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CAPÍTULO 8 -TEORIAS DO CONTROLE MOTOR: IMPLICAÇÕES CLÍNICAS


DAS VISÕES REPRESENTACIONALISTA E ECOLÓGICA
*Sandra Regina Alouche
**João Queiroz
*Fisioterapeuta, Doutora em Neurociências e Comportamento pela Universidade de São
Paulo - USP, Docente da Faculdade de Fisioterapia e Coordenadora do Curso de
Especialização em Fisioterapia Neurológica da Universidade Metodista de São Paulo e
Docente do Curso de Pós Graduação Ciências da Reabilitação Neuromotora da
Universidade Bandeirante de São Paulo. salouche@uol.com.br

** Pesquisador Pos-Doutor em Linguística e Ciências Cognitivas, Dept. Computação


e Automação -FEE-UNICAMP).
queirozj@dca.fee.unicamp.br http://www.digitalpeirce.org/joao

INTRODUÇÃO
Como as pessoas estabilizam seus corpos no espaço? Como caminham? Correm?
Como aprendem estas atividades? Uma explicação unificada para estas questões está longe
de ser estabelecida. Teorias e modelos divergentes têm sido propostos para explicar a
ontogenia e o desempenho resultante da atividade do sistema motor. A relevância deste
tópico aumenta ao sabermos que diferentes métodos usados na recuperação de pacientes
portadores de afecções neurológicas envolvem aspectos controversos em diferentes teorias,
e que estes aspectos são desconsiderados na seleção dos métodos mais adequados para
reabilitação destes pacientes. Observa-se, em outras palavras, uma seleção aleatória,
baseada em critérios a posteriori, das sistemáticas consideradas adequadas para
recuperação de distúrbios motores.

Vamos desenvolver a seguinte questão neste capítulo: que implicações diferentes


teorias do controle motor (TCM) têm na seleção de diferentes métodos usados para a
recuperação de pacientes com lesão neurológica? Assumimos, como um pressuposto, que
métodos fisioterapêuticos refletem conjuntos gerais de idéias sobre a natureza de
atividades motoras. A maior parte destes métodos foram desenvolvidos a partir da
observação de resultados obtidos na prática clínica. Vamos relacionar as diferentes
abordagens terapêuticas com as TCM que lhes servem de subsídio. Estamos interessados
2
nas implicações clínicas que as fundamentações teóricas têm na seleção de métodos para
recuperação.

Um exemplo ilustrativo das diferentes abordagens terapêuticas é a restauração da


marcha em pacientes não-ambulatórios, um dos principais objetivos da fisioterapia. A
abordagem tradicional envolve o treinamento de movimentos específicos ou segmentares
(por exemplo, a flexão da coxa, da perna e do pé durante a fase de oscilação do membro
inferior), recorre a técnicas organizadas sistematicamente, como a facilitação
neuromuscular proprioceptiva1, ou ao conceito Bobath2. Por outro lado, o treinamento da
marcha realizado sobre esteira rolante, com suporte parcial do corpo, tem demonstrado ser
uma alternativa efetiva de abordagem, mesmo em pacientes crônicos 3,4,5,6 na restauração da
marcha, apesar de ainda pouco difundida no âmbito clínico. Quais as idéias que subsidiam
estas terapêuticas aparentemente discordantes?

Nossa discussão baseia-se em duas orientações: a primeira apresenta,


sumariamente, as principais teorias sobre atividades motoras. Veremos que tais teorias
podem ser arranjadas em um contínuo que se distribui entre dois grandes grupos:
representacionalistas e ecológicos. A segunda orientação trata das implicações clínicas
destas teorias, suas influências na escolha de abordagens terapêuticas e suas limitações.
Sabemos que não há uma relação explícita e precisa de pressupostos teóricos com
metodologias específicas, embora alguns exemplos possam sugerir uma relação deste tipo
(por exemplo, a facilitação neuromuscular proprioceptiva <=> teoria reflexa do controle
motor). O que encontramos, em geral, é uma situação em que a abordagem terapêutica
abrange aspectos característicos das diferentes teorias.

1.1. Definição de termos


Um estudo sobre o controle motor requer a uniformidade de definições. O termo
movimento indica as características do comportamento de um membro específico ou de um
conjunto de segmentos corporais. Movimentos com características diversas podem ocorrer
para que um mesmo comportamento seja gerado. A ação pode ser considerada um conjunto
de movimentos realizados para determinado fim. São respostas dirigidas para um objetivo
e que consistem de movimentos do corpo e/ou movimentos dos membros 7. Embora o
termo ação seja utilizado por alguns autores7,8 como sinônimo de habilidade, esta
usualmente denota uma tarefa com um propósito específico. Assim, uma atividade motora
3
reflexa não é considerada habilidade e a habilidade cognitiva (por exemplo, atenção e
memória) pode ser diferenciada da habilidade motora. O aprendizado é um requisito básico
para que habilidades motoras sejam realizadas com sucesso.

1.2. Modelo e Teoria


Vamos, sumariamente, definir metáfora científica e modelo. É inequívoco, e há uma
extensa literatura sobre isto, que metáforas são ferramentas heurísticas poderosas para a
abordagem de novos problemas científicos. É, entretanto, menos óbvio que, novas
metáforas resultem em uma nova visão dos problemas e de suas fundações, em novas
baterias de perguntas, na construção de novos protocolos científicos e em novas maneiras
de analisar os resultados destes protocolos. Nosso argumento é que metáforas, e mais
especialmente, modelos e teorias, fornecem uma visão dos problemas que termina por
selecionar os métodos usados na recuperação de pacientes neurologicamente lesados. Para
facilitar nossa abordagem, vamos considerar teoria e modelo como correspondentes.

Um modelo pode ser definido como uma "representação de um sistema por outro
sistema, usualmente mais familiar, cujo funcionamento é suposto ser análogo ao
primeiro"9. Um modelo é "um tipo de estrutura, ou classe de estruturas, que compartilham
certas características gerais"10; a compreensão do sistema ocorre por meio de aproximações
ou descrições simplificadas. Toda modelização envolve "idealização, simplificação,
abstração e sistematização" de um fenômeno, que resulta em sua capacidade para capturar
e relacionar "aspectos esquemáticos de sistemas", e de eventos, de diversas naturezas11.

Quais são os modelos disponíveis sobre as atividades do sistema motor? Eles


podem ser divididos em abordagens? Como estas abordagens se relacionam? Eles são
complementares ou divergentes (competing models)? Por conveniência, vamos dividir as
teorias em duas grandes abordagens: representacionalista e ecológica. O grupo
representacionalista baseia-se, simplificadamente, na idéia de que o cérebro é uma
máquina similar a um computador, e que as atividades cognitivas dependem do
processamento de certas entidades (representações) de acordo com procedimentos pré-
estabelecidos no interior da máquina. Em outras palavras, o cérebro é uma forma de
máquina que seleciona, estoca e manipula representações de acordo com procedimentos
pré-estabelecidos12.
4
A abordagem ecológica, por sua vez, questiona aspectos essenciais das explicações
representacionalistas, especialmente o papel necessário das representações mentais nos
processos cognitivos e a imagem de um cérebro modularmente especializado e dividido em
estruturas centrais e periféricas. Para esta abordagem a cognição é o espaço onde estão
densamente acoplados o corpo, o ambiente físico e o cérebro, e um estudo adequado de
diversos processos cognitivos deve assumir como uma premissa básica esta metáfora.

2. Teorias do controle motor (TCM)


Não há qualquer possibilidade de abordar as implicações das TCM sem considerar,
previamente, a teoria reflexa do controle motor (TRCM) desenvolvida pelo
neurofisiologista inglês Charles Sherrington, o primeiro que descreveu a circuitaria mínima
envolvida no comportamento motor.

2.1. Teoria reflexa do controle motor


Para Sherrington, autor de “The integrative action of the nervous system", de 1906,
os reflexos são as unidades mínimas do comportamento. Um reflexo espinhal, como um
reflexo extensor ou flexor, é uma resposta provocada por um estímulo. Para isto, uma
estrutura composta de receptor, condutor e efetor é necessária. O condutor é composto de
pelo menos duas células neurais, uma que conduz o estímulo do receptor e outra que o
conduz até o efetor13,14.

Figura 1: Unidade mínima do comportamento segundo a Teoria Reflexa do Controle


Motor.

Segundo Sherrington, as unidades motoras (motoneurônios e fibras musculares por


eles inervadas) podem ser ativadas por diferentes reflexos gerando diferentes efeitos. Os
comportamentos complexos são derivados de uma combinação sucessiva de reflexos mais
5
simples. Em uma série de experimentos realizados com modelos animais, Sherrington
demonstrou que os reflexos conduzem à ativação ou à inibição de diferentes grupos
musculares, coordenados por interneurônios espinhais.

Figura 2: Encadeamento de reflexos simples resultam em comportamentos mais


complexos.

2.1.1. Implicações clínicas da teoria reflexa


Quais as implicações das idéias de Sherrington na prática clínica? Abordagens
clínicas baseadas na teoria reflexa utilizam o reflexo como base para a propedêutica e
terapêutica. Em relação à propedêutica, o conhecimento dos circuitos reflexos, ou da
resposta esperada a um estímulo, possibilita a localização topográfica de uma determinada
lesão; a estrutura que compõe o reflexo pode ser um marcador topográfico para a
localização da lesão.

Ao saber que certos circuitos reflexos geram respostas específicas, o terapeuta é


motivado a usar a facilitação ou inibição de respostas reflexas, dependendo de seus
objetivos terapêuticos. O maior exemplo da utilização dos circuitos reflexos na facilitação
de movimentos complexos é a facilitação neuromuscular proprioceptiva (FNP).
Desenvolvida pelo médico Herman Kabat e pela fisioterapeuta Margaret Knott, a técnica
de FNP expõe diretamente as idéias de Sherrington em seus procedimentos 1 - por exemplo,
inibição recíproca, irradiação, indução sucessiva.

Mas diversas limitações desta abordagem podem ser mencionadas. A maior refere-
se aos movimentos voluntários e à aquisição de novas habilidades na ausência de estímulos
sensoriais. A teoria de Sherrington também não explica como um estímulo similar pode
resultar em respostas distintas, dependendo do contexto e do controle superior13. Apesar
destas limitações, ainda é influente a noção que comportamentos complexos derivam de
uma seqüência de componentes, ou unidades, mais simples.
6
2.2. Teoria hierárquica do controle motor
Importantes modificações na visão segmentar do sistema nervoso foram feitas por
Hughlings Jackson, citado por Luria15. O autor descreveu um fenômeno aparentemente
contraditório. Uma lesão, em uma área específica do cérebro, não produzia uma perda total
da função associada àquela área. Jackson propôs, baseado em suas análises, uma nova
teoria de organização do sistema motor. Esta organização tem como característica ser
vertical e estruturada hierarquicamente em três níveis (Figura 3). O primeiro nível, inferior,
é representado pelos segmentos espinhais e do tronco encefálico de controle da função
motora. Este nível sofre influência direta de uma porção intermediária, correspondentes às
divisões motoras e sensoriais do córtex cerebral. Em um terceiro nível, superior, as áreas
associativas são consideradas e, principalmente, as divisões frontais do cérebro 13,15. Luria15
cita, "de acordo com Jackson, a localização de um sintoma (a partir da deficiência de uma
função particular), que acompanha a lesão de uma área circunscrita do sistema nervoso
central, não pode ser identificada pela localização de uma função particular".

Figura 3: Níveis de organização do sistema motor segundo a Teoria Hierárquica. O nível


superior (S) exerce influência sobre os níveis médio (M) e inferior (I) da organização.

A teoria de Jackson foi complementada por estudos realizados por Rudolf


Magnus13. Este autor, ao explorar a função de diferentes reflexos em diferentes partes do
sistema nervoso, mostra como reflexos controlados por níveis inferiores do sistema
nervoso só se tornam notáveis quando os centros corticais superiores são lesados. Estes
estudos indicam que os reflexos são parte integrante do controle motor e os centros
superiores normalmente agem como inibidores dos centros geradores de reflexos
7
inferiores. Os elementos de tal concepção hierárquica do controle motor têm sido aceitos
até o momento, como partes constitutivas de diversas teorias.

2.2.1. Implicações clínicas


A concepção hierárquica do controle motor tem servido como subsídio para o
desenvolvimento de diversas abordagens fisioterapêuticas. Os primeiros estudos feitos por
Berta Bobath8, que resultaram no conceito Bobath, evidenciavam a liberação dos reflexos
inferiores como conseqüência de lesões no sistema nervoso. De acordo com esta
abordagem, são necessários os níveis superiores do sistema nervoso central para que haja
modulação dos movimentos e da postura corporal. Esta modulação da atividade inferior
permite um aumento da complexidade do comportamento, dos reflexos primitivos às
atividades mais complexas. O conceito visa, estrategicamente, a modificação da ação
reflexa ao enfocar a inibição do tônus anormal, a integração dos reflexos primitivos e a
segmentação dos movimentos. Entretanto, a abordagem teórica na qual este método baseia-
se não deixa claro como o comportamento reflexo pode ser hierarquicamente superior ao
comportamento voluntário em certas situações, por exemplo, na esquiva de um membro
em resposta a um estímulo doloroso durante um movimento de preensão. Os níveis
superiores, no controle da hierarquia, não deveriam, supostamente, permitir tal expressão
reflexa.

2.3. Teoria da programação motora


Mudanças na visão sobre a organização do controle motor tornaram-se notáveis a
partir da noção de modelos internos. O comportamento é também preditivo, além de
reativo. As implicações são radicais. Os organismos não apenas reagem às perturbações
externas, mas são capazes de, espontaneamente, desencadear um movimento 14. É
necessário, para tanto, que o organismo processe modelos internos do mundo exterior,
extraia conseqüências da ação do mundo sobre o organismo e suponha modificações sobre
o mundo a partir de sua ação.
Para Lashley16, um conjunto de estratégias (predição e planejamento) requer a
existência de uma organização central da ação. Sua análise baseia-se na seguinte
argumentação: nos movimentos seqüenciais rápidos, tais como os envolvidos nas
atividades da vida diária (vestir-se, alimentar-se, banhar-se, etc.) o intervalo de tempo entre
a transmissão neural da informação sensorial até o sistema nervoso central e o retorno da
informação para os músculos efetores, é muito longo para depender de uma resposta em
8
cadeia. Estas respostas devem ser planejadas17. Segundo Keele, Cohen & Ivry18 "as
seqüências de atividade motora humana devem ser guiadas por planos e não por
associações periféricas ou centrais entre um evento e o próximo”.
Técnicas de cronometria mental, introduzidas pela psicologia cognitiva 19, fornecem
as principais evidências destes processos. A idéia básica é que "o tempo tomado para
executar uma tarefa reflete a complexidade dos processos envolvidos na preparação da
tarefa"14. Henry & Rogers20 foram os primeiros a mostrar que, sob condições controladas, o
tempo de reação simples (intervalo de tempo entre o estímulo que deflagra a resposta e o
início da resposta) se torna maior quando o movimento que se segue à reação é
relativamente mais complexo. Este estudo tornou- se a base para a formulação da teoria do
programa motor.
Keele21 define programa motor como uma série de comandos abstratos, estruturados
antes da seqüência ser iniciada, e que permite que ela aconteça sem sofrer modificações
decorrentes de eventos que permeiam sua execução. Desta perspectiva, o controle motor
resulta da necessidade do produto do movimento corresponder ao movimento planejado
(Figura 4).

Figura 4: Níveis de controle de acordo com a Teoria da Programação Motora. Comandos


gerais determinam as rotinas e sub-rotinas necessárias para a ativação adequada do efetor.

Um exemplo freqüentemente utilizado para ilustrar o plano geral de ação é o ato


motor que produz a escrita. Ao escrever uma palavra com o membro superior direito, com
o membro superior esquerdo ou com a boca, um indivíduo mostra diferentes níveis de
habilidade. No entanto, as características gerais da escrita são mantidas,
independentemente do efetor. A escrita corresponde a uma seqüência de contrações e
9
movimentos que ocorrem automaticamente, embora seja possível intervir em qualquer
momento. Uma idéia do movimento forma um plano utilizado na ação. Este plano controla
o desempenho, de modo que características gerais da escrita são mantidas apesar dos
diversos efetores utilizados22.

2.3.1. Implicações clínicas


Na prática clínica, teorias baseadas em programas motores permitem compreender
como a origem das desordens motoras pode ser explicada como decorrentes de alterações
nos programas. Desta perspectiva, a fisioterapia deve concentrar-se na reaprendizagem das
"regras corretas para a ação", e não o treinamento de movimentos isolados. Se o plano
geral da ação estiver íntegro, então alternativas em relação aos efetores devem ser
necessárias13. Se o indivíduo, durante o treinamento de habilidades que foram alteradas
pelo distúrbio neurológico, faz uso de uma série de compensações para obter sucesso na
ação, possivelmente formará programas motores que envolvem tais compensações,
passando a utilizá-las automaticamente. Assim, a formação destes programas tornar-se-á
crítica para o desempenho do indivíduo.
Embora a teoria do programa motor tenha expandido nossa compreensão em
relação à flexibilidade do sistema nervoso para criar, executar e modificar movimentos,
esta teoria não explica como, na ausência de informação sensorial, variáveis ambientais ou
músculo-esqueléticas são capazes de interferir no comportamento13.

2.4. Bernstein: pressupostos de uma teoria ecológica do controle motor


Segundo as teorias discutidas até este ponto, a ação pode resultar da atividade
reflexa, decorrente da inibição e/ou excitação de áreas do sistema nervoso e da análise e
integração destes estímulos. Discussões sobre o conceito de função introduziram visões
alternativas sobre o controle motor. Luria15, citando Anokhin, define função como "um
sistema orientado para o desempenho de uma tarefa biológica particular, e que consiste em
um grupo de atos interconectados que produzem um efeito biológico correspondente".
Nesta linha, o cientista russo Nicolai Bernstein observa a ação como um sistema complexo,
cujo trabalho é controlado por diversos fatores. A ação é mais do que o resultado de um
grupo cortical de células nervosas. Bernstein mostra que o movimento é primariamente
determinado pela ação, seja de natureza locomotora, de um movimento dirigido a um alvo,
ou de um ato simbólico (por exemplo, um movimento que produz a escrita). Ao reconhecer
a necessidade de compreender as características do sistema que se move, e das forças
10
externas que agem sobre o corpo, este autor assume que o controle do movimento depende
da integração de vários parâmetros e sistemas, interagindo em cooperação13.
Uma das primeiras questões postuladas por Bernstein refere-se aos graus de
liberdade a serem controlados para a geração de movimentos coordenados23. Segundo o
autor24, a "coordenação é uma atividade que garante ao movimento homogeneidade,
integração e unidade estrutural". Em outra passagem ele afirma que "a coordenação do
movimento é um processo de controle dos graus de liberdade do órgão em movimento; em
outras palavras, é a sua conversão em um sistema controlável" 24. Como centenas de
músculos podem ser sistematicamente controlados, de forma precisa, em vários contextos?
A solução de Bernstein para o problema dos graus de liberdade envolve a noção de
"estruturas coordenadoras", em que é enfatizada a idéia de que os músculos não são
controlados individualmente mas, estão funcionalmente ligados a outros músculos
formando sistemas autônomos25 (Figura 5).

Figura 5: Interação de múltiplos sistemas.

Supostamente, o controle hierárquico simplifica os múltiplos graus de liberdade do


corpo - "uma série de níveis hierárquicos, cada um deles, inevitavelmente, com um grau de
independência qualitativa"23. Os níveis superiores ativam níveis inferiores que, por sua vez,
ativam sinergismos musculares (muscle linkages), ou grupos de músculos impelidos a agir
juntos, como uma unidade13. Por exemplo, um indivíduo ao realizar uma nova atividade
aumenta o grau de tensão muscular e oscila menos que um indivíduo experiente ao realizar
a mesma atividade. Isto pode ser considerado uma diminuição dos graus de liberdade
11
envolvidos na ação para torná-la mais estável. O mesmo ocorre com o paciente
hemiparético ao deambular com auxílio de uma bengala, por exemplo. O paciente
freqüentemente transfere o centro de gravidade para o lado não acometido, onde encontra o
apoio da bengala, e fixa a escápula ipsilateral contra o gradil costal para “obter maior
estabilidade” e diminuir os graus de liberdade envolvidos na tarefa. É importante observar
que a redução dos graus de liberdade do sistema não pode se aproximar de zero. Sem
qualquer grau de liberdade a ação é insensível às mudanças do contexto, e
conseqüentemente, o comportamento é estereotipado. A organização desejada precisa
permitir alguma flexibilidade, que é garantida pelo uso das informações sensoriais
disponíveis por parte das estruturas coordenadoras25.

2.4.1. Implicações clínicas


A abordagem de Bernstein considera as contribuições coordenadas do sistema
nervoso, do músculo e sistemas esqueléticos, a força gravitacional e a inércia no controle
do movimento. As implicações clínicas são enormes. Pela sua análise, a importância
atribuída às características mecânicas do corpo, e a influência destas características sobre o
movimento, passam a ser enfatizadas. Por meio deste enfoque, a avaliação e o tratamento
fisioterapêutico concentra- se, não apenas nas limitações decorrentes de lesões específicas
do sistema nervoso, mas na interação de múltiplos sistemas associados 13. Se o indivíduo
apresenta uma característica postural que interfere diretamente em uma habilidade, esta
característica, e não apenas a alteração estrutural e/ou funcional do sistema nervoso, deve
ser considerada na abordagem terapêutica.
Assim, a necessidade de variabilidade da prática, de uma mesma tarefa torna-se
prioritária na recuperação do paciente. O indivíduo habilidoso deve ser capaz de
desempenhar uma tarefa em diversos contextos. Quando treinado apenas em um ambiente
fechado, estável e previsível, o indivíduo não sabe como lidar com situações nas quais os
graus de liberdade aumentam. O treino de marcha de um paciente neurológico, por
exemplo, deve ser iniciado no ambiente ambulatorial e novos graus de liberdade devem ser
progressivamente impostos à tarefa, até que o indivíduo seja capaz de deambular em um
ambiente movimentado e irregular.

2.5. Abordagem dinamicista do controle motor


Uma radicalização da abordagem de Bernstein tem desdobramentos em uma
perspectiva conhecida como dinamicista, e em alguns círculos, anti-representacionalista26.
12
Esta perspectiva baseia-se no estudo geral da formação de padrões dinâmicos em sistemas
complexos, nas noções e nos princípios de emergência, acoplamento (structural coupling),
processos de interação não-lineares, auto-organização e caos27. Para diversos cientistas,
especialmente psicólogos do desenvolvimento e neurocientistas 28,29,30, o resultado da
aplicação destes conceitos, seus métodos, protocolos experimentais e modelos formais, é
um design radicalmente novo das atividades do sistema motor. O foco preferido de suas
críticas é o papel necessário das representações mentais na mediação dos processos
motores, a principal premissa das teorias representacionalistas. Segundo este novo design,
o movimento é um padrão auto-organizado espaço-temporalmente que emerge da interação
de diversos parâmetros acoplados - parâmetros físicos, biológicos e culturais (Figura 6).
Este padrão, que define um movimento, é um arranjo consistente de eventos que, sem o
tutoriamento de um gerenciador central (central pattern generator) emerge da cooperação
de múltiplos parâmetros associados em um fluxo temporal. Andy Clark 31 resume assim a
vantagem dos chamados modelos dinamicistas: “O melhor aspecto das análises dinâmicas
é seu foco temporal intrínseco e sua fácil capacidade para transpassar os limites do
cérebro-corpo-ambiente. [...] Tratar o cérebro como sistema dinâmico, é tratá-lo nos
mesmos termos que nós tratamos os mecanismos do corpo e os processos do ambiente.
Como resultado é especialmente fácil e natural caracterizar o comportamento adaptativo
em termos de acoplamento entre cérebro, corpo e ambiente”.

Pode-se perguntar como a abordagem dinamicista difere da abordagem de


Bernstein. Como afirmamos, ela pode ser considerada uma radicalização das abordagens
de Bernstein. Mas trata-se de um consenso que dispomos, hoje, de uma nova bateria de
protocolos, de novos modelos teórico-matemáticos e de sistemas de simulação
computacional para investigar os mecanismos subjacentes à emergência de padrões em
sistemas complexos.
13

Figura 6: Interação recíproca entre o indivíduo e o ambiente segundo a abordagem


dinamicista.

2.5.1. Implicações clínicas


Os aspectos teóricos do modelo dinamicista são pouco difundidos no ambiente da
fisioterapia. Entretanto, diversas estratégias utilizadas na prática fisioterapêutica parecem
subsidiadas nestes aspectos. É conhecido o benefício da utilização de pistas sensoriais no
processo de reabilitação de pacientes com doença de Parkinson32. A comparação de dois
grupos de pacientes, com características similares, submetidos a dois protocolos de terapia
- o primeiro com a inclusão de pistas visuais e auditivas, o segundo privado de pistas
sensoriais - mostra que ambos os grupos apresentam melhora do desempenho, embora
apenas o grupo que utiliza pistas sensoriais mantenha os "ganhos" após algumas semanas 33.
Outro exemplo pode ser dado pelo treinamento de equilíbrio em pacientes com afecções
neurológicas diversas. Nestes casos, perturbações externas e exposição a terrenos
irregulares e instáveis são diretamente impostas aos pacientes para que estes ajustem sua
própria postura. Estes estímulos são mantidos até que a resposta ideal seja encontrada e o
equilíbrio seja restabelecido.

3. Discussão e conclusão
Dividimos as diversas abordagens teóricas em dois grupos, que chamamos de
representacionalista e ecológico. Vimos que a antecipação temporal de um movimento
ordinário é considerada um exemplo de ajuste ao ambiente em termos
representacionais34,35. Um indivíduo deve reconhecer seu ambiente para planejar e executar
ações motoras apropriadas36. Tais ações dependem, de acordo com a tese
14
representacionalista, de um plano geral, um “programa motor”, e de sub-programas
específicos (sub-rotinas), hierarquicamente organizados em um modelo antecipatório da
ação motora37,38. Em outras palavras, um movimento depende de uma representação ou de
um modelo preditivo de sua execução 38. As investigações têm se concentrado nas bases
neurais destes processos39,40 e na natureza computacional de operações mentais a eles
associadas38, 40.
Introduzimos a teoria reflexa do controle motor (TCM) de Sherrington. Qual a
relação desta teoria com a abordagem representacionalista? A teoria reflexa de Sherrington
explica os mecanismos e as circuitarias envolvidas no nível mais elementar do
comportamento motor, por meio das quais são implementadas as sub-rotinas dos
programas motores. Um aumento de complexidade de movimentos é descrito como o
resultado do encadeamento das unidades reflexas, controladas pelos programas motores.
Isto explica como são possíveis respostas reflexas diferenciadas para um mesmo estímulo.
A abordagem ecológica, que tem em Bernstein seu mais notável representante,
baseia-se em princípios de coerções que cooperam sistematicamente na construção do
movimento. A tese dinamicista representa uma radicalização da perspectiva ecológica, e
sugere que a ação motora é um fenômeno emergente que resulta de parâmetros (o corpo, o
ambiente físico e cultural, e o cérebro) densamente acoplados.
De um modo geral, a visão representacionalista tende a desconsiderar a influência
de variáveis externas sobre o comportamento motor, e elege o sistema nervoso como o
principal determinante deste comportamento. A abordagem ecológica, por sua vez, enfatiza
a aquisição de novas habilidades como resultado de influência direta de parâmetros
ambientais. As diversas estratégias terapêuticas que examinamos baseiam seus programas
nestes dois grandes grupos teóricos, considerados divergentes, e por muitos especialistas,
excludentes. A possibilidade de integração das diferentes perspectivas deve ser considerada
em estudos futuros. O que nos interessa discutir é que sabemos das enormes conseqüências
de uma seleção adequada de estratégias terapêuticas sobre a recuperação de pacientes com
deficiências motoras. Sabemos, por outro lado, que estas estratégias estão fundamentadas
em diferentes perspectivas teóricas, e que tais perspectivas sugerem a construção de
abordagens terapêuticas distintas. Discutimos, neste capítulo, exemplos de abordagens
fundamentadas em diferentes perspectivas - a facilitação de uma resposta, pela aplicação
de um estímulo, por meio de um circuito reflexo, está subsidiada nas idéias de Sherrington
sobre a Teoria Reflexa; a modulação da atividade reflexa, por meio da atividade gerada por
níveis superiores de controle está apoiada na Teoria Hierárquica do controle motor; a
15
ênfase no plano geral da ação baseia-se na Teoria da Programação Motora; a intervenção
nas características biomecânicas e ambientais, durante o desempenho de uma tarefa
motora, nas idéias de Bernstein, formulador da Teoria dos Sistemas.
Duas questões devem ser formuladas: Quais são os critérios decisivos na escolha
das abordagens terapêuticas? Como otimizar esta seleção? A relação das fundamentações
teóricas com as implicações clínicas associadas à escolha de certas abordagens deve
permitir diversas considerações sobre a seleção dos melhores métodos fisioterapêuticos.
Estas considerações (teórico-terapêuticas) são, em geral, negligenciadas pela comunidade
de especialistas. Uma escolha de estratégias adequadas baseia-se em crenças tácitas do
terapeuta sobre a aquisição e efetuação de uma tarefa motora. Sugerimos, neste capítulo, a
necessidade de fazer explícita a discussão sobre esta relação. Falta-nos, ainda, estabelecer
critérios objetivos, baseados em protocolos experimentais, para investigar as relações entre
os modelos e teorias, de um lado, e os métodos terapêuticos, de outro.

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Agradecimento: João Queiroz agradece à FAPESP pelo apoio recebido (02/09763-2).

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