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ODEERE

ISSN 2525-4715
Vol 8, Nº 1, 2023, 264-284
DOI: 10.22481/odeere.v8i1.11658
Artigos Livres | Free Articles | Artículos Libres
Racismo estrutural no Brasil: a luta por uma sensibilidade do mundo
decolonial
Janayna Alves de Sousa1 , Josenildo Campos Brussio1*
Universidade Federal do Maranhão - Brasil.
1

*Autor de correspondência: josenildobrussio@gmail.com


RESUMO
O presente trabalho aborda questões conceituais sobre o racismo no Brasil relacionadas ao
processo histórico de colonização, destacando a criação de um imaginário coletivo
hegemônico, eurocêntrico, patriarcal, reproduzido pela ideologia dominante e reforçado
por práticas racistas nas relações sociais. Por outro lado, trazemos a decolonialidade como
uma ruptura epistemológica que procura romper com as ideologias coloniais dominantes
que imperam sobre o pensamento ocidental e aponta saídas para o enfrentamento do
PALAVRAS-CHAVE: racismo estrutural. O aporte teórico se dá pelo olhar decolonial de autores como Walter
Características Mignolo (2017), Anibal Quijano (2009), Molefi Asante (2009), Nah Dove (2017) e Lélia
Decolonialidade Gonzales (1984) e das questões sobre raça, racismo, anti-racismo e racismo estrutural com
Racismo autores como Kabengele Munanga (1999), Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (1999), Carlos
Tipos Moore (2007), Antônio Olímpio de Sant`Anna (2004). A metodologia utilizada foi a pesquisa
bibliográfica de caráter exploratório e descritivo. A sociedade precisa acreditar que o
racismo existe para ser combatido, ao contrário da forma velada e negacionista como se
apresenta no cotidiano brasileiro. Como resultados, temos um imaginário popular para
formas de racismo específicos sedimentados culturalmente por um projeto de colonização
que impôs e impõe a imagem do negro com características de inferioridade nas mais
diversas instituições sociais existentes: racismo estrutural, racismo institucional, racismo
midiático, racismo epistêmico e racismo ambiental.
ABSTRACT
The present work addresses conceptual issues about racism in Brazil related to the historical
process of colonization, highlighting the creation of a hegemonic, Eurocentric, patriarchal
collective imaginary, reproduced by the dominant ideology and reinforced by racist
practices in social relations. On the other hand, we bring decoloniality as an epistemological
rupture that seeks to break with the dominant colonial ideologies that prevail over Western
thought and points out ways to face structural racism. The theoretical contribution is given
KEYWORDS: by the decolonial perspective of authors such as Walter Mignolo (2017), Anibal Quijano
Características (2009), Molefi Asante (2009), Nah Dove (2017) and Lélia Gonzales (1984) and questions about
Decolonialidad race, racism, anti- racism and structural racism with authors such as Kabengele Munanga
Racismo (1999), Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (1999), Carlos Moore (2007), Antônio Olímpio de
Tipos Sant`Anna (2004). The methodology used was bibliographic research with an exploratory
and descriptive character. Society needs to believe that racism exists to be fought, contrary
to the veiled and denialist way in which it is presented in Brazilian daily life. As a result, we
have a popular imaginary for specific forms of racism culturally sedimented by a colonization
project that imposed and imposes the image of blacks with characteristics of inferiority in the
most diverse existing social institutions: structural racism, institutional racism, media racism,
epistemic racism and environmental racism.
RESUMEN
El presente trabajo aborda cuestiones conceptuales sobre el racismo en Brasil relacionadas
con el proceso histórico de colonización, destacando la creación de un imaginario
colectivo hegemónico, eurocéntrico, patriarcal, reproducido por la ideología dominante y
reforzado por prácticas racistas en las relaciones sociales. Por otro lado, traemos la
decolonialidad como una ruptura epistemológica que busca romper con las ideologías
coloniales dominantes que prevalecen sobre el pensamiento occidental y apunta caminos
para enfrentar el racismo estructural. El aporte teórico está dado por la perspectiva
decolonial de autores como Walter Mignolo (2017), Anibal Quijano (2009), Molefi Asante
PALABRAS-CLAVE: (2009), Nah Dove (2017) y Lélia Gonzales (1984) y cuestionamientos sobre raza, racismo, anti
Characteristics - racismo y racismo estructural con autores como Kabengele Munanga (1999), Antônio
Decoloniality Sérgio Alfredo Guimarães (1999), Carlos Moore (2007), Antônio Olímpio de Sant`Anna (2004).
Racism La metodología utilizada fue la investigación bibliográfica con carácter exploratorio y
Types descriptivo. La sociedad necesita creer que el racismo existe para ser combatido,
contrariamente a la forma velada y negacionista en que se presenta en el cotidiano
brasileño. Como resultado, tenemos un imaginario popular de formas específicas de
racismo sedimentado culturalmente por un proyecto de colonización que impuso e impone
la imagen de negros con características de inferioridad en las más diversas instituciones
sociales existentes: racismo estructural, racismo institucional, racismo mediático, racismo
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epistémico Racismo y racismo ambiental.

SUBMETIDO: 05 de dezembro de 2022 |ACEITO: 17 de março de 2023 |PUBLICADO: 30 de abril de 2023


© ODEERE 2022. Este artigo é distribuído sob uma Licença Creative Commons Attribution 4.0 International License
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INTRODUÇÃO

O racismo no Brasil tem a sua origem associada ao processo de colonização


do país, iniciado por volta de 1540, quando os primeiros africanos chegam ao
território brasileiro para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar. A lógica que
permitia o racismo naquele momento era a ideologia de supremacia do branco
europeu, que impunha a sua superioridade em relação aos demais grupos étnicos
e raciais fora da Europa, também denominada de eurocentrismo.
A prática do etnocentrismo, concretização da ideologia colonizatória do
eurocentrismo, em que o homem branco europeu se coloca como superior às
demais raças, etnias e culturas permeou todo o processo de colonização
portuguesa no país, do século XVI ao XIX, e deixou resquícios arraigados à nossa
gênese cultural até os dias de hoje.
Vivemos em uma nação em que o racismo é um assunto tratado com certa
sutileza, sem a seriedade e respeito que deveriam ser tomados nas análises dos
problemas raciais existentes nas práticas socioculturais cotidianas. Muitos desses
problemas estão relacionados com a própria história de negros, indígenas e outras
etnias, raças ou povos, que migraram para o nosso continente e as relações sociais,
culturais, econômicas e políticas que se desenharam ao longo desse processo
histórico (MUNANGA, 2004).
O fato é que o racismo passou a fazer parte do cotidiano das pessoas e é a
mais ofensiva forma de discriminação a um ser humano, pois, atinge inúmeras
pessoas por diversas formas, e se tratando do Brasil, há uma forte discriminação
racial em relação às pessoas negras.
Quando se fala em racismo estrutural, percebe-se que o racismo se
manifesta de maneiras diferentes: discriminação, preconceito, segregação,
estereótipo, de diversas maneiras e, na maioria das vezes, de forma velada ou
negacionista, na intenção de alcançar a inimputabilidade de seus atos.
Como o tema é complexo, nesse artigo, discutiremos algumas dessas formas
de racismos existentes contra o negro no Brasil, apontando algumas imagens
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estereotipadas utilizadas contra o negro e muito presentes no imaginário social


brasileiro.
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O interesse pelo tema surgiu na disciplina “Educação para a Diversidade", na


qual vimos temáticas voltadas ao racismo e aos estudos decoloniais. Também
participamos de um curso promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, “Desconstruindo o Racismo na Prática", o qual tinha como objetivo geral
promover uma educação antirracista e colocar o negro em uma nova posição
social.
O curso permitiu-nos realizar discussões a partir de falas e vídeos, que nos
permitiram entender um pouco mais sobre territorialidade quilombola,
africanidades, políticas de promoção da igualdade e mulheres negras, além da
exposição da luta dos negros por equidade. Mostrou os avanços dos estudos sobre
o racismo e africanidade na educação após a aprovação da Lei 10.639/03, com
ênfase no processo de reconhecimento dos direitos humanos, sociais e civis,
desconstruindo a visão escravista do negro como propriedades do trabalho
escravo. Mas ainda como a cultura negra merece ser notada com relevância,
prestigiando o que os negros e negras fizeram e continuam fazendo pela
construção do Brasil.
O método de pesquisa utilizado na produção deste artigo foi a pesquisa
bibliográfica de caráter exploratório e descritivo das produções acadêmicas sobre
o racismo estrutural no Brasil.
Para tanto, partiu-se da pesquisa bibliográfica com destaque para autores
como o antropólogo Kabengele Munanga (2004) com sua obra Rediscutindo a
mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra; Antônio Sérgio
Alfredo Guimarães (1999) e sua obra Racismo e antirracismo no Brasil e Carlos
Moore (2007) com Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para
entender o racismo e Lélia Gonzales (1984) com Racismo e sexismo na cultura
brasileira.
Na disciplina de Educação para a diversidade, também estudamos textos
sobre as questões da epistemologia decolonial, com os quais dialogamos, nesta
pesquisa, a partir das teorias de Walter Mignolo (2017) em Desafios Decoloniais
Hoje, Anibal Quijano (2009) com o texto Classificação Social do poder e
Decolonialidade, Frantz Fanon (2008) com a obra Pele Negra, Máscaras Brancas e
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Nah Dove (2017) com o texto Uma crítica Africano-Centrada à lógica de Marx.
Assim, o presente artigo ficou dividido em duas seções que apontam os
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argumentos desenvolvidos para atingir o objetivo proposto. Na primeira, trazemos


uma revisão de literatura, destacando os conceitos de raça, racismo, preconceito,
estereótipos, a fim de situar a complexidade teórica do problema do racismo no
Brasil e os tipos de racismo existentes.
Na segunda seção, abordamos um pouco da história do racismo no Brasil,
com destaque para o racismo estrutural, uma das tipologias de racismo existentes
no país que mais afeta a vida nos negros cotidianamente e das formas mais
prejudiciais ao desenvolvimento de políticas de igualdade racial.

REVISÃO DE LITERATURA: o conceito de racismo, tipos de racismo na sociedade


brasileira e o lado oculto da modernidade

O racismo é uma constante prática que afasta as pessoas umas das outras
nas relações sociais e está bem presente na contemporaneidade. Para alguns
pesquisadores, o racismo seria “uma forma sistemática de discriminação que tem
a raça como fator fundamental, e que se manifesta por meio de práticas
conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios, a
depender do grupo racial a qual pertençam” (ALMEIDA, 2018, 25).
Almeida (2018) analisa o racismo no Brasil a partir de três pontos de vista: i) o
primeiro seria o individualista, no qual o racismo nasce da deficiência
preconceituosa; ii) o segundo seria o institucional, isto é, aqueles a que se atribuem
privilégios e impõe desvantagens a outros grupos por causa de suas raças,
destacando-se o poder e a dominação nas relações; e iii) o terceiro seria o
estrutural, em que colocam o racismo como presente nas relações sociais,
econômicas, políticas e etc., mesmo estando presente as normas de igualdade na
sociedade brasileira a partir da Constituição Federal de 1988.
O conceito de racismo institucional tem origem nos Estados Unidos em 1960.
A criação desse conceito, como diria Pace e Lima (2011, p. 4) vinha “especificar
como se manifesta o racismo nas estruturas da organização da sociedade e nas
instituições, para descrever os interesses, ações e mecanismos de exclusão
estabelecidos pelos grupos racialmente dominantes”.
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É ainda relevante ressaltar que no Brasil, as práticas racistas se iniciaram


desde os primórdios da colonização com a escravidão que durou quatro séculos,
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sendo o Brasil, o último país a abolir essa prática. Vale lembrar que mesmo após a
assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, as jornadas e esforços no trabalho,
faziam com que os negros trabalhassem de forma desigual em relação aos
brancos e outras etnias, cenário que perdura até os dias atuais na sociedade
brasileira.
López (2012) coloca que existe uma ausência de reflexões sobre esse racismo
institucional, que ainda pode estar em consonância com dificuldades de as
instituições manterem o reconhecimento por essa causa. Ou seja, para que ações
sejam formuladas quanto a esse assunto, é necessário que todas as instituições
assumam essa responsabilidade. O racismo institucional, portanto, é colocado
como o fracasso de uma organização em tentar promover serviço adequado às
pessoas, principalmente, as enquadradas em grupos pela cor da pele, etnia ou
inferioridade, além de promover discussões e reflexões sobre essas condições.
A negritude, assim, é colocada no lugar em que as pessoas negras são as
menos vistas pela sociedade e que precisam morar em lugares pobres e periféricos,
como morros, em favelas e que vivam sem condições básicas para a sua
sobrevivência. Mas tudo isso é consequência de um projeto maior, segundo Walter
Mignolo (2017), trata-se do lado oculto da modernidade.
Para compreender as consequências da modernidade, vamos rever o termo
colonialidade, apresentado pela primeira vez pelo sociólogo Anibal Quijano (2009)
como um dos elementos que passam a constituir também uma das faces do
capitalismo. Para Quijano (2009), a modernidade impõe-se dentro da classificação
racial da sociedade. É ainda compreendida como uma extensão simbólica do
próprio colonialismo, nas quais vem mantendo relações de poder. E mesmo com o
fim do colonialismo, essa ideia de colonialidade se propaga em variadas formas
ao longo do tempo.
Mignolo (2017), seguindo os passos de Quijano (2009), entende a
colonialidade como uma matriz colonial, ligada à modernidade. Ela se coloca
como o outro lado da modernidade, isto é, sem colonialidade não existe
modernidade. Coloca ainda que a colonialidade do saber precisa ser alvo
constante das desobediências epistêmicas. E essa desobediência é a primeira
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medida para o processo decolonial do poder.


Assim, o teórico argentino traz duas teorias que vem auxiliar o entendimento
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do termo decolonial: o paradigma do outro e o pensamento fronteiriço. Este


primeiro, é na verdade uma expressão que vem trazer uma diferenciação ou
hierarquização entre o eu (ocidental eurocêntrico) e o outro (inferior, subalterno,
diferente). Trata de algum modo, da diversidade de analogias em última instância
e se apresenta como um pensamento crítico se articulando em locais em que a
colonialidade negou a capacidade de pensamento da razão e o pensamento
sobre o futuro.
O problema do outro está na negação deste enquanto sujeito social,
negação de sua língua, de sua identidade, de suas raízes culturais e ancestrais,
como bem lembra Frantz Fanon (2008): “Quanto mais assimilar os valores da
metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele rejeitar a
sua negridão, seu mato, mais branco será” (p. 34).
O pensamento fronteiriço está ligado ao imaginário do mundo moderno. E
este é entendido como um dos principais meios da descolonização intelectual,
econômica e política. Ressalte-se que a importância da decolonialidade está em
fornecer meios para a resistência e desconstrução de determinados padrões,
teorias e perspectivas colonialistas que vem sendo impostos aos povos
subalternizados. Portanto, a decolonialidade é uma alternativa que dá ênfase e
visibilidade a povos que sofrem com a opressão (MIGNOLO, 2017).
Com a compreensão da decolonialidade, fica mais fácil perceber outras
práticas de racismo estrutural, que ocorrem de forma velada, em que as pessoas
não expressam ter a intenção de ofender, mas reproduzem falas e hábitos
pejorativos que discriminam o outro no cotidiano. Palavras como denegrir, que
significa “escurecer algo”, ou nomenclaturas como “mulato” e “pessoa de cor”1
são muito frequentes nas relações sociais entre as diferentes etnias do país.
Em pesquisas feitas pelo IBGE (2020) os brancos têm salários maiores, sofrem
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menos com o desemprego e a maioria frequenta o ensino superior. Essas práticas


seriam barradas se métodos como as políticas públicas de igualdade racial e
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socioeconômica2 fossem implementadas com maior seriedade, para então darem

1 O Curso de Licenciatura em Ciências Humanas/Sociologia da Universidade Federal desenvolveu


uma Cartilha.
2 Vale ressaltar que desde 2012, o Brasil adotou uma política de cotas para ingresso nas

universidades públicas, conhecida como Lei de Cotas, a Lei 12.711/2012 estabeleceu que “50%
(cinquenta por cento) [das vagas] deverão ser reservados aos estudantes oriundos de famílias com
renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e meio) per capita” e “Em cada
instituição federal de ensino técnico de nível médio, as vagas de que trata o art. 4º desta Lei serão
suporte às pessoas que foram excluídas da sociedade e marginalizadas.
No Brasil, além do racismo institucional, existem outras formas de racismo: o
cultural, o comunitarista, o ecológico ou ambiental, o individual e o primário.
• O racismo cultural seria aquele em que um grupo que se acha superior
aos demais defende a sua cultura como superior às demais, imposta por intermédio
das crenças, religiões, idiomas, músicas e etc.
• O racismo comunitarista é aquele em que há o preconceito
contemporâneo, no qual acredita-se que uma raça não é algo biológico, mas que
vem da etnia ou cultura.
• O racismo ecológico ou ambiental é aquele praticado contra a
natureza, e que afeta grupos e comunidades.
• O racismo individual é aquele que provém de atitudes e pensamentos
oriundos do próprio ser humano, e podem ser confundidos com os estereótipos.
• O racismo epistêmico é aquele que possui um caráter bem
discriminatório negativo em relação ao étnico-racial no âmbito das teorias
acadêmicas, científicas e filosóficas. Significa, portanto, recusar o reconhecimento
de produção de conhecimento de pessoas que não são brancas.
• Por último, o racismo primário, não se enquadra em justificativas sociais,
culturais, ambientais, biológicas, mas que ocorre no campo do emocional.
Assim, os principais tipos de racismo que se estruturam no Brasil podem ser
analisados de formas diferentes na sociedade brasileira, isto é, para cada tipo de
grupo e indivíduos existem características específicas que determinam as causas e
efeitos da discriminação. Daí a importância de autoras como Nah Dove (2017) que
discutem o tema sob a ótica da decolonialidade, destacando o fato de que a luta
de classes, proposta por Karl Marx, como uma saída para superação dessas
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questões não daria conta de explicar as causas e efeitos do racismo estrutural,


“pode-se argumentar que a força motivadora para a mudança social é, na
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preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com
deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à
proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da
unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do IBGE”. A
adoção de tais políticas possui resultados substanciais no cenário nacional. Na UNB (Universidade
de Brasília), em 2019, 16 anos após a aprovação das cotas raciais na instituição de ensino, 48% dos
universitários se autodeclaravam negros, pardos ou indígenas. Em 2003, esse percentual era de 4,3%
(CORREIO BRASILIENSE, 2002). Todavia, ainda há muito a ser feito.
realidade, uma dialética cultural, em vez de uma dialética de classe como Marx
propõe” (DOVE, 2017, p. 6).
Há pouco tempo, o Brasil não reconhecia a grande desigualdade e
discriminação racial que existe no país e o Estado também se mantinha omisso a
essa causa. Foi somente a partir da Constituição da República Federativa do Brasil,
em 1988, que o racismo foi legalmente considerado crime: “Art. 5º, inciso XLII - a
prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de
reclusão, nos termos da lei” (BRASIL/CF, 1988). A Constituição de 1988 defende o
bem de todos, criminalizando o preconceito de raça, sexo, cor, origem, idade e
outras formas de discriminação.
Racismo e injúria racial são tipos de discriminação que estão literalmente
presentes na sociedade brasileira e que causam uma série de consequências à
sociedade. O racismo, portanto, independentemente das formas como é
praticado, possui um mesmo objetivo: exterminar um determinado grupo da
sociedade pautado na cor da pele.
A partir disso Silva (2009, p. 56) coloca que a principal meta do racismo é

Destruir e banir, amplamente, toda uma condição étnico cultural de um


outro povo, operando, então se deseja uma definição, como a interrupção
violenta e a destruição e a distorção da sociedade, da cultura, das
aspirações e das realizações de um povo dominado. É a desumanização
que justifica a dominação, por incrível que pareça.

As práticas racistas correspondem, dessa maneira, a um determinado


conjunto de hábitos que compõem a discriminação racial e vem colocar a
superioridade entre raças. Lélia Gonzales afirma que “[...] desde a época colonial
aos dias de hoje, percebe-se uma evidente separação quanto ao espaço físico
ocupado por dominadores e dominados” (p. 232). Esses espaços físicos são muito
bem delimitados desde a Casa Grande e Senzala, como postulou Gilberto Freyre,
aos prédios modernos dos grandes centros urbanos em que negros só podem usar
o elevador de serviço e às instituições sociais brasileiras com as quais convivemos
cotidianamente.
Guimarães (1999, p. 11) coloca que “o racismo é, portanto, uma forma
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bastante específica de ‘naturalizar’ a vida social, isto é, de explicar diferenças


pessoais, sociais e culturais a partir das diferenças tomadas como naturais”.
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Para Kabengele Munanga (2004), “a raciologia, desenvolvida pelos


cientistas naturalistas dos séculos XVIII e XIX, serviu mais para justificar e legitimar os
sistemas de dominação racial do que como explicação da variabilidade humana”
(p. 5).
O racismo estrutural acontece de várias formas no Brasil. Por isso, é necessário
se discernir alguns conceitos referentes a práticas racistas na sociedade brasileira,
tais como, raça preconceito, estereótipos e discriminação. Antônio Olímpio de
Sant`Anna (2004) coloca o racismo como uma das piores formas de discriminação,
pois a pessoa que está sofrendo a discriminação não pode simplesmente mudar
suas características naturais por causa de outra pessoa.
Dessa maneira, o primeiro conceito a se perceber é o de racismo, colocado
como uma ideologia que considera povos superiores a outros, pelas características
físicas, suas origens e descendências. Desta maneira, nascem as agressões físicas e
morais, apenas pelas diferenças entre si.
O segundo conceito é o de preconceito, como o próprio nome diz é um
conceito pré-estabelecido a alguma pessoa sem de fato conhecê-la. O outro
passa a ser julgado apenas pela cor da pele, traços físicos e aparência
(SANT`ANNA, 2004, p. 62). Quando alguém ouve falar de preconceito, logo vem a
ideia de racismo e homofobia, mas esse ato se manifesta de outras formas,
atitudes, comportamentos e práticas com pessoas com deficiência, pessoas de
baixa estatura, pessoas altas demais, pessoas gordas, pessoas magras demais,
entre outros.
Tais práticas são bem comuns na infância, principalmente, no ambiente
escolar, quando uma criança se dirige a outra falando da cor de sua pele, do seu
cabelo, da forma como se comporta e sua condição financeira. Pela história, as
atitudes preconceituosas se dirigem, principalmente, aos grupos que são
colocados como minorias, que são excluídos.
Um ato preconceituoso para ser superado precisa começar a ter um olhar
empático para as pessoas, e entender que o ser humano está em um processo de
transformação e que as diferenças sempre irão existir, mas cabe a cada indivíduo
respeitar as diferenças, pois precisamos entender que somos diferentes e
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precisamos aprender a conviver com as diferenças.


O terceiro conceito que se pode analisar é o de estereótipo, que também
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são atos que o ser humano pratica e que causa também um impacto na vida
social de cada pessoa. Eles são espécies de rótulos, criados sobre características
de diferentes grupos para se enquadrarem aos padrões sociais (SANT`ANNA, 2004,
p. 65). É algo que generaliza as características de raça, sexo, idade, profissão, etc.
Atualmente, os meios de comunicação são os maiores promotores dessa prática.
O sociólogo Erving Goffman (1980) coloca que o estereótipo está
relacionado ao estigma social na construção de significados através de uma
interação. Os estereótipos, portanto, querem dizer como a sociedade deve ser e
torna isso cada vez mais natural e normal. Eles são colocados através de ironias,
antipatias, piadas, humilhação, palavras ofensivas ou gestos, chegando até a
agressões.
O estereótipo vem a ser um conceito muito próximo ao de preconceito e
pode ser definido como “uma tendência à padronização, com a eliminação das
qualidades individuais e das diferenças, com a ausência total do espírito crítico nas
opiniões sustentadas” (COSTA PINTO, 1953, p. 186). Por essa razão, “os estereótipos
refletem principalmente diferenças de classe, relações de raças, conflitos religiosos
e internacionais” (idem).
O quarto conceito seria o de discriminação racial, ou seja, todo ato de
exclusão, restrição e também nas preferências que se baseiam em raça, cor e até
a origem. Isso fere os direitos humanos e as liberdades no campo social, político e
outros (SANT`ANNA, 2004, p. 63). A discriminação vem a ser um valor de si próprio
em relação às demais pessoas. É algo que põe o indivíduo inseguro e inferiorizado
diante das outras pessoas. O discriminador trata os outros com inferioridade e se
julga superior a demais.
No parágrafo 1º, artigo 1 da Lei n° 12. 288, de 20 de julho de 2010, que institui
o Estatuto da Igualdade Racial, destaca-se a garantia à população negra da
efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos
individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e as demais formas de
intolerância étnica.
A discriminação racial inferioriza pessoas baseada em ideias
preconceituosas. Mas o artigo 7 da Declaração Universal dos Direitos Humanos
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prevê: “Todos são iguais perante a lei e tem direito, sem qualquer discriminação
que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal
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discriminação”. De fato, essa lei precisa ser respeitada e os direitos humanos


precisam estar em evidência, principalmente aos negros.
Mas sabemos o quanto ainda vivenciamos situações de racismo muito fortes
no contexto da realidade social brasileira, uma tensão entre as relações sociais,
principalmente, as que envolvem a participação do homem negro e da mulher
negra em suas diversas instâncias institucionais, a escola, a igreja, a saúde pública,
os serviços públicos e privados, os empregos públicos e privados, os transportes
públicos e privados, os espaços públicos e privados, o lazer, entre outras esferas de
relações sociais, nas quais o poder se alicerça em um paradigma hegemônico de
ideologia dominante ocidental e europeu. Daí a importância dos estudos coloniais
como ruptura epistemológica e possibilidades de novos olhares para os estudos
das relações étnico-raciais.
Após a apresentação dos conceitos de racismo, suas diferenciações em
relação aos conceitos de raça, preconceito, discriminação racial e estereótipos e
os tipos de racismo, traremos na próxima seção, um aprofundamento do racismo
estrutural no Brasil, desde o seu nascimento histórico e as suas faces na sociedade
brasileira contemporânea.

O RACISMO ESTRUTURAL NO BRASIL: breve histórico

A teoria do branqueamento

O pesquisador Antônio Olímpio de Sant`Anna (2005) em seu artigo


Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra
tece um breve, mas profícuo, percurso histórico das teorias racistas que dão base
a teoria do branqueamento no século XIX, no Brasil.
Iniciando pelo século XVI, o Frei Juan Ginés de Sepúlveda, representando a
ideologia colonialista, dizia que os indígenas tinham uma natureza inferior, sendo
viciosa, irracional. Sepúlveda dizia que a relação que existia entre um espanhol e
um índio era a mesma que existia entre um homem e um macaco (apud
SANT´ANNA, 2005, p. 45).
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V. de Lapouge, um dos expoentes teóricos dos racistas franceses,


apresentava a história da humanidade como uma luta entre as raças, na qual
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ficava evidente a superioridade da “raça branca” sobre a “raça negra” e a “raça


indígena” (apud SANT´ANNA, 2005, p. 46).
Em 1835, Arthur de Gobineau produziu um conhecido tratado denominado
Ensaio sobre a Desigualdade das Raças Humanas: raças branca, amarela e negra
(apud SANT´ANNA, 2005, p. 47). Essa superioridade do branco, no território brasileiro,
tem raízes desde a escravidão, onde o negro era menosprezado de todas as
formas e o branco sempre era exaltado. Era colocado que o ideal de beleza ou
de sucesso, educação, família e outros tipos de convívio social, estariam atrelados
apenas ao branqueamento.
Ao traçar o meio científico do século XX é possível encontrar teóricos que
criticam essa ideologia do branqueamento. Um deles seria Thomas Skidmore (1976)
que coloca a superioridade do branco como uma lógica agressiva e que destrói
as expectativas da sociedade afrodescendente, pois é descrita como um método
de bani-los da sociedade brasileira. Infelizmente isso ocorre até os dias atuais.
A tese do branqueamento discutida por Skidmore (1976), tinha como base,
a superioridade do branco, no caso brasileiro, influenciada por uma lógica racial
importada da Europa. A elite brasileira que importou a tese do branqueamento
colocava que a população negra iria diminuir por certos motivos como: a
natalidade baixa, a vulnerabilidade às doenças e a desordem social
(SKIDMORE,1976, p. 81).
A pesquisadora estadunidense Nah Dove afirma:

[...] o nacionalismo branco é visto como a característica racista e xenófoba


da unidade cultural coletiva europeia. Por exemplo, no cenário britânico
contemporâneo, o nacionalismo branco como uma entidade ideológica se
manifesta na política de direitos de cidadania. Branquitude é equiparada à
“britanicitude”: assim, Africanos e pessoas de outras culturas são vistos em
termos da sua “raça” e/ou cor e, portanto, como párias ou estrangeiros.
Consequentemente, as pessoas Africanas não são percebidas como
britânicos “reais”, não importa quantas gerações eles tenham vivido ali
(DOVE, 2017, p. 5).

Seja no processo colonizatório das Américas, da Ásia ou da África é o


paradigma cultural europeu que estabelece os padrões sociais e de “civilização”.
As outras culturas – não-brancas – são negadas. “O paradigma do ‘progresso’ e
‘modernização’ invalida as vidas e culturas dos povos que não são Europeus”
275

(DOVE, 2017, p. 23) e baseados neste paradigma tentam justificar práticas


genocidas como se fosse um mal necessário para se “seguir em frente”.
Página

Como se vê, há um longo processo histórico de teorias racistas que


contribuíram para o menosprezo e inferiorização do negro e do índio nas
sociedades modernas, a teoria do branqueamento, tanto quanto o mito da
democracia racial, foram algumas dessas influências negativas para a constituição
de uma sociedade brasileira extremamente racista e excludente.

Reflexões sobre o racismo estrutural no Brasil

Observa-se, portanto, na sociedade brasileira, manifestações práticas do


racismo em sua face estruturada, como as vagas do mercado de trabalho
destinadas às pessoas negras, principalmente, em cargos de relevância nos
serviços públicos e privados. O racismo estrutural faz parte da ordem social
brasileira e se reproduz consciente e inconscientemente nos aspectos culturais,
econômicos e políticos da sociedade. Ele se apresenta nas formas de
desigualdade racial arraigadas em nosso convívio social.
É notório analisar também que o racismo está presente nas instituições,
principalmente, aquelas que representam os aparelhos repressivos do Estado
(ALTHUSSER, 1985), como vemos nas instituições policiais. Muitas vezes policiais
despreparados perseguem, agridem e até matam negros no país por motivos
escusos (SILVA e SALDANHA, 2020). Os veem como marginais e pessoas altamente
perigosas para a sociedade, sem dúvidas, uma visão entorpecida pela ideologia
racista dominante e hegemônica. Em 2018, uma pesquisa feita pelo INFOPEN
(Sistema de Informações Estatísticas do Sistema Penitenciário Brasileiro),
desenvolvido pelo Ministério da Justiça, aponta que o encarceramento e o
aumento das penas estão voltados à população negra e pobre.
Em 2020, o site do G1 publicou uma nota em que negros recebem salários
17% menores em relação aos brancos, constatando assim uma imensa
desigualdade econômica e racial. Esta conclusão foi dada pelo Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais da PUCRS junto à Rede ODSAL (Rede de
Observatórios da Dívida Social na América Latina, 2020).
Cenários como esses demonstram que o Brasil se enquadra como um país
racista, cujas relações sociais estão eivadas de práticas racistas, porque esse
276

racismo se alicerça de forma estrutural. Aquelas marcas da escravidão que


Página

duraram seus 350 anos passam a refletir na população negra brasileira em forma
de baixos índices de bem-estar.
Após a liberdade concedida pela abolição, pouco aconteceu (episódios
esparsos na história do Brasil) no sentido de ajudar os negros a superarem a
condição de pobreza e a crescente discriminação. A população negra está
inserida em um lócus de desigualdades, dos olhares racistas e sem meios de
alicerçar suas vidas em outras condições melhores.
Mesmo sob o ponto de vista legal e jurídico, poucas foram as conquistas. Se
a Lei Áurea simbolizou um marco legal de liberdade, em 13 de maio de 1888, pouco
representou em conquistas de direitos humanos, civis e universais ao homem negro
e a mulher negra. Ao contrário, muitos livros de história enalteciam a figura da
princesa Isabel como homenageada nessa data.
Foram 100 anos de abandono político, social e jurídico até a promulgação
do inciso XLII, do Art. 5º da Constituição Federal de 1988 (criminalização do
racismo), depois mais 15 anos para a promulgação da Lei 10.639/2003
(obrigatoriedade do ensino da cultura africana e afro-brasileira, alterada pela Lei
11.645/2008, para inclusão dos indígenas), mais 2 anos para o Estatuto da
Igualdade Racial, Lei 12.288/2010, mais 2 anos para a Lei de Cotas (Lei 12.711/2012),
mais 2 anos para lei de reservas de vagas em concursos públicos, Lei 12.990/2014.
Como se vê, todas as conquistas da pasta da diversidade étnico-racial em
prol de negros e indígenas ocorreram na gestão do governo Lula de 2003 a 2011,
com algumas pautas consolidadas na gestão de sua sucessora a presidenta Dilma
Rousseff. Após o golpe contra a presidenta, muito pouco ou quase nada foi feito
dentro das políticas públicas de igualdade racial, em relação à pauta da
diversidade no país.
Ao contrário, no atual governo, de Jair Bolsonaro, vislumbra-se um
desmantelo das secretarias voltadas à diversidade e às relações étnico-raciais e as
consequências da negligência governamental afetam o panorama das práticas
racistas na sociedade brasileira, que vem aumentando paulatinamente.
Nas escolas, é possível observar formas de discriminação racial, tanto na
atuação docente, quanto na discente, principalmente, entre os colegas de classe.
277

É possível perceber nos corredores das escolas, em alguns murais, a predominância


de imagens de crianças brancas, excluindo as representações de outras crianças
Página

pertencentes a outros grupos étnico-raciais. Em salas de aula, também as crianças,


adolescentes, jovens e adultos sofrem preconceitos e muitas vezes o professor não
sabe o que fazer nessas situações. Daí a importância de que a diversidade cultural
seja trabalhada nesses cenários escolares.
Mas apesar das dificuldades e desafios enfrentados, a escola passou a ter
um papel importante nessa luta pela igualdade e diversidade cultural. Foi através
da Lei n° 10.639/03 que o ensino da História e Cultura Afro-brasileiras e Africanas nas
escolas públicas e privadas passou a ser obrigatório. Isso representa uma conquista
de democratização e tentativa de correção das desigualdades históricas na
sociedade brasileira.
Por mais que os negros cresçam economicamente, consigam estabilidade
financeira e social em suas vidas e aumentem seus rendimentos no mercado de
trabalho, ainda assim sofrerão racismo. O preconceito está na estrutura em que
esse pensamento fora formado, são as bases ideológicas do racismo estrutural no
Brasil.
Simplesmente, nunca se idealizou um futuro concreto para o negro na
sociedade brasileira, por isso, essa luta incansável e ferrenha pelos direitos iguais,
por justiça social, por direitos humanos. É impensável, infelizmente, para muitos
brasileiros, um imaginário social em que negros, indígenas e brancos estejam em
pé de igualdade.
Em 2019, numa entrevista a DW Brasil, a cientista Lydia da Veiga Pereira,
docente na USP e especialista em genética, afirmou que o Brasil pode ser
considerado o país com um dos maiores índices de miscigenação genética do
mundo (DW 2019). Mas mesmo com essa afirmação, existe a persistência nas
desigualdades sociais que acentuam essas diferenças.
A diferença social entre brancos e negros se tornam cada dia mais notória.
São vulneráveis tanto na saúde, no trabalho, na educação, na moradia, etc. Existe
assim um desequilíbrio para que os direitos dos negros sejam colocados em
evidência, mesmo com leis próprias para assegurarem esses direitos como o
Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/10).
Por mais que a Constituição Federal (1988) garanta, em seu texto, os direitos
278

individuais e coletivos da sociedade brasileira, o racismo se coloca presente no


cotidiano dos brasileiros e piora cada vez mais com a prática do negacionismo no
Página

atual governo de Jair Bolsonaro.


O termo racismo estrutural é algo que reforça a ideia de que existem
sociedades que se estruturam baseadas na discriminação racial, como as
sociedades ocidentais baseadas no eurocentrismo. Algo que privilegia e coloca
um grupo (brancos) superior a outro (não brancos), como bem lembra Quijano
(2009):

E que nessa qualidade, a Europa e os europeus eram o momento e o nível


mais avançados no caminho linear, unidirecional e contínuo da espécie.
Consolidou-se assim, juntamente com essa ideia, outro dos núcleos
principais da colonialidade/modernidade eurocêntrica: uma concepção
de humanidade segundo a qual a população do mundo se diferenciava
em inferiores e superiores, irracionais e racionais, primitivos e civilizados,
tradicionais e modernos (p. 75).

O termo estrutural não significa que o racismo não poderá ser abolido, ou
que as lutas contra essa prática tenham sido inúteis, muito pelo contrário, isso leva
as pessoas a entender e refletir que fazem parte desse sistema racista e que
precisam parar de negar que o racismo existe no país. É preciso aceitar e conversar
sobre essa prática, pois para combater é preciso que a sociedade aceite que é
racista.
O segundo passo é transgredir a essas imposições ideológicas, desobedecer,
criar seus próprios caminhos, aquilo que Walter Mignolo (2017) vem a denominar
de “desobediência epistêmica”.

A decolonialidade requer desobediência epistêmica, porque o


pensamento fronteiriço é por definição pensar na exterioridade, nos
espaços e tempos que a autonarrativa da modernidade inventou como seu
exterior para legitimar sua própria lógica de colonialidade (p. 30).

Apesar das leis terem entrado em vigor contra as práticas racistas,


infelizmente elas não são suficientes para acabar com o problema no Brasil, pois o
racismo tem se colocado maior que a discriminação e até mesmo o preconceito.
Então, é preciso descolonizar, daí a decolonialidade como alternativa para a
ruptura epistemológica e abertura de novos paradigmas de pensamento não-
eurocêntricos.
Em tipos de sociedades como a do Brasil, o racismo se coloca na forma
como as pessoas pensam. Daí, justificativas imponderadas com o “isso é cultural”,
279

“sempre foi assim” só pioram a situação, pois são negacionistas e se alimentam do


Página

mito da democracia racial. Isso é muito irracional e inconsequente, pois o


comportamento das pessoas em relação às outras – por causa de sua cor de pele
– se coloca com mais importante do que a própria pessoa.
Não importa a capacidade intelectual, moral ou sexual, se for negra é o
bastante para não ter relevância e ser discriminado, como se os negros tivessem
nascido apenas para levar os fardos pesados nas costas, sem espaço para
imporem suas ideias ou sentimentos, como se não fossem pessoas, seres humanos,
ninguém no mundo.
Então, é um problema muito mais sério do que as pessoas imaginam. Daí o
fato do “lugar de voz”, pois ninguém é mais capacitado para descrever a dor
sentida do que quem a sofre na pele. Por isso, todo o respeito às escritoras negras
brasileiras como Lélia Gonzales, Katiúscia Ribeiro, Aza Njeri, Dandara Aziza,
Conceição Evaristo, só para citar algumas mulheres negras que traduzem as suas
dores, enquanto vítimas do racismo nesse país, mas tiveram a garra de transmitir
essas dores em suas obras.
Fatos tristes e dramáticos ocorrem a todo instante por causa do racismo: um
que merece atenção seria o aumento da população carcerária, cujo acréscimo
histórico é de pessoas negras, isso de acordo com Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias, registrado em 2017 (G1/GLOBO, 2020).
Em 2020, o 15° Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostrou que o Brasil
obteve 3.913 homicídios apenas do sexo feminino, registrados como feminicídio.
Duas em cada três dessas mulheres, que sofriam violência, eram negras,
apresentando um índice de 61,8% dessas mortes.
Essa série de violências ocorreram exatamente no período do isolamento
social ocasionado pela pandemia da Covid-19, momento em que as mesmas
foram obrigadas a estar em casa, ficando assim inteiramente vulneráveis, expostas
a muitas agressões tanto físicas, quanto psicológicas.
As prisões no país crescem consideravelmente e a cada momento que
aumentam, são pessoas negras que lotam os presídios. Isso acontece
principalmente por suas condições sociais, não apenas pela pobreza, mas pela
falta de acesso aos direitos e por viverem em ambientes vulneráveis.
280
Página
Por tudo isso, a população brasileira é sim racista, e precisa aceitar essa
posição para que o racismo seja abolido, extinto de fato, das práticas sociais, a fim
de que as pessoas se relacionem com respeito às diferenças, com respeito à
diversidade com a qual se construiu esse país. Negar que o racismo existe, só piora
a situação dos negros no Brasil e mesmo que promovam políticas públicas e demais
manifestações, se a população não parar para analisar o desastre físico e mental
que a população negra enfrenta, nada disso fará sentido e só irá piorar a situação
dos mesmos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, observamos que apesar da existência das mais variadas leis, das
manifestações e dos debates acerca dos crimes de racismo, o tema continua
persistente e enraizado nas práticas sociais dos brasileiros. Coloca-se de forma tão
velada e negacionista (mito da democracia racial), que mesmo quando se
evidencia o crime, nem parecem existir punições para o mesmo.
A sociedade brasileira precisar, de fato, enxergar que o racismo existe e de
que é um país racista. É importante debater sobre o racismo, pois as pessoas
281

precisam reconhecer que são racistas, para que assim as providências sejam
tomadas, pois negar a existência do racismo no Brasil, é fechar os olhos para as
Página

violências que os negros sofrem todos os dias, e contribuir para consolidar práticas
discriminatórias.
As pessoas precisam aceitar que apesar das diferenças, o respeito e a
igualdade precisam ser mantidos. Que os traços físicos de alguém não o torna
menos importante que os outros. Que todas as pessoas têm seu comportamento,
sua cultura e sua vida social distintas.
Observou-se ainda, que a desigualdade dentro do ambiente de trabalho
entre negros e brancos é enorme, não só nos cargos, mas também na diferença
salarial, moral e ética. O peso é diferente. As pessoas negras sempre são colocadas
como inferiores e isso precisa acabar de imediato, pois as pessoas são iguais tanto
perante a lei, como fora dela.
Vimos ainda a forte discriminação contra a mulher negra me nossa
sociedade, com estereótipos subalternizados, como o trabalho doméstico, em que
a negra é vista apenas como serviçal e não como alguém capaz de ocupar um
nível profissional mais elevado, como bem destacado nos estudos de Lélia
Gonzales (1984).
Portanto, é necessário que a sociedade ressignifique o mito da democracia
racial e o traga para a realidade, isto é, fazer com que ele realmente exista. Outro
fator que precisa ser acabado é o negacionismo, onde sem ele as pessoas
poderão de fato aceitar que o racismo existe, para que assim as medidas de
combate ao mesmo possam realmente entrar em vigor.

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