponto de atitude — sinal de que alguma coisa de importante, ou talvez de
decisi\(c estava a «mexer» dentro de mim. Ela telefonou-me. fui vè-la. nada se
passou no plano imediato, era da minha parte uma atitude inteiramente nova,
c uma longa história, em que dois seres se procuram hesitantemente, começou
enfre nós. de forma lenta mas segura, sem que eu a ti\'esse forçado. Tinha a
impressão de começar a saber enfim o que quer dizer amar.
í hegamos a ser verdadeiramente felizes. Htdène e eu, quando um dos
seus colegas de trabalho (um filho de René Diatkine. economista) nos convi­
dou para (irasse, para casa de um amigo seu, jean-Pierre Gayman (o filho do
célelvrc secretário de cédula de 1930!), para passar o .Natal; depois, na Páscoa,
quando fi/emos a nossa segunda e última \ iagem à Grécia. Em Atenas, onde
tece lugar o incidente que já relatei, akiguci um carro e partimos com o goslá-
camos dc fazer, à acentura, para descobrinmts na costa nordeste uma maravi-
Ihosti praia de seixos coloridos, sob grandes eucaliptos e pinheiros batidos
ixdo \e n to e pelo sol. Que felicidade'
\'oltámos a Paris, e foi então que começaram a acumular-se as dificulda­
des algumas delas totalmente imprec istas e imprevisíveis.
Não se manifestaram no campo das minhas iniciaticas intelectuais. Estava,
devo reconhecè-lo. num período de extrema facilidade: nada me resistia.
Reflectindo acerca dos limites estreitos em que tínhamos trabalhado sobre
Marx e o marxismo, e para extrair da minha autocrítica antiteoricista as suas
cotisetjuèncias práticas, propus a constituição de um grupo de investigação
para estudar não já uma teoria social ou política dada, mas para reunir elem en­
tos amplamente comparativos sobre o tema da relação material aleatória entre
por um lado os «movimentos populares» e po r outro lado as ideologias que
eles se tinham atribuído ou investido, e por fim as doutrinas teétricas que
os tinham coroado. Ve-se por aciui ejue tencionava propor um trabalho de

’58
F r r r r o 1/ r / 7 o r E M p o

:n^ estigação sobre a relação eonereta entre o aspecto p rá tic o dos mo\ imeiitos
populares e a sua relação (directa, indirecta, perxersa?) com as ideologias e as
doutrinas teóricas que lhes tinham estado ou continuam a estar associadas no
decorrer da história. Naturalmente, a questão da constituição destes mo\ imen-
:os em organizações não podia deixar de col(.)car-se a propósito da constitui­
rão ou da transformação das ideologias e das doutrinas teóricas : fazia parte do
:iiesmo problema. Um projecto de muito grande alcance, que eu acha\ a de
ictualidade para a investigação e m esmo para a vida teórica c política, foi
então delineado, sob a sigla de CEMPIT (Centrt) de Estudos dos Mo\ imentos
Idipulares, das suas Ideologias e Doutrinas 'leóricas). Conseguiu o apoio da
eiirecção da Éeole tjuc me concedeu alguns fundos e a promessa de nlai^
- poios po r parte do ministério; obtive o acordo de uma boa centena de histo
; '.adores, sociólogos, politólogos, economisas, epistemólogos e filosott» dc
eidas as competências e tendências, p rom ori na École, em Março de 1980.
-ima reunião inaugural e diversos grupos começaram a trabalhar. Intencionai-
nente, queríamos trabalhar sobre «casos» tão diversos com o o movimento
perário ocidental, o Islão, a China, o cristianismo, os campesinatos, para che-
, .irmos, se possível, a resultados comparativos. Fizemos várias reuniões com a
cTcsença de especialistas que consegui que viessem da província e m esmo do
1 'trangeiro. l i n h a contactos pessoais com três historiadores, stteiólogos e filó-
' ifos soviéticos notabilíssimos: um trabalhava sobre os mo\ imentos populares
ãi Rússia pré-revolucionária, o outro sobre as religiões de África e o terceiro
- 'bre as ideologias, oficial e outras, na URSS. O projecto estava bem encami-
iiado — com grandes receios de um ou dois amigos mais chegados que,
-..liando-me um tanto hipomaníaco. temiam o j a i o r , c os grupos formados em
ena actividade, quando ti\e de enfrentar uma jaequena dificuldade pessoal
italmente inesperada, mas que acarretou pesadas consequências.
Nos finais de 19^9. comecei com efeito a sofrer de vivas dores do esofago
. .1 restituir o mais das vezes aejuilo que ingeria. O dr. Etienne, generalista, é
-erto. mas gastroenterologista dc formação, m andou-m e fazer uma endoscopia
, perante os seus resultados inquietantes m andou-m e radiografar: hérnia hia-
f. Tinha tjue ser operado, caso contrário era de temer a prazo o aparecimento
, L úlceras do esôfago, cujo prognóstico é muitas vezes bastante gra\ e. Por duas

259
i o l t s .1 ; J II r s V ií K

\ezes foi fixada a data da operação, antes da Páscoa de 1980, c por duas \ezcs.
presa como que de um grave pressentimento (dizia a quem me quisesse ouvir
que «a anestesia ia baralhar tudo»), adiei a operação. Perante a insistência dos
médicos, acabei por ceder. operação teve lugar, depois tia nossa feliz viagem
à Grécia, na Maison des Gardiens de la Paix, no boulen ard Saint-Marcel. Até ao
últimt) instante continuei a trabalhar intensamente na minha pequena cama de
hospital nos dossiers do (diMPIl’ que levara comigt).
Tecnicamente a operação correu bem. Administraram ine as drogas de
uma anestesia profunda, e eu acordei presa de uma angtfstia incoercívcT
(quando alguns anos antes recebera por causa de uma hérnia inguinal e de
uma apendicite duas anestesias sem tiuaist|uer conseciuèncvas). Esta anestesia e
a primeira angústia precipitaram-mc jsouco a pouco num a no\a «depressão»
ciue. pela primeira vez. já não foi de feição neurótica e «dut idosa», não franca,
mas uma n/eiaiico/hi aguda clássica, cuja gravidade alertou seriamente o meu
analista: «Pela primeira vez, t[ue eu soubesse, disse-me ele mais tarde, vocé
apresentat a todos os sintomas de uma melancolia clássica aguda e além disso,
grave e inquictante.»
Arrastei-me corno pude. como sempre tentando lutar com todas as minhas
forças, «empurrando o tempo» interminfu el, com o .ipoio de liélène, do rncu
analista, etc,, contra a minha angústia c o meu desejo de ser posto ao abrigo
numa clínica, mas desta \ cz sentia bem que não era com o no passadi.).
Contudo, o meu estado não paraxa de se agrax ar. P no dia 1 de ju n h o de
1980 entrei de nox t) para uma clínica, desta x'cz a clínica de Parc-Montsouris
(rue Dax itj ), e nãt.) com o antes para o \ esinet. Os directores do Nesinet, M. e
Mme. Leullier. ambos psitpiiatras e xelhos amigos do meu analista, tinham-se
reformado, e o meu analista não conhecia o seu sucessor. Mas não era essa a
sua razão essencial: queria poupar a Héléne as intermináveis x iagens de metro
(uma boa hora e meia, pelo m enos trés horas de ida c volta) entre a Ecoie c
o Vésinct.
É preciso com preender em c|ue estado sc enctjntraria Pléiène. Durante
anos, tix'cra tjue suportar o peso e a angústa das minhas depressões e dos meus
estados hipomaníacos, não só das minhas depressões mas, o que era ainda infi-
nitamenie mais duro, xis intermináveis meses (ou semanas) t[ue eu vivia, numa

2 6 0
o f l 7 r K o M I 7 O / _l/ P O

..ngústia crescente, lutando e recorrendo constaniemente a ela. ames de me


decidir pela hospitalização. Q uando estae a hospitalizado, ela \ i\ ia na solidão,
tendo pear único fito ir visitar-me, praticamente todos os dias, e \ oltando setzi-
o.ha para uma casa vazia, a sós com a sua angústia, Mas o que era parti ela uma
oroeação, que com o tempo se tornaea insuportá\el, erttm as Lhamada- teledV)-
tiicas dos meus numerosos amigos e incontáeeis conhecido'', que não parai .im
^le se informar sobre a minha pessoa e de pedir notícias completas "ohre (.> meu
estado. Hélène tinha que repetir sem tréguas as mesmas frases, c doia-lhe subrc'
tudo cjue ninguém se informasse sobre ela, o seu estado e a sua miséria moral
.o m raríssimas excepções, para todos esses amigos meus, ela não existia, ela
..ieixara de existir. Nas chamadas só se falava de mim, dela nunca, \ ã o ^ei 'c
.dguém, com o tempo — e a coisa durava intermitentememe, é \erdade. mas
'cm pre à volta do m esm o tema. havia perto de trinta anos! — teria sido capaz
de aguentar este regime, seja como for ela \ ivia-o com o um suplício e além
disso com o uma incom preensão e uma injustiça intoleráveis para com a sua
pessoa. E, com o sabia Cjue eu esta\a exposto a recaídas, vi\ia os intervalos de
nielhoras com o a expectativa repetida da recaída, sobretudo cpiando eu me
.ichava em estado de hipomania sendo então realmente intolerável para ela de
tal maneira as minhas provocações e as minhas agressões ininterruptas eram
ifensivas, Cjuase mortais. Isto ela vivia-o sozinha e, indiferença ou falta de tacto
ui qualq[uer outra razão, ninguém, com raras excepções, entre os meus amigos
>le\ a\a aparentemente ou de\eras em linha de conta. René Diatkine pensara
pelo menos em poupar-lhe a longa fadiga quotidiana das très horas de metro,
Fiquei de Junho até Setembro na clínica Montsouris em condiçéies muito
oenosas; pessoal reduzidíssimo, m édico desconhecido e pouco acessí\el. que
me parecia um estranho quando o via. um jardinzinho séirdido com seis
netros tiuadrados na parte de baixo do prédio sem qualquer \ ista, em suma
.ima m udança brutal e traumatizante por comparação com o duxo e o con
orto do Vésinet onde tinha um grande parcjue e. se assim posso dizé-lo, os
iieus «hábitos», e enfermeiras e médicos que manifestamente gostaciim de
nim ou cjue eu soubera seduzir por os conhecer ha\ ia muito.
Apressaram-se a receitar-me niamida (imao), Esta droga raramente admi-
iistrada por causa do perigo que apresentava (o célebre cbeese effect em

261
L O l / S A I I // r s s l: k

particular) e por causa dos seus efeitos secundários espectaculares, sempre


dera comigo resultados excelentes, e, caso inteiramente excepcional, actuava
muito rapidamente e sem qualquer efeito secundário. Ora, para surpresa c o m ­
pleta dos meus médicos, tudo se passou de forma diferente desta vez. Não só
o rápido efeito esperado não se fez sentir, como caí rapidamente num grave
estado de confusão mental, de onirismo e de perseguição «suicidária».
Não entrarei aqui nos porm enores técnicos que os curiosos poderão
encontrar em qualquer tratado de psiciuiatria e de farmacologia. Os antide-
pressi\'os podem efectivamente produzir efeitos desta ordem, que se observam
com grande frequência nos casos de melancolia aguda. Porque desta feita eu
não «fazia» uma depressão atípica ou duvidosa, uma «falsa» depressão dita
«neurótica», e a hospitalização não produzira em mim o apaziguamento ime­
diato que sempre conhecera antes eni todos os casos. Sobre este ponto, todos
os médicos que ti\eram ocasião de me observar em Montsouris estão de
acordo, não só os médicos psiquiatras do serviço, mas também o dr. Angeler-
gues, que eu conhecia e me visitou muitas vezes, bem com o o meu analista
que cra o primeiro a estar a par. de longa data, das minhas reacções habituais.
Depois da morte de Hélène. o meu analista confiou-me uma hipótese que
não fora ele a formular, mas recolhera da boca do dr. Rertrand 'VTeil, que eu
consultara outrora por complicações aparentemente de natureza orgânica, e
que possuía uma \astissima cultura médica e também biokígica. Esse médico
pensava que a minha operação, ou seja antes do mais a minha anestesia pro ­
funda, teria podido provocar em mim um «choque biológico» cujo meca­
nismo, que poupo ao leitor, me foi mais tarde explicado em po rm e n o r (em
jogo estar a sobretudo o metabolismo das drogas pelo fígado): ter-se-ia tratado
de uma grarc perturbação dos meus «equilíbrios biolétgicos», pntvocada pelo
choque operatório e sobretudo pelo choque anestésico, acarretando efeitos
invertidos e paradoxais.
Seja com o for. entrei num estado de semi-consciência. por vezes mesmo
de inconsciência total e de confusãtt mental. Já não dominava os movimentos
do meu corpo, caía constantemente, romitava a todo o momento, deixara de
re r com nitidez, urinava de maneira desordenada; deixara de dom inar a
minha linguagem, trocando uma palavra por outra, as minhas percepções, que

262
/■ r 7 r A- o / M l I I o / M P d

não era capaz nem de acom panhar nem de articular, nem a fo r tio r i a minha
escrita, e apresentava formas de discurso delirantes, Além disso, não para\ a de
viver à noite pesadelos atrozes, cpie se prolongar am denutradamente no estado
de \igilia, e «vivia» os meus sonhos no estado de \igilia, quer dizer, agia
segundo os temas e a lógica dos meus sonhos, tom ando a ilusão elo^ meus
stmhos pela realidade, e achava-me incapaz de distinguir então em estado de
rigília as minhas alucinações oníricas da simples realidade. lira nes[a^ eondi-
ções que desenvolvia sem descanso perante quem me r isitar a temas de perse­
guição suicidaria. Pensar-a intensamente tiue havia hom ens tiue queriam a
minha morte e se prepararam para me matar: um barbudo em especial, que
der ia ter r isto algtires no serviço: melhor, har ia um tribunal reunido na sahi
ao lado para me condenar à morte; melhor, hom ens armados de espingardas
com mira telescópica que iam abater-me apttntando para mim das janelas das
casas fronteiras; por fim as Brigadas Mmmelhas tinham-me condenado à morte
e iam irromper no meu quarto de dia ou de noite. .\ão conservei na memória
todos estes porm enores alucinantes, ejue fictiram encobertos, excepto num ou
noutro clarão, por uma pesada amncvsia, mas conheço-os pelos numerosos
amigos t]ue me vieram visitar, pelos médicos cjue me trataram e pela c o n c o r­
dância exacta e coincidente das suas observações e testemunhos que mais
tarde recolhi.
lo d o este sistema «patológico» era acom panhado por um delírio suicidá-
rio. C ondenado à m orte e ameaçado de execução, só tinha um recurso: anteci­
par a mttrte infligida matando-me prerentivamente. Imaginei todas as espécies
de soluções mortais, e além disso queria não só destruir-me fisicamente, mas
destruir também todo o rasto da minha passagem pela terra: em particular des­
truir até ao último os meus livros e todas as minhas notas c igualmente incen­
diar a École, e ainda, «se possírel», suprimir, já agora, a própria Hélènc. Pelo
menos confiei-o a um amigo que mo referiu nestes mesmos termos. (Acerca
deste último ponto, só recolhi esse testemunho isolado, i
Sei que os médicos ficaram extremamente incjuictos a meu respeito.
Recear am, não que eu me matasse — disso estar a a salr-o. ao que parece, dadas
as condições e protecções de vigilância da clínica — embora em tais casos
nunca se saiba — , mas recearam acima de tudt) que estas graves perturbações

2 6 .â
I o l I s A /. 7 H / S S /; R

provocassem em mim um estado irreversível, condenando-m e a uma hospita­


lização para toda a vida.
Depois de um longo período no mesmo regime, foi tomada a decisão de
suprimir os imaos, considerados responsáveis pelos efeitos secundários in-
cjuietantes e, após (t período de expectativa regulamentar (uns tiuinze dias),
foi-me receitado anafranil injectável. O novo regime pareceu resultar e ao fim
de algum tempo fui considerado em condições de sair da clínica. Deixei assim
a clínica para voltar à Ecole. Mas todos os meus amigos são unânimes em di-
z.er-me que saí da clínica em péssimo estado.
Recuperei Hélène e, cttmo tantas vezes, partimos para o Midi para aí des­
cobrirmos a paz, o vento e o mar. Só ficámos uns oito ou dez dias e regressá­
mos: o meu estado agravara-se.
foi então que Hélène e eu conhecem os as piores pntvaçóes da nossa vida.
As coisas tinham com eçado na Primavera anterior, mas episodicamente, com
verdadeiras tréguas que deixavam esperança. Desta feita, assumiram uma fei­
ção implacável e duraram sem tréguas até ao fim. Não sei que regime de vida
im punha a Hélène (e sei tjue posso ter sido capaz do pior), mas ela declarou
com uma resolução C[ue me apavorou que já não era capaz de v ivor comigo,
que eu era para ela um m onstro e que queria deixar-me para sempre. Pôs-se
ostensivamente ã procura de casa. mas não conseguiu encontrar nada de um
m om ento para o outnc fomou então medidas práticas que para mim eram
insupetrtáveis: abandonava-me na minha própria presença, no nosso próprio
apartamento Levantava-se antes de mim e desaparecia durante o dia todo. Se
calhava ficar em casa, recusava-se a falar-me e até mesmo a cruzar-se comigo:
refugiav a-se ou no seu quarto, ou na cozinha, batia com as portas e proibia-me
de entrar. Recusav a-se a com er na minha companhia. O inferno a dois na clau­
sura de uma solidão deliberadamente organizada, começava, alucinante.
A angústia dilacerava-me: como se terá tornado claro, sempre sentira uma
intensa angústia de ser abandonado, e sobretudo po r ela, mas este abandono
na minha presença e domiciliário parecia-me mais insuportável que tudo.
Surdamente sabia que ela não podia, na realidade, deixar-me, e tentava,
mas em vão, atenuar a minha angústia com este pensamento, do qual para falar
v erdade não estava inteiramente seguro. Então Hélène com eçou a desenvolver

264
o / r r I A' o M r / 7 o 7 /:' \I P O

um outro tema, latente nela havia meses, mas qtie desta feita assumiu uma
torma m edonha. Declarou-me cjtie não tinha outra solução, dado o inonsiro
que eu era e o sofrimento inumano que lhe impunha, a não ser matar-se.
Ostensivamente, juntava e exibia as drogas nee'essárias para o seu 'uicídio, mas
falava também de outros meios, incontroláeeis: o nosso amigo Nikos Poulant-
zas não se suicidara recentemente atirando-se. numa crise aguda de persegui­
rão, do alto do vigésimo segundo andar da torre de Montparnasse - Outro ati-
rando-.se para debaixo de um camião pesado, e um terceiro para delxiixo de
um comboio? Citava-me estes meios, com o se me desse a escolher entre eles.

H asseverava-me com a força de uma convicção, e sobretudo num tom que eu


^.onhecia demasiado bem para p o d e r duvidar seriamente dela. que aquilo não
eram palav ras ditas no ar mas uma decisão irrevogável. Simplesmente, escolhe-
ria quer o seu meio, quer a sua hora. evidentemente tiue sem me prevenir.
Surdamente, também a este propósito, pensei que ela seria incapaz de se
matar. Dizia para comigo t]ue tinha demasiados exemplos no passado e que no
rundo ela estava demasiado agarrada a mim, amava-nte com um am or tão vis-
vcral que seria incapaz de passar ao acto. Mas uma vez mais não tinha a certeza
.ibsoluta. O cúmulo aconteceu um dia em que ela me pediu muito simples­
mente que a matasse eu próprio, e essas palavras, impensáv eis e intoleráveis no
'cu horror, fizeram estremecer lodo o meu ser. Ainda hoje me fazem estreme­
cer Quereria ela assim comunicar-me de certo m odo que era de facto incapaz
de me abandonar, mas também de se matar pela sua própria mão? Em suma,
rinha ainda um recurso, não tinha mais nenhum : deixar passar o tempo para
ciuc. corno após tantas crises agudas do passado, ela acabasse por se acalmar,
oor voltar à razão e aceitar aquilo que queria no mais profundo de si própria;
:ião me abandonar, não se matar, mas continuar a viver comigo, para me amar
como sempre.
lo d o este tempo de inferno foi, como escrev i há pouco, um tempo à porta
■echada. Excepto o meu analista com quem ela se av istava e com quem eu me
istava, não víamos praticamente ninguém ( a École ainda não recomeçara a
runcionar em pleno). Vivíamos ambos fechados na clausura do nosso inferno.
\ ã o atendíamos já o telefone, nem reagíamos à campainha da porta. Ao que
;xirece eu chegara a pôr, na parede exterior do meu gabinete, uma espécie de

265
/, o r / ,s .1 L 7 77 r .S A /:' A'

a\'iso bem \ isível onde escrevera à mão: «ausentes de m om ento; não insista».
Alguns amigos, que tinham tentado telefonar-nos e leram este texto na parede,
disseram-me, passado muito tempo, que nunca se perdoariam por não terem
então procurado «forçar a minha porta». Mas se o tivessem tentado, tiue teriam
podido fazer, a m enos que se decidissem a arrom bar a porta uma vez que eu
não abria?
ü tempo deve ter passado nesta horrível clausura e solidão imóvel,
naquilo a tiue alguns amigos mais tarde chamaram um «beco», um «inferno a
dois» ou ainda, contando bem, «um inferno a três», incluindo além das nossas
pessoas a do meu analista que responsabilizaram explicitamente por se ter abs-
tido de intervir.
No entanto o meu analista interr iera. De\'o-o ter visto pela última \ez no
dia IS de Novembro, e ele disse-me que atjuela situação não podia continuar,
que eu tinha que aceitar ser hospitalizado. Informara-se acerca do novo tlirec-
tor do Xésinct, que não conhecia pessoalmente. As informações obtidas eram
excelentes. Deixando de lado todos os inconvenientes que Le \"ésinet apresen­
tara para Hélène. concluira que eu seria lá realniente bem recebido (lembro
aqui que conhecia muito bem Le Nésinet. tinha lá as minhas com odidades e
todos os meus tratamentos pelo imao tinham sido notárel e rapidamente bem
sucedidos) e bem tratado (não ficara com uma boa recordação da minha esta­
dia em Montsouris, julgando que as condições desse lugar não me eram far o-
ráveis). Lie telefonara para o \'ésinet, e eu poderia lá ser recebido dentro de
dois ou três dias. Penso que disse que não, mas seja com o for não me lembro
do que respondi ao certo.
Os dois ou três dias passaram, nada aconteceu. Soube mais tarde que na
quinta-feira dia 13 e na sexta-feira dia 14 de Novembro, Hélène esteve com o
meu analista e que lhe implorou um prazo de três dias antes de qualquer hos­
pitalização. O meu analista deve ter sem dúvida cedido à sua súplica, e ficou
assente que, salvo novidade, eu entraria no Vésinet na segunda-feira dia 17 de
Novembro. Encontraria muito mais tarde no meu extrreio da École uma carta-
-expresso de Diatkine, com data e carimbos da tarde de sexta-feira l4 de
Novembro pedindo a Hélène uma resposta telefônica de «extrema urgência».
A carta chegou à escola a 1“ , não sei po r que razão (atraso do correio? ou seria

266
O F i I r R o 7 i; r / 7 o F M p o

o porteiro que não pôde entregar-ma uma \ez que eu não atendia o telefone
nem respondia à campainha da porta?): seja como for. depois do drama, Faço
lembrar que o meu analista não podia telefonar para mim nem para Hélène:
u á s n ã o a te n d ía m o s.

No dom ingo 16 de Novembro às nove horas, saindo de uma noite im pene­


trável e onde nunca pude mais tarde penetrar, acha\ a-me aos pés da minha
cama, em roupão, com Hélène estendida diante de mim. e eu com iiuuua a
massajar-lhe o pescoço, com a impressão intensa de ter os antebraços muito
doridos: evidentemente p o r causa da massagem. Depois caimpreendi. não sei
como, talvez pela imobilidade dos olhos dela e p o r uma pobre ponta de língua
entre os dentes e os lábios, que ela estava morta. Precipitei-me. aos gritos, do
nosso a p artam ento para a enferm aria, o n d e sabia que ia e n c o n trar o
dr. Étienne. O destino abatera-se.

26"
XXI

clr. Htienne, depois de me ter administrado uma injeeção e teito alguns


O telefonemas, condu/iu-m e a toda a pressa no seu automóvel até Sainte-
,\nnc. onde fui hospitalizado de urgência. Entrei então numa nova nttiie, e
at[uilo que vou contar é algo que só descobri muito mais tarde, através dele, do
meu analista e dos meus amigos.
É «de regra» que um doente atingido de «perturbações psíquicas» comece
por ser levado aos serviços de polícia (anexos a Sainte-Anne) para as constata­
ções habituais, (.eralmente o detido fica \ inte e quatro horas, completamente
nu, num ciuarto celular mobilado apenas com um colchão no chão, antes de
um primeiro interrogatório, e do exame do psiquiatra do serviço da polícia,
que decide da hospitalização em Sainte-Anne, a dois passos. Este procedi­
mento. que e o regulamentar, pode sofrer excepções em casos de extrema
urgência e gravidade. Soube mais tarde que ao ouvir dizer que eu fora directa-
mente transferido para Sainte-Anne, sem passar pelo serviço da polícia, o
ministro da Justiça, cií-nnrm alien, Alain Peyrefitte, ficou furioso e telefonou
ao director da École, Jean Bousquet, para o descom por de alto a baixo. Bous-
cjuet, impecável ao longo de toda esta história, respondeu que eu estava sob as
ordens dele. que esta\a muito doente, e que ele cobria inteiramente a iniciativa
do dr. Étienne. ao qual Peyrefitte fez também sentir a sua cólera, mas por inter­
posta pessoa.
Foi sem dúvida por um redactor da France Presse que os meus amigos
foram informados da morte de Flélène, e propagaram entre eles a notícia,

268
o / r / i R ) M r I I o i h M P (I

coiminic:indo-a rapidamente ao meu analista. Iodos eles ficaram transtorna­


dos, e até ao resultado da autópsia (concluindo que a morte ocorrera por
«estrangulamento») não conseguiam acreditar, incluindo em primeiro lugar o
meu analista, c}ue eu tivesse matado Hélène. mas imaginaram que eu mc estac a
acusar alucinatoriamente de uma morte acidental de que não fora o autor.
A notícia, uma bela «caixa», teve honras de primeira página no» jornais
franceses e estrangeiros, e em bre\'e deu lugar em certos meio» às análise» e
comentários que se podem imaginar.
Eu era então muito conhecido, n o rm a lie n , filósofo, marxista c c o m u ­
nista, casado com uma m ulher pouco conhecida mas aparentemente notácel.
.\o seu conjunto, a imprensa francesa (e internacic.mal) foi correctíssima. Ma»
certos jornais saciaram-se alegrem ente: não citarei os seus nomes nem as assi­
naturas por vezes célebres que deram cobertura a artigos ao mesmo tempo
malevolentes e delirantes. Cinco temas foram neles desenvolvidos pelos seus
autores com uma manifesta complacência satisfeita: a complacência de uma
desforra política a que o «crime» proporcionava finalmente ocasião de acertar
t elhas contas, não só com a m inha pessoa, mas com o marxismo, o c o m u ­
nismo e... a filosofia, para já não falar da Ecole Normale. Não terei a crueldade
de citar esses textos extraordinários ou os seus autores p o r vezes célebres: que
se faça pelo menos silêncio sobre as suas elucubrações e os seus desvarios.
1: de resto eles próprios, se forem m inimamente honestos, sc reconhecerão no
que vem a seguir. Compete-lhes a eles, se f(.)rem capazes, porem-se em paz com
a sua consciência. No que foi publicado em França e no estrangeiro, puderam
com efeito ler-se artigos sobre os temas seguintes: 1 ) marxismo = c rim e :
2 ) com unism o = crime; 3 ) filosofia = lo u cu ra : 4 ) o escândalo de que um
louco, há muito louco, tenha podido ensinar na Normale ao longo de mai» de
trinta anos gerações de filósofos que encontram os por toda a parte nos liceus,
encarregados dos «nossos filhos»; e 5) o escândalo de cjue um indivíduo crimi­
noso tenha podido beneficiar da protecção aberta do «estahHs/.v>ient>^ : pense­
-se na sorte que sofreria um sintples argelino que esti\esse na sua situação,
atreveu-se mesmo a sugerir um jornal «centrista». .\lthusser escapou a essa
'Orte graças às «altas protecções» de que goza: o estab/isb»ieiit da L niversi-
liade e dos intelectuais de toda a casta formaram automaticamente um bloco

269
/. o r I s ,1 L 7 // 7 ,S ,S /:

para fazerem o silêncio à sua volta e para protegerem um dos seus dos rigores
da «regra», ou talvez m esm o da lei. Hm suma, eu fora protegido pelo AlE do
ensino de que era membro. Q uando se sabe que os comentários se prolonga­
ram p o r muito tempo, porcjue foi preciso tempo para cjue chegassem primeiro
os resultados da autópsia, depois a decisão de im procedència — imagina-se
em cjue atmosfera de «caça ao homem», ainda mais temível por ter sido difusa
com o o rum or público que acompanhava os golpes de uma certa imprensa,
ticcram de viver os meus amigos desamparados. Digo os meus amigos, porque
não tinha família. O meu pai m orrera em 19"'5 e a minha mãe, muito envelhe­
cida embora muito lúcida, estava totalmente indiferente. Bousquet, muito
digno, teve de interc ir pessoalmente para rectificar na imprensa informações
totalmente inexactas e difamatórias. Teve essa coragem, e assumiu publica­
mente os seus riscos. Ciarantiu que eu sempre desem penhara o meu serviço e
o meu ensino de maneira perfeitamente honesta e irrepreensível, que era para
ele na École um colaborador perfeito, conhecendo m elhor do que ninguém os
meus próprios alunos, e que um doente tem direito a ser defendido pelo seu
director. Hste arquólogo cheio de brandura, que não vivia e não vive senão
para as suas esca\ações de Delfos, mostrou-se um hom em de coragem, de
acção e de generosidade. Bem entendido, fui também «defendido» não só por
todos os \ igilantes da École. mas também por todos os filósofos que, segundo
um jornalista, «formaram um bloco em torno de Althusser».
De tudo isto, naturalmente, nada soube na altura, e ainda durante um
km gü período posterior. O m édico que me tratou em Sainte-Anne, com uma
atenção e uma generosidade que muito me comoveram, velava para que
nenhum a notícia pudesse chegar até mim: receava justificadamente que isso
me traumatizasse e agravasse o meu estado. Foi po r essa razão que «blo­
queou» a imensa correspondência que então me foi endereçada, o mais das
vezes po r desconhecidos que me cobriam de injúrias (comunista criminoso!)
o mais das \ezes carregadas de intensas ressonâncias, até ameaças sexuais.
Foi também pela mesma razão que tomou a decisão de proibir todas as visitas,
pois não sabia quem poderia aparecer nem para me contar o quê. Acima de
tudo (e esse m edo inspiraria todos os meus médicos não só em Sainte-Anne,
mas muito tem po depois em Soisy, para onde fui transferido em Junho de

270
(> / r / r R o M t / /■ o M p

1981), rcccava que um jornalista conseguisse introduzir-se no hcisiut a i . íira;

rotografias, apanhar algumas vagas informações e publicar na i m p r e n ." a um

.irtigo escandaloso. Este receio nada tinha de imaginário. Soube m a i' t a 1 11L' C.j l í v'

a m jornalista de um grande semanário francês conseguiu obter ipi a C íM i '

'Ubornando um enfermeiro local) uma fotografia minha onde eu a p i n , A la •'cn ■

lado na minha cama e diante dos meus três companheiros dc lsi n ' a r a i a .
O semanário tencionava publicar este tktcumento com o título: m ‘ ! 1 f I ■-.! ) ! i )

DLico Louis Althusser prossegue em Sainte-Anne, perante os seus co-s ímTi.:,


)s seus cursos de marxismo-leninismo.» Felizmente o advogado que
..migos tinham cttnsultado (para se informarem sobre as formas do p
Lirídico), informado sem dúvida por um jornalista tjue achav a aqiu l.i
de proceder deselegante, interveio e a foutgrafia não foi publicati,:
nedo dos jornalistas caçadores de escândalos perseguiría todos os íiü
oos até ao fim, ainda depois de terminada a minha hospitalização: e :
,im enganados, porque muito depois do fim da minha hospitalização ,
",ím na imprensa porm enores imaginários sobre a minha existência,
"aramente inspirados pela benev olência. Como não tenciono proct dt .■
ju e r ajuste de contas pessoal retrospectivo, coisa de que não go'
desejo, permitir-me-ão não falar mais deste aspecto das coisas c|ue e
"esou muito nas minhas condições de hospitalização e na minlia
.ngústia, e sobretudo sobre os meus amigos e médicos.
Portanto não tinha direito a visitas, consideradas p o r razões c
- 'pécie demasiado perigosas. Em contrapartida, lembro-me de u
d,ar. tjuase todos os dias por volta do meio-dia, com uma grande
ielène e minha, cjuc trabalhava em Sainte-Anne e que, p o d e n d o circi:
‘ente no hospital, me ia ver. (.) alívio de finalmente poder falar cm :
uc conhecia muito bem Elélcne e que me conhecia! Ela coniou-mc ic
er começado por me encontrar quase inteiramente prostrado. i'e,
-eguir uma conversa, mas contente de a ver. Em contrapartida, cons:.
.emõria precisa das minhas entrevistas com os especialistas que for.
.idos para me examinar. Três hom ens idosos vestidos de escuro vier
' r.imente buscar-me ao meu quarto para me conduzirem a uma e
-..'Mnete nas águas-furtadas (uma divisão minúscula; se nos levanta"

2""l
/ o ! í S I /. r H l S V /: A>

cuidado, batíamos com a cabeça nas tra\es do tccto). Staitavam-se ritualmente à


minha frente, tira\ am da pasta papel e uma caneta, faziam-me perguntas e escre-
Aiam interminavelmente. Não tenho a menor recordação nem das suas pergun­
tas nem das minhas respostas. O meu analista também me foi \ er com muita fre­
quência, e sempre no mesmo gabinete do sótão. Reeordo-me da mirtha
interminável pergunta; mas como é possnel que eu tenha matado Hélène?
.Mais tarde soube ciue. dois dias a seguir ao meu internamento, o juiz de
instrução encarregado do caso esticera. segundo as regras, em Sainte-Anne,
para me interrogar, mas ao que parece eu estaca entãtt num estado tal cjue ele
não conseguiu arrancar-me cpialquer declaração.
Não sei se me administraram antidepressivos (além dos imaos) em Sainte-
-.'Vnne. Só me lembro de ter, todas as noites, ingurgitado enormes detses de cloral,
esse velho medicamento que continua eficaz, e cjue me fazia, para minha grande
satisfação, dormir tão hem (apesar das janelas altas e sem cortinas do hospital)
que todas as manhãs sentia a maior dificuldade em despertar. Mas este prolonga­
mento do sono era-me agradável, tudo o que possa servir para escapar ao brutal
retorno da angústia c- bem \ indo. Hm contrapartida, sei cjue me administraram
uma dúzia de choques: portanto devia estar muito deprimido. Naturalmente cho-
ciLies com narcosc e curare, como tinha recebido na Vallée-aux-Loups, e noutras
ocasiões até ao \'ésinet. antes da descoberta dos imaos. Ainda estou a ver o
jovem médico de cara rosada que acompanhava a «máquina» eléctrica até ao meu
quarto e, antes de passar ã acção, me dirigia longos e, se assim posso dizer, joviais
discursos sobre os choques e as suas vantagens. Assim entrava na «pequena
morte» sem demasiada apreensão, apesar de manter por ela o antigo horror.
As condições materiais de existência em Sainte-Anne eram verdadeira­
mente inimagináveis, sobretudo o grande refeitório onde tínhamos que ir bus­
car o prato e os talheres (depois da refeição tínhamos que lavar os talheres
num recipiente de água infecta, mas não os pratos, nunca percebi porquê),
sentávamo-nos ao lado de quem calhasse, e os empregados traziam de qiial-
ejuer maneira para a mesa enorm es travessas de comida grosseira. Contudo foi
aí que fiz um verdadeiro amigo: um antigo mestre-escola que se tornara inca­
paz de ensinar, um «crônico» segundo a terrível expressão de circunstância,
que tinha direito a sair e mais tarde me arranjaria jornais. Dominique estava

2~2
/■ r / i R o M I I I o I t M P o

doente, era docente com o eu, deixa\a-me falar e ca)mpreendia-me: um r erda-


deiro amigo a quem, seguro da sua discrição, eu podia confiar tud(c -\ão
escjueci a sua atenção e a sua generosidade, tentei descobri-lo depois, mas não
consegui. Se um dia lhe acontecer ler este li\ rinho, gostaria que entrasse em
contacto comigo. Mais tarde eu ct)mprometc-lo-ia num a iniciati\a e.xtrema-
mente inocente, mas que fez muito alarido no hospital
Soube depois que, durante todo este tempo, os meus amigos mai^ chega­
dos, sem saberem exactamente que riscos eu corria, suspensos do^ resultados
primeiro do exame dos especialistas, depois da decisão de improcedencia ique
ocorreu apenas nos começos de Fevereiro, julgo eu) vi\eram na mais profunda
perplexidade e fizeram tudo o que era possível para me ajudar, do exterior,
como podiam. Foi então que se manifestaram os tjue se revelariam mais fiéis
e mais dedicados. Coisa singular, foram em geral os mais chegados, mas nem
sempre, e entre os mais chegados, h o m e alguns que manifestamente se afasta­
ram. Esta divisão havia mais tarde de me dar ejue pensar. A loucura, o hospittil
psiquiátrico, o internamento podem assustar certos hom ens ou mulheres, que
não conseguem abordar ou enfrentar essa ideia sem uma grande angústia inte­
rior, que pode chegar a impedi-los tjuer de visitar o amigo, quer de interv ir
seja no qvte for. Â este propósito, não posso deixar de evocar o heroísmo do
nosso querido Nikos Poulantzas, que tinha um terror m edonho de qualquer
hospital psiciuiátrico, e que c o n tudo me visitou sempre regularmente por
altura dos meus internamentos, e sempre me animou, quando devia torcer-se
por dentro de angústia, coisa que só muito tarde eu soube. E lembro-me até de
ejue ele foi quase o único que eu aceitava receber, no ano que precedeu a
m orte de Hélène. Eu não sabia então que ele já uma vez tentara matar-se. histó­
ria que contava com o se se tratasse de um mero acidente, durante a noite,
numa grande avenida um camião pesado colhera-t) de lado... na realidade fora
ele que se atirara para debaixo das rodas, revelar-me-ia a sua companheira. Ora
estive com Nikos não em minha casa, mas na rua perto da École. soube depois
cjue ele sofria já da terrív el crise de perseguição a que poria fim por meio de
um suicídio espectacular. Ora Nikos mostrou-se alegre à minha frente, não me
disse uma só palavra sobre o seu sofrimento nem sobre a sua primeira tentativ a
que camuflava sob a aparência de um acidente, falou-me dos seus trabalhos e
dos seus projectos de investigação, interrogou-me sobre os meus e deixou-me

273
L O ! / S A / / H I V S /:

beijando-me calorosamente, com o sc fosse voltar a ver-me no dia seguinte.


Q uando soube mais tarde o que ele tinha na cabeça, não pude conter a minha
admiração pelo que fora nele não só um gesto de amizade excepcional, mas
um \ erdadeiro heroísmo. Ora nem todos reagiam assim. Sonhe mais tarde por
exemplo tjue uma amiga desapareceu completam ente por causa de um jorna­
lista cjue falara das minhas relações com «uma ideóloga»: com o ela era especia­
lista de história das idéias (mas de maneira nenhum a uma ideóloga!), os seus
amigos que só me conheciam de nom e tiveram m edo (ela não) e explicaram-
-Ihe o perigo a que se expunha: interrogatórios sem fim, um processo público
em t|ue certamente teria que testemunhar, etc. Queriam, também eles, protegê-
la. E ela desapareceu do pequeno contingente dos meus amigos activos.
Outros desapareceram sem cjue eu saiba porcpiê. Outros finalmente — penso
num de entre eles. o mais fiel e o mais chegado durante os anos da minha esta­
dia na École, vinha visitar-me quase todos os dias — desapareceram, depois de
me terem (trestado grandes serc iços materiais, de um dia para o outro, sem me
pre\ enirem, brutalmente, e as minhas cartas e apelos ficaram até hoje sem res­
posta. Se ele ler este texto saiba que a minha porta lhe está aberta e tjue, se não
\ ier, irei eu um dia bater à dele. Depois do c[ue \ ivi, acho-me capaz de c o m ­
preender tudo, mesmt) aqueles que. a certa altura, pareceram afastar-se sem
apresentarem as suas razões. Mas além deste encontrtt espantoso com Nikos, a
visita tjue mais me comoveu nesta ordem de idéias, recebi-a um dia em Soista
um dos meus «antigos alunos» que se tornara um amigo muito querido, um
hom em extraordinário, veio ver-me. Pediu-me jsara não dizer nada mas jaara o
escutar. Durante duas horas, só me falou de si jarójario, da sua infância terrível,
do jaai cjue andara jielos hospitais jssiquiátricos, e acabou por me dizer: vim
ver-te para te exjalicar jsor tjue é que, é mais forte do que eu, não posso vir ver­
te. l>m ano mais tarde, em análise, preparou dem oradam ente um suicídio cujo
projecto nunca confiara a ninguém, nem sequer à corajosa jovem com quem
vivia e trabalhava, e deitou-se às águas do Larne, com as v^eias abertas e jsesa-
das pedras a servirem-lhe de lastro.
Se refiro estes factos, é não só porque retrospectivamente me tocaram no
mais fundo de mim. mas porque me deram também singulares perspectivas
sobre o com portam ento de am.igos muito próxim os perante o drama que v ivi:

274
O r r 7 V K o 7: M r / 7 o I /: M 7" o

não só durante esse drama, mas igualmente perante a sua própria angústia, e
talvez perante o «rumor» público perverso e insistente que foi alimentado à
minha volta p o r certos hom ens dos meios de comunicação, inconscientes ou
desdenhosos do sofrimento e do drama dtts hom ens e que extraíam uma satis­
fação pessoal (não quero saber qual) do facto de alimentarem estes rumores c
as suas perversas ambiguidades.
É preciso também levar em conta as circunstâncias para com preender
certos aspectos do comportamentet dos meus médicos.
Finalmente, depois dos choques e das melhoras que me causaram, o meu
médico aceitou, mas com uma infinita prudência, e passo a passo, que eu
começasse a ter visitas. Primeiro duas, depois três, depois cinco, mas não mais
do que isso, e de amigos dos cjuais ele pudera certificar-se serem absoluta­
mente seguros. Voltei assim a^ver amigos queridos, e duas amigas queridas,
uma das quais teve uma dificuldade dos demetnios em ser admitida e st) o co n ­
seguiu à força de intervenções e de energia. Estas visitas nem sempre eram
para mim absolutamente repousantes: o passado despertava em mim na pre­
sença deles e delas, o m undo exterior e o m edo terrível que me inspirar a
lulguei-me perdido para sempre e o m undo exterior, que não pensava voltar
ver, inspirava-me uma grande angústia). De certa maneira o meu médico
nnha razão: as visitas po d e m reactivar as angústias ou agravá-las. Mas eu não
^onseguia suportar ficar só, velha obsessão que mais tarde causaria em mim
urandes devastações, e suplicara que os meus amigos fossem autorizados a
,;parecer: o meu m édico soube aceitar um compromisso, segundo o qual r ir i
„tc ao fim da m inha estadia em Sainte-Anne.
Mas uma vez pensei em pregar uma rasteira tramada ao meu médico. Dei
1 meu amigo Dominique, que podia sair, uma lista de núm eros de telefone,
cncarregando-o de prevenir assim outros amigos e de lhes marcar os dias c as
.oras em ejue eu desejava vê-los. Ele desem penhou a tarefa. Não sei com o o
- >ube o meu médico, mas vi-o aparecer furioso (pela única vez) no meu
aarto, disse-me que não tinha o direito de convidar assim amigos sem a sua
.uorização, pediu-me o núm ero de telefone deles e prer eniu-os de que não
:cr iam vir. Foi o único m om ento de frieza, de resto rapidamente ultrapassado,
,ic conheci nas minhas relações com ele.

275
i o r i s I / / // r ,s ,v

O tempo passava, eu sentia-me melhor. Fiquei no entanto transtornado


quando soube que a direcção da École, pressionada pelos Domaines m an­
dara, sem me perguntar nada e sem sequer me pre^ eni^, despejar o meu grande
apartamento da rue d T l m , esse apartamento que esta\a tão ligado a toda a
minha vida! (E na altura em que eu estava, do ponto de vista administrativo,
cm regime de simples «baixa por doença», p o dendo portanto voltar para casa
se recuperasse a saúde...) Esta medida feriu-me com o uma condenação ao
internam ento para toda a vida, uma vez que do exterior e apesar dos meus
direitos, «eles» tinham-me, no meu apartamento, ou seja, no meu corpo, lite­
ralmente riscado ptira e simplesmente da existência! Este caso do despejo do
apartamento perseguiu-me durante muito tempo, anos — só agora consegui
habituar-me à ideia.
Transtornou-me também uma (Hitra notícia. Internado adtninistrativamente
po r decisão do prefeito. pri\ ado de todos os meus direitos, que um hom em de
leis passou a representar fiquei nas mãos do prefeito que, com o sempre em
casos de hospitalização prolongada, podia transferir-me, deslocar-me para
outro estabelecimento, 'lãl era ao que parece a regra. Ora estece por muito
tempo em aberto a eventualidade de uma mudança para Carcassone! Imagina­
-se a minha desorientação e a dos meus amigos: como poderia eu então contar
com as visitas deles e com a proximidade da sua presença? Teria sido um
desastre.
Ora a verdade era infinitamente mais terrível, só a conheci nos últimos
meses, c em primeiro lugar da boca do meu médico de Soisy, t]ue me disse
saber do facto pelo meu médico de Sainte-Anne, c|uc acaba de m o cetnfirmar
sem reticências. Os médicos de Sainte-Anne tinham sido na altura objecto de
pressétes «muito insistentes» por parte de «autoridades a d m in istr a tiv a s do
m a is alto nível» no sentido de eu ser internado num «hospital prisional» da
província, «para resctlver definitivamente o caso Althusser», Ora é sabido que
raramente alguém sai destes hospitais prisionais que são muito piores do que
cadeias: em geral fica-se lá a apodrecer para toda a vida. Graças a Deus, os
meus médicos de Sainte-Anne tiveram a coragem (é o termo: eles tinham o

' O r g a n i s m o q u e ctin iro h i os b e n s im o b i l iá ri o s d o Hsuido. (A’, cio T.)

2-’6
/■ r T r R o / M l I 1 O / f 1/ P O

.ürcito m edico a seu favor, mas era preciso ter a simples coragem de o in\a)can
^le me defender dizendo que eu não era nem perigoso nem \'iolemo lo que era
mais do que evidente), c foi assim que pude, sem o saber, escapar à sorte mais
extrema a cjue sem dúvida não teria sobrevi\ádo, ou a que pelo menos não
|socieria ter escapado, por certo para toda a \'ida. Mas é \ erdade que os meus
.iinigos teriam certamente alertado a opinião c que as coisas não se teriam pas-
'.ido com o queria «o mais alto nível». Entretanto tieeram lugar as eleições de
1Õ81 e o ministro da Justiça, meu «colega» da Mormale. foi substituído p(.)r
Hobert Badinter. Os meus amigos respiraram fundo e eu pude ser ene iado para
soisy-sur-Seine.
Todavia os meus médicos ainda não tinham visto o fim dos seus traba-
Õios; eu não queria sair de Sainte-Anne! Resistia ferozmente aos argumentos do
ncu analista que teve de voltar ã carga não sei quantas vezes. ,Sentia-me bas-
inte bem em Sainte-Anne onde, com o tantas vezes no meu passado, fizera a
minha «toca», tinha lá um amigo tiue não queria perder, e alimentava-me da
ida do imenso edifício classificado onde os rostos mudavam sem parar, onde
rranjara um amigo cheio de tacto e de compreensão entre os enfermeiros, um
.ornem das Antilhas, corpulento, sempre franco e de bom humor. Tinha um
_r.mde m edo da mudança, e naturalmente transbordava de argumentos; é \er-
.i.íde ciue conhecia Soisy, mas ficava a quarenta quilômetros de Paris, eomo
' oderia lá ter visitas? O meu analista em vão me dizia — e eu sabia-o por expe-
icncia própria — que seria lá mais bem tratado e estaria mais conforta\el-
'lente instalado, cjue longe de Paris e dos seus riscos poderia. pelo menos no
.rande parcjtie, beneficiar de uma maior liberdade de m o\im entos. que seria
xira ele mais fácil seguir-me, que de resto iria )á ver-me regularmente, eu não
,'.e dava ouvidos. Mantinha-me firmemente decidido: não queria sair de
'.unte-Anne. Mas, no final, com o se tratava dc escolher ou eu pensava que sim,
,ntre Carcassonne e Soisy, acabei por ceder, mas com a morte na alma.
Em Junho de 1981, saí portanto de Sainte-.\nne numa ambulância, Como
.'.edida de precaução, o meu médico anunciara a minha saída para as cinco
iras da tarde, mas a ambulância levou-me às duas horas. Os e\entuais jorna-
'tas e fotógrafos tinham sido fintados.
XX I I

heguei portanto a Soisy, em Junho de 1981, na Primavera, com o imenso


C prado verde ceifado de fresco, semeado de pavilhões brancos entre as
árcores altas. Fui admitido no pavilhão 7, que seria a minha residência até
Julho de 1983-
Não me sentia satisfeito. Uma m udança de sítio, novos médicos e enfer­
meiros. e sobretudo ausência de amigos a dois passos. O choque era brutal.
Precisei de tem po para consentir em aceitar e suportar a minha «transferên­
cia». tem po para me dar conta de que os meus médicos tinham tido razão,
muito tempo na realidade. Porque o m undo dos pacientes era constituído
essencialmente po r «crônicos», infelizes enterrados muitas \ezes para toda a
vida no m esmo quarto e na mesma ruminação, que nunca tinham visitas.
Havia os esquizofrênicos e os delirantes de base, em particular duas mulheres
jovens e miseráveis, uma à procura da Virgem, outra repetindo as mesmas fra­
ses incompreensíveis, e ex-alcoólicos, mas poucos casos agudos, ao passo que
em Sainte-Anne estes últimos eram mais num erosos e com o a maior parte dos
casos agudos recuperava e voltava a partir, havia p o r lá um perpétuo vaivém.
E sobretudo ha\ ia o par ilhão de velhos e velhas senis, lastimáveis, que eram
postos ao sol e lá ficavam, fechados no seu mutismo.
Travei conhecim ento com o jovem e alto m édico encarregado do meu
caso, ejue me trataria até ao fim e continuaria depois a acompanhar-me. Fora
analisado: a sua «escuta» mostrava-o. Mas levei também tem po a habituar-me a
ele, e igualmente aos enfermeiros, que trabalhar am em conjunto segundo os

278
f r 7 r A> o / M r / 7 o 1 7-: \7 7’ o

princípiíjs da «equipa terapêutica», discutiam com o médict) a partir das suas


observações e, sei-o hoje, nem sempre estir eram de acordo com os método-'
do meu médico. Alguns acusavam-no de se ocupar demasiado dc mim c de me
conceder privilégios cjue não concedia aos outros pacientes. Alguns colegas
psitiLiiatras acusaram-no um dia da mesma coisa. F.le reconheceu: F. wrclacic.
não o trato com o os outros. Porcjue o trato em função dc um mesmo principio
que aplico a todos os meus pacientes, trato-cts c dou-lhes segundo o que eles
são, o seu estado, as suas exigências e a sua angústia. Se abstraísse do facto de
que Althusser é um hom em conhecido, sujeito a preocupações ligadas a essa
condição, entre outras a dos inimigos, acho que nisso seria totalmcntc artifi­
cial.» Não é cjue ele me tenha alguma vez concedido tudo o que eu lhe pedia,
muito longe disso, nem que cedesse fosse no que fosse aos pedidos, por \ ezes
exigentes, dos meus amigos, longe disso. Soube sempre manter o rumo cjue
fixara, e soube até ao fim respeitar cscrupulosamente comigo (como com
todos os outros — eu vi-o em acção) o seu princípio que me parece ao mesmo
tempo justo e inatacável.
Começaram p o r me tratar com anafranil. mas sem resultado. A seguir pas­
saram rapidamente para a niamida (imao). H produziu-se o m esmo resultado
que antes. Caí num a grave confusão mental, no onirismo e na perseguição sui-
cidiária, exactamente com o em Montsouris. Não voltarei a falar destes sinto­
mas. Mas eles agravaram-se singularmente quando, à falta de melhor, decidi­
ram duplicar a dose de imao. O resultado tornou-se então catastrófico. |á não
era capaz de com er nem sequer de beber sem vomitar logo a seguir, caía cons­
tantemente, cheguei mesmo a partir um braço, continuava com os meus pesa­
delos despertos durante boa parte do dia, e procurava desesperadamente na
mata vizinha um ramo para me enforcar. Mas onde estava a cordaí' Por precau­
ção tinham-me tirado o cinto do roupão e os atacadores dos sapatos. As noites,
de que eu espera\’a comtj sempre nestes casos um pouco dc tréguas c dc
esquecimento, eram atrozes, tinha a impressão de não ctinseguir dormir, e
além disso sofria muito com os enfermeiros da noite, que deviam dar-mc cer­
tas drogas (mais cloral e coisas piores) às oito horas da noite, mas seguiam
com o a maior parte dos pacientes os programas de televisão, que só abandona­
vam às \ inte e duas horas, portanto cttm duas atrozes horas de atraso para mim

2-9
/. o ( l s A r T H I V V /;

em relação ao horário estabelecido. Foi nesta altura que com preendí que o
médico não tinha um poder absoluto sobre os seus enfermeiros, que tinha que
negociar com eles, ou m esmo fechar os olhos (nunca consegui que mc dessem
a minha droga da noite a horas, excepto uma vez quando um jovem estudante
de medicina muito amável ficou no turno da noite, mas não foi p o r muito
tempo). Cheguei m esmo a pensar, o que era um exagero, que neste serviço,
apesar de muito liberal e bem organizado, e sem dúvida a fo r tio r i noutros ser-
\iços, m enos «avançados», com enfermeiros m enos informados, o médico
estava com frequência subordinado «à ditadura do corpo dos enfermeiros».
Ainda que esta impressão deva ser matizada, acho que contém algo de essen­
cial para a compreensão das relações e da atmosfera que reinam em qualquer
regime de encerram ento psiciuiátrico, K com que efeitos perniciosos!
(guando o meu médico aparecia de m anhã no meu quarto, havia já muito
tempo que eu estava só ã espera dele e agarrar a-me à sua presença atenta. Fazia
um esforço enorm e nessa altura para sair dos meus pesadelos nocturnos, que
persistiam durante a \ igília. contava-lhe em sonhos os meus sonhos pavorosos,
ele ouvia-me. dizia algumas palavras, mas era a sua «escuta» o essencial do que
eu esperav a dele. Por vezes, ele arriscava uma espécie de interpretação sempre
cheia de prudência. Na aparência eu encontrava-me inteiramente submetido ãs
suas palavras, Mas acontecia-me muitas vezes ir ter a seguir com uma enfer­
meira para lhe pôr a seguinte pergunta: «Mas o doutor sabe o tiue está a fazer?
Sabe o ejue está a dizer? » De nov o a dúv ida me inv adia, e também a angústia:
de facto a angústia de estar só, uma vez mais, com o sempre, abandonado,
O meu analista vinha ver-me uma vez p o r semana, aos domingos de
manhã, ao pavilhão quase sem vivalma (só ficava no seu posto uma vigilante
de urgência). Andava sempre às voltas com ele, mas sem nunca mc sentir cul­
pado, em torno da razão profunda do meu assassínio. Lembro-me (já a formti-
lara diante dele em Sainte-Anne) de lhe ter apresentado uma hipótese: o assas­
sínio de Flélène teria sido «um suicídio por pessoa interposta», Ele ouvia-me
sem me aprovar nem desaprovar. Soube mais tarde pelo meu m édico que
o meu analista se encontrava periodicam ente com ele e o apoiava. Já uma
vez. quando eu fora admitido nos serviços de reanimação de Sainte-Anne, o
meu analista, que conseguira, à custa de negociações incríveis, visitar-me

280
o F r 7 r R o t/ r / / o / 7' tí F o

no serviço de cuidados intensicos e falar com o especialisra c|ue me trataxa,


julgara seriamente tjue era o fim, que eu não sobrexix cria fi>icanu-nte à pro\ a^
ção. Foi o único m om ento em cjue dux idou da minha sobrcx i\ cncia, Mas, no
caso de eu sobrexiv'er, ele nunca pòs em causa a minha cura psíquica.
Q uando o meu médico se sentia demasiado incpiicto com a minha surte lo que
por vezes aconteceu), o meu analista apoia\ a-o na icleia de que eu ac.ih.iria por
melhorar — e nunca cedeu. Sem ele o meu médico ter-sc-ia t.ih ez i i-1 resig­
nado definitivamente, e eu poderia ter-me transformado num desses creini-
cos» cuja miséria vitalícia me era dado obserc ar entre os que me rodeax am de
perto.
Os imaos precipitaram-me num tal estado (esqueci exãdentemente tudo
acerca desta fase) que ti\c de dar entrada em Évry para n o \a reanimação. Mas
uma vez mais sai da crise. Os imaos funestos foram suprimidos e eu recompus-
-me lentamente. Cheguei a conhecer em Soisç' um período de excitação, fui
por dois meses para o meu apartamento e, tiuase sem dorm ir como em todos
os estados maníacos por que antes passara, bati à máquina (entre Novembro de
1982 e Fevereiro de 1983) um manuscrito filosófico de duzentas páginas, que
ainda conservo. Não é nada delirante, apenas extremamente descosido. Para
dizer a verdade, exprimia nele pela primeira vez um certo núm ero de idéias
que guardava cuidadosamente na cabeça havia mais de vinte antts, sem as c o n ­
fiar a ninguém, tão importantes me pareciam (!), e que resercuva para uma
publicação futura, no dia em cjue tivessem amadurecido. Fique o leitor descan­
sado: ainda não estão maduras.
Contrariamente ao que temera, recebi inúmeras visitas dos meus amigos;
um por dia. Os meus amigos tinham combinado as coisas entre eles para não
me deixarem nunca sozinho. O que lhes devo! E preciso dizer cpie na realidade
eu exigí imperiosamente, tiranicamente, estas visitas, tanto do médico como
deles. O meu médico com preendeu a importância que tinham para mim. e
não sendo as condições de vida em Soisy as mesmas cpie em sainte-Anne.
.lutorizou-as com largueza. Passaxa assim longas tardes na companhia de ami­
gos e de amigas. O que contava era a sua presença. Assim, uma amiga tricotaxa
im silêncio à minha cabeceira, outra chegax a com um lix ro para ler. Eu supor­
tava muito bem o seu silencio, uma vez que já não ficaxui sozinho, Mas por que

281
l o l 1 s .1 /, 7 n l S V R R

cni f u tão exigente, tão tirânieo (sim, no sentido próprio) em matéria de visi­
tas? Sem dúvida por causa da «omnipotêneia da depressão», e também porque
podia exercer essa «omnipotêneia» para pôr provisoriamente fim à angústia da
solidão, do abandono, que me sufocava tão intensamente, Q uando alguém fal­
tara, quando acontecia t[ue um amigo ou uma amiga me desse a impressão de
um abandono, recaía num a forma de depressão agravada.
Foi o que me aconteceu no com eço de 1983. quando consegui passar
várias semanas no meu apartamento. Não sozinho, claro: os meus amigos, por
ordem taxativa do meu médico que insistia nessa cautela (uma rez tiue eu lhe
falara em me atirar do sexto andar), assistiram-me dia e noite. Mas a impressão
de ser abandonado voltou a precipitar-me num a depressão extrema tiue obri­
gou o meu médico a hospitalizar-me de novo. Começou então a dar-me \áva-
lan. tjue causaria lentamente meias-melhoras, conduzindo à minha saída muito
precária do hospital em ju lh o de 1983. para umas férias de campo no Leste do
país.
Mas entretanto tinham-se passado tantas coisas! A impressão do meu
medico (confiou-mo mais tarde) era tiue eu tinha estado tanto tempo e tão gra-
rem ente doente, tão desamparado, que nunca mais me livraria daciuilo, que
nunca mais podería sair da segurança e da protecção do hospital. Era esse o
seu maior medo. Mas soube «aguentar», tal era a única linha fundamental que
rapidamente fixara para si mesmo, «aguentar» acom panhando todas as infle­
xões do meu mal. mas m antendo sempre o mesmo rumo. Contudo as coisas
não foram nada sim]tlcs para ele, fazendo eu pelo contrário todos os possíveis
para as complicar.
Tinha um m edo atroz do m undo exterior. Não tanto das interpretações ou
intervenções maldosas que eram a obsessão dos meus médicos e enfermeiros
(quando em Soisy a cjuestão não se punha) e que o m eu médico continuou a
recear por mim depois de pelo meu lado eu ter deixado de lhes ser sensível,
mas da própria realidade do m undo exterior, cjiie eu considerava definitiva­
mente fora do meu alcance. Durante muito tem po esta angústia assumiu uma
forma precisa. Todas as minhas coisas tinham então sido mudadas (os meus
amigos passaram nisso dias inteiros) da École para um apartamento do xx
bairro que comprara com Hélène para quando me reformasse. Os meus amigos

282
/•■ r T V R o M r / / o 7 /: .1/ P

tinham-me descrito o estado da casa: um tal amontoado de caixotes de li\‘ros


que era praicamente impossível entrar no apartamento. Que ha\ ia eu de fazer:"
Não só pensava que nunca mais poderia sair do hospital e ter de n o \o acesso
ao m undo exterior, como, ainda que lhe conseguisse ter acesso, não poderia
entrar no meu apartamento. Decidiu-se c]ue eu iria lá dar uma olhadela. I ni
enfermeiro de quem eu gostava muito levou-me lá um dia na carrinha do hos­
pital. Fiquei aterrado ao avistar o amontoado dos caixotes até ao tecto e
recusei-me a entrar. Levei comigo esse terror que então não dei.xaria de me
atormentar, não sob a forma vazia do possível, mas sob uma forma terrivel­
mente concreta. Decididamente, estava lixado.
Foi então que o meu m édico imaginou aciuilo a que mais tarde chamaria
«soluções rocambolescas» e em particular a seguinte, um verdadeiro jogo
«burocrático-médico» absurdo: a carrinha do hospital iria buscar os meus cai­
xotes de livros, que seriam descarregados num átrio vazio do hospital, eu sepa­
raria os meus livros, que seriam levados a seguir para minha casa e arrumados
nas estantes. Mas as estantes, onde as arranjar? Três dos meus amigos ofereceram­
-se então para m ontarem em minha casa conjuntos de estantes escolhidas ao
acaso e compradas no Bazar do Hôtel-de-Ville, que transportaram desmontadas
de metro! Nem por isso fiquei melhor. Quem escolhería os meus livros senão
eu, que me sentia totalmente incapaz de o fazer? Todo o projecto vacilava na
minha cabeça. Sem me dizerem nada, os meus amigos montaram as estantes,
empilharam nelas o m elhor possível todos os meus liv ros e um dia v icram dar­
-me a notícia: quando quisesse, já podia finalmente entrar no meu apartamento.
De facto fui capaz de o fazer, com o já disse, no decorrer da minha primeira
«saída», em Novxmbro-Dezembro de 1982. essa saída que terminaria tão mal.
.Mas não fui capaz de encontrar nenhum dos livros que queria; portanto tinha
que me p ô r a arrumá-los, e com o realizar essa tarefa infinita'" l inha milhares
de livTos dos quais só lera algumas centenas, adiando a sua leitura (imaginária)
para tempos melhores. Fiquei de novo cheio de terror. .Mas a prova de que é
possív'el viver na com panhia de livros desarrumados é de facto que, até hoje,
ainda não consegui arrtimá-kts de maneira a saber onde estão, cxcepto uns tan­
tos, e bem vistas as coisas não me dou nada mal com essa barafunda. Mais uma
prova de que tudo «acontece na cabeça».

283
/. o 1 1 s ,1 i 1 H I S S /: R

Mas isto não era ainda o pior. E aqui chego a qualquer coisa que é ao
mesmo tempo terrivelmente determinada mas também extremamente singular,
('ertamente, vi\ i a minha hospitalização como sempre vivera as minhas hospi­
talizações anteriores: com o um refúgio quase absoluto contra as angústias do
m undo exterior. Estaca ali com o num a fortaleza, fechado na sua solidão por
muros insondáw is: os da minha angústia, e com o sair deles? O meu médlctt
sentia-o muito bem e, com preendendo, entrac a assim no meu jogo: no jogo da
minha angústia, e ficava ele próprio, por contágio, angustiado, tal como os
enfermeiros a quem eu não paraca de com unicar a minha angústia. Lembro­
-me até de um dia em que fiz ao meu m édico a terrível pergunta pensando
muito precisamente num a amiga cuja base do pescoço contemplara um dia
com pavor interrogando-me com angústia: e se eu recomeçasse (a estrangular
uma mullter)? O meu médico sossegara-me: claro tjue não!, sem me dar mais
nenhum a razão. Mas soube mais tarde tjue as enfermeiras tinham medo, depois
do cair da noite, de entrar sozinhas ik ) meu quarto, m edo de t]ue eu me ati­
rasse a elas e as estrangulasse... com o se tivessem «captado» o meu terrível
desejo e m o lc id o em angústia, ,Se falo deste contágio, é porque o encerra­
mento o prococa dc m odo inevitável. angústia do paciente, do médico, dos
enfermeiros e dos amigcjs dc \ isita comunica-se e comunicou-se tão bem,
redobrando de efeitos, que o meu médico se \ iu \ árias vezes em situação crí­
tica, senão relatie amente aos seus enfermeiros (nunca me falou disso) pelo
menos diante dos meus amigos, que deram por isso. Com o é cjue o médico
pode então escapar a este jogo de angústias múltiplas, em que ele é ao mesmo
tempo causa e consequência? Condição extraordinariamente difícil, que só se
pode resolver por meio de compromissos. O meu médico soube descobri-los.
mas não sem efeitos secundários.
Creio pcjder situar exactamente o lugar do principal destes efeitos secun­
dários: diz respeito ã «natureza» ao mesmo tem po objectiva e fantasmática da
«fortaleza» que eu vi\ ia com o protecção e refúgio contra a angústia do c o n ­
tacto impossível com o m undo exterior. Ora esse m undo exterior não existia
apenas no meu fantasma: era-me de facto trazido todos os dias pelos meus
amigos que chegavam do m undo exterior e a ele voltavam todos os dias. Vou
dar um único exemplo: Eoucault veio pessoalmente visitar-me duas vezes, e

284
/-’ r 7’ r o / M f I 7 o 7 77 M /> O

lembro-me que era duas ocasiões falámos de tudo o que se pa-^aN a no mundo
intelectual, com o eu fazia praticamente com tacini os meus amigos, das purso-
nagens que o povoam, dos seus projectos, obras c contiuos, Pa sjtuaç.lo polí­
tica. Eu era então perfeitameníe «normal», cstae a pcrfeitamentc ,io corrente de
tudo, as minhas idéias voltavam, dcv'oivia por \ezes com malicn, .i boLi ,i 1ou -
cault, que voltou para casa convencido de que eu esta', a h.rt.mtc bem \oaitra
ocasiãe), Cjuando ele me foi ver, eu estava na companhi.t do padre Breton
Instaurou-se então entre eles, sob a minha própria arbitragem e egide, uma
extraordinária troca de idéias e de experiências que nunca na minri.i \ ida
cseiuecerei. Foucault 1'ahna das suas incestigações sobre os oaiores do. sristia
nismo do século I\ , c fazia a seguinte obsercação da maior importância se ,i
Igreja colocara sempre muito alto o amor, destonfiara sempre \i\a m e n ie da
amizade, tiuc os filósofos clássicos e sobretucU) Epicuro colocaram pelo c o n ­
trário no centro da sua ética concreta, Naturalmentc, clc. homossexual, não
podia [deixar de| aproximar a repulsa da Igreja pela amizade da repulsa, quer
elizer (outra ambivalência ainda), da predilecção de todo o aparelho da igreja
e da r ida monástica pela homossexualidade. Foi então tjue, de maneira assom-
brí)sa. o padre Breton interreio, não para lhe dar referências teológicas, mas
para lhe com unicar a sua experiência pessoal. 'Fendo nascido sem conhecer os
pais, recolhido pelo padre C[ue, notando a sua vir acidade de espírito, o inscre­
vera no seminário de Agen, tinha feito ;ií uma parte dos seus estudos secundá­
rios. Filtrou aos quinze anos no noviciado, ler ando por lá a r itht clieia da aus
íeridade de um monge — impessoalidade sem mim (não sendo Cristo uma
pessoa, mas um impessoal sulrsumido no \crbo). r ida composta de obserr án-
cias estritas. Por obediência, esquecia o seu eu [no| superior: regra pensara
por nós. e é porque pensaram por nós tiue todo o pensam ento pessoal se torna
um pecado de orgullio.» Só mais tarde, dada a erolucão dos costumes, se p ro ­
curou respeitar um bocadinlio mais, a faror daquilo a que se chamar a o perso­
nalismo cristão, a originalidade de cada um. mas ainda assim uma medida
limitadíssima! .Neste sentido. Breton, retomando uma expressão de foucault,
dizia que «o hom em era uma descoberta muito recente nos conr entos. Breton
não ter e um único amigo na sua \ ida. contm uattdo a arntzade a ser suspeita
por degenerar em amizade particular, forma la n a r de homossexualidade:

285
/, o r / ,s 7 H I' S S li R

existia efectivamente na Igreja uma atracção recalcada pela homossexualidade,


que SC explica pela exclusão das mulheres. Nunca se tcria insistido tanto no
perigo das amizades particulares se a homossexualidade não tivesse sido um
perigo e uma tentação constante. As amizades particulares eram a obsessão dos
superiores, o terror de um mal espalhado p o r toda a parte. Além disso existiam
tantos casos de padres, de santos até, que sentiam horror pelas mulheres, de
onde o seu instinto de pureza, porque a m ulher é um ser sujo, numerosos
padres julgavam recusar a impureza recusando a m ulher e «compensando-se
com o rapaz». Como esse padre cheio de santidade que cumpria fielmente
todas as observàncias, dizia a sua missa, e que tinha um pequeno acétlito deli­
cioso que um dia depois da missa chamou à sacristia, para lhe abrir a braguilha
e cortar alguns pêlos do púbis guardando-os num a espécie de relicário (cáp­
sula onde se punha a hóstia). A amizade nestes casos é sempre suspeita e
compreendia-se o que Foucault dizia. () am or era uma maneira de fugir da
amizade, sobretudo no sentido mais lato do termo, quando se dirige tanto ao
mais distante com o ao mais próximo.
H eu ali estava, entre eles os dois. a ouvir Foucault e o padre Breton.
tom ando parte na conversa deles, que já nada tinha a \ e r com o hospital e a
sua fortaleza, muito longe da minha angústia de enclausuramento e de protec­
ção. Era assim com todos os m eus am igos, que me permitiam viver em espí­
rito e converstis fora da famosa «segurança» carcerária, realmente no m undo
exterior.
Evidentemente, o meu m édico não tinha um verdadeiro conhecim ento
deste aspecto da minha vida; eu não Iho confiava. Confiava-lhe apenas a
minha angústia. E foi a partir dela que construiu a sua concepção do meu
enclausuramento na fortaleza do hospital. Poderei dizer que no limite ele
estava muito mais fixado e angustiado do c]ue eu por essa obsessão do enclau­
suramento e do meu terror do m undo exterior? Recentemente, falei muito com
ele destas coisas do passado e dei-me conta de cjue ele devia ter projectado a
sua própria angústia sobre mim, a prtir dos indícios da minha, atribuindo-me
assim as formas radicais da sua própria angústia. Sem dúvida, sentia-me per­
dido para sempre, mas não era tanto po r causa do meu terror do m undo exte­
rior com o por outras razões mais profundas, que vou explicar.

286
F I I r R o M l I I o / /:' M P O

Mas antes, gostaria de insistir nos danos que pro\oca. por si so, a institui­
ção psiquiátrica. E um facto bem conhecido que numerosos (.iocnte^. atingidos
por uma crise aguda, portanto transitória, c que são lançado^ compulsiva e
como que mecanicam ente no internamenut psiquiátrico, podem tornar-se. por
acção das drogas e do cnclausuramento, «crtánicos . \ erdadeiro'' doentes m en ­
tais, incapazes de voltarem a sair do recinto do hospital Fste efeito e bem
conhecido por todos os C[ue tentam eliminar o mecanismo da hospitaliz.icão e
lhe preferem intervenções ambulatórias, ou o hospital de dra. ou o dispensá­
rio, etc. Tal é o sentido profundo da reforma realizada lou antes, adiogaclai em
Itália pt)r Basaglia. O que Basaglia queria era presen ar tanto os casos agutlos
como os «tornados crônicos» dos malefícios mecânicos do internamento
fechando os hospitais psiquiátricos e confiando os doentes ou a clínicas, ou a
famílias vaduntárias. Naturalmente, esta reforma só podia ser concehicla num
período de grandes movimentos populares, com o auxílio dos sindicatos e dos
partidos operários. Em França é dificilmente concebível, dadas as constantes
de uma mentalidade repressiva. Na própria Itália, com o se sabe, a reforma
Basaglia foi literalmente um fracasso. Que fazer pois para arrancar os doentes
,io inferno das determinações conjuntas de todos os AlH em causa?
Mas o que já é menos sabido, menos conhecido, são os efeitos do interna­
mento psiquiátrico sobre os próprios médicos, sobre a sua representação dos seus
doentes e das angtástias dos seus doentes. É impressionante que. no meu caso.
o médico mais bem intencionado do m undo e também o mais bem armado para
.1 «escuta» do seu paciente tenha projcctado sobre ele (eu) a sua própria angústia
da «fortaleza» total, e em prte se tenha enganado, por força dessa projecção e con­
fusão. sobre o c|ue se passava efectivamente em mim. Não era tanto o mundo exte­
rior cjue fixava e provocava a minha angústia mas o intenso terror de lã estar íh'k
abandonado, de ser impotente para resolv er fosse que dificuldade fosse, a minha
impotência para ser, para muito simplesmente existir. Ao passo que a atenção do
meu médico se fixavai assim numa angústia determinada que ele me atribuía mais
d(.) que a observava em mim, deslocando-a assim do seu ohjecto». ou antes, da
.lusència de qualcjuer ohjecto. da perda de qualquer «ohjecto » sobre a figuração
c a representação da sua própria angústia projectada em mim. desenvolvia-se em
mim uma «dialéctica» completamente diferente: a do «luto».

28"
/, o / / V A i 1 // r ,v ,v /; A’

Di\'crsos amigos mc referiram os mesmos factos, qual deles mais descon­


certante do c]ue o anterior. Durante todo um período, interminável, eu «per­
dia» tudo: o meu rttupão, os meus sapatos, as minhas meias, os meus óetilos.
o meu lápis, as minhas camisolas, a chace do meu armário, a minha agenda,
que sei eii: tudo. \fcjo hem agora a significação inconsciente deste estranho
comportamento, incidindo em objectos-o/a/ecf/ros. Era a «cunhagem» de uma
outra perda, inconsciente, a perda do objecto-ohjectal. quer dizer, interna, a
perda do ser amado, de Biélcne. que rcacticava uma outra perda ainda, mais
inaugural, a da minha mãe. A perda matricial do objecto-objectal, interno,
cunhava-se assim inconscientemente no mecanismo repetitivo até ao infinito
de objectos-objecticos discretos. Como se. perdendo o objecto-objectal cjue
governaca todos os meus investimentos, perdendo a matriz inconsciente de
todos os meus investimentos, eu perdesse no mesmo acto toda a capacidade
de investimento dos objectos-objectivos discretos, e até ao infinito. Perdia
tudo porque perdera o Totlo da minha vida, e vivia o Itito. Este processo de
perda até ao infinito era o trabalho psíquico cio luto. o trabalho da perda e
sobre a perda do objecto-objectal inaugural.
E durante o mesmo período estava doente de todo o meu corpo: os
olhos, os ouvidos, o coração, o esôfago, o intestino, as pernas, os pés, que sei
eu? Perdia propriamente o meu corpo nas afecções cie um ma! universal que
me ampulavat do seu uso-, voltava a cair assim no meu «corpo fragmentado».
Contudo linha um outro comportamento, ao mesmo tempo estranho mas
significativo. Iodos os meus amigos ciuc me viram nessa altura confirmaram o
facto cie maneira impressionante. Dirigia-lhes durante o tem po todo discursos
suiciclários. Com um deles, durante uma tarde inteira, investiguei as diferentes
maneiras de me matar, desde os mais velhos exemplos clássicos da .-Viitigui-
dacle, c acabei por lhe pedir insistentemente que me arranjasse um revólver.
Cheguei a perguntar-lhe com insistência: «Mas tu, tu existes}'» Mas ao mesmo
tempo, e sobretudo, não me cansava de d estru ir — o termo é importante —
cjualquer perspectiva de sair do estado miserável a c]ue me sentia reduzido.
Não estava de maneira nenhum a privado de recursos de argumentação, muito
pelo contrário, ao que parece era implacável nos meus raciocínios, e passei o
meu tempo a d e m o n stra r aos meus interlocutores a inutilidade absoluta de

288
/ r / r A’ o 1/ /' / / o 7 A .1/ 7'

qualquer recurso, fisiológico, neurológico, químico, psiquiátrico e psicanalí-


tico, sobretudo psicanalítico. Demonstrava, com argumentos de caracter filo-
^ófico, as limitações absolutas de qualtjuer forma de intenençãtt. o seu carac­
ter arbitrário e no fundo totalmente fútil. pelo menos no meu caso». Os meus
interlocutores já não conseguiam dizer-me mais nada. acaba\am por se calar,
incluindo os mais batidos na «dialéctica» da discussão filosófica (e muitas
\ezes tinha pela frente fikásofos de grande talento), iam-sc embora totalmente
desesperados e desamparados. Telefonavam depois uns aos outros, mas era
para constararem entre eles que não havia nada a fazer, era assim, eu estava
perdido. Que poderia eu «visar» de facto através destas demonstrações que
eram com o outras tantas proc as de força das quais saía invariat elmentc \ encc-
dor? Na destruição da existência de outrem, na refutação implacáccT de todas
as formas de socorro, de apoio e de razão que tentavam oferecer-me, o que eu
procurava era evidentemente a p ro va , a contra-prova da m in h a p ró p ria des­
truição ohjectiva, a p ro v a da m in h a não-exi.stência. a pro\'a de que estava
deveras já m orto para a vida. para toda a esperança de vida. e de salvação. De
facto, nesta provação e prova, procurava dem onstrar a mim próprio a minha
própria e radical impossibilidade de salvação, p o rta n to a )}iinha p ró p ria
)norte. alcançando assim, por outros caminhos, a minha vontade eje me matar,
,i minha vontade de me destruir. jMas a destruição de mim próprio passava sim­
bolicamente pela destruição dos otitros e antes do mais dos meus amigos mais
queridos e mais chegados, incluindo a m ulher c[ue mais amava.
Era realmente o «trabalho do luto», o trabalho da destruição de si. o tra­
balho a partir da destruição de si, po r ocasião da destruição de ITclène que era
obra minha. E não apenas a destruição de Hélène. L m dia, recebi a visita de
um amigo analista que conhecia de longa data: comuniquei-lhe as minhas
angústias e a minha eterna pergunta: mas o que se passou então no assassinato
de Ilélène? Para minha grande surpresa, numa interpretação por certo um
tanto «selvagem», pelo menos na forma, ele disse-me que através de Hélène eu
quisera inconscientemente matar o meu próprio analista, Não me dera conta
disso e fiquei extremamente surpreendido, incrédulo. Mas. de facto, a destrui­
ção que eu operava e radicalmente na altura de toda a realidade da psicanálise
orientav"a-se no mesmo sentido. E eu teria p(.)dido verificá-lo. se o suspeitasse

289
/. o r / V / / n r S t:

então minimamente, na iniciativa que lewi então bastante longe de me desem ­


baraçar precisamente do meu analista abandonandt)-o para escolher um outro
analista, justamente uma analista de origem polaco-russa (como Hélène) de
que me htn iam falado. Tudo se passou pelo telefone e por intermédio de ami­
gos que me serviram de cúmplices. Cheguei mesmo a falar uma \ e/ do tissunto
;io meu analista que me disse que eu tinha o direito de decidir com toda a
liberdade, e que não levantou quakiuer objecção ao meit projecto. Nem eu
esperaca outra coisa! Mas o caso arrastou-se. eu quase não tinha possibilidade
de sair tkt hospital para uma entre\ ista tão distante, e acabei por nã<! dar conti­
nuidade a esse projecto apesar de tão radiealmente o ter meditado.
Hoje lenho m otiros para pensar que tudo estava iniimaniente ligado: a
perda do objecto-objectal. cunhada na perda de inumeráveis objectos-
-objectiros reais, como a minha hipocondria generalizada re\ ehi\am-se ao
mesmo tempo como sendo a vontade de perder tudo e de tudo destruir.
Hélène, os meus li\ ros, as minhas razétes tie \ i\ er. a Hcole, o meu analista e eu
próprio, O que recentemente me alertou para este ponto, e na prática me inci­
tou a escrew r este lirrinho. foram as pala\ ras dessa anitga de tjuem gostaxa
tanto. .Muito retcntem ente ela que nunca rne fizera a mínima censura, nem
sequer confessara o (,|ue no fumio pensas a de mim declarou-me como tjue
por instinto; «Do que não gosto em ti é da tua \ontadc tie le destruíres.» Tstas
palavras abriram-me os olhos e reaMvaram toda a mem ória destes tempos difí­
ceis. De íacio, eu queria destruir tudo. os meus lit ros. Hélène que matara, o
meu analista, mas para ficar bem certo de me destruir a mim prétprio, como
o fantasmava nos meus projectos de suicídio. H porquê essa to n ta d e encarni­
çada de autodestruição? Fortiuè senão por no fundo de mim, inconsciente­
mente (e tratava-se de uma inconsciência cunhada em raciocínios interminá-
\eis). eu tiuerer a todo o custo destruir-we porque, desde sempre, não existia':'
Haverá m elhor p ro v a de não existir do que extrair a conclusão do facto
destru in d o -m e depois de ter destruído k .k I o s os meus próximos, todos os
meus apoios, todos os meus recursos?
Foi então ciue me ocorreu o penstimento, uma \ez que descobrira apesar
de tudo maneira de existir, como professor, filéxsofo e político, que voltava a
manifestar-se em mim. a favor da terrível angústia primitiva da depressão, na

290
/•■ r / r R o M l I I o 1 I M R D

prodigiosa regressão que nela \ ivia, a velha compulsão inaugural, tantas \ezes
repetida (cf. o episódio da carabina), sob tantas form as, de tjuc eu não era mais
do que uma existência de artifícios e de imposturas, cjtier dizer, afinal nada de
autêntico, portanto nada de verdadeiro nem de real. li de que a morte e'ta\ a
inscrita em mim desde os primórdios: a morte desse l.ouis. morto atr.is rie
mim, c[Lie o olhar da minha mãe fixava através de mim, condettam.!o-me a essa
morte c|ue ele conhecera no céu alto de Verdun e que ela não parae a de repetir
compulsivamente na sua alma e na repulsa desse desejo que eu não parara de
realizar.
Foi então que compreendi (e acabo de o com preender a partir das pala­
vras tão elarivident.es da minha amiga) que o luto que eu vivia de Hélène. não
era desde a m orte (a destruição de Hélène) que o vivia e trabalhava sobre ele
mas desde sempre. De facto. sempre estivera de luto jsor mim próprio, pela
minha própria morte po r mãe e mulheres interpostas. Como prova tangív el tie
não existir, quisera desesjacradamcnte destruir todas as provas da minha exis­

tência. não só de Hélène, a prova mais alta, mas também as provas secundárias,
.1 minha obra, o meu analista e por fim eu próprio, lodavia não notara que
abria neste massacre geral uma excepção: a dessa amiga que me abriria os
olhos dizendo-me muito recentemente que aquilo de t|ue não gostava cm mitn
era da minha vontade de me destruir. Não se trata por certo de um acaso: a tal
jsonto tentara amá-la de maneira compictamente diferente da das mulheres do
meu passado, ela. na minha vida. a única excepção.
Sim, nunca deixara desde sempre de estar de luto por mim próprio e foi
'c m dúvida esse luto que viv i nas minhas estranhas depressões regressiv as ciue
:iã(.) eram verdadeiras crises de melancolia, mas uma maneira contraditória ele
morrer para o m undo no exercício da omnipoténcia. a mesma omnipoténcia
que me apanhava nas minhas fases de hipomania. Impotência total para ser
gual a omnipoténcia sobre tudo. Sempre a ternvel amhh alencia, cujo equiva-
ente se encontra aliás na mística cristã medieval: tntum = u ib il
Poderei passar em claro a continuação' ,\ão interessa a ninguém. ,\Ias
.om p re e n d o agora <.) sentido das transformações que sc produziram em mim;
,mi todas no sentido da (re)iomada em mãos da minha própria existência. Isso
.om eçou antes do mais pela iniciativa que assumi de chamar o meu «advogado»

291
i o r I s T H l S V K

para libertar um sindicalista do que pensei ser um encarceramento político (o


PC). Dessa diligência, o meu m édico nunca soube n a d a . Em seguida quando
pedi ao meu médico que me receitasse uma nova droga, o upsene, que de facto
me fez bem. Saí de Soisy em Julho de 1983, e passei umas férias difíceis na
casa de campo de amigos muito chegados no leste, mas não esta\a nada
robusto. Consegui aguentar-me e o meu m édico assumiu o risco (considerável)
de não me re-hospitalizar por altura do meu regresso, em Setembro de 1983.
Os meus amigos organizaram uma espécie de vigilância de noite e de dia à
minha volta, no meu apartamento. Ciraças a eles acahei por me hahituar à
minha nova morada, que deixou de me meter medo. Desde então, confinei
deliheradamente o meu analista ao seu papel de analista, sem lhe pedir mais
serviços de psiquiatria ou sequer de médico. Desde então, retomei pouco a
pouco a responsalulidade das minhas coisas, das minhas amizades e das
minhas afeições. Desde então, julgo ter aprendick) o que é amar: ser capaz,
não de ter essas iniciati\as de auto-exacerhação e de «exagero», mas de estar
atento ao outro, respeitar o seu desejo e os seus ritmos, nada pedir mas apren­
der a receber cada dádi\ a como uma surpresa da vida, e ser capaz, sem qual-
t]uer pretensão, quer da mesma dádiva quer da mesma surpresa em relação ao
outro, sem lhe infligir a mínima \ iolència. Em suma a simples liberdade. Por
que é que Cézanne pintou cada instante da montanha Sainte-Victoire? Porque
é uma dádiva a luz de cada instante.
Assim, a \ ida pode ainda, apesar dos seus dramas, ser bela. Tenho setenta
e sete anos, mas sinto-me finalmente, eu cjue não tive juventude, porque não
fui amado por mim próprio, sinto-me jovem com o nunca, ainda c]ue a história
em breve tenha cpie acabar.
Sim. o futuro é muito tempo.

29Í
XXI I I

m velho amigo médico que nos conhecia ha\ ia muito, a Hclcne c a mim.
U Mostro-lhe este texto. E muito naturalmente favo-lhe a pergunta;
«Que SC terá passado então nesse domingo J6 de Novembro entre mim e
Hélène, para acabar naquele assassínio medonho?»
Eis a sua resposta, exactamente tal com o ma deu;
«Eu diria tjue se verificou uma sobreposição de factos puram ente aciden­
tais quanto a uns, não fortuitos quanto aos outros, cuja conjunção era total­
mente imprevisível e teria podido ser muito facilmente evitada sem grande
esforço justamente se...
«A meu ver três factos dom inam a situação:
«1. Por um lado, como comprovaram os três médicos especialistas, tu
estavas em “estado de dem ência" e portanto de irresponsabilidade: confusão
mental, onirismo, ficaste totalmente inconsciente antes e durante o acto, na
base de uma crise de melancolia aguda, logo. não responsáv el pelos teus actos.
Daí a inimputahilidade, regulamentar em tais casos.
«2 . 'SVàü, p o r outro lado. houve uma coisa que impressionou no local os
investigadores da polícia: não havia o m enor sinal de desordem nem ntts vos­
sos dois quartos, nem na tua cama. nem nas roupas de Hélène.

' Fste capimlo, niimeniclo a seguir aos oucr(,)s. tora igualnunie inritulado pelo auto r iDifiroce-
LÍencia. (.V, d o fnw cès)

293
/. o r / V .1 L T H r ,S ,S A’

«A hist(3ria da ‘cobcTta” que teria protegido o pescoço de Hélène d( -


sinais visíveis de estrangulamento era uma hipótese de jornalista, destinarl
justamente a tentar explicar a ausência de vestígios externos de estrangul.;
mento. (3ra esta hipótese, que de resto só aparece num artigo isolado, e é rejc
tacla por váritjs outros, foi formalmente desmentida pelo inquérito. Não h a \ ;
cpiakiuer sinal exterior de estrangulamento na pele do pescoço de Hélène
«3. F inalm ente vocês estavam os dois sozinhos no apartamento, não ^
hav ia uns dez dias, mas tamhém nessa manhã.
«Evidentemente, não havia ninguém para intervir, Mas mais ainda: ]vi
uma razão ou outra. Hélène não eshoçou o mais pequeno gesto de clefcv
.Alguém, não sem razão, fez notar o seguinte: no estado de confusão e
inconsciência em que te encontravas (e tah e z tamhém soh o efeito nefasto d^ '
imaos, na sequência do "chociue biológico” cjue produziu em ti efeitos 'in\ c'
tidos” ), teria sem dúvida bastado que Hélène te desse uma boa bofetada >
fizesse um gesto sério para te arrancar à tua inconsciência, ou pelo m enos p.i;
travar os teus próprios gestos inconscientes. Então todo o curso do drama ter
podid o ser diferente. Ora ela nada fez.
«Quererá isto dizer que ela v iu chegar a morte que desejav a receber dc
e se deixou matar passivamente? Não é de excluir.
«Quererá dizer pelo contrário que nada receou do teu gesto benfazejo c.,
massagem, a que se acostumara de longa data? — não te esqueças de que.
te derm os crédito, nunca antes a massajaras no pescoço, mas na nuca —
algo que também não podem os excluir, Como sabes (e todos os anatomista^
também as artes de combate e os bandidos assassinos o sabem perfeitamenx
o pescoço é de unvA fra g ilid a d e extrem a: basta um choque muito leve p.v; .
quebrar cartilagens e ossículos. c segue-se a morte.
«No fundo, Hélène teria um desejo de acabar com a vida (havia mai'' .. .
um mês que não parava de falar em matar-se mas tu sabia-la incapaz de o faze:
aceitando passivamente das tuas mãos a morte que te suplicara que lhe des^c-
Também não o podem os excluir.
«Ou terias tu, como durante toda a tua vida, um tal desejo de a soconv:
de auxiliar o seu desejo mais intenso, mais desarmado, que realizaste, incor.-
cientemente, o seu desejo de acabar com a vida? Caso dat|uilo a que se chan

29 - t
o /• r i r R o M i / / o 1 t i; /-> o

i "suicídio po r pessoa intcrpt)sta" ou o "suicídio altruísta", o bscnando-sc


rrcquentemente em casos de melancolia aguda com o o teu!' lambéni não o
oodemos excluir.
«Mas com o escolher entre estas hipóteses?
«Nesta ordem de idéias, tudo c concebível, ou quase, Mas s(.>bre este pano
ãe fundo da coisa, nunca saberemos nada de absoliitam eu te seguro, tão múlti­
plos são os elementos acumulados no desencadear do drama, subjecti'. amenic
ointplexos e indecidíveis, e objeciivamente em grande parte aleatórios,
«Que se teria passtido com efeito se, por exemplo — c isto é perteitamentc
hjectivo! —. Hélènc não ticesse implorado ao teu analista, que queria
,ospitalizar-te imediatamente, tjue lhe concedesse uma nntratória de très dias
:e "reflexão"? Por tjue é t]ue no fundo de si própria suplicou ao teu analista
,.ue lhe concedesse essa moratória? E sobretudo, sobretudo, que teria aconte-
o d o se a carta expresso do teu analista, metida no correio na sexta-feira I t às
!'i horas e pedindo a Ht^lène que lhe telefonasse com a m á x im a urgência, para
'rovocar a hospitalização im ediata apesar do pedido de adiamento dela, tivesse
.negado à Ecole não na segunda-feira l"’, depois do drama, mas digamos que
,.i noite de ia ou no sábado de manhã, di:i 15 às nove horas? Pro\a\elm ente
■uraso não se deve aos correios. Mas o porteiro da Escola, tjue recebe o cor-
xio. cartas e pneumáticos, não conseguiu evidentemente falar contigo pelo tele-
nc interno nem fazer com que lhe abrisses a porta tocando à campainha, p o r ­
. .ic havia peht menos dez dias — todos os teus amigos o testemunharam
nicluindo aqueles c|ue gostariam de ter "forçado a tua porta") c|ue tu não res-
' índias nem ao telefone, nem ã campainha da porta? Se por milagre ou excep-
,?o ti\ esses atendido o telefone ou aberto a porta, Hélène teria recebido a carta-
xpresso do teu analista e. se o quisesse, teria podido ligar para o teu analista:
identemente c sem contestação possícel, tudo teria sido diferente.
«.No \o sso drama, o im ponderãw l objecti\a> e não fantaemaolcu está pre-
,nte do princípitt até ao fim. até ao último momento
«Tudo (.) que se pode dizer é que. sc desprezarm os este- numeroso-
oponderãveis — mas com o abstrair deles!' — . Hélene tena aceitado .t morte
.m fazer um gesto para a impedir e se defender dela, como se desejasse a
' Tte, ou recebé-la das tuas pnàprias tnãos.

29 ó
L O ( / V ,4 /. 7 H I S ,S 7: 77

«O que também se pode dizer é que tu, que lhe deste sem dúvida a morte
tah ez querendo apenas massajá-la com cuidado, uma vez que não se observ i .
cjLialciuer sinal externo de estrangulamento, terás querido realizar o teu descí
de m orte e, ao mesnitt tempo que lhe prestavas o imenso serv iço de a mat„
em lugar dela (porque ela era realmentc incapaz de se matar), terás ao mesni
tem po ciuerido realizar inconscientemente o teu próprio desejo de autodc'
truição através da morte da pessoa que mais acreditav a em ti, para ficares ber.
certo de não seres senão essa personagem de artifícios e de imposturas t|u.
sempre te obsidiou. De facto a m elhor prova que podem os dar-nos de n.í
existir é destruirmo-nos a nós próprios destruindo aquela que nos ama .
acima de tudo acredita na nossa e x istên c ia .
«Sei que há-de haver sempre pessoas, e até amigos, c]ue dirão: a Hélén.
era a doença dele. ele matou a sua doença. Hle matou-a porque ela lhe tornav.
a Vida impossível. Ele matou-a porque a odiav a, etc. Ou, mais elaboradamente
ele matou-a porque vivia no fantasma da sua própria autodestruição e porqu.
essa autodestruição passava "logicam ente" pela destruição da sua obra, da -i:.
celebridade, do seu analista, e por fim de Hélène que resumia toda a sua v id..
«Ora o c|ue é extremamente incôm odo neste tipo de raciocínio (mui;
difundido porque muito tranquilizador — com ele temos de facto unt.
"causa" indubitável) é o p o rq u e que introduz nisto uma necessidade sc:t
apelo, sem levar minimamente em conta a acumulação dos elementos aleat
rios objectivos.
«Ora todos nós temos, todos nós, fantasmas inconscientes agressivos, u.
mesmo de homicídio, de assassínio. Se todos os que alimentam dentro dc '
tais fantasmas passassem ao acto, tornar-nos-íamos todos, necessariamente
percebes?, todos assassinos. Ora a imensa maioria das pessoas pode perfeit.
mente viver com os seus fantasmas incluindo os de homicídio, sem nunca p.o
sar ao acto para os realizar.
«Aqueles que dizem: ele matou-a p o rq u e já não podia suportá-la, porqu-.
mesmo inconscientemente, desejava desembaraçar-se dela. não compreendei'
nada do que se ptissou. ou não se dão conta do que dizem. Se aplicassem .i '
próprios esta lógica, eles que alimentam a mesma lógica também neles pr
prios. fantasmas de agressão e de assassínio (e cjuem não os alimentai'), qt,.

296
/ V / r R o M I I I o I / 1/ /> o

afinal dc contas é a da p r e m e d it a ç ã o d o in c o n scie n te , estariam todos não no


hospital psicjuiátrico, mas na prisão e há muito tempo.
«Bem vês, tanto na história de um indivíduo com o na história de um
povo, já Sófocles dizia e muito bem, não há verdade definitiva senão na morte
\ ista retrospectivamente, quer dizer, num fim irremediável, ao qual já nin­
guém, e em primeiro lugar o morto, pode mudar nada. H é esta trar agem da
morte tjue constitui a retrospectividade a partir da qual se pode decidir (caso
de Sófocles) se a pessoa que morreu foi feliz ou não e, no caso de Héléne.
atiuilo que "causou" a sua morte.
«Ora, na vida, as coisas não se passam assim. Pode morrer-se de um sim­
ples acidente, sem que nenhum "desejo se realize com isso". Mas quandt) há
desejo" ou se desconfia da sua presença, encontram os uma quantidade de
pessoas que, retro sp ectiva m en te — e precisam de o fazer porque tem não só
que com preender mas que defender a sua ideia para se protegerem a si p r ó ­
prios, protegerem o seu amigo, ou acusar um terceiro, por exemplo certo
médico que não teria feito tudo o que se im punha do lado de fora, um lado
de fora "supostamente objcctivo", "evidente" — uma quantidade de pessoas
que "retrospectivamente", na retrospectividade do facto consum ado e irresis-
:í\el, fabricam uma "retrospectividade" do fantasma assassino do qual fazem
então a "causa" do assassínio, ou até a sua p r e m e d i t a ç ã o inconsciente: preme-
Jitação, termo carregado de sentido, porque significa em suma p revisã o e

rd e n a ç ã o in c o n s c ie n te d o d is p o s itiv o d o a ssa ssín icj na perspectiva incons-


.icnte da pasagem ao acto assassino.
«Ora confundem , estes amigos excessivamente bem intencionados em
relação ao seu amigo e — ou — a si próprios, a re tro sp ectivid a d e f a c t u a l e
rreversível da vida sem mais. e a re tro sp e ctiv id a d e d a v id a p s í íju ic a . a retros-
ecctividade do sen tid o. \ o primeiro caso. é verdade que para todas as pessoas
e para todos os amigos, eles precisam dc facto dc com por a retrospectividade
:'cssoal que melhcjr lhes serve (não digo de maneira nenhum a esta palavra
ama acepção pejorativa) e lhes permite quer suportar o choque do drama.
.. :aer enfrentá-lo publicamente. Mas cada um ou quase tem a sua interpretação,
que não deixa de deteriorar as suas relações com o seu amigo assassino e
esmo as suas relações uns com os outros. E agarram-se com unhas e dentes

29'"
/. o r / .V _1 /, •/ n r V ,s /;' A'

à sua retrospectiridade pessoal, em torno da qual constroem a figura dc ur.


personagem assassina e receiam mais ou m enos surdaniente que a dita persor
gem venha um dia a desmentir ou a corrigir a interpretação deles pela sua. t nc-
sentido que o teu médico tinha razão ao dizer-te que mesmo as tuas explicaçr .
podiam, tal com o a ausência de explicações da tua parte, fazer-te correr o ris^
de afastar de ti amigos muito chegados. De todo o coração, espero que isso n.'
aconteça, mas também a esse respeito nada se deixa pret er com segurança
«Na retrospectividade da interpretação interna as coisas não são l
maneira nenhum a assim. Primeiro porque ela se exerce na própria \ ida «
paciente. Mas também e sobretudo porque nunca existe fantasma "unívtx
mas fantasmas sempre am bivalentes. C) desejo de matar, por exemplo, ou ,
se autodestruir e destruir tudo à sua \<tlta, é sempre acttmpanhado po r i
imenso desejo de amar e ser amado apesar de tudo, de um imenso desejo ,
fusão com o outro e portanto de salvação do outro. O que me parece quar.,
te leio extremamente nítido no teu caso. Como se poderá pretender então f.
sequer da determinação " c a u s a i'’ de um fantasma sem invocar ao me«r
tempo a outra determitiação " c a u s a r ’, a da ambivalência, a que se dá no
prio fantasma como o desejo radicalmente oposto ao desejo assassino do ;.
tasma, o desejo da \ ida, de am or c de salvação? Na \'erdadc, não se trata cn:
de determinação causai, mas dc aparecimento de um sentido am hivaieiiti.
unidade dilacerada do desejo, que não se realiza então, na total ambicalcr.,
da sua ambiguidade, senão na "ocasião" exterior ciue lhe permite "peg.o
com o tu dizes de Maquiavel, Mas este " p e g a r’’, ele próprio, que depende tex
velmente de circunstâncias aleatórias (a carta do teu analista que não cheg
às mãos de Hélene, a total ausência de defesa por parte de Hélcne, a vossa -
dão a dt)is igualmente — se tivesses qualquer outra pessoa ao teu alcance. .
teria acontecido? — e assim por diante), não pode ter lugar na realidade ob ,
tir a a não ser em condições altamente aleatórias. Os que pretendem possii '
explicação causai não percebem nada de ambivalência dos fantasmas c ,
sentido internt), na vida e não n a retrospectividade d e fin itiv a da m<
nada percebem também do papel das circunstâncias exteriores objectit as .1 ,
tórias que perm item oti o "pegar ” fatal, ou (e trata-se da muito grande _
imensa maioria estatística cfos casos) escapar-lhe.

298
o J' l I l R O M r / / o 7 7; \l R O

«Na \erdade, para com preender o incomprcensiNcl. é preciso ao mesmo


tempo levar em conta im ponderá\eis aleatórios (muito numerosos no teu
caso) mas também a ambivalência dos fantasmas, que abre caminho a todos os
contrários possíveis.
«Penso que assim estão todas as cartas na mesa. Bastavam algumas de
entre elas, as mais óbvias para qualquer obser\ ador, para seres declarado não
responsável pelo teu acto, no m om ento em que o cometeste,
«Dito istcj, não podes impedir ninguém de pensar de outro modo. Mas o
essencial c que te tenhas explicado claramentc e publicamente por tua conta.
Os outros, m elhor instruídos se possícel. que faqam. se ainda o quiserem, mais
uma religião.
«Em todo o caso. eu interpreto a tua explicação pública como uma recon­
quista de ti próprio no teu luto e na tua vida. Como diziam os nttssos antigos,
é um actus essendi-, um acto de ser.»

Só uma palavra mais: que aqueles que pensam saber e dizer mais a este
respeito não receiem dizè-lo. Já não podem senão ajudar-me a viver.

L.A.

299
os E4CTOS
19“ 6
om o fui eu que organizei tudo. rnais \ale cjue me apresente sem mais
C delongas.
Chamo-me Pierrc Bergcr. Não é \erdade. fsse é o nome do meu avò materno,
que morreu de cansaço em !93<S. depois de ter dado cabo da vida nas m o n ta ­
nhas da Argélia, em pleno mato, sozinho com a mulher e as duas filhas, como
guarda florestal contratado pela administração das Aguas e Florestas da época.
Nasci com tiuatro anos de idade na casa florestal do Bois de Boulogne,
nas alturas de Argel. Havia, além dos caealos e dos cães, um grande tanque
com peixes, pinheiros, gigantescos eucaliptos cujas grandes folhas de casca eu
apanhava quando vinha o Inxerno, limtteiros. amendoeiras, laranjeiras, trange-
rineiras, e sobretudo nespereiras. que eram o meu regalo. A minha tia. então
solteira, subia às árvores como uma cabra, e dava-me os melhores frutos. Eu
estava um bocadinho apaixonado por ela. Cm dia. houve um grande medo
Porque tínhamos também abelhas, criadas po r um velho que se aproximava
delas sem véu. e lhes falava. Ora. por uma razão desconhecida, talvez por ele
estar a resmungar, as abelhas lançaram-se sobre o meu av ò. que correu a m er­
gulhar no tanque, para grande terror dos peixes. .Mas a vida era sossegada
naquelas alturas. Via-se o mar largo muito ao longe, e eu olhava para os barcos
que chegavam de França. Cm deles chamava-se Chenies-Roux. Durante muito
temjso admirou-me o facto de não se lhe verem as rodas '.

\ 'c r n o i a p. 0.

30,3
/ o r I s 1 / V H i s s /: K

O meu avô era filho de camptuieses pobres do Mor\ an. Oantava na missa
ao domingo, com um grupo de rapazes reputados pelas suas vozes, no coro do
fundo da igreja, de onde podia ver todo o povo de Deus, e a minha avó que
rezav a no meio da multidão, frágil rapariguinha educada na escola das freiras
Q uando chegou o tempo de a casarem, as freiras decidiram que o Pierre Ber-
ger era suficientemente moral e suficientemente pobre para se tornar seu
marido. O negvvcio foi fechado com as duas famílias, apesar dos grunhidos ds.
minha bisavó que ninguém conseguia afastar da guarda da vaca, e que falava
tão pouco com o esta última. Mas antes do casamento, houve uma espécie de
drama, Porque o meu avv) que não tinha vintém nem nesga de terra metera na
cabeça, nesse tempo de imperialismo francês à maneira de Jules Ferry, partir
para as colônias com o guarda, e tinha, sabe Deus porquê, a conquista — Rana-
valo. ou a imprensa católica — decidido que seria para Madagáscar. A minha
avó pôs os pontos nos is e estabeleceu as suas condiçêtes: Madagáscar nem por
sombras, quando muito a Argélia, caso contrário ela não se casava com o

Pierre Bergen Ele teve de ceder, era demasiado bela a Madeleine.


Foi assim que com eçou nas florestas mais recuadas da Argélia, em regiõc'
cujos nom es voltei a encontrar nos comunicados da Guerra da Independência
uma carreira esgotante. O meu avê) ficava completamente sozinho, em casas
isoladas de tudo, longe das aldeias, em plena floresta, a vigiar extensêtes des-
mesuradas para as proteger contra os incêndios e as petjuenas exacções dos
árabes e dos berberes. Construiu também estradas e trincheiras anti-fogo, que
serviam ao m esmo tem po de vias de comunicação. E po r todo este trabalho
que requeria competências múltiplas e im punha responsabilidades enormes
recebia um ordenado de mestre-escola, ou nem isso. Deixou po r lá a saúde
pois nervoso com o era, não sabia poupar-se, sempre em movimento, de noite
e de dia, rebentando o cavalo que montava, alerta ao m en o r sinal, mal che­
gando a dorm ir umas poucas horas, e sacudido p o r uma tosse que apanhara
por fumar demasiados cigarros desses que enrolava entre os dedos. De tempo-
a tempos, «aterravam» lá em casa directores ou inspectores de visita. Havia n.i
casa florestal um quarto para eles, e cavalos de reserva. O meu avô tratava-O'
com distância, mas respeitava-os por aparecerem ali, conservando o seu des­
prezo pelos que ficam nos escritórios. Tinha respeito po r um certo Peyrimoft

304
o t- A C I O S

que chega\a das montanhas, e discutia coisas sérias. Ainda falava dele no Mor-
van, mais tarde, depois de se reformar: esse era um hom em que fazia a sua
obrigação.
O meu avô e a minha avó tinham os dois os mesmos olhos: azuis, e a
mesma teimosia. Quanto ao resto... O meu a\ (') era pequeno e maciço, passava
o tempo a bramar contra tudo e a tossir. Xinguem lhe liga\ a. minha a^'ó era
alta e esbelta (sempre me pareceu, de longe, uma rapariga i. calava-se. pensava,
compadecia-se (lembro-me das suas pala\ ras quando lhe li um dia V E spoir de
Malraux. onde se contam as atribulações dos republicanos espanhóis; «pobres
crianças!») e, quando era preciso, sabia ser deterntinada. Xo princípio do
século, ejuando eclodiu na Argélia a insurreição popular armada dita de ,\lar-
gueritte, os acontecimentos deram-se numas montanhas que não ficaram
longe da casa florestal. O meu avô não estava nessa noitc: andava cm serviço
por fora, com o sempre. A minha a\ é) estava sozinha em casa com as suas duas
filhas, de três e cinco anos. Era muito estimada pelos árabes locais. Mas não
tinha ilusões, sabia cjue uma insurreição é uma insurreição, e ejue o pior pode
então suceder. Ficou de vela, com uma espingarda e très cartuchos: não eram
para os árabes. A noite passou, e finalmente rompeu o dia. O meu avô chegou
pouco depois, praguejando contra os insurrectos com quem se encontrara:
desgraçados, vão arranjar maneira de os matarem.
Portanto nasci ali, nas alturas de Argel, na casa florestal de final de car­
reira: um pouco de paz. Foi numa noite de Outubro de 1918. pelas cinco horas
da manhã, o meu avô saiu a cavalo a caminho da cidade e foi buscar uma
médica russa cujo nom e esqueci, mas que disse, segundo parece, «pelo tama­
nho da cabeça», que eu tinha a sorte de vir um dia a ter coisas lá dentro, vá-se-
-lá saber, disparates pelo menos teria com certeza. O meu pai estava então na
frente de Verdun, na artilharia pesada, era tenente. Regressara à frente de c o m ­
bate depois de uma licença durante a qual visitara a minha mãe, então noiva
do irmão dele, Louis, que acabava de m orrer em \érd u n . no avião que o levava
com o observador. O meu pai pensara ser seu dever substituir o irmão junto da
minha mãe, que lhe deu t> sim que se impunha. Há que se com preender a
situação. Os casamentos faziam-se de qualquer m odo entre as famílias, a opi­
nião dos filhos pouco contava. Tudo fora arranjado pela mãe do meu pai

305
/. o V l s -i /. 7 77 7' S ,S l. R

que. casada cia também com um hom em das Águas e Florestas, sem nada de
seu mas funcionário, distinguira na minha mãe a jovem modesta, pura e traba­
lhadora que convinha ao seu primeiro filho, querido c predilecto, e já adm i­
tido na École Normale Supérieure de Saint-Cloud. Louis era o preferido, por
uma razão simples, c cpie não ha\ ia meios para pagar os estudos a dois rapazes,
portanto fora necessário escolher, c o escolhido fora ele, por razões ligadas ã
ideia que a minha avó paterna fazia das Fscolas. Mas. em compensação, o meu
pai tivera que começar a trabalhar aos treze anos: de início paquete num
banco, trepara em seguida no emprego, pois era inteligente embetra sem baga­
gem escolar. Ele costumava lembrar-me muitas vezes, como exemplo do rigor
seco da sua mãe. que não perdia de vista um vintém nem o futuro, o episódio
da Eachoda: assim que se tornara conhecida a ameaça de guerra, mandara o
meu pai catm toda a urgência comprar quilos de feijão seco. supremo recurso
contn! a escassez alimentar, e retom ando assim, tal\'cz sem o saber, a mais
antiga tradição dos povos miseráveis da América I.atina, da Espanha e da Sicí-
lia. Os feijões, contanto que sejam protegidos dos insectos, conservam-se inde­
finidamente, mesmo em tempo de guerra. ,A mesma avó, não o esqueci.
ofereceu-me um dia uma ratiueie, enquanto víamos d;i sua varanda o desfile
das tropas, no l-r de julho, ao longo dos cais de .Krgel.
O meu pai levava-me com frequência ao estádio de futebol, onde se dis-
putac'am então partidas épicas, entre franceses, ou entre franceses e árabes.
E as coisas aqueciam a valer. Foi lá ejue ou\ i o primeiro tiro da minha vida.
H om e um m om ento de pânico, mas o jogo continuou, uma vez que o árbitro
não fora ferido () meu pai levar a-me também, mas com a minha mãe, às corri­
das de cavalos onde entrava gratuitamente, conhecendo do banco onde traba­
lhava um porteiro cjue o deixava passar clisfarçadamente. Apostava. Natural­
mente quase nada. e perdia sempre, mas ficava satisfeito, nós também, e
\ iam-se lindas senhoras, que o meu pai contemplava com uma complacência
um pouco excessiva a avaliar pelos silêncios da minha mãe. que tinha os seus
motivos de t|ueixa. O meu pai levou-me só uma vez, mas sozinho, ao tiro de
espingarda, numa grande carreira militar, que ressoava dos tiros repetidos co n ­
tra alvos distantes. Era muito diferente do tiro de pressão de ar das feiras, a que
eu estava habituado, tendo descoberto a maneira de acertar no ovo que dança

.^06
o ,s r A c 1 o ,s

na água, e de ganhar a minha tablete de chocolate. Aqui, era muito mais c o m ­


plicado e assustador. Q uando apontei a espingarda de guerra e carreguei no
gatilho, recebi uma pancada violenta no ombro, com o se tivesse sido puxado
para trás, e contudo a bala partira em frente, a dar crédito às bandeiras que se
levantaram po r cima de uma trincheira, indicando cjue eu não acertara no
alvo. Bom começo, disse o meu pai. que comecou a ministrar-me um verda­
deiro curso de artilharia: ajustamento do tiro por alto. ou como atingir um
objectivo cjue não se vê. [o] que me deu uma primeira ideia dos princípios de
Maquiavel, que só mais tarde eu viria a conhecer. íamos também, mas em famí­
lia, ao tênis e à praia. O meu pai tinha um excelente serc iço. estilo Tilden. e
a minha mãe temíveis esciuerdas liftadas. Eu batia-me o m elhor que podia. Em
natação — que o meu pai praticava naturalmente de costas, tendo o cuidado
de não mergulhar os dedos dos pés, que mantinha sempre fora de água para
os vigiar — fui instruído pela minha mãe, cujo estilo era memts pessoal, b ru ­
ços. Só comecei com o craivl muito mais tarde, e por m inha conta. Ainda hoje
SC nota.
Era naturalmente bom aluno na escola, filho de uma boa aluna, que se
fizera professora primária, amiga de bons mestres-escola que me perguntavam,
antes de as aulas começarem, com o se chama o fruto da faia, e quando eu res­
pondia «faíne» era um bonito menino. Frequentava uma escola primária mista
(entendamo-nos: não havia raparigas, mas francesinhos e arabezinhos da
mesma idade), onde uma m ulher a dias me levava cerimonialmente, o que me
envergonhava, pois tinha direito, além de ser acompanhado, a uma introdução
prematura no pátio interior, antes dos demais, e era aí que encontrava o bom
mestre-escola que me perguntava o nom e do fruto da faia.
Dois episódios dramáticos assinalaram este primeiro período escolar. Um
dia quando estava na aula, um aluno, atrás de mim, teve a ideia de se peidar.
ü professor lançou-me um dem orado olhar de censura: «Tu, Louis...» Não tive
coragem para lhe dizer «Não fui eu»: ele não teria acreditado em mim. Outra
vez, foi no pátio onde jogávamos ao berlinde, jogo em que eu era magnífico.
Trocávamos também os nossos berlindes e ágatas. E não sei porquê, comecei
a discutir com um miúdo, que de repente esbofeteei. Essa bofetada inspirou­
-me um terror pânico, corri atrás do m iúdo para lhe oferecer em troca do seu

307
L O V I S .4 / r H l ,V S /; K

silêncio tudo o que trazia comigo. Ele calou-se. Confesso que é uma coisa cjue
ainda hoje me faz tremer.
Por comparação com este incidente, a questão do Bois, apesar de tal
com o a bofetada me ter apanhado de surpresa, não era grande coisa. Estáva­
mos a gozar o sol e a relva, a minha mãe, a minha irmã. eu e uma amiga da
m inha mãe acom panhada dos seus dois filhos, um rapaz e uma rapariguinha.
Também então, po r dá cá aquela palha, dei po r mim a chamar de repente «Tor-
tecuisse» à rapariguinha, expressão que lera num livro com o ofensiva, e que
lhe infligi sem razão aparente. O caso foi encerrado por uma troca de descul­
pas entre mães. Eu estava espantado po r ser possível ter-se idéias sem as ter.
Em contrapartida, o que me impressionou para toda a vida foi um inci­
dente ocorrido mais tarde, em jMarselha, quando com a minha mãe, metendo
p o r uma rua leprosa mas larga perto cia place Garibaldi, vimos no chão uma
m ulher que outra m ulher arrastava pelos cabelos cobrindo-a de insultos vio­
lentos. Havia também um hom em , ali, imóvel, saboreando a cena, e repetindo:
cuidado, ela tem um revólver. A minha mãe e eu fingimos nada ter visto nem
ouvido. Já era bastante ficar cada um de nós com aquela imagem para si e
arranjar-se com ela o m elhor que pudesse. Eu não me saí lá muito bem.
Depois da escola primária, fiz a sixièm e no liceu de Argel, de que co n ­
servo uma recordação apenas: a de um magnífico \bisin branco descapotável
c]ue esperava, com o motorista fardado e de boné, um dos meus condiscípulos
que não me falava. Lembro-me também de uma visita a casa de um proprietá­
rio árabe que o meu pai conhecia, e que nos deu a comer, antes do chá, uns
doces de abóbora que nunca mais voltei a descobrir. O meu pai enfiava-nos
igualmente no velho Citroen de um amigo seu. que nos levava às montanhas,
até ao lugar onde, muitos anos antes, o meu avô salvara da m orte uma equipa
sueca, segundo julgo, que se aventurara a sair durante uma tempestade de neve
que não permitia manter qualquer sentido de orientação. O meu avô. que
detestava (como aliás o meu pai) as condecorações, recebera por este feito de
armas a cruz de guerra, com citação e palmas de reforço. Guardei todo este
material depois da m orte da minha avó.
A casa florestal do Bois de Boulogne ficou na minha m em ória pela sua
situação excepcional: dominava Argel inteira, a baía e o mar, que se via até ao

308
o s A c 7 n s

infinito. Havia um sítio, debaixo das alfarrobeiras. onde eu fica\a sozinho


muito tempo, a contem plar o largo, am achucando entre os meus dedos as
folhas aromáticas das árvores. Q uando chegá\ amos aos fins-de-semana com os
meus pais para passar dois dias lá em casa, \ íamos na Frima\ era as anémonas
na parte do jardim que ladeava um laboratório medico c uma (tutra casa bu r­
guesa onde morava um ex-militar casado e pai de dois filhos. Era uma família
com os seus dramas. A rapariguinha. silenciosa debaixo da sua cabeleira,
interessava-me, mas eu não me atrevia a falar com ela. O filho, que era quase
adulto, revoltava-se contra o pai, que apanhava fúrias \ iolentas c o fecha\ a à
chave num quarto do primeiro piso. Ifm dia. ouvimo> grandes pancadas na
porta, que cedeu, e o jovem fugiu para a mata. O pai pegou na carabina e foi
em sua perseguição, enquanto a mãe se punha a chorar, Mas era só teatro c
tudo voltou a entrar depois nos eixos.
Regularmente, quando partíamos, o meu pai arranjava um grande ramo
de gladíolos, que oferecia a certa misteriosa senhora, ejue morava perto do
square de Galland. A minha mãe fingia não dar po r nada, mas eu vi um dia
essa senhora, que usava um perfum e com o o das glicínias, pelo m enos foi o
que achei, e tinha olhos langorosos de ejuern espera que lhe dirijam a palavra.
O meu pai, como sempre, levou tudo para a brincadeira, o que não devia enga­
nar ninguém.
O meu pai, que tivera uma ligação antes do casamento com uma rapariga
pobre chamada Louise, e que rompera com ela assim que casara com a minha
mãe (e, tendo os seus princípios, nunca mais voltou a ver Louise, nem mesmo
quando esta adoeceu e morreu), não tinha muitos amigos confessos, A excep-
ção era um que trabalhava com ele no banco, um hom em brando e sem espí­
rito de iniciativa, que era preciso estar sempre a amparar, e que era casado
ct)m uma certa Suzanne transbordante de atributos e de actividade. O meu pai
estava com eles muitas vezes e fazia a corte a Suzanne. à maneira dele, sempre
a brincar, e rindo-se das fetrmas dela. o que a enchia de prazer. Lembrt)-me de
que uma vez, quando a minha irmã apanhou escarlatina e tiveram que nos
'cparar, fui acolhido em casa desses amigos, e por lá fiquei uma semana bem
contada. De manhã, muito cedo. quando me levantei e fui à cozinha onde des­
confiei que estaria Suzy (há intuições assim já nessa idade), entreabri a porta

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I. (} (' / ,s .1 L I H !' ,S ,S /; R

e vi-;i nua. a preparar o pequeno-almoço. Ela disse: oh, Louis... e eu voltei a


fechar a porta, perguntando a mim p róprio para quê tanta confusão. Ela tinha
uma maneira de me beijar, apertando-me contra os seios, que não mc enga­
nava, c]ue me levava a pensar que vê-la nua era m enos gra\ c do.que apertar-me
dessa maneira contra ela. Foi lá em casa que tive, lembro-me ainda, um sonho
estranho. Sonhei que, de cima do armário do fundo da sala. que se abria lenta­
mente, saía um grande animal informe, uma espécie de gigantesco verme, que
tão tinha fim, e que me apavorava. Compreendi muito mais tarde o sentido
que podia ter este sonho informe, junto dessa m ulher que tinha manifesta­
mente vontade de se deitar comigo, mas se recusava a isso por convenção,
enquanto eu o desejava e o receava. O marido, entretanto, não desconfiava de
nada, fumava um grande cachimbo de tabaco suave, e tinha um cãozinho que
passeava aos sábados à tarde no parque de Galland, onde um dia me tiraram
uma fotografia: eu era uma criança magra dom inada po r uma cabeça alta e
pesada desproporcionada em relação aos meus ombros frágeis, e espigado
com o um espargo lívido nascido num a cave. No chão projectava uma sombra
delgada como eu, mas mais curta, pois o sol ia alto no céu. Estava sozinho,
com o cão. preso pela trela. Sozinho.
Entre o meu pai e a minha mãe. as coisas passat am-se de uma maneira
singular. O meu pai, de uma vez por todas, estabelecera uma divisão na sua
\ãda: de um lado o trabalho, que o ocupava por completo, do outro a família
cjue abandonava aos cuidados da minha mãe. Não me lembro de o ter visto
intervir alguma vez na educação dos filhos, confiando essa tarefa à m inha mãe.
O que nos deixou, à m inha irmã e a mim, entregues a todas as fantasias da
minha mãe. e aos seus medos. Mandou-nos aprender piano, a minha irmã, e a
mim violino, para poderm os tocar em dueto, o que fazia, aos seus olhos, parte
de uma boa educação cultural. Um dia, tendo-se encantado com um médico
de vanguarda, decidiu im por à família um regime vegetariano. Durante seis ou
sete anos, com em os assim produtos naturais, sem carne nem gorduras de ori­
gem animal, sem manteiga, nem ovos; só o mel mereceu a sua aprovação.
O meu pai recusou-se a aceitar o regime. O bife dele era cozinhado ostensiva­
mente à parte, era-lhe levado solenemente como uma espécie de demonstração
e entretanto nós comíamos cenouras raladas, amêndoas e castanhas guisadas

310
o s 1 .4 4 / O S

com couves. Era ura belo espectácuU). o meu pai comia em silêncio, seguro cia
sua força, e nc)s trc^cávannís comentários sobre <4S méritos comparados e d e si­
guais dos regimes com carne e vegetariano, discretamente e para bom entende-
dor... Mas o meu pai não queria saber, e partia a sua carne em sangue com uma
faca de alto lá com ela.
O meu pai tinha violências c]ue me aterravam, ( crta noite em c|ue os vizi­
nhos do lado estavam a cantar, pegou num caldeiro e numa concha, foi para
a varanda e fez uma algazarra terrível, que nos aterrttu a todos, mas pòs fim às
cantigas. C) meu pai tinha também, à noite, pesadelos, que descmbocawim cm
longos uivos atrozes. Não se dava conta do facto. e quandet acordava, dizia não
SC lembrar. A minha mãe sacudia-o para o fazer parar. Não diziam nada um ao
outro, nada tjue pudesse levar a pensar cjue se amavam. Mas recordo c]ue uma
noite ouvi o meu pai, t]ue devia estar com a minha mãe nos braços, na cama
do cjuarto deles, murmurar-lhe: «minha coisa só minha,..», o que me fez estre­
mecer o coração. Recordo-me também de dois outros episódios cjue me sur­
preenderam. Um dia em que tínhamos voltado ao apartamento de .Argel,
depois de sair do navio que nos trouxera de França, na varanda, o meu pai
sentiu-se mal. Esta\a sentado numa cadeira, e caiu ao chão. A minha mãe teve
medo, e falou-lhe. Nunca lhe falava. Recordo-me também de uma noite no
comboio, quando íamos a caminho do Morvan, e dessa vez foi a minha mãe
quem se sentiu mal. O meu pai fez-nos apear à noite na estação de Châlons,
e fomos à procura de um hotel que aceitasse receber-mrs. A minha mãe estava
muito mal. O meu pai falava com ela, cheio de inquietação. Nunca lhe falava.
Há com o que um cheiro a morte nestas duas recordações. Amavam-se po r
certo sem nunca se falarem, como as pessoas se calam à beira da morte e do
mar. Mas conservando, apesar de tudo. entre eles meia dúzia de palav ras tac-
teantes para se certificarem de cjue estavam de facto presentes. O problema era
deles. Mas a minha irmã e eu pagámo-lo terrivelmente caro. Só muito mais
tarde o compreendi.
Uma vez que estou a falar da minha irmã. lembro-me também de um inci­
dente na zona alta de Argel, onde descobríamos, se os procurássemos, p e q u e ­
nos ciclames debaixo dos arbustos. Estávamos então num caminbo de terra, e
avançávamos tranquilamente, quando apareceu um jovem de bicicleta. Não

,S 1 1
/, o !■ / ,S .1 /. T II I ,s s i:

sei que manobra fez, mas atirou a minha irmã ao chão. O meu pai lançou-se
sobre ele, e julguei que ia estrangulá-lo. A minha mãe interpôs-se. A minha
irmã esta\a ferida, roltám os à pressa para casa, trouxe apesar de tudo alguns
ciciames entre os dedos, mas perdera todo o interesse pelas flores. Esta violên­
cia do meu pai, à ciual a minha mãe era, na aparência pelo menos, completa­
mente indiferente, enquanto passava o tem po a queixar-se do martírio da sua
vida, e do sacrifício em que tivera que consentir, forçada pelo meu pai. a aban­
donar uma carreira de mestra-escola cjue a fazia feliz, parecia-me uma coisa
estranha: ele tão seguro das suas atitudes, perdia a cabeça de súbito sem conse­
guir controlar a sua violência, mas devo dizer que tudo se passava como se afi­
nal também a controlasse, pois ciue se saía sempre bem. Tinha «hciraka», e
tudo o que acontecia acabava por resultar em seu benefício. Sabia abster-se
quando necessário, foi o único director de banco de Lyon a não aderir à
Legião de Pétain entre 1940 e 1942, enquanto se encontrara na cidade, Não se
contou entre os partidários do general Juin, quando este tentou «fazer com er
palha» aos m arroquinos e, ainda que dilacerado nos seus sentimentos de «pied-
-noir» ', não se opôs a De Gaulle qtiando ele optou pela independência arge­
lina. resmungou o mais que pôde, mas ficou-se por aí.
Soube pelos seus empregados, depois da sua morte, que o meu pai tinha
uma maneira muito especial de dirigir o banco, quando acedeu ao cargo de
director. Tinha, senão um princípio, pelo menos uma prática: era calar-se ou
proferir pala\ ras absolutamente ininteligíveis. Os seus subordinados não se
atreviam a dizer-lhe que não tinham percebido nada, iam-se embora e
arranjavam-se, cm geral muito bem. p o r si próprios, mas sempre a pergunta­
rem-se se não se teriam enganado, o que os m antinha alerta. Nunca soube se
o meu pai utilizav^a este m étodo deliberadamente ou não, porejue se servia
mais ou m enos dele também para connosco, mas, em contrapartida, quando
estava com os clientes ou os amigos, era de uma loquacidade imparável, e per-
feitamente inteligível. Estava sempre a gracejar, o que colocava os seus interlo­
cutores numa posição de inferioridade e de fascínio, desconcertando-os. Tal­
vez me tenha deixado um pouco desse gosto pela provocação. O meu pai

’ L itcralm cntc <'pc negro» n o m e p o r qu e eram designado,'^ os co lo n o s franceses da Argélia. (A" d o 7.)

.4 1 2
o V f ,1 (. 7 O V

tinha m étodos bancários um tanto próprios. Acontccia-lhc com frequência,


'o b retu d o em Marrocos, emprestar somas a\ ultadas de dinheiro, em nom e
do banco, sem juros, o que desconcertava os seus concorrentes c os colocava
numa posição difícil. Mas conseguia cjuase sempre cjue os clientes pagassem
por sua própria iniciativa os juros que não lhes tinham sido exigidos,
dizendo o meu pai que isso p r o \a \a que os marroquinos tinham o sentido
da honra, e cjue se podia confiar neles. .Mas o meu pai nunca aceitou a
mínima dádiva cjue fosse, excepto flores para a minha mãe. ou um convite
para visitar uma quinta, onde lhe ofereciam chá de liortelã e as doçarias
locais. Hra muito severo jsara com os seus superiores que 'c dei.\a\am mais
ou menos comprar, e não o escondia, opondodhes um silencio desdenhoso
mais clocjuente do cjue mil discursos. Recordo-me de um deles, em Marselha,
que tinha uma bela jsropriedade perto de Allaucli. e um campo de lenis.
onde a sua jovem esposa, que eu achava atraente, jarevenia, antes do s e n iço:
-Vão ver. é com o nas Folies-Bergère», e de facto, quando girar a sobre a jaerna
direita, a pequena saia voava-lhe ao \ ento. e \ ia-se um amável jaar de náde­
gas, de resto cobertas po r uns calçcaes cor-de-rosa que me deixaram sonha­
dor. Gostaria que ela falasse menos e fosse comigo para debaixo dos lourei­
ros, que eram também cor-de-rosa. Este director aliás acabou mal, tendo tido
a fraqueza de aceitar demasiadas coisas, diante de demasiadas testemunhas,
entre as quais o meu pai. que nunca disse nada. C) meu jsai pagaria mais
tarde esse silêncio cjuando a administração central do seu banco o passou de
um dia para o outro á reforma, quando a tradição era que um empregado da
sua categoria passasse jsara a sede central. Mas não, afastaram-no, trocando-o
por um p o lytecbnicieu cjue não se comjsarava com ele. mas cjue desjsosara.
como era de regra tanto na Polytechnique como no banco uma das filhas da
família protestante detentora do negócio. () meu pai afastou-se e exjslicou-me
que era jserfeitamente normal uma vez cjue se tratacat de um negócio de famí­
lia e que o mal dele fora ter casado com uma mulher que não fazia jsarte
dela. No coração não se manda. .Mas. no fundo, não se setitia contrariado
j7or este desfecho, cjue era jsara ele uma esjsêcie de honra in\oluntãria, Há
jaessoas cjue não se condecora, dizia ele com ferocidade. E de facto. recusara
todas as condecoraçeães.
/ o I I s A I. T H l S S /: A’

Continuei os meus estudos secundários em Marselha, no alto e bei


I,\céc ,Saint-Cliarles, onde ]?ontifica\a um reitctr pintor amador, e reina\ar
amigavelmente professores distintos, entre os quais um \ elho senhor que chi
ra\a em inglês diante de nós a m orte da filha. Ficá\amos todos tristíssimo'
M ngá\am o-nos no professor de educação física e no porteiro. O primeir
!imita\a-se a pôr-nos a jogar futebol, m é to d o então m uito apreciadi
O segundo monta\ a uma guarda feroz à volta da saída, c perseguia as raparig.,
tjue se a\'enuiravam nas imediações. Foi aí que. contra a t)pinião do meu p.;:
que tinha em \ ista a Pol\techniciue, um distinto professor de letras começo,
a orientar-me para a ideia de concorrer ã Normale. F, para começar, fez cor
c)ue eu me inscrevesse em todas as pro\as do Concurso (>eral. Apresentei-n..
a todas e não obtice c|ualciuer accessit. Devo dizer que tinha inventado cit.:
ções c traduções, o que era deslocado.
Deslocado, embora continuando a jogar tênis e frecjuentando igualmen:.
a ópera, onde se \ iam bonitas senhoras, o meu pai foi transferido pelo sc .
banco para h\on. Acompanhei-o, e entrei para a hypokbágue no Lycéc du Paio
Aí conheci je a n Cuitton. sempre preocupado com as provas da imortalidac.
da alma, e a seguir jean Lacroix («Vão ver, dissera-nos Guitton, o hom em qi, ,
me vai suceder nesta cadeira, mas que é jtouco conhecitk), chama-se Labai’
nicre»). ,\o contrário de Jean (tuitton. que ensina\a de costas para nós, cu."

\ ado, apoiando a testa na mão direita, e consagrando a outra ao pedaço de g;


que negligentemente lhe pendia entre os dedos, Jean Lacroix falava-nos sen.
pre de frente, mas escandindo o seu discurso com pancadas da mão direita r..
infeliz orelha do mesmo lado, e com explosões fonéticas, que esforçadamen: .
identificámos com o ecjuivalentes de «beiihl». nom e tiue, sem o seu acttixl
embora, lhe foi imediatamente atribuído. Havia também Flenri Guillemin, q...
nos fez uma cena histérica soltre Cihateaubriand, antes de ir ocupar o seu pos;
no Cairo e de lá nos enviar uma fotografia soberba em que aparecia de y .
coroado por um fez vermelho. Respondemos-lhe com um telegrama: «ü trab..
Iho muda. mas o chapéu fica.» Mas havia principalmente o «velho Hours». In
nés encorpado, sósia de Pierre Lavai, galicano e jacobino feroz, que passai.
o tem po a dizer nral do papa e de Ciet>rges Bidaull, e vigiava por meio c .
uma colecção de fichas nominais a carreira dos hom ens políticos francesc'
o S F .1 ( / O S

Chegava então a conclusões políticas surpreendentes (para 1936-193“ ).


^egundo as quais a burguesia francesa trairía a Franca, tendo mais m edo da
Frente Popular do tjue de Hitler. se renderia aos nazis a seguir a uma falsa
guerra, pelo que, se viesse a ter ainda algum Futuro, a Franca ficaria a de\è-lo
ao seu povo, desperto para a resistência política pela esquerda, com os c o m u ­
nistas à cabeça. As relações entre o o e lh o Hour'. por um lado. lean (luitton
e Jean f.acroix por outro, eram algo singulares, Hou^^ n.lo podia nem \ er {íuit-
ton, que acusatu de ter ficado agarrado .10 peito da m.ie, estacai politicamente
de acordo com Jean Lacroix. mas toleraca mal o --eu [Hitbns ■Filos(')Fieo e reli­
gioso. Todavia jean Lacroix tinha grande mérito na defesa da^ suas ideiav e em
escrever, ao lado de Mounier, na rc\ ista /'.sprií. Oriundo da média burgucMa de
Lvon, casara com uma jovem que pertencia à casta mais fechada da alta bur
guesia local. Lacroix fora por esta colocado no iiidex e denunciado como se
tosse o demônio. L ciuando ia a uma dessas assembléias de família que reúnem
centenas de pessoas aparentadas, precisava de certa coragem plãcida para fazer
trente ao m odo com o o ofendiam. Jean Lacroix mante\e-se sempre na mesma
linha, fiel a Mounier, m esmo ciuando os sucessores deste arrastaram a revista
Esprit para águas fáceis e turcas. Llours. pelo contrário, conheceu depois cLi
guerra um destino pessoal que nada deixaca prever. Persuadido por um dos
'cus filhos jesuíta que residira muitos anos na Argélia, de que os povos islàmi-
a)s eram definitivamente incapazes, por causa da sua religião e da sua escrita
de ascender no plano intelectual ao nível do conhecimento científico
quando os árabes foram herdeiros de Arquimedes e inwntaram uma medicina
revolucionária ao mesmo tempo que traduziam e interpretaram .Xristótelesi,
chegou à conclusão de que os franceses não deviam sair da .Vrgélia. e tornou-
se assim feroz defensor da ,\rgélia francesa, no momento em tiue De Ciaulie
se preparava para ceder ãs reivindicações de independência política da nossa
.mtiga colônia. Hours morreu de repente furioso e consternado, poucos dias
depois da sua mulher.
A kbágiie comportava, além dos alunos, uma outra personagem singular,
tlLie fingia ensinar língua inglesa, erguendo bem alto a cabeça e as suas recor
dações de intérprete junto das tropas anglo-saxónicas durante a Guerra de It.
Falava um puro inglês de Oxford, e ficara furioso quando eu abria a boca.

313
/, o r / .s .1 /, y yy y ,s ,s a r

dizendo que eu adquirira, para o pôr aos berros, um horrível sotaque amcr
cano aprendido nas docas. Adorava ser desafiado, e não lhe recusávamos C"
prazer. O que, muito britanicamente, se passava segundo as regras. De cac
vez, um aluno, antecipadamente designado, instala\a-se atrás da secretária ü
professor, que se sentava num a cadeira a alguns metros de distância, e conit
çava a comentar em inglês um texto ciuakiuer, geralmente britânico, línhanv -
antecipadamente combinado entre nós introduzir, no m elhor m om ento l;
explicação, um verso de Béranger: «Deus dá-vos, filhos meus, uma boa morte
ou «Como se está bem num celeiro aos vinte anos». O efeito nunca falhav.
Sempre que o com entador se aproximava do instante crítico e começava
dizer: «Esta passagem não pode deixar de nos lembrar irresistivelmente a hi:
mula de Béranger...», o nosso professor le\'anta\a-se, com o que projectado p^ :
uma mola, e entrava no mais belo furor teatral que alguma vez me foi dado \ c'
Isso durav a dez minutos, ele punha o aluno na rua e retomav a pessoalmentc
explicação, evitando falar de Béranger. Sentia-se extremamente feliz, o que -
lhe via pelo cabelo espetado e pelas mãos que tremiam.
f m dia, houve alguém ciue lhe fez uma surpresa. Tratav a-se de comem,
três versos de John Donne. O aluno, um magnífico rapaz louro, poeta n„-
horas vagas e constantemente apaixonado por uma rapariga da nossa turma
qual falarei, com eçou por uma tradução no seu estilo próprio:
A m ei-te p o r três dias
E hei-de a m a r-te m a is três a in d a
Se fiz e r sol.
Estava nesse dia a chover a cântaros no parque. Pouco importav a. Ü alun
pegou nestas palavras do texto para começar a «associar». E disse: «Amei-te
isto lembra irresistivelmente a canção de Tino Rossi...» e trauteou já não
que estribilho. Sucederam-se assim todas as canções em voga, cada um a d e i . -
a propósito de uma das expressões do poema. O professor não abriu o bie
até ao m om ento em Béranger despontou no horizonte. Então apanhou a si,
fúria regulamentar.
Num outro dia, um outro aluno, que viria a ser um oratoriano célebre
e a quem toda a gente chamav^a Fanfouet, porque ele era saboiardo, send

316
o V i C 7 O S

o seu pai chefe de uma gare que fora suprimida (imaginem-se os gracejos
'Obre o arrendam ento da estação), com eçou a explicar outro texto, sempre
cm inglês, mas com um m étodo de dissecação inédito. Distinguiu exacta-
mente quarenta e três pontos de vista, a começar pelos mais clássicos, o
ponto de vista histórico, o ponto de \ ista geográfico, para acabar nas disci­
plinas menos frequentadas, como a ornitologia (cjue teve muito êxito junto
do professctr apaixonado por a\es marinhas), a cozinha, a «fragologia» iver-
-se-á dentro de m omentos porquê) e outros disparates. Béranger surgiu e\ i-
dentemente a propósito da poesia, desencadeando o clássico furor.
Quanto a mim, quando fui «apertado», tomei uma opção diferente. Prt)-
curei nos livros e na memória de um amigo hispanizante uma citação de um
monge do século x \ l, inquisidor calejado. Dom Gueranger, e introduzi-o
contendo a respiração no m om ento crítico, julgando ter o iu id o falar de
Béranger, o professor preparava-se para a fúria hahitual, e tive a maior difi­
culdade do m undo para o fazer reconhecer o seu erro, garantindo-lhe que
Dom Gueranger nada tinha a ver com Béranger, pois nascera dois ou três
'éctilos antes e nunca fizera poesia. No fim do ano, pagou-nos uma rodada,
.1 sombra das árcores do part[ue, no bufete, havia barcos no lago, e raparigas
lá dentro, perguntando-nos nós o que estariam elas ali a fazer, com aquele
«alor.
Também com o «velho Hours» m antínham os relações de desafio. Ele
«ostumava, tjuando tinha que dizer alguma coisa em inglês, petr exemplo
Wellington, parar de falar, aproximar-se ckt cjuadro preto e. desculpando-ce
de «não pronunciar a língua inglesa», escrevia a palac ra cm questão no qua­
dro, sublinhando-a. para que todos entendessem. Falava copiosamente. com
uma das mãos apoiada na secretária, consultando com a outra, para s a b a r as
.iparências. algumas vagas folhas que prova\ elmentc não continham quais­
quer notas, e era impossível detê-lo... Dizia: j á \ t)s disse que a Inglaterra era
uma ilha?» e esperava a resposta que não aparecia. Do que tirava então toda
a e,spécie de conclusões. Depois da Guerra, disse-me um dia na presença de
Hélène, que militara na Resistência, que esta teria sido absolutamente impos-
'í\e l em Inglaterra, não p o r se tratar de uma ilha, mas porque, m orando
todos os ingleses em cottages, a clandestinidade se tornava impossível para
L O l I S A !. I n r S S l: R

OS militantes, à falta ele «trahoules» ’ com o as de Lyon. Mas en arranje


maneira de lhe pregar iima partida da minha la\ ra. eiuando um dia tive qii,
fazer perante toda a aula uma exposição sobre o Primeiro Cônsul e a sua poj
tica externa. Preparei as coisas de m odo a c|ue a minha exposição term in a ^ ,
pelo nom e de uma batalha célebre. No m om ento de a proferir, levantei-me k r
tamente, peguei no bocado de giz branco com a mão direita e aproximei-n
do cpiadro. dizendo: «Desculpem, mas eu pronuncia muito mal o italiani
P escrec i simplesmente; Ricoli. O «velho Hours» levou a brincadeira a bcr.
com o um apreciador. Portanto, ele costumava falar muito, mas havia na au
um rapaz de estatura gigantesca, tiue daria um bom jogador de râguebi ou d

mundiais de tênis, mas demasiado indolente para fazer fosse o que fosse, e qi
veio a ser, para contrariar toda a gente, um dos jornalistas mais célebres l
imprensa francesa. Hours mal começara a falar e já ele se abatia na carteir.; .
adormecia, para nosso grande gozo, uma vez que ressonava sonoramen:,
Todo o problema era então para nós: por cjuanto tempo? porque o «\c!:
Hours» acabava sempre por dar por isso. Pntão aproximava-se com pés tk
do aluno adorm ecido e sacudia-o com o a uma árvore de fruto gritando: 1
Charpv! Chegámos, toca a sair do comboio!» Charpy abria um olho, con^t"
vando o vnitro — nunca se sabe — fechado, e voltava a ack)rmecer. O «vc!:
flours», considerando Cjue fizera já mais do que o seu dever, recomeçav.
explicar-nos que a Inglaterra era uma ilha.
Ridos nós (excepto o poeta, e um rapaz que, sem avisar ninguém, par:
um dia para Hspanha. nas Brigadas Internacionais, para lá sc deixar m.,:.
como toda a gente) éramos nesse tem po mais ou menos monárquicos, cl:)-
era de Chambrillon, um esteta brilhante, e de Parain, cujo pai era fabricante .
fitas para chapéus em Saint-Étienne, t|ue tocava admiravelmente piano c e«i.:
apaixonado por uma m ulher que ainda não encontrara, mas sentia-se que o
encontrar, chidas as idéias que lhe enchiam cabeça e coração. Tratava-se de .

m onarquismo de circunstância, a favor do conde de Paris, claro, resuh..:^


sem dúvida da fulgurante passagem de Boutang pela khãgne alguns ,í;'.
antes, mas sem que as coisas fossem muito longe, pelo menos no nosso «

'T e r m o local q u e d e s ig n a as p e q u e n a s p a s sa g e n s e ruela'- d a c i d a d e v eih a de I .\o n , - \

318
o V /' A ( / O V

ntcntá\anio-nos cum alguns sarcasmos \ c a m n t c s . à custa dc ccríos iniini


' imaginários c da Fremc Popular, tjue csta\ a a entregar a França à poiiuíaça
,io,^ judeus.
Da Frente Popular, vi alguma coisa, ejuandí) um dia desíilou pela rue de
Républic|ue um imenso cortejo de operários que eu o b scr\a\a. com o cora
i ) cheio de raica, dc uma janclinha do apartainento cjue os meus pais então
. Lipavam, rue de rArbrC'.Sec («rua da Aioore .seca c nom e que era por si só
;.i programa completo. .Mas acabei por adenr apt sar de tudo ao cjue o «\elho
' :tirs» nos dizia stthre a burguesia írancesa e o, jscico c tarito bastou para me
cotar dos meus amigos nionárt]Liicos.
O poeta, esse, tinlia o espírito noutras pairtes. o tempo a cortejar
::i.i das duas raparigas da nossa aula. .Mlle .Moluio. Fra uma joreiu escura
mo o dia. e sob uma irancjuilidade apttrenie. era dc logo. fogi.i que oiniitavc
r lecemente que a tocassem, liouve tempestade c dramas públicos durante
' très anos que estire no liceu. O poeta íaziadhe deci.trações tíe am or à nossa
ente. até mesmo em inglês, e ela nada queriti escutar, l i u dia desapareceram
' Liois. julgámos cjue tinhttm morrido, mas toltaraiu a aparecer alguns dias
c.is tarde, aparentememe de boa saúde. Nem por isso deixarani de reatar o
a clesatio e as suas rupturas tio longo das horas seguintes. Era uma ciuesíão
esportica. e \alia mais do que a pobre e(]uipa de futebol loctil. cjue não eon-
cuia marcar golos, mas le\ a\a cabazadas deles. De\ e cli/er-se c|ue o m a iiv de
m era Ecioutird flerriot, cjue ]>ttssava o tempo ti gocernar o Partido Radical,
polir tilguma fórmuhi sobre a cultura (parece que le\oti dez anos tt tazè-lo) e
preparar-se pani m orrer cm paz ettrn a Igreja.
Eu estac a mtiis ou menos a par desttis disposições po''tunias atrace' dc um
'UÍta tiiío e magro, eom o mais lielo apêndice nas.ii cpie \ i n.i im nlu c id.t o
c de resto não i> impedia de cicer. e que procurei um cíi.t p o i' preLi'-.i\.!
õc ptira fitnciar na kheigne uma seeção dti juventude Fisiud.tmil ( risiã no
m in á r io onde nioracui. ntts altunts de Eoun lere. Recebeu-me bem. um pouco
.rpreendidü p o r virem pntcurá-lo assim [cassttndo por cimtt cl.is autorid.ides
unitipais, universitárias e eclesiásticas, mas acabou por aceitar Eoi assim
.,c. graçtis ao seu acordo. Formei a minlia primeira eêlula politicti; nunca pre
mi de Fundar outra. Fez-se o recrutamento. Manticemos reuniões irregulares.

3 19
L O l I S .1 I. I II I S ,S I R

descobria assim que a Igreja se ocupava da «questão social» à sua maneira,


que, vindo do Vaticano, fazia naturalmentc resmungar o «Velho Hours», e u:
dia partimos, com os nossos m onárquicos incluídos, para um «retiro» nu:
mosteiro de Dombes, onde há numerosas lagoas. Deparámos com padr.
untuosos, rejrousados e obrigatoriamente silenciosos. Trabalhavam a terra a
dia e à noite levantaram-se cinco vezes para rezar em voz alta. A casa cheir.a
incrivelmente a cera, a sabão, a azeite e a sandálias sujas. Era excelente p.u
aprendermos (t desprendim ento do m undo e a concentração espiritual. Ha
aliás em cada piso um enorm e relógio de parede que dava os quartos de lu :
o t|Lie mantinha toda a gente acordada, sobretudo de noite. Eu tentara impre.
nar-me deste ambiente, e rezava, de joelhos, convencido de que Pascal ac.f
ria por ler ar a melhor, graças aos seus argumentos materialistas, sobre o i'u,
materialismo espontâneo. Certa noite cheguei mesmo a fazer uma espécie
homilia acerca do «recolhimento», tiue me valeu uma estima sem reserr .i'

parte de Parain, a quem eu disse não ter qualquer mérito, uma r ez que o i'
texto fora escrito dc antemão. Por fim, é deste tem po que conservo a mem
de uma vocação religiosa possírel, mas falhada, e de uma certa d ispov,
para a eloquência eclesiástica.
coisa não podia ter grande influencia na questão, mas acresccnti=
nos Dttmbes, não havia raparigas, quando durante o resto do tem po tropev-
mos nelas em todo o lado. Não só sob a aparência de Mlle Molino, que c'..
fora de causa disputar a Bernard (nome do nttsso poeta), mas nt) parcpic
dins. ruas e igualmente no famoso café onde tive. como todo o novo «recri.:
que pagar o meu quinhão de cerveja e discursos. O discurso que fiz ficvi.
memétria de alguns colegas meus. Eles aterravam-nos, estavam ali para i "
nós tremíamos dando-lhes desse m odo todo o prazer desejado. A hora c hc.
por fim. Lembro-me de ter com eçado assim: «Cãozinho cãozinho cãozí
càozinho, dizia o miúdo. E a mãe: po r tiue é cjtie não fizeste chichi antc'
entrar?» A seguir a esta entrada decisiva, o resto já não tinha importàncl.i '
tava-se, creio eu. de u m p a stic h e de Valéry em que entre outras coisas eu
«Não depus a minha espada por dá cá aciuela palha», mas sem dizer pvr,
nem tiue espada era a espada, nem que palha era a palha. Fosse como r> -­
intenção nem a todos escapou, o que me foi ciaramente dado a ente

320
o s / .1 7 (-/ ^

.Liando fiii submetido a um interrogatório cerrado sobre as minhas relações


morosas, com o era também da praxe. Satei-me como pude, dizendo a \er-
..,ide: que só conhecera, mas de longe, uma rapariguita loura quando estava no
iorcan, ela coltava para casa pela mata c eu tinha \onrade de lhe fazer compa-
:iia pelo caminho c de a abraçar-, cjue conhecera de muito mais perto uma
atra rapariga, num a praia do Midi, quando lá passá\ a m o ' os meses de \é rã o
:u casa de um colega do meu pai, então colocado em Marselha, mas que as
. 'isas não tinham chegado muito longe, porque, ã excepcâo de uma tarde
aravilhosa nas dunas em que lhe deitei areia entre os seios, para depois o
Lsolher no côncavo do \ entre, não pude \o ltar a \ è-la. tendo-sc a minha mãe
oosto a essa relação com uma rapariga ejue achava no \a de mais para mim,
>rque era um ano mais velha e tinha olhos pretos, de tal maneira que um dia
aando eu queria ir ter com ela de bicicleta a uma praia onde ela sc encon-
ao a perigosamente sozinha, a minha mãe disse que não. e eu fuimie embora
-clerando a fundo na direcção contrária, até La Ciotat, onde oferecí a miin
a iprio um grande cálice de aguardente, sonhando cjue poderia tc*-la susten-
Jo à tona dentro de água. com o gostac a de fazer, com uma das mãos p o r bai-
s dt)s seios e outra encostada at7 seu sexo. o que não lhe desagradava de
..meira nenhum a e não a fazia correr o perigo de engravidar. Eles ouviram
do sem a mais pet[uena palacra de troça e, ciuando me calei, htntve um
.r.mde silencio, que de repente começámos a afogar em c e n eja .
Era assim que. sem o sabermos, apesar dos httrrores de Espanha, nos apro-
máxamos da guerra. Esta surpreendeu-me em Saint-Honoré, onde eu esta\ a
tão a águas, o tjue me d a\a pelo menos o prazer de mergulhar a correr na
'^ina e de passear debaixo das grandes ár\ (.)res do parque, à sombra. Está\ a­
s em Setembro de 1959, e eu coniinuaea sem receber a concot atória espe-
ã.i. Linha então no om bro esquerdo uma afecção reumática extremamente
lorosa, que me abandonou assim que fui mobilizado, E sabido que as guer-
' curam a maior parte dos males dos hontens. o meu pai foi m andado para
rente dos Alpes, à espera de que os italianos se decidissem a disparar alguns
's de canhão para provarem a si próprios que estacam de facto em guerra;
linha mãe refugiou-se no Morvan onde passou o período mais feliz da sua
;.i sem marido, sem filhos, tendo por única tarefa as funções de secretária

3 2 1
/ o r / V .1 /, 7 // V ,S I A'

da m a irie local, durante o afluxo dos refugiados da derrocada, tiuando c hc.


mos a Maio de 1940. IMla minha parte, fui m andado com outros estudara
para o centro ele Formação dos Altinos (.fficiais de Reserva (FOR) de Issoire
havia, numa cidade ainda provinciana, uma grande concentração de honit,
de todas as idades, de mulheres iclem. de cavalos e canhões velhos, uma ■,
ciue a artilharia era ao tempo hipomóvel. Éramos instruídos na arte da gue'
por um sargento amador. Courbon de Castelbouillon, tiue era rotundíssini'
como Napoleüo III, de perna eurta. mas uma bela figura de hom em a ca\ ,l
e que praguejava com o um carroceiro na areia onde andavam ãs voltas os ca­
los resignados que nem secjuer precisavam de ser conduzidos para avançar
melhor, ainda ficarem no mesmo sítio, largando de tempos a tempos uma Io
porção de esterco ou um jactt.i de mijo que surpreendia toda a gente. .\s ca- .
gadas no campo de manobras, cuja chama o sargento afirmava ter-se pere.,
no tempo de Fuís XIV. encantavam-nos. sobretudo pela sua desordem, poiv, .
não havia nenhum de nós capaz de fazer avançar, nem recuar, nem saltar, lo
deitar-se fosse tiue montada fosse. Mas ríamo-nos muito, apesar das fúria' .
Courbon, que não desgostava de se ver encarregado de recrutas tão desoLu:
res. Dizia que naquelas condições íamos perder a guerra, e que seria bem tc.
para os nossos calos e para a Frente Popular. O regozijo vinha-nos dos n o "
passeios, pelas altas cristas que bordam o vale ck.) Allier, cobertas de espinl.,
ros negros cujos frutos, no Inverno estragados, eram o nosso regalo, p:
cipalmente tpiando os aivanhávamos a céu aberto ou junto de uma cap,
abandonada. Regressavamos estafados mas contentes. Havia vários amigos c:.
sabiam com o ninguém, com o devido arsenal de citações sempre a postos, i
nar uma conversa agradável. Havia Poumarat. que voltei depois a encontra:
qtie hoje tem barbas, uma m ulher a condizer com ele, vários filhos em coul
dància, e que apanha torcicolos a olhar para o céu. pois faz asa delta, para ■,
se as correntes são favatráveis. Escreve romances bons, mas que falam de co;'
velhas de mais para que algum editor os aceite. Havia Béchard. um cttlega .
Kbâgiie, com sotaque do .Morvand, cabelos muito compridos, trangalhadar, ,
sempre a arrastar uma sombra maior do epie ele, tocando violino e falan.
inglês quando se sentia satisfeito. .Morreu em 1942, ao mesmo tempo qm
mulher, de uma tuberculose conjugal, em pleno Marrocos; não sei o que .

422
o ,s /■ ,1 ( 1 o s

foi para lá fazer, mas feria sido com certeza para fugir a Pétain. Havia por fim
urna figura encorpada cjue só pensa\a em mídhercs. Acabara por descobrir
uma. que se deitava juntameme com os ca\alos e fazia amor na palha, e ele
sustentava que isso valia todo o ouro do mundo, pois ela não estava com ceri­
mônias, queria sempre mais. e ele chegou mesmo a arranjar-lhe um quarto de
hotel, era caro mas mais prático, excejsto cjuando o \im o s r oltar para junto de
nós a dizer que a rapariga cra uma cabra porque lhe pregara um esquenta-
mento. Na altura, não era coisa que se curasse com excessi\a facilidade. Este
episódio confirmou-me na ideia que era preciso desconfiar das mulheres,
sobretudo quando dormiam na palha dos ca\ aios
Como o tempo passasse e a guerra se irrolongasse sem a\ançar. isergunta-
ram-nos se nos oferecíamos com o xoluntários para a a\ãação. Béchard e os
outros disseram que sim, Eu tive m edo c adocei tiurante o tempo necessário
para me esquivar à opção. 'Eive febre que bastasse para o conseguir, e julgo ate
que esfregava conscienciosamente o term ôm etro para obter o rcstiltado dese­
jado. () médico passou, \ iu a minha curva de temperaturas e não insistiu.
Fiquei soz.inho com Courbon. que preferia a equitação à aciação. .Vias a cthsa
perdera a graça.
ü que restava de nós foi m andado para a Bretanha, para Vãnnes, a fim de
completarmos a instrução. Deparei aí com uma nova companhia, menos
hom ogênea e menos dicertida. Agora trabalhavamos a valer: saídas nocturnas,
ã caça de espiões (descobrimos um dia, rasgados, papéis pertencentes a espa-
nhétis em fuga), tiros fictícios em espaços balizados, marclias forçadas, exames
escritos, etc.
Entretanto, chegaram os refugiados, com as suas miserá\ei> bagagens,
E em breve as tropas alemãs se aproximaram, enquanto nós no.s preparár amos
para defender o «reduto bretão de Paul Rem aud. que largar a entretanto para
Bordeaux com o g o rerno em debandada. Vannes foi proclamada «cidade
aberta», e nós esperámos a pé firme os alemães, m ontando guarda à volta dt)
nosso quartel para impedirmos os soldados refugiados de voltarem para casa
com o desertores. Eram as ordens do general Eebleu, tiue aplicara assim um
plano bem reflectido, destinado a entregar-nos ao exército alemão, em virtude
do princípio: mais vale, c mais seguro politicamente, que os hom ens sigam

32,^
L O r / V ,i / 7 // r V N /: /í

para iim cativeiro alemão do que \ ão para o Sul de França onde Fariam sab,
lá o què. dar ouvidos a De Gaulle por exemplo. Raciocínio irrepreen.M\.
eficaz.
Os alemães chegaram em side-cars. prestaram-nos as honras devida' .
vencidos, mostraram-se corteses, prometeram iibertar-nos dentro de d o i' .
e preveniram-nos caridosamente de que se fugíssemos, haveria reprc'..
sobre as nossas famílias uma vez que o seu poder chegava a toda a p.a
Alguns fizeram orelhas moucas e puseram-se ao fresco, sem escrúpulos !
tava um trajo civil e meia dúzia de francos. Foi de resto o tiuc fez o mei; :
antigo prisioneiro de It, ciue conhecia a cantiga e não se deixou enib..
Arranjou, não sei como, um trajo ci\ il, roubou uma bicicleta, e seguiu tra,r,.
lamente o seu caminho, dando-se até ao luxo de atrat essar o l.oire. a preu
de ir mijar na outra margem («sou canhoto, senhor oficiaF>), c um belo dia .
receu à mulher completamentc siderada: «mas tu ainda nos vais arranjar «
plicações». O meu tio era de earácter suficientemente ruim para ficar d c ',.
sado. Morreu mais tarde, depois de criar a família e de atormentar a mui
mas isso é outra história.
Quanto a nós. os alemães transportaram-nos atenciosamente, par.i
perm itir visitá-los antes da partida, para diversos locais, chamados carnpi-
prisioneiros mas cheios de correntes de ar. ainda na Bretanha. Lembro-nu
um desses campos onde bastava apanhar a ambulância para se ficar cá fora
outro onde bastava uma pessoa descer do com boio e perder-se na aldciaz::'
por detrás da estação para reconc]uistar a liberdade. Mas havia o problem..
deserção e a promessa de fazermos tudo respeitando as regras. Aliás O' .
mães tinham-me apreendido uma pequena Kodak, que o meu pai me d«
mas naturalmente era para a guardarem em lugar seguro antes de ma deva
rem. Podíamos escrever. Tudo parecia correr bem. Bastava esperar.
Entretanto, tínhamos já feito os exames escritos regulamentares dos f.‘
O primeiro classificado foi o padre Dubarle, Como no concurso geral a:
não com o no concurso da Feole Normale. onde ficara cm sexto lugar, creic ;
em Julho de 1939. tendo tido 19 em latim, nada menos, e 3 em grego, que r
celière me perdoe, e de ter feito um a exposição filosófica sobre a causalid.:
eficiente c|ue não tinha a httnra de conheer. que agradou á boa alma que

324
o s /' .1 ( 1 (> s

Schuhl e desagmdou a Lachièze~Rc\ que muito justamentc me disse que «não


pcreebera nada»), falhei em todas as pro\as. não ^ei >equcr se eheguei a ser
classificado, uma vez que não houee tempo para ^e publicarem os resultados,
por culpa dos alemães. Os alemães consideraram aliá" que éramos militares de
segunda classe, e mandaram-nos por consequência para um s t a lu g para solda­
dos. Não sem uma estadia num grande campo de conceiitracão perto de Nan-
tes, onde disputavamos a água uns aos outros e onde Duharle, ejuc e ia longe,
organizou a vigilância dos comboios militares que passa\ ani na-- imediações, a
fim de passar para o exterior informações a esse respeito Recordo que i-to --e
passava em Junho de 19-tO. antes do apelo de De (jaiille.
O caso com eçou a ser sério quando nos \ imos no co m b o io com um

■eagão de cauda cheict de soldados armados com metralhadoras, aos ses-enta


prisioneiros por carruagem, sendo preciso mijar para dentro de garrafas, e
'cm termos nada para beber além da nossa urina, nada para m order alem do
nosso freio. Isso durou quatro dias e ejuatro noites interm ináw is O comboio
parava em certas estações em pleno dia e havia pessoas que nos da\am que
-.omer. Paráeaimos em pleno campo, víamos tts camponeses ceifando o feno.
dez metros de distância. Alguns camaradas acabaram por arrancar as tábuas
da carruagem, enfiarem-se por cima dos eixos do eagão, mas os outros quei-
\a\am-se, «vais fazer com que nos fuzilem», enquanto eles continuaeam e
..cubavam por saltar lá para fora m ergulhando na noite e nas silvas. C)u\ iam-
■'c alguns tiros, e um cão que ladrava, mas o cão era bom sinal, Todos so-
dnámos evadir-nos assim, mas tínhamos medo, não hav ia tempo, e se os ale-
n.les dessem com as carruagens vazias! Fornecíamos endereços e mensagens
que partiam, juntamente ccjm recomendações de toda a espécie, e vai
. un Deus,
Quando atravessámos a fronteira alemã, fomos prevenidos pela chuva,
. Alemanha é um país onde chove, Como dizia (joethe ao seu monarca, mais
.de mau tem po do que tempo nenhum. H não se enganava, .Mas a chuva —
dha. Os alemães que víamos, lív idos. nas estações, estav am encharcados.
1 nos davaim de comer. Tinham ar de estar sob o efeito de choc]ue da sua
iria. tiLie os surpreendera de manhã cedo. antes do café, e ainda não
lam podido recompor-se, Não sabiam manifestamente nada dos campos de

32S
/, o r / V .1 /, V // r s s E R

concentração, mas nós também não. e fosse com o fosse eles sempre estacaiv,
em m elhor posição do cjue nós para o que desse e viesse.
Acabámos por chegar a uma gare sem nome. no meio da charneca con-^
tantemente varrida pela c h m a e pelo vento. Mandaram-nos apear e pusemo-
-nos a caminho, sob a ameaça dos chicotes e das espingardas, ao longo de qua
renta cjuilómetros. Numerosos camaradas ficaram pelo caminho, mas, de tiir.
m odo geral, os alemães não os lic[uidaram. Mandaram \ ir cavalos para os le\ a
rem. Lembro-me que para o que desse e viesse, e tendo presente o dizer dc
Goethc, surripiara uma espécie de impermeável britânico de oleado que
pusera por baixo da camisa, a fim de qtie os alemães mo nãtt confiscassem. 1 1/
os meus ejuarenta cjuikxmetros com aquela coisa em cima da pele, escusadi
será dizer que transpirei um bom bocadtj, e fiquei com medtt. ao chegar
tenda, de apanhar no mínimo uma constipação, mas nada disso, e de resto ni
dia seguinte os alemães confiscaram-me a minha pseudo-camisa, declarandi
que lhes podia ser útil. Acho que sim. .A partir daí, habituei-me à chuva, e de--
cobri que uma pessoa pode molhar-se sem se constipar.
.A noite na tenda foi inacreditãwl, ITnhamos fome. sede, mas acima dc
tudo estáram os estoirados. e caímos no sono de tal maneira que no di.i
seguinte tiw ram que nos puxar pelos jsés para nos acordar, a fim de sermo^
submetidos aos exames de controlo do catiw iro alemão. .Mas eu tinha apren­
dido ciue os hom ens se aquecem uns aos outros, principalmente quando se
sentem infelizes e fatigados, e que, apertados uns contra os outros, as coisa-
acabam por se arranjar.
.Mas não para toda a gente. O nosso campo confinava com um outro
campo, onde r íamos vaguear seres esfaimados. t|ue deviam ter vindo do lestc
da Polônia, uma vez que falavam russo, não se atreviam a aproximar-se do-
arames farpados electrificados. e então n é)S atirávamos-lhes um bocado de
pão, algumas roupas, e algumas palavras que sabíamos perfeitamente que ele-
não perceberiam. mas não interessava, sempre lhes fazia bem a eles e bem a
nós, ficávamos menos sós na nossa miséria.
Depois, fomos distribuídos p o r com andos separados. Tive direito, junta­
mente com alguns estudantes e trezentos camponeses e pequeno-burgueses, a
um campo especial, porque se tratava de escavar reservatórios subterrâneo-

3 2 6
o s h I (. I O

para a Luftwaífe. e antes do mais de demolir no estaleiro casas velhas, florts-


tas, secar os charcos e cercar tudo com arame farpado. A minha incompctèn
cia c(.)nsagroii-me a esta última especialidade: ca\ar. cra\ar estacas, fixar ara­
mes: prendíamo-nos a nós próprios. Unham os pelas costas uma sentinela, um
antigo combatente da Guerra de hi. que esta\ a farto de matanças e não se can-
sa\a de no-lo repetir. De tempos a tempos. da\a-n<)" um Isocado da sua bucha,
pois a nossa não era grande coisa, l.cmbro-mc de que um dia, m unido de
Lagergeld (dinheiro que só tinha curso no campo, para comprar escocas de
dentes e tabaco), meti na cabeca ir ter com uma padeira a trezentos metros
dali. Fda tinha um belo pão branco alemão, e também pão c^eLiro. e ainda uma
tarte de ameixas. .\ada feito: o meu dinheiro não \ aiia nada. e ela so cjucria
dinheiro autentico em troca do seu pão. (iomo dizia a nossa senuncla. F, a
guerral» e cuspia no chão para sublinhar bem o que sentia,
No campo conheci princi]aalmente camponeses cheios de recordações:
cias suas terras, dos seus tmimais. dos seus trabalhos, da sua niLÜher e dos seus
filhos. Cheios sobretudo de uma icleia de superioridade: os «Cihleuhs» tos ale­
mães) não sabem o c]ue e trabalhar, a gente \ ai-lh.es mostrar com o é. E atira-
\am-se ao trabalho, apaixonados pela beleza do seu prõrprio gesto. Mas havia
dois ou très estudantes que não concordavam e o faziam saber: cleccmos traba
lhar o menos possível, mesmo que m orramos de fome. e até se conseguísse­
mos sabotar... Ema minoria, espíritos ruins. Havia também um operário agrí­
cola normtindo, que se chamava Colomhin, tinha uns grandes bigodes, uma
grande boina lisa e convicções silenciosas. Esse não se esforçaicti nuiitt). e de
tempos a tempos, cuspia nas mãos, aptiiava-se na pá e dizia. \t>u fazer um
\ alente co lo m h in b E punha-se a cagar ostensivamente nas imediações, ã \ ista
dos alemães atônitos. Contou-me muita coisa,
Não tanto, é verdade, como outrtts prisioneiros, Estou a pensar enr espe­
cial num jovem normando, cjue conseguira guardar o seu rehãgio de ouro.
prenda da mulher, e que o m ostrara a toda a geme, jurando que não o r e n ­
dería por um pedaçt) de pão. A sua grande surpresa foi um dia não dar com
ele debaixo da enxerga. Acusou os alemães, que lhes responderam que não

* A p;lla^■[■a ecoi ombi n» significa, cni r c oiurux coisa-s, excremento dc ffombt) o u dc a \ c dc


. anoci ras. ( .V. do l. )

^2-
/. o I I s .1 L I H I S S /: R

precisavam do relógio dele, que tinham confiscado os outros todos — e mai-


um, m enos um. ora! O relógio sumira-se sozinho. O certo é cjue o tipo (t dc'
cobriu no regresso nas mãos da sua mulher, que o recebera de um oficial arnc
ricano. Sempre há coisas curiosas. Mas havia também um outro hom em , cult<
jornalista de um diário da região leste, de origem russa, <t que lhe dava argi
mentos acerca do pacto germano-so\ iético e dos seus efeitos, e também uir
boa dose de recordações femininas que contava, dada a penúria de m ulherc'
com muito à-vontade e sucesso. Hm particular que possuí-las era a coisa ma -
fácil do mundo, como o demonstrara uma que ele acariciara por baixo da to.
lha no decorrer de um banquete oficial, à vista de toda a gente, ou a mesir
ciue ele depois acompanhara a casa à noite, apertando-o contra a por:
fechada, até ele lhe abrir as pernas e tocar nas posições estratégicas com
assentimento da achersária cjue, conform e ele fazia questão de sublinhar esru’
completamente nua por baixo do vestido. Era uma história c]ue nos faz:,
sonhar a todos, incluindo Colombin que nessa altura cuspia no chão.
() mesmo jornalista com eçou a ocupar-sc cia educação sexual das no'-v -
sentinelas. Eraco mérito, para dizer a verdade. .Mas ensinou-lhes que as m ulf ;.
res negras «a tinham de lado», o que suscitou uma espécie de revolução enrr.
os nossos guardas, mandaram vir um oficial médico c]ue os ou\ iu atentamen:»
comprou uma enciclopédia onde nada encontrou de convincente, pôs-se c:'
contacto com a autoridade superior que lhe comunicou que isso era cerda^::.
para todas as raças que comem alho, mas que não o com endo os negros, ,.
contrário dos judeus e dos franceses, o seu caso não devia ser esse. A ciuest.i
ficou por aqui, mas o nosso camarada teve direito a uma ração suplementar c,
pão, cjue partilhctu connosco.
Eoi então cjue fui nom eado varredor, porque arranjara uma hérnia feu,
carregar troncos de árvores no pântano, ficava assim no camj?o o dia tod
durante a ausência dos meus camaradas, e manejava a vassoura. A vassouc
comjsõe-se de um cabo e do resto. O que conta é o cabo, e o jeito da m.i
O jsó é secundário. E com o a intendència: vai atrás. Eu descobrira o jeito ,
mão certo, e desemjaenhava em duas horas uma tarefa cjue jsttdia durar do
Portanto sobrava-mc tempo. Comecei a escrever uma tragédia sobre essa jo\ c
grega que o jiai general ejueria matar para cjue se levantasse o vento. Eu qiicr

328
o ,s F .4 F 7 O S

que ela vivesse, e tratei de que isso fosse possirel. se ela estivesse de acordo.
Fugiriamos os d(tis num barco, ao cair da noite, e fariamos am or no alto mar,
na condição de não haver vento, mas apenas um bocadinho de brisa garantindo
o fresco e o prazer. Não tive tempo de terminar esta obra-prima, onde o Girau-
doux dos ouriços tinha a sua parte, porque adoeei scriamente: dos rins, ao que
parece, segundo o médico francês do campo, um liomem do norte, altivo e
competente, que explicou aos alemães que o caso não era para brincadeiras,
tinham de me e n v ia r de urgência para o hospital central do campo. Chegou
uma ambulância branca, e pela primeirti vez fui transportado ciewigar. ao longo
de quilômetros de terra desolada, a caminho cio campo de Sehleswig. Dei
entrada no hospital, onde fui bem assistido por um médico alemão cansado
que, ao cabo de quinze dias. me declarou curado e me m andou \o ltar para o
campo. Mas tratava-se agora do campo central. l'm mundo. Os prisioneiros
polacos, que tinham sido os primeiros a chegar, ocupavam todos os postos-
-chave, e uma pequena guerra opunha os franceses, os belgtts. os sér\ ios a esses
polacos, que acabaram po r abrir mão de alguns postos. Fiquei cm condiçêtes de
trabalhar no exterior, descarregar carvão, c a\ar trincheiras, fazer jardinagem,
antes de penetrar nos lugares do campo: na enfermaria onde reinava o médico
que me m andara para o hospital, c um profético brejeiro, que jsassava o tempo
a m andar tabletes de chocolate às mulheres ucranianas do campo fronteiro para
que elas de longe lhe mostrassem as coxas abertas. Con\erti-m e assim em
«enfermeiro» sem nunca o ter sido, e tratava de toda a espécie de doentes. \ i
assim m orrer um pobre cançonetista parisiense com uma gangrena provocada
por uma operação a céu aberto praticada por um jo\ em médico nazi alemão
que queria adquirir experiência. A maior parte dos meus doentes eram-no por
fingimento. Emagreciam por meio de jejuns a fim de serem considerados como
sofrendo de uma úlcera de estttmago p o r meitj de uma radiografia tirada depois
de terem engolido um pedaço de fio com uma bolinha de prata de chocolate
amarrada na ponta. A coisa nem sempre resulta^ a. Fu tentei, mas em vão. Tentei
fazer-me reformar com o enfermeiro, pedindo que me enviassem certos pajséis
que, como p o r acaso, descobriria diante de um guarda ao abrir uma e n c o ­
menda. Não tive êxito, porque me tinha esquecido de tirar da minha caderneta
militar os dados que provavam que fora aluno oficial da reserva.

329
i o r / s .1 L 1 n I S V /: A’

Esia experiência forçada do trabalho manual en,sinou-me muitas o -


Primeiro, que é necessária uma aprendizagem comjslcta. Depois, que é pi\ .
saber lidar com o tempo, manter com ele relações calculadas, onde inter
o ritmo da respiração, do esforço e da fadiga, e que é necessária lentidão r
que o esforço dure. H por fim que este trabalht) que dura e cansa acaba jsov ■
menos difícil do C]ue o trabalho intelectual, com o o «velho Hours» nos t::
dito e repetido durante as aulas, ou pelo m enos não tão extenuante par.,
nervos. Aprendí também que esses hom ens que trabalham durante a '
inteira (note-se que só convivi com camponeses ao Umgo de todo v-
período, porque os alemães m andaram os operários prisioneiros para fábrn.
onde eles podiam prestar-lhes serviços qualificados) adcjuirem com isso ui:
verdadeira cultura, silenciosa, mas extremamente rica, e não simplesmen..
uma cultura técnica, mas também mercantil, contabilística, moral e polític.
Aprendi que um camponês é um cerdadeiro engenheiro, embora não o saib..
que tem qtie contrtilar um incnAel núm ero de variáceis, desde o tempo e
estações até às indecisões do mercado, passando pela técnica, pela tecnologi,;
pela química, pela agrobiologia, pelo direito c pela hita sindical e política —
cjuer participe activamente em todos estes domínios ou se limite a sofré-lo'
Hélène ensinar-mo-ia mais tarde. E não falo já das prev isões das culturas .
médio prazo, das dívidas contraídas na compra de mátjuinas-ferramentas, di -
investimentos com efeitos aleatéirios segundo os humores do mercado, ct^
Aprendi também que existiam, na própria França, c|ue poderiam os pens.i-
livre desse flagelo, camponeses pobres, vivendo de um a vaca num prad'
pccjueno, de castanhas e centeio ou, com o no Morvan, da criação de uns tan
tos porcos e de uma criança cia Assistência Pública. Formei assim pouco .
pouco uma ideia, da qual até então estivera muito longe, da existência de um.
verdadeira cultura popular, ou pelo menos camponesa, que nada tem a w:
com o folclore, que não se vê, más é determinante para a compreensão d
com portam ento c das reaeções dos camponeses, em particular essas acções d
tipo da Jcicqiierie. que lhes vêm da Idade Média, e chegam a desconcertar
próprio Partido Comunista. Lembrava-me das palavras de Marx no 18 de Bn,-
m ário: Napoleão III foi plebiscitado pelos camponeses franceses, e estes nã<
são tima classe social, mas uma saca de batata. De facto. eu podia agora medi:
o ,x F .1 f / O

a Mia solidão: cada um por si, com a sua terra, separado dos outros, mas domi
nado pelos grandes, inclusivamente nas cooperaiix as e nos siiulicatos campotie-
ses. Não foi o que se passou depois da Guerra com os jovens agricultores, enqiur
drados pelas organizações católicas, que alterou fosse no cjue fosse esta sittiação
continuam a ser os grandes cjue dom inam e ditam a lei aos médios, aos petiuenos
e aos pobres. Os camponeses não foram educados pelo capitalismo industrial
como o foram os operários fabris, concentrados no local de trabalho, submeti­
dos à disciplina da divisão e da organização do trabalho, explorados rigida­
mente, e obrigados a organizarem-se à luz do dia para se defenderem. Permane­
cem isolados, cada um para o seu lado, e não conseguem reconhecer os seus
interesses comuns. São uma presa de antemão disponível para o Estado burguês,
que os pou p a (impostos quase inexistentes, créditos, etc.) e os tem assim ã sua
mercê para os conxerter em dócil clientela eleitoral. São um dos elementos dessa
«barreira» persistente cuja existência foi um dia reconhecida por um secretário
de federação do Partido Comunista, p o r volta de 19~3, na setiuência da «t|uebra»
eleitoral do Partido, Mas eu não tinha conhecido operários. Pequeno-burgueses.
sim, tanto oficiais sulbalternos de carreira, com o funcionários, ou empregados,
ou comerciantes, ou universitários. l'm outro mundo, falador, este, apressado,
á\ ido de voltar a ver mulher, filhos e emprego, pronto a engolir todas as notícias,
sobretudo as mulheres, com m edo dos russtis. mais m edo dos russos do que dos
alemães, habilidosos, dispostos a tudo para conseguirem ser repatriados pra­
guejando contra De Gaulle sem dizerem bem de Pétain porque De (jatille fazia
com que a guerra se prolongasse, m andando \ ir de França encomendas sum p­
tuosas, que aliás partilhaxam de bom grado com todos os outros. pre(.teupados
com a sua aparência, c falando de mulheres o dia inteiro. Lembro-me de um
corso que foi obrigado a deitar-se na sua cama de tábuas, a ciuem tiraram as cal­
ças e masturbaram à força. Passou-se isto num barracão onde todas as noites um
professor de Clermont chamado Ferrier organizaxa uma «emissão» de rádio.
Iodos os barracões enviax am os seus representantes, e Ferrier dava as notícias
militares e políticas do dia que ouvira numa emissora alemã, num escritório
h onde trabalhava e conseguira conquistar a confiança do seu guarda, um com u­
nista alemão. Ferrier alimentava o moral de todo o campo. Por xezes é suficiente
que um simples indivídtio tenha certa iniciatixa para o clima se transformar.

3.31
/, o r / s A L r H ( S S /: R

Resignci-me portanto a ficar no campo, onde tinha numerosos amigos: i


Mailh, que não era ainda prêm io de Roma, Hameau. jo\em arquitecto sem \
tém, Clcrc, antigo capitão da equipa de Cannes que ganhara a Taça de Fra ­
de futebol num desafio histórico (esse hom em minúsculo era um jogador p-
digio.so, evadira-se quatro vezes em condições incrí\eis e deixara-se apani
na fronteira suíça ciuando. depois de já a ter atravessado, \oltara por engan.
território alemão), o padre Poirier, e sobretudo Robert Daêl.
Havia nos campos um hom em de confiança por cada nacionalidade .
virtude da Convenção de Genebra. O primeiro dos nossos fora um rapaz u
m ado C:errutti, representante comercial de automóveis. Obti\era o acordo c
alemães c fora instalado no seu lugar sem eleições. Quando, para o recomp^
sar, os alemães o repatriaram, houve uma certa agitação no campo. Os alen..
tinham o seu candidato, mas nós não o cjueríamos. p o r ser pétainista. Fnter
mo-nt)s para eleger Daêl, que levou facilmente a melhor, apoiado p o r kk :.
gente, incluindo os dentistas, para grande espanto dos alemães. O primeiro .:
de Daêl, que ninguém com preendeu, foi colocar no seu gabinete o candic
dos alemães, o pétainista. Os alemães ficaram satisfeitos. Ihn mes mais ta.-,
Daêl conseguia dos alemães o repatriamento do seu adjunto, c substituiu-o
mim. Não esciueci esta luminosa e simples lição de política. Daêl tinha mv.
força, fazia o que queria do estado-marior alemão do campo, conseguiu a tr.o
ferência de dois oficiais C]ue o incomodavam, acabou p o r assumir o com r
sobre tudo o ejue chegava de França, alimentos, encomendas, correio, e rec:.
nizou o conjunto das relações entre o campo central e os com andos disper-
muitas vezes abandonados a si próprios. Era preciso não o contrariar. Falac .
alemão pessoalíssimo, cujos erros de pronúncia serviam para prender o >
interlocutor, nunca cometeu um erro, e toda a gente o estimava, ainda que í -
de poucas palavras. Lembro-me de um incidente ocorrido no teatro do cair
onde todos disputavam sempre uns aos outros os melhores lugares, boa p
dos quais estavam reservados aos alemães e aos notáveis do campo, l in
Daêl m andou afixar a decisão seguinte: «A partir de hoje. todos os luc.
reservados no teatro são suprimidos, com uma única excepção: a minha '•
houve objecções. e os alemães passaram a fazer bicha com o toda a gente r
verem as peças de b o u lev a rd com hom ens em ttrivesti a fazer de m ulher -

332
o V /■' I < '/■ o s

No entanto \'eio tinta vez uma mulher ao eampo: uma francesa, cantora,
:io bonita, e toda a gente ficou de cabeça perdida. Cantou no teatro, a
, _air DacM convidou-a para a sua mesa pessoal, num encontro a sós que deve
^ acabado bem. Também ele gostava de mulheres, e de bom grado se punha
o.l.ir delas. Contava as stias aventuras de jm entude. o jogo de «pctker des­
ço com certas jovens, entre as quais a fillia do embaixador da China, e
c.io arranjavci sempre maneira de perder, o que lhe permitia ganhar o que
.cria. Como conquistara no campo a simpatia do oficial encarregado de o
. mpanhar na fiscalização dos comandos a bordo de um camião conduzido
r um tipo cham ado Toto, jovem operário parisiense de soiatpie cerrado.
. cl conseguiu um dia titie esse oficial o levasse a Hamburgo, até um t|uarto
de estava à espera dele uma belíssima polaca que soulte recebè-lo com as
. ' idas atenções, aventura que não deixava porém de ter os seus riscos para os
olicados. Que eu saiba, Daél não foi mais longe. .Ao regressar do cativeiro,
ivenceu uma jovem c[ue até então não conhecia de que poderiam enten-
cr-se. construir uma vida e ter filhos. Escreveu-me e n tã o : Não podes imagi-
. c o barulho dos saltos dos sapatos dela no passeio à minha direita... Manteve
'ua palavra, sem a m enor quebra de contrato, reduzido a vender filmes para
' outros, cjtte miséria quando pensamos no hom em tjue ele era. Pelo menos
■ou umas belas crianças, os seus filhos. A m ulher sobrev'iv'e-lhc ainda, nas
r.iias da Mancha. Há cora certeza muitos hom ens em França (ele não tentou
itar a ver ninguém) que pensa ainda e por muito tempo continuarão a pen-
- nele, como num a figura de milagre e semi-fabttlosa.
Tenho de contar aqui mais um episódio que se desenrolou entre mim e
..el, por tim lado. e, por oumv lado. a adversidade. QuancU.i Daél. fatigado,
vindonoti t) seu cargo de hom em de confiança, depois de termos reflectido
v-moradamente nos impasses da situação, perguntãmo-nos se não valeria a
cita tentarmos evadir-nos. A dificuldade residia no facto de durante as très
emanas que se seguiam a cada evasão, todas as forças da guarda e da polícia
éemã serem mobilizadas na perseguição aos evadidos. que po r isso ficavaim
r.iticamente sem hipóteses. Tratava-se portanto de contornar esta dificuldade,
iiaginámos a seguinte solução: bastava dei.xarmos passar o período de três
emanas e, para não provocarmos o desencadear das medidas de controlo, não

3.^.^
/. o i: / V ,1 í 1 H l S ,S /;

nos cvadirmos durante as mesmas trcs semanas. O que só era possí\el nur
condição: ficarmos à espera no campo, depois de consideracios oficialme-'
com o evadidos, durante as três semanas necessárias. Para tanto bastava ciiie n
escondéssemos num sítio qualquer, deixando depois passar o tempo, coma;'
que o esconderijo fosse seguro.
Ora nada mais fácil do tiue descobrinm)s no camptt central um escont.
rijo seguro. Instalámo-nos nele com a cumplicidade de alguns amigos exr
rientes, que nos traziam alimentcjs e informações animadoras sobre o afã l;
alemães, e deixámos passar as três semanas. Dejaois pusemo-nos ao largo fa>.

mente, com Daêl a permitir-se cum prim entar de passagem, com o de costu;r
a sentinela embasbacada. As coisas correram muito bem, conform e o pre\ i':
se exceptuarmos esse pequeno imprevisto que foi encontrarm os um funcic;
riozinho dos Correios que, num lugarejo qualquer, nos perguntou a mor.: ,
exacta de um destinatário que não conhecíamos. O que o fez desconfiar e
^aleu uma recompensa pela nossa captura, conform e o previsto.
Acrescento, para dizer toda a verdade, que esta história foi de facto pre;
rada por nós tal com o a contei, mas cjtie não chegámos a sair do campo
gando-nos stificientemente compensados |')elo nosso esforço de imaginaç.ã
pela descoberta do princípio da solução. ,\ão o esqueci, desde que volte
ocujoar-me de filosofia, pois no fundo o problema dos problemas filosófio -
políticos e militares ) ê saber como sair de um círculo continuando dc.' o
dele.
Q uando as tropas inglesas chegaram a cinquenta quilômetros do can"
a derrocada alemã agravou-se e Daêl aplicou outros princípios estratégu
Foi ter com os alemães para lhes propor um negócio: vocês vão-se eml^ -
nós ocupamos os vossos lugares e em troca eu passo-\x)s certificados de n
comportam ento. Eles aceitaram e deixaram, durante a noite, tudo no cair :
A seguir bastou-nos proceder à nossa instalação. Foi uma grande revoluçã.
nossa existência. Para começar, Toto conseguiu p o d e r deitar-se com a a k

que lhe chamara a atenção, graças ao seu perfume, de longe, num escrir -
Formaram-se casais, mais ou m enos abençoados pelo padre Poirier. Os ab,:-
cimentos foram organizados em grande, po r m eio de batidas que rendiam .
uma delas a sua carga de gamos, corças, e também lebres e outros animak

334
o ' ! \ ( r u s

legumes ou álcoois subsequentes. Des\ iámos uma ribeira para eonstguir água.
Por fim fizemos pão franeès. Reunimos a população jsara lhe darm os inform a­
ções e formação políticas. F.nsinámos com o manejar armas, e também inglès e
russo aos jovens alemães e às jo\ens alemãs, inicialmente aterrorizados, depois
'crenos. Jogámos futebol e fizemos teatro com mulhercv a valer. Ura domingo
todos os dias, quer dizer, o comunismo,
Mas os malditos ingleses não ha\ i;i ni.ineira dc chegarem, Daél e eu c o n ­
cebemos o projecto de ir ao encontro delc' par.t o ' inínrm arm os da situação,
.Cpoderámo-nos de uma \ iatura. de um motorista uirn hoc.ido ecsgoi c m ete­
mos pela estrada direittxs a tlamlsurgo, onde os ingleses nos atolheram tão
friamente t|ue preferimos igracais a um c.xpediente do motoristai deixar a sua
companhia e voltar ao campo, onde fomos muitt) mal r e c eb i d o s , julgando os
nossos camaradas tjue os tínhamos «abandonado», incluindo o padre Poirier.
que tinha a sua moral (há coisas ciue não se fazem), (lonsolámo nos com um
beltt guisado de gamo. e esperámos pelo epie \ iesse a seguir.
Os ingleses acabaram apesar de tudo por chegar e asseguraram-nos trans­
porte na ctmdição de ali deixarmos todos os nossos tesouros pessoais, de
.ivião. primeiro para Bruxelas, a seguir para i^aris, e para mim a seguir ainda
para Marrocos, onde então vi\ iam os meus pais e onde o meu pai continuava
,1 jogar tênis e percorria o império cherifiano a duzentos ã hora. excepto
quando os camelos, que nunca dão prioridade a ninguém no seu caminho, lhe
cortavam o passo. Tinha um mtttorista espanhol que dizia; <^Maclanie. ele tem
medo dos camelos, do Senhor não tem ela medo.»
Foi um reencontro muito difícil. Ku tinha a impressão de estar \elho. de
ter perdido o comboio, c de já não ter nem genica nem nada na cabeca. ,\'ão
me sentia capaz de \oltar ã Fcole. embora esta me t i r o s e en\iacio livros e
continuasse de portas abertas para mim. FOi então que íi\e a primeira das
minhas depressões. Passei por tantas, tão graces. tão dramáticas, desde há
rrinta anos (devo ter passado ao todo uns bons quinze anos em hospitais ou
clínicas psiquiátricas, e lá estaria ainda com toda a certeza se não fosse a aná­
lise), tjue me perm itirão não falar do assunto. De resto, com o falar da angíistia
que é litcralmente intolerável, vizinha do inferno, e do vazio que é insondável
c apavorante?

5,s5
/, o ! / V 1 í / // í V ,s i:

Tinha m edo de ser sexualmente impotente, (ionsultei nm médico milit.c


que me pregou uma descom postura à laia de tratamento e me garantiu que esta\
tudo bem. Visitei Marrocos com o meu pai, joguei também tênis, tomei banbu'
não conbeci rapargias (e\ identemente), ou\ i contar uma série de bistêtrias sobr^
Sidna e a sua corte, os seus amigos, os seus médicos, sobre o governador-ger.i
e as suas fúrias, em suma ti^'e um cheirinho da luta de classes em Marrocos, ond,
a detenção, em condições suspeitas, de Mehdi Ben Seddik me impressionou
Mas fosse com o fosse eu tinha, apesar de tudo, que voltar para Paru
O meu pai, que descobrira algumas garrafas de b o urbon que tinham ficad
durante vários anos no fundo do mar a bordtt de um cargueiro naufragadt
entregou-mas; confiou-me também a minha irmã, e embarcámos num outr
cargueiro, que tinha a particularidade de só avançar descrevendo uma cur\
que o capitão tinha de corrigir a todo o instante — o que conseguiu. Mas
atmosfera a bordo era assustadora: calor, promiscuidade, ratazanas, tudo l
mais alguma coisa. Chegámos por fim a Port-Vendres, onde voltei a pisar terr.
firme. Paris não estava longe.
Fui recebido na École po r desconhecidos. Efectivamente, era eu o ünic>
prisioneirt) da minha leva, todos os demais tinham continuado, à custa de cer
tas dificuldades, cujos sinais ficavam na memêtria, o curso normal dos seu-
estudos. Eram todos muito novtts. mas alguns tinham ouvido falar cm Lyon d.
minha «lenda» alimentada po r Lacroix, e haviam entrado para a Resistènci.
activa. Foi por um deles, Georges Lesèvre, comunista, que conheci Hélène
E uma vez que estou a falar de comunistas, gostaria de lembrar que o pn
meiro que conheci foi no cativeiro, no final, depois da fuga dos alemãe»
quando Daél já não era hom em de confiança e quando uma certa «desordem
reinava na nossa pecjuena sociedade comunista. Foi então que Courrègc'
entrou em cena: vinha de um campo disciplinar, era magro e triste. Muito rapi­
damente viu quais eram os problemas e tomou em mãos as coisas. Foi fulgu­
rante. Ao fim de poucos dias, revelou-se um hom em de massa, prudente s.
seguro, capaz de chamar à razão os poucos rccalcitrantes que tentavaim apn»
veitar-se da situação jaara violar as regras da equidade. Toda a gente o apoiou
e seguiu. Nunca esqueci este exemplo, que voltei a encontrar em Flélène e
noutras pessoas. Os comunistas existem, não há dúvida.

,^.^6
o s / -1 f / o s

(A)nheci Hélcnc em condições particulares, lendo-me Lescn re con\ idado


a visitar a sua mãe, na rue Lepic. onde ela se trata\ a sozinha e como podia da
grave doença cjue contraíra durante a deportação, disse-me: \a)u apresentur-te
a Hélène, é meio doida, mas vale a pena. Foi assim que a conheei ã saida do
metropolitano, uma noite, no meio da ne\ e que cobria Paris. Para a impedir de
escorregar, peguei-lhe no braço, depois na mão. e subimos de con\ ersa a rue
Lepic.
Sei que tinha vestidos uma camisola e um lato lamemãx eis. oferta da ( ruz
\erm elha aos repatriados. Hm casa de Élizabeth Lesèvre falou-se da (luerra de
Hspanha. Estávamos todos a conversar, mas no silencio, alguma coisa com e­
çava entre Hélène e eu. \ ’o ltei a encontrar-me com ela, e lembro-me de cjue tim
dia, no seu hotel da place Saint-Sulpice, ela te\e o gesto, qtie me meteu medo.
de me beijar no cabelo. Visitou-me na Ecole, onde fizemos am or num quartito
da enfermaria, e eu apressei-me (não seria a última vez) a adoecer, com uma
depressão tão pesada que o m elhor psiquiatra da praça parisiense, que consul­
tei, me diagnosticou uma «demência precoce». E ti\e direito ao inferno do
Esquirol, onde descobri o que pode ser, nos nossos dias, um hospital psic|uiá-
trico. Graças a Deus, Hélène, habituada a situações difíceis, conseguiu que
Ajuria ' fosse ao asilo e me examinasse. Diagnosticou uma depressão pesada
que resolveu atacar com uma série de vinte electrochociues. Os electrochoques
eram então aplicados na pele nua, sem narcose nem curare. Estávamos todos
■iuntos numa grande sala clara, cama contra cama, e o encarregado da tarefa,
robusto e com uns bigodes que lhe tinham valido da parte dos doentes a tilcu-
nha de Estaline, conduzia de um cliente para o outro a sua caixa eléctrica e o
gorro que aplicava sucessivamente a todos os consumidores. \ íamos o par­
ceiro do lado encabrit'ar-se num a crise de epilepsia regulamentar, tínhamos
tempo para nos prepararmos, e meter entre os dentes a célebre toalha masti­
gada e que acabava por cheirar à corrente eléctrica, b m belo espectáculo
eolectivo muitíssimo edificante.
Como se acaba sempre por sair dc uma depressão, saí também desta, para
;r encontrar Hélène num hotel miserável, depois de ter vendido os seus

D i m i n i i ti v o d o p si q u i a t r a j u l i a n Ajuriagucra . ( .V d o 7. )

3 3 “"
/ o r / s ,1 / / // / ,s i: A’

exemplares originais de Malraux e de Aragon para ^'i\er. e de ter sido tambén


h(tspitali/ada, pelo seu lado, mas para abortar pois sabia que eu não seria capa/
de suportar um filho que ela tivesse de mim. Partimos para o Midi. para
Alpilles segundo creio, para acampar, porciue não tínhamos \in tém , numa espc
cie de cabana onde ha\ ia jovens que faziam fogueiras, nas imediações de Saint
-Rémy, e onde cozinhei um dia a m elhor caldeirada da minha vida. à maneir.
de Argel (começa por refogar-se o peixe com cebola). Daí passei, pois tinha tiiu.
me recompor, pant um recanto dos Alpes cjue acolhia estudantes convalesccn
tes. Aí conheci Assathiany e a mulher, e Simone a quem tratei com o um cão. l
que me pagou na mesma moeda. .Mas fosse como fosse tinha que redigir
minha tese de curso: sobre Hegel, o conteúdo em Hegel, Conhecia entã(
desde que regressara do cativeiro, jaeques Martin, a quem dediquei o meu pn
meiro livro em 1965. Kra o espírito mais penetrante que alguma vez me t)
dado encontrar, implacável com o um jurista, meticuloso como uma factura. ,
dotado de um hum or macabro cpie o fazia temido de todos os padres. Km tos:
o caso, ensinou-me a pensar, e sobretudo ensinou-me que se podia pensar c.
maneira diferente dacjuela que os nossos professores pretendiam. Sem ele c.
nunca teria chegado a alinhar duas idéias, pelo menos do gênero daquelas e:'
que concordáram os. Redigi por isso a minha tese no Mttrvan, em casa s.
minha avó cjue cozinhava e a meu pedido convidou também Hélène, que .
noite batia (.) meu texto à máquina, Hélène ficaria lá vários meses, à falta c.
outra casa, numa aldeia onde tinha só uma amiga, a velha da casa em frenx
a Francine. que lhe dava ovos e conversava com ela. A minha ar ó morrer;
anos mais tarde, com um ataque, no frio glacial de uma m anhã de igreja, r.
banco onde assistia à missa. Foi enterrada junto ao caixão do velho Bcrge:
no cemitério alto e rarrido pelos ventos, onde a minha tia po r essa alti;:
plantou algumas flores no chão. Conservei desta aldeia do Morvan. oiu:.
o meu avó reformado vivera os seus últimos anos, e que visitár amos em fair
lia, exceptuado o meu pai que ficava em Argel, e depois em Marselha no '■e
trabalho, durante as férias de Verão, as minhas recordações mais importante-
Fiar ia um jardim que descia de casa, um po ç o que eu tinha visto rasgar r
granito, árrores de fruto que o meu avô plantara ou enxertara, e ejue tinh.:;
crescido diante dos nossos olhos, morangos extraordinários, flores, coelhu-

338
o ,s / I ( r o V

galinhas, c p o r conseguinte o\os, gatos que da\ am pelo nome, o que é raro, e
não havia cães. Havia duas grandes ca\x's, uma para a lenha do Inverno, outra
para o vinho, e o meu avô instalar a-se lá no \erão. ao fresco, para ler La Tri-
bune cíu fo n c tio n n a ire sentado num banquinho de madeira. Havia também
uma cisterna alta, de onde po r duas \ ezes sah ei um dos no>sos gauts c]ue caíra
lá dentro, e era um espectáculo algo terrír el \ er o animal aílito. ü mesmo gato
enfiou um dia na cabeça uma lata de conserr as \azia, ti\e uma \ez mais que
o livrar dac]uilo, ainda hoje não sei por que milagre: o g.ito soltou um miado
de terror e durante vários dias andou fugido de casa fm contrapartida, eu era
poupado à matança das galinhas e dos coelhos. Tinha um fraco por esses ani­
mais idiotas e incapazes de se defenderem. Chegara até. para lhe' denurnstrar
a minha amizade, a fabricar uma seringa de madeira de sabugueiro escaziada
do miolo, e regava-os de longe com ela, o que pro\a)ca\a sempre reflexos ines­
perados, cacarejos de surpresa nas galinhas alticas, considerando de cabeça
levantada e olho arregalado aquele acontecimento que atentava contra a sua
dignidade, fuga relâmpago dos coelhos que não parar am de correr às roltas
nas suas coelheiras. Mas quando chegava a hora da verdade, pediam-me que
me afastasse. ,Sei que o meu avô assentava então um murro na nuca do coelho,
e que a minha avó rasgava com uma tesoura ferrujenta o pescoço das galinhas.
Quando era um pato, cortavam-lhe simplesmente a cabeça com um golpe de
podoa, e o pato continuava ainda a correr pelo chão durante uns segundos.
As batatas e as azedas desempenhavam o papel principal na nossa alimen­
tação, juntamente com as castanhas no Inverno (o Morvan vivia então de très
criações: os porcos, os bovinos e as crianças da Assistência Públicai. Eu ia ã
escola oficial, cujos muros altos ficavam perto do poço. por trás de uma
grande pereira titie dava uns frutozinhos duros, com que a minha avó fazia
uma compota avermelhada como nunca mais voltei a comer. Na escola, umas
vinte crianças da região, das quais oito ou nove da .Nssistència Pública estuda­
vam, sob a vigilância de um mestre-escola socialista. .M. Boucher. bonito e
bondoso hom em . Fui recebido pelas partidas do costume, ejue se prolongaram
por um bom mès, tendo os miúdos uma predilecção especial pelo jogo que
consistia em perseguirem um de entre eles. cjue depois deitavam no chãtv e a
quem tiravam as calças, para lhe verem o sexo, fugindo a seguir aos gritos.

339
/, o / / s ,4 7, // l S S I- R

SoLibe mais tarde que se trata\ a de uma prática próxim a do que se faz em cer:,
sociedades primitivas. Tive que suportar a prova, e a seguir dcixaram-mc t
paz. Jogava à barra no pátio, e bastante bem, o que me valeu algum apreço. Cá)r
o professor me considera 4’a bom aluno, as coisas iam andando. ITn dia mandi
-mc fazer o exame do concurso das bolsas em Nevers. Nesse dia, o meu a\ ò w
tiu o seu fato de ir à cidade, ptàs um boné novo, e apanhàmtts os dois o combo:
A seguir escolheu cuidadosamente um hotel, e eu tive ocasião de conhece;
maravilhosa Igreja de Saint-Étienne que tem os mais belos tons de luz e soml'
do mundo. Fiquei em 6 .” lugar no concurso, o que me valeu, por escolha minl
uma carabina como prenda paterna. Ciom esta carabina aconteceu-me uma o
algo estranha. Com efeito o meu pai adqtiirira, a seis cjuilómeíros da n o "
aldeia, um terreno de seis hectares com uma casa velha, uma espécie de quír.
Fica\ a num alto para lá da linha de caminho de ferro, mais ou m enos inacessíw
a tal ponto tudo se encontrava coberto de castanheiros e fetos, mais do t]ue abi,
dantes. C) meu avô saía quase todas as manhãs que tinha livres, pelas cin,
horas, a caminho das Fougères, naturalmente a pé (na altura não havia aiitom
veis na região) e, velho guarda florestal aguerrido que era. rasgava uma passagt
para ter acesso à casa. Havia colmeias na zona. Deve dizer-se que era uma paix
dos meus pais. depois da experiência da \elh a casa florestal de Argel. oiv.
M. Quéruet as criara, virem a ter abelhas. Flavia-as também no Bois-de-\e:
onde o meu avô tinha um campo que me ensinou a cultir ar, plantando lá i
pouco de tudo, mas principalmentc trigo, que aprendi a ceifar e a enfeixar. c
batatas que aprendi a arrancar sem as cortar. Portanto, íamos às vezes em e \c .
são familiar às Fougères. e eu passeava pelos carreiros dos bosques com a mirb
carabina a postos, carregada. Lembro-me de que um dia, em que não atirei .
alvo, deitado, com o em Argel com a arma de guerra, \ i uma rola, e disparei sob
ela sem lhe acertar. Voltei a carregar a minha arma, e continuei o passeio. Pass.

-me então pela cabeça a ideia louca de a disparar na barriga, para \ er o que aci
tecia. Estava convencido de que não tinha bala no cano. No último segundo he-

tei e abri a espingarda: havia uma bala lá dentro. Fiquei coberto de suor. mas n.i
me vangloriei do incidente.
íamos muitas vezes às Fougères, num a carroça guiada p o r um jovem camj'
nês plácido, que seria m aire local durante a Frente Popular, e puxada por u:'

340
o s / 1 <-; / o s

ncdia égua, que a\"ançava sossegadamente. Ku ia sentado ao lado do condutor,


e via as grandes nádegas da égua esforeando-se no puxar da carroça. Tinham
no meio uma bela fenda húmida que me interessar a, sem que eu então sou­
besse porquê. Mas a minha mãe de\ ia desconfiar por mim do meu interesse,
uma vez que me m andou sentar no banco de trás. de onde eu não via já a
égua, mas à beira da estrada galos que saltar am para cima das galinhas. Mostrei
aquilo à minha mãe, a rir-me. achava a coisa cômica, mas ela não achou graça
e repreendeu-me: não te rias diante de M. Faucheux. F.le rai achar que tu és
ignorante. Em quê? Xunca o soube.
O interesse da região eram os ejueijos de cabra e o leite das racas. e tam ­
bém a ner'e, de Inr erno, que cobria a paisagem com o seu silencio. Fiz uma r ez
um desenho dela. e o professor deu-me os parabéns. A ner e. tal como a chur a.
de cujo som regular na ardósia do telhado eu gostara muito, dara-me uma
segurança profunda, ninguém ouvia os meus passos nos campos, onde eu ia
descobrindet as pegadas dos animais. Era o silêncio, mais calmo do que o do
mar e do sono, mais seguro também, porque depois da cair a nere, já não
havia riscos: com o no rentre da minha mãe.
A aldeia tinha igualmente um padre e um castelo. Víamos o padre na
igreja, onde ele dava catecismo, de m anhã muito ceck). quando ainda estava
escurca, antes da escola, connosco sentados à volta de uma salamandra aque­
cida ao rubro, e ele ia-nos ensinando coisas muito simples, pois estivera pes­
soalmente em Verdun e passara por grandes complicações na sua r ida, com o
seu bivaque de ex-combatente na cabeça e o seu cachimbo na boca. Era um
hom em bom. Pedi-lhe a sua opinião mais tarde, depois de o meu jesuíta de
Lyon me ter deixado num beco a propósito de um haixo-relevo alexandrino,
que representava uma tocadora de flauta nua cjue me interessava um tanto
excessivamente, e ele disse-me que as coisas eram mais simples, que os d o u to ­
res da Igreja tinham baralhado tudo. que aliás ele prétpritt tinha uma criada
ejue era também «amiga» dele. e que não fora em r ão que Deus se fizera
hom em , caso contrário nada saberia das necessidades dos homens. O pro ­
blema ficou assim resolvido de uma \ ez por todas, bem m elhor do que através
da minha mãe com as suas éguas e os seus galos. O padre tinha um acordeão
que eu aprendi mais ou menos a tocar, e tjtiando havia cerimônias com

3-tl
/ o l ! S A L 1 U r S S /: A'

música, executava alguma árias à minha maneira de tjue ele não desgost..
Queria cjue eu aprendesse música. Hu respondi-lhe tjue já tinha aprendic
quando tivera lições de violino, (iom efeito a minha mãe pusera-nos a a p ri

der em Argel, a minha irmã piano, e eu violino, na escola de um casal, in r.


e irmã, seus amigos, cjue nos ensinaram os rudimentos e a tocar juntos. .Ma-
coisa não resultou, e não foram os concertos de música clássica marselhc-
dos domingos, onde o meu pai nos deixava para ir à sua \ ida. cjue melhí)rar.,
o caso. Chateámo-nos conscienciosamente nesses concertos, vendo as cu':
do maestro a tentar ordenar todos os sons que saíam do palco, até que, r
uma razão desconhecida mas bem compreensivel, todos se interrompiam, p
que fora tocada a última folha da partitura, e então nós aplaudíamos.
Toda esta vida continuou a desenrolar-se idêntica cjuando eu era já alu:
da École Normale. até à morte da minha a\'é). em 1961. Na Hcole. depois de - -
aprocado na minha tese por Bachelard. que mc perguntou com extrema p :

dència «Mas por cjue é que pós dois exergos no seu texto, primeiro a m ú'i ,
de René Clair: "o conceito é obrigatório porque o conceito é a liberdade
depois as pala\ ras de Béranger: “ mais \ ale um conteúdo do tiue duas pronie-
sas?“ » Tu respondi: «Para resumir o conteúdo.» Ele calou-sc e insistiu: M
po r tiue é tjue fala de círculo em Hegel, não seria m elhor falar de circulac.f
do conceito?» Eu respondi: «A circulação é um conceito de Malebranche. be
com o a reprodução, e a prova está em que Malebranche c o filósofo dos iím
cratas. que Marx disse serem os primeiros teorizadores da circulação na rep r

dução.» Ele sorriu-me e deu-me 18. Era em Outubro de 194"’. eu tinha passa«;
o \'erão, depois da terrível depressão da Primavera, a redigir à pressa esta tc'
cjue me ajtressei a abandonar à «crítica corrosiva dos ratos». Martin fizera ca :
o mesmo Bachelard, e com desenhos obscenos por epígrafe, uma tese mui:
boa sobre o indivíduo em Hegel. Falava de problemas que eu sé) jsarcialmer.:
compreendia, apesar das explicaçétes dele. Tudo era dom inado nessa tese pci
conceito de jsroblemática, cjue me deu que jsensar, e tratava-se de uma filosot;
materialista, que jsrocurava chegar a uma ideia justa da dialéctica. Discutia--
Ereud, fazia-se (já!) uma crítica ponderada de Eacan, c no remate surgia
comunismo, ainda me recordo: «onde já não há pessoa humana, mas ajsen.i
indivíduos».

342
o s f .1 c I o s

Na École. conhcci Tran Duc Thao, que st* celebrizara publicando muito
cedo a sua tese sobre a fcnomenologia e o materialismo dialéctico: extrema'
mente husserliano, tal como perm aneceu, a julgar pelos artigos que tem
enviado de Hanói, onde reside desde 1956. para Ia Pensée l hao data-nos
aulas particulares, e explicava-nos: «Xdcès são todos egos transcendentais e são
todos iguais enquanto egos.» ' F. c om eçata então ;i expor uma teoria do
conhecimentí) bastante fiel a Husserl, que eu voltaria ;t encontrar mais tarde na
boca de jean-Toussaint Desanti. com a mesma preocupação de casar Husserl e
.Marx, o cjue era contrário àcjuilo que Martin sustentatai, I hao conhecia muito
bem nessa altura Domarchi, brilhante teórico de economia política, que coti\ i-
dámos para a École. Deu um curso fulgurante e incompreensível sobre \\ ick-
scll, e desapareceu, apaixonado po r uma m ulher que não deixou de perseguir
com os seus assédios, mas com quem não conseguiu casar. Fliao e Desanti \ei-
culavam então as esperanças da nossa geração, com o mais tarde Desanti. .Mas
não as cumpriram, e a culpa foi de Husserl. Será de acrescentar qualquer coisa
ainda sobre Gusdorf, ciue então instaurara o terror do seu governo sobre os
candidatos à agregação de filosofia da École? Fizera a tese durante o cativeiro
trabalhando todos os diários íntimos que conhecia, e dera-lhe por título La
D écouverte de soí. Recebeu um dia uma carta do director do Falais de la
Découverte que resumidamente lhe dizia; não sendo estranho ao Falais de la
Découverte nada do que diz respeito à descoberta de si. ficar-lhe-ia muito
grato se... (iiisdorf foi ao Falais, voltou com cumprimentos, um prospecto, e a
impressão de ter sido logrado. Mas a partir de então o seu li\ ro figura nas
estantes da biblioteca do Falais. Gusdorf tinha a mania de responder a qual­
quer pergunta embaraçosa por meitt da expressão; <<e a tua irmã'», e quando
nos despedíamos dele no seu gabinete, onde tinha uma secretária Luis X\' de
imitação, dizia; «desculpe-me se não o acompanho», palavras que proferia
igualmente ao telefone, juntamente com «dcixc-sc estar com o chapéu». Fra
um hom em que dispunha de um ntimero reduzido de expressões, mas que
delas se servia sempre muitíssimo bem. Da\a-se mal com Fauphilet. nom eado

' Iro c a d ilh o b a .s c a d o na h o m o fo n ia, in c.x iste iitf cm p o rtu g u ê s, en tre egos e é g a u x (ig u a isi

i V d o r. I

34 3
/. o (■ I s A I. 7 H r S S F R

director da Kcole graças às suas actividadcs na Resistência para substituir Cai


copino que, segundo parece, teria sido mais ou menos «colaboracionista». Pau
philet era famoso pela sua comprovada preguiça, pela \ ulgaridade afectada d.

sua linguagem, pela sua ignorância da sua própria especialidade (a literatura d.

Idade Média) e a sua predilecção pelos «bailes populares» onde recrutava con
assiduidade discípulos de um tipo especial, a quem recitava versos de Francc' '
Villon c]ue sabia de cor. Poi enterrado atrás do cubículo do porteiro da Kco!^
para não se sentir deslocado. Ninguém o sabe. ou toda a gente o esc|ueccL.
exceptt) algumas rosas belíssimas que ali crescem po r acaso, e que o porteir
rega regularmente até que m urchem. Sempre pensei que Pauphilet. tjiie gi '
tava de mulheres e de dores, apreciaria tal atenção.
Gusdorf tinha um método, que se revelou excelente, pessoalíssimo, de n> -
preparar para a agregação. Não dava aulas, não nos punha a fazer exercíci -
(iontentava-se com ler-nos, sem os comentar, extractos da sua tese sobre -
diários íntimos. Daqui tirei a lição, proveitosa, de c|ue a m elhor maneira vi
preparar a agregação não é seguir aulas nem po r conseguinte dá-las, mas
trechos seja do cjue for. Porque lá tive que fazer a minha agregação. Arran i
outra depressão, c no fim do ano estava a postos. Fui o primeiro na pr>
escrita (tendo-me Alquié dito na minha primeira dissertação sobre o ter
«Será possível uma ciência dos factos humanos?», que eu fizera a partir
Leibniz e de Marx, que a minha primeira parte tinha 19, a segunda 16, m.o
terceira, dado tudo o que eu dizia sobre Hegel e Marx, com muita pena
só podia ter l4). Fiquei em segundo na prova oral, por causa de um com :
-senso a propósito de uma passagem de Spinoza onde confundi a solidão o
o sol, o que era um aristotelismo algo excessivo. Flélène estava ã minha espm
ao fundo da rue Victor-Cousin, e abraçou-se a mim. Tivera muito m edo de ç.
eu não conseguisse sair da minha depressão. Nunca deixei, pobre Hélènc ,
a assustar com as minhas depressões.
A vida filosófica na École não era particularmente intensa. Esta\ ;
m oda exibir desdém p o r Sartre, que estava na moda, e parecia reinar de im; :
alto sobre todo o pensam ento possível, pelo m enos em França, esse «b.i»::,

de Royan» de um m undo filosófico que se libertara do nosso espiritual> '


tradicional para se entregar ao neo-positivismo. Reconheciam-se a .Sartre

344
o ,v h A ( / O V

qualidades de publicista e de mau romancista, e boa \()ntade política, bem


com o uma grande honestidade e independência, ê ób\ io: o nosso Rousseati»,
ou pelo m enos um Rousseau à medida cio nosso tempo, ITnhamos .Merieau-
-Ponty em m elhor conta filosófica, embora fosse idealista transcendental, essa
mania religiosa de laico, mas era terrivelmente uni\ersit.íno, a tal ponto que
quem quisesse ter êxito numa dissertação de agregação, podia ficar descan­
sado se escrevesse no estilo e com a com punção da re n o m e n o h ig ia da Per­
cepção. Merleau f’oi à Écatle dar algumas belas aulas sobre .Malebranche (era
magnífico ao m ostrar que o cogito era nele obscuro, e o corpo opaco, como
indicava a teoria do juízo natural), e ensinou-nos que toda a arte da agregação
estava na comunicação (ponha-se no lugar do júri, é Verão, está muito calor,
é preciso pôr-se à altura deles, e pensar po r eles, dando-lhes natural mente a
crer que estão a pensar sozinhos). Fez meia dúzia de observações sobre a p in ­
tura, o espaço e o silêncio, disse algumas coisas sobre Maqtiiavel e Maine de
Biran, depois foi-se embora, discreto com o sempre. Na Sorbonne. Bachelard
davai aulas cjue eram cone ersas não directivas, animadas por obsere ações sobre
as violetas e o ccunenibert. Nunca se sabia de antemão o que ele ia dizer, e ele
também não o sabia, o que perm itia tipanharmos as lições em tindamento a
qualquer altura, e sair quando tínhamos um encontro galante ou uma consulta
médica. Ninguém o levar a a sério, ele também não se ler ar a a sério, mas todos
nos sentíamos satisfeitos, e ele aprovava toda a gente, nos exames, nas teses,
recebia-nos a qualquer hora do dia e da noite, o qiie tinha as suas r anttigens,
quando não se ocupar a da filha, ejue o punha em cuidado, ou dos seus r agti-
bundos, que lhe davam prazer. Alquié reinava sobre Descartes e todo'. os carte
sianos. incluindo Kant. que considerara um carte.-iano leremente herético
porque alemão, e administrar a magistralmente aos ■-eu-' ou\ inte as r anações
imutárxãs de um;i gaguez quase tão bem dominada como a de l(.)urct, Hra um
grande professor que sabia muitas coisas, c com ele. pelo menos, uma rez que
fazia parte do júri de agregação, sabíamos antecipadamente e com svgurança
que nota daria a esta ou ãquela pror a, o que e algo de precioso, .Schuhl. com
a doçura de uma melancia enfeitada com uns pequenos óculos e tim débil
bigode intermitente, com entara Platão com precaução, e uma descontinui-
dade ciiie nos impedia de o acompanharmos. Refugiou-se rapidamente num

34 5
/. n l l S 1 /. / // ! S S F. R

seminário de investigação sobre a Antiguidade ('.rega onde atingiu o nívei


máximo da erudição. Jean Wahl, tão assustado e tímido como um pálido rati­
nho de Pavlo\ esticando o focinho por cima da sua cátedra, comentava o P«r-
ménicles pala\ ra a palac ra, repetindo imperturbavehnente pela enesima vez o
seu próprio lit ro sobre o assunto cuja existência est[uecera, e. a seguir a cada
comentário, tjue resumia, dizia «de resto pode igualmente bem dizer-se o c o n ­
trário», o tjue deixava pensativos os seus ouvintes, que tinham vindo em busca
do pró ou do contra, e armados à partida quer do pró quer do contra. Casara
com uma das suas alunas, que lhe deu vários filhos e rapidamente tomou conta
dele, soberanamente distraído em tudo, incluindo em mulheres e filhos. Toda-
\ ia mostrou-se mais tarde bem atento, na exposição c[ue fiz sobre Leninc n.i
Socicté Française de Philosophie, de que ele era presidente, quando citei a dura
afirmação de Dietzgen sobre os professores de filosofia, «quase todos lacaio»
diplomachts da burguesia», para protestar em nom e da corporação, manifesta­
mente menos ofendida do ejue ele. Mas a presitlência tem as suas obrigações
Conhecíamos então muito mal Lc\ i-Strauss, e pior ainda Canguilhem, que viri.i
a desem penhar um papel essencial na minha formação e na dos meus amigos
De resto não estava ao tempo na Sorbonne, mas espalhava o terror no secundá­
rio, onde aceitara o lugar de inspector geral na ilusão de ciue poderia, dcscom-
pondo~os. reformar o entendim ento filosófico dos professores. Em bretc
renunciaria a esta experiência amarga, apresentando à pressa a sua tese sobre o
reflexo, para ser colocado na Sorbonne onde reservou aos seus colegas as sua»
fúrias, e não aos alunos, tjue sabiam descortinar por trás do seu carácter sisud(
tesouros de generosidade e de inteligência. Mais tarde deu na Ecole um curso
que ficaria célebre, sobre o fetichismo em Auguste Comte, e acom panhou com
um olhar irônico mas enternecido os nossos primeiros feitos de armas. Expli­
cou-me um dia que fora a leitura de Nietzsche tiue o levara de início às sua»
investigações sobre a história da biologia e da medicina.
hacan começava então, do fundo do seu seminário do instituto de Sainte-
-Anne, a dar cjue falar. Fui ou\ i-lo uma \ ez: falava na altura da cibernética c
da análise. Não percebi nada do seu discurso emaranhado, barroco e fals.i-
mente imitado da bela linguagem de Breton: manifestamente de molde a instau­
rar o reino do terror O terror reinava, provocando efeitos contraditórios, ck

.^-í6
o V /■ ,l C. / (J s

fascínio e de ódio. No entanto eii ficara seduzido, tendo-nie .Martin ajudado a


conipreendè-lo. através de algumas das suas isroposicões. ,\ludi a isso num
breve artigo da Reviie de 1'Enseigtienient philosopbique. onde digo mais ou
menos o seguinte: tal com o Marx criticou o h o m o oeconom ieiis. Lacan tem o
grande mérito de criticar o h o m o psycbologicus. Passados oito dias recebi um
recado de Lacan cjue nie queria \cr. Fui recebido pttr ele num pequeno restau
rante de luxo. Vestia uma camisa pregueada brunida em Londres, uma especie
de casaco informal, um p a p illo n cor-de-rosa. e por detrás dos óculos sem aros
viam-se-lhe os olhos despreocupados e com clarões de atenção ocasionais.
Falava uma linguagem ininteligível, e contentou-se em contar-me os mais incrí­
veis mexericos sobre alguns dos seus antigos discípulos, as suas mulheres e as
suas grandes propriedades fundiárias, bem com o sobre a relação entre essas
condições sociais e a análise interminável. Chegánaos facilmente a acordo
acerca de temas que se relacionavam com o matcrialismo histórico. Despe­
di-me dele e pensei para comigo que seria boa ideia con\ idá-lo a transferir para
a École o seu seminário de Sainte-Anne, que estava sob a ameaça de despejo,
fl\ ppolite c oncordou sem problemas, ele que trouxera «o filho de uma noite de
Idumeia» a uma sessão dc tradução do texto de Freud sobre a denegaçào-nega-
ção. Foi assim que, durante vários anos, Lacan dirigiu o seu seminário na Fcole.
Todas as quartas-feiras ao meio-dia, os passeios da rue dTTrn eram in\adidos
por todos os carros de luxo em voga. e as pessoas apinhavam-se até mais não
numa sala Dussane cheia de fumo. Foi o fumo ejue acabou com o seminário
porque passa\ a — sendo Lacan incapaz de impedir os seus auditores de fumar
— para as salas da biblioteca que ficar am precisamente por cima, o cjue pro\’o-
cou reclamações meses a fio, até ciue FFaccTière pediu ao «Doutor» que arran­
jasse outro asilo. F.le fez uma cena terrível, apresentando-se com o rítim a de
uma repressão disfarçada (pois FFaccTière gostar a pouco das questões do falo,
e Lacan cometera a imprudência dc o convidar para uma sessão em que não
SC falara dc outra coisa), circularam petições a recolher assinaturas, em suma,
um caso. Eu estava então internado numa clínica, Lacan telefonou a Ffélcnc
que não reconheceu ou reconheceu, já não sei, mas sem conseguir dela, ape­
sar de uma cerimônia completa de sedução, mais do que a afirmação de que
infcTizmente eu não estava, e portanto nada podia fazer. Lacan resignou-sc. c

,s-t
/ o r / V A L r II c s s i: R

insUilou-se posteriorm ente na Faeuldade de Direito. Certos n ornuilieiis


tinham ficado bastante impressionados com ele, entre eles Jaccjues-Alain Mil-
ler, a c]uem tinham roubado o famoso conceito da sna vida, e c]ue corteja\ ,i
ju d ith Lacan, e Milner, sempre com o seu guarda-chuva c que viria mais tarde
a tornar-se linguista. Depois de Lacan se ir embora, a sua cotação na École bai­
xou, e como ele já não precisava de mim, não \’oltei a vè-lo. iVlas soube, por
terceiros, C|ue estava a orientar-se para a lógica matemática, depois do seu anei
de Moebius, e para a matemática propriam ente dita, o que não me parecei,
bom sinal. Ticera sobre mim uma influencia inegá\el, com o sobre muitos filo
sofos e psicanalistas do nosso tempo. Lu regressaxa a Marx, ele regressava „
Freud: uma boa razão para nos entendermos. Lie lutava contra o psicologismo
eu lutava contra o historicismo: outra razão para nos entenderm os também
Por mim. seguia-o já menos na sua tentação estruturalista, e sobretudo na su.;
amlnçáo de apresentar uma teoria científica de Freud, que se me afigurava pre­
matura. .Mas bem vistas as coisas ele era antes do mais um filósofo e não hav i.;
assim tantos filósofos que pudéssetnos seguir em França, ainda eiiie a filosoti.i
da psicanálise que ele elaborava apresentando-a com o uma teoria científica d>
inconsciente fosse possivelmente avenutrosa. 'Fal com o não escolhemos >
nosso tempo, também não escolhemos os nossos mestres. Porém eu tinh.i
além de Marx, pouco fihxsofo. um outro mestre: Spinoza. Infelizmente, esti
não ensinava em escola nenhuma.
Da Fcole conservo uma curiosa lembrança de Cicorges Snyders. Por mil.i-
gre. pois era muito fraco e identificável com o judeu a mais de cem metros dc
distância, conseguira voltar de Dachau, e sobreviver. Era um pianista extraor­
dinário, e arrabanln)u-me certa vez juntamente com Lesèvre, que executav.
com talento a parte do violoncelo, para tocar Bach. Snyders tocav a apaixon.i-
damente. dando a impressão de nem ouvir os outros. No fim do trecho, desis­
tiu: não desafinas, mas a tua execução não tem alma. Nunca mais peguei n
violino. Snvders adorava com er bem, ia ao Grande Véfour mas em vez dc
com eçar pelas entradas clássicas, mandava vir itm creme doce. e acabava com
cervelas ü Ia p a ire cassée, sem groselhas, o t]ue chocava os sentimentos tradi­
cionais da casa, apegada à ordem dos diversos pratos. Mas ele não se im por­
tava com isso, e nunca bebia também mais do ejue um copo de v inho brance

3 -Í8
o s /•' -1 ( i o s

.. ilc Icilc azedo. A rcíeição fiea\ a-llic sempre muito cara, mas hoje que e p ro ­
p o r titular, eondecorado, pai de família casado com uma matemática, pai de
:’i n o rn ia lien («tinha espírito, o miúdo» i. continua, com agrado, mas perto
grande buraco dos Halles, onde descobriu um restaurante à sua medida que
L s e n e pés de porco com compota de casais Sn\ tlers tinha um grande p ro ­
nto. ao cjual te\e infelizmente t[ue renunciar, criar um CiXRC. Centro .\acio-
,i de Incestigação Culinária C .Sustentax a que «e pocleriam extrair efeitos
Mcressanles do matadsorrão frito e da compota dc palha, h um caso a estudar.
lendo ICtuphilet, antes de m orrer nome ado Frigent. que \ iniia das Breia-
vas. para a Mcole. e afastado (msdorf. fui nomeaelo adiunio daquele, graças à
"lizacie da «\elha Porée». essa mulher que fez funcionar a iiojle, apesar de
dos os directores que tece, durante cerca ele quarenta anos. primeiro como
..arregada da rouparia, depois com o secretária do directot. futha carácici.
.cias acerca da correspondência e da pedagogia, e soeibe tratar t o m o de\ ui os
oiiães quancUj estes apareceram uma bela manhã para prender Bruliat. Deeo
L muito, e não sou o único. Morreu na solidão de um horríxel lar de velhos,
. plena floresta, a cem cjuilómetros de Paris, tjuasc sem visitas. Coisas assim
; .io proibidas quando transformarmos a sociedade.
seguir ã minha agregação, na qualidade de monitor, tive ciue me encar-
_.ir dos meus jovens colegas que preparar am as suas provas de agregação —
vco. l.ucien Sè\e e uma dezena de outros ainda. l'i\e a fraqueza de pensar,
.-'ar dos a\ isos dc (lusdorf, que devia ministrar-lhes um ctirso: foi sobre Pla-
. comigo a debitar-lhes salgalhadas sobre a teoria das idéias e a remimsccn-
.. como teoria-recordação-encobridora para mascarar os [troblemas da luta
. classes. Extraí alguns belos efeitos de Sócrates como ese|uecimcnto, c do
rpo com o esquecimento, portanto do corpo dc Sócrates como esqueci-
u nto. do corpo de .Mênon como recordação, c desemharacei-nic como pude
-"C impossível ( ‘râtilo. onde Platão sustenta e nega qiic 'c puseç dizer que
1 boi é um boi. C) que me fascinara em Platão era 'c r poschel ser->e a tal
nto inteligente e conserrador, ou mesmo reaccionário. ter culiir ado os reis
' jor ens, falado tão bem do desejo e do amor. e de tockis os ofícios da r ida.

P\>r 'An.ilogr.i com ('NRS. Nacu>n;il Ua hás o U f ^ a c a o ( i c m i t i c a . i . \. íi>> 1

349
L O I / V .1 I. j II I s s i: R

até da lama, c|uc também tem algtires no céti a sua idcia, juntamente com O'
sapatos e o Bem. Fra também um hom em de misturas, sabia fazer compota^
com o um dia confiei a Snyders ciue me olhoti com o um louco. De facto, conti
nuei a ser louco, perm itindo-m e uma depressão anual ou quase, o que resoU ;.
o problema das aulas. Mas tendo os n o r m a lie m adcpiirido o hábito de passar
na agregação, excepto quando partiam para as Índias ou numa grande aventur.:
de amor, assunto de cjiie tratava Mme Porée (espere até à agregação, meu rapa/
terá depois todo o tempo ejue for preciso), tudo isto acabava po r não tc'
importância. x\liás o padre Étard. bibliotecário da École. dava-lhes. na qual
dade de sucessor de Lucien Herr, todas as indicações bibliográficas iitcn
A única contrariedade era que, ciuando íamos ter com o bom do httmem er.
preciso termos desmarcado antecipadamente todos os outros encontros c.
uma semana bem contada. Ele não parava de falar da história das religiõc'
citando a esse propósito uma tese de doutoram ento cjue tinha na cabeça, m..-
não arranjara tempo para passar ao papel. Aliás falava de toda a gente, tanto l/.
Herriot como de Soustelle. Soustelle não fizera ainda a sua grande carrer
argelina. Mas Etarci dizia dele: é incapaz de fazer seja o que for sozinho, 'c:
sempre um seguidor. E tinha razão. Soustelle gerira sob a direcção de Boug ,
antes da guerra, um centro de docum entação em que participaram Aro:'
alguns alemães fugidos ao nazismo, ciue a Écctle albergou. Contavam-se en::.
eles, segundo creio, Horkheimer, Borkenau e alguns mais. Borkenau infeé
mente acabou mal, ao serviço do Pentágono, segundo creio, mas a guc:
explica muita coisa. Depois da m orte de Bouglé, o centro desaparecera, s^-
preciso esperar por Jean Elyppolite para que fosse restaurado sob novas forr. . ■
mais adequadas às exigências m odernas da economia política e da inform.i:
Dupont, químico especializado na resina de pinheiro, sucedeu a Paur
let Dizia: «lam ento muito, mas escolheram-me a mim porque os melh
morreram durante a guerra. «Infelizmente, era verdade. Foi um director ir.
ciso, teve alguns acessos de cólera breves e inofensivos, ciue Raymond W.
então C a ím a u ' de grego, resumia em espírito e verdade: «É absolutaiiK
indispensácel... ejue alguém assuma as minhas responsabilidades.» Dupon; .

ca' noui p 1"2 (,V. d o T. i

.^50
o ,s /' -1 C I o s

'■'istido eni l.ctras pelo manso (diapouthier. que fiea\a ingenuamente sur-
'reendido ao ver que «rapazes tão novos e bonitos casam tão cedo», o que o
■.r.instornava. Q uando fica\a na bcole, com os alunos, à espera dos resultados
:,i agregação, comia com eles, c durante a maior parte do tempo fazia-se con-
idado. porque a mulher não lhe deixa\ a um \ imém nos bolsos. Hspantou-se
,:m dia ao ver Michel Foucault doente, eu dís^e-lhc tjue não era grave, mas ele
,ontinuou espantado por Foucault. que \ ira transtornado nos corredores, não
.lie ter dirigido a pala\'ra, Foticault foi nesse mesmo ano ,ipro\ado na agrega-
,ào. Acabaria, com o é sabido, ou começaria, no (iollègc de France, oride tinha
.ilguns amigos.
Por fim Hyppolite, depois da morte de (ihapouthier foi nom eado director
.idjunto, antes de assumir a direcção da Ecole. Fra um homem entroncado,
atarracado, com uma enorm e cabeça de pensador, semjire a fumar, dorm indo
irès horas por noite, sem nunca parar de pensar e de procurar a amizade dos
m\estigadores científicos entre os quais Yves Rocard, organizador genial,
ditar a a lei. f h ppolite pós as coisas em pratos limpos logo no seu discurso de
chegada; «Sempre soube que viria a ser um dia director da Ecole... a École
deve ser uma casa de tolerância, estão a perceber.» E com eçou a organizar
'cminários. palavra que tinha sempre na boca. A coisa soube-se, e ele recebeu
um dia uma longa carta escrita por uma mão tremula, e assinada por um coro­
nel de car alaria na rese n a , \iv e n d o em Cahors, ejue lhe falava do seu interesse
pelas iniciatiras dele, lhe confiava as suas próprias experiências pedagógicas
no exército, onde também ele desde havia muito organizara seminários, e pro­
punha um intercâmbio de experiências, \ i n h a apensa uma outra carta, assi­
nada pela filha do coronel, dizendo que o paizinho se interessava realmente
muito pelo problema, e seria óptim o cpie lhe respondessem ,,. Hyppolite res­
pondeu, e uma longa correspondência, que duraria anos. estabeleceu-se entre
os dois. O coronel, apesar dos seus ferimentos de guerra, veio a Paris visitar
Hyppolite, e fez na École uma conferência que agradou, apesar da sua term i­
nologia um tanto excessivamente militar. O coronel chamava-se C. Minner.
Hvppolite tinha uma maneira muito peculiar de dirigir a École: a adminis­
tração vem a reb(.)cjue. De hicto. adi;intava-se. sob a direcção de Eetellier, tjue
tinha ares de senhor e não olhava a despesas. E deste período que datam os

351
/ o r / s A /. / II I S S I: R

no\-os edifícios do n.'’ l 6 da rue d ’Ldm, onde se instalariam velhos e iv


laboratórios, depois o n o ro Centro de (aèncias Humanas após a m oru
Hr ppolite, e os alunos alojados em cjuartos. Hou\’e, mais tarde, um con'
r iolento cm torno da partilha das instalações enorm es do departament.
biologia, mas o director do laboratório levou a melhor, para grande dan^
física que só aspirava a algumas dezenas de metros quadrados.
Quando I h ppolite saiu da École para ir para o Collège de France. rctor
melancolicamcnte a palavra para dizer: «julgava que teria tido alguma inf,
cia intelectual nesta casa. na realidade ficarei com o o director que institii;
sistema das senhas (controlando o acesso ao refeitório e pondo termo a e. ■'
tos irritantes, durante os quais Frigent punha por \czcs em jogo. mas sent «
porque tinha demasiados amigos, a sua autoridade, ao mesmo tempo que
mtingava em público — era costum e seu — contra o director, esse «rati '
incapaz de resolver fosse o qtie fosse) e mancktu construir os edifícios cf -
Fhppolite conseguira, no entanto, da maneira discreta que lhe er.;
pria, algo de impttrtante. Conseguira reconciliar .Sartre e Merleau-Pont\, /..
dos ha\ ia sete anos por razões políticas, f h ppolite convidou Sartre a pr ^
uma conícrència na Sala dos .\ctos. perante os alunos. Mas olhando com .
ção dcscobria-se iguahnente a presença de figuras célebres. Canguillm
.Merleau. Sartre falou durante uma hora e meia da noção de «possível
\ erdadeira lição de agregação, de que ninguém estava à espera, e que suri- -
deu toda a gente. Mas terminava pela evocação das grandes revoltas dc .. -
vos na América do Sul do século .w i e com o \a lo r da rerolta human..
guém fez. quaisquer perguntas. Fomos todos para o Piron (uma tasca ali v .
cujo patrão era um ex-resistente), onde a conversa se tornou mais solt.t '
respondeu sempre aprovando todas as perguntas. Mas estava lá tam ber'
leau, sem dizer nada. Saímos noite alta, despedimo-nos. e eu afastei-:'
companhia de .Merleau, que se pôs a com entar as perguntas que eu fizer.: .
tre sobre a guerra da Argélia, então em curso. Depois falámos de H u " r
fleidegger. e da obra do próprio Merleau. Censurei-lhe a sua filosofia tr.c.-
dental e a sua teoria dtt corpo próprio. Fie respondeu-me com uma pe: _

que não esqueci. mas vocè também tem um corpo, não? Oito dias de
corpo de .Merleau traía-o de repente: o coração.

.vs-
o .V /■ ,1 c r o V

Por altura da m orte de Hyppolite, organizámos uma com em oração na sala


. c teatro. Estavam presentes as mais altas autoridades uni\ ersitárias. entre as
_jais Wolf, administrador do Collège. Ouvimos os elogios do defunto. Como
”.e tinham pedido que usasse da palavra, eu preparara um breve discurso, que
'rcventivamente submetera à apreciação de Canguilhem. que o aprcnara.
>texto é publicado aqui com o apêndice '. e provocou um violento escàn-
. .ilo. por razões aliás ridículas, uma vez que eu me limitava a citar o juízo que
próprio Merleau proferira na minha presença sobre a sua obra filosófica.
Flacelière sucedeu a Hyppolite e dirigiu a École no período que foi tah e z
mais difícil da sua história, com Kirmmann, então químico ainda, a assisti-lo
.1 parte científica. Flacelière era um hom em de carácter, rubicundo, cheio de
- lutarco, sujeito a arrebatamentos violentos (chegou a dar uma bofetada a um
amo em 1969, mas para lhe pedir desculpa logo a seguir). Era um hom em
.pegado à tradição, e nada queria saber das inovações na École, remetendo-as
.ira colegas mais novos de cuja confiança desfrutava. Foi então que se desen-
..idearam os «acontecimentos» de Maio de 68. A vaga das barricadas atingiu a
: ^ole, mas o n o rm a lie n s ficaram fora de acção, contentando-se com recolher
^ feridos e reconfortar os combatentes à força de chávenas de chá. Flacelière
nantinha-se de pé diante da entrada, com o o fizera noutros lugares durante a
Tiierra de 14, impassível. Proibiu p o r várias vezes os CRS de jaerseguirem os
-^tudantes refugiados na École. Era senhor do seu moral e comunicava-o aos
utros. Não soube conservar a mesma fleuma mais tarde quando, na esteira de
■laio de 68, a Ecole se transformou em sede de reuniões diurnas e nocturnas
ninterruptas, quando ficou coberta de g r a ffiti insultuosos para o próprio Fla-
.clière e para a sua mulher, e por fim quando a École teve, com o atraso da
rdem, a sua famosa «noite» de 19“ 0. altura em que uma «festa da Comuna» foi
rganizada pelos esquerdistas que prometiam como única palav ra de ordem
\ inho à discrição». Seis mil jovens inv adiram a velha casa. e atrás deles desor-
Jeiros que atacaram à picareta as caves da École, pilhando tudo, e chegando
aè a arrombar as portas da biblioteca corajosamente defendida p o r Petitmen-
,in, onde foram queimados alguns liv ros, entornando gasolina no chão e nos

’ Hste texto não foi enco n trad o nos arquivos de Louis Althusser. (A', do E. fm u c ê s ).

.S53
/, o V / V ,1 A 7 H (’ S S t: K

telhados (só po r milagre a École não ardeu) e entregando-se a toda a espcci


de exacções ou de imaginações (fazia-se am or ao ar livre ao som das violas
No dia seguinte reinava um silêncio de m orte na École. Flacelière demitiu-st
e a demissão foi aceite (o ministério considerava-o responsável pelos incider
tes), Flacelière afastou-se, depois publicou um livrinho para contar o caso, er
c]ue via (erradamente) um presságio de decadência da École. As paredes forar
pintadas de novo, os estragos reparados, o ministério deu uma ajuda, e tud
voltou pouco a pouco a entrar na ordem.
Mandouze e Bouscpiet disputaram a sucessão de Flacelière. Foi este últim
quem levou a melhor por razões aparentemente políticas, uma vez. cjue estava not
riamente ligado a Pompidou. De facto, trata-se de um hom em tranquilo, que t
resistente em Bordéus, católico com simpatias pela esquerda, e professando un
espécie de filosofia britânica cheia de hum or e paciência. Era sem dúvida o direct
de que a École preclsa\ a, acom panhado por um matemático rigoroso, precisi
determinado, Michel Flervé, e po r um novo intendente discreto mas eficaz.
Durante todo este tempo, fizemos naturalmente política. Todos os mc
antigos condiscípulos de Lyon, que eu voltara a encontrar na École, eram m.;
ou m enos membros do Partido. Flélène fora-o até à Guerra, mas dentro t
pouco contarei por cjue motivos o deixara de ser desde 1939. A entrada p .:
o Partido era qualquer coisa que se respirava no ar, em 1945, depois da derr
alemã, da vitória de Estalinegrado, das experiências e das esperanças da Re-
tência. No entanto eu mantive-me durante algum tempo na expectativa, c
tentando-me com militar no «Círculo Tala» (católico) da École. de onde con-
gui que fosse expulso o capelão, um certo padre Charles, que está hoje ^
Montmartre depois de ter reinado durante anos sobre os estudantes cató!;.
da Sorbonne; não podia suportar a vulgaridade da linguagem nem dos ar.

mentos dele. Militava também no «sindicato dos alunos», que era ilegal e
batia po r ser oficialmente reconhecido. Foi nele que consegui, se assim p -
dizer, o meu primeiro sucesso político de massa, obtendo a demissão do ' t .
tariado inteiramente nas mãos dos socialistas, no que contei com a coLi ' ■
ção de Maurice Caveing.
Conservo também a memória de um vivo incidente que me opôs a A sí :.
SNES, num dia em que os agentes da École, em greve, queriam ir manifc' . *

354
/. o í / V ,1 r H ( S S E R

com todos os insultos soezes possíveis, e de vez em quando insistia com eu


para o ler ar a reconhecer cjue 2 + 2 = 4 era uma \ erdade da ideologia burguês:;
V4mos Prenant sair pálido. Casa recebeu-nos então, m uito descontraídc
aciuilo era para ele, pelos vistos, m oeda corrente. E ouviu-m e expor-lbe o p r('
jecto que tínham os elaborado na nossa célula de criar na Ecole um Círcul>
Politzer, que convidaria dirigentes sindicais e políticos a expor aos alunos d.

École os elem entos da história do m ovim ento operário. Foi assim que falaram
a nosso convite, Racamond, e Frachon, e Marty (duas vezes, com grande autc
ridade professoral).
Estávamos na época da guerra-fria e do Apelo de Estocolmo. Andei n.
recolha de assinaturas porta a porta no bairro da estação de Austerlitz e n:'i<
consegui lá muitas adesões, excepto a de um trabalhador do lixo, que recrut.;
m os para o Conselho Com unal, e de uma jovem tiue assinou por compaixãi
dínham os instalado um painel para afixar cartazes na rue Poliveau, no cjual ci
actualizava todos os dias a docum entação sobre a am eaça da guerra e os pr:
gressos da resposta popular. Deixavam-me fazê-lo sem entraves, mas as pesso.;-
pouco liam os nossos cartazes,
Tudo isto teve p o r desfecho um a história hcarrível. Já falei do Consellv
C om unal do v bairro: não se confundia com a secção do Partido do
em bora alguns m ilitantes fizessem parte das duas organizações. Ora, um di.
em ejue Hélène tinha ido buscar cartazes à rue des Pç ramides, foi reconhecid.
por um ex-responsável das Juventudes Com unistas de Lyon, cjue a denuncio,
im ediatam ente com o provocadora bem conhecida pelo nom e de Sabine. F .
m áquina repressiva do Conselho Com unal pôs-se em m ovim ento, apesar dc
um apelo a Yves Farge, que se m anteve em silêncio, quando um gesto seu teri.
sido suficiente.
Para se com preender o caso, é necessário evidentem ente recuar no tempí
Flélène, que fora uma das poucas a não pôr em causa o pacto germ ano-sor ic
tico. que m ilitara nos anos trinta no xv bairro ao lado de Michels, Timbaud ^
outros de cpiem gostara muito, vira-se, com o a m uitos aconteceu, sem con
tacto com o Partido em 1939. Nem p o r isso deixara de m ilitar num a organiz..
çáo não-com unista da Resistência, continuando a tentar entrar em contact
com o Partido, mas cm vão. Todavia conhecera m uito bem Aragon e Eis.;

356
o V F A c r o S

liem com o Éluarcl e alguns outros com unistas da Resistência, mas que se
cncontrac am tam bém sem contactos com o Partido. Iodos esses amigos e m ui­
tos outros se encontravam nos Cahiers du Sud. em casa de jea n e Marcou Bal-
iard. Foi na setiuência de um a história idiota, conhecida pelo nom e de «meias
da Elsa», que Aragon rom peu com Hélène. Ele queria uma certa cor de meias,
c Hélène não as conseguira arranjar dessa cor. Do m esm o m odo ou tiuase.
I.acan, cjue ela tinha conhecido em .\ice, rom pera com Hélène po r ela não ter
^onseguido descobrir para a m ulher dele. judia, a casa de refúgio de que ela
precisava. O certo é tjue a ruptura com os Aragon ganhou um aspecto m uito
arave, cjuando Hélène. tendo na altura da libertação de Lyon im portantes res­
ponsabilidades, e estando em jogo a sorte jurídica de prisioneiros nazis e de
..olaboracionistas franceses, se tornou alvo de um violento atacjue conduzido
oelo cardeal G erlier e toda a com panhia dos colaboracionistas locais, com
Fferliet à cabeça. Foi acusada de crim es imaginários, de ter protegido crim ino-
'os de guerra, que na realidade queria m anter vivos para deles extrair informa-
LÕes preciosas ou para os trocar por resistentes presos em M ontluc (com o o
padre Larue, que m orreria sob as balas alemãs na véspera da libertação da
cidade). Efectivamente, usava nessa altura o pseudetnimo de Sabine, e tam bém
um outro pseudônim o . Legotien. Tinha em resum o três nom es, o que lhe foi
«ensurado com o um sinal suspeito. Daí a actisarem-na de ser agente da Ges-
:apo, era um passo ejue os acusadores do Conselho Com unal não hesitaram em
dar. Aragon acusara-a de facto, ainda em Lyon, de pertencer ao Intelligence
'ervice.
Foi nestas condições que tive de assistir às sessões do Conselho. Hélène
um vão invocou o testem unho de resistentes que a conheciam m uito bem e
ju e estavam ao corrente da sua acção em Lyon. isso de nada serviu. Foi acu-
'.icla de todos os crim es, e de os ter escondido. Entre os m em bros do Conse-
hü, houve alguns hom ens ejue se calaram, dignam ente, inseguros quanto ao
uízo a proferir. Mas não se opuseram em bloco aos outros, que tinham o
poder de condenar,
Hélène foi portanto excluída do Conselho Com unal nestas condições infa-
niantes. Os m em bros do Partido entenderam -se entre si. Lembro-me que a
arande preocupação dos m em bros da m inha célula bem com o dos Desanti.
l o f / V .1 í 7 H r 5 5 E R

era «salvar Althusser». Fizeram pressão sobre mim não sei bem com cjue objc^
tivo, mas eu não lhes prestei qualquer atenção.
Hélène e eu fomos para Cassis, para nos afastarm os um pouco desta hisn
ria horrível. Era literalm ente alucinante verm os o mar, impassível, continuar .
despejar as suas ondas na praia, debaixo de um sol im placável. Recompuse
m o-nos, nem eu sei bem como, e quinze dias mais tarde retom avam os o cam;
nho de Paris.
Foi a v'ez de entrar em cena o Partido. Gaston Auguet convocou long..
m ente Hélène, e repetiu todos os argum entos da acusação. Foi buscar históri. '
sinistras de um certo Gayman, expulso do Partido, e que p o r isso não pod;.
testem unhar, mas que saberia a verdade sobre a pertença ou não de Hélène
Partido em 1939, na altura do pacto. Imposssível p o r conseguinte saber-se
Hélène era ainda ou não m em bro do Partido. Auguet deixou-a com esta ir

form ação, dizendo-lhe que podia recorrer. Mas ao m esm o tem po inform ou-m .
de que eu era obrigado a separar-m e im ediatam ente de Hélène. Eu não nv
separei.
Esta história m edonha, que me precipitou de novo na doença (por poui
não me suicidei nes.sa altura), juntam ente com o suicídio do m eu prim cir
secretário de célula, abriu-me os olhos para a triste realidade das práticas es:.;
linistas no Partido francês. Eu não tinha então a serenidade de Hélène qu;
segura de si, não se deixou afectar, considerando que o caso lhe dizia respci:
a ela, ao passo que eu o sentia com o um a prova pessoal atroz. Fosse cor.
fosse tudo isto pôs fim a algumas das nossas relações. Tiv^emos, com o aconu
ceu a todos os expulsos, que viver num a solidão quase com pleta, pois o P.o
tido não nos dat a tréguas nem deixava as coisas a meio. Desanti vincou as s u .-
distâncias, com o bom amigo de Casanova que era, em bora guardando p '
mim um a espécie de amizade. Os m eus camaradas de célula, com Le R
Ladurie à cabeça, faziam com o se não me conhecessem . Ficava-me a ma: -
parte dos que preparavam a sua agregação, e alguns cam aradas corajo> -
com o Lucien Sève, sem pre fiel, e Michel Verret, que com preendia. Mas er.r
raríssimos, e foi uma v'erdadeira travessia do deserto.
Apesar de tudo continuei a trabalhar por m im , e pouco a pouco conscg
escrever alguns artigos. Militava então na Associação dos Professores .

358
o ,v F A C I O S

Filosofia, c decidim os um dia, po r sugestão de Maurice Caveing. então autor


com Besse de um M a n u a l de filo s o fia que desem penhou, nesses tem pos terrí­
veis, um certo papel infelizm ente negatiro. tom ar de assalto o Secretariado da
Associação Nacional. Bastava que organizássem os as cotações a que então a
m aior parte dos aderentes não com parecia. \'encem os com facilidade, mas só
para verm os a seguir levantar-se contra nós a m aior parte dos mesm os aderen­
tes, que anularam a votação, e a repetiram , para nossa desgraça. Eram os m éto­
dos do tem po, que nada tinham de dem ocrático.
Trabalhava então num a com issão de crítica da filosofia junto do Comitê
Central. Reuníam o-nos todas as semanas, e acabám os p o r produzir um artigo
onde declarávam os que «a questão de Hegel está de há m uito resolvida» (Ida-
nov), se se exceptuassem as suas sequelas em pessoas com o Hyppolite, onde
assume um a feição claram ente belicista. Eram as idéias do tempo.
Contei noutro lugar com o consegui escrever certos artigos recentes, co n ­
tra os ventos do m om ento, e publicá-los em La N ouvelle C ritique (graças a
Jacques Arnault) e em La Pensée (graças a Marcei Cornu). Não sem dificulda­
des. Mas as Éditions Sociales estavam-me vedadas, por um interdito que nunca
soube exactam ente de onde vinha, Krasucki, Garaudv' ou Aragon, ou talvez até
não viesse de ninguém . Enfim, tudo isto pertence agora ao passado. O que
m antenho vivo na m em ória refere-se ao C om itê Central de Argenteuil. No dia
a seguir ao da sessão, tive a surpresa de receber um recado de Garaudv:
«ontem perdeste, vem falar comigo». Não fui falar com ele. Mas, três meses
mais tarde, recebi um a m ensagem de Waldeck, então secretário-geral do Par­
tido, que me convidava am avelm ente para um a conversa. Estive com ele
durante três horas de uma bela m anhã de Primavera. Ele falava devagar, era um
hom em honesto e caloroso. Disse-me: «Criticaram-te em Argenteuil, mas o
problem a não é esse. lín h am o s que te criticar, para poderm os criticar também
Garaudv, c|ue nos incom oda com as suas posições. Tu, pelo teu lado, escre­
veste coisas que nos interessam.» Eu fiz-lhe perguntas: «Mas tu, que conheces
os operários, tu achas que eles se interessam pelo hum anism o ? — De m aneira
nenhum a, disse ele, estão-se nas tintas. — E os cam poneses? — A mesm a
coisa, disse ele. — Então, po r que é essa insistência no hum anismo?» Cito tex­
tualm ente a resposta de Waldeck: «Bem vês, todos esses universitários, todos

.^59
L O l I S A L r H l V ,V H R

esses socialistas, tem os cjiie falar a linguagem deles...». E com o eu o intern


gasse sobre a política do Partido, respondeu-m e (textual): «Temos que fazc:
alguma coisa por eles, senão vão-se todos embora». Nunca soube ciuem erar,
estes «todos», se os m em bros do Partido (provável), se os intelectuais, se os tr.i
balhadores. Despedi-m e cheio de perplexidade.
Tive ensejo, antes e depois, de conhecer outros dirigentes do Partido. .M.o
não tinham a sua envergadura. C ontudo era interessante ouvi-los. Não falo d»
( tu\ Besse, que era a m odéstia em pessoa («puseram-me na com issão polítÍL
para equilibrar C.araudy, não tenho ilusões»: talvez mais tarde as tenha arrar
jado), mas de Roland Leroy. Vi-o umas quatro ou cinco vezes entre 196“ ,
19“ 2. Hom em delicado, preocupado com a sua aparência, apegado a un:
espécie de elegância fforentina ligeiram ente decadente, de resto m uito v ím > ,
penetrante, mas também ele com um a bela «inteligência lim itada pela ^o!
tade». Roland Leroy falou-me das suas dificuldades (com o m anter a frente fil
sófica), das suas certezas (os socialistas, com o program a com um , há-de s^ :
uma guerra sem quartel, verás. Os soviéticos só têm uma vantagem sobre iii '
a m obilidade social. Na presença de jaeques Chambaz, que aprovava). Este :
também com René Andrieu, um dos dirigentes mais populares pela sua comb.
ti\id a d e tele\ isiva. Confiou-m e a sua intenção de abrir em 1’H u m a n ité. cu
futuro o preocupa\a. um a rubrica de leitores onde todos pudessem exprim i:
com o na France-Nouvelle. a sua lir re opinião. Mas era ainda prem auir
Cruzei-me durante um Congresso com Georges Séguy, cujo sentido da lingu.:
gem popular isenta de dem agogia sem pre adm irei. Falou-me da greve dos (« '
reios, para me explicar que ia acabar, porque havendo num erosos desem preg,
dos, uma greve tão isolada não podia aguentar-se p o r m uito tempo. C onhe,
outros ainda. Q uanto mais elevado era o seu lugar na hierart)uia, mais li\ r­
m ente falavam. Ao nível do simples redactor de 1'Htima ou de F n u in
-Nouvelle, era o silêncio total. ,Scm explicações.
E, um a vez que tenho aqui opo rtu n id ad e de contar tudo, devo c o n fc "
que entre os hom ens célebres que conheci, figuram João XXIII e De Gaub »
Através do m eu amigo Jean G uitton eu tinha alguns contactos em Roír
Encontrei-m e com João XXlIl, que não gostava de estar no Vaticano fora
palácio, nos jardins. Era Primavera, havia crianças e flores que encanta: .c

360
o V / I c / o s

a alma pura do papa. Sob a sua aparência exterior ele borguinhão am ante do
tinto, era um hom em de grande ingenuidade e de uma generosidade profunda,
com laivos de utopia, com o veremos. Com efeito, em mim interessou-se pelo
m em bro do Partido Com unista Francês e expIicou-m e dem oradam ente que
tinha o desejo de reconciliar a Igreja Católica com a Igreja O rtodoxa. Precisava
de interm ediários para conseguir de Brejnet as base' de um acordo unitário,
\ â o escondia t) seu jogo. Eu objectei com tts dificuldades ideológicas e p o líti­
cas de sem elhante iniciatir a. com a situação de M indszemt. por quem ele pro­
fessava um desprezo com pleto (está m uito bem onde esta; pode lá fic.in. e
muito sim plesm ente tam bém com a tensão internacional e com o anticom u­
nism o reinante na Igreja. F.lc declarou-m e que se encarregaria pessoalm em e
desse últim o aspecto se os com unistas estivessem dispostos a um pequeno
gesto. F,m vão lhe rctorqui que esse gesto era m uito difícil de conseguir, que
nem m esm o o Partido italiano o faria, t|ue o Partido francês estava ainda pior
colocado para isso, e ele por pouco não me descom pós, dizendo-m e que a
Igreja de França era galicana e que isso dev ia pelo m enos servir jvara alguma
coisa, que a aliança franco-russa era uma antiga tradição, etc. Deixei-o deso­
lado com a m inha im potência, sem conseguir convencê-lo de que era apenas
eu quem ali estava. Voltei a vê-lo em duas ocasiões, sem pre com a m esm a reso­
lução e sem pre igualm ente irritado por este problem a que levava a peito.
Fmeontrei-me com De Gaulle em condiçêtes espantosas, pois não o c o n h e ­
cia pessoalm ente, Foi num a rua do vu bairro. Um hom em alto que tinha na
boca um cigarro pendente pediu-m e lume. Eu dei-lho. Ele perguntou-m e sem
mais aquelas-, quem ê vttcê? o que é que faz? Eu resjvondi-lhe: ensino na École
Xormale. F. ele: o sal da terra. Eu: do mar. a terra não é salgada. Q uererá dizer
que é lübrica? Não: c suja. ' Ele resjaondeu-me: vocabulário não lhe falta. Eu:
c o m eu trabalho. Ele: os militares não o têm tão rico. Eu: o que é que o
senhor faz? Ele.- sou o general De Gaulle. E de facto era. Oito dias mais tarde
o PBX da Ecole. desvairado, transm itia-m e uma cham ada da Presidência da
República, convidando-m e para jantar. De Gaulle fez-me perguntas atrás de per­
guntas, sobre m im , sobre a m inha v ida, o meu cativeiro, a pttlítica, o Partido

' ,|()go de palavras intraduzível entve sei (sab, salace d ú b rico i c sale (sujo). ( V. da T.)

b61
L O I I S A L T U r S S /:’ R

Com unista, mas sem me dizer uma palavra que fosse sobre a sua pessoa, Trc-
horas. Depois despedi-m e. Voltei a vê-lo durante a sua travessia do deserto.
dessa vez foi ele a falar. Disse-me tudo o ejue se sabe que ele dizia: o pior p o '
sível dos militares, m uito bem de Estaline e de Thorez (hom ens de Estado
m uito mal da burguesia francesa (não tem estofo para produzir hom ens
Estado, com o o dem onstra o facto de ser obrigada a dirigir-se aos militarc-
que, apesar de tudo, teriam mais que fazer). Também ele estava preocupad
com o Partido Com unista: «Acha que eles são capazes de perceber que eu so.
o único a p o d e r m anter a América em respeito? e a instalar em França um.
coisa parecida com o socialism o de que eles falam? Todas as nacionalizaçõc-
que quiserem , e m inistros com unistas, claro, eu não sou com o os socialist. -
que correram com eles p o r ordem dos am ericanos. A Rússia? Eu trato dis«
A grande questão é o Terceiro Mundo, já dei a liberdade a quase todos os terr
tórios. falta a Argélia, vai ver que a puta da burguesia francesa me há-de cf .
m ar quando as coisas lhe com eçarem a correr mal, Guy Mollet é o seu home
de serviço, mas não passa de um incapaz, e Lacoste é p ior ainda. Estou so/
nho? Sim. sem pre o estive, mas com o escreveu Maquiavel. é sem pre preço
estar-se sozinho quando se com eça uma coisa grande, mas o povo francc' .
gaullista, e eu tenho alguns amigos fiéis, veja o Debré, veja o Buis, dei-lhes u
pedaço mais de céu.» Q uando leio as descrições de Malraux, que explor,;
fundo algumas frases dt) grande hom em e as tem pera à sua m oda, penso nco:
afirm ações simples, na sua grandeza e na sua rigidez: o arame do funâm bic
Era um equilibrista político de gênio. Muito duro a respeito dos cam pone/c-
só pensam nos im postos, e aliás o fisco p o u p a -o s; e acerca da Igreja: põem -
a balir para dom esticar o lobo, não sabem que é preciso ser-se mais lobo .
c|ue o lobo; mas respeitava certos católicos com o M andouze: esses saber,
que é estar sozinho. Extraí daqui a lição de que uma certa solidão é por \ c,
necessária quando nos querem os fazer ouvir.
Eu conhecia a solidão através das clínicas psiquiátricas onde passa\ a re_
larm ente as m inhas tem poradas. Conhecia-a também nos raríssim os m om er:
em que, saindo das depressões, voltara à tona, e, im pelido não sei por .
vaga, subia mais alto do que eu. num a espécie de exaltação em que tud
tornava fácil para mim. em ciue conseguia inevitavelm ente uma n o ra rap.;: _

362
o V /■ .1 ('. / o s

que SC convertia na m ulher da m inha vida. a quem ler axa às cincx) da manlrã
os prim eiros crttissants quentes de Paris, juntam ente com as groselhas da Pri­
mavera (porque curiosam ente, quando eu voltava à tona, era sem pre Maio ou
Junho, com o mc fazia notar m aliciosam ente o m eu analista, nem todos os
meses são iguais, os das férias são um bocadinho diferentes, e sobretudo os de
vésperas de ferias). Nessas alturas inxentava toda a espécie de loucuras, que
faziam trem er Hélène, porque ela assistia sem pre da prim eira fila ao m eu furor,
e inquietavam tam bém os m eus amigos, apesar de estes estarem habituados às
m inhas fantasias incontroláx eis.
Tinha um fraquinho pelas facas de cozinha ejue enferrujam , roubei uma
quantidade delas num arm azém , e le\ei-as no dia seguinte outra \ ez para lá.
pretextando que não me conx inham . para as recender ã mesm a em pregada
espantada. Decidi tam bém roubar um subm arino nuclear, caso que foi natural­
m ente abafado pela im prensa. Telefonei ao com andante de um dos nossos sub­
m arinos nucleares de Brest, fingindo ser o m inistro da .Marinha, para lhe
anunciar uma im portante jrromoção, e lhe dizer que o seu sucessor ia apresen-
tar-se-lhe im ediatam ente, para o substituir no m esm o instante. Efectixamente
apareceu um oficial fardado, trocou com o ex-com andante a docum entação
regulamentar, assumiu o com ando, e o outro foi-se em bora. O segundo reuniu
então a tripulação e com unicou-lhe que, para com em orar a prom oção do seu
ex-com andante, lhes concedia oito dias de licença extra. A sua arenga foi sau­
dada por e ivas. Toda a gente desceu de bordo, excepto o m estre-cuca que
quase ia fazendo ir tudo por água abaixo a pretexto de uma ratataoiiiU c que
tinha a apurar a lume brando. Mas até ele acabou p o r partir, tirei o m eu boné
de circunstância, e telefonei a um gangster cjue precisara de um subm arino
nuclear para fazer chantagem com reféns internacionais, ou com Brejncv. a
dizer-lhe que podia levantar a encom enda. Foi nest.i m esm a época que fiz o
célebre assalto sem sangtie à Banque de Paris et des Pays Bas para ganhar uma
aposta com o meu amigo e ex-condiscípulo lherre .Moussa. que o dirigia.
Reservei unt cofre no banco, fiz-me acojnpanhar até lá. abri-o e m eti-lhe
dentro ostensivam ente um núm enr consicieráxel de notas falsas (para dizer
a verdade bastavam alguns pacotes com a form a das notas de quinhentos
francos) diante dtj guarda do cofre. Fui então ter com Moussa e disse-lhe

36,^
L O V / .V ,1 A r U V S S E R

que queria fazer uma declaração sob palavra de lK)nra acerca do valor do nu
depósito: um bilião de francos novos. Moussa, que sabia das m inhas relaçõ.
com Moscovo, não pestanejou. No dia seguinte, voltei ao banco, pedi que ir
abrissem o cofre, e verifiquei com estupefacção que estava compIetameiT
vazio: gangsters habilíssimos, abrindo todas as portas, tinham no visita^,
durante a noite. O mais extraordinário era cjue de\ iam estar a par do m ontan­
do depósito que estava no m eu cofre, pois não tinham assaltado outros cofin
(assaltado, é com o quem diz, um a vez que tinham as chaves). () guarda, o ;
vocado, confirm ou tam bém que o cofre, que vira cheio na céspera, est,;
vazio. Moussa igualmente, fazendo com que a Lloyds pagasse no espaço -
oito dias. Mas Moussa não se deixara levar. Pediu-me uma pequena contrib:.
ção jaara a caixa de solidariedade dos antigos directores de bancos, e par.;
associação dos antigets alunos da Ecole Normale. As contribuições em car,-
ficaram registadas nos anuários das duas associações. Devo dizer que o pr,
feito da polícia do tem po te\e uma atitude m uito correcta: é assim, as b-
m aneiras fazem parte da Alta Administração. Pus ao corrente da história o in.
pai, t]Lie riu baixinho: conhecia bem Moussa, que fora um dia visitá-lo a .M.
roct)s para lhe explicar a situação local. O meu pai ouvira-o sem dizer pahn.^
e apertara no fim a m ão de Moussa transm itindo-lhe alguns endereços que b
perm itiríam encontrar belas finlandesas (Moussa tinha então um fraco po r c "
gênero de m iúdas) e bourbon repescado do fundo do mar. Rctubei muK
outras coisas, incluindo uma avó e um sargento de cavalaria na reserva, n
não é aqui lugar para falar disso, pois acabaria p o r arranjar com plicações o
o Vaticano, uma vez que o sargento pertencera ã Guarda Suíça. Eu tinha b>
relações com o Vaticano, tendo tido a honra de ser recebido (entre cent-
nocenta c dois outros estudantes parisienses, levados a Roma pelo padre Ch ­
ies em 19-tó) por Pio XII, que me pareceu sofrer do fígado, mas era m uito car

de se exprim ir num francês entrccortado p o r fonem as italianos com o um p i.r

por um violoncelo duvidoso, e que me perguntou se eu era aluno da Eo .


se estava na secção de letras ou de ciências, se era de filosofia: sim. Ent.'
desejou que eu lesse São Tomás e Santo Agostinho, por esta ordem , cjue b —
«um bom cristão, um bom pai e um bom cidadão». Fiz o m elhor que p i..
desde aí para observar estas recom endações inspiradas po r bons sentim en: •

364
o V /' 1 c I O s

Não conheci nem João XXIII, esse hom em fabuloso, que era com o o cônego
Kir mas em santo, nem Paulo VI, essa \elh o ta inquieta sem pre de um lado para
o outro e que só tem um sonho na sua vida: encontrar-se com Brcjncc', Mas
Jean G uitton conhecia-os p o r mim. um a vez que os livros dele eram as suas
obras de cabeceira, ejue eles trocavam correspondência com ele. e toi assim
que m e m antive ao corrente dos casos do dia a dia do Miticano c tjue ptide
preparar o golpe do sargenttt suíço que, um a vez regressado ao estado ci\ il.
queria ir ter com a bem -am ada aos Grisons,
Naturalm ente este \e n to de loucura, durante o ciual me apaixonei ainda
por um a arm ênia c|ue vic ia em Paris, bela com o um pano cru. com cabelos de
um a cor diferente e olhos ejue vogavam docem ente na noite, não se prolongoti
por m uito tempo. Voltei a uma das m inhas casas de saúde. Tinha feito alguns
progressos desde o Esciuirol. Fui para Soisy, onde não davam electrochoques.
mas se faziam curas de sono fictícias, tiue me davam a im pressão de m e curar.
Recolhi em Soisy uma experiência algo surpreendente, que deveria abrir cam i­
nho à antipsiquiatria. Toda a gente, excepto os m édicos e o porteiro, se reunia
num a grande sala cheia de cadeiras: os doentes, os enferm eiros, as enferm ei­
ras, etc. E toda a gente se olhaca antes de se calar. O cjue duraca horas, (ãra um
doente se levantava para ir mijar, ora outro acendia um cigarro, ora uma enfer­
m eira tinha um a crise de choro, e quando acabavamos de conversar, toda a
gente ia ou comer, ou deitar-se po r causa da cura de sono. Sempre tive uma
extrem a adm iração pekts m édicos: arranjavam sem pre m aneira de não apare­
cer, não conseguíam os sequer vê-los em particular, sustentavam que a sua
ausência fazia parte do trabalho, o que os não im pedia de estarem ocupadíssi-
mos a tratar fora do hospital um a outra clientela priwtda que precisava dos
seus cuidados: ou então faziam a corte às enferm eiras com quem casavam,
quando não lhes faziam filhos. A que ponto podiam ser perigosas as curas de
sono, eontrariam ente a uma opinião geralm ente aceite que não leva em conta
o sonam bulism o, foi algo de que me convertei através de um incidente que me
sucedeu em pleno Int erno, quando o solo da região estar a coberto p o r uma
cam ada de vinte centím etros de n e \e endurecida. Fui encontrado p o r \o lta
das três horas da m anhã, com pletam ente nu no m eio da neve, a duzentos
m etros do meu pavilhão, e ferira o pé num a pedra. As enferm eiras tireram

,^ó5
L O I I S .1 L r H r S V E R

m uito m edo, fizeram-me um p equeno penso, deram -m e um banho quente


voltaram a m eter-m e na cama. Também desta feita, não vi som bra de médie
Não se tinham especializado no sonam bulism o. Graças a Deus, havia por
Béquart, que eu via na com panhia da sua encantadora mulher, e que se intere-
sava pela filosofia, e Paumelle que organizara a história toda, não sem inqu;,
tação, e que rum inava as suas preocupações bebendo whisky, e tagarelando lV
tiuando em ejuando com D om enach, m eu ex-condiscípulo de Lyon; D crnc.
Poulantzas, Macherey vinham tam bém \ isitar-me. íam os com er éclairs de ch
colate a uma pastelaria, e saíamos cam pos fora, à conversa. D errida com.
va-me a sua depressão, ocorrida a seguir ao seu casam ento, com um infini:
tacto, Nikos falava-me das suas histórias de m ulheres (aquele Nikos!), e das do
sensões entre o Partido do interior e o Partido do exterior, Macherey de filo^
fia e dos seus problem as de alojamento. Por mim, eu tentava fazer temj'
passar, o que é a coisa mais difícil do m undo, tjtiando a angústia nos tortu:
o ventre. Mas a depressão acabava sem pre p o r depor as armas, e eu voltava
Ecole, onde <vs candidatos à agregaçãct passavam sozinhos nos exames, ondí.
flyppolite e a m ulher me recebiam com amizade, e onde a política prossegui
o seu cam inho. A única a sofrer deveras com tudo istt) era Hélène, pois um
vez que ela tinha um caracter difícil, toda a gente pensava que se eu adoecí,
era po r culpa dela, e assim que eu desaparecia toda a gente a deixava ao abar
dono. o que fazia com que ela tivesse que carregar às costas quer com a minh,
doença, quer com a culpabilidade de se sentir re.sponsável, e com a atisénci.
dos amigos t[tie nem sequer lhe davam sinais de v ida para a convidarem par,
um copo ou para um a ida ao cinem a. Os familiares tios doentes são assim por
tadores públicos da peste, tão grande é o m edo tiue as pessoas concebem
sobretudo as mais chegadas, de adoecerem por seu turno. Nem um a vc,
durante trinta anos, para pegar num outro exemplo, a m inha mãe ou o m eu p.i
me visitaram nalgtima das clínicas onde estive e cujos endereços conheciam
todavia, lindam ente. Hélène arrastou assim sem pre com ela uma espécie dc

maldição, e o receio aterrador de ser uma madrasta, coisa que não é de m.;
neira nenhum a, sendo pelo contrário de um a sim patia m aravilhosa para con
as pessoas, com quem às vezes se m ostra hrtisca, é certo, mas sem maldade
quando lhe falam dem asiado cedo de m anhã durante o seu peqtieno-alm oci

366
o s F .1 C J O S

ou quando dizem diante dela mal de Stendhal. de Proust ou de Tintoretto, ou


bem de Camus (que ela conheceu de perto na Resistência), etc. Coisas de dá cá
aquela palha: mas com o com uma simples palha se podem atear grandes in cên ­
dios, com coisas de dá cá aquela palha pode fazer-se tam bém m uito mal.
ic- Portanto, a política continuava. As coisas tinham com eçado na Primavera
lÍ c
de 1964, quando recebi no m eu gabinete da rue d'L Im a \ isita de Balibar, Mache-
1,. rey, e Establet, ao tem po alunos da École, \ inha pedir-m c que os ajudasse a tra­
(I- balhar em Marx. Disse-lhes que sim, peguei nos com entários deles, e dei-me
t.!-
conta de c]ue sabia mais do c[ue pensac a. Sempre a pedido deles, organizám os
ti um sem inário sobre O C apitai durante o ano lec ti\o 19(-)4-196S. abertura
i'- coube a Rancière que tece a parte ntais difícil, com grande mérito, porque n in ­
O- guém se atrevia a começar, c falou três \ ezes durante duas horas. Foi uma exposi­
■)! ção m agistral, publicada na Maspero, tahx-z um tanto form alista e lacaniana (a
r.i «causa ausente» interc inha a jsretexto de tudo e de nada) mas não sem gênio. Hu
, .1 falei po r m inha vez. depois de Macherey. que então ensinava em La Flèche, e de
Jc Establet e Balibar. O m érito não era m eu uma xez que os outros tinham feito
1,1
todo o trabalho. D uroux, o mais preparado de todos nós, ficara infelizm ente
l.i
calado, com o sempre, em bora cheio dessas idéias em que não era a\ aro. Quanto
ia aJacques-Alain Miller, ciue já fazia a corte a Juclith Lacan, fizera-se notar po r um a
n- grande capacidade de iniciativa em O utubro de 1964, depois desaparecera por
T,-. com pleto (refugiara-se na floresta de Fontainebleau, com uma rapariga a quem
ia
ensinava a produzir conceitos teóricos), aparecendo-nos um dia sem a\ isar em
ra Junho de 1965. para descobrir perante a estupefacção geral que lhe tinham «rou­
ir- bado um conceito». Com o eu naquela altura já não estava louco, o roubo não
n. fora m eu. Miller sustentaxa t}ue a culpa era de Rancière, que lhe roubara o co n ­
ez ceito de «causalidade metonímica» que ele inventara num instante de distracção
ai mas ao qual po r isso m esm o estax a ainda mais apegado. Rancière defendeu-se
n. com o um dem ônio e acabou po r confessar em O utubro de 1965 que a culpa era
k- m inha. Miller fez-me então uma cena paxorosa. que im pressionaria rctrrjspecti-
a­ vam ente Régis Debray, depois de ter sido libertado de Camiri (fala do caso, no
m seu últim o livro com o de um sintom a de perturbação dos espíritos na École em
c. geral e em particular). Mas tratara-se realm ente de uma excepção. Os conceitos
o. circulavam à m edida que eram gerados, sem m edidas limitativas.

56-?
L o r / s .4 l i H i: S S H R

Circulavam de tal m aneira que os m em bros da União dos Estuda;'


(À)munistas (l^EC) em breve os resum iam em brochuras, para as suas fam>
escolas de form ação teórica. Estas escolas tinham nascido da convicção, m.
teoricista, que então reinava entre nós, dc tjue, perante a im possibilidade
fazer política no Partido, devíam os adoptar o ponto de vista de Lcnine no
fa zery e batermo-ncts no único cam po que nos ficava aberto: (t da form,:,
teórica. Este projeetct conheceu, salvaguardadas as devidas proporçõc'-
sucesso cctnsiderável, ou pelo m enos inesperado. Abriram um pouco por
a parte nas universidades parisienses escolas de form ação teórica, aniir,
por um peciueno grupo de filosofia, sendo Robert Linhart de entre O' -
m em bros sem dúvida o mais activo e mais preparado. Esta acção teve. l
seria de precer, consequências políticas. Os norm aliens, a p artir do seu
CLilo de Ldm, e da fraqueza da fíEC então m inada pela tendência «itali.,:
pelos «psicossüciólogos» da faculdade de Letras da Sorbonne, passaram, ; '
cam ente a con tn tlar a direcção da UEC. O Partido, m uito fraco nes^c ;
tolerou-o até ao dia em que o Círculo de Lllm e t)S seus amigos tom arair .
ciativa de rom per com o Partido num a cisão que lhes deu manifeNt.c'
m uito prazer. Descom pu-los sem contem plações, dizendo-lhes que aqu;
era política, mas um a brincadeira de crianças. Mas o passo fora dac
fundaram então a União das Juventudes Com unistas (marxistas-leni.' -
fJJ(í m-1, que se tornaria famosa pelo seu aetivism o e pelas suas in;,.
m uito ponderadas, antes do mais continuação da form ação teórica, cr:.,,
uma revista (os Cahiers m arxistes-léninistes onde publiquei, com o
dois m aus artigos que o Partido fingiu ignorar) e sobretudo lançam c:o
com itês Vietname de base que tiveram um êxito que acabou po r inq , .
Partido. Estes jovens tinham , na sua inteligência teórica da polític,:
ardor e na sua imaginação, com preendido apesar de tudo alguns pr :
essenciais da agitação e da acção de massa, e tinham passado também .
Os Cahiers m arxistes-léninistes, depois de um a estreia difícil, \endi,;:
bem. Eu enviara-lhes, para o prim eiro núm ero, consagrado à Rerolim.':
ral, que acabava de se declarar, um artigo não assinado (cuja autenticid.iCL
de Rancière, reconheço aqui) onde aplicava um a teoria simples c í.i v
no princípio: há três form as da luta de classes, a econôm ica, ,i p

368
o ,s F \ < I O V

ideológica. Portanto são precisas tres organizações distintas para as conduzir


C onhecem os duas: o sindicato e o Partido, Os chineses acabam de in\en tar a
terceira: os guardas verm elhos. Q uod etat ciem o)istríuicíii»i. A coisa era dem a­
siado simples, mas agradou. Debitei ainda um outro artigo, m uito com prido
desta feita, e assinado, sobre «materialismo dialccuco c m atenalism o histó ­
rico», em que defendia a ideia justa segundo a qiuil a filosofia m arxista não
deveria ser confundida com a ciência marxista d.i histiiria. mas os meus ,irgu-
m entos eram no m ínim o esquem áticos. Lembro-nic dc que mais de um ano
após a fundação da UjC m-1 Paul Latirem me com adou .i \ isita-lo. mas eu
preparava-m e na altura para dar entrada no hospital psiquiátrico, c não pude
com parecer. Sempre o lam entei, pois ã distancia Paul Laurem sempre me pare­
ceu um hom em interessante, e pelo m enos calm o e lúcido. Lstfn amos nas \ es­
peras de Maio de 68 . Q uando ia de carro a cam inho do hospital. \a' grupos que
desfila\'am com uma bandeira verm elha. As coisas tinham com eçado.
D urante o Maio de 68 . quando o Partido perdera com pletam entc o co n ­
tacto com as massas estudantis em revolta, os rapazes da 1 JC m - 1, com o bons
leninistas, foram para a porta das fábricas, onde os operários franceses ha\ iam
desencadeado a m aior gre\ e de toda a história do m ovim ento operário. Foi o
que os perdeu. Porque os operários não precisacam do socorro dos estu d an ­
tes, ainda que «infiltrados», e a questão joga\a-se não às portas das fábricas,
mas no Q uartier Latin, onde durante tim mès houve troca de pedras e granadas
lacrim ogêneas, mas sem que fosse disparado um só tiro. tendo os CRS * m ani­
festam ente recebido ordens da parte de um prefeito da polícia cuja filha p e r­
tencia às fileiras dos m anifestantes, para po u p ar os estudantes, que. bem vistas
as coisas, eram na sua m aioria filhos da grande burguesia francesa. F(.)ram
m enos clem entes na Peugeot, onde as balas abateram três operários.
Sabe-se de que m aneira De Gaulle conseguiu \ encer esta recatlta especta-
ctilar, m ediante o m ontar de um outro espectáculo: o do seu desaparecim ento
imprevisto, para ir, não à porta das fábricas, nem ã Sorbonne ocupada, mas à
Alemanha, ao QG de IVfa.ssu (tal é pelo m enos a ccrclade oficial) regressando
dois dias mais tarde e proferindo o seu famoso discurso ofegante, t|ue abriria

C o r p s R é p u b li c a in d c S ccu rilc: c o r p o d:i po lícia fran c esa (.V. (/o T. s

369
L O C I S A L 7 H I .V S /;• A '

cam inho às negociações de Grenelle com Pom pidou frente a Frachon e Séguy
e às eleições que lhe dariam , a seguir à m anifestação dos Champs-Élysées, uma
m aioria inencontrável.
O m ovim ento de Maio, em que os operários em greve e os estudantes
revoltados se tinham m om entaneam ente cruzado (no dia 13 no grande cortejo
que atravessou Paris), extinguiu-se pouco a pouco. Os operários, uma vez satis­
feitas as suas reivindicações essenciais em Grenelle, retom aram pouco a
pouco, p o r vezes com relutância, o seu trabalho. Os estudantes dem oraram
mais tem po a aceitar a derrota: mas acabaram, com a evacuação do O déon e
da Sorbonne, p o r baixar os braços. Era um grande sonho cpie abortav a. Toda­
via não desapareceu das m em órias. Conservou-se, conservar-se-á por muito
tem po a recordação desse mès de Maio, em que toda a gente estava na rua.
onde reinava uma verdadeira fraternidade, onde qualquer pessoa podia falar
com t]ualquer pessoa, com o se se conhecessem desde sempre, onde tudo se
tornara de súbito natural, onde todos pensavam que «a im aginação estava no
potler» e que p o r baixo das pedras da calçada havia a suavidade das praias
Depois de Maio, o mov im ento estudantil assumiu a form a de seitas, ou de

grupúscLilos. A UJC; m-1 cindiu-se, Robert Linhart, jaeques Broyelle e outro-


saíram, c o que restava seguiu Benny Lévv que fundou com Alain Geismar, d(

M ovim ento do 22 de Março, a Ciauche Prolétarienne. Esta organização criou


um diário c um sem anário, mas apesar da protecção e do apoio financeiro de

Sartre, que julgara reconhecer em Maio a sua teoria da serialidade (a CGT) e d:


grupo (os m anifestantes estudantis), vegetou, e acabou p o r desaparecer. Mui­
tos dos seus dirigentes, ou m ilitantes próxim os, com o André Glucksmann
acabaram no antim arxism o, que am eaça tjualquer m ovim ento ideológio
antiautoritário e anarciuizante. Eoi um triste fim, apesar da im ensa m anifesta­
ção de protesto contra o assassinato de Overney, acerca da qual eu dissera: c
um enterro, mas não tanto o de Overney com o o do esquerdism o estudantil
Estavam naturalm ente todos os estjuerdistas a assistir ao enterro do esejuer-
dismo. E m uitos outros ainda, o que alim entou as ilusões durante dois ou tre-
meses. Mas a verdade veio rapidam ente à tona, sem de resto inspirar, tão c o n ­
fusos estavam os espíritos, a m ínim a réstea de análise, encjuanto Lévy cont;
nuava imperturbav^elmente a lançar palavras de ordem que ninguém segui.;

3-O
o V f .1 (. I (> s

antes de publicar as suas conversas com Sartre que o tom ara com o secretário
particular.
O verdadeiro esquerdism o. o esquerdisnu; operário, anarco-sindicalista e
populista, refugiou-se noutros lugares: num a parte do Fsp na CFDT. Mas
esta era um a \'erdade ejue os estudantes france^c' não queriam reconheer: há
dois esejuerdismos, um m uito amigt). o e-querdism o operário, e outro muito
recente, o esquerdism o estudantil, e encjuanto o prim eiro que faz parte do
m ovim ento operário tem possibilidades de futuro, o segundo não pode, se­
gundo os seus princípios, deixar de afastar-se do m ovim ento operário. A situa­
ção é diferente em Itália e em Espanha, por razões históricas, pois ejue aí po d e­
m os ver, ;i esquerda d(t Partido Com unista, form ações políticas com uma base
não apenas estudantil mas tam bém operária, o que é actualm ente impossível
e im pensát el em França, com o bem sabe a direcção do Partido francês tendo
dado p ro \as disso m esm o com a sua táctica em Maio de 68 e posteriorm ente.
Bastou-lhe fechar-se na sua «fortaleza operária», a C(>T e o Partido, para que se
decom pusesse por si, apesar das im precações, o esquerdism o estudantil,
m aoísta ou não maoísta.
Devo falar aqui de uma iniciatic a que tom ám os em grupo na Primavera de
1967: fundar um grupo de trabalho a que dem os o nome, transirarentc, de ,Spi-
noza, A m aior parte dos meus amigos participaram , m em bros do Partido ou
não. Foi um a experiência interessante porcjue profética. Estávamos na altura
convencidos de que as coisas se desencadeariam na fnixersidade, O resultado
seria um livro, assinado apenas por Baudelot e Fstablet po r razões de dix ergên-
cia política, sobre A Escola C apitalista em Eya)iça. E um outro grande traba­
lho de Bettelheim sobre as lutas de classes na l RSS.
Em preendêram os também um estudo das relações de luta de classes em
França mas que, po r falta de meios e de tempo, não põde ser concluído.
O grupo acabou po r se d isso h e r por si (em consequência de uma das minhas
depressões e da conjuntura, e da saída de Alain Badiou. um dos nossos mais
brilhantes colaboradores, que decidiu que era necessário preparar a reunifica­
ção dos grupos maoístas em França a fim de renovar o Partido). Badiou
publica actualm ente na M aspero uns fascículos interessantes, onde descobri­
m os curiosam ente a fiktsofia sartriana da revolta que ele nunca renegou, ao

, á '’ l
/, o /_■ I s A L r n r s s i: k

serviço da interpretação dos textos de Mao, sobre um pano de fundo de volun-


tarismo, de pragm atismo, c de idealism o típico do pensam ento do grande diri­
gente com unista chinês.
Acrescento, para nada escjtiecer das m inhas torpezas teóricas, que publi­
cara na Frimavera de 1966, ao m esm o tem po ejue saía, em La Pensée. o meu
m au artigo sobre o «trabalho teórico», um grande texto sobre a form ação teó­
rica, que os cubanos traduziram , e que me foi pedido de c ários lados. F.scrcc i
tam bém um outro texto, mais ambicittso, sobre o socialism o ideológico (,s'/c) e
o socialism o científico, que, felizmente, não chegou a ser publicado. Será p o s­
sível. lendo estes ensaios, avaliar a que p onto fui capaz de ceder, de acordo
com o espírito do tem po, em função do êxito real das escolas de formação
teórica da I JC m-1. à tentação cjue mais tarde criticiuei sob a form a de «teori-
cismo». Esta tentação, ou este desvio, não ficou no estado verbal, uma \ ez cjuc
de facto alim entou, ainda que corrigida pela prática efecti\a, a política da
l\fC m-1. Nem tudo era detestável nesta teoria, provou-o a experiência, um.i
vez, que conferiu pelo m enos àqueles que a adoptaram o sentido da im p o rtân ­
cia da teoria. Mas o que não póde dar-lhes foi o sentido do im pacto da prática
sobre a mesm a teoria, por outras palavras, a lição c|ue ensina a «praticar a teo ­
ria» levando em conta a prática, quer dizer, o estado da relação de forças d.;
luta de classes, a carga sem ântica das palavras e a avaliação dos efeitos da teo­
ria e da prática. No entanto, esses jo \en s fizeram uma experiência interessante
da qual \ ários de entre eles, t(ue nã(t se perderam no antim arxism o, recolheiv:
hoje os frutos, alguns dos quais já bastante prom issores, a julgarm os po r exem ­
plo pelo livro de Einhart sobre Lénine, Taylor et les paysans.
Eu defrontara-m e, com efeito, a propósito do célebre «corte epistem oló-
gico» tom ado de em préstinn) a Bachelard. com essas form ações estranha'
que, comtt a econom ia política clássica, são ao m esm o tem po pré-científica'
e teóricas, e são teóricas sem serem propriam ente filosóficas, e são além cI ís m

burguesas, Esta últim a determ inação era evidentem ente de longe a mais im p o r­
tante. Portanto era preciso pensar e aceitar a natureza ideolétgica de ciasse d>
substrato da teoria burguesa da econom ia política, Mas era preciso ao mesm.
tem po aceitar reconhecer cjue esta form ação da ideologia burguesa se apresen
tara sttb a forma de um a teoria, abstracta, rigorosa e até, em certo sentid-
o ,s / .1 C 7 O s

form al, científica. Foi assim que Marx tratou o pensam ento de Ricardo, e
m esm o de Smith, na ilusão de que essas teorias tinham podido ser científicas
porque a luta de classes conhecera um período de trcy u a' em Inglaterra ísíc t.
tese tiue toda a obra de Marx desmente, F ne-ta ikoão que hoje se me afigura
indispensável procurar, no próprio Marx, e não ap en a' nas o h ra' de jtoxmtude
mas em O C apital, a origem de num erosos m al-entendidos, que lecarana a
um a má interpretação do m arxism o, ou ã sua falsificação \ oluntária. 'Iodaria
a ideia simples segundo a qual. se Marx fundou de tacto uma ciência, essa
ciência, com o qualcpter ciência, dererá ser. senão revista, pelo m enos reto­
m ada, os seus princípios m elhor fundam entados e as suas conclusões tornadas
mais precisas, pode ser fecunda. O resultado será uma enorm e sim plificação
de um a obra acerca da qual .Marx pensou, na m esm a ilusão, que o seu
«começo» seria «árduo», ettmo em qualquer ciência, o que é falso; uma revisão
da 1.‘* secção do Lir ro I do C apita! para que chamei a atenção há vários anos,
e sobretudo a distinção cuidados entre o que Marx escreveu em O C ap ita i e
nos seus rascunhos de leitura, com o as «'lêorias da mais-valia», onde muitas
\ezes se contenta com copiar pura e sim plesm ente os textos de Smith sobre o
trabalhador produtivo, por exempk), teoria, distinta da do trabalho produtivo,
que desaparece do C apitai. Haveria po r certo m uito mais coisas a dizer, e eu
tentarei dizê-las, acerca de todos estes mal-entenditU)s cuidadosam ente alim en­
tados po r gente dem asiado interessada na falsificação da obra de Marx.
Contentar-m e-ei de m om ento com algumas palavras sobre a questão da
filosofia m arxista. Depois de ter durante m uito tem po pensado que ela existia,
mas que Marx não tivera tem po para a formular, ou depois que não tivera os
m eios necessários para iss(t. depois cie ter pensado durante m uito tem po que
bem vistas as coisas, e apesar de .Materi^ilismo e E»!pirocritici.c?>/o. tam bém
Lenine não tivera tem po ou. mais tarde, os meios necessários para a sua for­
mulação, cheguei com dificuldade a uma ideia dupla, Primeiro, contraria­
m ente ao que eu julgara e afirmara. Marx não descobrira uma filosofia nova,
no estilo da sua descoberta das leis da luta de classes — mas adoptara uma
nova posição em filosofia, portanto num a realidade (a filosofia) que existia
antes dele e que continua a existir depois dele. Em seguida, esta posição nova
ligava-se em iiltima instância à sua posição teórica de classe. .Mas se esta últim a

3^3
L O r I s A L i H r S S E R

proposição fosse verdadeira, implicava que toda a filosofia (pelo m enos toda
a grande filosofia, e talvez até as peciuenas) era determ inada em últim a análise
pela sua posição de classe, e portanto a filosofia, tom ada no seu conjunto, não
passava, em últim a instância, de «luta de classes na teoria», luta de classes c o n ­
tinuada. com o Engels bem vira. no interior da teoria. Naturalmente, esta tese
colocava problem as temíveis, não só no cjue diz respeito aos inícios da filoso­
fia, mas cjuanto às formas desta luta de classes, e t|uanto às relações evidentes
entre a filosofia e as ciências. Portanto era necessário reconhecer que a filoso­
fia não é exclusiva dos filósofos de profissão, não é a sua propriedade privada,
mas p rópria de qualquer hom em («todo o hom em é filósofo», Gramsci). C on­
tudo era preciso reconhecer à filosofia dos filósofos uma form a particular, a
da abstracção sistem ática e rigorosa, diferentem ente das ideologias (religiosa,
moral, etc.), e reconhecer tjue no lab o ra tó rio da filo s o fia dos filó so fo s
alguma coisa se elabora que não é coisa nenhum a, mas tem efeitos no dom ínio
das ideologias cjuc são a parada seguinte das lutas de classes filosóficas. Que
poderia ser esse qualquer coisa que se elabora assim no laboratório da filosofia
dos filósofos •' Durante m uito tem po pensei que se tratava de um a e.spécie de
com prom isso, de «remendo», destinado a reparar no tecido filosófico os estra­
gos feittts pela irrupção das ciências (acarretando os cortes epistem ológicos
rupturas filosóficas) na unidade filosófica anterior. Mas dei-m e conta de c)ue as
coisas eram m enos m ecânicas, e de que a filosofia tinha, com o toda a história
testem unha, uma relação com o Estado, com o poder do aparelho de Estado,
m uito precisam ente com a constituição, quer dizer, com a unificação, a siste-
m atização da ideologia dom inante, peça m estra da hegem tm ia ideológica da
classe no poder. Re\elou-se-m e então que a filosofia dos filósofos assumia o

papel de contribuir para unificar com o ideologia dom inante, tanto para uso da
classe dom inante com o para uso da classe dom inada, os elem entos co n tra d itó ­
rios de ideologia que toda a ciasse dttm inante descobre ao chegar ao poder
diante dela, ou contra ela.
A p artir desta perspectiva, as coisas tornavam -se relativam ente ciaras, ou
pelo m enos inteligíveis. C om preendia-se que todo o hom em fosse filósofo
uma vez ejue vi\ ia sob um a ideologia im pregnada de consequências filosófi­
cas. efeito do trabalho filosófico de unificação da ideologia em idectlogia

3-4
o s /■ .1 ( I o s

dom inante. C om preendia-se também que fosse necessário à classe dom inante
que existissem filósofos profissionais, trabalhando em e ista dessa unificação.
C om preendia-se finalm ente que houvesse categorias filosófica' cm acção na
prática científica, um a vez que nenhum a ciência do m undo sc d c se n \o h e ,
nem a p rópria m atem ática, fora quer das ideologia' reinantes, quer da luta
filosófica, que tem com o alvo a constituição da ideologia domin.ante em ideo­
logia unificada. As coisas antes obser\aida' ordenar am -'e a " im . c começár^a-
m os a entender o singular silencio de Marx e de Lenine, com o os fracassos dos
filósofos (com o Lukács) que cm ralo harãam tentado c o n 'titu ir uma filosofia
m arxista, ou por m aioria de razão d aq u ele' que tinham degradado icom o fista-
line e os seus émulos) a filosofia em simples ideologia de justificação pragm á­
tica. Marx e Lenine tinham podido calar-se a respeito da filosofia, uma rez que
lhes bastar a adoptarem uma posição de classe proletária para tratarem em c o n ­
form idade as categorias filosóficas de que precisaram , quer para a ciência da
luta de classes (o m aterialism o histórico), quer para a prática política. O que
não quer naturalm ente dizer que não seja necessáritt aprofundar a elaboração
dos efeitos filosóficos dessa posição de classe proletária, mas a tarefa assumia
agora um aspecto com pletam ente diferente: nàt) se tratava de fabricar uma
n o ra filosofia na form a clássica da filosofia, mas de remodelar, a partir das
novas posições, as categorias existentes, e que existem em toda a história da
filosofia. As palavras de Marx em A Ideologia A lem ã , a filosofia não tem his­
tória. ganhar a então um sentido inteiram ente novo, inesperado, uma r ez que
é em toda a história da filosofia que se repete a mesm a luta, aquilo a que eu
üutrora chamar a ainda o m esm o traçado de dem arcação, o m esm o «r azio de
um a distancia assumida». E então podíam os partir em busca, em toda a h istó ­
ria da filosofia, dos m elhores traçados, que não são forçosam ente os de data
mais recente. Então podíam os atribuir um sentido m aterialista ã r elha intuição
espiritualista de p h ilo so p b ia pereiinis. com a diferença de que para nós a
«eternidade» em causa não passara da repetição da luta de classes. Não, a filo­
sofia não é, com o pretendia ainda o jovem .Marx. neste ponto discípulo fiel de
Hegel, a «consciência de si de um a época histórica», é o lugar de um a luta de
classes que se repete e que só atinge as suas formas mais aproxim adas em cer­
tos m om entos da história, em certos pensadores: para nós, antes do mais.

3~5
/ o r ; ,s .1 I. T H r s s r. K

Epicuro, M aquia\el, Spinoza, Rousseau c Hegcl, autênticos precursores de


Marx. Havia m uito tem po que eu suspeita\a das v irtudes filosóficas de Spi-
noza, e não foi p o r acaso que tom ei o atalho de Sfvinoza para tentar com preen­
der «a filosofia» de Marx. Mas foi ao trabalhar a p artir de Maquiavel que, de
uma m aneira com pletam ente inesperada, m e dei conta da existência desta liga­
ção singular e esclarecedora. Explicar-me-ei um dia a este respeito.
Entretanto. Jacques M artin suicidara-se. Descobriram -no. nos dias mais
quentes de Agosto de 1963, inanim ado no quarto que então ocupava, longe de
todos, no XVI bairro. Em cima do seu corpo, pusera uma grande rosa verm e­
lha. Conhecia com o nós as palavras de Thorez: pão e rosas, o com unism o.
Não foi possível reanimá-lo.
Martin fora tratado durante mais de quinze anos por um m édico que se
dizia analista, mas que praticava a narcose. Tinha obtido o endereço desse
m édico, na sua desorientação do pós-guerra, de alguns jovens estudantes n eu ­
róticos que procurav am quem os tratasse. Pelo m eu lado recebi os cuidados do
m esm o m édico durante doze anos, e graças a ele fui-me aproxim ando pouco
a poucx) da análise e dos seus problem as. S. m andava-m e deitar, dava-me uma
injecção de pentotal. o suficiente para mc embriagar, e eu com eçava a falar.
Interessava-se acima de tudo pelos sonhos, ejue interpretava cuidadosam ente,
sublinhando o seu sentido positivo ou negativo. As m inhas depressões v'olta-
vam, S. assistia-me com o um socorrista dedicado, mas tinha tam bém idéias
sobre a m inha vida. Lembro-me da sua réplica, no Verão de 1963, quando uma
amiga italiana que eu acabava de conhecer durante as ferias anteriores, lhe p e r­
guntou o que ele pensava do m eu estado e dos m eus p róprios sentim entos;
não passa de um am or de férias! Faltava-lhe aparentem ente o sentido do
tem po, aliás chegava sem pre atrasadíssimo, e não se preocupava com a dura­
ção das suas curas.
O analista a que me dirigi a seguir tinha outro sentido das coisas. Levou
algum tem po a reflectir antes de aceitar ter as suas sessões comigo, e eu co m e­
cei segundo o ritm o das convenções. As coisas tinham um a outra feição. Este
hom em estava-se com pletam ente nas tintas para que eu fosse ou não capaz de
sonhar, não utilizav a a narcose, nunca se pronunciavat sobre o sentido negativo
ou positivo de dado sintom a, adivinhava-me. O trabalho durou quinze anoN

3"’6
o s f A ( r o s

mas está quase term inado hoje, e posso falar um pouco do assunto. Redescobri
por mim aquilo que Freud descret e nos seus li\ ros, a existência dos fantasmas
inconscientes, a sua extrem a pobreza de princípio, c a extrem a dificuldade em
negociar o seu apagam ento progressito. Tudo se passar a cm rosto a rosto, e
para aum entar as dificuldades, o m esm o hom em js.issou a receber também
Hélène, mas m uito mais tarde, e som ente uma \ez por semana, durante meia
hora. H ouve episódios dram áticos, umas quinze depressões, e tam bém
m om entos pouco duradouros de exaltação maní.íca em que eu fazia tudo e
mais alguma coisa. Punha-m e por exem plo a roubar, não para possuir, mas ã
laia de dem onstração.
De \'0 dizer aqui algumas pala\ ras sobre a m inha análise. Pertença.) a uma
geração, ou pelo m enos a uma cam ada social, que não sabia que a análise exis­
tia, e que podia curar as neuroses e ;ité psicoses. Entre lh a s e hoje. muitas coi­
sas a este respeito m udaram em França. Já disse com o entrei em contacto com
um m édico que trataea por m eio de narcose. e com o uma amiga m uito querida
m e convenceu um dia a ir consultar D. «que tem costas suficientem ente largas
para ti». De facto, tinha que ter as costas largas para me ajudar a arranjar uma
saída, um a \ ez que as coisas se prolongaram por quinze anos: de depressões,
quer dizer, na realidade de resistências. Nada é tão simples com o os elem entos
inconscientes a partir dos quais o analista trabalha, mas nada é tão com plicado
com o as suas com binações individuais. Com o um amigo me disse um dia. o
inconsciente é com o o tricô, com a mesm a lã os pontos podem \a ria r até ao
infinito. Q uanto a mim, o que em breve emergiu foram, com o sempre, fantas-
m as-encobridores, e principalm ente o duplo tema do artifício, e do pai do pai.
Tinha a im pressão de só por im postura ter conseguido fazer tutk) o que conse­
guira fazer na \ ida: antes do mais os meus êxitos escolares, um a vez que
copiara provas, e inventara citações para ter sucesso. E com o sõ seguia os meus
m estres para lhes dem onstrar que era m elhor do que eles. a im postura e a \’ité)-
ria assim conseguida eram uma só e a mesm a coisa. Remoí longam ente estes
temas, quando outros apareceram . Antes de tudo o m edo do sexo feminino,
abism o onde m e podia perder sem regresso, o m edo das m ulheres, o m edo da
mãe, essa mãe que não parava de gem er por causa da sua \ ida, e que sem pre
tivera na cabeça um hom em puro ao qual se confiar a — o n o iro m orto durante
L O V / ,V ,1 L r II r s s E R

a guerra em quem inconscientem ente ela nunca deixara de pensar — , m esm o


que não passasse de um m édico naturista. um hom em com quem podia trocar
idéias, mas na ausência de qualquer com ércio sexual: um a mãe com m edo do
sexo do hom em , m edo da sexualidade. Intui então que a m inha m ãe me amara
sob essa form a, a form a de um hom em puro espírito e sem sexo. e até m esm o
quando mexera, para m inha enorm e fúria e m inha enorm e repulsa, nos meus
lençóis para aí descobrir os vestígios do que julgava ser a m inha prim eira eja­
culação no ctu rn a (estás um hom em , m eu filho), e para me deitar literalm ente
a m ão ao sexo, fê-lo para m o arrebatar, a fim de que eu não tivesse sexo. Fora
assim que amara o m eu pai, sofrendo passivam ente a sexualidade dele, com o
espírito ausente, nos céus de Verdun. O m eu pai amara-a de outro m odo, com
toda a sua virilidade, e eu tinha ainda na cabeça a reiteração dessas palavras de
am or «minha coisa minha» que pronunciava para provar a si p ró p rio que a
m inha mãe era realm ente dele, e não de outro, não do seu irmão. Esclarecia-se
p o r este lado a m inha necessidade de im postura e dc ser «o pai do pai», uma
vez que sendo am ado p o r cima de mim, com o um ser não sexuado que eu não
era, precisava de facto de me arranjar e de im provisar um a personagem de arti­
fício, que fosse, à falta de p o d e r ser sim plesm ente um hom em , capaz de ven­
cer tanto o m eu pai com o qualquer outro pai possível, exacerbando as coisas
para procar a mim próprio, po r cima dos outros hom ens, que era realm ente
um hom em , dotado de um sexo, e não esse ser a-sexuado que a m inha mãe
queria. Que tenham sido necessários cjuinze anos no estado actual da análise
para levar a m elhor sobre estes efeitos do inconsciente, explica-se p o r certo
pelas m inhas depressões, mas essas depressões verificaram -se sem dúvida para
resistir aos progressos da análise, e foi preciso todo esse trabalho, todo esse
D u rcharbeit *, para vencer tão sim ples fantasmas.
Tudo isto se passou na altura cm que eu trabalhava sobre Marx, e sem pre me
senti im pressionado pela extraordinária afinidade que existe entre o pensa­
m ento e a prática dos dois autores. Nos dois casos, o prim ado não tanto da
prática com o de uma certa relação com a prática. Nos dois casos, um sentido

■ T e rm o q u e significa l i t c ra lm e n ie .<trab:ilho atrav és de», e q u e c a n o n i c a m e n t e se t rad u z, em


p sic an álise, p o r «per labo ra t,ão». (,V. d o T .)

378
o ,v / C I o V

profundo da dialéctica ligado ao W iederh()lin}gsziva)ig, ao «instinto de repeti­


ção», que eu descobria na teoria da luta de classes. Nos dois casos, è quase na
m esm a expressão, a indicação de que os efeitos observáveis não são mais do
que o resultado de com binações extrem am ente com plexas de elem entos m uito
pobres (cf. em Marx os elem entos do processo de trabalho e do processo de
produção), sem que estas com binações tenham alguma coisa a ver com o
entruturalism o form alista de uma com binatória à m aneira de Lévi-Strauss ou
m esm o à m aneira de Lacan. Extraí daqui a conciusã<t de que o m aterialism o
histórico devia nalgum ponto entrar cm contacto com a teoria analítica, e p e n ­
sei até poder adiantar a proposição, na \erd a d e dificilm ente sustentável sob
essa form a, ainda que não falsa, segundo a qual «o inconsciente funciona à
base de ideologia». Posteriorm ente trabalhos interessantes (Godelier) vieram
introduzir precisões im portantes a respeito destes problem as, m uito longe evi­
dentem ente do universo de Reich, que não conhecia bem Marx...
E s t e l i v r i ) fr>i c i > } i / ) n s i i , t - m lií íiu h í h c í i í ...

M IK ASETE - Artci (rrcíiíLu'^ I.ih; /;w; ..


e iiuprcss-, 1' í u i i h i u h ‘ l u ,
D i v i s ã o G r á f i c a d a s E d i ç õ e s ASA,
Kiui I) ApfH.«< Hi‘}irÍLjUt'>. yç-is A’,-,, I;

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