Você está na página 1de 5

Por Roberto Da Matta

NOTAS SOBRE O RACISMO À BRASILEIRA

Esta minha intervenção tem dois aspectos ou dimensões. De um lado, quero falar de fatos
sociais concretos - alguns,aliás ,bem conhecidos do nosso racismo-, como sua manifestação
implícita, disfarçada e de difícil discussão, como se, entre nós, brasileiros, falar de racismo
fosse um tabu, de acordo com aquela tendência que Florestan Fernandes chamou, com
propriedade,"o preconceito de ter preconceito". De outro, quero me concentrar nas inter-
relações dos fatos sociais com os ideais políticos, alvo que - se bem entendo - move este
encontro e tem suas dificuldade específicas, sobretudo quando se trata de um tema tão
dramático quanto pungente, quando a justa vontade de erradicar o preconceito certamente
embaça a discussão de suas características históricas e de sua organização sociológica ou
cultural.
Para tanto,quero começar relembrando um episódio de diz respeito ao assunto .
Em 1968, quando estava em Cambridge , Massachusetts, realizando , na Universidade de
Harvard, meu doutorado em antropologia social, fiquei sabendo da visita de um grupo de
estudantes brasileiros. Eram lideres estudantis, convidados pelo Departamento de Estado do
Governo dos Estados Unidos, que realizavam um programa de visitas a centros culturais norte-
americanos e , em Harvard, participavam de seminários e debates.

Carente de noticias do país e de contato com compatriotas - aquela época, é bom lembrar, não
havia e-mail,nem fax,nem sedex, os estudantes não podiam viajar tanto quanto hoje - , fui ao
local da reunião.

Lá, em um vasto salão harvardiano , dois negros americanos, se não me engano, ambos
políticos locais e ligados ao chamado Movimento Negro que estava surgindo, disseram
dissertavam sobre suas experiências aos jovens lideres estudantis brasileiros. Lembro-me bem
de que o objetivo dos políticos americanos era compartilhar, a partir da grande experiência
liberal americana1 ,as conquistas dos negros em relação ao establishment branco, mudando
legislações e provocando, por meio de um ativismo pacifico, democrático e consistente, a
integração política e judiciária dos Estados Unidos como nação e, no limite da esperança ,
como sociedade.

Ao término do discurso dos americanos, os estudantes brasileiros iniciaram uma série de


perguntas-comentários provocadoras e um tanto impertinentes. Diziam, por exemplo, que as
mudanças políticas mencionadas não eram efetivamente transformações de estrutura, que
continuava fundada no mercado. Alegavam que a modificação aparente do quadro dos direitos
das minorias não mudava o cerne do problema : a estrutura do capitalismo fundada na
exploração do trabalho, continuava em vigor. Insinuavam, como era comum naquela década,
que, para mudar as relações raciais, seria necessário primeiro modificar todo o "sistema"por
meio de uma revolução .

Depois de cerca de trinta minutos de impasse ideológico, um dos palestrantes negros resolveu
endurecer e disse mais ou menos o seguinte, olhando durante sua platéia de brasileiros:

Curioso que vocês cobrem tanto do nosso sistema. O fato é que estamos trabalhando com o
que podemos para mudar as relações raciais por aqui. Vocês, que se dizem uma democracia
racial, são muito piores, em termos práticos. Pois vejam só: no meio de mais ou menos oitenta
estudantes brasileiros, eu vejo apenas sete ou oito negros. A grande maioria é branca. Onde
está a tal "democracia racial" de vocês ?.Após a reunião, fui me encontrar com o grupo e logo
descobri a perturbação dos brasileiros diante do seguinte problema: quem era o negro que os
americanos haviam descoberto entre eles? Pois, como me disse um dos estudantes, com
exceção de uma ou duas pessoas, não havia preto "entre eles"...
Essa historia tem o mérito de revelar o coração do problema, pois situa com dramaticidade um
fato social básico: como as sociedades classificam suas eventuais variedades étnicas .

Pois, se falamos de relações raciais de uma perspectiva sociológica, é preciso distinguir de


saída a miscigenação como fato empírico, isto é, como o resultado biológico do encontro
sexual de brancos, negros e índios - para ficar na trilogia clássica da fábula racial brasileira -,
do modo pelo qual cada sociedade trabalha esse resultado, reconhecido-o ou não como em
fato social concreto. Como não há sistema valor, moralidade, mitologia ou sistema de
classificação que seja "natural" ou mais próximo de uma natureza humana, pois todos são
arbitrários, existe uma variedade intrigante nos modos de lidar com os mestiços.O que chama a
atenção quando se compara a existência classificatória americana com a brasileira, é o fato de
que, embora existam "mulatos" ou "mestiços", tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, na
sociedade brasileira esses mestiços tem um reconhecimento cultural e ideológico explicito,
quanto que, no caso americano, eles se submergem como "brancos" ou como "negros ". O
resultado é que o sistema americano persegue a distinção e a compartimentalização dos tipos
étnicos em grupos autocontidos,contrastantes, autônomos e socialmente coerentes, isto é, sem
mistura. Lá o sistema tem repulsa pela ambigüidade, pelo mais ou menos e pelo meio-termo.
Assim, ou se é "branco" ou se é "negro", "hispânico" , "judeu","italiano" ou "irlandês" etc. Já no
Brasil, o sistema de classificação privilegia o meio-termo e a ambigüidade como valor,
tendendo, em princípio, a funcionar com base na hierarquia e no gradualismo.

Dadas essas "escolhas" histórico-sociais, há exclusão , no caso dos Estados Unidos, exclusão
que se exprime no princípio do "diferentes, mais iguais"; enquanto que , no Brasil, o sistema
inclui hierarquiza de modo complementar, de acordo com o princípio do desigual ,mais justo".
Com isso, o sistema brasileiro estabelece que, entre brancos e negros, há uma gradação
complexa e mais: que todas as etnias de fato se complementam para a formação do "povo
brasileiro", pois o que falta em uma, existe de sobra na outra, conforme tentei revelar alhures,
em um ensaio no qual tento elucidar a nossa "fabula de três raças". 2

_______________________________________________

1 Neste contexto, vale acentuar que considero importante a distinção entre nação - ou Estado-Nacional - e sociedade como duas distintas e até mesmo
.
contraditórias de coletividade. De modo breve, a nação é uma coletividade fundada na idéia de soberania, de territorialidade e de leis explícitas. Sua unidade

especial básica é o indivíduo - o cidadão -, que nela é dotado de autonomia, liberdade, igualdade política e jurídica e responsabilidade. Já a sociedade dispensa o

território, tem leis implícitas - geralmente conceituadas como mandamentos, tabus, pecados ou normas normais indiscutíveis e dadas pelos deuses e heróis

civilizadores - e sua unidade fundamental é a família, o clã, a aldeia ou um elo social. Uma sociedade pode estar em guerra com sua nação, como parece fazer

prova, hoje, o caso de Uganda e Burundi. Normalmente, nação e sociedade estão em conflito, pois os ideais nacionais nem sempre são realizados pela sociedade

nas suas práticas. Nesse sentido, o caso do Brasil é interessante, porque fomos uma nação que adotou princípios igualitários, mas tínhamos uma sociedade

hierarquizada, constituída que era por nobres, cidadão livres e escravos. Para maiores considerações sobre esse ponto, veja -se Da Matta, Conto de mentirosos:

Sete ensaios de antropologia brasileira, Rio de Janeiro, Rocco, 1993.

2.Cf . Roberto Da Matta, Relativizando: Uma introdução à antropologia social, Rio de Janeiro,Rocco.

Um dos mais lúcidos estudiosos de sistemas raciais, o sociólogo Oracy Nogueira, fala de um
contraste entre um "preconceito de marca", típico do Brasil, e de um "preconceito de origem",
vigente nos Estados Unidos. Outros, como o historiador social norte-americano Carl Degler ,
elaborara a distinção explicitando historicamente o "mulato" como uma válvula de escape; ou,
em termos de minha interpretação, afirmando que, no caso brasileiro, o mulato era um lugar
social reconhecido e marcado e não algo vazio de sentido como acontece nos Estados Unidos.

O problema básico porém - problema sem o qual a questão racial não pode ser entendida --,
jaz no estilo cultural por meio do qual as duas sociedades elaboram, constroem e lidam com as
suas diferenças. Desse modo não se nega a presença de "mestiços", nem nos Estados Unidos,
nem na África do Sul. Tampouco se nega a presença de iniqüidade no caso brasileiro, que foi e
tem sido igualmente injusto e violento para com os "diferentes ", sobre tudo os negros. Mas se
salienta que a mestiçagem é percebida de modo diverso nessas sociedades. E mais: que
compreender o modo pelo qual cada sistema ordena suas percepções sociais é um fato social
fundamental para construção de medidas orientadas para a implementação de mais
oportunidade e mais igualdade para todas as minorias.

No caso do Brasil, a idéia de hierarquia tem duas características:

1. Ela atua por meio de uma lógica complementar que, embora limite a ascensão dos
"diferentes", não os dispensa como tal. Ou seja : a complementaridade se exprime em uma
ideologia segundo a qual negros, brancos e índios formam um triângulo racial e se
complementam. Assim, não há Brasil sem negros índios ou brancos. Quer dizer, se o sistema
admite que o branco é o elemento superior, essa superioridade não é simples nem linear, como
no caso americano. Pois, no caso brasileiro, admite-se também que o branco não é superior
em tudo. Na ideologia racial brasileira, brancos, negros e índios são desiguais, mais
complementares.

Curioso acentuar que a fábula exclua outras etnias, como se os libaneses, os japoneses, os
italianos, entre outros, que, do ponto de vista de uma "historia empírica"do Brasil, também
contribuíram para a formação da nossa sociedade, não existissem socialmente.
Com isso, o negro complementa o branco e vice- versa, havendo entre eles um elo
ideologicamente reconhecido: uma relação fundada no controle e na exploração,mas também
na ideologia compensatória de que o negro possui qualidades ausentes dos brancos e no fato
de que um é necessário para o outro. Não é por acaso que a grande região popular brasileira, a
Umbanda, integre no seu panteão como figuras poderosas, personagens como os Pretos
Velhos, os Zé Pelintras e os caboclos, respectivamente negros e índios.

2. Esse estilo de relacionamento racial fundado na inclusão promove o reconhecimento da


graduação, o que origina um cálculo complexo da determinação étnica do Brasil.
Provavelmente pelos fatos de que a experiência com o escravo foi universal, permeando todos
os grupos sociais; que os negros formavam uma quase maioria da população, gerando uma
inevitável consciência de que todos se ligavam pela cor da pele e de que saíamos
gradualmente do regime de trabalho escravo, transformando o escravo em cliente e em sub-
cidadão, o racismo à brasileira tende a se manifestar de modo implícito, dando ou tirando
negritude ou indianidade ou estrangeirice de qual quer pessoa.

Em uma palavra, tara-se, como já indicativa Oracy Nogueira, de um sistema de preconceito no


qual o contexto é determinante. Assim, se fulano deixa de atuar de acordo com esse código
implícito, ele poderá ser "enegrecido" ou "acaboclado". Desse modo, um pessoa pode ser alvo
de muitas classificações raciais, que gera uma notável insegurança classificatória, insegurança
que, ao lado da importância da casa como entidade social básica, engendrou uma enorme
intimidade entre grupos etnicamente diversos.

Tudo isso, provavelmente, inibiu a segregação espacial dos grupos sociais por meio do critério
racial ou da origem nacional, como é o caso dos Estados Unidos. Houve também a inibição da
implementação da ideologia racial no plano legal. E, ainda, a criação de grupo de militância
anti-negros, anti-judeus, anti-italianos, anti-hispânicos, etc. - grupos que se fundaram no ódio
racial implementado como um estilo freqüente de lidar com as diferenças, como é o caso da
Ku-Klux-Klan, no Estados Unidos.

Assim, embora exista preconceito no Brasil, não existe entre nós um sistema de segregação ou
de separação racial implementada e legitimado por leis escritas. A demais, o sistema,
coerentemente, gerou uma ideologia de mistura e ambigüidade - na figura da mulata e do
mulato, por exemplo, e nas regiões populares, que se constituem em um elemento integrador
de todo sistema, valorizando mais a confissão humana - sofrimento, culpa, pecado, caridade,
amor, etc. - como explicadores da situação social de cada um mais do que a própria raça, como
ocorre nos Estados Unidos.

A mim, parece-me complicado equacionar os dois sistemas, ignorando suas diferenças


básicas: o fato de que, nos Estados Unidos, há uma precisão classificatória que é coerente
com a orientação geral do sistema; e que, no Brasil, há o reconhecimento social e simbólico do
intermediário, que gera uma alta indeterminação étnica. Vale acrescentar, ademais, que cada
um desses sistemas tem suas vantagens e desvantagens, e cada qual deve encontrar " saídas"
diferenciadas para o estabelecimento de uma maior igualdade de oportunidade para seus
membros. No caso americano, deve estar precavido contra o sectarismo; no brasileiro, contra
uma acomodação que, propositadamente, troca reconhecimento da mestiçagem como
ausência de preconceito e, no limite da segregação de oportunidades.

Será, pois, a partir desses constatações que se deve discutir o sistema racial brasileiro. Um
sistema, repito, que tanto se funda na paradoxal dificuldade de classificar negros e brancos,
quando se estrutura no fato de que cada categoria racial conhece o seu lugar em uma
hierarquia.Legislar positivamente para tal sistema demanda apanhar a sua inteligência
sociológica.
Seria tudo isso um empecilho à ação afirmativa, à democracia ou à igualdade de oportunidades
? Claro que não! Mas seria preciso levar em conta o seguinte :

1. Que ação afirmativa seja concebida a partir do sistema e considere a origem e o fato de que
o nosso sistema é gradativo e, mais que isso,contextual e relativamente eletivo.Pessoas ficam
"brancas" ou "negras" de acordo com suas atitudes, sucesso e, sobretudo, relacionamentos.

2. Que se deve ter em conta as dificuldades do programa de "ação afirmativa" dentro da


realidade americana como, aliais, alguns dos participantes do seminário chamaram a atenção.
Do mesmo modo que a "mulataria" não acabou com o nosso preconceito, a "ação afirmativa"
também não liquidou o lado negativo das relações raciais nos Estados Unidos. Ao contrário, ela
a tem reforçado, embora tenha provocado maior participação de negros em certas instituições
e ambientes daquela sociedade.

3. Finalmente, cabe considerar se mudar a lei seria realmente o ponto mais importante,
sobretudo em um país onde as leis mudam com mais facilidade que práticas sociais.
Nesse sentido, caberia perguntar se, ao lado dessa discussão jurídica,não se deveria
aprofundar o seguinte:

1 .Realizar uma campanha nacional, utilizando sobretudo a televisão, na qual os brasileiros se


vissem confrontados com os seus mecanismos implícitos de exclusão racial.Nesse tipo de
campanha, valeria a pena valorizar figuras de negros historicamente importantes, ressaltando o
lado étnico e, também, denunciando as mil formas de hipocrisia pelas quais a discriminação se
exerce no Brasil.
2. Ressaltar o fato de que a idéia de que temos uma "democracia racial" é algo respeitável.
Quanto mais ou seja, porque, apesar do nosso tenebroso passando escravocrata, saímos do
escravismo com um sistema de preconceito, é certo, mas sem as famosas " Leis Jim Crow "
americanas, que implementavam e, pior que isso, legitimavam o racismo, por meio da
segregação no campo legal.

Não se trata - convém enfatizar para evitar mal entendidos - de utilizar a expressão no seu
sentido mistificador, mas de resgatá-la como um patrimônio que seja capaz de fazer com que o
Brasil - nação, honrando com seu comprometimento igualitário, possa resgatar a sua imensa
divida com esses negros que tiveram o mais passado fardo na construção do Brasil -
sociedade.

Você também pode gostar