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Quinn Taylor Evans

Filha da Bruma
Título Original: Daughter of the Mist

Série Legado de Merlin


Sinopse

Segundo livro da série Legado de Merlin


Escócia, 1066
Apenas um amor incondicional poderá libertá-la!
Refém de um misterioso legado de magia e paixão, Brianna está aprisionada entre
dois mundos, o real e o do encantamento, fadada a vagar por florestas e mares,
luzes e trevas, para sempre... a menos que algum homem a liberte com o poder do
amor verdadeiro!
Tarek ai Sharif está na Escócia para reivindicar as terras que lhe foram prometidas.
Ao vislumbrar uma delicada criatura observando-o por entre a densa bruma, o
intrépido guerreiro acredita estar sonhando, até descobrir que não se trata de
miragem, e sim de uma mulher que lhe inflama o coração com um desejo
proibido... que o obriga a escolher entre vingar-se do passado ou lutar pelo futuro,
à medida que se aventuram numa fantástica jornada para um mundo de mitos,
dragões, antigos tesouros... e um amor mais forte que a magia!
Prólogo

A bruma se enrolava pelo ar frio da noite como sedosos fios de linha num
tear. Armava uma teia prateada pela lua, enrodilhava-se em torno das chamas das
tochas e cintilava no manto que envolvia a jovem esguia postada nas muralhas.
− Ele virá para você, num tempo que não é um tempo e num lugar que não
é um lugar − a Voz murmurou em seu íntimo.
A luz das tochas a emoldurava. Seus cabelos eram como ouro torcido. A
pele, pálida, e as maçãs do rosto, salientes, os lábios entreabertos. Os olhos verdes
eram como as sombras da floresta, ansiosos por paixões desconhecidas.
Não mais parecia mortal, mas alguma criatura do outro mundo, feita de prata
e ouro como a bruma da alvorada, quando a Voz se dirigiu a ela de novo. Então, ao
se inclinar sobre as muralhas, ela viu a criatura.
Veio até ela através da bruma, escura como o céu da noite, suave e poderosa,
toda músculo e tendões debaixo da lustrosa pele negra, que cintilava, conforme o
ser saltava pelas ameias. A cabeça escura angulou-se em sua direção. Olhos luziram
quando a espreitaram. Não havia como escapar.
A respiração do animal ondulava como pluma na névoa fria. Músculos
elásticos esticavam-se e encolhiam-se debaixo da escura pelagem acetinada com um
poder mortal que era ao mesmo tempo terrível e belo. Num átimo, a criatura estava
sobre ela, puxando-a para baixo sob aquela força incrível e beleza fatal.
Poderia matá-la com facilidade. Mas, em vez de dentes afundando-se em sua
carne, seu hálito roçou contra a pele dela com um calor sensual. No lugar de garras
a dilacerá-la, a energia do animal fechou-se, gentil, em torno dela, e um calor como
a carícia de um amante envolveu-a sob o manto.
Ele virá para você.
De novo, as palavras sussurraram pela neblina conforme o ser erguia a
cabeça e revelava, não um terrível animal, mas as feições rijas de um guerreiro com
cabelos tão negros como a noite, olhos da cor do céu de verão e um corpo
poderoso que cintilava como ouro, tal como a alvorada.
Como a alvorada, ele veio até ela e, como a bruma à alvorada, ela se rendeu,
até que o guerreiro se apossou dela com uma feroz e gloriosa paixão.
Capítulo I

Inverness

Brianna acordou com a mão que de repente fechou-se sobre sua boca. A luz
tremia pelas paredes do quarto, iluminando as feições do gigante poderoso que se
postava sobre ela.
Arregalou os olhos ao reconhecê-lo, e a mão dele se afastou. De longe
vinham o som de gritos e um barulho distante, porém inconfundível, de batalha,
para além da porta de seu aposento.
− O que é? − Brianna perguntou. − O que aconteceu?
Sem responder, Thomas puxou-a do leito, pegou o maior dos mantos
grossos de lã e enrolou-o rápido em torno dos ombros dela.
Sua boca era uma linha dura no meio da barba áspera. O padrão de cicatrizes
que rendilhava suas faces ficava mais pavoroso com a expressão sombria na tez
avermelhada.
Além da porta, fechada por dentro, os sons da batalha recrudesciam, mais
altos e mais distintos. Horas antes, estavam todos reunidos em torno das canecas
de cerveja. Brianna fora se deitar entre gritos bem-humorados e os desafios de
força física dos mais jovens, enquanto os mais velhos cochilavam ao lado da lareira.
Agora, eram sons de uma batalha campal que vinham de dentro da fortaleza.
− Tem de me dizer o que aconteceu, Thomas!
Mas nenhuma explicação passou pelos pensamentos do gigante para
conectar-se com os dela, daquela maneira especial que os ligava.
Em vez disso, Brianna sentiu urgência e uma cega obstinação de vontade que
falava de perigo, palavras que Thomas não poderia pronunciar porque sua língua
fora cortada muito tempo antes.
Os próprios pensamentos de Brianna corriam céleres. Os chefes do Norte
tinham se reunido em Inverness para discutir as notícias do Sul, além das fronteiras
com a Inglaterra, e a crescente ameaça do invasor viking, Mardigan.
Por mais de vinte anos, Mardigan e seus homens assaltavam os portos da
costa e atacavam de surpresa as praias do norte da Escócia. Porém, tornara-se cada
vez mais ousado, ao penetrar pelo interior e pelas charnecas para saquear vilas e
fazendas.
Mardigan queria muito mais que o butim de alimento e animais. Seus
homens estupravam as mulheres, matavam os homens e meninos e queimavam as
vilas dos clãs do Norte.
Não fazia segredo do que ambicionava: Inverness, a fortaleza que protegia
todo o norte da Escócia.
Queria um domínio pelo casamento, uma aliança que não pudesse ser
quebrada, e laços de sangue com os clãs do Norte por intermédio de filhos que
nascessem dessa união.
Outro perigo também ameaçava a autonomia dos habitantes das Terras
Altas. Guilherme da Normandia se proclamara rei da Inglaterra e enviava seu
exército para o Norte. As Terras Altas eram vistas como o portal que deveria ser
bem fortificado contra aqueles que pudessem tentar tomar o trono da Bretanha
pelo portão dos fundos.
O pai adotivo de Brianna, Cullum, lorde de Inverness, reunira os chefes dos
clãs. Insistira com os chefes sentados à mesa de conselho, dois dias atrás, numa
aliança com a Inglaterra, que poderia bem ser a única esperança contra os
açougueiros nórdicos que repetidamente saqueavam e queimavam as vilas.
− Eles estupram nossas mulheres − Cullum dissera, sombrio. − Plantam
fundo sua semente e misturam seu sangue ao nosso, de modo que nunca ficaremos
livres deles.
Uma vez que isso acontecesse, ele avisara, os bárbaros nórdicos se tornariam
ainda mais poderosos, e os clãs não teriam esperança de livrar-se de Mardigan.
Uma aliança com Guilherme da Inglaterra lhes daria a força de que
necessitavam.
Então, chegaram notícias de que Mardigan queria permissão para conversar
com os chefes dos clãs sobre os termos de paz.
Embora suspeitando deveras de suas intenções, os membros do conselho
concordaram e estabeleceram os termos para a reunião. O salão da fortaleza estava
como um acampamento armado pronto para a batalha quando Mardigan entrou,
passados três dias, com quarenta de seus homens.
Falara de uma paz que só poderia ser obtida com uma aliança
inquebrantável. Nada mais, nada menos que o casamento com Brianna.
− Você não recusará, velho − Mardigan advertiu, os dentes reluzindo nas
feições belas e arrogantes. − Uma centena mais de meus homens aguarda meu
sinal. Recuse... − Apontou para os chefes em torno da mesa. − e todos morrerão.
É uma pequena exigência em troca do fim do banho de sangue.
Embora Cullum tivesse proibido sua presença, Brianna ouvira tudo do
corredor que levava à cozinha. Antes que Cullum e os chefes pudessem responder,
ela saiu das sombras e caminhou, orgulhosa, até os homens.
− Ele não recusa! − exclamou, ao atravessar o salão, chamando a atenção de
todos. − Eu recuso!
Mardigan se virou. Baixou a cabeça como um lobo que sente o cheiro da
caça. Seus olhos se estreitaram, de um azul nórdico tão frio e duro como o inverno
ártico. Brianna se postou diante dele, armada apenas com a altivez das Terras Altas
e a teimosia desafiadora.
Com as pernas musculosas enfiadas em calças de couro, Mardigan tinha a
postura de quem já ganhara o poder em Inverness. Os cabelos de um ouro
queimado caíam até seus ombros com uma trança grossa de cada lado da face.
Estava na plenitude de sua virilidade, porém não era um jovem. Nem tolo.
Brianna sentira alguma coisa sombria e demoníaca por baixo da força
poderosa dele, do brilho dos braceletes de ouro e daqueles olhos azuis gelados que
a fitavam com luxúria sem disfarces. Então Mardigan ergueu um punho fechado,
como se tivesse a intenção de esmurrá-la.
Um súbito rebuliço tomou conta do salão quando a mão de cada homem
buscou a arma. Porém, Mardigan não bateu nela. Seus dedos se enrolaram como
serpentes pelos cabelos de Brianna, que caíam por seu ombro.
Ergueu a massa dourada fechada no punho e em seguida a torceu como uma
corda, a apertar cada vez mais, forçando Brianna a aproximar-se até que a teve
prisioneira, o hálito quente a lhe queimar ao rosto.
− Eu juro que a terei, Brianna de Inverness e herdeira de Lochonnen. E
teremos belos filhos vigorosos. − E depois a ameaça: − Ou a terra se tornará
vermelha do sangue de seus parentes.
Escondida em sua manga, ela sentiu a frieza reconfortante da lâmina do
punhal que sempre carregava. Tirou-o da bainha e enfiou a ponta na carne
vulnerável sob o queixo de Mardigan.
− Você nunca verá o feito, pois seu sangue será o primeiro a correr! − E
Brianna viu, com satisfação, aqueles olhos frios se arregalarem de surpresa.
− Não preciso ver, Brianna. A sensação de minha carne dentro de você será
o bastante para saber que está feito. Você gostará. Posso ver em seu semblante.
Logo estará implorando para ter-me entre suas pernas.
Ela recusou-se a gritar ou deixar escorrer as lágrimas de raiva, humilhação e
ódio. Comprimiu mais fundo a lâmina e viu, com alegria, a expressão do viking
mudar quando o sangue escorreu pela adaga.
− O que vê é sua própria morte!
Rápida e implacável, a mão de Mardigan segurou o pulso dela. Suas unhas se
enterraram na carne e nos esguios tendões, procurando tirar-lhe a arma da mão.
Ao redor dela, as espadas foram empunhadas por highlanders e nórdicos. A
voz de Cullum ecoou no grande salão ao se adiantar, desarmado:
− Tem a resposta de minha filha, Mardigan. E a minha: Parta enquanto ainda
respira.
A mão de Mardigan apertava ainda o pulso de Brianna-. Sua face estava
muito perto da dela. Ela, então, pôde vislumbrar algo naquelas feições frias e
poderosas que não vira antes: uma perversidade de alma ainda mais terrível e cruel
do que supusera.
− Isso apenas começou, Brianna. Você será minha. Em seguida, ele e seus
homens partiram, desaparecendo pelos portões, pelas colinas e florestas que
rodeavam Inverness. Sem demora, os portões da fortaleza foram fechados e
barrados.
Naquele momento, os sons de batalha vinham de dentro do castelo, um
trágico lembrete de que os portões não tinham sido suficientes para impedir a
entrada de Mardigan e seus guerreiros.
Thomas conectou os pensamentos aos dela. Foi até à janela e abriu as
venezianas. O céu começava a se iluminar. Abaixo das muralhas íngremes, os
penhascos rochosos.
− Você precisa partir antes que seja muito tarde! Eles não devem encontrá-la
aqui.
Brianna meneou a cabeça. Não partiria sem Thomas.
− Iremos juntos, ou nada feito.
− Não posso voar, senhora. Não há tempo! Não discuta! Tem de ir agora!
− Não sou eu quem está discutindo. Não o deixarei! Socos ecoaram contra a
porta pesada. A madeira não agüentaria por muito tempo.
Thomas puxou-a pelo dormitório até a parede ao fundo. Colocou-lhe uma
tocha na mão e depois se esgueirou pelo pesado tartã de lã que cobria a parede.
Comprimiu a mão contra a base de uma pedra triangular. A pedra moveu-se e, com
um som rascante, uma seção da parede se abriu, revelando a sombria escuridão de
uma passagem. Uma lufada de ar gelado quase apagou a chama da tocha.
Cullum mandara abrir uma passagem secreta no fundo de cada quarto para
ser usada se houvesse necessidade de fuga. Brianna adentrou na escuridão gelada.
Tateou a parede oposta em busca da alavanca que soltava a seção da parede
de pedra que se abria para o quarto do lorde. Mirren decerto estaria ali, esperando
por eles. Porém, Thomas puxou-a pelas escadas.
− Não podemos deixá-la! − Brianna sentia algo estranho. Thomas jamais
deixaria Mirren ou Cullum.
Atrás dela, pedras rangeram quando o painel fechou-se no lugar. À frente, a
chama da tocha se refletia nos degraus brilhantes da umidade que escorria das
paredes.
Um presságio doloroso apertou o coração de Brianna.
Onde estavam Cullum e seus parentes? Será que Mirren se encontrava a
salvo?
Onde se achavam os outros chefes de clã que ainda não tinham retornado a
seus domínios?
O que era feito de Malcolm e o pai dele?
Ao chegarem a um nicho no estreito corredor que ligava a cozinha e a copa
ao salão, Thomas abriu a porta escondida.
Brianna ouviu o ruído da refrega, o tinir e raspar de aço contra aço, gritos
entre os clamores de dor dos feridos e os gemidos dos agonizantes. Entrou no
corredor de ligação. A destruição do salão principal a estarreceu.
Viu as longas mesas viradas, travessas e canecas espalhadas pelo solo, bancos
arrebentados. Passou por sobre os corpos de vários de seus próprios parentes, à
procura de Cullum. Foi quando avistou-o caído contra a parede da escada. Era
doloroso pular por sobre os cadáveres. A barra da camisola logo se encharcou de
sangue. Por fim, chegou a Cullum.
Ele fora o último a cair, sua mão ainda agarrando a espada, embora o braço
tivesse sido separado do corpo robusto. O segundo golpe o matara de imediato,
abrindo uma ferida de seu ombro até o peito, o sangue a bombear-se sobre o
xadrez de seu clã.
Mirren jazia contra a parede, atrás dele, segurando um punhal fino, a outra
mão sobre o ombro do marido, como se a defendê-lo. Um golpe poderoso
esmagara-lhe o crânio. Seus olhos sem vida encaravam Brianna.
Sons ecoaram do alto da escadaria. Os assassinos estavam lá agora,
saqueando seu quarto e derrubando a porta dos aposentos do lorde.
Brianna teria disparado degraus acima se Thomas não a impedisse. Ele
enlaçou-lhe a cintura e carregou-a para longe dali. Seus pensamentos penetraram
nos dela com angústia e sofrimento, como um golpe físico.
− Eles morreram para proteger você! Zombará de suas mortes entregando a
esses açougueiros o próprio prêmio que procuram? Precisamos partir agora, ou
suas mortes terão sido em vão!
Nesse momento, ecoaram gritos, e, embora Brianna não pudesse entender o
que diziam, distinguiu o som de raiva. Mardigan não encontrara aquilo que buscava.
Tochas surgiram no alto da escadaria.
− Precisamos partir agora, senhora! − Thomas avisou, aflito.
Segurou-a pelo braço e fugiram do salão pelo corredor que ligava à cozinha.
O pátio além estava um caos.
Thomas a conduziu para trás do pombal, adjacente aos cercados onde
Cullum criava as aves de caça. Penas voaram com a súbita intrusão. Logo,
entretanto, as pombas se acalmaram. Nos cercados, dois falcões moviam-se
inquietos nos poleiros. Thomas fez Brianna agachar-se no piso do cercado e
cobriu-a com palha ao ouvir os guerreiros se aproximando.
Ela não necessitava vê-los para saber que Mardigan vinha com eles. Sempre
haveria de se recordar de sua voz, cheia de orgulho e arrogância, a frieza com que
jurara voltar a Inverness depois que ela recusara sua oferta de casamento. Cumprira
a promessa.
− Procurem em cada prédio, cada cercado, cada carroça − Mardigan
ordenava a seus homens. − Lady Brianna tem de ser encontrada. Antes que este dia
acabe, estaremos casados. Antes que a noite passe, ela estará carregando meu
primeiro filho.
− Muitos dos highlanders fugiram. Milady pode estar entre eles − um deles
ponderou.
Mardigan estreitou os olhos. Glenross ficava ao norte, pelas charnecas.
Brianna poderia ter buscado segurança ali.
− Procurem em cada canto!
Seus pensamentos já se voltavam para Glenross. Uma moça e um mudo
abobalhado não poderiam viajar depressa. Suas pupilas luziram. Logo Inverness
seria sua e ninguém poderia impedir que tomasse a filha do antigo lorde como
esposa. A luxúria da batalha transformou-se numa outra luxúria mais aguda, ao
lembrar-se dela. Sim, Brianna lhe daria belos filhos.
Três guerreiros se espalharam, cada um procurando numa direção diferente.
Brianna conteve o fôlego quando um deles se aproximou do pombal, sua sombra a
surgir pelas frestas do cercado, os passos a se afastar e depois retornar. Ela enfiou a
cabeça para fora da palha, mas Thomas puxou-a para baixo com uma expressão
feroz.
Os cercados eram estreitos e pequenos, com poleiros e nichos para ninhos
de ambos os lados. Thomas fora forçado a manter a cabeça abaixada para caber no
espaço.
De repente, a lâmina de uma espada surgiu por entre as frestas de uma
parede. Depois, de novo, em intervalos, pela extensão do cercado.
Os dedos de Thomas enterraram-se nos ombros de Brian-na num aviso
mudo. Aves assustadas voavam entre gritos de alarme. Penas, poeira e palha
encheram o ar.
A lâmina foi lançada várias outras vezes mais, e então trouxe sangue. O
guerreiro sorriu de satisfação. Abriu a porta do cercado.
A poeira subia dos montes de palha que cobriam o chão. Pássaros voaram
num alto farfalhar. Uma criatura grotesca e deformada levantou-se no canto.
O corpo era torcido e nodoso. Uma corcunda rodeava um ombro. A criatura
o fitou com uma expressão vaga de idiota. Nas mãos, aninhava um falcão prateado.
O guerreiro examinou o feio arremedo de gente. Talvez não fosse humano,
afinal, mas um troll, um daqueles animais tolos e feiosos do submundo, com fedor
de latrina, que traziam infortúnio e desgraça para todos com quem cruzassem.
Chutou o ser, que saiu dali esparramando-se na poeira do pátio. O falcão
escapou e alçou vôo, até que desapareceu. O monstro rolou para longe e se pôs de
pé.
De repente, no entanto, pareceu aumentar de tamanho. O corpo torcido e
deformado transformou-se conforme a criatura ergueu-se à plena altura.
O guerreiro recuou, ao pensar em tais criaturas que mudavam à vontade, e
nos encantos que lançavam ao transformarem homens em pedra e montes de
estrume. Quando o ser avançou, ele deu-lhe as costas e fugiu.
O olhar aguçado de Thomas ergueu-se para o céu. Protegeu a vista do sol ao
marcar o vôo do falcão. Com um resmungo satisfeito, saiu da fortaleza, rastejando
pelo vão escondido na muralha, atrás dos jardins de lady Mirren.
Encontrou Brianna na praia do lago, onde ela sempre brincava quando
criança. Estava ajoelhada no abrigo da velha sorveira-brava. O tremor de seus
ombros denunciava o choro e as lágrimas, e as mãos cerradas revelavam o
sofrimento mudo e a ira.
Ela sentiu-lhe a presença e o amor, e a força que sempre a protegera e guiara.
− Mardigan e seus homens não desistirão da procura. Precisamos partir
depressa para um lugar que seja seguro, onde ele não possa encontrá-la.
Brianna o encarou.
− Não, Thomas. Não irei. Nem me esconderei.
− Mas não pode ficar. Não é seguro. Se Mardigan e seus homens
encontrarem este lugar, não poderei protegê-la.
− Não fugirei! Nem irei me oferecer como uma ovelha para o assassino.
− O que fará então, menina?
− Contra ele.
− Como, senhora?!
Ao olhar para a água escura e calma do lago Ness, Brianna se recordou da
criatura em seu sonho, um guerreiro que tinha a pele escura e carregava a cor do
céu nos olhos. Um poderoso soldado que não temia nada.
− Precisamos persuadir os outros chefes a retornar para o conselho. Juntos
encontraremos um jeito de deter Mardigan. Se fugirmos para as colinas e nos
escondermos, então ele terá nos vencido.
− E Inverness?
Os belos olhos verdes de Brianna escureceram, resolutos.
− Eu sou agora o lorde de Inverness.
Capítulo II

Era meio-dia, debaixo de um céu de chumbo, e o exército normando parara


à beira de uma floresta fechada, não mais que dois dias de distância de Inverness,
para descansar os cavalos.
Tarek al Sharif, comandante do exército por ordem do rei Guilherme da
Inglaterra, esquadrinhou a mata. Sentia uma inquietação que aumentava a cada dia.
As sobrancelhas anguladas, negras como a asa de um corvo, juntaram-se
numa ruga sobre os olhos muito azuis, o legado de sua mãe persa e do feroz
guerreiro nórdico que fizera dele um bastardo.
Meses antes, num lugar chamado Brecon, ao sul de Inverness, ele e seus
homens tinham defrontado um bando de terríveis assaltantes. Muitos poderiam ter
morrido se Tarek não tivesse sido avisado do ataque de antemão por uma bela
criatura que surgira da bruma, quando ele se afastara da guarnição e parara para dar
água ao cavalo, à beira de uma lagoa.
Ela não parecia um ser deste mundo. Seus cabelos eram como ouro torcido,
os olhos tão verdes como os campos das Terras Altas. Surgira num raio de sol em
meio ao nevoeiro, tomara-lhe a mão e o levara até uma passagem entre as rochas
que rodeavam a lagoa. Antes de levar o aviso aos demais homens, ele olhara para
trás para lhe perguntar o nome, mas ela se fora. Tudo que restava era a névoa que
chegava à beira da lagoa e um gracioso cisne que deslizava pela superfície prateada.
Os assaltantes foram derrotados. Os que haviam sobrevivido fugiram para as
colinas. Logo depois, o exército de Guilherme fora chamado de volta a Londres.
Tarek nunca mais tornou a vê-la. A beleza pálida da jovem o assombrava.
Queimava em seu sangue como uma febre e o assaltava naquela hora entre o sono
e a vigília, uma lembrança de sol e bruma que se tornara uma obsessão e que ele
não conseguia esquecer.
Quando o rei, logo depois de coroado, lhe perguntou qual a recompensa que
ele reclamava por sua lealdade, Tarek citou Inverness, no Norte distante.
Guilherme concordou com tão inusitado pedido. Tinha muito a ganhar em contar
com um aliado ao norte, que garantisse a proteção do litoral contra as ambições de
usurpadores estrangeiros.
Lady Vivian, saxã por nascimento e agora conselheira de confiança de
Guilherme, compreendeu as razões de Tarek, pois era dotada dos poderes de uma
feiticeira. Contudo, temia por ele e o puxou de lado, quando teve oportunidade,
para avisá-lo, visto que eram amigos.
− Antevi seu retorno ao Norte numa visão. Há um grande perigo. Receio
por sua vida.
− Levarei o calor de nossa amizade comigo, e talvez um encantamento de
proteção − ele sugeriu, então.
− Você tem a pouca proteção que posso oferecer. Receio que não seja o
suficiente. Tenha cuidado com aqueles em quem confia.
Tarek sentiu o peso daquelas palavras durante toda a viagem, com a
impressão de que olhos invisíveis se mantinham em constante vigilância. Agora,
aquele lugar parecia fechar-se sobre eles com perigos ocultos.
Os cavalos sentiram também. Moviam-se, nervosos, alertas, as orelhas
empinadas para trás e para a frente. A égua árabe sacudiu a cabeça, alarmada.
Tarek virou-se depressa e se viu face a face com um bando de soldados que
saía da floresta e que os rodeava. Pela aparência, eram highlanders, os implacáveis
guerreiros escoceses cujos clãs se distinguiam pelas cores do xadrez que usavam e
marcavam as famílias.
Ao lado dele, Stephen de Valois ia desembainhar a espada. Tarek o impediu.
− Você estaria morto antes de empunhá-la − avisou, num sussurro. Para os
demais homens, gritou: − Parem! Não saquem as armas.
Por vários instantes, ninguém se moveu ou falou. Por fim, um dos highlanders
acenou para o soldado mais jovem a seu lado. Avançaram devagar, mãos nas armas.
Talvez fossem pai e filho, pois a semelhança era grande entre eles.
O guerreiro mais velho dirigiu-se a Tarek:
− Quem lidera esses homens? Tarek deu um passo à frente.
− Eu.
Aquele olhar feroz o examinou e depois se fixou na espada persa de lâmina
curva que ele trazia na sela.
− Está bem longe da fronteira − observou o escocês.
− Fomos enviados pelo rei Guilherme da Inglaterra − Tarek informou,
cauteloso.
− Ultrapassou os limites das terras dos clãs do Norte! − esbravejou o mais
jovem.
− Viemos com uma oferta de proteção para os clãs do Norte.
− Proteção... − caçoou o moço. − É essa a palavra normanda para
carnificina e assassinato?
− Silêncio, rapaz! − o mais velho ordenou, a fuzilá-lo com o olhar. Voltou-se
para Tarek. − Os clãs do Norte não precisam da proteção do duque Guilherme.
Protegemos o que é nosso, nossas famílias e nossa terra. Sem interferência de
ninguém.
− Vimos muitas vilas queimadas e sepulturas abertas há pouco.
− Há sempre desacordo entre os clãs.
− Essas vilas estão em terras de posse do lorde de Inverness − Tarek
insistiu. − E as armas que encontramos não eram dos habitantes das Terras Altas.
Tinham as marcas dos assaltantes estrangeiros.
− E seu rei pretende oferecer proteção contra esses estrangeiros que nos
atacam de surpresa? O Conquistador é benevolente...
− Cale-se, rapaz! Sem sarcasmo! − berrou o mais velho highlander.
Tarek dirigiu-se àquele que falava com autoridade:
− O rei está preocupado com a ameaça de invasão ao Norte. Manda seu
exército para impedir isso. É um assunto que desejo discutir com o lorde de
Inverness. É o senhor?
− Falo por ele em tais assuntos. − Seu olhar se desviou para os cavaleiros e
soldados normandos. − Trouxe um exército de bom tamanho com você.
Tarek sorriu.
− Talvez possamos trocar palavras em vez de sangue − sugeriu.
− Pode ser. Sou Ian. E este rapaz que fala antes de pensar é meu filho,
Malcolm.
− Sou Tarek al Sharif. Vim em paz. − E deu início ao difícil jogo da
diplomacia. − Gostaria de me encontrar com o lorde de Inverness − insistiu.
− O conselho dos chefes irá se reunir em três dias. Você levará não mais que
uma dúzia de seus homens.
− Concordo.
− Em três dias, então.
De maneira tão silenciosa e inesperada como tinham aparecido, Ian e seus
homens desapareceram uma vez mais na floresta.
− Irei atrás dele com alguns soldados! − Stephen exclamou, com veemência,
ao se voltar para o cavalo.
Tarek o impediu.
− Muitos dos nossos morreriam, e esse é um preço que não estou disposto a
pagar. Notou os armamentos que usam?
− Não portam armadura, e suas armas são artesanais e rústicas.
− Nenhuma armadura para pesar ou dar pistas na espessa cobertura da
floresta, Stephen. Eles aparecem e desaparecem como o Siroco, o vento do deserto.
Atacam, matam e somem. Não podemos lutar contra os escoceses e os invasores.
Precisamos dividir e conquistar. Iremos nos reunir com os chefes.
− Dirá a eles que veio reclamar Inverness? Não creio que irão concordar.
Doze homens não serão suficientes para abrir nosso caminho à força para fora de
uma fortaleza bem guarnecida, quando souberem de nosso verdadeiro propósito.
− Não tenho intenção de lutar para sair de lá.
− Como irá convencê-los a desistir de Inverness?
− Eles têm um ponto fraco. Eu o encontrarei. − Tarek saltou para a sela e
pegou as rédeas. − Porém, não vejo razão para retardar esse encontro por três dias.
No entardecer do dia seguinte, Tarek al Sharif e seus homens rodearam a
fortaleza em Inverness.
Capítulo III

Os portões da fortaleza se abriram. Alguns guerreiros escoceses saíram para


encontrá-los. Muitos mais podiam ser vistos ali dentro da fortaleza. Suas armas
estavam sacadas, as expressões, iradas. Tarek correu o olhar pelas ameias.
− Há apenas umas cinco sentinelas nas muralhas. Vejamos como o lorde de
Inverness nos recebe. − E pôs-se a avançar pela fileira de guerreiros que se postava
à entrada.
Alerta a qualquer possível perigo, seu olhar avaliou cada prédio, os
semblantes com que deparava, o reduzido número de pessoas e animais no castelo.
Viu os destroços queimados do cercado de animais, da ferraria e do curtume.
Sentiu o cheiro pungente de fumaça que ainda exalava das ruínas. Mais de um
escocês trazia uma atadura recente.
− Houve problemas aqui − comentou Stephen. − Não faz quatro dias, por
meus cálculos.
Tarek concordou com a cabeça e desmontou diante dos degraus que
conduziam à parte interna da construção. A porta estava aberta, e vários soldados
desceram as escadas para encontrá-los. Um deles se adiantou. Era Ian, o escocês
que encontraram na floresta, na véspera.
Havia um ar de desaprovação nos olhos do guerreiro.
− O acordo era de nos reunirmos em três dias, Al Sharif. Além disso, trouxe
mais que doze homens consigo. − Ian apontou para aqueles que estavam fora dos
portões. − Assumiu um grande risco vindo antes da data marcada. Poderia ter sido
abatido nos portões.
− Ou seus homens aqui dentro. Quanto aos termos do acordo, eu trouxe
dez soldados comigo para dentro das muralhas de Inverness. No que se refere ao
prazo combinado, foram suas palavras, não as minhas. Não vi razão para atraso,
sendo que poderíamos alcançar Inverness em um dia. E a floresta me pareceu um
lugar adequado para um ataque.
Ian resmungou.
− Você é um homem que escolhe as palavras com cuidado, e estuda as
palavras dos outros com mais cuidado ainda.
− Palavras podem ser perigosas como armas. Aprendi a usá-las com
prudência.
O escocês assentiu.
− Irei me recordar disso da próxima vez, Tarek al Sharif. Um nome estranho
esse... Persa, eu diria. É um lugar quente a Pérsia, ouvi dizer.
− Muito mais do que esta sua terra fria.
− A maioria dos que vêm para cá acha a terra inóspita e não fica.
Apesar de toda a aparência de bárbaro, Ian era astuto e sagaz como uma
raposa.
− Exceto por Mardigan e seus assaltantes − retrucou Tarek.
Os olhos da velha raposa se estreitaram. Não disse nada, mas voltou-se e fez
um gesto para que Tarek e seus homens o seguissem.
O salão era todo de pedra e madeira. Diversas mesas longas tinham sido
arrumadas no centro para a refeição da noite. Uma delas fora colocada
perpendicular às outras. O chão, coberto com palha fresca, exalava um odor
pungente.
Criadas apareceram, trazendo travessas cheias de comida simples. Várias
mostravam marcas na face, no queixo ou um olho inchado. Os escoceses ali
reunidos eram de vários clãs, cada um liderado por um chefe por direito de
nascença.
Tarek sentiu que alguma coisa estava errada. Entre os guerreiros, notou
ferimentos recentes.
− Houve problemas aqui − Stephen disse. Tarek fez que sim.
− O piso está coberto com palha fresca, e as paredes foram esfregadas com
barrela, mesmo no meio de tanto frio. Muitos homens morreram aqui. O cheiro de
morte ainda se agarra ao ar como num campo de batalha.
Os chefes sentaram-se à mesa de cabeceira. Ian acomodou-se no meio, com
seu filho, Malcolm, à direita. Os demais foram para outras mesas, bastante
desconfiados.
− Antes de conversar, comeremos e beberemos.
− Agradeço por sua hospitalidade, Ian de Inverness, porém meus homens
caçaram na floresta − desculpou-se Tarek.
− Nesse caso, beberá conosco − insistiu Ian. − Seria um insulto recusar.
As canecas de metal foram cheias pelas criadas. Uma delas foi estendida a
Tarek.
Ele não gostava das amargas cervejas inglesas, porém aquela parecia uma
bebida diferente. Compreendia o desafio que era feito com tal oferecimento. Um
homem prudente poderia se recusar a beber com os highlanders. Um homem sábio,
não. Aceitou o oferecimento, levou a caneca aos lábios e virou-a.
O líquido cor de âmbar desceu suave e doce. Em seguida, transformou-se
em fogo. Queimou-lhe a garganta e explodiu num inferno em seu estômago, que
lhe roubou o ar e lhe encheu de lágrimas os olhos.
O velho escocês sorriu. Em torno, os outros observavam com sorrisos de
soslaio.
− Gostou? Aquece a barriga, não?
− Aquece... − Tarek, com voz rouca, pronunciou a única palavra que
conseguiu.
Se era veneno, tinha um efeito muito diferente de qualquer um que ele
conhecia. O fogo se espalhou com um calor radiante por suas pernas e seus braços.
Os lábios formigavam, a garganta se apertou, e tudo no salão pareceu envolto em
suave neblina. Tarek baixou a caneca, ciente de que todos os highlanders o
observavam.
− É uma ótima bebida. − Olhou para Ian, e viu em seu semblante uma
admiração relutante.
− Existem poucos que entornam tudo como você fez e permanecem de pé.
É um homem confiante e talvez mais tolo do que pensa.
− Não. Apenas dei ordens a meus homens para matar você e seu filho se eu
não sobrevivesse.
− Por Deus! − Malcolm enfureceu-se. − Não vou suportar isso! Ele aceita
nossa hospitalidade e depois nos insulta!
− Nisso estamos empatados! − afirmou Tarek, tentando organizar os
pensamentos confusos.
Ian, sem fitar Malcolm, ordenou:
− Sente-se e baixe sua arma, rapaz! Ou saia do salão! Malcolm não saiu, nem
se sentou. Postou-se atrás do pai numa atitude desafiadora, braços cruzados no
peito, o olhar pregado em Tarek al Sharif.
Brianna observava o confronto, das sombras onde se escondera, no mesmo
lugar onde ouvira as exigências de Mardigan. Thomas estava a seu lado.
Aquele bárbaro de nome estranho tinha a postura de um guerreiro, porém
não se vestia como os cavaleiros normandos, com armadura de cota de malhas.
Não usava proteção alguma. Sua túnica era de couro macio, presa na cintura com
um cinto, e usava uma camisa de linho de um corte incomum, com mangas largas,
calções de couro e botas altas. A espada que carregava era estreita na base, larga na
ponta e curva como um terrível sorriso da morte à luz das tochas. Seus cabelos
eram negros e caíam pelos ombros em ondas espessas e sedosas. A barba de vários
dias lhe escurecia as faces e o ângulo do queixo forte. Ela não podia ver mais do
lugar onde estava.
− Agora, conversaremos sobre o que traz o exército normando sem ser
convidado a nosso país − disse Ian, perante o conselho.
− Você não é o lorde de Inverness − relembrou-o Tarek.
− O conselho toma decisões concernentes aos clãs! − Ian esbravejou. −
Qualquer coisa que queira dizer ao lorde, pode falar aqui, e isso será posto sob
avaliação pelo conselho inteiro.
− As palavras do rei são para o lorde de Inverness. Não as passarei para
nenhum outro.
A tensão perpassou pelo salão enquanto os dois guerreiros se confrontavam.
Brianna viu a desconfiança e a suspeita se espalharem conforme escoceses e
normandos pegavam suas armas. Se ela não os impedisse, o sangue iria de novo
manchar as paredes do castelo.
Thomas tentou contê-la, mas ela saiu de seu esconderijo e seguiu até o
centro do salão, postando-se diante da mesa do conselho.
− Então deve falar comigo − anunciou, numa voz firme e clara.
Cada olhar no recinto se dirigiu a ela. Porém, na oscilante luz das tochas,
Brianna só viu um, de um azul estarrecedor, por baixo de negras sobrancelhas
juntas numa ruga, quando Tarek al Sharif se voltou ao ouvi-la.
Brianna sentiu a garganta ressecar-se. O ar ficou retido nos pulmões
congelados.
Ele era alto, de compleição poderosa, e se movia com a graça ágil e o poder
de um animal flexível. Como uma criatura da noite, que saltava as ameias, seu pêlo
a luzir na bruma: a criatura de seus sonhos.
E ela o conhecia.
Meses atrás, Brianna se aproximara de um homem numa lagoa distante, ao se
esquivar de um bando de invasores. Eles decerto o teriam matado se ela não o
ajudasse a escapar. Agora, aquele homem voltava, com exigências do rei inglês.
Exigências para com o lorde de Inverness.
Tarek se aproximou dela.
Os olhos da jovem eram escuros como as sombras da floresta no pálido oval
da face, a pele branca de cetim. Tinha as mãos fechadas com firmeza, como se
segurasse alguma arma invisível. Usava um vestido de lã de um cinza pálido que
chegava até os pés. Seus cabelos estavam presos numa trança de ouro acetinado
que lhe caía sobre o ombro e chegava até a cintura. Prata e ouro. Como o raio de
sol e a névoa. Mais que uma lembrança, mais que um murmúrio, era aquela jovem
quem assombrava os sonhos de Tarek.
Percebeu que ela também se recordava daquele primeiro encontro.
− Você é o lorde de Inverness? − perguntou, ao se aproximar tanto que
poderia tocá-la.
− O lorde está morto. Sou sua filha − Brianna explicou, naquela entonação
macia, o queixo erguido, orgulhoso, as costas eretas. − Eu agora tomo as decisões
em todas as questões que dizem respeito a Inverness. Por que o rei inglês mandou
cavaleiros armados e guerreiros para o Norte? − indagou, com toda a altivez de um
chefe.
− Têm havido mais ataques dos invasores ao Norte. Sua Majestade está
ciente de que os clãs daqui sofreram grandes perdas, e oferece sua proteção contra
esses inimigos estrangeiros. − Tarek viu a surpresa no rosto dela, seguida de dúvida
e desconfiança. − Inverness é distante de Londres, e difícil de defender. O rei
oferece proteção por uma aliança.
− Uma aliança? − intrometeu-se Malcolm, incrédulo. -− Guilherme da
Normandia não faz alianças, toma o que quer. É chamado o Conquistador por uma
boa razão.
− O rei oferece uma aliança − Tarek repetiu, com toda a calma, por entre os
resmungos zangados dos escoceses. − De mútuo benefício.
− Que mútuo benefício o rei propõe? − Brianna quis saber.
− A força do exército normando combinada com a dos clãs do Norte para
expulsar os invasores.
− Com um exército aqui, o que impediria o Conquistador de tomar a
Escócia inteira? − Malcolm fez um esgar.
− Se Guilherme quisesse tomar a Escócia, isso já teria sido feito. − Tarek
meneou a cabeça. − Porém, Sua Majestade não ambiciona a Escócia. Apenas a
proteção do litoral norte contra outros que poderiam ameaçar o trono de
Inglaterra.
− Que garantias temos da verdade dessa aliança proposta? − questionou
Malcolm.
− Têm minha palavra e o lacre real nos documentos que trago.
− Nada é dado de graça. − Ian encarou-o. − O que seu rei pede em troca da
proteção? Aquele que se autodenomina Guilherme, o Conquistador, não é alguém
de dar alguma coisa em troca de nada. O que quer?
Uma mal disfarçada hostilidade e tensão encheu o ambiente, com os
escoceses no aguardo da resposta.
Tarek voltou-se para Brianna. Seus olhos se estreitaram. Estava confiante.
Encontrara a fraqueza que procurava na dor que via no semblante da jovem.
Então, com frieza e um ar implacável, disse os termos:
− Você.
O salão irrompeu em violentos protestos. Stephen postou-se diante de
Malcolm quando ele sacou a espada.
− Você está louco! − ela murmurou.
Tarek sentiu o choque e o ultraje que a perpassavam. Viu a raiva naquele
luzir em suas pupilas. Aproximou-se, como um caçador encurralando a presa.
− O que pede é impossível, Tarek al Sharif. Os chefes jamais aceitariam o
casamento como uma condição para uma aliança. Você e seus homens serão
mortos.
− Pode ser. Porém, mais duzentos de meus soldados aguardam meu retorno.
Se eu não voltar, Inverness será incendiada.
− Você não é diferente de Mardigan! − Os olhos dela se encheram de
lágrimas.
− Prefere uma aliança com os invasores, com o sangue de seu pai ainda
manchando a terra debaixo de seus pés?
Brianna angustiou-se. Se não concordasse com os termos, os chefes e os
membros dos clãs e todos os que ficassem dentro de Inverness seriam assassinados.
Tarek oferecia uma aliança, porém mantinha seu povo como refém, a menos que
ela aceitasse. Se decidisse se recusar, haveria mais sangue e morte.
− Preciso de tempo para pensar.
− Terei sua resposta agora.
Brianna cerrou as pálpebras, procurando forças e fazendo uma prece. Mas só
via sangue e destruição. Quando as abriu, as imagens terríveis continuaram a
assombrá-la. Fez a única escolha que tinha.
Numa voz soturna que lhe ardeu na garganta, disse:
− Aceito.
− Então, chame seu padre, pois estaremos casados amanhã. O olhar furioso
de Ian encontrou o dele.
− É impossível! Há muito a ser feito antes que os votos sejam pronunciados.
Imagino que não pretenda desonrar milady desse jeito diante de seu próprio povo.
− Eu a desposarei, Ian de Inverness. Com isso, eu a honro acima de todas as
outras. Chamem o padre. O juramento será feito, ou ela irá para minha cama sem
eles. − Então, voltando-se para Brianna, enquanto seus homens se reuniam em
torno dele, avisou: − Nem sonhe em escapar, pois eu a encontrarei. E depois porei
abaixo o que restar de Inverness.
Capítulo IV

Brianna adivinhou a presença de Thomas antes que o painel da parede se


abrisse e ela sentisse o súbito golpe de ar frio que invadiu o quarto.
Olhou ansiosa para a porta aberta. Fora destruída, despedaçada pelos
homens de Mardigan. Uma pesada tapeçaria se achava presa na abertura para lhe
dar privacidade. Um guarda normando se postara do outro lado durante toda noite.
Ninguém tinha permissão de entrar ali, nem ela poderia sair. Era uma
prisioneira em sua própria casa.
Thomas fora forçado a usar a passagem secreta, pois toda Inverness estava
tomada de soldados normandos.
− Você deve tentar escapar! O caminho está livre. Brianna temeu que o
guarda pudesse ter ouvido o ranger da pedra. Mas ninguém entrou. Os
pensamentos de medo ligaram-se a Thomas.
− O que você fez?
− O guarda na passagem não nos incomodará, patroa.
− Você o matou?
− Ele dorme com uma poção especial que a cozinheira preparou. − Thomas
franziu a testa e deu de ombros. − Ela não tinha o suficiente para todo o exército
normando.
Brianna pousou a mão terna no braço forte que a protegera desde que era
criança.
− Não posso. Não fugirei da promessa que fiz. Se o fizer, porei em perigo
meu povo.
− Esse não é seu destino! Seu pai jamais permitiria tal coisa.
− Ele mesmo falava da necessidade de uma aliança. Thomas, meu querido
amigo e guardião. Inverness cairá sob Mardigan se essa aliança não for feita. E cairá
sob os normandos, se eu fugir. − Meneou a cabeça, desolada. − Não tenho escolha.
Brianna sentiu o desespero do amigo diante daquele problema do qual não
podia salvá-la.
− Matarei esse a quem chamam Tarek. Os soldados nor-mandos partirão se
seu líder for assassinado.
− E voltarão centuplicados para matar cada homem, mulher e criança de
Inverness, junto com todos os do clã. Não. Não há outro jeito.
Sons vieram do outro lado da tapeçaria pendurada sob a abertura da porta.
Vários guardas aproximavam-se. Tinham vindo buscá-la.
Brianna olhou para a janela. Era de manhã. As primeiras luzes.
O olhar de Thomas seguiu o dela.
− Ainda há tempo, milady. Por favor, não ceda à exigência dele!
− Não arriscarei a vida de meu povo, Thomas. Vá agora − murmurou, aflita.
− Eles não podem encontrá-lo aqui.
Thomas soube que Brianna não poderia ser persuadida e concordou. A
pedra voltou ao lugar no exato momento em que Gavin de Marte puxava a
tapeçaria e entrava no aposento.
Brianna sentiu-lhe o peso do olhar quando o jovem examinou-lhe o vestido,
o mesmo que ela usava na véspera. Havia um vestido mais fino dobrado no baú,
mas Brianna se recusava a colocá-lo. Não via razão. Afinal, seria conduzida como
uma prisioneira em seu próprio casamento. Não tinha razão alguma para celebrar.
Sua única concessão foi um manto de lã que pendia de seu ombro, preso
com um ramo de urze seca. Era lindo, em tons de negro, azul e verde-floresta, com
uma tira branca." As cores de sua família.
Poderia ser uma prisioneira, forçada a se casar; porém não envergonharia seu
povo ou os outros chefes parecendo-se com uma. Concordara com a aliança. Tudo
suportaria pelo bem e pelo orgulho de sua gente.
− Deve usar isto. − Gavin colocou um pacote dobrado de veludo preto
sobre a mesa. Ao desdobrá-lo, revelou uma enorme e reluzente esmeralda numa
corrente de ouro.
Brianna ficou estupefata. Era uma pedra notável, exótica e diferente de
qualquer coisa que já vira. Que homem era aquele, que forçava uma mulher ao
casamento e depois dava-lhe um presente sem preço?
− Pode devolver.
− Milorde pede-lhe que use − Gavin explicou. − Tem um grande significado
para ele.
− Não tem nenhum para mim. Seu lorde não me tem afeição, nem eu por
ele. Fiz um acordo para garantir a segurança de meu povo. Nada mais. Não
aceitarei, portanto.
Gavin franziu a testa e envolveu a esmeralda no veludo.
− É hora, milady.
Desolada, os dedos entrelaçados, Brianna concordou e seguiu-o para fora do
quarto.
Cullum mandara construir uma pequena capela em Inverness. Brianna fora
batizada ali. Agora, estava cheia de soldados armados e cavaleiros normandos que
se amontoavam na entrada e se alinhavam na passagem do lado de fora até o salão.
Pai do céu..., ela pensou, a incerteza a se transformar em um medo tal que
lhe apertou a garganta e fechou-se como uma garra gelada em seu coração. Tomara
a decisão certa?
Tudo estava pronto quando ela entrou na capela. Os chefes se postavam no
centro. Atrás deles e alinhados nas paredes, cavaleiros e soldados normandos.
Malcolm, inquieto e teimoso, ficava perto do altar, a mão fechada com força
no cabo de seu machado de guerra, com uma ira assassina no olhar.
Conforme observava a pequena procissão conduzida por Gavin de Marte
entrar na capela, Stephen de Valois tentou mais uma vez convencer Tarek a desistir:
− Isso é loucura! Perdeu a razão? Não é necessário casar-se com a moça. Os
escoceses serão obrigados a aceitar o acordo quando você reclamar seus direitos
sobre Inverness.
Tarek tinha certeza de que todos ali lutariam e morreriam até o último
homem se Brianna de Inverness de repente declarasse que não honraria a aliança
conforme os termos que ele impusera.
Compreendia a confusão de Stephen, porém ele via no pacto os meios de ter
o que queria, e muito mais. Não perdera o senso.
− É justo por esse motivo que me casarei com a lady. Essa gente não será
curvada pela espada. Mas os votos de casamento pronunciados diante de seu Deus
cristão não são quebrados com facilidade. A moça deu seu consentimento. − Sua
boca apertou-se, numa linha dura. − Concordo quando você diz que quero essa
jovem. Eu a quero como a nenhuma outra. Brianna é um prêmio a ser valorizado e
protegido, pois, nos votos, existe um laço de promessa e de sangue. Não me
deitarei com ela para correr o risco de ter um filho que me despreze por fazer dele
um bastardo.
Ambos entendiam bem essa sorte.
Tarek viu Brianna, que passava pelas sombras da soleira da capela, escoltada
por Gavin de Marte.
Franziu a testa. Ela usava o mesmo vestido da noite anterior e nenhum
adorno. Estava como naquele dia, meses atrás, quando pela primeira vez a
encontrara, entre a bruma fria e os raios de sol.
Não usava a esmeralda de Anshala, a jóia rara passada por gerações pela
família da mãe de Tarek. Isso não o surpreendeu. Embora suas maneiras fossem
calmas, resignadas com a decisão que tomara, ele sentia emoções bem diferentes
debaixo da tranqüila fachada de Brianna.
Na véspera, ele tivera um relance dessas emoções no semblante dela: dor
pela perda dos pais e tantos parentes, raiva diante da escolha que ele impunha e que
não era de forma alguma uma escolha; porém, mais do que tudo, coragem e
desafio.
Gavin aproximou-se com Brianna a seu lado. Quando estendeu o veludo
dobrado com a esmeralda de Anshala dentro, Brianna encarou Tarek.
− Tragam o padre − ele disse, com secura. Brianna voltou-se quando a porta
ao lado do altar simples se abriu. O padre Cadmon entrou. Era um cisco de
homem, de ombros curvados como se carregasse o peso do mundo. Após o ataque,
trabalhara sem cessar para consagrar os túmulos e consolar os vivos. Contudo,
naquele momento, ao adentrar a capela, endireitou os ombros, empertigou-se e
fitou os cavaleiros e soldados normandos que montavam guarda.
− Como se atreve a trazer homens armados para este lugar de veneração?!
Mande que todos saiam!
− Se eu mandá-los sair, os escoceses sairão também − retrucou Tarek.
− Que assim seja. Não terei armas de guerra neste lugar sagrado.
− Assim será. Comece a cerimônia − Tarek pediu. − Não haverá mais
interrupções.
A mão de Brianna descansou sobre a de Tarek durante o pronunciamento
dos votos em latim. O padre Cadmon ofereceu sua bênção, relutante, as palavras a
ecoarem no tenso silêncio que reinava.
− Irá terminar do modo antigo, com a entrega do manto, milady? − ele quis
saber.
Brianna não pensara naquele ritual, um gesto ainda mais significativo para
sua gente que todas aquelas palavras em latim. Simbolizava sua união com aquele
homem. Entre os highlanders era uma ligação mais forte do que tudo.
Tornou a olhar para Tarek, parecendo uma rainha, e estendeu a ele o manto
de lã.
Tarek estava familiarizado com tais costumes, baseados na honra e na
tradição. Aquele simbolizava que Brianna se colocava sob seus cuidados e proteção.
E, por meio dela, o povo de Inverness.
Ele a forçara a aceitar aquela união. Porém, não a obrigara a oferecer o
manto com o simbolismo que carregava. Tarek segurou firme o manto fino de lã
macia.
− Honrarei meu juramento a você e a seu povo, milady. Agora, seremos
ligados de acordo com as leis do Islã. − E tomou-lhe a outra mão na sua e, com
gentileza, a fez se ajoelhar, ficando os dois de frente um para o outro.
Quando Tarek tirou um pequeno punhal do cinto, Malcolm e meia dúzia de
escoceses se aproximaram, atentos. Thomas postou-se atrás de Brianna.
Ian interpôs-se entre o filho e os soldados normandos.
− Comece sua cerimônia bárbara e acabemos logo com isso.
Quando os ânimos se acalmaram, Tarek começou o ritual.
Não havia nenhum homem santo para dizer as preces do Islã, e portanto ele
mesmo o fez. Pegou a grossa trança dos cabelos de Brianna e, quando ergueu o
punhal, viu o medo nublar aqueles olhos verdes, e ela respirou fundo. Encarou-o,
cheia de cautela.
Com um rápido gesto do pulso, Tarek correu a lâmina pela trança.
Brianna encolheu-se, mas não deixou escapar um único som. A pulsação em
sua garganta parecia a de uma corça assustada confrontada com o caçador. Então,
ao relancear o olhar, descobriu com surpresa que não era a trança cortada que
Tarek segurava, porém o simples cordão de couro que a prendia.
Livres, seus cabelos espalharam-se sobre seus ombros como uma cascata
dourada. Ele tomou-lhe a mão direita na dele.
O contato a surpreendeu. Era suave, como se ela fosse de vidro raro, o calor
a envolver-lhe os dedos gelados, a deixá-la espantada com a inesperada ternura.
Quando Tarek falou, foi de forma mais íntima, como se apenas os dois
estivessem na capela, e não rodeados com centenas de homens armados.
− Entre o povo de minha mãe, quando um homem e uma mulher querem se
unir, essa união é simbolizada por um cordão de couro enrolado em torno de suas
mãos juntas.
Ela observou, com cautela e fascinação, seu marido torcer a corda de couro
em torno das mãos unidas num padrão preciso e específico, e continuou a explicar:
− O cordão é primeiro cruzado nesta direção como um símbolo de nossas
vidas unidas. − Puxou-o por trás das costas da mão entre o polegar e o indicador,
passando pela dela.
Então, passou a outra ponta sobre a primeira, torcendo-a, entre o dedo
médio e o anular.
− Isto simboliza nossos corações unidos.
A seguir, trouxe ambas as pontas sobre as palmas, enrolou-as, uma em cada
pulso, e as torceu na primeira volta, num padrão sem fim.
− Isso simboliza nossas almas unidas. De todas as maneiras, Brianna,
seremos como um só. Uma vida, um coração, uma alma, por toda a eternidade.
Passou a falar os votos num idioma desconhecido para ela. Era muito
diferente do latim, cheio de sutis nuances e inflexões, como se a voz acariciasse
cada palavra. Então seu olhar encontrou o dela por sobre as mãos unidas, ligadas
apenas pelo cordão frouxo de couro.
− Eu não entendi o que disse.
− Com o tempo, eu lhe ensinarei, Brianna. De muitas maneiras, o que falei é
parecido com o juramento que acabamos de pronunciar, uma união em qualquer
língua.
Brianna sentiu como se ele pudesse enxergar dentro dela.
Tarek abriu a mão, soltando a dela com carinho e ternura.
Um burburinho se ergueu, e as portas fechadas abriram-se de repente.
Robert de Mortain, a quem Tarek confiara o comando do exército acampado fora
dos portões de Inverness, entrou com passos rápidos. Trazia nos braços um fardo
embrulhado num manto. Ao chegar ao altar, abriu-o, revelando a face
ensangüentada de um rapazinho.
− Duncan Ross! − gritou Brianna, ao reconhecer o garoto, os cabelos
grudados de um ferimento que sangrava muito, o lado da face quase irreconhecível
por uma brutal contusão que ia do queixo até a têmpora e lhe fechava um olho. −
Coloque-o no chão.
O cavaleiro a obedeceu.
− Tragam água quente e panos limpos − ela ordenou. O jovem Duncan
encolheu-se ao toque das mãos geladas de Brianna em sua testa. Seus olhos
estavam vidrados de febre que fazia tremer seu corpo miúdo.
− Lady Brianna? Preciso falar com o lorde. Atacantes... em Glenross.
Por sobre o corpo febril do menino, Brianna encarou Malcolm, quando ele
se ajoelhou ao lado. Malcolm soltou uma praga. Mas foi o novo lorde de Inverness
que se ergueu depressa e moveu-se com ar de comando.
− Diga aos homens para ficarem de prontidão − Tarek se dirigiu a Stephen
de Valois.
− Foi Mardigan! − exclamou Brianna, as palavras a lhe doerem na garganta.
Pensou na irmã de Mirren, em sua prima Gillie e na família, e tantos do clã
Ross que viviam na vila.
Aquele era um lugar remoto e pequeno, sem importância estratégica. Nem
era rico em comércio como outras cidades mais próximas. O povo vivia da terra.
− A que distância fica Glenross? − Tarek quis saber.
− Dois dias ao norte, pelas charnecas − Malcolm informou.
− A pé?
− Sim.
− Sendo assim, chegaremos em pouco mais de um dia a cavalo. − Tarek
voltou-se e deu ordens a Mortain. − Metade dos homens devem ficar prontos para
rumar para o norte neste instante. A outra metade deve ficar aqui.
Mortain franziu a testa.
− Acha prudente dividir nossas forças?
A resposta foi para Mortain, porém o olhar de Tarek se cravava em Brianna.
− Penso que seria imprudente deixar desguarnecido o verdadeiro prêmio que
Mardigan procura. − Então, virou-se para Malcolm, com confiança e autoridade. −
Meus homens precisarão de comida para cavalgar para o norte.
Por instantes houve apenas silêncio. Então, embora tenso, Malcolm
concordou.
− Os meus também. Providenciarei isso.
− A pé vocês irão nos retardar, Malcolm. Se esses atacantes devem ser
pegos, isso deve ser feito logo, antes que desapareçam de novo. Sua força terá
melhor uso defendendo Inverness.
Era uma lógica que não poderia ser contestada.
− Sendo assim, meus homens ficarão no castelo. Porém, eu e meia dúzia de
meus soldados cavalgaremos a seu lado. Precisará de alguém para mostrar o
caminho pelas charnecas ou jamais chegará a Glenross, Tarek al Sharif.
O olhar de Tarek estreitou-se, apreciando aquela iniciativa.
− Apronte-se para partir.
− Irei junto. − Brianna ficou de pé.
− É muito perigoso. Você ficará em Inverness.
− Glenross era terra de minha mãe. O povo da vila contava com ela para
protegê-los. Agora essa responsabilidade recai sobre mim. Não ficarei sentada,
esperando notícias, quando existem aqueles que necessitam de minha ajuda.
Acima de tudo, Tarek compreendia a lealdade. E também sabia que isso se
conquistava, não se tomava. Teria de ganhar a dela.
− Você ficará em Inverness. − E enlaçou a mão na dela. Discutir era inútil.
− Deixem Thomas ir com vocês, então. − Brianna pousou os dedos no
braço de Tarek. − Ele é um guerreiro forte. O povo de Glenross o conhece e
confia nele. Poderá ajudá-lo.
− Thomas será mais útil para mim se ficar aqui, Brianna. Dessa maneira,
terei certeza de sua segurança.
− Estarei bem segura, milorde. O povo de Glenross precisará muito mais
dele.
− Minha decisão é final. Thomas ficará em Inverness. − Então, voltou-se
para Stephen de Valois, que se aproximava.
− Tudo pronto, milorde − Stephen anunciou. Tarek fez um gesto de
assentimento.
− Dê a ordem. Partiremos agora mesmo para Glenross.
Sob um céu sombrio, Brianna postou-se nas ameias, enquanto a longa coluna
de cavaleiros e guerreiros muito bem armados passava pelos portões de Inverness.
Thomas saíra da vila, montado no cavalo do padre Cadmon. Ele conhecia as
Terras Altas melhor que qualquer homem. Com as bênçãos de Deus e clima bom, e
sem uma pesada armadura para cansar o cavalo, Thomas chegaria fácil a Glenross
horas antes da coluna, mais lenta. O tempo era precioso.
Continuaria pela noite, a pé, puxando o cavalo quando o animal ficasse
muito cansado para carregá-lo pelo caminho sinistro que também o guiara para
Inverness tantos anos atrás, com uma criança de faces rosadas e cabelos dourados,
em busca de uma família.
E Brianna estaria esperando por ele.
A névoa se espalhou pelas ameias da muralha. Revolveu-se numa onda
prateada e sedosa, enovelou-se aos pés de Brianna e depois, aos poucos, subiu.
Ela experimentou seu hálito frio, e palavras estranhas e antigas, as primeiras
que ouvira quando menina, foram murmuradas dentro dela, emergindo daquele
espaço de lembranças e sonhos perdidos.
Seus olhos se fecharam, as frases a se tornar seus próprios pensamentos.
Ouvia-as na alma e as sentia no sangue. A bruma envolveu-a num ninho sedoso,
fechando-a dentro de si mesma, até que pareceu que ela cessara de existir.
O tempo não existia. Brianna deixou a crisálida de neblina e avançou para
um distante ponto de luz.
Viu que algo, devagar, tomava forma: um corpo esguio e prateado, de bico
agudo, presas mortais, fulgurantes olhos dourados e asas poderosas, que estendeu e
bateu num poderoso golpe de vento.
Brianna julgou-se arrancada da própria carne, o ar, expulso dos pulmões,
como se os momentos de sua morte e nascimento se tivessem tornado unos. Sua
vida terminara e começava.
A dor era intensa. Gritou. Então, de repente, estava livre. Imergiu na luz. A
bruma recuou das muralhas e o vento soprou.
Transformado, o flexível falcão lançou-se dali. Rumou para o norte sobre os
picos das montanhas nevadas, enquanto lá embaixo a coluna de cavaleiros
normandos e guerreiros escoceses cavalgava para Glenross.
Uma fumaça espessa espiralava da fogueira onde um leitão era assado no
espeto. Os homens se reuniam ao lado do fogo, a conversa pontuada de
comentários chulos, discussões e risadas.
Um único guerreiro sentava-se à parte, os olhos azuis estreitados de raiva.
− Que notícias tem? − perguntou a um de seus liderados que acabara de
chegar. − Lady Brianna foi encontrada entre o pessoal da vila?
− A filha do lorde não estava em Glenross − disse o recém-chegado,
hesitante.
− Informaram que ela estaria lá. Você irá encontrá-la! − Mardigan
esbravejou, ao caminhar na direção da fogueira, os passos controlados, os punhos
fechados dos lados. − Brianna escapou em Inverness. Não escapará de novo. Você
a procurará pelos arredores até que seja encontrada. Não volte sem ela!
Uma expressão cruel torceu-lhe os lábios. As íris, azuis como o céu,
reluziram com uma fria brutalidade. E inquietação. Não gostava daquela floresta
com as pedras de pé, de forma inusitada, esculpidas com estranhas imagens, e dos
rostos fantasmagóricos entalhados nos troncos das árvores, sempre parecendo estar
a observá-los. Queria ir embora dali, cumprir seus planos para Inverness.
Em breve, decidiu. Logo teria o que queria. Brianna de Inverness não
poderia se esconder para sempre.
Um grito repentino ecoou pelo acampamento. Um dos homens voltara, e
puxava uma mulher atrás de si. Foi arrastada pelo chão até os pés de Mardigan.
Tinha os seios cheios e redondos que saltavam acima do decote de seu
corpete, uma cintura fina e quadris largos e curvados. Uma moça de pele clara e
bonitas feições. Porém, os cabelos eram da cor do mogno escuro, e os olhos que o
encaravam não eram de um verde brilhante, mas castanhos.
Seu captor a forçou a ficar de pé.
− Tire suas mãos de mim, seu porco sujo! − berrou, cuspindo no viking.
E foi atingida com um soco no lado da cabeça. Gillie logo se recuperou e se
lançou sobre o captor, as mãos atadas com as unhas em garra, gritando mais pragas
sobre ele.
− Pare! − Mardigan ordenou.
O acampamento caiu em silêncio. O olhar furioso de Mardigan desviou-se
da mulher para o guerreiro.
− Onde a encontrou? − quis saber.
− Não longe daqui.
− Deixem-nos a sós!
Em seguida, Mardigan rodeou a cativa.
− Onde está lady Brianna?
Gillie esfregou a pele machucada do rosto.
− Eu falei ao idiota. Ela não está em Glenross!
− Mas não foi encontrada em Inverness. A vila faz parte de seu domínio.
Decerto viria para cá.
− Não a vi nesses últimos dias desde o ataque a Inverness! Juro!
Mardigan encarou-a com uma expressão perigosa. O ouro dos braceletes de
seu pulso luziu perante o fogo quando ele estendeu o braço e agarrou o tecido do
corpete de Gillie, abrindo-o.
− Se estiver mentindo...
− Não é mentira! O que digo é verdade!
A mão dura e cheia de calos se apossou do seio nu, apertando e machucando
a carne tenra. Gillie foi agarrada e arrastada até uma daquelas pedras altas, como
um sacrifício oferecido aos deuses antigos.
Mardigan comprimiu-a contra a pedra. Então, levantou-lhe a barra do
vestido. Nas coxas nuas, ela sentiu o súbito e cruel aperto daqueles dedos.
O rubor tingiu-lhe o rosto quando os homens se reuniram em torno para
observar, entre risadas e ditos obscenos.
Gillie esmurrou Mardigan com os punhos amarrados, na cabeça e nos
ombros, apenas para arrancar mais gargalhadas e berros de encorajamento. Cuspiu
nele. Se tivesse um punhal, teria matado Mardigan. Nesse momento, ele enterrou os
dedos dentro dela.
Seu corpo teve um espasmo e retesou-se com a súbita invasão. O ar fugiu-
lhe dos pulmões. Os ombros de Mardigan comprimiam os dela, conforme ele
enfiava os dedos dentro dela de novo, soltando os laços da calça com a outra mão.
Sem demora, penetrou-a de fato, tomando posse de Gillie, que cerrou as pálpebras.
Quando ele terminou, demorou-se dentro dela por um momento, o hálito
quente a lhe queimar o pescoço. Afastou-se e ajustou a frente da calça. Gillie
abaixou a saia. Sentiu que ele a observava. Um dos homens adiantou-se.
− Fora! − Mardigan grunhiu, furioso, para o guerreiro, tomou Gillie pelo
braço e levou-a consigo.
Gillie ficou aliviada ao perceber que, por enquanto, estava a salvo do resto
dos soldados. Mesmo que seu estômago se revirasse com a sensação daquela carne
dura dentro de si, contar com Mardigan era uma vantagem.
Capítulo V

Ávila de Glenross ficava na fronteira norte dos domínios de Cullum, num


vale remoto. Envolta pela névoa matinal, parecia muda, nenhum som se ouvia que
viesse de lá. Um silêncio tenebroso pairava na atmosfera fria, impregnada com o
cheiro da morte. Corvos alinhavam-se nos beirais das residências, aves de rapina
circulavam no alto.
O ataque fora à noite. As portas das casas tinham sido destruídas. Os
homens, derrubados a machadadas, mulheres e crianças, assassinadas com igual
crueldade, inclusive os bebês em seus berços. As moças pareciam ter sumido. Sem
dúvida foram carregadas e brutalizadas de formas piores que a morte.
Não restara ninguém vivo? Brianna foi de cabana em cabana e encontrou
apenas mais infelicidade.
Então, ao entrar em mais uma, ouviu um choro abafado. Sob as tábuas
queimadas do chão, a luz da cabana incidia sobre as feições apavoradas de uma
jovem.
− Lady Brianna?
− Anne Simm − disse, incrédula.
− Sou eu. Dê-me sua mão.
Anne saiu do porão e estendeu o filho a Brianna.
− O bebê nasceu cinco dias atrás. Eles chegaram após o escurecer. De
surpresa. Atacaram primeiro o outro lado da vila. John me fez descer com o bebê
para o porão. Fechou o painel e cobriu com palha o lugar. − Ergueu o olhar aflito
para Brianna. − Eu não tinha escolha. Precisava proteger minha criança.
Brianna envolveu Anne e o filho nos braços.
− Vocês não podem ficar aqui.
Ao deixarem a cabana, foram forçadas a passar sobre o corpo de John. Anne
ajoelhou-se ao lado do marido.
- Você deu a vida por nosso filho, John Simm − disse, com tristeza,
sofrimento e orgulho. − Farei o melhor por ele. Nosso menino carregará seu nome
e o prestigiará.
Puxou o pedaço rasgado e queimado do manto felpudo sobre o peito largo
como se a protegê-lo do frio.
− Você foi um bom homem, e verei que seja enterrado da maneira
adequada. − Levantou-se. − Podemos ir agora, milady.
Em meio às ruínas de outra casa, encontraram outro sobrevivente, o avô de
Duncan, Bruce Ross. Ele fora atingido por um terrível golpe na cabeça e estava sob
uma viga do telhado incendiado, incapaz de se mover por dois dias. Sorriu em meio
à febre quando ela e Anne libertaram-no.
− Pode ficar de pé? − Brianna perguntou, ao apoiá-lo pela cintura.
− Sim. − Seus olhos cansados se encheram de lágrimas, e os ombros se
curvaram quando Bruce viu os corpos do filho e da família. Não disse uma palavra.
Ficou a olhá-los, em total desalento.
− Duncan está a salvo em Inverness.
O velhinho pestanejou ao ouvir Brianna, e seus olhos se iluminaram por um
momento.
− Vivo?
− Sim, e levou notícias do ataque. É um rapaz corajoso e forte.
Bruce assentiu.
− Como o pai. − E tornou a fitar o cadáver do filho. − Há outros vivos,
milady?
− Alguns podem ter fugido para os bosques. Falta ainda examinar umas
poucas cabanas. − Apontou para o fim da vila, que sofrera danos menores.
Bruce rodeou os ombros de Anne com o braço.
− Vamos, garota. Tomarei conta de você e do bebê. Ao seguirem para a
última residência, que escapara sem danos, por puro milagre, Bruce notou alguma
coisa na beira da floresta.
− Alguém está chegando.
Brianna sentiu o coração bater acelerado. Foi quando distinguiu duas
mulheres. Ao chegarem mais perto, Brianna as reconheceu. A garota Nel, cuja
família vivia na vila. A outra era sua prima, Gillie. Brianna correu para saudá-las.
Ao vê-la, Nel gritou e correu também. Agarrou-se a Brianna e começou a
soluçar, descontrolada.
− Calma, menina − Brianna murmurou, afagando os cabelos de Nel. Fitou a
prima. − Graças a Deus está a salvo, Gillie.
− O que está fazendo aqui?
Brianna sorriu. Gillie não parecia feliz em vê-la, contudo muito pouca coisa
costumava agradar a prima.
− Duncan Ross nos levou notícias do ataque.
− Houve sobreviventes?
− Muitos estão desaparecidos. Espero que tenham escapado para os
bosques, como vocês duas.
− Eu não escapei − Nel gaguejou, entre as lágrimas. − Não houve tempo.
Não foi preciso que a menina falasse mais nada. Tinha o jeito de um animal
ferido. Seu rosto e os braços estavam cobertos de hematomas. Brianna tinha pouca
dúvida sobre o que sofrera a garota.
- Como escapou, meu bem? − perguntou, gentil.
− Eles me deram algum tempo, perto de um riacho, para me lavar... depois
que... terminaram comigo. − Estremeceu nos braços de Brianna, e pousou a cabeça
contra seu ombro. − Quando se distraíram, eu corri. Continuei correndo até que
não conseguia dar mais um passo. Gillie fugiu também.
Brianna encarou a prima.
− Oh, Gillie...
Ela olhou pela vila na direção de seu próprio chalé.
− Viu Rabbie? − indagou, com desinteresse.
− Ele está morto.
− Ora, era de se esperar. − Gillie deu de ombros. − Não era lá um homem
muito corajoso.
Brianna sentiu uma pontada de raiva diante da falta de compaixão de Gillie
pelo marido morto. Rabbie era um bom homem. Enlaçou Nel e puxou-a.
− Venha, precisamos encontrar abrigo para a noite. Anne está exausta, e o
bebê necessita de calor e comida.
− Não vai para lá, vai? − protestou Gillie, ao ver que se dirigiam a uma
cabana de taipa e sapé apartada da vila.
− Possui paredes sólidas e um teto − Brianna ponderou. − Não podemos
pernoitar ao ar livre.
− Mas a bruxa vive ali. É uma feiticeira. Não confio nela.
− Está livre para ir aonde quiser, Gillie, mas é bem-vinda se ficar conosco.
As demais cabanas também estavam em ruínas ou cheias de cadáveres dos
aldeões. O céu prenunciava uma tempestade. Mais do que tudo, Gillie detestava o
desconforto. Seguiu-os até a cabana da velha Drusilla, a resmungar imprecações.
O avô de Duncan chamou, ao chegar à porta:
− Abra, mulher, se estiver aí.
A princípio, não houve resposta, mas, por fim, a porta se abriu numa fresta e
olhos escuros os fitaram.
− Vão embora! − a velha exclamou.
− Não podemos − disse Brianna. − Está frio, e precisamos de abrigo ou o
bebê não sobreviverá.
− Bebê? − a porta se abriu mais um pouco.
− Sim, o bebê de John Simm e sua mulher.
− John Simm arrumou meu telhado no verão passado.
− Sua esposa e a criança necessitam de abrigo, e o restante de nós também.
A porta se escancarou.
− Um homem decente aquele John Simm... Entrem. Ao entrarem, Drusilla
exclamou, apontando para Brianna:
− Você é a filha do lorde! − Olhou para fora. − Não há ninguém mais
consigo?
− Eles chegarão de manhã de Inverness.
Drusilla foi preparar alguma coisa para eles comerem.
Tomaram um caldo magro. O bebê logo mamava, contente, nos seios de
Anne.
A jovem Nel caiu num sono exausto. Ao embalá-la, Brianna conectou a
mente aos pensamentos angustiados da jovem, que pareciam um pesadelo. E em
meio àquelas imagens horríveis havia uma face que ela reconhecia e não poderia
jamais esquecer: a de Mardigan.
Quando a garota dormiu, Brianna cuidou do ferimento da cabeça de Bruce. Em
seguida, foi recolher lenha das cabanas próximas, para o fogo. Pediu a Gillie que
trouxesse água fresca do rio.
− Não se sabe quem poderia estar lá − protestou Gillie. Com a paciência
esgotada, Brianna retrucou, seca:
− Nesta cabana estão uma mulher idosa, um homem fraco e também idoso,
uma moça meio esfaimada com seu bebê e uma criança apavorada. E nenhuma
arma.
Gillie a encarou, furiosa.
− Agora é a senhora de Inverness e quer me dar ordens. E nem mesmo é
filha verdadeira de Cullum! Ele que nem sequer julgou conveniente ajudar a família
de minha mãe depois que se casou com sua irmã mais nova!
Brianna estava cansada demais para discutir. Assim, pegou o balde e rumou
para o rio.
Na escuridão crescente, tropeçou na carcaça de uma ovelha na beira d'água.
Foi corrente acima para colher água mais limpa. Mergulhou o balde entre as rochas
ainda com traços de neve.
Sentiu uma presença perigosa que a fez erguer a cabeça, alarmada. Então, na
escuridão que caía, viu o brilho de tochas que rumavam para a vila.
O pânico a dominou. Malcolm e os normandos não poderiam ter alcançado
Glenross. Aquilo só poderia significar uma coisa: Mardigan e seus homens tinham
voltado.
Correu depressa para a margem. Subiu o barranco, contornou a vila
correndo, pensando em Anne e no bebê, em Nel, Gillie e Drusilla, indefesas, com
apenas o velho Bruce para protegê-las.
Apertou o punhal que Cullum lhe dera e pôs-se a correr para o fim da vila.
Sentiu a presença do guerreiro naquele instante breve antes que ele a agarrasse.
Braços poderosos fecharam-se, comprimindo os dela dos lados. Foi tirada do chão.
Então aquele abraço forte apertou-lhe os pulmões, até que ela não conseguiu
mais respirar. Ficou imóvel. E logo sentiu o aperto se afrouxar. Lisa como uma
enguia, Brianna escorregou e caiu de mãos e joelhos no solo. Quando os dedos
poderosos se fecharam em seu ombro, ela soltou uma cotovelada.
Atingiu algum lugar no ventre do atacante. Um gemido alto e doloroso se
ouviu, seguido de uma praga gutural.
Brianna teria escapado se ele não a tivesse prendido pelos cabelos. Seu
captor a segurou debaixo de um braço como um pato levado ao mercado. O
guerreiro a carregou pela vila, até o ajuntamento de tochas.
Parou e soltou Brianna de repente. Ela caiu no chão numa confusão de saias
e cabelos desgrenhados.
A luz das tochas luziu na lâmina fina e mortal em sua mão e nos cabelos
dourados que lhe caíam pelas costas. Seu peito arfava sob a roupa de lã. O rubor
queimava-lhe as faces, e suas íris se tornaram da cor de brilhantes esmeraldas.
Tarek al Sharif encarou com raiva crescente sua bela e corajosa esposa.
Capítulo VI

− Que está fazendo aqui? − Tarek perguntou.


Stephen de Valois sorriu, mesmo se dobrando de dor do soco que Brianna
lhe acertara na virilha com surpreendente precisão. Os guerreiros normandos se
reuniram em torno deles. A luz das tochas brincava pelas feições frias de Tarek al
Sharif.
Ele segurou-a pelo pulso, os dedos a comprimir os ossos delicados. O
punhal caiu ao solo. Em torno, os cavaleiros e guerreiros olhavam com surpresa e
se faziam a mesma pergunta.
Brianna não tinha dúvidas de que ele poderia com facilidade quebrar seu
pulso. Cometera um grave erro de cálculo ao imaginar que o marido poderia ser
persuadido com facilidade de que ela tão-só tomara outra rota para chegar à vila.
− Ou talvez uma pergunta melhor seria: como chegou aqui?
Todos ficaram calados, em expectativa, aguardando a resposta. As
expressões em suas faces eram ferozes e cheias de suspeita.
− Brianna?
Ela olhou ao redor, em busca daquela voz familiar.
− O que faz aqui?
Malcolm abriu caminho entre os guerreiros normandos que a rodeavam. Ela
se sentiu aliviada ao ver uma face amistosa.
− Tinha de ajudar meus parentes − explicou, apressada, os pensamentos a se
ligarem aos dele num pedido silencioso. − Vim pelo caminho do passo do velho
pastor pelas montanhas − murmurou, rezando para que ele não a denunciasse. −
Não tinha certeza de que poderia encontrá-lo de novo, mas tinha de tentar. Você
compreende?
Brianna viu a confusão nos olhos de Malcolm.
− Sim − ele afirmou. − Porém, não deveria ter vindo sozinha.
− Não vim. - Brianna fitou Tarek, temerosa de que ele pudesse adivinhar que
mentia. − Thomas está aqui também.
Então, um grito apavorado ecoou, vindo dos limites da vila. Tarek al Sharif e
seus homens sacaram as armas.
− Nel! − Brianna exclamou.
− Há outros? − perguntou Tarek. Ela fez que sim.
− Uma meia dúzia sobreviveu. Buscaram refúgio numa cabana nos limites da
vila.
− Fique aqui − ordenou, ao se voltar para dar ordens a seus soldados.
− Não!
Antes que ele pudesse impedi-la, Brianna abriu caminho entre os homens e
saiu correndo. Ao chegar à cabana, descobriu a porta arrebentada e meia dúzia de
guerreiros normandos parados na soleira. Nel gritava, histérica. Acordado de
repente, o bebê chorava sem parar. Brianna empurrou os soldados para entrar.
− Não os machuquem!
O velho Bruce confrontava os guerreiros com um machado empunhado nas
mãos frágeis. Anne se postava atrás dele, os braços trêmulos a erguer uma espada.
Drusilla se encolhia num canto, segurando o bebê contra o peito, e Nel se escondia
atrás dela como um animal assustado.
− Está tudo bem, Bruce! − Brianna tentava acalmá-lo. − Eles são de
Inverness, aliados por uma causa comum. − Puxou-lhe o braço para baixo. −
Vieram prestar ajuda e proteção contra Mardigan.
Tarek chegou à cabana, e seus homens se postaram de lado quando ele
entrou. Ali estavam os sobreviventes de Glenross.
Malcolm entrou logo atrás, procurando por Brianna.
Os sobreviventes faziam um grupo patético: o velho desafiador, a jovem
com círculos negros sob os olhos, uma velha megera trêmulas, um bebê, uma
garota chorosa e a jovem mulher com olhos calculistas, que o encarou com
indisfarçada curiosidade em vez de medo.
− Há outros? − Tarek quis saber.
− Os que vê são os únicos encontrados vivos − Brianna afirmou, solene.
Por um momento, seus olhares se ligaram, os dele de um azul espantoso em
meio a feições fortes e duras, os dela toldados pelas sombras da morte e das
atrocidades que encontrara pela frente.
− Por favor, saiam − Brianna implorou. − A garota passou por maus
bocados. Seus homens a assustam.
Tarek fez um gesto, ordenando que os soldados saíssem dali.
− Veja que esse povo tenha o que precisa − disse a sir Gavin. − E mande a
curandeira que trouxemos de Inverness para cá. Ela pode ter algo para acalmar a
menina.
Brianna soltou um suspiro de alívio. Porém, ao tentar passar por ele para
ajudar Drusilla com o bebê, o marido a impediu.
− Você virá comigo, por favor.
− São meus parentes. Não os deixarei.
− Preciso de você na vila.
− A garota tem necessidade da gentileza de uma mulher para tranqüilizá-la.
Tarek se dirigiu a Gillie:
− Você cuidará dela. Se houver algo de que precise, informe meus homens.
Quando Brianna ia protestar, ele lhe falou, baixinho:
− Existem coisas piores para suportar. A menina está viva e, se possui a
metade da coragem e força que vi em seus outros parentes, irá se recobrar e ficar
forte de novo.
− Você pode entender que ter guerreiros armados ao redor apenas irá
assustar Nel.
− Não quero nenhum deles mais assustado do que já está. − Tarek voltou-se
para Malcolm, que se postara, protetor, ao lado de Brianna. − Eles o conhecem e
confiam em você. Providencie tudo o que for necessário e dê as ordens para sua
proteção. − Então, virou-se para Brianna. − Decerto você não fará objeção.
Ela o encarou, admirada. Não havia nada que pudesse dizer, e Tarek sabia
disso. Empertigou-se.
− Claro que não. Por favor, tome conta deles até que eu volte, Malcolm.
Brianna viu a raiva saltar nos olhos de Malcolm e sentiu o que ele queria
dizer. Contudo, fitando Tarek com frieza, ele concordou, relutante:
− Sim, Brianna. Farei o que pede. Mas só porque você pediu.
Tarek tocou-lhe o cotovelo e a conduziu para fora.
Uma fogueira fora acesa na frente da casa de Anne Simm. As chamas
brincavam nas feições de Tarek a Sharif.
Eram traços marcantes, duros, muito belos, e Brianna viu de relance a
criatura terrificante de seus sonhos no jogo de luz e sombra e na expressão intensa
daqueles incríveis olhos azuis.
Como em seus sonhos, ela teve a sensação de ser caçada, e um medo súbito
entrelaçou-se a outras emoções que nunca experimentara antes.
Sua garganta estava tensa, e a boca, seca. Experimentou as mesmas
sensações tão claramente como se estivesse agora nas ameias de seus sonhos.
Fechou o pensamento a outras imagens: a dor penosa de um anseio desconhecido e
a poderosa junção física com a criatura.
− O que quer de mim quando tem um exército de cavaleiros e guerreiros a
seu dispor? Na certa há pouco que eu possa fazer.
− Há muito que só você pode fazer. − Tarek a soltou, porém, não a deixou
livre.
Seus dedos escorregaram do braço para o punho, fechando-se em torno dele
com uma energia possessiva, igual a quando estavam diante do padre e ele a
recebera como esposa.
− Glenross é a vila de seus parentes, Brianna. Por suas próprias palavras,
você a conhece muito bem. Tanto que pôde chegar aqui por um atalho pouco
conhecido nas montanhas.
Os olhos azuis luziram, e Brianna teve a crescente suspeita de que não o
enganara com aquela mentira.
− Sim − afirmou, cautelosa.
− Tem um conhecimento considerável da vila e da região ao redor. Quero
ter esse conhecimento, já que devemos proteger a vila contra outro ataque.
Era uma lógica com a qual Brianna não poderia discutir.
− Eu o ajudarei de todas as maneiras que eu puder.
Tarek a puxou para mais perto do fogo. Vários dos soldados vieram juntar-
se a eles ao lado da chamas, inclusive Stephen de Valois, que, ao ver Brianna, se
afastou vários passos.
− Espero que o senhor não sofra de alguma dor prolongada − Brianna
murmurou, como se pedindo desculpas, ciente do lugar vulnerável em que o
atingira. − É que vocês me surpreenderam. Achei que Mardigan tivesse voltado.
− Depois que retornar a Londres, mandarei melhorar minha armadura para
cobrir certas áreas vulneráveis.
Ela enrubesceu, constrangida.
Por toda parte, os guerreiros enxameavam pela vila. Parecia que o exército
inteiro de Guilherme, o Conquistador, protegia Glenross.
Então, ouviram-se berros, que chamaram a atenção de todos. Vários
guerreiros se aproximaram, arrastando um homem. Ele lutava e se debatia, furioso.
Era Thomas.
Não foi necessário Brianna conectar os pensamentos aos dele para saber o
que houvera. Thomas chegara de Inverness e vira as tochas da floresta. Receara que
fosse Mardigan a atacar outra vez.
Brianna viu o luzir de uma lâmina na mão de um guerreiro, um macete
erguido por outro. Concentrou os pensamentos neles, pondo-os em confusão, e
correu para Thomas.
Ele ergueu o olhar injetado de sangue para encontrar o dela numa
comunicação silenciosa.
− Parem! − Tarek ordenou quando reconheceu o homem que eles
mantinham prisioneiro. Abriu caminho, empurrando Brianna de lado, com
gentileza. − Pode ficar de pé? − perguntou a Thomas, que fora lançado ao chão
pelos captores.
Thomas o encarou com ar vago.
− Não se faça de bobo. Sei que compreende muito mais do que deixa
perceber. Pode se levantar?
Thomas fitou Brianna e depois assentiu.
− Solte-o − Tarek deu a ordem. − Ele é amigo do antigo lorde de Inverness.
Quando Thomas se recompôs, Tarek quis saber:
− Está machucado? Thomas fez que não.
− Ótimo. Preciso de todo homem capaz.
Quando o gigante mudo olhou para ele com uma mescla de cautela e
suspeita, ele explicou:
− Meus homens necessitarão de sua ajuda para erguer as defesas da vila.
O olhar de Thomas ligou-se ao de Brianna, sua pergunta silenciosa em
sintonia com ela, que concordou.
− Faça o que ele diz.
Assim, Thomas meneou a cabeça e juntou-se a Tarek e Os soldados em
torno da fogueira. Com uma vareta, Brianna desenhou a vila no chão,
representando cada cabana, chalé e marcos mais distintivos.
− Mardigan e os outros atacaram da floresta − explicou a Tarek o que Anne
lhe contara. − Como a família de Duncan mora do lado oposto, não longe da
cabana de Drusilla, o menino conseguiu escapar pelas charnecas em direção a
Inverness.
− Para onde Mardigan e seus homens se dirigiram depois? − inquiriu.
− Gillie e Nel foram raptadas quando eles fugiram para a mata. Elas
escaparam e voltaram para cá.
− Quer dizer que não partiram por um atalho pouco conhecido da
montanha? − Tarek a provocou, com um sorriso malicioso a lhe erguer um canto
da boca.
− Não.
Brianna concluiu que ele não acreditara nela nem por um segundo.
Por fim, Tarek consultou o mapa rústico e o estudou, a seriedade tomando o
lugar daquele breve sorriso. Deu ordens para que seus soldados erguessem
fortificações em torno da vila em todas as direções. Embora relutante, Thomas foi
com eles.
Quando partiram, Tarek voltou-se para Brianna.
− Mardigan poderia ter fugido pelas charnecas?
− Não, eles acreditam que as charnecas são assombradas. Não iriam por ali.
Ele a encarou, aquela expressão divertida de volta.
− E elas são assombradas?
− Dizem que os espíritos dos guerreiros mortos rondam por ali, que suas
vozes podem ser ouvidas no vento.
− Acredita nisso?
− As Terras Altas podem ser um lugar ameaçador, mi-lorde. Muitos se
perderam pelo caminho e contam histórias de vozes que os guiaram em segurança.
Só consegue ir e voltar aquele que tenha o sangue de um highlander.
− É mesmo?
− Sim. Dizem que cada montanha, rocha, rio e vale é conhecido por todos
os escoceses, mesmo que nunca tenham posto o pé neles. Estão profundamente
ligados à terra pelo sangue daqueles que se foram antes. Entende o que digo? É
algo que se sente nos ossos. Um instinto das coisas.
—- Ah, sei bem o que quer dizer, pois carrego a lembrança de meu lar em
meu sangue também...
Brianna franziu a testa, pois não julgava que um guerreiro que lutara ao lado
de Guilherme, o Conquistador, chamasse algum lugar de lar, a não ser o campo de
batalha.
− Seu lar é muito distante daqui? − perguntou, sem disfarçar a curiosidade,
pois ouvira histórias dos impérios do Oriente Médio de parentes distantes de
Cullum, que tinham viajado por lá.
− Muito longe − Tarek se mostrou saudoso. − É uma terra de pálida areia
rosada, ventos quentes da noite, templos dourados e um oceano azul e brilhante.
− É difícil imaginar um lugar assim. − Brianna puxou o xale mais apertado
sobre os ombros, contra o frio que se instalava conforme a fogueira se extinguia.
Tarek atiçou as chamas com uma vara jogando nelas mais achas de lenha.
Ergueu-se e caminhou na direção à esposa.
− A pedra nos templos e as muralhas que rodeiam Antioquia são tão brancas
e lisas como mármore polido. Tão brilhantes que causam dor nos olhos se as
fitamos por muito tempo.
Ela reprimiu o instinto natural de se afastar quando Tarek a puxou para mais
perto, recusando-se a revelar algum sinal de medo, mesmo que seu coração pulsasse
descontrolado.
Ele parecia irradiar calor. Sua voz era baixa e sedosa, com uma calidez que
envolvia cada palavra.
− A areia é da cor do céu logo antes que o sol desça abaixo do horizonte e
sua luz banhe as nuvens. − Estendeu a mão e afastou as mechas de cabelos loiros
que tinham se soltado da trança e emolduravam a face dela. Seus dedos roçaram de
leve o rosto de Brianna.
− E o vento é como a carícia da mão de um amante. Uma vez sentida, nunca
mais se esquece.
Naquele momento, de algum lugar do acampamento veio o som alto e feroz
do grito de um guerreiro:
− Tire as mãos dela, seu bárbaro sangüinário! − Era Malcolm.
Ele e os outros guerreiros tinham voltado da cabana de Drusilla. Sua fúria
parecia aumentar conforme ele avançava, com a espada empunhada.
− Malcolm! Não! − Brianna sentiu-lhe as intenções mortais.
Ignorando o perigo para si mesma, correu para ele. Atrás de si, ouviu o som
de outra espada sendo puxada da bainha. O ruído fez com que o sangue se
congelasse em suas veias.
Malcolm praguejava ao passar por ela em direção do homem que esperava
com calma letal ao lado da fogueira.
− Puxe sua espada, bárbaro. Vamos resolver isso! Pois não deixarei que
toque nela outra vez! − Voltou-se para Brianna. − Eu o matarei se tocar em você!
− Não há nada que possa fazer, Malcolm. Esta é minha escolha. E se você o
matar e arriscar-se a trazer a guerra sobre minha gente, então deve me matar
primeiro! − Brianna bloqueou-lhe o caminho.
− Não sabe o que diz, moça.
− Sei, sim! Sou o lorde de Inverness. Dei minha palavra diante do conselho
dos chefes! E não há nada que você possa fazer, Malcolm de Drummond, que
possa mudar os fatos!
Se o matar, Mardigan terá o que quer, e as Terras Altas irão se inundar com
o sangue dos escoceses, até que não reste nenhum. Não vê, homem? Olhe a seu
redor! Veja o que restou de Glenross! Viu os corpos quando vinha para cá?
Nenhum lorde sacrificaria seus parentes por si mesmo! Nem eu o farei! Essa aliança
deve prevalecer!
− Mas você pertence a mim! − sussurrou. − Eu daria minha vida por você,
Brianna. Só tem de pedir.
− Não quero sua vida, Malcolm, mas sua amizade e lealdade.
− Você as tem e as terá sempre.
− Se é assim, por favor, vá e não fale mais sobre isso. Encontre Thomas e
ajude de qualquer maneira que possa para que a vila fique bem protegida. Mardigan
pode voltar outra vez. Temos de estar unidos contra ele. É nossa única esperança.
Os ombros de Malcolm caíram como se ele se sentisse derrotado. Porém,
seu olhar era duro e frio ao encarar o guerreiro que continuava com a espada
empunhada. Havia sofrimento em seu semblante.
− Você coloca suas esperanças nesse bárbaro, Brianna? E se estiver
enganada?
− Que alternativa tenho?
Ele a analisou em busca de algum sinal de dúvida. Não viu nenhum.
Respirou fundo e baixou a ponta da espada para o chão.
− Farei o que me pede, mas não me peça para mudar o que está em meu
coração.
Ao olhar para Tarek, ele também baixou a arma. Vários de seus homens
seguravam as espadas, prontos para abater Malcolm, se ele atacasse.
− Há muita coisa que precisa ser feita esta noite − Tarek relembrou a todos.
Então, virou-se para Gavin. − Vá com Malcolm. Nossos homens devem se
emparelhar com os escoceses. Deixo a escolha para você, Malcolm de Drummond,
visto que conhece melhor o temperamento de seus homens.
Malcolm ficou estupefato.
− Depois do que houve, você me pede para partilhar das ordens a seus
próprios soldados?
− Sim, bem como da responsabilidade de comando.
− Você é um tolo!
− Só um tolo procura vincular-se a um aliado pela força. Você é um
guerreiro. Trata-se de seu povo. Não poria em perigo seus companheiros pelo
próprio orgulho.
Malcolm o encarou com relutante respeito.
− Farei o que quer, por ora, e por minha gente. No entanto, chegará um dia
em que isso deverá ser resolvido entre nós.
− Estarei esperando.
Brianna voltou-se para a fogueira quando Malcolm se afastou, com os
parentes de um lado e sir Gavin e vários guerreiros normandos do outro. Tarek
parou diante das labaredas com a cimitarra empunhada na mão abaixada. Suas
feições se ocultavam nas sombras.
− Ele gosta muito de você − disse, enfiando a espada na bainha. − Do jeito
como um homem poderia gostar de uma namorada.
− Nunca fomos namorados, embora por um longo tempo ele tivesse
guardado a esperança de que pudéssemos nos casar. O laço que nos une é forte,
Tarek, como amigos que se conhecem desde a infância.
Ele não se convenceu. Observou o lugar onde Malcolm se postava com seus
soldados. O escocês voltou-se por um momento, e seu olhar cravou-se em Brianna.
Sua expressão era intensa, permeada por uma miríade de emoções que não tentava
esconder.
Tarek podia reclamá-la como esposa, mas não havia nenhuma base para
confiança ou a mínima afeição entre os dois. Ela aceitara os termos da união apenas
porque não tinha outra escolha. Sob outras circunstâncias poderiam ser inimigos.
Tarek, porém, queria mais que palavras pronunciadas diante do conselho dos
chefes e santificadas perante um padre, mais que uma aliança de exércitos unidos
por uma causa comum.
Queria que Brianna o fitasse do mesmo modo que naquele dia, ao lado da
lagoa, a forma que assombrara seus sonhos desde então. Queria o som doce e
ofegante de sua voz quando o alertara sobre o perigo. E o toque frio que sentira na
pele quando Brianna lhe tomara a mão e o conduzira para a segurança.
Tinha de ir devagar com ela. Era necessário ganhar sua confiança, talvez
algum afeto, e depois, sim, descobririam os prazeres que poderiam encontrar um
no outro.
Brianna também analisava o perímetro da vila, mas por uma razão muito
diferente. Contara as formas arredondadas dos guerreiros adormecidos, aqueles que
se moviam pela vila e outros que podiam ser vistos dentro das ruínas das cabanas e
choças, junto com aqueles que montavam guarda. Eram noventa, sem incluir os
que permaneciam a guardar a cabana de Drusilla. Quase duas vezes o número que
partira de Inverness. Encarou Tarek.
− Aqueles guerreiros não são de verdade!
Não tinha certeza do que era mais espantoso: a revelação que vislumbrou ao
encarar o marido ou o belo sorriso que lhe alterou as feições duras.
− Uma trapaça necessária, Brianna. Nunca deixe o inimigo saber de sua
verdadeira força. Se tem uma dúzia de homens, faça que acredite que você tem três
vezes esse número.
Brianna tornou a observar a vila, agora o acampamento armado de Glenross,
e tornou a fitar Tarek. Por um momento, baixou a guarda, as íris verdes a luzir,
com divertimento.
− Você é um feiticeiro, milorde − afirmou, com indisfarçada admiração. −
Drusilla ficaria com inveja.
Diante do olhar interrogativo, ela explicou:
− Os aldeões acreditam que a velha seja uma bruxa.
− Não sou feiticeiro. Se fosse, conjuraria um exército dez vezes maior e
empurraria Mardigan para o mar antes da próxima alvorada.
− Quisera que fosse, meu senhor, pois então não haveria necessidade dessa
aliança a que me forçou.
Tarek se viu enredado nas próprias palavras. Poderia discutir com Brianna e
dizer que Mardigan apenas providenciara a chave para o feito, pois Inverness já era
dele antes que partisse de Londres. Não o fez, entretanto. Em vez disso, pediu:
− Conte-me o que sabe de Mardigan.
Ela estremeceu, pois para falar daquele homem teria de contar a Tarek da
morte e destruição que o inimigo levara para as Terras Altas. O sorriso se esvaiu de
seus lábios e dos olhos, substituído por uma profunda tristeza.
Tarek testemunhou o tremor de seus ombros, a conjuração de energia
mesmo quando a exaustão ameaçava dominá-la, e aquele indomável orgulho.
− Mardigan aprendeu os modos dos guerreiros das Terras Altas vivendo
entre eles. Costuma se esconder nas florestas e nos vales, disfarçando-se. Aí, ataca.
Poucos escaparam e viveram para contar. Nenhuma família em todos os domínios
de Cullum escapou da morte nas mãos dele. − Brianna estremeceu ao se recordar
da carnificina em Inverness, e sua própria fuga. − Ele é traiçoeiro e astuto, sem um
pingo de misericórdia para com homem, mulher ou criança.
Brianna estava tão perdida no sofrimento daquelas recordações que não se
deu conta de que ele se aproximara, até que sentiu um peso nos ombros. Ergueu o
rosto. Tarek a envolveu num manto quente de pele. Sua mão roçou-lhe a curva do
queixo, conforme ele prendia os laços de couro no pescoço dela.
Brianna sentiu um súbito prazer naquele toque, que pareceu de certa forma
íntimo e possessivo. Fitou-o como uma corça assustada apanhada de repente na luz
da tocha de um caçador, apavorada e contudo atraída pela chama. E incapaz de
fugir.
Recuou para mais perto do fogo, como se procurasse se aquecer, quando na
verdade já requeimava.
− Inverness é de absoluta importância para ele − ela continuou a explicar,
tentando ordenar as idéias. − Mardigan fará qualquer coisa para reclamá-la, pois é o
ponto principal para o poder nas Terras Altas.
− E para reclamar a filha de Inverness como esposa.
− Sim.
− Mas Cullum recusou? Brianna empinou o queixo, altiva.
− Eu recusei.
− Poderia ter aceitado a oferta de casamento e feito uma aliança com os
invasores nórdicos.
− E fazer do rei Guilherme um inimigo? Nem pensar. Melhor expulsar um
invasor para o mar que lutar contra outro pelas fronteiras comuns de terra.
− Aceitou o menor de dois males, Brianna? Com chocante honestidade, ela
o relembrou:
− Não aceitei nada, milorde. O senhor não me deu escolha.
Era fato. O que ela não sabia, entretanto, era que havia mais: uma trapaça.
Tarek ficou pouco satisfeito pelas razões pelas quais Brianna o aceitara, em vez de
Mardigan.
− É tarde − disse Brianna, quando sir Gavin e vários dos homens
retornaram.
Alguns entraram na cabana, onde estenderam seus catres. Sir Gavin aqueceu
as mãos no lado oposto da fogueira.
− Tenho de voltar à casa de Drusilla.
− Estará mais segura aqui.
− Garanto que a cabana tem toda a segurança, com tantos de seus soldados
a guardá-la − retrucou, com raiva.
− Você ficará aqui, Brianna. Não dormirá ao lado da fogueira. Prefiro deitar-
me com algo sólido a minhas costas. Quero saber de que direção o inimigo virá.
A ênfase no lugar onde ambos dormiriam transformou a ira em pânico.
Tarek pegou um fardo de peles e rumou para a cabana. Brianna empalideceu.
Ele se postou ao lado da entrada, para que ela pudesse entrar primeiro.
− Não me importo em dormir ao lado do fogo.
− Eu, sim.
Ela puxou o manto de pele em torno de si conforme seguia, devagar, para a
casa.
− Você dormirá perto da parede do fundo. − Ele entrou atrás dela, pulando
sobre vários homens adormecidos. Num canto, fez uma cama fofa com as peles.
Discutir era bobagem. Assim, Brianna se espremeu e enrolou-se nas peles
como um escudo protetor.
Fitou-o, apreensiva, do ninho quente. Para sua surpresa, Tarek saiu e foi
conversar com sir Gavin. Então, além da fogueira, ela viu a sombra de um homem
robusto. Brianna sorriu ao sentir a presença reconfortante de Thomas. Se precisasse
dele, estaria tão perto como seus pensamentos.
Lutou para se manter acordada, mas era uma batalha que não poderia vencer.
A exaustão a dominou, o calor fechou-se em torno dela, e sonhou velhos sonhos...
Capítulo VII

Seus sentidos se aclararam quando Brianna tomou consciência das


imediações: a cabana mergulhada na escuridão; o luzir das estrelas no vão da porta
na última hora antes da alvorada; o ressonar dos guerreiros que dormiam
espalhados pelo chão; o calor pouco familiar do homem a seu lado com uma
espada sob a mão: seu marido.
O sonho se desvaneceu, cheio de imagens estranhas de pessoas e lugares que
Brianna não conhecia, mas que pareciam de certa forma familiares.
Procurou controlar a respiração e as batidas fortes e rápidas do coração. Os
sentidos se aguçaram como os de um animal. Tarek al Sharif dormira com ela,
como os demais guerreiros.
Brianna se ergueu, sem fazer ruído, e puxou o xale sobre os ombros.
Esgueirou-se para fora das peles quentes. À soleira, parou, a olhar para o cinza da
alvorada.
Avistou o contorno escuro das árvores da floresta, que ficava logo além da
vila, e algo ali chamou sua atenção.
Não era coisa que ouvisse ou visse, mas algo que sentia na virada sutil do
vento, uma sensação de algo que a chamava, que a esperava ali.
Hesitou, com uma vaga e instintiva sensação de alerta. Nunca tivera medo
do escuro antes, mas agora temia diante de alguma coisa que deveria recordar, mas
não conseguia. Era como se estivesse ali, na fronteira da memória, espiando,
provocando-a de seu lugar escondido, recusando-se a sair. Brianna tinha apenas os
instintos para guiá-la e protegê-la, conforme puxava o xale mais apertado e saía em
direção à mata.
Tarek não tinha certeza do que o despertara. Poderia ter sido um ruído,
embora ao apurar a audição não tivesse escutado nada. Poderia ter sido um
movimento, apesar de nada se mover dentro da escuridão acinzentada da cabana.
Ou quem sabe fosse o frio que se espalhava por suas costas.
Virou-se rápido. Brianna se fora. Todavia, não fazia muito, pois as peles
ainda guardavam sua quentura.
Saltou do leito, cimitarra em punho. O sono esvaiu-se num instante ao
passar por sobre os homens adormecidos. Saiu da cabana.
Não se espantou ao encontrar Thomas a dormir ao lado de uma fogueira
próxima. Ele era como uma sombra constante de Brianna, sempre a seu lado.
Tarek franziu a testa ao imaginar que ela se fora e o protetor dormia, sem se
dar conta disso.
Encontrou rastros na neve recente. Nenhum soldado fizera aquelas pegadas,
mas sim alguém leve de peso, a caminhar com cuidado pelas sombras para não ser
visto pelos guardas.
Seguiu a trilha pela vila, até a cabana da velha Drusilla. As pegadas
desapareciam no patamar da porta da cabana.
Stephen acordou e se ergueu com o reflexo instintivo de um guerreiro alerta
para o perigo.
− O que é? − indagou, segurando a espada.
− Onde está ela?
O jovem cavaleiro mostrou-se confuso. Então, entendeu que aquilo era mais
grave do que a fuga de uma noiva inexperiente e nervosa.
− Não está aqui. Talvez procurasse privacidade para necessidades femininas.
Tarek meneou a cabeça.
− Não seria preciso ir tão longe. Tem certeza de que Brianna não está ali
dentro?
− Pode ver por si mesmo. − Stephen rumou para a porta da cabana e abriu-
a.
Todos lá dentro ainda dormiam. Brianna não se encontrava entre eles.
− Quando a viu pela última vez? − Stephen experimentava uma crescente
agitação.
− Na noite de ontem.
− Alertarei o guarda.
− Não, Stephen. Se fizermos isso, os escoceses também saberão que ela
sumiu. A aliança é muito frágil. Poderia haver problemas se eles acreditassem que
Brianna decidiu fugir ou sofreu algum mal. Sobretudo com Malcolm de
Drummond.
− E Thomas, o mudo? Ele nunca está longe dela.
− Ainda dorme perto da cabana. Brianna saiu sem ele. − Tarek tornou-se
ainda mais inquieto. − Não diga nada a ninguém. Eu a encontrarei.
− E se não encontrar? A moça conhece o terreno como nenhum outro. Há
uma centena de lugares em que poderia se esconder e nunca ser achada. Pode até
mesmo ter voltado a Inverness.
Tarek meneou a cabeça.
− Ela não deixaria seus parentes. Ontem à noite só pensava neles. Não,
Brianna não voltou a Inverness. É algo mais. E descobrirei de que se trata. Se eu
não a encontrar − até a hora que o sol estiver acima do horizonte, voltarei ao
acampamento e continuarei a busca com uma guarda armada. Até lá, seu próprio
povo terá descoberto que se foi.
Stephen assentiu, com relutância.
− Mas apenas até que o astro-rei esteja logo acima do horizonte. Se não
voltar ao meio-dia, eu liderarei a busca para encontrá-lo.
Tarek achou as pegadas além da cabana. Seguiam para o bosque que
circundava a vila. Fechou uma carranca a imaginar por que Brianna se embrenharia
na mata, sozinha e desprotegida.
Os passos de Brianna eram silenciosos, e ela ouvia apenas o bater frenético
de seu próprio coração e a fumaça da respiração a flutuar no ar gelado.
Estava acostumada à calma de uma floresta naqueles momentos antes da
alvorada, quando os seres da natureza ainda dormiam em suas tocas e ninhos.
Naquele momento, contudo, não havia nenhum som. Nenhum rangido, o
esticar de uma asa ou o guincho de um rato. Nem mesmo o rumor do vento era
ouvido ou sentido. Tudo estava em absoluta imobilidade, como naqueles
momentos que antecedem uma tempestade.
Era um lugar antigo de velhos carvalhos, amieiros e pinheiros densos. A
floresta parecia assombrada por faces que espiavam com expressões grotescas no
nó de um galho quebrado de árvore, ou no buraco de um tronco que parecia um de
Oh! surpresa da boca de algum duende, emoldurado por retalhos de casca que
formavam um nariz bulboso e olhos esbugalhados, se alguém olhasse de perto.
Chegou a uma lagoa. Ajoelhou-se e fechou as mãos em concha para apanhar
um gole de água. De repente, recuou. A superfície ondulava como se palpada por
mão invisível. Alisou-se e ficou imóvel. Ao se inclinar para mais perto, Brianna
notou pela primeira vez que havia uma débil luz dourada a luzir no centro, que
parecia ficar cada vez maior até que ela se deu conta de que não era uma luz, afinal,
mas um objeto dourado.
Então, como se emergisse das profundezas, ela o viu. O Graal, o antigo
cálice místico que segundo a lenda não era visto por mais de quinhentos anos.
Estava suspenso numa escuridão crescente em torno dele. Depois, do mesmo
modo como se revelara a ela, o Graal desapareceu. A superfície da lagoa tornou-se
escura, fosca, sem vida.
Quando Brianna ia se afastar dali, a superfície borbulhou e remexeu-se como
se revolvida por alguma força tumultuada. Algo sinistro irrompeu diante dela,
emergindo das profundezas da lagoa, e tentou alcançá-la.
Brianna recuou, rastejando para além de seu alcance conforme aquilo
transbordava pela beira da lagoa, espalhava-se pelo chão em direção a ela e envolvia
os troncos das árvores vizinhas com um poder maligno tão forte que tornava o ar
sufocante e a comprimia sem mesmo tocá-la.
No alto, os passarinhos se assustaram em seus poleiros e alçaram vôo.
Aquelas caras imaginárias esculpidas nos galhos e troncos das árvores ganharam
vida e também gritavam para avisá-la. Brianna ficou de pé e correu.
Conforme corria, a floresta se tornava mais escura, e ela percebeu que o
demônio da escuridão a seguia, passando por buracos, esgueirando-se pelas árvores
e ao longo de cada trilha, alcançando-a pouco a pouco.
Galhos rasgavam as roupas de Brianna, enroscavam em seus cabelos e
batiam em seu rosto. Ela saltou um riacho e, como um animal assustado, rumou
para terreno alto. Os pensamentos de alguém colidiram com os dela, e Brianna teve
certeza de que deveriam ser de Thomas, que na certa a seguira.
De repente, viu-se agarrada e comprimida contra a casca rústica de um
enorme carvalho. Um braço poderoso enroscou-se nela, e uma mão lhe cobriu a
boca, impedindo-a de gritar. Suas pernas foram comprimidas por coxas fortes que
se moldaram às dela conforme era dominada por seu captor.
Em meio ao terror que permeava todos seus sentidos, ouviu um aviso
ríspido:
− Não grite!
Havia algo de familiar no sotaque e no tom duro, e Brianna soube que já o
ouvira antes. Parou de se debater e permitiu-se relaxar. A mão suavizou o aperto
em sua boca. Como Brianna não gritou, ele a deixou livre.
Tarek al Sharif afastou-lhe as mechas de cabelos do rosto.
− Não está ferida?
A ternura rude naquela entonação a espantou, quase tanto como o calor leve
e formigante onde os dedos dele tinham roçado em sua face.
− Há perigo...
Ouviu-se o som de algo a se mover pela floresta ali perto, o estalar e
espatifar de galhos. Algo ou alguém se aproximava, como se incerto da direção que
Brianna tomara e à procura de alguma indicação nos arbustos e no chão. Em
seguida, vozes e o distinto som de aço. Vários perseguidores abriam caminho pelo
mato.
O céu se iluminava, tornando mais fácil ver e ser visto. Tarek praguejou
baixinho. Então, quando as vozes ficaram mais altas, levou Brianna para trás do
enorme carvalho.
O tronco era larguíssimo, e tinha uma fenda que parecia uma ferida. A casca
que a rodeava estava enegrecida e queimada onde fora atingida por um raio. Ele fez
sinal para que Brianna não dissesse nada quando a enfiou dentro do vão do tronco
fendido.
O buraco queimado era escuro e estreito. Ele puxou-lhe as coxas contra si,
suas pernas presas entre as dele. Tirou uma lâmina esguia e de aparência mortal de
dentro da bota.
As vozes se aproximaram, algumas tão claras como se estivessem a poucos
passos de distância.
O calor da respiração de Tarek queimou o rosto de Brianna quando ele a
segurou pelo pescoço, pressionando-lhe a cabeça na curva do ombro. Vestia apenas
calças de couro, botas e uma camisa de lã que não oferecia proteção contra uma
espada inimiga. Mas uma espantosa energia emanava de seu corpo, que se
comprimia contra o dela do ombro ao joelho.
Com os sentidos impregnados com a sensação e o cheiro dele, Brianna se
deixou inebriar pelo toque de suor masculino que se misturava ao aroma de pinho
da floresta e com o odor de madeira do buraco do carvalho.
Conforme os passos soavam mais perto com o partir de gravetos e o
esmagar de folhas sob os pés, o calor da respiração de Tarek despertava nos
sentidos de Brianna estranhos sons, palavras desconhecidas que ela entendia com a
alma.
Brianna cerrou as pálpebras com força. Iriam viver ou morrer? Não sabia.
Porém, algo em seu íntimo lhe falava de uma forma como nunca experimentara
antes. Respondeu com o bater frenético e errático de seu coração.
De repente, o sol brilhou ofuscante pelas árvores, e Tarek teve certeza de
que não havia esperança de passarem despercebidos. Tudo o que era preciso era
que um daqueles homens se aproximasse da árvore, e eles seriam encontrados.
Então, do solo subiu uma névoa que se enrolou pelas árvores, espalhou-se
como um lençol pelo chão e envolveu tudo num manto espesso e vaporoso,
tornando impossível ver a um palmo de distância.
As vozes ao redor tornaram-se frenéticas. Os gritos se transformaram em
pragas.
− Não consigo enxergar com essa neblina maldita! Veio do nada. Eu afirmo,
esta floresta é assombrada!
− Ali! − outro berrou. − Está claro ali. Sigam-me! Os demais responderam e
o seguiram, alguns passando tão próximo do esconderijo que Brianna ouviu o
raspar da lâmina de aço e sentiu o fedor pungente das peles de animal que os
perseguidores usavam.
Ela estremeceu. Com os olhos fechados, concentrou-se na delícia penetrante
da pele de Tarek que tinha sob o rosto, na abertura da camisa e na robustez
reconfortante dos músculos poderosos que Brianna sentia sob as palmas,
comprimidas em seu tórax.
Havia uma impetuosidade no vigor flexível daquele corpo apertado contra o
dela, uma emanação intensa de proteção que provocava uma sensação estranha
muito semelhante à fome, porém mais profunda, como se nunca pudesse vir a ser
satisfeita.
Aos poucos, as vozes desapareceram e tudo o que restou foi o silêncio em
torno deles.
− Eles se foram − Tarek murmurou. − Sabe quem eram?
Brianna ergueu a cabeça. Tinha o rosto pálido.
− Mardigan.
Seu olhar cravou-se naquela boca, na curva do queixo forte, na textura da
pele em tons de ouro escuro sombreada pela barba que tomava os ângulos mais
agudos e enfatizava a suavidade dos lábios. Seus próprios lábios se entreabriram
numa resposta não formulada. Sob as mãos, Brianna sentiu a batida forte daquele
coração e depois seu próprio, do mesmo modo impetuoso. A respiração ofegante
misturou-se à dele.
O desejo o envolveu, pulsando pela carne ereta conforme seus quadris se
comprimiam aos dela. Brianna não se debateu nem o empurrou. Em vez disso,
encarou-o. Contudo, não demonstrava medo, mas sim um fascínio espantado.
− É muito perigoso aqui. − Tarek esfregou o polegar pela curva do lábio
inferior de Brianna.
− Sim... − Seus olhos se arregalaram com o toque, sentido ao longo de cada
terminação nervosa, como se Tarek tivesse acariciado cada parte de sua anatomia.
A névoa em torno deles se dissipou. O sol mais uma vez brilhou pelas
árvores, e novas vozes soaram numa mistura de sotaques.
Tarek resmungou quando a bruma pareceu também clarear nos olhos de
Brianna, e ela mais uma vez o fitou com cautela e desconfiança.
− Milorde, por favor. Seus homens estarão sobre nós em breve.
Ele a soltou, sem pressa.
Thomas os encontrou, como se guiado até Brianna por algum laço invisível.
Stephen de Valois vinha logo atrás.
− O que houve? Ouvimos outros na floresta.
− Era Mardigan.
Capítulo VIII

Faz quinze dias desde o ataque a Glenross. Agora, mais quatro vilas foram
queimadas, os rebanhos, mortos, famílias inocentes, assassinadas. Devemos
proteger as vilas! − Malcolm exclamou, zangado. − Ou em breve todo o Norte será
devastado.
− Só um tolo dividiria sua força − Stephen de Valois argumentou, sem
tentar disfarçar seu desprazer, ao ficar de pé.
Eram como dois leões enjaulados, prontos para a luta.
− Talvez! − Malcolm estava vermelho de raiva. − Mas pelo menos ele morre
com uma espada na mão, em vez de ferramentas de carpinteiro!
O desdém dos escoceses pelo trabalho que vinham desempenhando não era
segredo. Reclamavam muito dos grandes reparos e das inovações que Tarek
ordenara logo depois de retornarem a Inverness.
Embora patrulhas bem armadas de normandos e escoceses percorressem a
região vizinha, a maioria dos homens, também escoceses e normandos, fora
encarregada de reconstruir a fortaleza principal, inclusive de erguer uma muralha
exterior mais alta, agora de pedra e na maneira das fortificações normandas.
Brianna recuou para as sombras, não querendo ser vista. De seu esconderijo,
podia observar tudo o que acontecia sem ser notada. E podia ver Tarek al Sharif.
Ele estava sentado com uma calma forjada, o corpo relaxado na grande
cadeira que Cullum uma vez ocupara, enquanto ao redor os homens discutiam e
reclamavam, sem cessar. A tranqüilidade que prenunciava tempestade.
Os outros esvaziavam as canecas e batiam na mesa por mais. Ele os estudava
a todos. Ouvia sua discussão, as feições fortes em pensativa concentração.
− O que me diz você? − Malcolm se inclinou na mesa na direção de Tarek.
− Quantos escoceses mais devem morrer antes que Mardigan seja detido? Ou as
palavras normandas só guardam falsas promessas em vez de feitos?
Tarek contemplou os escoceses reunidos. Era de uma contenção de energia
tão intensa e bem controlada que atraía o olhar, e nunca ninguém podia antecipar
qual seria seu próximo movimento.
Brianna estremeceu ao se recordar daquele vigor, do contato daquele corpo
flexível contra o dela, no oco da árvore, e dos anseios estranhos que nunca
experimentara antes, sensações intensas e prazerosas que a confundiam.
Desde então, ela o evitava tanto quanto possível. Não era difícil, com a
fortaleza cheia de parentes, soldados e escoceses desabrigados, depois que as vilas
foram queimadas. Como filha do velho lorde, era sua responsabilidade hospedar e
alimentar quantos procurassem refúgio dentro das muralhas.
Com o tempo, Brianna teria de convencer Tarek de que aquele era um
casamento nominal apenas, pelo bem de uma aliança. Assim que ele aceitasse o
fato, iria sem dúvida procurar prazer com alguém mais. Talvez com Gillie, pois a
prima deixara clara sua disponibilidade desde o começo. Podia ser até que isso já
tivesse acontecido, pois Brianna notara que sempre que Tarek estava no salão Gillie
se mantinha por perto. Começou ela mesma a servir as refeições. Sempre o
rodeava, enchendo sua caneca, tirando suas botas cheias de lama, cuidando de
qualquer necessidade que surgisse.
Conforme Gillie tomava para si os deveres que deveriam caber a sua esposa,
Brianna experimentava uma sensação inexplicável de opressão quando pensava nas
outras necessidades que Gillie também poderia atender. Muitas vezes, Brianna a
vira no corredor do quarto do lorde, a esperar por ele, com um sorriso e uma
expressão que sugeriam que partilhavam algum segredo.
Agora, ela analisava e ouvia as discussões no salão. Malcolm se determinara a
forçar um confronto. Sua raiva era como uma ferida que destilava veneno.
− Vocês discutem entre si como velhas pechinchando num mercado −
Tarek falou aos homens reunidos. − Estamos perdendo tempo. Há outros assuntos
de maior relevância.
− Sim! − zombou Malcolm. − A construção de outra fortaleza normanda
como um monumento para o rei Guilherme, enquanto mais escoceses morrem.
Com que direito você toma decisões sobre os guerreiros e as terras escoceses?!
O olhar de Tarek encontrou o de Malcolm, e mesmo de onde se encontrava,
Brianna viu a expressão perigosa e predatória naqueles olhos azuis. Ele parecia um
felino, uma pantera mortal, capaz de escalar muralhas.
− Qualquer homem que se recusa a aprender com o passado está fadado a
repeti-lo, Malcolm de Drummond. Não pretendo passar pelo que já aconteceu,
inclusive o ataque a Inverness, em virtude das parcas fortificações, que Mardigan
conhece bem.
− Que tipo de palavrório é esse? Você vem aqui com suas palavras estranhas
que não têm nenhum sentido para nós. Que o diabo o carregue, seu bárbaro ladrão!
O som de aço tiniu pelo ambiente conforme os homens de Tarek puxavam a
espada, diante do insulto. Se houvesse um momento em que tudo poderia estar
perdido, Brianna soube que era aquele. E Malcolm seria a causa.
Ela não poderia permitir. Por isso, saiu das sombras e entrou no salão, na
quietude mortal que prometia um banho de sangue.
A atenção de normandos e escoceses voltou-se para ela. Era como se todos
esperassem que o lorde falasse e tomasse partido.
Brianna atravessou o recinto, rodeando a mesa à qual Tarek al Sharif se
sentava. Parou ao lado de sua cadeira, a mão descansando no espaldar. Cada olhar
permanecia cravado nela.
− Os clãs falharam em deter Mardigan antes − afirmou, numa voz clara e
forte. − O que fracassou no passado deve ser feito de modo diferente, ou não
teremos esperança de impedi-lo de continuar a nos atacar.
− O que sabe dessas coisas, Brianna? − Malcolm a encarava. − São assuntos
de guerra, não de mulher.
Ela se sentiu agredida. Uma sensação de constrangimento se espalhou pelo
salão. O ar estava impregnado de tensão. Malcolm desafiara não apenas a aliança,
mas a autoridade de Brianna como filha do velho lorde. Se não agisse depressa, o
sangue iria correr em Inverness.
Tarek inclinou-se para a frente na cadeira, um movimento flexível que se
tornara familiar em seus sonhos. Com um instinto tão natural como o respirar,
Brianna pousou a mão em seu ombro. Ele enlaçou os dedos nos dela, e Brianna
encarou os parentes e os demais chefes.
− Minha família e muitos parentes estão mortos. Glenross e uma dúzia de
outras vilas foram destruídas. Sepulturas enchem as colinas e os vales. A terra está
vermelha do sangue dos escoceses.
− A reconstrução de Inverness custará mais vidas escocesas pelo desperdício
de tempo.
− Talvez, Malcolm. Mas, quando estiver concluída, muitos escoceses estarão
protegidos dentro destas muralhas. Não vêem? − ela perguntou a todos. − Muitos
já morreram porque Inverness não pôde ser defendida de maneira adequada.
Inclusive muitos do clã Drummond!
− Podemos bem estar todos perdidos com essa aliança com o rei inglês −
Malcolm retrucou, furioso, um sofrimento mais profundo a retorcer as feições
tingidas de ódio.
− É possível, mas só o tempo dirá. No entanto, uma coisa é certa: já estamos
perdidos sem ela.
− Silêncio! − Ian, o pai de Malcolm, bateu com a mão calejada no tampo. −
Não discutiremos mais esse tema! Daremos uma chance à aliança, pois sem ela não
temos nada. − Voltou-se, o olhar a examinar as faces de seus companheiros chefes.
− Aqueles que estão de acordo com a aliança digam "sim".
Houve um burburinho de aprovação entre os escoceses.
− E aqueles que são contra? − ele quis saber. Quietude.
Malcolm encarou os mais jovens dos clãs que tinham decidido não desafiar
os mais velhos. Praguejando, jogando uma caneca na lareira, retirou-se da mesa e
foi sentar-se nas sombras.
Conforme as armas eram de novo embainhadas, Ian berrou para as criadas:
− Tragam cerveja e mantenham cheias as canecas. Toda essa discussão me
deu uma sede tremenda. − Ao se servir, bebeu um longo gole e então bateu a
caneca na mesa. − Punhal! Espada! Escudo! Que comecem os jogos, e veremos
quem é o melhor guerreiro.
Gargalhadas ecoavam de todos os cantos. Um enorme quadro de madeira foi
trazido e colocado diante dos chefes.
Brianna suspirou de alívio. Tentou livrar a mão da dele, mas Tarek a
impediu.
− Não vá. Por favor, fique.
− Tenho o que fazer, milorde − protestou, inquieta. Os dedos de Tarek se
fechavam em torno dos dela com um calor agradável e um vigor que parecia de
certa forma íntimo, como se fossem namorados, e não apenas parceiros numa
aliança estratégica.
− Uma outra pessoa pode cuidar de seus afazeres. Quero que fique aqui. −
Ao sentir-lhe a tensão, Tarek emendou:
− Para que possa explicar os detalhes do jogo para mim.
− Apontou para o quadro sobre a mesa do lorde.
Era entalhado com um padrão de quadrados: seis de lado a lado e seis para
baixo, cada um esculpido com um símbolo de aparência estranha, com uma, duas
ou três linhas onduladas, algumas marcadas com uma linha reta perpendicular,
outros com uma combinação de curvas, pequenos círculos, a figura de um pássaro,
peixe, estrela, sol ou lua crescente. Nenhum era igual ao outro.
− O que os símbolos representam, Brianna?
− O que vê são as antigas runas. Representam os elementos do mundo
conhecido, terra, fogo, água e céu.
− Como é jogado?
Quatro parentes de Brianna escolheram um lado do quadro para ficar.
Tiraram a sorte para ver a ordem em que cada um jogaria, enquanto as canecas
eram cheias de cerveja e as apostas feitas.
− É um jogo de perícia, memória e desafio físico. Para que a partida comece,
o marcador escolhe ao acaso três quadrados no quadro.
− E quando os três quadrados forem escolhidos?
− O primeiro jogador deve repeti-los na mesma exata ordem e adicionar
outro quadrado à seqüência. Cada um a seu turno acrescentará um quadrado
também. E deve repeti-la com exatidão. O marcador toma nota de cada escolha e
anota no pergaminho para todos verem. Desse jeito, todos os presentes
acompanham o jogo.
− O que acontece quando um jogador erra?
− Perde uma de suas armas: punhal, espada, escudo. Daí o nome do jogo.
− E se perder todas as armas?
A partida começou, e os primeiros três quadrados foram escolhidos.
− Deverá enfrentar o homem que perder em seguida em uma competição
física.
− Desarmado e desprotegido − Tarek adivinhou o óbvio. O jogo parecia
simples, quase banal a princípio, mas logo se revelava rico em perícia e estratégia
conforme os desenhos intrincados eram escolhidos, tornando a seqüência cada vez
mais difícil.
− Sim, até que reste apenas um. Aí, ele enfrentará o campeão com as armas
que tem.
− Até a morte?
− Não. Precisamos de nossos guerreiros. Um não pode tirar a vida do outro.
− Brianna torceu a boca adorável. Era evidente que não gostava de nada daquilo. −
Cullum não permitiria que uma competição chegasse a tanto.
− E agora você ocupa essa posição de autoridade.
− Todos conhecem meus sentimentos a esse respeito. São os mesmos de
Cullum.
− E quanto a Malcolm de Drummond?
Tarek se concentrou no jovem escocês, que se sentava a uma mesa adjacente,
com uma caneca na mão. De vez em quando, se voltava para o lado do lorde, o
olhar faminto a se demorar em Brianna.
− Malcolm nunca foi superado, Tarek al Sharif.
Conforme o jogo continuava, ela explicava certas estratégias.
Malcolm de Drummond sentou-se com seus parentes, a se encher de cerveja,
cada vez mais circunspecto e mal-humorado, até que se levantou de repente, bateu
a caneca na mesa e fez um novo desafio:
− Não jogaremos por armas, mas sim por apostas mais altas. − Virou-se
para a mesa do lorde. − Decerto não tem objeções, milady.
− Não − ela respondeu, cautelosa.
− Então, quem aceitará o desafio?
− Eu jogarei com você. − As pupilas de McDrury luziam de ansiedade para
derrotar o campeão de Inverness.
− Jogarei também − anunciou Stephen de Valois. Fez-se um súbito silêncio.
Nenhum normando jogara até então. Todos encararam Malcolm.
− Aceito. − Malcolm se mostrou satisfeito. − Agora, será necessário mais
um para completar o quadro. − Fitou a todos até, por fim, fixar-se em Tarek. − O
que me diz, bárbaro? Você e seu homem contra mim e o meu. Normando contra
highlander. E por uma aposta alta.
Tarek sentiu a mão de Brianna enrijecer de súbita apreensão.
− Qual é a aposta?
Malcolm arqueou uma sobrancelha.
− Apostaremos Brianna.
Capítulo IX

Então serei objeto de aposta, Malcolm de Drummond! − Brianna levantou-


se da cadeira. − Eu tomo as decisões em Inverness, não você.
− Está com medo de que ele possa perder? − Malcolm a desafiou.
− Não tenho medo de nada, e você sabe muito bem disso. Tarek a puxou
para a cadeira a seu lado.
− Não permitirei isso − Brianna sussurrou-lhe, com veemência. − Não
precisa aceitar o desafio, Tarek, e ninguém dirá nada contra você. Todos sabem que
a raiva rege o coração de Malcolm.
− Está enganada. Devo aceitar. Que o jogo comece. Tem tão pouca fé,
Brianna?
− Não − afirmou, confiante.
Porém aquilo era diferente. O jogo não era familiar a Tarek, e Malcolm nem
sempre jogava com espírito esportivo, sobretudo se as apostas fossem altas. − Mas
se você perder...
− Se eu perder e cumprir a palavra, a aliança e o casamento estarão perdidos.
Que perda você iria lamentar mais?
Ficou de pé e pegou o punhal do cinto, colocando-o sobre o tampo em seu
lugar, de um lado do quadro.
− Por favor − ela implorou, pousando a mão na dele, embora não soubesse
o que pedia. − Não aceite o desafio... Por favor, não perca... Por favor, não morra!
Os dedos dela estavam gelados. Brianna fitou-o como naquele dia ao lado da
lagoa, quando aparecera da bruma para lhe salvar a vida.
− Precisa aprender a confiar em mim, Brianna. − Tarek brindou-a com um
sorriso encantador e piscou para ela.
− Não deve subestimar Malcolm. Ele superou todos que desafiou.
− Nunca subestimo um oponente. Ainda mais quando a aposta é tão
importante.
Ela olhou para os punhais e adagas sobre a mesa, com o símbolo de cada
guerreiro. O de Malcolm trazia o entalhe de seu clã, um cervo. O emblema do clã
McDrury era de espadas cruzadas. O de Stephen de Valois era o da casa de seu pai
na Normandia, mas nenhum emblema adornava o punho da lâmina que Tarek al
Sharif carregava.
Brianna pegou o punhal, desatou a fita verde da trança, enrolou-a em torno
do cabo da lâmina e amarrou-a. Em seguida, recolocou o punhal no lugar. A mão
de Tarek fechou-se calorosamente sobre a dela, no cabo do punhal. Por um
momento seus olhares se encontraram.
− Malcolm é um jogador astuto, porém existe uma chave para suas escolhas
− ela murmurou. − Ele escolhe um novo quadrado para a seqüência numa certa
ordem, da esquerda para a direita. Assim, elimina a possibilidade de esquecer um
dos próprios movimentos e tem apenas de se concentrar nos dos oponentes.
− Por que me diz isso quando poderia significar a derrota dele?
− Pela aliança. Não quero que seja desfeita por causa de raiva e ciúme.
Tarek esboçou um sorriso ligeiro.
− Agradeço por me dizer, mas eu não tenho intenção de perder.
− Que o jogo comece! − um dos escoceses gritou. Stephen começou a
primeira rodada, escolhendo os três primeiros quadrados. Em seguida foi a vez de
McDrury, aumentando a seqüência em um quadrado. Depois a de Tarek, e por fim,
de Malcolm.
Brianna a tudo observava com uma crescente ansiedade. Todos os quatro
homens mostravam uma notável capacidade de memória. Enfim, McDrury perdeu
a última arma. O salão se aquietou e todos os olhares se fixaram no marcador.
− Excluído − ele anunciou.
Outra rodada continuou, de onde tinha parado. Stephen já perdera a espada
simbólica com que jogava. Conforme o jogo se tornou mais complicado, ele perdeu
o escudo. Mais duas rodadas se seguiram. Stephen de Valois escolheu um quadrado
errado e foi desclassificado.
Era a vez de Tarek. Ele ainda tinha as três armas, assim como Malcolm.
Brianna aproximou-se, atenta. Tarek apontou cada quadrado sucessivo da
seqüência. Eram agora vinte e quatro.
− Falta! − o marcador gritou.
O olhar aflito de Brianna cravou-se em Tarek. Ela vira o movimento errado,
mas não podia avisá-lo. Ele perdeu a espada. Então, chegou a vez de Malcolm.
Como Brianna dissera, ele jogava no mesmo padrão, concentrando-se em
lembrar-se dos movimentos do oponente. Porém, conforme a dificuldade da
seqüência aumentava, ele se inquietou.
Numa rodada, perdeu o escudo, noutra, a espada. Zangado, atirou-a contra a
parede onde estavam as outras.
− A próxima perda será sua, bárbaro! − exclamou, pois cada um agora tinha
apenas os punhais restantes.
Outra rodada se completou. Os nervos de Brianna ficavam cada vez mais
tensos. Era a vez de Tarek. E se ele perdesse?
Aquilo não era nenhum jogo para Malcolm. Ele jamais renunciaria ao prêmio
pelo qual lutara, mesmo que significasse guerra nas Terras Altas. A única esperança
de Brianna se concentrava em Ian, como lorde do clã Drummond. Sua vontade
prevaleceria sobre o filho, mas a que custo?
Tarek indicou os símbolos em rápida sucessão, adicionando um quadrado.
Seu olhar cravou-se em Malcolm, e um sorriso de desafio lhe curvou a boca. Ele
sabia que acertara mesmo antes que o marcador gritasse para todos ouvirem.
− Seqüência correta. É a vez de Drummond.
A atenção de todos voltou-se para Malcolm. Brianna conteve a respiração.
Nenhum jogo chegara assim tão longe. Trinta e oito quadrados deviam ser
escolhidos na ordem exata.
Ele escolheu depressa e confiante os primeiros vinte. Mas ficou mais
cauteloso depois disso. Não conseguia se recordar com precisão da ordem correta.
Todos esperavam, em expectativa. Aí, como se de repente recordasse,
Malcolm apontou os três últimos quadrados e acrescentou mais um. Encarou
Tarek, triunfante, aguardando o veredicto do marcador.
− Excluído − o inspetor anunciou, numa voz clara, porém triste.
Malcolm explodiu de raiva:
− Seu idiota! Verifique outra vez!
− Verifiquei duas vezes. − O pobre homem ficou assustado, como se
esperasse que o salão desabasse sobre si. − Você cometeu uma falta, Malcolm de
Drummond. Inverteu o terceiro e o último símbolo na seqüência.
Ele enterrou a ponta do punhal na superfície do quadro e olhou furioso para
Tarek al Sharif.
− Se quiser o punhal, pegue-o. − Deu-lhe as costas e deixou o recinto.
Seu pai, Ian, aproximou-se da mesa do lorde, enquanto o quadro do jogo era
retirado.
− Você jogou bem. Meu filho fala demais. Ele não aceita bem a perda.
Quando Ian foi se juntar aos demais nos brindes de cerveja, Brianna dirigiu-
se a Tarek:
− Como fez isso?
− Para vencer é preciso saber três coisas.
− Quais são?
− Primeiro, deve-se estudar o oponente e antecipar cada movimento antes
que ele o faça. Segundo, esperar por aquele momento que chega apenas uma vez
em todo combate, quando tudo pode ser ganho ou perdido. É quando se investe
firme com tudo o que se possui.
− E a terceira?
Seus olhos azuis encontraram os dela.
− É necessário não ter nenhum medo de morrer. Morrer é perder, e se você
teme perder, então perdeu antes de começar.
Brianna estremeceu, a despeito do calor do fogo na lareira a suas costas.
Tarek estava preparado para morrer para evitar que Malcolm a reclamasse como o
prêmio do jogo.
− Está com frio, Brianna.
− Não...
Durante todo o tempo ela receara que Malcolm pudesse acabar com Tarek,
destruindo, assim, a aliança. Agora percebia como aquele temor era infundado.
− O que é, então? Lamenta que eu não tenha perdido?
− Não! − Seu olhar procurou o dele. − Não é isso. É que...
− O que, Brianna?
− Tenho de ir. Há muito o que fazer. − Voltou-se e atravessou o salão em
passos rápidos, ansiosa por sair e escapar das sensações estranhas que não
conseguia entender.
Tarek a alcançou à soleira e puxou-a para as sombras do corredor.
− Não precisava me contar o sistema de Malcolm para que eu vencesse o
jogo.
− Eu sei. Tinha de ter certeza de que você ganharia de qualquer modo. − Ela
tentou se afastar dele, mas não conseguiu.
− Mesmo assim, obrigado, Brianna.
O som de sua voz fez com que ela erguesse a cabeça. Era diferente de antes,
baixa, terna, como uma carícia.
− Obrigado − ele murmurou de novo, antes de beijá-la. Não houve tempo
para pensar ou reagir. Ou escapar.
A boca de Tarek era como cetim cálido. Sua respiração misturava-se à dela, o
gosto de fogo a lhe encher os sentidos.
O olhar assustado de Brianna encontrou o dele quando mãos fortes lhe
escorregaram pelos ombros, os dedos a roçar pela face e a lhe afagar os cabelos
enquanto ele lhe inclinava a cabeça e a beijava outra vez.
− Seja minha mulher, Brianna. − E forçou-a a abrir os lábios, a ponta da
língua a correr pelo centro do lábio superior, demorando-se em brincar com a
carne sensível:
Ela ofegou, experimentando um prazer intenso pelo simples contato, a
própria língua a correr sobre o lugar que ele tocara.
Quando Brianna suspirou, Tarek tornou a beijá-la.
− De todas as maneiras − ele murmurou, rouco. Aquele beijo foi diferente,
poderoso e possessivo. A ternura fora substituída por uma paixão contundente.
Os lábios de Brianna se abriram por vontade própria, desejando aquela
língua que se esgueirava para dentro, numa exigência física que era tão íntima como
a união de amantes.
Afastou-se de repente, interrompendo o beijo. Seus olhos estavam nublados
de sombras escuras de muitas emoções. A confusão se estampava em seu
semblante.
− Brianna...
− Não posso − disse desesperada por fazê-lo entender o que ela também
não compreendia. − Não é possível.
− É mais do que possível. E juro que acontecerá, mas apenas quando você
pedir.
De repente, Tarek sentiu que ela ficava tensa e dava um passo atrás. Foi
quando um dos cavaleiros passou pela porta. Era Gavin de Marte.
− Milorde? Há assuntos de natureza estratégica que aguardam suas ordens. −
Ao olhar de um para o outro, voltou-se para sair. − Podem esperar.
− Não! − Brianna exclamou. − Não vá. Devo cuidar de algumas coisas. Boa
noite, sir Gavin.
Tarek praguejou quando ela se aproveitou da oportunidade e fugiu pelas
escadas, sem dúvida para o quarto. Ou talvez para as ameias, aonde sabia que
Brianna ia com freqüência.
− O que é tão importante, Gavin? Stephen conhece meus planos. − Tarek
controlou a raiva, ainda com o olhar cravado no alto das escadas por onde Brianna
desaparecera.
− Sim, e nossos homens não discutem sua autoridade, mas os escoceses
relutam em seguir sua orientação.
Dando-se conta de que não havia como fugir ao dever, Tarek soltou uma
imprecação.
− Por que é sempre assim tão frio neste lugar? Será que a primavera nunca
chega a esta terra?
Gavin suprimiu um sorriso e acompanhou-o até a mesa do lorde.
Era tarde quando Tarek saiu do salão com a intenção de procurar aquele
aposento no segundo andar para onde Brianna devia ter fugido. Porém, parou ao
ver o jovem Duncan, o rapaz que perdera toda a família em Glenross, a não ser o
avô.
O menino cochilava encostado na parede do lado de fora do recinto. Com o
instinto de quem vivia sob a constante ameaça da morte, acordou de imediato. A
luz das tochas brincava em suas feições infantis e pela expressão hesitante. Parecia
uma criança desamparada e apavorada ao se pôr de pé e aproximar-se de Tarek.
− O senhor disse que eu deveria procurá-lo, milorde − Duncan o relembrou.
− Para tomar conta da égua.
Sorridente, Tarek concluiu que os estábulos ofereciam mais privacidade do
que o salão principal em Inverness. Imaginou se poderia atrair Brianna para lá, pois
parecia o único local onde não encontrariam a população inteira do castelo.
Com o ânimo renovado, disse ao jovem Duncan:
− Venha, vou apresentá-lo à égua.
− Apresentar? Ela fala? Tarek achou graça.
− Há vezes em que tenho certeza de que sim. Porém ela não se comunica
por palavras, mas a seu próprio modo. E você terá de aprender sua linguagem para
poder ganhar sua confiança, pois ela é desconfiada.
− É um animal belo e raro, milorde. Nunca vi um tão bonito.
A voz de Duncan ecoou pelas paredes. Quando as portas foram abertas e
um guarda normando apareceu, uma sombra separou-se dos outros, como se
alguém os observasse sair do salão.
A luz da tocha clareou a expressão desapontada de Gillie. Ela murmurou
uma praga no frio do ar de fim de tarde, quando a oportunidade lhe escapou mais
uma vez. A ira lhe endureceu as feições quando se voltou para dentro, frustrada.
Sentiu-se um tanto conformada ao pensar que era apenas uma questão de tempo
antes que ele a procurasse pela própria vontade. Tarek era um homem de sangue
quente e não suportaria muito mais aquele casamento sem calor.
Malcolm a agarrou quando Gillie passou. Ela protestou, zangada, mas
relaxou quando a luz das tochas mostrou-lhe de quem se tratava.
− Agora não − resmungou, ainda brava por seus planos para Tarek al Sharif
terem dado errado.
Malcolm, porém, também muito zangado, arrastou-a para as sombras sob a
escada. Ali, empurrou-a contra a parede, as mãos a se fecharem em seus seios.
− Eu lhe disse que agora não!
Mas o protesto de Gillie foi sufocado pela pressão da boca de Malcolm, que
lhe puxava a barra do vestido para cima dos quadris.
Comprimiu-a contra a parede, os quadris a se esfregarem nos dela, soltando
os laços da calça.
− Eu disse não!
Mais uma vez Malcolm a ignorou e lhe afastou as coxas, investindo para
dentro dela. E Gillie suspirou e ofegou de prazer. Em vez de se debater, agarrou-se
a ele, os olhos a luzirem com um novo plano.
Capítulo X

Tarek saiu dos estábulos e subiu as escadas para as ameias. Embora fosse
tarde, Brianna deveria estar mais calma, e poderiam conversar. No entanto, não a
encontrou.
Resmungando, voltou para a muralha, determinado a encontrá-la. Na luz
prateada da lua, um lampejo lhe chamou a atenção.
Era uma pena lustrosa, pálida e brilhante, as plumas de ouro-claro reluzindo
ao luar. Acariciou a pena entre o polegar e o indicador. Era macia como cetim e
cálida ao toque, como se ainda conservasse o calor da criatura que a perdera.
Estudou o céu noturno e ouviu o rufar de asas, e recordou-se do pequeno e
bem-treinado falcão que um dia pertencera a lady Vivian de Amesbury. Tarek não
vira esses caçadores em Inverness, apenas o pombal arruinado no pátio, que vinha
sendo reparado. E aquela não era a pena de uma pomba.
Enfiou-a dentro da túnica. Perguntaria ao jovem Duncan sobre o tipo de
pássaro a que poderia pertencer.
Passara-se muito tempo desde que ela estivera naquele lugar antigo, e
Brianna não tinha certeza de que poderia encontrá-lo. Todavia, como se algum
instinto a guiasse, localizou o lago entre as brumas, à margem da floresta.
O lago reluzia conforme a luz prateada de um quarto de lua incidia na água, e
ela podia ver a própria imagem refletida na superfície.
O rosto que a olhou de volta não mais era o de uma criança esperando
ansiosa por um relance de alguma criatura aquática imaginária que surgisse das
profundezas. O que viu a espantou: feições emolduradas por cabelos de ouro-claro,
que caíam além dos ombros em desalinho, e olhos que a encaravam, assombrados
por visões daquilo que não conseguia entender, além de uma profecia da infância
que a atormentava. Não eram seus olhos, mas os olhos de alguém mais.
Já os vira antes, em sonhos. Pertenciam a uma bela mulher que a chamava,
dizendo-lhe que era hora de se levantar.
− Mamãe? − Brianna murmurou.
A superfície da água arrepiou-se como se em resposta. Então, mais uma vez
ficou lisa como vidro, refletindo a pálida luminosidade da lua e as folhas da
sorveira-brava cujos galhos se penduravam sobre a beira do lago.
− Uma folha, duas folhas, três folhas... − ela recordou as palavras antigas,
esquecidas até então.
Apanhou três folhas da sorveira-brava e comprimiu-as entre as palmas.
Depois, ajoelhou-se e estendeu as mãos, palmas unidas, sobre as águas ainda calmas
e brilhantes, ao mesmo tempo que voltava os pensamentos para dentro,
procurando aquele lugar íntimo no fundo da alma.
Conforme a porta do passado se abria, Brianna deixou que uma folha caísse
no lago. Quando flutuou, ela repetiu as palavras antigas:
− Flutua, folha, folha de verde vívido, ajuda-me a ver o que está escondido.
Quando a primeira folha foi para longe, Brianna soltou outra, repetindo a
cantiga. Em seguida, liberou a terceira, a murmurar o encantamento.
Cada folha deslizou na mesma direção da anterior, como se guiadas por
alguma corrente invisível, fazendo ondular a água em círculos concêntricos até que
um círculo sobrepunha-se ao outro.
Ela olhou, incrédula, para o padrão perfeito, pois reconheceu-o de imediato,
embora mal fosse visível na água.
Os dois círculos expandiram-se até que tocaram as margens, o centro
sobreposto como uma abertura no coração dos círculos juntos. Impulsionada por
poderes desconhecidos, Brianna estendeu a mão e repetiu:
− Revele-me o que está escondido.
A luz partiu-se em raios das profundezas e penetrou o centro dos círculos, a
revelar imagens do passado, presente e futuro: um homem gentil, bondoso, belo de
feições, com extraordinários olhos azuis e sorriso adorável. Depois foi substituída
por outra imagem de um guerreiro de cabelos negros que carregava a espada do
Islã. Tarek al Sharif. Enfim, outro guerreiro, de cabelos loiros, olhos tão gelados
como a morte, mãos poderosas fechadas em torno de um machado de guerra
gigante. O sangue ensopava sua túnica.
Ele ergueu a cabeça devagar e a encarou. Mardigan. E, diferente de qualquer
sonho, Brianna sentiu que ele estava muito próximo.
Um frio súbito a dominou, envolvendo-lhe o coração. A superfície do lago
escureceu. A abertura no centro dos círculos sobrepostos fechou-se conforme a
visão desaparecia. Porém a certeza da proximidade de Mardigan permanecia, e
intensificada.
Brianna ergueu a cabeça tentando captar alguma mudança no odor e no som
da floresta circundante. Sentidos aguçados, virou-se quando uma sutil corrente de
ar trouxe um cheiro que não estava lá antes: era de homem, ardido de suor, de
sujeira, dos restos azedos de comida e o fedor de sangue.
Os pêlos se eriçaram em seus braços e na nuca. O coração disparou. Os
homens de Mardigan se encontravam por perto e bem escondidos, onde não
poderiam nunca ser encontrados. Confundiam-se com o terreno e se mesclavam às
redondezas. E se esquivavam da captura com mestria.
Brianna seguiu até a borda da mata. Seus sentidos a avisavam do perigo e,
contudo, não poderia partir até que soubesse o exato local onde se escondiam
Mardigan e seus homens. Por fim, através da densa cobertura de árvores,
encontrou-os.
Armaram o acampamento na base de uma rocha que aflorava do solo, bem
protegidos contra qualquer ataque de surpresa. Vinte soldados se reuniam em torno
de uma fogueira, os restos de uma caça ardendo num espeto. O fedor de corpos
sem banho impregnava a noite, o suor masculino a recender da batalha recente,
mesclado a um cheiro cru e animal de sexo.
As risadas eram estridentes, a linguagem, obscena. Um deles arrastava uma
jovem. Uma marca vermelha se espalhava pela face da mulher, e parecia aturdida.
Tinha o corpete do vestido aberto. Parecia atordoada e não fez nenhuma tentativa
de cobrir os seios. Suas saias estavam manchadas, e os cabelos, cheios de folhas e
gravetos.
− Ei! É minha vez com ela!
Mardigan, sentado, cortava um pedaço de carne do espeto.
− Talvez você quisesse ser o primeiro a prová-la − alguém debochou do
companheiro, numa caçoada;
− É minha vez! − reclamou o companheiro, zangado −, e não ligo para seus
restos.
Mardigan levantou-se.
− Parem! − Com a espada na mão, separou-os e jogou um dos homens
muito perto do fogo. − Não podemos atacar os escoceses se brigarmos entre nós!
O próximo que abrir a boca sentirá o amor de minha espada!
Lançou a arma de lado e agarrou a mulher. Em vez de levá-la para longe,
como os outros tinham feito antes, jogou-a sobre o leito de peles ao lado das
labaredas. Quando ela protestou baixinho, ele a esmurrou e a comprimiu no chão,
com a intenção de possuí-la na frente de seus homens.
Quando Mardigan puxou as saias da mulher para cima, sobre os quadris, um
grito agudo chegou até eles, silenciando as gargalhadas e os comentários boçais dos
invasores, em meio a um frenesi de asas poderosas e presas afiadas.
Mardigan se virou, e aquelas garras enterraram-se em sua face, abrindo a
carne até o osso. Ele saltou para o lado.
− Corra! − Os pensamentos de Brianna ligaram-se aos da moça,
sobrepujando o sofrimento e o estupor. − Escape enquanto pode!
Lenta para reagir, com o corpo machucado e sentindo muita dor, a mulher
lutou para ficar de pé. Olhou pelo acampamento, à procura de quem falava com
ela.
− Corra! Para a floresta. Eu a encontrarei! − Brianna assegurou. − Mas você
precisa ir agora.
Com o rosto a escorrer sangue, Mardigan berrou para seus homens:
− Matem essa criatura!
Caçador experiente, o falcão passou mais uma vez sobre eles, sua mira
infalível ao retalhar o lado da cabeça de outro soldado, arrancando-lhe a orelha. O
sujeito rolou pelo chão, comprimindo o ferimento.
− A mulher! − outro gritou. − Fugiu para a floresta! Pragas e gemidos
acompanharam o falcão, que também fugiu para a mata. Seguiu o ruído da jovem
pelos arbustos e galhos pendentes e voou para perto uma vez, mas ela se assustou e
mudou de direção, apavorada com aquelas garras mortais.
Chegou à colina, o som de seus perseguidores não muito longe, atrás dela.
Escorregou pelo pequeno declive rumo a um reluzente lago.
Brianna a viu quando chegou à margem. Agarrou-a pelo braço com uma das
mãos, e com a outra lhe tapou a boca. Ela arregalou os olhos de susto e começou a
se debater.
− Não grite! − avisou Brianna. − Não vou machucá-la. A moça ofegou,
espantada, quando Brianna a soltou.
− Foi você que eu ouvi... Mas não vi ninguém. Onde se escondia?
− Perto, na floresta. Temos de sair daqui, ou eles nos encontrarão. − Puxou
a desconhecida para trás de uma árvore caída à beira do lago e cobriu os ombros
dela com seu manto.
− Você foi ferida!
Brianna limpou o sangue dos dedos.
− Não é nada. − E fez um gesto para que a jovem se calasse.
Agacharam-se juntas atrás da árvore caída, ouvindo a aproximação de
Mardigan e seus homens. A neblina começou a subir da superfície brilhante do
lago, espessou-se e tornou-se mais densa, cobrindo tudo, empanando a visão.
Thomas a esperava nas ameias quando Brianna voltou, no momento em que
a aurora surgiu no horizonte, os pensamentos a se ligarem aos dela, com
preocupação.
− Você esteve no local antigo.
Ela estava com frio e exausta, e apoiou-se contra o ombro largo do amigo,
para lhe contar do acampamento de Mardigan na floresta e da mulher que trouxera
de volta para Inverness, uma sobrevivente de um ataque a uma vila, onde vira a
família inteira ser assassinada. Brianna demorara a retornar por não querer deixá-la
sozinha.
Agora, a jovem, Enya, esperava do lado de fora do portão, nos jardins.
− É preciso que todos acreditem que ela me informou dos assaltantes,
Thomas. − Diante da expressão cética do amigo, ela emendou: − Enya é grata por
estar viva, e não me trairá revelando que fui eu quem a encontrei no acampamento.
Dirá a todos que escapou.

E, na verdade, fugira. Com a pequena ajuda de uma amiga.


− Agora, preciso chegar a meu quarto antes que os outros acordem. Embora
seja minha parente, não confio em Gillie.
Thomas assentiu.
− Sim, aquela mulher é ambiciosa. Não hesitaria em desacreditá-la diante de
milorde Al Sharif.
Mantiveram-se nas sombras da manhã que nascia ao cruzarem, rápidos, o
pátio para a porta que se abria da cozinha. Assim que entraram, Thomas seguiu
para o corredor escuro onde ficava a passagem oculta.
− Tome cuidado, Brianna.
E ela entrou pela abertura. Brianna pousou a mão em seu braço, extraindo
força e conforto do amigo. —- Obrigada, Thomas. Quando ele quis segui-la, ela o
impediu.
− Estarei segura, agora. Você deve procurar Enya e cuidar dela. Receio por
aquela garota se ficar fora das muralhas por mais tempo. E devemos fazer com que
ela traga notícias dos vikings. Traga-a até mim. Deve parecer que eu soube de tudo
primeiro. Em seguida, avisarei milorde.
Thomas concordou e fechou o painel de pedra atrás dela.
Não houvera tempo de pegar uma tocha do salão, por isso Brianna seguiu
avante na escuridão, pelos degraus de pedra, guiada pelos sentidos aguçados. No
topo da passagem, encontrou a alavanca que abria o painel. Ao pousar a mão nela,
Brianna soube que havia alguém no quarto do outro lado.
Não pressentiu perigo, apenas uma sensação que se espalhou pelas
terminações nervosas. Caçoou da própria tolice. Claro que sentia a presença de
outros, pois o aposento estava ocupado pelos sobreviventes de Glenross. Ao
comprimir o mecanismo e quando o painel afastou-se, experimentou a mesma
sensação, ainda mais forte.
O chiado do fogo no braseiro foi o único som que ouviu ao sair de onde se
achava. A tapeçaria balançou com a corrente de ar gelado que a seguiu e depois se
acomodou na parede, conforme ela fechava o painel. Confiante de que não
perturbara Anne e as outras, Brianna saiu de trás da tapeçaria.
O fogo proporcionava a única luz, um brilho suave que deixava os cantos do
quarto nas sombras. Ela hesitou, certificando-se de que não acordara ninguém, e
depois avançou, puxando o capuz do manto.
− Bom dia, Brianna.
Capítulo XI

Brianna virou-se depressa. As chamas do braseiro iluminaram-lhe os cabelos


dourados e se refletiram no verde assustado de suas íris.
− Bem-vinda de volta, minha esposa. − Tarek avançou com passos rápidos,
ágeis como os de um felino.
Brianna notou o dormitório vazio.
− Todos se acomodaram bem em outro lugar. Para onde leva a passagem?
Ela o analisou com cautela. Não conhecia o temperamento daquele homem,
que a fitava como um gato a espreitar sua presa.
− Conduz a um corredor perto da cozinha.
− Um meio de escapar sem ser vista. Brianna não negou.
− Thomas e eu a usamos na noite em que Inverness foi atacada.
− E hoje? Deixou a fortaleza?
Ela sentiu que ele já sabia a verdade, ou pelo menos saberia, se lhe mentisse.
− Sim.
− Por quê?
− Para me afastar de você.
Fora em busca de respostas no único lugar que sempre lhe oferecia algumas,
as águas misteriosas do antigo lago ao qual se achava conectada.
Tarek pestanejou, como se agredido fisicamente. Não disse nada. E, no
silêncio, Brianna sentiu que o magoara mais com a verdade do que o faria com
qualquer mentira que pronunciasse.
A pesada tapeçaria sobre a porta foi afastada. Stephen de Valois adentrou,
apressado. Parecia tenso.
− Uma mulher pediu para ver lady Brianna. Ela sobreviveu a um ataque e
trouxe notícias de Mardigan e seus homens. Estão na floresta a menos de um dia de
distância ao sul de Inverness! Os homens aguardam suas ordens, mi-lorde. E os
escoceses se reuniram também.
Tarek franziu a testa.
− A terça parte dos homens irá conosco. Os demais ficarão para defender
Inverness. − Quando se voltou para sair, sentiu a mão de Brianna na manga da
túnica.
− Eles têm a vantagem de se locomover depressa, sem o peso de armaduras.
As roupas se misturam com a vegetação. Cairão sobre vocês, que não perceberão
até que seja tarde demais.
As sobrancelhas negras se juntaram sobre os intensos olhos azuis.
− Como sabe disso?
− Esqueceu-se de que conheço muito Mardigan, milorde.
Aquele olhar mergulhou no dela, como se tentasse ver o que mais havia além
das palavras. Tarek dirigiu-se a Stephen.
− Os soldados usarão apenas calças e túnicas que se confundam com as
cores da mata. E carregarão só armas que possam ser escondidas com facilidade. Se
os assaltantes se misturam à floresta, faremos o mesmo.
Não seguiu de imediato atrás de Stephen, que saía para cumprir as ordens,
mas hesitou como se quisesse dizer mais algo.
− Conversaremos de novo, Brianna. − E então se foi.
Sir Gavin voltara, vestido com túnica e calça que se camuflavam com a
vegetação. O acampamento dos assaltantes fora encontrado. Estava vazio, porém
não fazia muitas horas.
Malcolm resmungou ao se levantar dos restos ainda quentes da fogueira.
Passou por Tarek al Sharif sem tentar disfarçar o desprezo. Pegou a espada e o
machado de guerra e, com um gesto para seus homens, seguiu a pé para a mata.
− Os bastardos farão com que sejamos todos mortos − Stephen resmungou,
ao observar os escoceses desaparecerem entre as árvores.
− Deixe os cavalos, Stephen. A floresta é muito densa para seguirmos
montados; isso só iria nos retardar. Vamos flanquear os escoceses.
− E fechar o cerco a qualquer ataque que possa cair sobre eles.
− Isso mesmo.
Com a certeza de que estavam muito próximos dos invasores,
Malcolm e os escoceses tinham avançado em frente antes do nascer do dia.
Tarek mandou avisá-los para que mantivessem a posição e assim coordenar o
ataque. Mas eles não esperaram.
Tarek deu ordens rápidas e dividiu suas forças, mandando metade de seus
soldados sob o comando de Stephen para o noroeste e levando o restante na
direção nordeste. Assim, poderiam atacar por dois lados.
Os escoceses, inferiores em número, foram surpreendidos pelos invasores
nórdicos. Galhos e arbustos eram arrebentados em pedaços com a luta feroz. Tarek
maldisse a densa folhagem e a imprudência dos escoceses conforme se
aproximavam do campo de batalha.
O inimigo poderia estar escondido atrás da próxima árvore. Pela clareira, ele
viu os escoceses, numa valente refrega, vacilar e depois se reagrupar, a despeito do
número de seus mortos. Tarek abriu caminho rumo aos homens de Malcolm,
fechando o ângulo de ataque, enquanto Stephen o fechava do flanco oeste.
Quando um invasor caiu sob sua lâmina, ele virou-se e viu outro, com um
punhal curto, a enterrá-lo no ombro de Malcolm. O guerreiro gritou ao cair de
joelhos. O inimigo ergueu a arma para o golpe mortal.
A reluzente cimitarra persa o pegou de cima para baixo até a barriga,
abrindo-o do pescoço ao osso do peito. O punhal parou no ar como se seguro por
mão invisível. Então, o homem caiu ao solo, ao lado de Malcolm. Tarek abaixou-se
e puxou-o de pé.
− Largue-me! − Malcolm exclamou, ríspido.
− Pelo Profeta, você vem comigo! − Tarek afirmou, com igual veemência,
ao arrastá-lo para a beira da clareira. − Não darei mais razões para seu povo me
odiar, deixando-o para morrer.
Acomodou Malcolm num lugar seguro, longe da batalha.
− Seu braço que segura a espada está inutilizado. − Tomou a outra mão de
Malcolm e comprimiu-a contra o ferimento aberto ao ombro, forçando-o a manter
a carne junta. − Viu Mardigan?
− Do outro lado da clareira. Vai reconhecê-lo pelo tamanho. Tem cabelos
loiros e olhos frios como o coração de uma prostituta.
Tarek abriu caminho pela clareira onde Stephen e seus homens lutavam,
valorosos. Diante dos reforços, os nórdicos sentiram que a batalha se tornava
insustentável.
Ouviu-se um berro feroz. Eles pararam de lutar, viraram-se e fugiram para a
floresta.
Tarek e seus homens foram em seu encalço até que se tornou evidente que
era inútil. Retornaram à clareira.
Os assaltantes tinham perdido pelo menos duas dúzias de homens, mas
Mardigan não estava entre eles. Os soldados de Tarek tinham escapado com vários
ferimentos. Porém, os escoceses não tiveram a mesma sorte. Ansiosos, apressados
e indisciplinados, haviam se lançado ao combate sem levar em conta o número
maior de oponentes. E pagaram um alto preço. Oito escoceses morreram, com
igual número de feridos, entre eles Malcolm.
− Salvou minha vida, bárbaro.
− Sim.
− Por quê?
Tarek agachou-se perto dele e o examinou. O corte era profundo, e Malcolm
perdera muito sangue, mas viveria, se voltassem a Inverness sem demora.
− Não direi que não considerei a idéia de deixar a faca do viking cair onde
ele pretendia.
Malcolm estreitou os olhos.
− Sua honestidade é brutal, bárbaro. − Sorriu quando Tarek colocou um
pedaço de pano contra o corte e comprimiu-o com firmeza para estancar a
hemorragia.
− Sim, porém, na verdade, não vi razão para desperdiçar a vida de um
habilidoso guerreiro. Inverness necessita de todos eles.
− Estou em débito com você.
− Não peço nada em retorno, a não ser uma coisa.
− Qual é seu preço?
− O que é meu eu manterei até a morte. Brianna é minha esposa. O que se
passou entre vocês antes nada significa. Juro que se transgredir essa linha, escocês,
usarei esta lâmina para terminar o que o invasor pretendia.
− Creio que deve existir sangue escocês em suas veias, bárbaro, pois você
lutou com valentia como um de nossos compatriotas. Está certo, não transgredirei
os votos que foram pronunciados, a menos que Brianna assim escolha.
− Ela não o fará.
Enquanto os outros feridos eram atendidos, Tarek voltou pela clareira até
onde se achavam seus homens. Stephen de Valois se juntou a ele.
− Os vikings fugiram como se nunca tivessem estado aqui. Deixaram três
dos feridos para trás.
− Nós os levaremos de volta a Inverness. Talvez possam ser persuadidos a
nos dar informações. E quanto a Mardigan?
—- Escapou também.
Um objeto de metal captou a luz do sol que se filtrava pela copa das árvores.
Tarek ajoelhou-se no chão ensopado de sangue e pegou o objeto. Era um
medalhão feito de ouro marchetado e estampado em relevo, com a imagem de uma
cabeça de dragão emoldurada num círculo de chamas. Seus dedos se fecharam
sobre o objeto, a borda a lhe cortar a mão, quando abriu a túnica e tirou o
medalhão que trazia pendurado no pescoço.
Usava-o fazia vinte anos, e pelo mesmo tempo procurara pelo homem que o
possuíra, antes dele. Aquele que raptara e desgraçara sua mãe: seu pai.
Os medalhões eram idênticos. Não havia nenhum corpo perto de onde ele o
descobrira. Devia ter caído de um dos guerreiros de Mardigan. O homem que
procurava estava entre eles.
− Pelo Profeta, juro que o encontrarei! E então o matarei!
Capítulo XII

Brianna sonhou que seguia para o lago. Era impulsionada por aquela
sensação inconfundível, como se fosse guiada por algum poder maior.
Encontrou-o, envolto em bruma. No sonho, estendeu a mão sobre a
superfície. Como antes, dois círculos entrelaçados surgiram num padrão infinito,
com o poder da luz ainda mais forte onde se sobrepunham.
Suas visões e seus sonhos sempre a levavam para aquele lugar. Estava
conectada a ele, por razões que não compreendia. A única coisa que sabia era que
as respostas que buscava se encontravam ali.
Concentrou-se na luz, sentindo seu calor a se infiltrar por seu corpo, os raios
dourados a luzir em torno de sua mão e depois subir pela extensão do braço para
dentro do corpo, queimando seu sangue e invadindo sua alma.
O céu explodiu com a luz de um bilhão de estrelas que se uniram num único
ponto de luz poderoso que abriu a superfície reluzente dos círculos concêntricos
para revelar um portal na água. Por instinto, ela foi atraída para lá. Sentiu que era
aquilo que procurava. Além do portal, encontraria as respostas.
A luz tremeluziu. Então, pareceu fenecer, o portal desaparecendo conforme
uma escuridão crescente ia buscando pela luz, afogando-a. A superfície do lago
também escurecia. Borbulhou e fervilhou, distorcendo os círculos até que também
sumiram.
− Não! Espere! Não vá! Eu preciso saber. Quem sou eu? Por que tudo isso
está acontecendo?
Era apenas outro sonho. Então, uma voz a chamou em seus pensamentos,
querida e familiar, como um guia para o mundo real.
− Fique tranqüila, menina. Está a salvo agora. Nenhum mal irá lhe
acontecer. Eu estou aqui.
Brianna acordou e estremeceu. Seu corpo lutava para se livrar de uma
fraqueza e letargia que a puxavam como dedos invisíveis, recusando-se a deixá-la
retornar ao mundo consciente.
− Thomas?
− Sim, menina.
− Onde estou?
Brianna viu a muralha recortada de ameias e sentiu a pedra fria do passadiço
sob os pés. Na noite anterior, trancara-se no quarto por trás da porta recém-
colocada.
− O que está acontecendo comigo? O que significa tudo isso?
Thomas apertou-a nos braços, tentando confortá-la como fazia quando ela
era criança. Porém, a menina tornara-se uma mulher atormentada por
pensamentos, sensações e lembranças que não compreendia.
− Calma, Brianna. Fique tranqüila. Você dormirá agora, em paz, sem ser
perturbada por nada.
Thomas sabia que os sonhos voltariam de novo. Puxou o manto em torno
dela e franziu a testa ao ver a marca no ombro esquerdo, onde o decote do vestido
escorregara. Eram dois círculos perfeitos, sobrepondo-se um ao outro, num
símbolo antigo.
Tomou-a no colo e carregou-a para baixo das ameias, pelo pátio, conforme a
aurora pincelava o céu de cores, e depois para cima, pela passagem escondida até o
dormitório.
Deitou-a na cama. Brianna já mergulhara num sono profundo que nenhum
sonho poderia perturbar, ao menos por algum tempo. Era sempre assim.
Um raspar suave à porta chamou-lhe a atenção. Zangado, Thomas abriu-a,
esperando ver a prima de Brianna, Gillie. Ela se tornara como uma sombra para a
patroa nas semanas que se passaram desde que os guerreiros partiram. E nunca
perdia a oportunidade de fazê-la saber da intenção de se tornar amante de Tarek al
Sharif.
Não era Gillie, porém, mas Enya, a quem a patroa resgatara na floresta.
Ela não fez perguntas. Apenas aceitou o que não conseguia entender ao
passar por ele e ir até a cama, ajeitando as cobertas de pele em torno de Brianna.
− Ficarei com ela. − Então, Enya o fitou e sorriu.
As linhas se suavizaram em torno da boca de Thomas, e ela o encarou com
ternura.
− Aposto que não pregou os olhos enquanto esperava nas ameias. − Não
esperava resposta, pois já sabia da mudez dele. − Vá e descanse um pouco. − Sua
voz assumiu a dureza do aço. − Devo a ela minha vida. Nenhum mal lhe
acontecerá enquanto eu puder respirar.
Thomas fitou a porta. Enya compreendeu o significado ao seguir a direção
do olhar.
− Sim, colocarei a tranca depois que você sair. Aquela prostituta fedida não
entrará aqui.
Satisfeito porque sua patroa ficaria em segurança, Thomas voltou-se para
sair. Enya o seguiu até a soleira e pousou a mão em seu braço.
− Você é um homem gentil e leal, Thomas. Serve sua patroa muito bem.
Desacostumado a receber afeição, a não ser de Brianna, ele puxou o braço. E
viu a tristeza no semblante de Enya.
− Sim. Como os outros, você pensa que não sou melhor que Gillie, depois
do que os assaltantes fizeram comigo.
Ele sentiu como se uma faca se enterrasse entre suas costelas. Nada o
preparara para o espírito indomável de Enya, para a lealdade feroz que dedicava a
sua patroa ou a gentileza que tinha para com ele. Assim, respondeu da única
maneira que poderia: afagou-lhe o rosto com a mão calosa.
Os olhos de Enya se iluminaram de surpresa com o gesto doce. Colocou os
dedos sobre os dele.
− Você é maravilhoso, Thomas. Tão bom quanto qualquer lorde ou rei.
Ele enrubesceu, pois ninguém nunca dissera algo semelhante a seu respeito.
Ou pelo menos daquele jeito.
Ainda mais confuso, Thomas saiu e parou do lado de fora apenas o tempo
suficiente para ter certeza de que Enya colocara a tranca.
− Beba tudo − Enya disse com firmeza ao levar a taça de metal aos lábios de
Brianna.
Ela pestanejou e cerrou os dentes. Sua cabeça latejava, a dor a pulsar nas
têmporas. Cada som, o raspar das cobertas ao serem puxadas, o chilrear de um
pássaro no vão da janela, o chiado do fogo na lareira, era amplificado cem vezes
para seus sentidos aguçados. Era sempre assim depois de acordar de um de seus
sonos profundos.
A tisana quente ajudou, acalmando os músculos, doloridos, aquecendo-lhe o
sangue, aliviando a dor de cabeça, e ela, por fim, conseguiu erguer as pálpebras.
Suas emoções estavam à flor da pele. Ao meio-dia, não fez a refeição com os
outros no salão, mas buscou a solidão dos jardins, onde brotos e folhas das
semeaduras que Mirren fizera no meio do inverno surgiam da terra em busca do
calor do sol.
Ao redor, o som da construção da robusta muralha que aos poucos se
fechava em torno de Inverness, e que também deixaria para fora seus inimigos.
Entre os operários achavam-se soldados normandos e guerreiros escoceses,
que se revezavam nas muralhas para montar guarda. O medo de ataque estava
presente na mente de todos, com um terço dos homens ausentes.
Brianna ouviu o primeiro grito das muralhas. Cavaleiros se aproximavam de
Inverness. Uma palavra fez nascer o temor instintivo com que ela reagiu.
Cavaleiros...
Correu para o quarto para se arrumar. Foi quando o jovem Duncan entrou
correndo e anunciou que Tarek e os outros chegavam aos portões. Seus olhos
brilhavam, porém mantinha a expressão séria com as notícias que trazia.
− Muitos foram feridos, milady. Brianna agarrou-o pelo braço.
− Quem?
− Vários de nossos parentes, e os guerreiros normandos também.
− Duncan, ache a curandeira e mande-a para mim.
O menino se preparava para reclamar de ter de fazer uma jornada até a vila
naquele momento, quando Brianna disse com veemência:
− Agora! Os feridos precisarão dela. Duncan obedeceu, embora
resmungando. Brianna encontrou Thomas no salão.
− Coragem, patroa.
Ela, porém, não se sentia corajosa. Apavorada, desceu correndo os degraus
do salão e cruzou o pátio, onde os escoceses e normandos se reuniam em torno
dos recém-chegados.
O povo do castelo também foi para lá, esposas, namoradas e crianças à
procura de seus entes amados, Ian, que permanecera em Inverness em vez de
retornar a seus domínios, sobreviventes de outras vilas e mulheres que tinham
criado laços de afeto entre os cavaleiros normandos.
Muitos daqueles homens já tinham desmontado e ajudavam os feridos a
apear. Brianna viu então um animal de longas pernas e bela ossatura. A égua árabe!
E os cabelos castanhos do jovem Duncan, que saudava o cavaleiro a despeito de
suas ordens para que fosse buscar a curandeira.
Naquele momento, porém, Brianna não se importou com a desobediência,
pois os cabelos do cavaleiro ao lado do garoto eram negros como as penas de um
corvo, longos e amarrados atrás com uma tira de couro. E a mão estendida para
saudar o menino era bronzeada pelo calor do sol.
− Milorde!
Um grito se destacou entre os demais. Uma voz feminina, cheia de excitação
e familiaridade, como de alguém que esperasse o retorno de um amante. Era Gillie.
A prima de Brianna abriu caminho, empurrou Ducan de lado e ficou na
ponta dos pés, para enlaçar o pescoço de Tarek. A boca ansiosa encontrou a dele
num beijo que era muito mais que um cumprimento.
Uma dor inesperada atingiu o coração de Brianna e, por um momento, ela
não conseguiu nem mesmo respirar. Assim, retornou de imediato para o salão.
Encontrou Thomas nos degraus.
− Há muitos feridos, patroa. Muitos não retornaram. Brianna se virou e
focalizou cada guerreiro.
− Malcolm! − exclamou, quando não o viu. Brianna o encontrou entre
aqueles que tinham sido tirados dos cavalos e carregados para o salão. Ao ser
levado pelos degraus, pelos amigos, com o pai do outro lado, sua mão procurou a
dela.
− Ele salvou minha vida.
Diante do espanto de Brianna, Malcolm sorriu.
− Mas, por um momento, pensei que ele iria me matar.
E levaram-no para onde Enya, Anne e a jovem Nel acomodavam os feridos,
de modo que ficassem confortáveis até a curandeira chegar.
− Brianna?
Aquela voz lhe assombrara os sonhos, a lembrança de seus toques lhe
excitara os sentidos. Ela acreditou que bastava saber que Tarek estava a salvo, ainda
mais depois de tê-lo visto com Gillie. Porém, naquele momento, soube que não.
Quis se voltar ao mesmo tempo que quis correr. No entanto, não havia
como escapar das coisas que ele a fazia sentir.
− Brianna...
O som de seu nome, rouco na garganta, a fez estacar. Seu olhar encontrou o
dele, ardente, cheio de incontáveis emoções da batalha passada e daquela que ainda
haveria entre eles.
Tarek a puxou. Suas mãos fortes correram pelos cabelos de Brianna, os
dedos a se emaranharem nos fios quando ele lhe ergueu a cabeça para beijá-la.
Sua boca era do mesmo modo ardente, a forçar a dela para que se abrisse, a
língua a escorregar pelos lábios trêmulos para se enterrar entre eles com um calor
fervente.
Era isso o que assombrara seus sonhos e cada momento acordada, o prazer
espantoso, doce, sensual da junção física que prometia muito mais.
Brianna tentou se agarrar à imagem de Gillie a beijá-lo, pois a raiva seria uma
arma contra Tarek, mas descobriu que não era capaz.
A ira desapareceu sob o assalto do calor daquela língua a se enroscar na sua,
das respirações que se mesclavam, do poder possessivo daquelas mãos em seus
cabelos.
− Brianna...
− Milorde, por favor...
Tarek soltou-a devagar. Quando ela se voltou para correr para as escadas, ele
a deteve.
− Você será uma esposa para mim de todas as maneiras, Brianna.
Ela se recusou a encará-lo.
− Por favor, milorde, os feridos precisam de mim.
Ele a deixou ir, mas tornou a afirmar, ao vê-la fugir pelas escadas:
− De todas as maneiras.
Capítulo XIII

Brianna atravessou o pátio e entrou no estábulo. Cheirava a madeira fresca


desbastada pelo carpinteiro de Inverness, grama nova que mal brotara do solo de
inverno, poeira e cavalos.
Sua visão pouco a pouco se ajustou às sombras do ambiente, com o sol a se
filtrar pelas fendas das tábuas nas paredes. A poeira subia e reluzia num facho de
luz.
O burburinho de conversa cessou quando dois soldados saíram do lado
oposto. Tudo ao redor ficou de repente silencioso. Brianna virou-se para sair.
− O que você tem aí?
Ela se voltou, chocando-se contra a mesa coberta com arreios que
precisavam de reparos. Passou a cesta que trazia no braço direito para o esquerdo,
como um escudo, quando Tarek aproximou-se de onde estivera se lavando.
Gotas d'água luziam nos cabelos negros como a meia-noite, que caíam até
seus ombros e nas pontas dos cílios espessos.
− Comida para a refeição do meio-dia para seus homens. Parece que estão
fora. − Ela fez menção de sair, mas seu marido estendeu a mão e segurou a cesta.
− O que a cozinheira preparou?
Encurralada entre ele e a mesa, Brianna recuou mais uma vez o quanto pôde.
− Pão, queijo e ovos. Mas há um belo ensopado no fogão − emendou,
esperando que Tarek pudesse preferir isso, e ela pudesse escapar. − Uma comida
quente cairia melhor.
− O que trouxe me agrada. Partilhará comigo?
− Estou sem fome. − Seu estômago roncou em protesto, fazendo dela uma
mentirosa.
Um brilho divertido surgiu naqueles perspicazes olhos azuis, que pareciam
ver demais.
− Não é o que parece. Fique, Brianna. Eu gostaria de ter sua opinião sobre
algo em que tenho pensado muito. − Tirou a cesta dela e colocou-a sobre o tampo.
− De que se trata?
− É algo que a afeta também, e eu não gostaria de tomar uma decisão sem
primeiro falar-lhe.
− Muito bem, então. Diga.
− Prefiro discuti-lo com o apetite saciado.
− Muito bem, então comamos.
Almoçaram e, quando Tarek se serviu da sobremesa, um pêssego suculento,
Brianna quis saber:
− Que assunto queria discutir, milorde?
− É sobre o jovem Duncan.
Não era o que ela esperava. Tinha certeza de que Tarek apenas fingia querer
falar sobre algo com ela para mantê-la no estábulo.
− O que tem ele?
− A situação do menino tem pesado muito sobre mim. Duncan não tem
família...
− Muitos perderam os familiares nos ataques.
− É verdade. Porém Duncan tem apenas o avô. O velho é muito frágil e não
viverá para ver outro inverno.
Tarek não disse aquilo com grosseria, mas com uma franqueza gentil.
Brianna sabia que ele tinha razão. O avô de Duncan já falara de suas preocupações
para com o menino, pois não havia outro parente que pudesse ficar com ele.
− O rapaz é bom com cavalos − ele continuou a explicar. − A égua gosta
dele. E são poucos os que ela aceita.
Brianna podia ver o rumo de seus pensamentos. Duncan necessitava ter uma
família que gostasse dele.
− Anne poderia ser convencida a adotá-lo − ela sugeriu, embora Anne já
estivesse muito ocupada com um novo bebê.
Um marido em perspectiva poderia ser persuadido a aceitar uma criança de
peito; no entanto, um rapazinho que não podia ainda trabalhar para ajudar a
sustentar o lar significava mais quatro bocas a alimentar.
− Você poderia ser convencida? − Tarek indagou.
O olhar surpreso de Brianna encontrou o dele. A solução parecia tão simples
e ao mesmo tempo muito complicada.
− Sei o que é não ter família, Brianna. É um vazio na alma que nunca pode
ser preenchido. Eu gostaria de adotar o garoto. Inverness será sua casa, não para
dormir no pátio, como ele tem feito, mas num lugar só seu. Duncan poderá
aprender a cavalgar e manejar uma espada, mas irá estudar também.
O que ele sugeria eram laços que o ligavam a Inverness e a Brianna. Falava
de um futuro juntos, como se os votos que pronunciaram os vinculasse a Inverness
e um ao outro para sempre.
Era impossível, porém, a única chance que Duncan poderia ter de um futuro
diferente. E por mais impossível que fosse, Brianna sentiu lágrimas a lhe arderem
nos olhos pela gentileza expressada por aquele valente guerreiro.
− Eu gostaria muito − deu a única resposta que pôde, que tinha incontáveis
significados. − Falarei com Bruce sobre isso. Ele ficará aliviado.
- Não tinha certeza de que você iria aprovar.
− Por que não, Tarek? Gosto muito de Duncan. Ele é um excelente
rapazinho.
− Duncan pode ser muito... - Teimoso?
− Sim.
− Obstinado?
O sorriso dele transformou-lhe o semblante pensativo, mostrando uma
beleza de tirar o fôlego, quase pueril.
− Mais acertadamente. Brianna deu de ombros.
− Ora, ele é escocês!
− Suponho que terei de aprender como lidar com escoceses cabeças-duras.
− Creio que já aprendeu, milorde. Você e Malcolm parecem ter feito uma
trégua um com o outro.
Tarek se inclinou para espetar outro pêssego. Ofereceu-o a ela, que aceitou,
porque pareceu-lhe mais seguro do que uma recusa.
− Isso a agrada, Brianna?
− Sem dúvida. Malcolm é um bom amigo. Ele fez um gesto de descaso.
− Também achei que era a coisa certa a fazer. Creio que eu salvaria a vida
dele a despeito dos melhores esforços que Malcolm fizesse para perdê-la.
− Obrigada.
Tarek chegou tão perto que Brianna pôde ver cada cílio em torno daqueles
olhos azuis tão incomuns.
− Por salvar a vida dele ou pelo pêssego?
− Pelos dois...
− Olhe para mim, Brianna. Ela o encarou.
− Faz quatro dias desde que voltamos, e cada vez que tento conversar com
você, acaba fugindo de mim. Por quê?
− Com tantos feridos...
− Há outras pessoas para cuidar deles. Enya parece bem adequada para a
função. Portanto, esse não é o motivo. − Tarek afagou-lhe a face com as costas dos
dedos.
− Não faça isso! − Em um pânico crescente, Brianna evitou o contato,
mesmo ansiando por senti-lo de novo.
− Não? − ele perguntou, a entonação suave. Seus dedos escorregaram para o
queixo, forçando-a a fitá-lo. Acariciou a curva do lábio inferior com o polegar. −
Seus olhos dizem outra coisa.
− Não − ela insistiu, súplice. − Não posso... É impossível.
− Por quê? Empenhei minha espada para seu povo. Nossa gente derramou
seu sangue em combate contra o mesmo inimigo. Pronunciamos os votos perante
seu Deus e o meu. Brianna, seja minha mulher. Deite-se comigo. Vamos partilhar
nossos corpos um com o outro, pois eu a amei desde a primeira vez em que a vi,
meses atrás. Foi você quem me trouxe de volta ao Norte.
O olhar de Brianna encheu-se de tormento com o segredo que carregava. Ele
jamais poderia entendê-lo, ou aceitá-lo.
− É impossível.
− Tudo é possível.
− Não sou o que você pensa, milorde... Tarek segurou-lhe o rosto.
− Você é o sol. − A boca dele roçou a dela, roubando-lhe o fôlego, para que
Brianna sentisse cada palavra nos lábios. − É a bruma na alvorada.
− Não sou como outras...
Um suspiro de prazer escapou dela. Com um débil gemido, a boca de
Brianna se abriu.
− Não posso sentir...
Num beijo muito diferente daquele, dias antes, as mãos de Tarek se
enterraram nos cabelos dela, acariciaram cada mecha e depois lhe inclinaram a
cabeça.
A dor estranha que Brianna experimentara por semanas cresceu como uma
fome. Quando Tarek a beijou e ergueu-a para a mesa, deixou escapar um gemido.
− Pode sentir isto?
− Sim... − Maravilhada, Brianna murmurou: − Você tem sabor de mel.
− E isto? − Ele torceu a mão nos cabelos dela como uma corda, ao puxar-
lhe a cabeça para trás para outro beijo, ao comprimir a boca contra a curva de seu
pescoço.
Brianna ofegou e arrepiou-se.
Tarek estremeceu, e passou a acariciá-la muito mais intimamente. Abriu-lhe
o corpete e deparou com seios redondos e firmes, a pele pálida quase translúcida,
os mamilos da cor de areia escura. Tornou a beijá-la, e Brianna arquejou assim que
ele se apossou de um mamilo.
− Seja minha esposa de todas as maneiras, Brianna. Foi quando, além dos
estábulos, ouviram vozes muito próximas. Eram os guerreiros normandos que
voltavam do campo de exercícios do lado de fora das muralhas. A conversa era alta,
falada em francês normando. Eram os primeiros a retornar. Outros os seguiam
conforme o exercício diário acabava.
Sob as mãos de Tarek, Brianna ficou rígida ao emergir da névoa de desejo
que os envolvera. Ele sentiu o pânico que imobilizava seu corpo esguio ao perceber
que era iminente serem descobertos.
Praguejando contra a falta de sorte, os primeiros pensamentos de Tarek
foram para ela. Brianna se mostrava muito insegura, parecendo duvidar de sua
capacidade de experimentar o prazer de uma mulher. Ela deixou escapar um
gemido estrangulado e aflito ao tentar afastá-lo.
− Não − ele falou, com suavidade. − Não há tempo. Fique onde está.
− Seremos vistos, Tarek!
− Não pensarão nada, a não ser que estamos conversando. − Fechou-lhe a
frente do corpete, os seios ainda úmidos de seus beijos.
Ela saltou da mesa e pegou a cesta, recusando-se a encará-lo, com um forte
rubor a espalhar-se por suas faces e pelo pescoço.
− Brianna!
− Por favor, milorde, não me siga.
Então, passou por Tarek e fugiu.
Os homens não deram indicação nenhuma de terem visto algo ao deporem
as armas, conversando sobre as preferências de certas criadas. Outros se juntaram
ao grupo, ainda a falar na competição.
Tarek apanhou a espada e saiu em busca de Brianna.
Cada esforço de Tarek para encontrar algum momento a sós com a esposa
foi frustrado, como se a sorte conspirasse contra ele.
Contudo, à noite, durante a longa refeição e nas discussões de estratégias de
combate que sempre dominavam as últimas horas, ela não lhe evitou o olhar
quando ele a fitava.
Tarek fechou a mão sobre a alça da caneca ao observá-la, a cabeça cheia de
lembranças daquele encontro de horas atrás, quando ele se recusou a aceitar que ela
fosse menos que uma mulher cheia de paixão e desejo, e então provou isso a
ambos.
Mesmo naquele instante, sua carne se enrijecia ao se recordar da submissa
suavidade dela.
Encheram-se as canecas de novo, a não ser a dele, que continuava intocada.
Desde o retorno do encontro com os homens de Mardigan, as refeições se
tornaram mais amistosas entre escoceses e normandos, por causa da trégua forçada
da batalha.
Quando Tarek tornou a procurar por Brianna, viu o brilho dourado de seus
cabelos à luz das tochas, perto das portas para o salão, e soube para onde ela fora.
Levantou-se, pois não poderiam continuar como antes, e não aceitaria recusa dela
para que se tornasse sua esposa por completo. E se não fosse assim...
O vento varria o pátio quando Tarek o atravessou com longas passadas. Por
instinto, olhou para o portão seguro e para os guardas ao longo da muralha. Com a
lua nova logo acima do horizonte leste, avistou as silhuetas em posição contra o
céu estriado de nuvens.
Os cavalos se remexiam inquietos nos estábulos, e os pássaros voavam para
seus poleiros no pombal, como se antes de uma tempestade.
Tarek subiu os degraus para as ameias e encontrou-a lá, recortada contra o
firmamento noturno, os cabelos da cor do luar. Seu manto se agitou em torno do
corpo esguio quando Brianna se inclinou para a frente, as mãos presas no topo da
ameia, o rosto erguido para a brisa. Então, como se tivesse sentido que não estava
só, virou-se, e seus olhares se encontraram.
Sua pele era como o mármore persa, os olhos verdes enormes e sombrios na
face pálida, os cabelos de um ouro esbranquiçado, soprados pelo vento, como um
nimbo brilhante de luz que a emoldurava.
Brianna se afastou da muralha e caminhou devagar na direção dele.
Ao chegar mais perto, Tarek viu a luz febril que luzia em suas pupilas como
antes, naquela tarde nos estábulos, e pensou emjehara, a criatura mítica e mágica do
mundo imortal.
Brianna se aconchegou ao marido, as mãos delicadas a lhe emoldurar as
faces, quando ergueu a boca para a dele e respondeu à pergunta silenciosa que havia
nos olhos de Tarek com uma fervente paixão:
− Sim.
Capítulo XIV

Brianna se recostou em Tarek, as dobras do manto a abrigá-los, a carne rija


ainda enterrada dentro do ninho firme de seu corpo.
Remexeu-se e ergueu a cabeça. Suas íris estavam escuras como veludo negro,
os olhos muito abertos, desprotegidos, sem fantasmas, como se observasse dentro
do futuro e do passado.
Era frágil e leve como um pássaro nos braços de Tarek, e contudo quente
como o fogo em repouso que só espera para ser reavivado. Sua boca procurou a
dele.
− Eu não sabia... − sussurrou ao se aconchegar nos braços dele e senti-lo
enrijecer mais uma vez em seu interior.
Seu olhar surpreso encontrou o de Tarek, ainda mais toldado. Seu fôlego
ficou preso na garganta num arquejo assustado de prazer e deslumbramento
quando o marido, devagar, balançou seus quadris, e Brianna o sentiu a lhe
comprimir o ventre, como antes, só que daquela vez por dentro.
− Agora você sabe − ele disse, com profunda ternura.
Brianna deixou escapar um gemido de protesto quando Tarek saiu de cima
dela e arrumou as roupas de ambos. Em seguida, enrolando o manto em torno
dela, ergueu-a nos braços e carregou-a das ameias.
Os guardas à entrada do salão eram normandos. Se ficaram surpresos de vê-
lo carregando a filha do antigo lorde nos braços, foram prudentes o bastante para
não tecer comentários.
Tarek a levou para os degraus de pedra que conduziam aos quartos do
segundo andar. No corredor, seguiu para o quarto do lorde.
Um fogo queimava na lareira, sem dúvida trabalho de Duncan, que assumira
por conta própria o posto de escudeiro de Tarek. Tudo ao redor se encontrava
arrumado e limpo, cada coisa em seu lugar, com uma bandeja de doces e uma tigela
dos preciosos pêssegos condimentados sobre a mesa, para deleite do novo lorde de
Inverness.
Tarek não a colocou na cama, mas diante da lareira. Tirou-lhe o manto
molhado pela chuva e o deixou sobre uma cadeira próxima para secar. Então,
apoiando-se num dos joelhos, tirou-lhe os sapatos, esfregando cada pé entre as
mãos.
− Não estou com frio, milorde.
Quando Tarek a fitou, Brianna soltava os laços do corpete. E quando ele
ficou de pé, ela tomou-lhe a mão e a comprimiu contra o seio nu. O azul brilhante
das íris dele escureceu de desejo. Seu maxilar retesou-se, a voz soou baixa e grave:
− Não, não está.
Mesmo assim, ela estremeceu quando ele acariciou-lhe o mamilo, rolando-o
sob a palma até que estivesse inchado e duro. Inclinou-se, a língua a correr sobre o
bico distendido, e repetiu, rouco:
− Sem dúvida não está. − Pôs-se a sugá-lo.
Brianna gemeu com o estranho prazer que começou em seu seio, espiralou-
se para baixo através de seu ventre, um eco de desejo que aumentava em
intensidade a cada sucção daqueles lábios.
Suas mãos escorregaram por aqueles cabelos negros, puxando-o contra si.
Tarek empurrou o outro lado do corpete e apoderou-se do outro seio suavemente.
− Desnudá-la é como saborear um pêssego − ele murmurou, à medida que o
vestido deslizava pelos quadris redondos, pelas coxas e, enfim, caiu no chão.
− É difícil? − ela perguntou, ofegante, quando, com ambas as mãos, Tarek
lhe acariciou a curva dos quadris, e Brianna se recordou de como ele a segurara
antes e depois das delícias que se seguiram.
− Algumas vezes quase impossível, mas vale a pena o esforço. − Tarek a
ergueu nos braços, seus cabelos molhados a lhe caírem por sobre os ombros e a
meio caminho do piso.
Os dedos de Brianna se moveram para os laços da túnica dele e acariciaram
o peito forte e quente e o mamilo, que respondeu a seu toque.
Tarek se afastou apenas para tirar as roupas molhadas. Quando se virou para
ela, era todo bronze reluzente, superfícies elásticas e firmes, sombras escuras e
atraentes.
Era belo de tirar o fôlego, com músculos que se estiravam e depois se
retraíam, poderosos. Voltou para a cama e se esticou, com um joelho na beirada, e
deitou-se sobre ela, comprimindo-a para baixo.
O corpo de Brianna parecia em brasa. Em todo lugar que o marido a tocava
e a provava, a pele ardia como se aquele toque fosse mais prazeroso que o anterior,
até que ela se contorceu sob ele, o corpo agitado pela crescente inquietude da
urgência.
− Tarek, por favor...
E, atendendo ao apelo de sua amada, Tarek a fez sua mais uma vez.
Capítulo XV

Brianna emergiu aos poucos do torpor do sono pesado. Fora despertada por
sons que vinham do outro lado do cortinado da cama.
Remexeu-se, hesitante, no casulo quente de peles, tentando discernir o ruído.
Era de água escorrendo, misturado ao murmúrio de vozes:
− Há mais alguma coisa que eu possa trazer, milorde? A névoa da lembrança
clareou ao ouvir a voz de Tarek:
− Não, isso é tudo. Boa noite, Enya.
E quando as recordações brotaram, seu corpo se aqueceu ao pensar nas
horas passadas. Puxou uma pele espessa contra si, e os cortinados foram
empurrados para o lado.
− Vá embora! − protestou, ao se enterrar mais fundo nas peles macias, presa
ao torpor sensual do sono.
− Não foi isso o que me pediu pouco tempo atrás. − Tarek sorriu.
Sua mão afundou entre as cobertas, à procura de um tornozelo delicado que
desaparecia sob a borda da pele. Começaram um jogo de gato e rato pelas várias
camadas dos cobertores, até que ela teve de buscar por ar, quando ele, por fim, a
comprimiu entre os braços e os quadris, e a tirou da cama.
− Não! − Brianna reclamou, aconchegando-se contra ele. − Não pode ter
amanhecido ainda...
− Não mesmo. Mal passa da meia-noite.
A voz a reverberar no peito sob a face de Brianna provocou suaves arrepios
de prazer ao longo de suas terminações nervosas.
− Sendo assim, por que me acordou?
− Não o fiz. Você me acordou. Ou, para ser mais preciso, foi seu estômago.
E não posso tolerar uma esposa com um estômago roncando. Brianna ergueu a
cabeça, os olhos verdes a espiá-lo por trás de um véu de cabelos loiros que se
espalhavam pela testa.
Tarek roçou os lábios nos dela. Sem demora, porém, afastou-a dele, as peles
a deslizar pelo glorioso corpo nu, e a colocou numa larga barrica de madeira que
fora trazida da lavanderia. Em vez de camisas, lençóis e sabão de soda, estava cheio
de água limpa e fumegante. Todas as exclamações de protesto de Brianna
morreram num gemido deliciado.
− Como convenceu a lavadeira a ceder uma das barricas?
− Eu a roubei − ele afirmou, divertido.
− Vai perder a cabeça por isso − ponderou Brianna, pois a reputação da
mulher era bem conhecida. − E umas poucas outras partes de sua anatomia
também.
− Vale qualquer preço, se consigo agradá-la.
− Ah, isso eu posso garantir! − ela exclamou, numa profusão de bolhas, ao
submergir e depois reaparecer, afastando os cabelos do rosto.
Tarek ficou a observá-la a brincar na água, feliz. Parecia uma foca
escorregadia que ele vira certa vez.
− Muitos crêem que se banhar com freqüência faz adoecer e morrer, sabia,
milorde?
− Acredita nisso?
− Se acreditasse, iria cheirar como uma cabra.
− Eu lhe asseguro, você está bem longe disso. E não tenho o hábito de
dormir com cabras.
− Mesmo assim julgou que eu precisava de um banho. Eu o desgostei,
milorde?
− Agradou-me muito, isso sim. − Sua voz soou baixa e rouca com a
lembrança da paixão que partilharam. − Fiquei preocupado que pudesse sofrer de
algum desconforto depois. Água quente pode ser muito calmante, se é que me
entende.
Brianna arregalou os olhos, como poças verdes de água, de indisfarçada
surpresa.
− Sim, pode ser. − E desviou-se, constrangida à menção das horas de sexo.
− Estou bem, pode acreditar, não sofri nenhuma perturbação.
Fez uma pausa e emendou:
− Só a princípio. − Erguendo o olhar, encarou-o com aquela honestidade e
franqueza que Tarek tanto valorizava. − E não foi de fato um desconforto. Na
realidade, milorde, você foi ótimo.
Foi a vez de Tarek sorrir ao olhar para a água e descobrir outro prazer: o de
admirar aquele corpo reluzente, a curva dos seios a boiar sob a superfície, os braços
delicados em torno dos joelhos, as outras partes escondidas.
Não lhe ocorreu que pudesse ser diferente, pois sempre fora assim com
todas as mulheres, mesmo a mais exótica criatura do Império Bizantino. Porém,
descobriu que o agradava mais ouvir Brianna dizer isso, assim como fora bom
ouvir os gemidos e gritos dela ao fazerem amor, com seus movimentos ansiosos é
inexperientes.
Os dedos de Tarek correram pela água onde as pontas dos cabelos
flutuavam, enroladas nos ombros de Brianna, e se curvavam sobre um seio.
Acariciaram aquela curva lustrosa. Ele percebeu a sutil mudança na respiração, que
falava da excitação de Brianna, agora familiar a ele, e do jeito que o círculo plano do
mamilo aquecido pela água saltava de repente e se endurecia em compasso com a
rigidez de sua própria masculinidade. Ambos já se conheciam com um instinto
físico.
Então, ele deslizou os dedos mais para baixo, ao longo da curva interna da
coxa até o ninho macio de pêlos, a acariciá-lo ternamente, enquanto se recordava
das horas passadas em que julgara não poder encontrar nenhum prazer maior do
que se perder no calor úmido daquele corpo.
Como se drogada pela suave intoxicação de calor e por aquele toque, Brianna
fechou os olhos e sua cabeça apoiou-se na beira da barrica. Suas pernas se
afastaram conforme se abria para ele e ficou a esperar, tensa de antecipação.
Porém a sensação que sentiu a seguir foi do doce calor úmido da boca de
Tarek a roçar a sua. E ela deixou escapar um som que combinava surpresa, prazer e
desapontamento.
− É muito cedo, Brianna − ele disse a ela com a firmeza da preocupação,
pois na verdade ansiava por possuí-la de novo. − Vamos esperar e depois descobrir
outras delícias um com o outro.
− Por quanto tempo? − ela insistiu, sentando-se com uma impaciência que
fez a água transbordar pela borda.
Tarek achou graça, pois ela parecia uma criança geniosa a quem tinham dito
que não teria mais bolos.
− Até que eu diga que foi suficiente. − Estendeu-lhe a mão.
− Por que é que você tomará essa decisão, quando se trata de meu corpo?
− Porque sou muitíssimo mais experiente em tais assuntos. Agora, deixe-me
banhá-la.
Ela arregalou os olhos.
− É assim entre homens e mulheres no Império Bizantino?
− Não. Em geral é a mulher quem banha o homem. E se lava depois, mas
nunca na mesma água.
− Por que não?
− Porque seria impuro.
− Então, por que vai me lavar?
− Porque... − Ele se afastou, para depois voltar com uma barra de sabonete
na mão e se ajoelhar ao lado da barrica. – Me agrada. Não creio que haja espaço
suficiente para dois aqui.
− Pode ficar bastante apertado.
− Duvido que você mantenha sua decisão sobre a próxima vez em que
faremos amor, se formos partilhar este banho.
− É provável que tenha razão. Agora, vire-se.
O sabonete tinha um cheiro suave de especiarias, exótico e familiar, pois ela
o sentira antes, nele.
Tarek ensaboou-lhe os ombros, as costas e os cabelos. A seguir, o pescoço e
o colo, e ambos descobriram o prazer da espuma em outros lugares.
Brianna sentiu que os dedos dele demoravam-se em seu ombro.
− É uma marca muito incomum − ele comentou, os dedos quentes a
correrem pela marca na pele, que não era maior que uma moeda pequena.
Tinha uma cor rosada e a aparência de dois pequenos círculos, um
sobreposto ao outro. Havia outras marcas muito menores do lado de fora dos
círculos.
− Nasci com isso − ela explicou, e sentiu um aperto no peito por ele não
dizer nada. Virou-se para fitá-lo. − Existem aqueles que acreditam que tais marcas
são um sinal do mal.
Será que Tarek acreditava naquelas coisas? O fato era que ela pouco sabia
sobre aquele guerreiro moreno que agora era seu marido e lorde de Inverness.
Ele percebeu-lhe a hesitação na voz, viu a incerteza em seus olhos, ao
mesmo tempo que os ombros se endireitavam e a cabeça se erguia, altiva, como se
Brianna o desafiasse.
Tarek sorriu com ternura.
− Há também aqueles nos impérios orientais distantes
fazem de propósito essas marcas nos corpos como adorno, como prova de
seu status ou cultura. Vi tais enfeites cobrindo o corpo inteiro. Grandes desenhos
elaborados... − Apontou para o padrão do cortinado. Muito parecidos com uma
tapeçaria. E há culturas que reverenciam aqueles que nascem com tais marcas, pois
são os escolhidos.
− Escolhidos?
− São assim marcados, é o que se crê, porque foram escolhidos pelos deuses
para serem líderes ou governadores espirituais acima dos outros.
− Julga a marca ofensiva?
Havia quase um desafio na voz de Brianna, como se ela o confrontasse.
Tarek reprimiu um sorriso. Sua mulher era linda, orgulhosa, e tinha uma
inteligência aguda que não se dobrava a nenhum homem. "Pelo Profeta!" Ela lhe
instigava o sangue como nenhuma outra. Uma criatura etérea que era tão forte
como a mais fina lâmina de aço.
− Talvez eu julgasse ofensivo se fosse a marca de um porco selvagem.
− Porco selvagem? − Brianna fungou de desgosto. − Não creio que eu
gostaria disso também.
− Nem eu. − O sorriso dele se alargou. − Eu iria me distrair olhando para
um porco selvagem em seu ombro ao fazer amor como fizemos.
As faces de Brianna se coloriram de rubor e ficaram quentes, assim como
outras partes, quando ela se lembrou da maneira como tinham se unido, os ombros
de Tarek comprimidos contra os dela, sua mão a lhe descer pelo ventre para abri-la
e penetrá-la de modos inesperados e deliciosos.
Mesmo naquele momento, seu ventre estremecia e se contraía com a
recordação daquela junção, e Brianna ficou a imaginar quanto tempo era "muito
cedo". Não sentia nenhuma dor, a não ser nos músculos usados de maneiras a que
não estavam acostumados. Não era desagradável, mas uma gostosa fadiga que a
fazia se espreguiçar e antecipar a próxima vez com uma ansiedade sensual. Ele só
poderia estar brincando. Porco selvagem, ora essa!
Esborrifou água em Tarek, que lhe escorreu pela túnica, pela cintura e
reluziu nos cabelos negros que caíam até os ombros. Brianna gostou da brincadeira,
pois desviava sua mente de outros assuntos. Agora sabia pelo menos que era capaz
de sentir o que uma mulher sente quando se liga a um homem.
Seu banho esfriou. Tarek a fez ficar de pé e a ergueu da barrica. A água
produziu poças no chão.
Tarek a enrolou numa grande toalha de linho e mordiscou-lhe o ombro nu.
Brianna arquejou e o encarou. Seu olhar não era de ultraje ou dor, porém de um
desejo selvagem e poderoso. Parecia que mesmo o gesto mais travesso tinha um
efeito devastador em seus sentidos.
Ele virou-a para o fogo do braseiro, ordenando:
− Sente-se e se aqueça antes que morra de frio. Juro que nunca conheci uma
terra tão gelada. Não posso entender como alguém sobrevive aqui.
− Sobrevivemos muito bem, milorde. O frio fortalece o corpo. É que seu
sangue é muito fino.
− Não há nada de errado com meu sangue − assegurou-lhe, e sentiu as veias
queimarem ao vê-la se enxugar.
Depois aproximou-se e lhe abanou os cabelos perto do fogo, secando-os
entre os dedos, a exótica fragrância do sabonete em cada mecha dourada.
Apanharam a comida que Enya trouxera da cozinha e comeram diante do
fogo.
− Fale-me de seu lar. − Brianna mordeu uma fatia de pão com mel.
− Não tenho lar. − Tarek jogou mais lenha no braseiro, e as achas se
acenderam.
− Todos têm. Embora Cullurh e Mirren não fossem meus pais verdadeiros,
encontrei um lar aqui com eles, tão bom quanto qualquer um que eu pudesse
esperar. − Sua memória se desviou para algum outro lugar vislumbrado em visões e
sonhos, e outros rostos gentis e amorosos. Então, sumiram depressa.
Tarek franziu a testa e remexeu os carvões.
− Um lar é um lugar cheio de amor, com uma família, com pessoas que se
importam umas com as outras. Posso ver isso entre seus parentes, Brianna. São
todos ligados por uma lealdade forte, e um profundo amor por esta terra e Pelos
laços de sangue. Nunca experimentei tal coisa.
Ela estremeceu, a despeito do calor no quarto, ao pensar que ele nunca tivera
aqueles laços profundos que significam amor, segurança e felicidade.
− Mas você teve mãe e pai, lógico.
Tarek apertou o atiçador como se fosse uma espada.
− Sim − sua voz saiu baixa e tensa da garganta. − Todos têm mãe e pai.
O jeito como ele pronunciou a última palavra deixou claro que não sentia
nenhum amor por aquele que o gerara.
Então, Tarek contou a Brianna sobre Asmari, a filha favorita de um rico e
poderoso emir, e a caravana nupcial que a levava, aos quinze anos, acompanhada
pela velha tia, para Antioquia, ao encontro do jovem com quem se casaria. Falou
do ataque à cidade pelos invasores nórdicos, que saquearam e devastaram a região
ao redor, levando a filha do emir cativa.
− O emir pagou o resgate, pois amava Asmari, mais do que seu primogênito.
Porém ela fora desonrada.
Brianna ficou calada. Não havia nada a dizer.
− O nórdico que a raptou a violentou. Embora tivesse retornado para a
família, o casamento planejado para ela não era mais possível. − Tarek voltou-se, as
belas feições tensas com a frieza do ódio que se refletia em seus incomuns olhos
azuis, a marca do pai que o gerara.
A dor da vergonha de Asmari era ele mesmo. Brianna estendeu a mão, seus
dedos a se entrelaçarem nos dele.
− Não foi culpa dela. Asmari era inocente, Tarek.
− Jamais a culpei, Brianna. Houve outros, contudo, que a culparam.
− Como poderiam?!
− Alguém da família disse que ela deveria ter resistido. Mesmo que
significasse tirar a própria vida para impedir a vergonha que trouxe para todos eles.
Brianna se arrepiou. Não era tola. Muitas vezes aquele era o resultado da
guerra. Muitas escocesas sofreram coisa semelhante nas mãos de Mardigan e seus
homens.
Pensou em Enya, que enfrentava com coragem os soldados em Inverness. A
princípio, eles não a tratavam melhor do que a Gillie, que se entregava sem pudor a
qualquer guerreiro que a quisesse. Diferentemente dela, Enya conquistou respeito
com seus modos gentis e suas habilidades de cura, mantendo-se à parte e deixando
claro tanto em palavras como em atos que não seria tratada como uma prostituta.
O coração de Brianna condoeu-se por Asmari e por seu sofrimento. Doía até
mesmo pela criança que Asmari gerara, que era a mais inocente vítima de tudo.
A voz de Tarek soou baixa e cheia de sofrimento ao continuar a falar da
mãe.
Brianna gostaria de impedi-lo, de lhe dizer que não era preciso saber de tudo,
porém sentiu a necessidade maior de Tarek em desabafar o fluxo amargo de
palavras que não podiam ser contidas.
− Não muito tempo depois de seu retorno à família, Asmari percebeu que
iria ter um filho. Um bastardo, que traria mais vergonha sobre sua família.
Aquilo foi dito com tal frieza e auto-recriminação que Brianna sentiu
vontade de chorar.
− Asmari foi mandada para as colinas para viver com outras pessoas até que
seu filho tivesse nascido. Quando voltou para casa, não teve permissão de trazer a
criança, Pois isso seria um lembrete constante de sua desgraça. O bebê foi dado a
um mercador em Antioquia para que sua esposa o criasse, pois o homem tinha um
débito de honra para com o emir. Eles não tinham filhos, e assim poderiam aceitar
a criança como deles próprios. − Tarek fez um esgar. − O cão mais sarnento das
ruas receberia mais gentileza de um estranho que o menino recebeu deles.
Brianna condoeu-se por ele falar do "menino" como se fosse alguém que
conhecera, em vez dele próprio.
− A criança foi bem educada pelo emir, que fez disso uma condição ao
entregá-la para eles. Contudo, havia coisas que a riqueza e o poder do emir não
poderiam comprar: o amor de família e aceitação.
− E quanto a Asmari? Imagino que ela devia querer manter o filho.
Tarek assentiu, a expressão mais suave.
− Disseram-me que queria, sim. Não lhe foi dada uma escolha, entretanto.
Asmari foi ver o mercador numa visita a Antioquia, com o pretexto de comprar
seda. Eu a vi uma vez. Lembro-me de que era muito jovem, com cabelos negros
reluzentes, e que chorou ao me entregar um pacotinho embrulhado que continha
dois presentes. Pediu-me que os guardasse sempre, pois eram de grande
importância. Não me lembro de nada mais sobre ela. − Sua voz soou cheia de
sofrimento e saudade.
− O que era o presente?
− Um era a pedra que dei a você no dia em que nos casamos. Fora dada a
Asmari por seu pai, e passada de geração a geração. O emir nunca soube que ela a
entregara a mim.
− Sua mãe deve tê-lo amado muito − Brianna murmurou, com um aperto na
garganta.
− Talvez, embora nunca falasse disso. Creio que era muito doloroso para ela,
pois, embora eu fosse filho de seu ventre, também era o filho de sua vergonha. −
Virou-se e fitou o fogo na lareira. − Quando eu tinha sete anos, Asmari se matou,
incapaz de continuar vivendo em desgraça.
Brianna ficou tão espantada por um momento que não conseguiu pronunciar
uma sílaba sequer. Então, por fim, indagou:
− Qual era o outro presente que sua mãe lhe deu? Tarek tirou um medalhão
de dentro da túnica. A peça luziu na palma de sua mão, esculpida com a cabeça de
uma criatura estranha.
− Um filho bastardo, uma vergonha com a qual ela não podia viver, e este
medalhão. Isso foi tudo o que ele deixou com minha mãe.
A amargura do ódio mais uma vez toldou-lhe a voz, e Brianna compreendeu
que ele se referia ao homem que o gerara.
Tarek tirou um segundo medalhão, idêntico.
− Encontrei este na clareira onde lutamos contra Mardigan e seus homens.
− É igual.
− Sim, é o mesmo.
− Acredita que pertencia a um dos invasores?
- É provável, ou a alguém que conhece meu pai. Uma marca assim é como as
cores do xadrez usadas por membros de um mesmo clã.
− E se o encontrar?
− Quando encontrar aquele patife, eu o matarei. Brianna não pôde suportar
a dor do ódio que ouviu em sua voz. Era fria e assustadora, e tornava Tarek um
estranho para ela depois da paixão que tinham partilhado. Pôs-se de joelhos, a
toalha enrolada em torno do peito, e com toda a gentileza tomou as faces de seu
marido entre as mãos, sem saber se ele iria empurrá-la.
Tarek não o fez, mas a encarou sem emoção alguma. Naquele instante,
parecia ter se tornado incapaz de sentir o que quer que fosse.
Brianna não podia lhe dizer que aquilo que ele sentia era errado, pois
compreendia bem. De muitas maneiras eles tinham semelhanças, pois os escoceses
eram também orgulhosos, e muitos tinham matado para vingar a desonra de seus
entes amados.
− Minha mãe adotiva, Mirren, perdeu quatro bebês ainda por nascer. Um
quinto filho viveu apenas por um ano e depois faleceu, vítima de febre. Certa vez,
Mirren me disse que havia coisas na vida que podem ser suportadas pela alma e
outras que não podem. Ela não suportava a perda de seus filhos, e assim, quando
vim para eles, ajudei a aliviar essa perda. Portanto, lhe digo que Asmari não fez o
que fez por não conseguir viver com sua vergonha. Se fosse assim, teria se matado
bem antes. Ela não podia suportar viver sem seu filho.
Tarek a olhou com uma intensidade de sofrimento tão profunda e íntima que
Brianna teve, de novo, vontade de chorar. Porém, com a dor, também luziu um
relance de esperança diante de uma possibilidade que ele não considerara.
− São apenas palavras... - Ou talvez a verdade?
− É como você vê, Brianna.
− É como eu sei. Existem situações que devem ser suportadas porque assim
precisa ser. Contudo, creio que a perda de um filho não poderia.
Um tumulto de sentimentos perpassou o semblante de Tarek.
− Você me faz ver as coisas com humildade. Ela sorriu com doçura.
− Não, milorde. Você não conhece a humildade. Tarek tomou-lhe as mãos
entre as suas e beijou-lhe as palmas abertas.
− Creio que talvez deva ensinar isso a mim, minha mulher, porque tem o
poder em sua mão delicada de me tornar o mais obediente dos servos.
− É mesmo? − Fitou-o com malícia, com um sorriso de soslaio. −
Obediente... em tudo?
− Em tudo o que estiver em meu poder lhe dar. − Sua língua correu pela
pele suave, arrepiando-a.
− Nesse caso, ordeno que faça amor comigo de novo, milorde, pois já se
passou tempo bastante. E sem dúvida isso está em seu poder.
Ela puxou a toalha que escorregou até seus joelhos, e então, de repente,
estava gloriosamente nua. Com uma repentina impetuosidade que falava da tristeza
e solidão do menino, bem como do poder do adulto, Tarek ergueu-a nos braços e
sem demora a deitou na cama. Ali, com uma força ardente mal controlada que vivia
a conflitar com a necessidade mais racional de ser gentil com Brianna, uniram-se
como o céu da meia-noite e o sol do meio-dia, o escuro sobre o ouro pálido,
quando ela o acolheu entre os braços e no calor incandescente de seu interior.
− Eu tinha razão. − Brianna suspirou conforme ele se movia sobre ela,
como bronze reluzente, a carne máscula a investir ereta e potente entre os corpos
entrelaçados. − Não há nada de humilde em você.
E deixou escapar um murmúrio rouco de paixão ao lhe envolver a cintura
estreita com as pernas, abrindo-se para ele, e, enfim, deixando escapar uma violenta
exclamação de lascívia quando Tarek investiu mais fundo dentro dela.
− Sim, milorde − Brianna sussurrou, arquejante, enlouquecida de volúpia,−
de fato estava em seu poder
Brianna não tinha certeza do que a acordara. O quarto estava quieto, a não
ser pelo fogo no braseiro, que estalava, os restos de uma acha de lenha no estrado
de carvões. Enrolou-se numa pele e foi até a lareira, para abastecê-lo com mais
lenha.
Logo as labaredas aumentaram, consumindo a lenha de pinho recém-
cortada.
Não havia nenhum movimento na cama, apenas o som da respiração
profunda de Tarek, que lhe despertava uma sensação de profundo deslumbramento
e ternura diante das lembranças das horas que desfrutaram. Descobrira nos braços
dele que era possível ser uma mulher de todas as maneiras. Tarek dormia, sua
respiração muito calma para um guerreiro treinado para estar alerta com a virada do
vento.
Conforme ela se voltou para o leito, a luz do fogo no braseiro que projetava
desenhos dourados nas paredes pareceu de repente vacilar.
As sombras cresceram, e a luminosidade se tornou cada vez mais débil.
Brianna tornou a se virar para a lareira, onde as chamas um momento antes
queimavam firmes e brilhantes, e agora pareciam se extinguir.
O presságio de alguma força malévola moveu-se por seus sentidos, como se
a escuridão penetrasse seus pensamentos e se esgueirasse por baixo de sua pele. E
Brianna soube que não estavam sozinhos. Alguma coisa ou alguém se encontrava
ali, naquele aposento.
Sentiu, à maneira das criaturas da floresta, com um profundo instinto, que
havia ali algo mau e perigoso, que se abateu sobre ela, sufocante, frio e fétido.
− Brianna? − A voz era abafada e distante, como se viesse de muito longe.
E depois soou mais perto, conforme ela se concentrava no som que a
empurrava de volta para o mundo de luz, calor e amor.
Estremeceu ao respirar fundo, aspirando o doce e pungente aroma de pinho
da lenha para os pulmões sufocados. Quando se moveu, experimentou uma letargia
nas pernas que desapareceu de repente. Era como se tivesse estado morta e naquele
instante, retornasse à vida.
− O que é? − Tarek perguntou, saindo de entre as cobertas.
Então seus braços a envolveram, quentes. Brianna, ao contrário dele, estava
enregelada, a despeito da pele em que se enrolara.
− Algo errado? Pelo Profeta, você está fria como gelo!
− O fogo se apagou − Brianna murmurou entre os lábios endurecidos, ao se
aconchegar à quentura de Tarek.
Ele puxou-a de volta para a cama, onde a cobriu com as peles quentes.
− Cuidarei para que não se apague de novo − disse Tarek, quando ela se
aninhou em seu peito e começou a se aquecer.
− Não se afaste − implorou.
− Apenas para pôr mais lenha no fogo, prometo. Depois, voltarei.
Ele atravessou o dormitório até o braseiro, que mais uma vez queimava com
força. Ajoelhando-se diante dele; Tarek colocou mais duas achas, para ter certeza
de que queimariam até o alvorecer. Na realidade, o quarto não estava frio demais,
como Brianna dissera. E ele estava nu.
Voltou para a cama. Encontrou-a debaixo de um monte de peles e puxou-a
para mais perto, com um medo sombrio no coração de que pudesse tê-la
machucado de alguma forma.
− Por favor, Tarek, só me abrace. Vai passar.
Londres

Vivian acordou de repente, o aviso como um sopro gélido em sua pele.


Afastou a coberta, levantou-se, atravessou o quarto e foi até o fogo do braseiro.
Os carvões a luzir como olhos alaranjados, atentos, encaravam-na.
Com uma crescente sensação de urgência, tomou um punhado de folhas
secas de uma cesta e jogou-as nas chamas.
Espirais de fumaça pungente circularam pelo ar e se expandiram, tornando-
se mais espessas. Então o fogo ganhou vida. Ela alimentou-o com gravetos, aos
poucos adicionando pedaços maiores até o fogo crescer. Em seguida, pôs uma
acha, e mais outra.
Quando as chamas dançavam mais uma vez, Vivian estendeu a mão para
elas. Pareceu-lhe tornar-se una com as brasas, as feições tensas de concentração, as
delicadas sobrancelhas castanhas juntas sobre olhos do azul mais brilhante
encontrado no coração de uma labareda, os cabelos ruivos a tombar sobre os
ombros numa cascata de brilhante escarlate, ouro e vinho como o próprio fogo.
Vivian cerrou as pálpebras e uniu-se às chamas, tirando seu poder delas enquanto
proferia palavras antigas que abriam o portal de luz:
− Elemento do fogo, espírito luminoso, essência de vida, acordem a noite.
Fogo da alma, chama da vida, como a luz revela a verdade, arda num dourado
brilhante.
As chamas se tornaram mais vivas, numa mescla de laranja, vermelho e
amarelo, traçando desenhos no ar.
Vivian repetiu a invocação e gradualmente uma visão emergiu com clareza
de todo o resto: uma bela jovem de Pele dourada rodeada por uma crescente
escuridão. Sua mão se fechou como se de repente ardesse, e lágrimas ameaçaram
rolar em suas faces. Rezou aos Anciãos para que ela pudesse estar em segurança.
Quando tentou ver mais, nada apareceu. Experimentou uma poderosa
resistência a bloqueá-la, tornando impossível enxergar alguma coisa mais.
Por fim, exausta da intensa concentração de poder necessário para penetrar
os limites entre o mundo mortal e o imortal, lady Vivian recostou-se contra o
marido.
− Senti um tumulto no outro mundo e um terrível perigo. As feições do
cavaleiro ficaram tensas, sua mão se curvou num punho duro, ansioso para segurar
o cabo de uma espada, ao puxá-la para mais perto, o abraço gentil, protetor, a
abrigá-la e à criança que crescia em seu ventre.
− Perigo para quem? − ele perguntou, e ela notou seu instinto protetor, que
retesava cada músculo.
Vivian estremeceu diante do presságio de que mesmo aquela força poderia
não ser o bastante.
− Alguém que não via fazia um longo tempo.
− O perigo está próximo?
Ela estremeceu quando o frio retornou, um augúrio de um futuro
desconhecido.
− Muito mais do que ela sabe, e bem mais perigoso.
O cavaleiro a trouxe para dentro dos braços, envolvendo mulher e bebê,
como se pudesse, com esse gesto, matar qualquer mal que viesse ameaçá-los.
Vivian se voltou e agarrou-se ao marido, desejando de todo o coração que o
amor e o vigor de seu valente guerreiro fossem suficientes para banir o frio de
terror que agora lhe enchia a alma.
− Torna-se mais poderoso a cada momento que passa, meu querido −
murmurou, com a certeza do dom com que nascera, o poder onisciente dos
Anciãos.
− Pode ser impedido?
− Não sei. Porém, existe um que saberá
− Merlin? Ela aquiesceu.
− Preciso ir até ele. Merlin saberá o que deve ser feito.
Capítulo XVI

As semanas seguintes foram frustrantes para escoceses e normandos.


Mardigan parecia ter desaparecido das Terras Altas, ou, se estivesse ainda ali,
esperto como uma raposa, escondera-se numa furna em algum canto secreto onde
ninguém poderia encontrá-lo. Não houvera,nenhum ataque recente às vilas ou
fazendas.
Os escoceses estavam inquietos, pois com a primavera vinha a necessidade
de retornar a seus próprios domínios e famílias. Hortas e campos necessitavam ser
plantados. As crias já nasciam nos rebanhos de ovelhas. Alguns homens tinham
filhos que não haviam visto ainda.
Talvez, os chefes argumentaram, Mardigan tivesse partido das Terras Altas e
se retirado pelo mar. Mas Brianna discordou, pois conhecia-o bem.
− Várias centenas de homens não somem na bruma − ela lhes disse. −
Saquearam o bastante nos ataques para durar pelo verão e mais ainda. Mardigan
jurou ter a Escócia. Se vocês depuserem as armas para pegar a enxada, selarão sua
sorte, a de seus filhos e de cada parente.
Eles a ouviram porque respeitavam Cullum e sabiam que Brianna possuía a
mesma força e sabedoria. Contudo, estavam divididos entre aquilo que sabiam que
Mardigan era capaz e entre as famílias que precisavam ser alimentadas.
Tarek ouviu todas as discussões e então fez uma proposta como forma de
solução:
− Há força em números − começou, circunspecto, sempre consciente do
campo político em que pisava e a escolher cada palavra com cuidado. − Todo
homem que alguma vez travou uma batalha sabe disso. Vocês encontraram essa
força no elo com os parentes. Proponho o seguinte: deixem aqueles que vivem
distantes retornarem a suas famílias e fazendas. O prêmio que Mardigan procura é
Inverness, pois é o coração simbólico do país do Norte. Organizem as famílias em
comunidades, plantem grandes hortas e campos de cultivo comunitários. Dois de
cada três homens ficarão aqui no castelo de prontidão, enquanto sua família é
provida pela comunidade. Depois, a cada dois meses, uma porção igual entre os
homens aqui terá permissão para retornar ao lar, enquanto outros da comunidade
assumem seu lugar. Essas comunidades devem ser erguidas dentro da distância de
meio dia de jornada uma da outra, para que as notícias possam ser passadas com
rapidez, caso haja um ataque. Aqueles cujos parentes vivem mais perto de
Inverness formarão patrulhas cujo território será também dentro da mesma
distância de meio dia de jornada um do outro, e devem circular constantemente
pela área de maneira que seus movimentos não sejam duas vezes o mesmo, e
conhecidos apenas por mim. Desse modo, ainda seremos fortes, suas famílias serão
providas e também poderemos atrair a cobra de sua toca.
Brianna ouviu a tudo cheia de admiração e orgulho, pois Tarek compreendia
a necessidade de seus parentes e dos outros chefes de proteger e suprir os
familiares, ao mesmo tempo que não diminuía de fato a proteção a Inverness. E
aquilo poderia ser compensado com a ousada estratégia de dividir as patrulhas.
Contudo, também compreendia que dividir a força mesmo que o mínimo os
deixava vulneráveis. E Mardigan também perceberia, se viesse a saber.
Os chefes concordaram e foi elaborado um plano pelo qual pequenos grupos
de homens deixariam o castelo, muito poucos para atrair a atenção e sob a
cobertura da escuridão, para que não fossem vistos. Juraram retornar do mesmo
modo. Contariam com a ilusão como aliada.
O ânimo dos guerreiros se acendeu. Tarek, contudo,continuava sorumbático.
Brianna o via diante do fogo, toda noite, remoendo os pensamentos, com os
medalhões na mão a luzir sob a luz das chamas.
Certa ocasião, Brianna ficara no salão a tomar conta dos inúmeros detalhes
que agora caíam sobre ela como filha do antigo lorde e esposa do novo senhor de
Inverness.
Ao se aproximar do quarto, viu a porta aberta, e Gillie apareceu de relance
sob a luz que se filtrava pela abertura. Seu rosto estava ruborizado, os laços do
corpete, soltos, e os lados abertos como se ela acabasse de estar com um amante.
Brianna encolheu-se.
Corriam boatos. Mesmo Thomas a avisara de que Gillie parecia muito atenta
para o novo lorde de Inverness. Brianna, no entanto, não podia acreditar que Tarek
pudesse deixar sua cama para procurar a prostituta, embora isso não fosse
incomum. Mesmo assim, Gillie vinha se mostrando muito presunçosa, embora
fosse óbvio para todos que Tarek al Sharif e a filha do antigo lorde agora
partilhavam um casamento em todos os sentidos.
Quando Brianna se aproximou, Gillie a viu. Sua expressão foi de surpresa e
depois ela corou com aparente constrangimento, como se flagrada em alguma
atitude errada.
− Boa noite, Brianna. Milorde pediu-me para trazer seu jantar. − E fez um
gesto muito óbvio de juntar as duas partes do corpete com uma das mãos,
enquanto passava depressa pela prima.
Brianna empurrou a porta do quarto e entrou, hesitante. Muitos sentimentos
eram novos para ela. Ali estava mais uma emoção que começava a reconhecer
como ciúme.
O cômodo estava escuro, a não ser pelo fogo no braseiro e uma vela
comprida colocada num castiçal de ferro sobre a mesa. Havia uma travessa com
galinha fria, queijo, fruta e pão.
Avistou Tarek sentado diante da lareira, a exaustão a lhe moldar o corpo na
cadeira, as longas pernas esticadas. Suas botas tinham sido retiradas, mas ele ainda
usava as calças manchadas de lama e a túnica sobre uma camisa de lã, também suja
de barro.
Não houvera um momento de privacidade entre os dois desde que ele e seus
homens retornaram da patrulha.
− Você não comeu − ela murmurou. − Mandarei trazer comida quente.
− Não.
− Então talvez uma caneca de vinho − ela sugeriu, pois parecia que isso
Gillie não providenciara. Enquanto o ciúme despontava e ela imaginava o que mais
Gillie poderia ter feito, Tarek ergueu a mão para impedi-la, quando ela pegou o
jarro.
− Não ligo para vinho.
Brianna tentou sentir-lhe os pensamentos, porém descobriu que não
conseguia, além das emoções que eram fáceis de adivinhar pela atitude e expressão
de Tarek. Só na cama as coisas permaneciam imutáveis entre os dois.
Fitou os medalhões que pendiam de seus dedos.
− O fato de Mardigan e seus homens não terem sido encontrados o oprime
demais, milorde.
− Ele será encontrado.
− E se não for? O que você fará?
Tarek olhou para ela, ali parada diante do braseiro, emoldurada pela luz
dourada. A expressão dele era inescrutável na luminosidade bruxuleante, assim
como seu íntimo. Contudo, ele parecia conhecer o dela. Estendeu a mão, puxando-
a para a pilha de peles que cobriam o chão de pedra, a seus pés. Com a outra,
acariciou-lhe a face.
− Fiz promessas. − Tarek se inclinou na cadeira para que seu rosto ficasse
bem próximo do dela. − Eu as considero sagradas.
Promessas para o povo de Brianna. Porém, e os votos de casamento que
tinham pronunciado? Cansara-se deles? A dúvida a perpassou, a despeito de tudo.
− Não somos sua gente, milorde. Esta não é sua terra.
Sei como detesta a Escócia e o quanto quer retornar a Antioquia.
Tarek afagou os cabelos de Brianna até a curva do pescoço, e ele a estreitou
mais.
− Tornou-se minha terra pelos votos que fiz. Mas se não houvesse terra, eu
ainda ficaria.
− Por causa do medalhão.
− Sim − respondeu com franqueza, pois não mentiria para ela. − E por
muito mais.
Ele viu no olhar de Brianna a dor que sua honestidade causava, e procurou
aliviá-la.
− Você me trouxe para o país do Norte.
− Porém, o medalhão que você encontrou...
− Eu não sabia de sua existência. Mas sim de uma bela criatura dourada que
me salvou a vida. − Seus lábios se curvaram num sorriso, e ele beijou-a de leve. −
E achei um remédio para o frio. Agora sei por que Malcolm não sofre com a
friagem.
Seu braço a enlaçou pela cintura e trouxe-a contra si, e esfregou o nariz na
curva suave do pescoço de Brianna. Sua voz saiu rouca e abafada quando a beijou
ali.
− Malcolm?
Sim, e o remédio tem nome.
− Nome?
− Gillie.
− Gillie?
− Ela o aquece bem.
− Mas eu pensei...
Tarek ergueu a cabeça, os olhos azuis a fitá-la com intensidade.
− O que pensou, Brianna?
Ela lutou para fechar a frente do corpete, que ele já abrira, mas suas mãos
estavam lentas e atrapalhadas. Aqueles sentimentos também eram-lhe novos.
− Eu a vi lá fora do quarto, hoje e outras vezes... Há boatos...
Tarek pareceu divertido.
− Achou que levei a mulher para a cama.
− Ela não fez nenhum segredo das intenções.
− Não, não fez.
− Então, por que você não... − Brianna desviou-se dele. Uma ruga juntou-
lhe as sobrancelhas. Os dedos de Tarek eram quentes em sua pele ao segurá-la pelo
queixo para que o encarasse.
− Porque ela não é o que quero.
− Mas Gillie se oferece tão livremente...
− Sim, e mesmo hoje teria ansiado por aquecer meu leito.
− Ela é bonita.
Os dedos dele passaram a tatear os seios dela.
− Sim.
Com uma frustração crescente, Brianna comentou:
− Ouvi os homens falando dela. Dizem que tem seios muito grandes...
− Sim.
− Dizem...
Porém qualquer coisa mais que pudesse dizer foi abafada pela exclamação de
prazer quando a boca de Tarek fechou-se em seu mamilo.
− O que mais eles falam? − Ele soprou o mamilo de leve, o botão rosado a
se encolher e ficar teso sob seus lábios.
− Que Gillie se oferece para qualquer homem...
− Sim.
A boca dele era quente e provocante, gentil e amorosa, e Brianna logo se viu
molhada de beijos e muito excitada com a resposta que ele parecia lhe despertar no
corpo.
Brianna se arqueou contra o calor faminto da boca de Tarek, oferecendo o
outro seio, enquanto ele provocava uma fome crescente dentro dela. Sentiu os
pensamentos se dispersarem.
− Milorde, não podemos. E se Enya ou Nel nos virem?
− Enya ficaria com inveja − ele sussurrou, com um gemido rouco, ao sugá-
la.
− Mas Nel... − quis protestar, mas sua respiração entrecortada não permitiu.
Brianna soltou a faixa que prendia a túnica de Tarek, suas mãos ávidas à
procura da carne bronzeada e quente, dura de músculos, enquanto fugidias imagens
de Gillie lhe passavam pela mente.
− Deixe a garota aprender o verdadeiro prazer que pode ser encontrado
entre um homem e uma mulher. − Tarek ergueu-a no colo. Pelas camadas do
vestido, Brianna sentiu a ponta firme da carne ereta que lhe estufava a frente das
calças, seu próprio corpo a responder com uma intensidade que a espantou e
transformou em mentira o protesto que fizera.
− Milorde, isso não é decente...
− Não. —- Ele ergueu-lhe a barra do vestido com dedos impacientes. − Não
é.
E, gargalhando, entregaram-se à paixão.
Na manhã seguinte, Brianna, ao acordar, descobriu que Tarek se fora.
Os moradores de Inverness ainda dormiam quando ela saiu do salão para os
estábulos, certa de que o encontraria ali. Quando algum assunto o aborrecia, Tarek
ia para o pátio com Stephen ou cuidar da égua.
− Ela precisa cavalgar − disse Tarek, ao vê-la. —"Fica inquieta e indomável
quando não se exercita.
Brianna acariciou a cabeça elegante.
− Posso entender sua impaciência, pois eu a senti também. − Seus olhares se
encontraram por sobre o lombo da égua. − As Terras Altas são mais bonitas ainda
durante a alvorada. Decerto não há perigo, tão perto de Inverness.
− Está sugerindo que eu escape das responsabilidades de comando?
− Sim, isso é muito necessário de vez em quando.
− E para onde você escapa quando deixa Inverness? Brianna o fitou. Estaria
se referindo à manhã em que a encontrara nas ameias? Não tinham falado sobre
isso desde então.
− Para as colinas da fronteira oeste dos domínios de Cullum. Suas terras
agora, milorde. Há um lago ali. Sempre me sinto atraída para ele.
Tarek a encarou de um jeito estranho.
− Não pensei nelas como meu lar.
− Barganhou por isso, milorde.
− Sim, porém lar é um lugar que você guarda no coração. Barganhei por
você.
− Por instrução de seu rei.
− Fui eu que insisti em Inverness, não o rei Guilherme. Quando a égua
recuou para o lado, nervosa, ele olhou para Brianna.
− Creio que seria prudente cavalgá-la antes que ela derrube o estábulo a
coices. Mas apenas se você for comigo.
—- Não estou acostumada.
− Cavalgaremos juntos.
O sol começava a aparecer no horizonte quando deixaram o castelo
montados na égua. Embora não houvesse sinal dos invasores por semanas, Tarek
mesmo assim levava a cimitarra persa e a adaga curta no cinto.
Brianna sentava-se na sela diante dele, as mãos de Tarek a firmá-la, o peito
sólido e quente em suas costas. Era bom escapar das preocupações e dos medos, e
de suas próprias incertezas quanto ao futuro que se descortinava adiante deles.
Perto do meio da manhã, chegaram ao lago chamado Lochonnen, na região a oeste
de Inverness.
O lago era uma fita escura de prata, imóvel e silencioso, sua superfície
reluzente como um espelho sob um céu repleto de nuvens.
Brianna escorregou para o chão, sentindo uma dor muscular em lugares
incomuns em razão da longa cavalgada a que não estava acostumada.
A sorveira-brava começara a se cobrir de folhas, delicados botões a se
formarem entre os galhos. Brianna apanhou três, recitando as palavras antigas que
conhecia desde a infância:
− Uma folha, duas folhas, três...
Tarek amarrou a égua e foi se postar ao lado dela, a olhar as estranhas águas
calmas. Havia uma quietude e uma paz incomuns ali.
− Venho a este lugar desde que eu era menina. Foi Thomas quem primeiro
me trouxe aqui − ela explicou, como sempre atraída e incomodada com a
capacidade do lago de perturbá-la.
− Parece que tem uma conexão especial com Thomas, Brianna. Ele sempre
foi tão protetor com você?
− Sim.
Não falou da ligação especial de pensamentos que compartilhavam, pois
duvidava que Tarek pudesse entender. Ela mesma não entendia aquela dádiva. Era
como tantas outras questões não respondidas e sonhos desconcertantes.
− Foi Thomas quem me trouxe para o país do Norte quando bebê − ela
prosseguiu. − Ele precisava de uma família para cuidar de mim. Foi uma sorte
enorme Cullum e Mirren não terem filhos.
− Então ele não é seu parente?
− Não, é mais como meu guardião.
− E quanto a seus pais verdadeiros? − Tarek quis saber, conhecedor que era
da dor de ter vivido sem ambos.
Brianna meneou a cabeça, e seu olhar foi mais uma vez atraído para a
extensão de água reluzente com suas profundas sombras misteriosas, como as
sombras dentro de sua memória.
− Tenho apenas vagas recordações de minha própria mãe − Tarek disse, ao
ficar bem perto dela. − Seus cabelos eram como cetim negro, e seus olhos,
castanhos. Era muito bela, porém também muito triste. Mesmo seus sorrisos eram
melancólicos.
Fitou o lago, mas Brianna sentiu que ele não o via. Tomou-lhe a mão e
comprimiu-a contra a face, tentando afastar algo da dor física na conexão entre
seus pensamentos e suas emoções.
Como poderia Tarek sorrir com tanta tristeza por dentro? Roçou os lábios
nas costas da mão dele. Seu marido abriu os dedos e tomou-lhe as faces.
− Você é meus sonhos e minha esperança, Brianna. Agora, é toda a família
que tenho.
Ela nada disse ao se aconchegar em seus braços. Descobrira que era capaz
daquela emoção muito humana: o amor. Todavia, a que custo?
O que aconteceria quando Tarek soubesse de seu segredo? Que futuro
poderiam ter?
Voltou-se nos braços dele e recostou-se contra a fortaleza sólida de seu
tórax. Sentiu-se abrigada e protegida como jamais estivera na vida, quase como se a
força dele pudesse afastar o porvir incerto. E isso aqueceu seu coração.
− Vê? − perguntou, ao fitar a água. Tarek seguiu-lhe o olhar, mas nada disse.
− De acordo com a lenda, há uma ilha no meio do lago − ela continuou a
explicar. − Dizem que só pode ser vista nos momentos entre a noite e a alvorada, e
depois de novo, quando o sol se põe. É chamada de ilha do Graal. Também dizem
que o Graal está lá na bruma, esperando por aquele que pode reclamá-lo. Porém, é
guardado por um enorme dragão que vive nas profundezas das águas. Alguns
pescadores juram que viram a criatura.
− Outro mito das Terras Altas?
Tarek ouvira algumas histórias incríveis demais para se acreditar, embora
muitas outras tivessem uma admirável semelhança com as lendas entre seu próprio
povo.
Brianna deu de ombros, o olhar ainda cravado na água.
− Há momentos em que eu quase penso que poderia vê-lo. No entanto,
quando torno a olhar, já se foi. Seria uma coisa maravilhosa encontrá-lo, pois dizem
que aquele que possuir o Graal governará o reino. Dizem que Mardigan procura
por ele.
− O cálice sagrado, que fala da verdade das eras.
− Você sabe disso?
− O Graal é conhecido por toda a cristandade. Guerras foram travadas por
ele. Reinos caíram em sua busca. Comenta-se entre meu povo que o Graal é muito
mais antigo que o cristianismo e que possui a sabedoria da criação. Desapareceu do
Império Médio cerca de mil anos atrás. Ou assim diz a lenda.
− Quer dizer que você não crê na lenda.
− Aprendi a acreditar em possibilidades. − Ele a tomou nos braços e puxou-
a para muito perto. − Todas as coisas são possíveis.
Quando roçou os lábios nos dela, a chuva começou a cair. Tarek a levou
para a colina, até o pinheiro onde amarrara a égua. A chuva desabou, pesada, ao
procurarem abrigo sob os galhos perfumados. Golpeava a superfície do lago, e a
água revolveu-se em padrões ondulados que se expandiram até a margem. Como se
alguma criatura inquieta se espreguiçasse em suas profundezas.
− Mas talvez a chuva de suas Terras Altas tenha suas vantagens. − A
expressão de Tarek mudou bastante ao estreitá-la no abrigo da árvore.
Sua boca fechou-se sobre a dela quando se sentaram na base do tronco. Ele
sorveu a chuva dos lábios de Brianna e depois a sugou do queixo, das faces, dos
cílios.
O frio da água desapareceu e foi substituído por uma febre de desejo. Tarek
passou a afagar-lhe as coxas, e Brianna soltou-lhe as calças. Em seguida, desceram
pela curva das nádegas conforme ela se aninhava contra ele com um brilho
provocante nos olhos verdes.
− Sente frio, milorde? − Com uma sobrancelha erguida, lambeu-lhe o lábio
inferior.
Tarek a acomodou em seu colo. Brianna ficou sem fôlego com o fogo
abrasador da carne dele a penetrá-la. O rosto dele parecia ao mesmo tempo
perigoso, feroz e cheio de Paixão.
− Não mais − ele resmungou, com lascívia, e Brianna foi sacudida por ondas
de risadas que apenas aumentaram o deleite, até que, colada contra ele, entregou-se
sem pudores.
Haviam se passado quatro dias da data em que Robert de Mortain e seus
homens deveriam retornar a Inverness. A tensão aumentara até o ponto máximo.
Todos sabiam que um dos motivos para atraso de uma patrulha podia ser
um ataque sofrido. Então, por fim, o alerta veio das ameias. Cavaleiros se
aproximavam. E ostentavam o estandarte de Robert de Mortain!
Os portões do castelo foram abertos, e eles entraram.-Brianna observou-os
das ameias sob o sol do meio-dia. Ao primeiro alerta, Tarek deixara as muralhas
para saudar o amigo.
Os cavaleiros vinham empoeirados, as túnicas que usavam sobre a cota de
malha, manchadas de sujeira, as expressões, tensas e cheias de fadiga. Contudo,
todos retornaram. Tarek se mostrava por vezes aliviado e depois sério, ao
conversar com Mortain.
Brianna tentou sentir-lhe os pensamentos e soube que o reduto de Mardigan
fora encontrado. Afastou-se da muralha, para dar as instruções adicionais a Enya,
com tantas bocas a mais para alimentar no almoço. O que significava também
abundantes porções de cerveja para saciar a sede na reunião do conselho que se
seguiria.
− Onde é o esconderijo? − Tarek se inclinou para a frente na cadeira ao
encontrar-se, naquela noite, com seus cavaleiros e os chefes.
− A quatro dias de jornada para o norte − informou Mortain. − Demoramos
a encontrá-lo, e não o teríamos achado se não fosse por um velho pastor que deu
com ele durante uma tempestade. Tomou abrigo ali com seu rebanho, saindo antes
das primeiras luzes da manhã. Ele nos falou de Mardigan.
Tarek franziu a testa.
− O local não era guardado?
− Pelo visto, todos tinham se juntado no último ataque. O velho encontrou
o saque das incursões no fundo da caverna: comida, armas, qualquer coisa de valor
que pudesse ser usada ou comerciada. Havia o suficiente para manter um exército
de assaltantes por vários meses.
Nenhum dos outros que estiveram com Robert falou, a despeito de não
terem papas na língua diante da mesa do conselho, sobretudo os escoceses. Brianna
deduziu que estavam muito cansados após aquela longa jornada, pois ninguém se
incomodara em tirar um tempo para se lavar, preferindo ir logo com pressa para a
mesa e para a reunião do conselho com os chefes.
− Precisamos atacar depressa − Mortain insistiu com Tarek pela terceira vez.
− Antes que percebam que descobrimos o local. Devemos levar todo o exército
para lá de imediato.
No entanto, mesmo Malcolm, sempre ansioso por uma batalha, foi
cauteloso:
− Seria imprudente levar todos os homens. E se Mardigan não estiver lá?
− Estará, eu asseguro. O velho foi muito específico quanto a isso. Observou
as movimentações por vários dias. Disse que voltam a cada três.
− O pastor se arriscou muito. Teve sorte de não ser descoberto.
− Ele conhece bem a região, Tarek. Ficou escondido.
− Qual é o nome do homem? − Malcolm quis saber. − Será recompensado
por isso.
− Ele disse se chamar Davidson − respondeu Mortain.
− Tem certeza? − Malcolm tinha uma ruga na testa. Por sobre a mesa, seu
olhar encontrou o de Brianna.
− Absoluta.
− E você diz que ele é pastor nas montanhas do norte faz anos?
Mortain fez que sim.
− A vida inteira. Conhece cada pico e esconderijo.
Sir Robert continuou a insistir para que partissem de imediato, enquanto
Enya e duas moças enchiam as canecas de todos.
− Atacar enquanto o ferro está quente, Tarek. Não estarão esperando por
isso. De uma vez por todas Mardigan será detido.
− Partiremos com as primeiras luzes − Tarek decidiu.
− Mas cada hora que demorarmos é outra hora para Mardigan escapar! −
Mortain berrou, o que fez todos olharem-no com estranheza, pois sempre fora a
voz da prudência.
Tarek também estranhou o rompante inesperado.
− Você e seus homens estão cansados. Os cavalos têm de descansar
também, se forem carregá-los de volta ao país do Norte.
− Alguém pode permanecer para guardar a fortaleza − Mortain sugeriu. −
Meus homens e eu poderíamos ficar, enquanto você segue para pegar Mardigan.
Sua retaguarda estaria bem protegida.
− Sei que gostaria de cavalgar a meu lado como sempre, Robert, agora que a
vitória está perto. Iremos juntos pela manhã.
− Mas decerto você não quer se retardar − Mortain ainda pressionou.
Tarek demonstrava uma paciência invejável.
− Você está cansado, meu amigo. Mardigan ainda estará lá, e nós o
pegaremos. Porém, quanto a seus soldados, tem razão. Encontraremos um cavalo
descansado para você. Os outros ficarão para trás, pois não temos animais para
todos.
Fez um sinal a Enya para não trazer mais cerveja e vinho. Queria seus
homens sóbrios pela manhã.
− Uma palavra de precaução − Malcolm disse, ao interceptá-lo quando ia
atender a seus próprios homens.
Diante do olhar surpreso de Tarek, ele emendou:
− Eu lhe devo minha vida, milorde.
− Continue.
− Conheço a maioria dos homens nestas terras. Qualquer pastor, pois cada
um representa a carne e a lã com as quais nosso povo sobrevive.
− O que está dizendo?
− Nunca ouvi falar de alguém com o nome Davidson. Não é o nome de
ninguém nos domínios de Cullum.
− Está dizendo que Mortain mentiu?
− Afirmo apenas o que já falei. Pode entender como quiser.
Brianna não foi capaz de ouvir o que diziam, mas quando Malcolm afastou-
se e saiu, ela notou algo a que não prestara atenção antes. As canecas tinham sido
cheias ao redor. Apenas a de Robert de Mortain continuava assim, do mesmo
modo que as de todos os seus homens. Seus pratos permaneciam intocados. A
inacreditável falta de interesse dos escoceses pela bebida e comida fez Brianna
acautelar-se.
Após a refeição do meio-dia, os homens de Mortain voltaram para a armaria,
enquanto os escoceses deixavam o salão. Brianna não conseguiu falar com Tarek
pelo resto da tarde, pois deviam ser feitos os preparativos para a longa jornada
rumo ao norte.
Quando os últimos dos feridos restantes estavam deitados em seus catres, ela
seguiu para o quarto que compartilhava com Tarek.
− Brianna?
Ela se voltou ao ouvir Malcolm. Vira-o poucas vezes desde que se
recuperara. Aquela noite no conselho fora a primeira, em dias.
− Não tem havido nenhuma chance de conversarmos em particular − ele
começou, hesitante. − Você está bem?
− Sim, muito bem.
Malcolm se remexeu como se lutasse para encontrar as palavras certas.
− O que é, Malcolm? Imagino que podemos ainda conversar com facilidade
um com o outro.
− É que... − Enfiou os dedos nos cabelos, com um ar de frustração, e depois
exclamou: − Dizem que você partilha a cama dele!
Brianna não queria responder, mas sabia que precisava.
− Tarek é meu marido.
− Você o ama?
− Eu...
Na verdade, Brianna não sabia o que sentia. Tudo era ainda muito novo
entre eles. Desejo? Sim. Luxúria? Sim, isso também, pois havia momentos, os mais
inesperados, em que sentia aquela dor da paixão começar fundo dentro de si, uma
dor que apenas ele poderia aliviar. Mas isso seria amor?
− Não sei − afirmou, com franqueza.
− E quando Mardigan, enfim, for expulso das Terras Altas? Como será,
Brianna?
A mesma pergunta a assombrava a cada momento acordada, sobretudo
naquele momento, quando o reduto de Mardigan fora encontrado.
De novo, ela respondeu:
− Não sei.
Ao se voltar e correr pelas escadas, Brianna pensou ter vislumbrado uma saia
nas sombras e ficou a imaginar se Gillie esperava por Malcolm.
Contudo, a solidão do quarto não ofereceu escapatória para aquela questão
obsessiva. A presença de Tarek estava em toda parte. No grosso manto felpudo
dobrado sobre o baú, na túnica de cetim azul-escuro que parecia lhe escurecer a cor
dos olhos e no leve aroma masculino que ela sentia na própria pele depois que
faziam amor, e que parecia perdurar no ar dentro do cômodo. Como se ele
estivesse ali, naquele momento.
Amava-o? Não sabia se o que sentia era amor. Era amor esperar na
expectativa de que os guerreiros retornassem do pátio de exercícios ou de suas
patrulhas?
Era amor que queimava por sua pele ao sentir o simples contato da mão de
Tarek?
Era amor aquilo que se contorcia dentro dela só em pensar nas horas
partilhadas ali?
Ele parecia sentir-se assim também, porque desde a primeira vez juntos
procurava por ela no meio das manhãs, nas tardes, quando o sol estava no alto do
céu, e em horas inesperadas à noite, quando Brianna imaginava que o marido ainda
estivesse com seus soldados.
Não havia necessidade de palavras entre os dois. Tudo o que era preciso era
um toque, a mão de Tarek em seu rosto, em seus cabelos, em seu braço, para
provocar uma fome que urgia ser saciada.
Fazia dias desde que tinham feito amor pela última vez. Viera-lhe o fluxo
menstrual. E ela não conseguira disfarçar um profundo desapontamento por não
ter ainda concebido um filho.
Seria aquela paixão que fazia palpitar sua alma o mesmo que amor? Fazia
parte, sem dúvida. Porém, haveria algo mais, como entre Cullum e Mirren? Um
sentimento tão profundo que um morreria pelo outro?
Brianna dormiu inquieta naquela noite. Tarek já se levantara quando ela
acordou antes das primeiras luzes do dia. Ele estava no pátio, a dar instruções a
seus homens, sob a luz de dúzias de tochas.
− Vai partir tão cedo? − Ela segurou as pontas da manta de pele sobre os
ombros ao ficar de pés descalços ao lado do marido.
− Os homens e os cavalos estão descansados. − Ele apontou para Mortain,
que seguiria de um lado dele, com Stephen de Valois do outro e vários normandos
e escoceses que tinham voltado das terras do norte, onde acharam o covil de
Mardigan.
Os demais ficariam com alguns soldados para guardar o castelo.
− Por quanto tempo, Tarek?
− O quanto for necessário.
− Onde está Duncan? − Brianna olhou pelo grupo à procura do garoto. −
Ele queria ver os homens partir.
− Está zangado comigo porque não permiti que viesse conosco.
− Compreendo sua zanga − ela murmurou, com uma rudeza repentina que
não fez questão de esconder.
Tarek se inclinou na sela da égua árabe e correu os dedos pelas mechas soltas
dos cabelos dela. Ainda estavam quentes da cama e tinham seu cheiro doce.
− Duncan tem ordens de proteger lorde de Inverness em minha ausência. −
Beijou-a com uma ternura rude.
− E quem o protegerá?
− Os guerreiros que ficarem e a bênção de Alá.
− Tome isto. − Brianna tirou o manto quente dos ombros. − O chão é
muito frio à noite.
Tarek empurrou o manto para ela de novo.
− Ficarei quente o bastante. Minhas lembranças de você me aquecerão,
Brianna. É tudo de que eu necessito.
− Eu preciso de mais do que lembranças, milorde − retrucou, sem fôlego,
quando então o beijou. − Volte depressa para Inverness. (:
Ao se afastar, pousou a mão no braço de Malcolm.
− Tenha uma viagem segura, meu caro amigo.
− Eu preferiria ouvir as palavras de despedida que você disse àquele bárbaro
− falou alto o bastante para que Tarek ouvisse. − No entanto, suponho que uma
viagem segura terá de bastar.
− Terá − Tarek afirmou.
Então, partiram, a poeira a se erguer no pátio sob as patas dos cavalos
quando mais de duzentos homens se juntaram àqueles já acampados além dos
portões.
Brianna correu para os degraus das ameias. Lá em cima, inclinou-se na
muralha, a observá-los passar pela vila em direção ao rio e à floresta além, para o
norte distante.
E continuou a olhar até que o sol começou a subir no horizonte, e todos se
tornaram apenas uma fita escura de movimento ao longe.
Um dos homens que voltara com Robert de Mortain e os escoceses se
juntaram aos guardas da muralha. Ele também observava o exército que pouco a
pouco desaparecia.
− Venha − ela lhe disse. − A refeição matinal está pronta e você ainda não
se recobrou da viagem.
Ele nada respondeu. Nem fez menção de seguir para a mesa dos soldados no
salão. Ficou ali, estoicamente, a manter guarda.
Brianna estranhou aquilo, pois havia guardas suficientes nas muralhas. Ao se
voltar para ir embora, ela cobriu os olhos contra o brilho do sol.
As sombras dos outros guardas projetavam-se pelo solo. O silencioso jovem
não parecia ter uma sombra e, quando se virou para ela, Brianna conteve o fôlego.
Os olhos dele eram vagos, sombrios e mortos.
Capítulo XVII

− Parece que você viu um fantasma... − Enya comentou, quando Brianna


retornou ao salão. Ela estendeu as mãos diante do fogo da lareira. Nenhuma
sombra se projetou. Escondeu-as nas dobras do manto.
− Na verdade, não sei o que acabei de ver, Enya.
Era incapaz de livrar-se da certeza de que os olhos que vira não eram vivos,
nem eram mortais. E o escocês não tinha sombra, um fato perturbador que Brianna
descobrira a respeito de si própria, longo tempo atrás, e que aprendera a aceitar.
Por que aquele homem também não tinha sombra?
− Onde está Thomas?
− Foi à vila antes que os portões fossem trancados.
− Gostaria de vê-lo quando ele chegar. − E Brianna se voltou para as
escadas. Lá, estacou para perguntar: − Quantos daqueles que voltaram ontem
ficaram para trás?
Ciente de tudo o que se passava em Inverness, Enya afirmou, com
convicção:
− Vinte e dois.
− Onde estão agora?
− Quatro, dentro do salão, mas a maioria ficou com os guardas nas ameias.
Pobres homens... Deveriam descansar.
− Sim. − Brianna, experimentando uma sensação estranha, foi para o quarto.
Quase duas horas depois, Thomas a procurou ali.
− Será possível resistir a um cerco se formos atacados? − ela perguntou,
caminhando de um lado para outro.
− A fortaleza está bem fortificada, mais forte do que antes, com novas
muralhas de pedra. Irá proteger aqueles aqui dentro. − Thomas não compreendia
aquela preocupação.
− E se aqueles aqui dentro fossem quem devemos temer?
− O que é, menina? O que aconteceu?
− Vi algo que me perturbou, que não posso explicar. − Contou-lhe do
encontro com o escocês.
Thomas procurou acalmá-la:
− Irei procurar o homem e descobrirei o que puder sobre ele.
Os dias se passaram insuportavelmente lentos. Pelas informações de Robert
de Mortain, que algumas vezes voltara ao castelo, Brianna acompanhava o
progresso diário do exército, a inquietude a crescer conforme o imaginava mais
perto do local onde Mardigan se escondia.
Brianna não viu mais o escocês com quem falara. Ele e os outros ficavam do
lado de fora do salão, sempre parecendo desaparecer quando alguém perguntava
por eles. Contudo, cumpriam com seus deveres e assumiam turnos extras nas
muralhas.
Ela se tornou cada vez mais angustiada e inquieta com o passar dos dias, e
retomou seus passeios noturnos pelas ameias. Alguma coisa estava acontecendo.
Brianna podia sentir.
Era-lhe difícil acordar de manhã, como se a noite se agarrasse a ela como
uma mortalha a tentar sufocá-la. Durante o dia, trabalhava com Enya e Anne,
cuidando das necessidades dos habitantes da fortaleza. E era infernizada por
incontáveis problemas, inclusive por Gillie, que parecia sempre estar em seus
calcanhares, a fazer algum comentário pérfido que apenas se somava aos temores e
à inquietude de Brianna.
− Espero que retornem sãos e salvos. Seria uma tragédia, se alguma coisa
acontecesse ao novo lorde. Você é muito jovem para ser viúva. Seria pavoroso ficar
sozinha e talvez com um filho. Ou quem sabe não haja um filho, afinal − emendou,
com perfídia. − Embora milorde seja um homem vigoroso e lascivo. Sua semente
sem dúvida será bem plantada quando encontrar solo fértil.
Naquele momento, Brianna precisou de cada grama de autocontrole para
não bater em Gillie.
− Ele estará a salvo, minha prima. Tarek é um guerreiro experiente, e seus
homens o protegerão.
− Ah, mas como saber quem é de confiança e quem não é? − perguntou.
− O que quer dizer, Gillie?
− Apenas que Inverness foi traída uma vez antes − disse Gillie, com fingida
inocência. − E o traidor nunca foi descoberto.
− Se o traidor ainda estiver em Inverness, ele terá grandes oportunidades de
traição − ela respondeu e depois relembrou a Gillie: − Todos devem fazer sua
parte justa de trabalho. Se não tem nada a fazer, garanto que Thomas encontrará
alguma tarefa para você.
Estava com um humor miserável ao sair do salão, com uma necessidade
desesperada de ir para as ameias. Talvez lá encontrasse alguma privacidade e
pudesse pensar e classificar aqueles sentimentos turbulentos que não compreendia.
Quando chegou ao alto, ficou feliz por os guardas estarem em algum lugar
ao longo da muralha. Ali, havia privacidade. Sentiu-se aliviada ao absorver o
penetrante calor do sol e o frio limpo do vento. Pareciam renová-la.
As colinas ondulantes se espalhavam além das muralhas e os portões de
Inverness. O mar se revolvia ao leste, o arco da baía a se curvar para o norte e o sul
através da névoa indistinta que pairava sobre a água.
Seu olhar correu pelo novo parapeito e as muralhas de pedra que escoceses e
normandos tinham trabalhado para completar. Em seguida, para os portões
robustos, cada ripa de madeira com um palmo de espessura, tão pesados que era
preciso a força combinada de seis homens para abri-los. Contudo, apenas um era
necessário para girar o mecanismo de roda que deixava cair a grade de ferro no
lugar.
Então Brianna notou que a grade de ferro não estava no lugar! Fora içada
para a posição ao alto, e os guardas tinham sumido.
Assustada, voltou-se para a muralha que flanqueava os portões. Nenhuma
sentinela patrulhava os passadiços. Na verdade, ela não via guarda algum em
nenhum lugar!
Ao correr degraus abaixo, lançou seus pensamentos para cada canto do
castelo e sentiu um ligeiro conforto quando Thomas respondeu. No entanto, seu
alívio se desvaneceu quando deparou com o corpo de um dos guardas normandos
que costumava se postar naquela parte das muralhas. Ao lado dele, jazia o corpo de
outro guarda. O sangue se empoçava sob seus cadáveres. Ambos estavam mortos.
Brianna saiu correndo para o salão. Ali também os soldados tinham sumido
de seus postos. Encontrou Thomas ajoelhado ao lado de um guerreiro escocês, cuja
garganta fora cortada.
− Thomas!
− Sim, menina. Eu sei. − Seu pesar se ligou ao dela. − Encontrei outro nos
estábulos.
− Há mais. − O rosto de Enya estava cinzento quando trouxe mais notícias
de morte. − Três guardas na entrada dos fundos também foram assassinados. Nel
os encontrou. Pobre criança, está louca de medo!
O olhar de Brianna encontrou o de Thomas.
− O portão principal está aberto!
Suas suspeitas se conectaram às de Thomas: fora exatamente assim quando
os homens de Mardigan atacaram Inverness.
Thomas saltou de pé, pegou uma espada de um dos guardas assassinados e
correu para a entrada principal do salão.
− Tome isto. − Brianna colocou uma adaga mais curta nas mãos de Enya.
− Sim, patroa. Não sofrerei brutalidades outra vez. Nem deixarei que
machuquem a menina.
− Mande Anne avisar o povo no pátio e encontre guardas confiáveis. Não
confie em nenhum daqueles que voltaram do reduto de Mardigan. − Então, com
um pensamento repentino, indagou: − Onde está Gillie?
Enya deu de ombros.
− Não a vi durante toda manhã.
− Não posso me preocupar com ela agora − murmurou Brianna. Com um
gesto para Enya, repetiu: − Quando sairmos, passe a barra nas portas principais.
− Mas e a senhora e Thomas? Como irão voltar?
− Estaremos em segurança. − E Brianna rezou para que fosse mesmo assim.
Ian aproximou-se em largas passadas. Ele fora deixado no comando dos
soldados que tinham permanecido atrás, em Inverness.
− Alertei meus homens.
− Tenha cuidado. Aqueles que retornaram do reduto de Mardigan são
traidores.
− Mas alguns deles são meus próprios homens, milady!
− Não são seus homens. − Diante do olhar de incredulidade, ela implorou:
− Não pergunte como sei disso. Por favor, caro amigo, faça como lhe peço.
Ian concordou, a boca fechada numa linha dura.
− E Malcolm e os demais?
− Receio que estejam em grave perigo. Ela e Thomas saíram do salão.
O caos reinava no pátio conforme as notícias dos guardas assassinados se
espalhavam. Famílias fugiam em busca de abrigo, os homens a usar o que
pudessem encontrar como arma. Soldados subiam os degraus das ameias para
proteger a muralha. Brianna não viu nenhum dos outros guardas entre eles.
Thomas correu para o mecanismo do portão. Lançou todo seu peso contra a
roda. Quando forçava o eixo para colocar as barras cruzadas no lugar, Brianna viu
o guerreiro que se aproximava de suas costas com uma espada na mão. Era o
mesmo homem que vira dias antes com Gillie.
Gritou um aviso e correu pelo pátio. Jogou-se sobre o guerreiro, agarrando-o
pelo braço que empunhava a espada. Queria desviar o golpe, dando a Thomas a
chance de defender-se. No entanto, o guerreiro soltou um berro e cambaleou como
se atingido por um soco poderoso. Parecia dominado por alguma pavorosa agonia
de dor, a se torcer e se retorcer, tentando livrar-se das mãos de Brianna.
Com crescente incredulidade e horror, ela viu quando as feições daquele
rosto se retorceram, entraram em espasmos e depois se transformaram, revelando a
aparência de alguém que ela não conhecia. Em seguida, sentiu que os músculos
debaixo de seus dedos, sob a manga da túnica, se contraíam e murchavam até que
parecia que ela não segurava nada a não ser osso.
Incapaz de compreender o que estava acontecendo, Brianna ergueu o rosto e
viu com horror quando a carne lentamente se descolou das faces do desconhecido,
expondo tecido, sangue e osso, tudo a se contorcer numa máscara pavorosa de dor
excruciante.
Os olhos saltaram das órbitas, a encará-la numa agonia de sofrimento
tremenda. Depois, sob o olhar aterrorizado de Brianna, ele se desfez até não ser
nada mais que um esqueleto. Uma caveira foi tudo o que sobrou da cabeça, os
ossos da mandíbula abertos e torcidos numa expressão dolorosa.
Brianna gritou quando a caveira escapou da espinha e os ossos do braço sob
os dedos dela se quebraram e explodiram.
Caiu de joelhos, a tremer violentamente. Seus pensamentos congelados
lutavam para apreender o que acabara de presenciar. O guerreiro jazia diante dela.
Morto. Ou pelo menos tudo o que restara dele, o esqueleto despido de toda carne e
músculo. Então, desfez-se em pó que girou em torno dela numa nuvem cegante de
morte.
Thomas puxou-a para longe e para dentro de seus braços, como fazia
quando ela era criança. Porém, nada do que fizesse poderia afastar o horror daquilo
que ela vira.
− Foi horrível... − Brianna sussurrou, sem conseguir banir as imagens da
brutal morte do guerreiro.
E também incapaz de se livrar da certeza de que vira algo maligno se
materializar.
Ouviram gritos terrificados que vinham do salão. Ian abriu as portas a
despeito das ordens de Brianna, um machado de guerra nas mãos, as feições
transtornadas.
− Veja! − Enya gritou, ao chegarem ao salão.
A jovem Nel berrava histérica. Enya apontou para o pé das escadas, pálida e
tensa.
− Há quatro mais no outro aposento, senhora. Brianna passou por Enya e
foi até o homem que jazia caído nas escadas. Um guarda normando, morto. Porém,
não foi a visão de um corpo que aterrorizou a jovem, mas o horror da agonizante
transformação que tinha lugar mesmo naquele instante, enquanto observavam. A
mesma que Brianna testemunhara.
Tal como o guerreiro no portão, suas feições se alteraram, revelando a
aparência de outra pessoa naqueles últimos momentos, antes que a pele se soltasse
dos músculos e do tecido e depois se dissolvesse em pó. Os outros já tinham se
transformado, das feições familiares de normandos e parentes, para revelar o rosto
de desconhecidos.
Os homens de Ian encheram rápido o recinto e contaram de outras
experiências semelhantes. Era como se todas aquelas mortes estivessem ligadas à
do primeiro guerreiro. Com a morte de um, todos tinham perecido.
Quem eram eles? O que eram eles?
Seu propósito, contudo, estava além de qualquer dúvida: atacar e matar
tantos quantos pudessem dentro da fortaleza.
− Leve-a daqui − Brianna disse a Enya, que abraçava a garota, histérica.
− Joguem os restos pelas muralhas! − ordenou Ian. − Não quero essa
emanação do mal contaminando o ar.
Enquanto ele dava ordens para a defesa de Inverness, os pensamentos de
Thomas conectaram-se com os de Brianna, arrancando-a da confusão por tudo o
que houvera.
− Sim, Thomas, Tarek e os outros estão sendo conduzidos para uma
armadilha por alguém em quem confiam. Devo encontrá-los antes que seja tarde
demais.
Ambos sabiam que não haveria tempo para que um cavaleiro os alcançasse.
A região para a qual se dirigiam era remota, difícil para homens e cavalos. E tinham
partido fazia dois dias. Demoraria o mesmo para um cavaleiro alcançá-los. Brianna
não fora para as ameias com aquele propósito desde que se entregara a Tarek e
descobrira a plenitude em seus braços. Receava que seu marido pudesse saber do
terrível segredo que escondia dele. E, se ele soubesse, ela não poderia suportar que
se afastasse dela de pavor e desgosto. A cada vez que se uniam, ela se afastava mais
e mais daquela parte de si mesma, rejeitando-a com toda a força, preferindo não
retornar. Até se atrevia a esperar que nunca mais tivesse de seguir por aquela trilha
de novo, negando aquela outra parte de si que Tarek poderia não compreender ou
aceitar. Voltava-se para a parte que ele ajudara a descobrir, sua porção mortal, que
era de carne e osso, com sentimentos humanos e paixão.
Toda vez que voltava para aquele outro lado, Brianna se sentia parte daquele
outro mundo, um pavoroso lugar desconhecido que a separava do mundo da
matéria. Agora, era o único caminho para salvá-lo e a todos eles.
− Não há outro jeito − disse a Thomas, pois apenas ele compreendia seu
tormento.
Thomas a acompanhou até as ameias. Sua mão cobriu com gentileza a dela, a
oferecer conforto. Brianna olhou pela extensão de tempo e distância que a separava
de Tarek. O vento soprou e lhe enfunou as dobras do manto.
Poderia encontrá-los? Chegaria em tempo? Mas a que preço? Pois, mesmo
ali, quando sentia o poderoso instinto se agitar dentro de seu peito, lágrimas lhe
marejavam os olhos.
Devagar, ergueu os braços, ao se concentrar no íntimo, naquele seu outro
lado, que ela descobrira quando era ainda criança.
Cerrou as pálpebras e sentiu o poder purificador do vento contra a pele, a
acariciar cada terminação nervosa enquanto palavras antigas que ouvira pela
primeira vez em sonhos eram murmuradas a seus ouvidos.
Quando as dobras do manto se ergueram e colheram, a brisa, Brianna
imaginou um falcão prateado a escapar das muralhas, a subir ao céu rumo ao calor
do sol, livrando-se dos liames da terra.
Tarek virou a égua árabe para o lado ao som de um cavaleiro que se
aproximava. Suas feições estavam pesadas de fadiga da longa jornada pelo terreno
traiçoeiro, e a crescente inquietação que caía sobre ele quanto mais avançavam para
o norte. Sua expressão era tensa quando Stephen de Valois puxou as rédeas do
cavalo a seu lado.
− E Mortain? − Tarek quis saber. − Onde está ele?
− Não pudemos encontrá-lo. − Stephen parecia nervoso. − Nem nenhum
de seus homens − emendou, frustrado. − É como se a terra tivesse se aberto e
engolido todos eles.
Tarek remexeu-se inquieto na sela, o olhar a percorrer as ondulações
íngremes das colinas que vinham atravessando desde manhã, a levá-los para dentro
do cânion. Estavam enfileirados como contas num colar, os escoceses a pé a seguir
o declive à frente, meio escondidos pela cobertura das árvores.
− Somos como presas esperando pelos caçadores − Tarek murmurou.
Censurou-se por levar seus homens para aquele lugar quando cada instinto clamava
contra isso.
A névoa subia dos baixios, envolvendo a encosta. Tornar-se-iam incapazes
de distinguir inimigo de aliado, condenados a uma armadilha. Por isso, ele tomou
uma decisão:
− Basta. Sairemos agora e iremos procurar terreno mais alto antes que seja
muito tarde.
Já era tarde demais.
O grito de guerra ecoou entre seus homens. Os escoceses tinham sido
atacados na trilha abaixo.
− Recebemos o ataque, e Mortain não está por perto!
− Ele não nos trairia! − Stephen defendeu com veemência o cavaleiro. −
Cavalgou com o rei em todas as campanhas. Robert morreria antes de nos trair.
− No entanto, sumiu! − Tarek exclamou, ao puxar a espada. Girou a égua e
se pôs a gritar ordens. − Leve seus homens para a beira do cânion. Procurem
terreno alto.
− E quanto a você?
− Meus homens e eu nos juntaremos aos outros. Se os invasores nos
dominarem e chegarem a esta posição, salvem-se e voltem para Inverness.
− Não farei isso. Lutarei a seu lado, como sempre.
− Você tem suas ordens, Stephen. − Tarek virou a montaria e, com ordens a
seus soldados, desceu pela encosta para dentro da névoa que amortalhava a batalha.
− Protegerei sua retaguarda! —- Stephen se juntou a Tarek.
− Eu lhe dei ordens, Valois!
− E eu as passei para meus homens. Eles seguirão com Gavin.
Com um gesto duro, Tarek mandou que metade dos homens seguisse em
frente, enquanto a outra metade, liderada por sir Gavin, deveria se dividir e varrer a
colina dos dois lados.
Sir Gavin acatou e mandou metade de seus soldados para cada flanco. A um
sinal, Tarek conduziu o resto dos seus numa investida impetuosa pelo declive, em
direto aos escoceses em luta. Avançaram para o coração da batalha.
Inferiorizados em número, os escoceses lutavam com espadas, escudos feitos
de pele de animal e punhais de lâmina estreita contra os machados de guerra
nórdicos, escudos redondos de aço e macetes.
Os homens de Tarek se infiltraram no combate ao mesmo tempo que sir
Gavin e seus soldados fechavam as laterais de ambos os lados.
Tarek e Stephen lutavam flanco a flanco, protegendo as costas um do outro
conforme investiam primeiro de um lado e depois de outro. Cada vez mais, um
nome enchia os pensamentos de Tarek: Mardigan.
Stephen gritou um aviso, e Tarek bloqueou um golpe que teria decepado sua
perna e cortado a égua ao ser atacado de ambos os lados.
O inimigo que desfechara a agressão estava coberto de sangue. Conforme ele
girava o machado outra vez, Tarek desferiu o golpe, desmontando antes que o
oponente se recuperasse para tornar a atacar.
− Renda-se e viverá! − berrou, pois queria um vivo para que pudesse dizer
quem os traíra.
O assaltante, todavia, girou o machado de novo. Dessa vez, Tarek inclinou a
espada para o alto, preferindo feri-lo a matá-lo. Mas o inimigo viu o movimento,
soltou um rosnado feroz e investiu contra a espada.
Tarek deu um passo para o lado e girou a lâmina persa num arco mortal. A
cimitarra atingiu o oponente na barriga, enterrou-se e o abriu até o peito. A lâmina
tremeu quando retalhou carne e músculo. Ouviu-se o raspar surdo contra o osso e,
por fim, o chiado de ar dos pulmões do guerreiro. Estava morto antes de cair de
joelhos e depois rolar para longe, sob as botas de Tarek.
Al Sharif se voltou para enfrentar o segundo atacante. Foi quando viu, de
relance, algo que o espantou: um nórdico que investia sobre dois ferozes escoceses
de uma vez só. Era alto e de compleição poderosa, os cabelos da cor do linho a
escorrer pelos ombros, as feições furibundas cobertas Por uma barba grossa e
avermelhada. Empunhava a arma como se pesasse não mais que uma pena, e o
olhar mortal que focalizava em seus oponentes era de uma tonalidade intensa de
azul, como as águas de um fiorde nórdico.
− Mardigan...
Mesmo ao reconhecê-lo, Tarek percebeu que não havia como chegar a ele.
Se o seguisse, poria em perigo mais de seus próprios homens, e isso ele não faria.
Assim, voltou-se para lutar com mais dois atacantes.
Logo nos encontraremos, jurou em silêncio, ao abater um dos guerreiros e
depois dar caça ao segundo, que fugia para as rochas.
Tarek pressentiu o perigo no súbito arrepiar dos pêlos em sua nuca ao seguir
a trilha que o inimigo deixara. Captou um relancear de luz quando o sol se refletiu
numa lâmina de aço. Tarde demais se deu conta de que o inimigo voltava e agora
atacava das rochas.
Então, a névoa adensou-se e se fechou em torno dele mais uma vez. Tarek
girou primeiro numa direção e depois na outra, a arma mantida adiante e pronta
para atacar. Mas a neblina o cegava. Nesse momento, ouviu um grito, um berro de
dor excruciante.
A bruma deslocou-se devagar e retrocedeu para as rochas. A menos de doze
passos à frente, o inimigo que tentara atacá-lo das rochas jazia esparramado no
solo. Seu braço direito estava ensangüentado e quase arrancado do corpo. Seu rosto
fora retalhado, as feições irreconhecíveis sob a barba. Uma pantera enorme e esguia
se agachava sobre seu cadáver.
Era um animal magnífico, o pêlo de um rico dourado pintalgado de prata
manchado apenas pelo sangue que escorria da espádua esquerda. Fora ferido
quando o nórdico tentara se defender.
A cabeça dourada do felino inclinou-se para ele, os olhos atentos, dourados,
a contemplá-lo. Então a névoa caiu como um manto que aos poucos se fechasse
sobre tudo. E através do nevoeiro, a pantera ergueu-se e se afastou de sua caça.
Conforme ela se voltava para ir embora, Tarek viu algo que o espantou. Os
olhos do animal luziam em tons de verde.
De novo, ele experimentou aquela percepção sensual correr-lhe pela espinha.
Porém, dessa vez, não era medo. Era a sensação de ter estado num lugar muito
parecido com aquele antes, com a bruma a se fechar em torno: ao lado de uma
lagoa, meses atrás.
Seguiu a trilha por uma fenda nas rochas, e depois para baixo, do outro lado,
ao descer a colina. O caminho era difícil, mas não intransponível, e a trilha fora
percorrida fazia pouco, pois a grama nova se achava amassada. Alguém ou alguma
coisa passara por aquele trecho.
Tarek ficou desorientado na neblina, os sons amortecidos de maneira que era
impossível dizer de que direção vinha, ou para onde ele seguia. De repente, a névoa
começou a se erguer mais uma vez, do mesmo modo como se fechara.
A trilha voltou a se tornar clara diante dele. Tarek a seguiu, através de
retalhos de névoa que tocavam sua face como dedos cálidos. E viu algo adiante.
Atrás dele, os sons de batalha cessaram. Tarek passou a ouvir o ruído de
cascos de cavalo, e soube que seus homens o seguiam. Com a cimitarra empunhada
diante de si, aproximou-se. Era algo que quase se mesclava com as rochas
circundantes. Quando Tarek chegou mais perto, viu algo amontoado e julgou que
fosse a fera que matara o invasor.
Um alerta silencioso correu ao longo de cada terminação nervosa. Cada
músculo ficou tenso quando ele deixou a espada pronta para investir, caso o animal
se voltasse e atacasse. Porém, conforme foi chegando perto, a criatura não fez a
menor menção de atacá-lo, nem fugiu. Permaneceu imóvel.
Tarek descobriu que não era uma criatura, mas um guerreiro vestido em
calças de couro e uma túnica com capuz. Com a ponta da espada, ele cutucou
várias vezes as costas do guerreiro.
Seus cutucões cautelosos revelaram não o conjunto forte de músculos de um
guerreiro experiente e maduro, mas a constituição esguia e leve de um jovem que
não alcançara, ainda a maturidade dos músculos.
O sol banhou a pele pálida e as feições delicadas. Sobrancelhas douradas se
arquearam sobre os crescentes escuros cílios dourados. Lábios cheios e sensuais se
entreabriram, suaves, a curva da garganta se expôs acima da elevação dos seios sob
a túnica, a cabeça pendeu para trás em meio a uma torrente de longos cabelos de
um ouro esbranquiçado que se espalhou livre pela túnica.
− Pai dos céus! − Malcolm exclamou, ao desmontar e também ver que o
guerreiro caído não era nem homem, nem menino.
Tarek ajoelhou-se ao lado dela. Ao estender a mão para Brianna, o astro-rei
desapareceu, e a bruma rodopiou em torno dela como um manto protetor,
fazendo-a parecer de repente como uma criatura do reino dos espíritos. E em meio
ao som dos outros cavaleiros que se aproximavam e o vento que revolvia a névoa,
ele pensou ter ouvido uma voz no sopro do vento.
− Fuja. Deixe este lugar. Há perigo.
Parecia vir de nenhum lugar e de toda parte, das rochas, das árvores. Um
aviso suspirado no ar, enquanto o céu escurecia em torno deles como o cair da
noite, embora não fosse ainda meio-dia.
− Ela está viva? − Malcolm quis saber.
Tarek comprimiu com afeto os dedos contra a garganta de Brianna e sentiu o
pulso fraco e rápido. Fez um sinal afirmativo.
Os longos cílios dourados estremeceram contra suas faces e se ergueram
sobre os olhos verdes. E, por um momento, a ilusão retornou: uma pantera esguia
e dourada a encará-lo pelo véu da neblina, o sangue a minar do pêlo no ombro,
enquanto se postava sobre o guerreiro que matara.
− Mortain e seus homens estão todos mortos − ela murmurou. − Há um
grande perigo. Você precisa deixar este lugar. − Então, sua cabeça desabou sobre o
ombro de Tarek.
Stephen se aproximou. Atrás dele seguiam mais guerreiros e cavaleiros. Sua
expressão era dura e depois espantada ao ver Brianna.
− Como foi que ela chegou aqui?
− Eu gostaria de saber também. − Tarek suspirou. − E quanto aos
invasores?
− Sumiram − disse Stephen, tenso. − Desvaneceram-se, sem deixar um
traço, como se nunca tivessem existido. E há mais. Encontrei Mortain e seus
homens.
− Onde estavam? − Malcolm quis saber. − Tenho algumas perguntas que
gostaria de fazer a eles.
− Não fará pergunta alguma − Stephen retrucou, os maxilares tensos de
raiva. − Estão todos mortos.
Os olhos de Tarek se estreitaram ao encará-lo.
− O que está dizendo?!
− Encontramos seus cadáveres numa ravina não longe daqui. Ou pelo
menos o que sobrou deles. Foram pegos de surpresa e assassinados. Mortain não
renderia seus homens ou sua espada. − Então continuou, com entonação grave: −
Mas isso não aconteceu esta manhã, quando deixaram nosso acampamento.
− O que diz, Stephen de Valois? − Malcolm o confrontou. − Só poderia ter
sido esta manhã!
O olhar de Stephen encontrou o de Tarek. Ele meneou a cabeça.
- Foram mortos faz mais tempo. É como se... − O que Stephen vira quando
encontrara Mortain e seus homens não era algo fácil de esquecer.
− Como se o quê? − Tarek exigiu saber.
− Seus corpos estavam secos e encolhidos, como se a própria vida tivesse
sido sugada deles.
A escuridão fechou-se, bloqueando o sol, cobrindo a região circundante com
uma atmosfera opressiva que fazia o ar parecer pesado. Os cavalos se moviam
inquietos, a sentir instintivamente o perigo.
− E quanto aos homens que cavalgavam conosco de Inverness que
acreditávamos que fossem Mortain e seus guerreiros?
Stephen ficou muito sério.
− Nós os encontramos usando as túnicas e os armamentos dos homens de
Robert. Estavam ainda montados nos cavalos, porém mortos também. Sobrou
muito pouco deles. Não reconheci nenhum.
Tarek compreendeu.
− Foram enviados para nos despistar e conduzir até aqui.
− Mas vimos Mortain em Inverness! − Malcolm argumentou.
Tarek meneou a cabeça.
− Você viu aquilo que deveríamos ver: uma ilusão. Mortain e seus homens já
estavam mortos.
Malcolm olhou primeiro para Tarek e depois para Stephen.
− Não pode ser. O que você fala é impossível.
Tarek ergueu Brianna. Um de seus homens trouxe a égua árabe para a frente,
e ele acomodou-a sobre o animal, para em seguida subir e puxá-la de encontro ao
peito.
− Ela precisa ver uma curandeira. Teremos de retornar a Inverness.
− E quanto a Mardigan? − Malcolm indagou. − Ele e seus homens não
podem estar longe.
− Mardigan não está aqui. − Tarek olhou ao redor, para o silêncio incomum
que os rodeava.
Não havia um som, nem mesmo um passarinho ou a brisa nas árvores.
Pensou no guerreiro que vira pela clareira. O Mardigan que vira seria real?
− Iremos todos voltar para o castelo − disse, com uma nova urgência que
não aceitava nenhum argumento, pois sentia que aquele lugar estava impregnado
por algo maligno.
− O senhor tem de ajudá-la! − Vivian implorava. − Não pode abandoná-la!
− Não a abandonei, eu a protegi e a mantive a salvo, como desejei manter
você em segurança.
Com a sensação de impotência e de raiva, as mãos encarquilhadas pela idade
e mesmo assim ainda poderosamente fortes apontavam para o ar, enfatizando cada
palavra.
− Brianna não mais está a salvo, pai. Encontra-se em grande perigo. O
senhor viu isso também. Ela precisa obter o conhecimento. É a única maneira
como as Trevas podem ser detidas.
− Você não conseguiu detê-la, Vivian. É muito poderosa.
− No entanto, não o suficiente para reclamar Excalibur. Apenas um
guerreiro que possua grande sabedoria poderia reclamá-la.
− E agora, tendo perdido a espada, as Trevas procuram o poder do Graal. −
Merlin deixou pender a cabeça quando a antiga profecia ressoou em seus
pensamentos atribulados. − Se eu pudesse trocar minha vida pela dela, eu o faria.
Porém, não posso. Tal é a maldição que as Trevas lançaram sobre mim. Este lugar
é minha tumba e estou impotente para sair enquanto as Trevas governarem o
mundo mortal. Nem você poderá dar-lhe o conhecimento, filha, pois, mesmo com
todos os seus maravilhosos poderes, esse você não possui. Estou de mãos atadas,
não posso salvá-la − disse, desalentado. − E as Trevas malditas sabem disso.
Ele enterrou o rosto entre as mãos. O ar no quarto branco com seu teto
aberto para o céu estava pesado com a tristeza
O sofrimento de um pai, que não poderia suportar a maior perda de todas: a
de uma filha amada.
− Mas eu posso salvá-la.
Ambos se voltaram ao som daquela voz gentil. Uma ruga vincou as feições
de Merlin, pois Nínian não vinha ao aposento de mármore desde que entrara no
mundo entre os mundos, tantos anos atrás.
Quanto tempo decorrera? Mais de cinco séculos?
E, no entanto, parecia a mesma, quando, linda de tirar o fôlego, se postou ao
lado dele, as feições delicadas e os olhos verdes irradiando doçura. A passagem dos
anos apenas suavizara e aumentara a formosura extraordinária de Nínian .
− Meu amor adorado − ele murmurou, ao atravessar o aposento e lhe tomar
as mãos entre as suas. − Eu queria poupá-la desse sofrimento.
− Poupar-me? − Nínian retrucou, incrédula. − Como, quando minha filha
está em perigo? Pensou que eu não saberia?
Ela olhou para Vivian, a primeira filha, que era sua imagem.
− Não há nada mais que possa ser feito, Vivian?
− O conhecimento é a única coisa que pode salvá-la, mãe. As Trevas se
fecham. Brianna não mais está a salvo. É hora de ter o conhecimento de seus
poderes.
− As Trevas procuram o Graal − Nínian sussurrou, ao cruzar o quarto até o
portal que se abria para o mundo que fora seu lar por mais de cinco séculos. −
Junto com todo o poder que ele possui. O futuro está em risco, tal como os
Anciãos predisseram.
Voltou-se para Merlin, seu mentor, amante e pai de suas filhas.
− A promessa de um novo rei que deve ter o poder de Excalibur, do Graal e
do oráculo não vingará, se as Trevas não forem derrotadas. Brianna sabe onde o
Graal se esconde. Apenas ela pode liberar o poder inerente a ele. Nossa filha
precisa ter a permissão de lembrar. É a única maneira, meu querido, e você sabe
disso. Para salvá-la, devemos arriscar a vida dela.
− Se lhe for dado o conhecimento, Brianna será destruída! − Merlin tentou
fazê-la entender. − Você não conhece o poder das Trevas. Vivian, diga a sua mãe.
Vivian não podia fazer o que o pai pedia, mesmo que soubesse que ele tinha
razão.
− Isso tem de ser feito, papai. Eu tomaria o lugar dela se pudesse.
Entretanto, não possuo os poderes ou o conhecimento de Brianna. Eles são a
chave para o Graal. Não há saída.
Ao lado deles, Nínian olhou para o mundo reluzente que se espalhava
abaixo, onde ela encontrara grande felicidade.
Como poderia deixar aquele lugar? Como abandonar aquele a quem amava
mais que a própria vida, e pelo qual desistira da vida mortal?
Como não fazê-lo?
− Partirei ao alvorecer − disse, baixinho.
− Não deve, Nínian! − Merlin protestou. − Você conhece a maldição tão
bem quanto eu. Assim que partir, não poderá retornar. Eu não suportaria viver o
resto de minha vida sem você.
Ela afagou-lhe o rosto.
− Meu adorado, eu desisti do mundo mortal e permaneci aqui por causa de
meu amor por você. Aceitei sua decisão de que eu deveria enviar minhas filhas para
lá para mantê-las a salvo. Vivi com essa perda, por mais dolorosa que tenha sido,
nutrindo a esperança dos momentos em que poderíamos estar todos juntos.
Seus olhos se encheram de lágrimas de amor e de tristeza.
− Mas não posso continuar aqui sabendo que minha felicidade com você é
ao custo da vida delas. − Com uma paixão repentina que vinha de um coração de
mãe, afirmou: − É necessário que eu faça isso, e não deve me impedir, Merlin.
− Você é minha vida...
Porém, nos olhos dela viu a determinação e o amor materno que ele não
poderia nunca entender direito, embora amasse todas as filhas tanto quanto Nínian.
Por fim, concordou, com imensa tristeza.
− Sim, você deve ir.
Nínian beijou-o. Sem demora, encarou Vivian.
− Precisarei de sua ajuda, filha. Logo virá a alvorada, e existem coisas que
devem ser feitas. Serão necessárias minhas poções curativas, e você deve me falar
de Tarek al Sharif. Quero saber que tipo de homem ele é. Depois, reze para que eu
chegue a tempo.
Capítulo XVIII

Os guardas das muralhas deram o aviso. Os portões maciços de Inverness se


abriram. Dezenas de tochas lançavam uma luz bruxuleante pelas armaduras dos
cavaleiros que passavam pelos portões, as expressões sérias, as espadas sujas de
sangue a parecerem foscas sob a luz das tochas. Suas montarias exaustas
espumavam, o calor a subir de seus corpos trêmulos no frio da madrugada.
Alguns dos guerreiros que tinham ficado para trás saíram correndo dos
estábulos e da armaria. Mulheres e crianças trouxeram água, mantas e bandagens.
Em meio à confusão e urgência de cuidar dos feridos, nenhuma palavra foi dita,
nenhuma pergunta feita. Os semblantes severos daqueles que retornaram eram
eloqüentes o bastante.
Com imenso cuidado, Tarek estendeu seu pequeno fardo para um de seus
homens. Depois de desmontar, tomou Brianna mais uma vez nos braços e subiu os
degraus para o salão, a gritar ordens.
As largas portas estavam abertas. Enya esperava, com
Nel a seu lado. Com um olhar para a jovem esguia nos braços de Tarek al
Sharif, ela disse a Nel:
− Encontre a curandeira e mande-a para os aposentos do lorde.
Então, seguiu atrás dele, a tocha que carregava a iluminar o caminho pelas
escadas até o quarto.
Onde estava Thomas? ficou a imaginar. Ele parecia um animal enjaulado
fazia dois dias, desde quando Brianna desapareceu. Em duas ocasiões Enya o
encontrara nas ameias, o olhar cravado no céu como se procurasse por alguma
coisa, ou alguém. Não se afastara mesmo quando escurecera. Nem aceitara comida
alguma que ela lhe levara. Enya lhe entregara um manto de pele e o deixara naquela
silenciosa vigília, certa de que tinha alguma coisa a ver com a patroa desaparecida.
Ao alvorecer, Enya o encontrou ainda ali, a observar e esperar. Foi quando
avistou a coluna de luz que serpenteava a distância e distinguiu os cavaleiros, que
portavam tochas naquela escuridão incomum.
O aviso se espalhou, guerreiros e cavaleiros pegaram em armas. Um único
cavaleiro aproximou-se dos portões e foi reconhecido: sir Stephen, o rosto, uma
máscara feroz e rígida sob a luz do fogo, ao ordenar que os portões se abrissem.
A coluna de homens entrou como se todos os cães do inferno estivessem em
seus calcanhares.
Onde estaria Thomas naquele momento? Enya sabia de sua devoção a
Brianna e não poderia imaginar algo que o afastasse do lado dela.
Tarek al Sharif entrou nos aposentos e carregou Brianna para a cama.
Apoiando um joelho na beirada, ele a deitou entre as peles quentes. O manto se
abriu, e Enya viu o sangue que se espalhava sobre a pele de sua patroa e lhe
manchava a túnica.
− Onde está a curandeira?! − Tarek esbravejou.
− Estou aqui, milorde.
Ele ergueu os olhos diante daquela voz nada familiar. Thomas se postava à
soleira. Ao lado dele, uma figura altiva envolta num manto negro. A luz do fogo no
braseiro e das tochas reluziu e faiscou pelo tecido como se fosse feito de fios de
fogo. Ela parecia emoldurada por uma luz sobrenatural no patamar da porta e, ao
caminhar na direção dele, deu-lhe a impressão de trazer a luz para o quarto consigo.
Empurrou o capuz para trás, revelando feições belas e delicadas, e cabelos
cor de chamas que reluziam como uma vela brilhante nas sombras que permeavam
o aposento.
− Lady Vivian? − Tarek a encarou, incrédulo. Ela sorriu com doçura.
− Obrigada, milorde. Tomo isso como um cumprimento. Apenas quando ela
chegou mais perto, ele descobriu que se enganara. Seus traços eram muito mais
suaves, a cor dos cabelos, de tonalidade mais viva, e os olhos não eram azuis como
o coração de uma chama, porém de um verde sereno.
− Quem é essa mulher? − quis saber.
− Sou a curandeira. − Ela se aproximou do leito. Quando pousou a mão na
testa de Brianna, Tarek avançou para protegê-la. Thomas o deteve, a segurá-lo pelo
ombro.
A mão de Tarek fechou-se sobre o cabo do punhal em seu cinto.
Os olhos verdes que encontraram os seus eram frios e avaliadores, a
expressão da estranha fazendo com que ele se sentisse como um intruso.
− Vivian disse que você era um crente − ela disse, a examiná-lo. O que quer
que tenha visto a agradou. − Talvez haja esperança.
Suas palavras pesaram sobre todos ali. Tarek voltou a encarar a bela mulher,
que tinha uma incrível semelhança com lady Vivian de Amesbury.
O perfil era o mesmo, e também a curva cheia dos lábios, que de repente
tremeram de emoção ao fitar Brianna. Porém, o verde lacrimoso dos olhos
marejados de lágrimas e a entonação suave que entoava palavras de um idioma
desconhecido eram de outra pessoa.
− Quem é você? − ele perguntou de novo.
− Você sabe quem eu sou − ela retrucou ao sentir-lhe os pensamentos e
saber da comparação que ele fazia.
Nínian tomou o pulso na garganta de Brianna. Então, puxou o manto
pesado, passando a palma da mão sob a extensão do corpo dela, por fim
retornando à mancha sangrenta no ombro da roupa. Ergueu a beirada da atadura
tosca que estancara o sangramento.
− Sou Nínian.
Tarek recordou-se do nome e da antiga lenda que Vivian Certa vez lhe
contara, sobre a jovem que recuperara a espada do lago e a levara para o feiticeiro
Merlin.
Olhou-a, cauteloso. Para um guerreiro que enfrentara muitos inimigos, ele
aprendera naquele dia que eles muitas vezes usam a face de amigos.
− Se você é Nínian, como chegou aqui? Ela fez um gesto impaciente.
− Isso não importa. Eu vim, e cheguei em tempo.
− Nínian... A dama do lago.
− Ah, então conhece a história! − Ela sorriu de leve. − Vivian sempre
gostou dela. Era sua favorita, quando criança.
− Você possui o poder de cura de lady Vivian? − Ele queria muito acreditar
que algo poderia salvar Brianna.
− Vivian possui um dom raro. Porém, o que sabe aprendeu comigo. (:
− Mas você tem o dom dela de cuidar de feridas?
− Não é o ferimento que ameaça a vida de Brianna, guerreiro − ela
sussurrou. Esfregou os braços como se sentisse um frio repentino, apesar do calor
do pesado manto que usava. − O tempo é curto.
Nínian olhou ao redor, como se pressentisse algo.
− Então, comece a curá-la!
− Não é simples assim, guerreiro. Há coisas de que irei precisar.
− Diga e as terá.
Nínian lhe deu uma lista, e Tarek mandou que Enya providenciasse tudo,
mesmo que isso significasse mandar seus homens para a vila ou mais longe.
− Quando a mulher voltar, vocês todos deverão sair.
− Eu ficarei − Tarek afirmou, com determinação.
Nínian sentiu algo nele, um relance de emoções claras e agudas. Aquele
mortal amava sua filha. Mas seria o bastante?
Ela poderia ter lhe manipulado os pensamentos e forçado Tarek a sair,
porém não o fez. Se ele amava Brianna, teria de saber de tudo. Pois esse era o
verdadeiro teste para o que se interpunha diante deles.
− Muito bem, guerreiro. Mas você poderá vir a se arrepender.
Quando Enya retornou com tudo o que ela pedira, Nínian ordenou a ela e a
Thomas que deixassem o quarto. Thomas obedeceu sem hesitação, levando Enya,
apesar dos protestos.
− Barre a porta − Nínian disse a Tarek −, para que ninguém possa entrar.
Quando ele colocou a barra no lugar, ela começou a separar o que Enya
trouxera, juntando também as várias coisas que tirara de uma bolsa presa na
cintura.
− Você terá de fazer exatamente o que eu disser, milorde. E não importa o
que veja, não deverá interferir. Compreende?
Nínian sentiu a desconfiança e o momento em que ele cedeu a seus desejos.
− Agora, Brianna precisa ser movida. Coloque-a no catre diante do braseiro.
Tarek hesitou, e ela insistiu:
Faça isso agora, guerreiro, ou saia! Tarek a obedeceu, acomodando Brianna
entre as peles macias. Ela não se mexeu. Nínian foi até a janela, empurrou as
cortinas e abriu as venezianas. Tarek julgou-a maluca. Estava um frio terrível lá
fora. Uma tempestade se avizinhava, o firmamento, escuro de nuvens que se
revolviam com o vento fustigante. Quando ele ia impedi-la, ela repetiu o aviso:
− Não interfira.
Cerrando os punhos numa angústia impotente, Tarek assentiu e se afastou
de lado. O quarto se tornou insuportavelmente gelado.
Nínian distribuiu cinco velas brancas. Uma, logo acima da cabeça de Brianna.
As outras quatro, eqüidistantes, formando uma estrela de cinco pontas em torno
dela. Ao colocar cada vela, repetia palavras antigas:
− Brilhantes pontos de luz reluzentes, protejam aquela que se encontra
dentro de seu campo envolvente.
O que dizia ecoava pelas paredes do aposento. Então Nínian se ajoelhou
diante do ponto mais ao norte da estrela, acima da cabeça de Brianna.
Seus braços estavam esticados. Seus olhos, fechados, conforme repetia a
frase. Pouco a pouco, abriu as mãos. A luz, na forma de uma estrela de cinco lados,
luziu na palma de cada mão estendida.
− Brilhantes pontos de luz reluzentes, protejam aquela que se encontra
dentro de seu campo envolvente.
De repente, as velas se acenderam e as chamas luziram, rodeando Brianna
num radiante lago de luz.
Além da janela, o céu estava sombrio. O vento fazia balançar uma tapeçaria
na parede e assoprava as chamas no braseiro e nas tochas. Todavia, as velas
queimavam, firmes.
− Lembre-se, guerreiro − Nínian avisou. − Não importa o que veja, não
deve interferir.
Tarek esperava mais palavras antigas, um encantamento ou talvez um feitiço.
Em vez disso, Nínian tocou a mão de Brianna. Suas palavras eram ternas ao
murmurar, cheia de amor:
− Está a salvo, filha. O poder da Luz a protege.
Nesse instante, o quarto ficou em absoluto silêncio. Nenhum som os
alcançava, como se estivessem afastados do resto da fortaleza... ou do mundo real.
Em seguida, a névoa infiltrou-se pela janela aberta. Espalhou-se pelo chão, a
rodopiar em ondas pela superfície das pedras, enroscando-se em torno das pernas
da mesa e das cadeiras, e se estendendo pelo cômodo. Os anéis subiram pelas botas
de Tarek e depois se moveram como se procurassem alcançar Brianna. Como se
tivessem vida própria.
Quando Tarek quis se aproximar de Brianna, Nínian o impediu, a mão a
segurá-lo pelo braço com força incomum.
− Foi sua escolha ficar, Tarek al Sharif. Agora você é parte disso. Se quiser
que ela viva, não faça nada.
Embora a lógica lhe gritasse para que fosse até Brianna, ele não foi. Era algo
acima da razão. Era algo mais. Algo que fazia as chamas das velas queimarem mais
alto, enquanto as chamas das tochas e do braseiro se extinguiam, algo que ia além
do que ele conhecia do mundo mortal.
Ouvira falar de criaturas míticas, lendárias, que possuíam extraordinários
poderes, para quem acreditasse nelas. Ele fora forçado a acreditar, pois lady Vivian
era assim. Feiticeira. Os ingleses a chamavam filha do lendário Merlin.
Tarek testemunhara seus poderes e sabia que eram reais. E agora a mulher,
Nínian, postava-se sobre Brianna.
Apenas momentos antes o quarto estava gélido. Naquele instante, tornava-se
quente, conforme a bruma subia e lhe envolvia as mãos. Então, sentiu-a na face,
gentil como uma carícia.
A respiração de Brianna tornou-se curta e rápida através dos lábios
entreabertos. Seus olhos estavam fechados, os cílios como crescentes de ouro
escuro contra as faces pálidas enquanto a bruma lentamente continuava sua jornada
e se movia sobre ela como um manto diáfano.
Rodopiou e envolveu-a, serpeando através das mechas de ouro pálido de
seus cabelos, a acariciar-lhe o rosto, as pálpebras e lábios até que um brilho místico
de luz a rodeava. Depois, ele notou uma sutil mudança nas feições de Brianna − na
curva da face, no arco esguio onde o pescoço encontrava o ombro. Ela se remexeu,
porém não acordou.
De repente, seu corpo contorceu-se num espasmo como se ela sofresse uma
grande dor. Tarek ficou a olhá-la, impotente, travar alguma batalha física. Então,
arquejou. Suas costas se arquearam e sua cabeça caiu para trás, a se debater de um
lado para outro. Brianna gritou, um som doloroso e soluçante que lhe partiu o
coração.
− Acabe com isso agora!
− Não posso − retrucou Nínian. − Uma vez que começa, não pode ser
detido.
Ele tentou livrar-se do aperto das mãos de Nínian, mas não conseguiu.
− Maldita seja! − Seus olhos estavam brilhantes de lágrimas de raiva e
angústia.
Ah, guerreiro, ela pensou, sentindo a força do amor de Tarek por sua filha.
Soube que ele teria tomado o lugar dela se pudesse. Talvez Vivian estivesse certa,
afinal, e houvesse dentro dele a força para fazer o que deveria ser feito.
Os laços invisíveis que o impediam de ir até Brianna desapareceram,
liberando-o.
Tarek se aproximou dela e caiu de joelhos a seu lado. Os espasmos
pavorosos tinham cessado, o corpo esguio estava imóvel e um tanto curvado. Suas
pálpebras se abriram, e ela o encarou com uma tristeza assombrosa. Sua mão se
ergueu como se tentasse tocá-lo. Seus lábios formaram-lhe o nome.
Perdoe-me.
As palavras penetraram-lhe a mente, tão claras como se ela as tivesse
pronunciado. Então, conforme Tarek a observava, seus olhos se fecharam mais
uma vez. Nínian puxou-o para longe da filha.
− Ela precisa dormir. Vá, agora.
Assim que ele caminhou para a saída, a bruma se reuniu e se tornou espessa
mais uma vez. As velas luziram mais alto em torno dela, banhando-a em luz prata e
dourada, tão fulgurante que era doloroso de se olhar.
Quando Tarek se virou da soleira e fitou o catre de peles, Brianna tinha
sumido. Em seu lugar, onde ela se achava apenas segundos antes, jazia uma pantera
esguia e dourada.
Capítulo XIX

Malditos sejam seus sortilégios! − Tarek praguejou, furioso, ao se voltar para


Nínian. − Que brincadeira é essa?!
Em seu rosto, ela viu a luta para negar o que enxergava, em guerra com a
lógica racional de um guerreiro.
− Você deve ajudá-lo a compreender.
− Sim, sim, filha. Eu sei − Nínian disse para a voz que falava, aflita, em sua
cabeça.
Então outras vozes juntaram-se às delas.
− Tudo está em risco. Ele é parte disso agora. Você deve fazê-lo enxergar,
querida. Talvez com o guerreiro haja uma chance para Brianna.
− Relembre-o da batalha e da transformação dos guerreiros − Vivian pediu-
lhe.
− Querida esposa, ele deve se dar conta do que está em risco!
− Fiquem calmos, ambos − Nínian pediu, com veemência. − Não posso
pensar, com ambos a tagarelar.
E sorriu com gentileza para Tarek.
− Não há nenhuma brincadeira, nem sortilégio, guerreiro. É um assunto
muito sério. Tudo está em jogo.
O olhar dele se dirigiu à criatura que jazia imóvel diante do braseiro, e abriu
os pensamentos para os dele, para tentar conhecer seus verdadeiros sentimentos.
Percebeu a luta interna, a negação racional para o que via.
− Brianna está viva?
− Sim, porém há muita coisa a ser feita. O ferimento tem de ser curado.
O olhar de Tarek correu de volta para ela, cauteloso e desconfiado, como se
esperasse que ela também se transformasse em algum animal.
− Calma, guerreiro. Não me transformarei em um enorme monstro que
cospe fogo. − Nínian olhou em torno como se avaliando o tamanho do aposento.
− O quarto é pequeno. Ficaria muito apertado.
− Explique isso a mim!
Tarek não parecia divertido com o comentário irônico, Nínian pensou.
− Sossegue. − Nínian separou os remédios de ervas que trouxera, ao mesmo
tempo que ordenava as idéias para explicar melhor o que ele precisava saber.
Gotejou uma mistura sobre um recipiente em ebulição. − A verdade não é tão
difícil de compreender, se você estiver disposto a aceitá-la.
− Você brinca comigo − acusou-a.
Nínian experimentou o alívio de tensão dentro dele e o trabalho de seus
pensamentos conforme seu comportamento Se tornava menos confrontador,
embora não menos cauteloso.
Ela riu baixinho.
− Não, milorde. Você brinca consigo mesmo. Torna isso mais duro do que
tinha de ser. Vou me sentar. Foi uma longa jornada para mim, e não sou tão jovem
como fui um dia.
Nínian colocou uma concha da mistura fervente num copo e estendeu-o a
ele. A suspeita voltou de imediato. Então, Nínian colocou a mesma porção num
segundo copo que levou consigo ao atravessar o quarto e se ajoelhar ao lado da
pantera dourada que dormia, tranqüila.
− O que é isso? Alguma mistura venenosa?
− É chá. − Nínian tomou um gole de seu copo e avisou-o, seca: − Se eu
quisesse lhe fazer mal, você não teria necessidade ou a oportunidade de questionar
isso.
− Chá?
− Isso mesmo. Muito parecido com aquele apreciado nos impérios do leste.
Tarek bebeu um gole, hesitante, achou muito agradável e tomou outro,
embora ainda continuasse numa postura de guerreiro, como se esperasse entrar em
confronto com ela a qualquer momento.
− Você falou de uma longa jornada. − Ele a contemplou por sobre a borda
do copo.
− Várias centenas de quilômetros − ela explicou em termos que ele poderia
compreender. − Vim através da pedra vertical no bosque do rei, embora outro
caminho pudesse ser feito também, mas Vivian insistiu em me acompanhar.
− Lady Vivian?
Pelo tom e pela expressão, ela percebeu que Tarek dera pouco crédito ao que
lhe dissera antes. Agora encarava-a com mais atenção.
− Há alguns que dizem que ela se parece muito comigo
− Quer dizer que a semelhança não é nenhum truque
Conjurado, − Tarek chegou mais perto.
− Eu lhe asseguro que não é! − afirmou, indignada. − Carreguei Vivian
como carreguei todas as minhas filhas da maneira mortal, por causa de seu sangue
mortal. Por dois dias Vivian lutou para nascer e, quando apontou a cabeça, seus
cabelos eram tão vermelhos como uma chama. Depois de experimentar o calvário
do parto mortal, eu teria feito isso com alegria da próxima vez, por qualquer outro
meio, se fosse possível. Não, Al Sharif, nossa semelhança não é truque conjurado,
mas proveniente do sangue.
− Vivian é o que meu povo chama de Jehara.
− Ela é o que eu chamo de insuportável! É voluntariosa, teimosa,
obstinada... − Nínian sentiu de repente uma ondulação de tensão em seus
pensamentos e soube que Vivian os sentira. Sorriu ao olhar para baixo, para a
criatura a seu lado, e emendou: − Assim como são todas as filhas que fiz, cada uma
a sua maneira.
− Todas as suas filhas? − O olhar de Tarek seguiu o dela para a pantera que
jazia imóvel ao lado de Nínian.
Um talho profundo lhe rasgava a pelagem pela espádua.
Milhares de imagens lhe encheram a cabeça. A bruma a Se separar sobre a
clareira em meio às rochas; o inimigo caído na trilha diante dele; e a criatura bela e
selvagem que Se Postava sobre o homem com sangue a lhe manchar as garras;
meses antes, ao lado de uma lagoa, a bela moça que aparecera através da neblina e o
conduzira para longe da morte certa; quando ele se voltara para trás, tudo o que
restava era o cisne a deslizar pelas águas e que depois desaparecera; a angústia de
Brianna com relação aos votos que tinham pronunciado: "Não posso ser uma
esposa para você. Não posso sentir o que outras sentem"; e, enfim, a paixão feroz
que tinham encontrado um com o outro, quando ele a fez sua mulher.
De dentro da túnica, Tarek apanhou a pena prateada que achara nas ameias,
semanas atrás. Será que sempre soubera, mas preferira não acreditar?
Nínian o analisava, circunspecta. Sentiu o turbilhão interior e a pergunta
silenciosa.
A acariciar a pena entre o polegar e o indicador, confrontado com uma
verdade que não conseguia negar, Tarek acabou por murmurar:
− Conte-me.
− Levará algum tempo, pois há muito a dizer. E muito que ela precisa saber
também. − Relanceou o olhar para o felino, que não parecia vivo a não ser pela
respiração entrecortada. − Mas primeiro necessito curar o ferimento.
− Será doloroso?
− Há sempre dor, guerreiro. A cura só pode vir da dor. O que foi cortado e
separado deve ser emendado.
Tarek observou o padrão em formato de estrela das velas que luzia em torno
da bela mulher e da pantera.
− É um encantamento de proteção. Enquanto as velas queimarem e ela
permanecer dentro, estará a salvo. − Então, com surpresa e prazer, sentiu-lhe o
pensamento seguinte. − Sim, guerreiro, você pode entrar. O encantamento protege
contra aqueles que são maus.
Tarek hesitou, e então deu um passo para dentro. Como nada aconteceu,
soltou devagar o fôlego, que contivera. Nínian reprimiu um leve sorriso.
− Acho que vamos nos dar muito bem.
Começou a cura com um simples toque, juntando as bordas de músculos,
nervos e carne. Sob seus dedos mágicos, o sangue cessou de fluir como se
cauterizado, o músculo emendado mais forte do que antes. Os venenos foram
drenados e, por fim, a pele fechou-se de maneira que nem mesmo um traço do
ferimento permanecia, a não ser uma leve sutura rosada em meio ao espesso pêlo
bronzeado.
Ao fim, Tarek recostou-se contra a parede de pedra do lado da lareira. Vira
lady Vivian operar tais milagres de magia quando salvara a vida do rei, quando
curara um ferimento que teria sido fatal para Stephen de Valois, e no momento em
que drenara o veneno da rainha, salvando tanto ela como seu filho não nascido.
− Você possui os mesmos poderes que lady Vivian? Ela sentiu aceitação na
pergunta. Sorriu ao sentar-se no Catre de peles. Por ora, Brianna dormia, tranqüila.
O ferimento estava fechado e curado, e agora ela precisava descansar. Porém,
quando Nínian olhou para as velas do padrão de estrelas que os rodeavam, viu que
queimavam com um brilho inusitado e muito mais depressa, como se a ficar mais
altas e mais brilhantes contra uma escuridão incomum. Estremeceu ao sentir a
impressão outra vez. Restava muito pouco tempo.
− É diferente com todas nós, assim como existe diferença entre crianças
mortais nascidas dos mesmos pais. Uma pode ter olhos azuis, a outra, verdes. Uma
terá o sorriso do pai, a outra o encanto da mãe. Vivian tem muito de meus poderes,
porém são acentuados por aqueles que ela herdou de seu pai.
− Merlin. − Então ele indagou: − E quanto a Brianna? Nínian escolheu as
palavras com cuidado:
− O que você sabe de crianças encantadas, trocadas pelas fadas?
Ele recordou-se da explicação de Vivian sobre Meg, a velha cega que fora
sua criada desde quando ela era criança.
− Sim, Meg nasceu de uma encantada e um mortal − Nínian adivinhou de
novo o que ele pensava. Diante da expressão espantada de Tarek, tornou a sorrir. −
Esse é outro dom com que algumas de nós nascemos: a capacidade de ler a mente
dos outros. Embora com alguns não possamos.
− Então você invade meus pensamentos quando quiser... A conversa não ia
na direção que Nínian esperava.
− Apenas quando é necessário, asseguro-lhe. Tenho de ter certeza de que
você compreendeu. Há muito em risco.
Por vários instantes, estudaram um ao outro, mais como combatentes a se
medir.
− Continue. Conte-me que outros poderes ela tem. Nínian relanceou o olhar
para a criatura dourada que dormia a seu lado na cama de peles, o mais óbvio dos
poderes evidenciado.
− Brianna também é uma encantada, Tarek Al Sharif.
Tem o poder de se transformar. O olhar de Tarek seguiu o dela.
− A pantera... Ela assentiu.
− Porque possuem grande força e sagacidade.
− Um pássaro? − ele sugeriu.
− Eles possuem o dom de viajar para longe e ver o que os outros não podem
ver na terra lá embaixo.
− Um cisne prateado?
Ela achou graça ao sentir o prazer da lembrança daquele primeiro encontro
com Brianna, um encontro casual que colocara o futuro em movimento e oferecia
esperança.
− Sim.
Ele lutou com uma nova possibilidade.
− Inimigos com as feições de meus homens mais confiáveis?
− Jamais! − jurou Nínian. − Aquelas são as forças do mal, o poder das
Trevas.
Mesmo enquanto falava, ela olhou pelo quarto além do brilho do padrão de
estrela que os protegia. A luz oscilava, as velas agora queimavam baixo. Não havia
muito tempo restante. Poderia ela fazê-lo entender tudo o que devia saber?
− As Trevas a encontraram, assim como encontraram Vivian.
− E quanto à bruma que aparece como fez quando você abriu a janela? − ele
perguntou, ao rememorar como aparecera outras vezes, vinda do nada.
− Brianna é uma filha da Luz. Os elementos da natureza são dons que
aqueles da Luz possuem. Assim como Vivian detém o poder do fogo, Brianna
possui os poderes da terra. A bruma é seu elemento especial. Ela nasceu na bruma
e retorna para a bruma.
− E pode convocá-la?
− É parte dela.
Tarek lutava para aceitar tudo aquilo.
− O que as Trevas querem com Brianna?
− Seu conhecimento. − Diante do olhar interrogativo, ela explicou. − Só
Brianna sabe onde o Graal pode ser encontrado.
− Isso nada mais é do que uma lenda. Você diz tolices. Nínian sentiu que a
mente de Tarek se fechava para ela, junto com a vontade de ouvir.
− Não viu os círculos gêmeos no ombro dela?
Viu a resposta nos olhos estreitados quando aquele olhar azul de repente se
voltou para ela. Arriscara e acertara. Era como suspeitava. Sua filha e aquele
guerreiro tinham se unido fisicamente. Brianna era esposa dele de todas as
maneiras, era capaz de um amor mortal. Porém, aquilo trouxe um novo medo, pois
o amor a deixava vulnerável aos poderes destrutivos das Trevas.
− Círculos gêmeos que se sobrepõem, sem fim, vida eterna: o símbolo do
Graal. Com a marca, Brianna recebeu dos Anciãos o conhecimento do Graal. Mas
o pai dela teme as trevas. Mandamos Vivian para longe de nosso mundo para que
ela ficasse a salvo. Quando Brianna nasceu com a marca do Graal, Merlin soube
que ela também devia ser mandada embora. Porém havia uma coisa mais que ele
tinha de fazer. O conhecimento do Graal a punha em perigo. A única maneira de
protegê-la era ocultar o conhecimento dela. Todo saber de seu eu verdadeiro foi
bloqueado de sua memória. Thomas era seu protetor e a trouxe aqui para o país do
Norte.
− Ela não sabe nada disso? − Ele a encarou, incrédulo. − E quanto às
transformações?
− Brianna sabe que isso é uma parte de si e que não poderia ser evitada. Mas
o conhecimento de sua família, de seu pai, de mim e do Graal são coisas que
apenas seu coração sabe, não seu cérebro, pois isso a teria colocado em grande
risco. Isso era necessário para ela acreditar que seus pais verdadeiros estavam
mortos, para que amasse Cullum e Mirren. No entanto, seus poderes são grandes.
Muito mais fortes do que o pai percebeu. Ela tem sonhos e visões, muitos dos
quais são pedaços das lembranças de nossos momentos juntos. E suas visões de
você... Brianna sabia que você viria e o temia, Tarek. Pois, em suas visões, ela sentia
coisas que não julgava possíveis.
Quando Nínian o fitou, Tarek olhava para Brianna.
− Quanto tempo dura a transformação?
Ela a controla. Termina assim que Brianna quiser que termine. Porém, isso é
diferente. Ela foi ferida enquanto transformada. Por causa de seu medo de que
você descobrisse a verdade, voltou a se transformar. Foi muito perigoso.
Para ficar completamente curada, foi necessário retornar à forma que
assumira ao se ferir. Mesmo agora, a cura se faz dentro dela. Quando estiver forte
de novo, assumirá outra vez a forma humana.
Nínian estendeu a mão e a pousou no braço de Tarek, e sentiu dúvida e
medo dentro dele.
− Ela será de novo a mulher pela qual você se apaixonou, guerreiro −
assegurou-lhe, pois não podia suportar a idéia de que ele se afastasse de Brianna.
Isso sem dúvida a destruiria.
− E as Trevas ainda esperam além da luz da estrela − ele retrucou.
Suas palavras afastaram o medo do coração de Nínian. Tarek aceitara tudo
aquilo. Talvez Vivian tivesse razão. Se assim fosse, então ele era um guerreiro de
rara coragem.
− Sim. Espera e se torna mais poderosa a cada momento que passa.
− É essa a razão pela qual você veio até aqui?
− Vim para curar os ferimentos de minha filha.
Seu incisivo olhar azul encontrou o dela. Vivian previra a verdade também,
uma verdade que Tarek ainda não sabia.
− Creio que veio por outro motivo também, senhora. Ela fez que sim. Seu
genro era perspicaz e esperto, e possuía uma agudeza de raciocínio maior do que a
maioria dos mortais.
− Brianna precisa saber a verdade sobre si, que ocultamos dela por todos
esses anos. Apenas a verdade poderá salvá-la e ao Graal, por quanto tempo ficaram
sentados dentro da suave proteção luminosa do desenho de estrela? Pareceram
horas, e contudo as velas que em geral não teriam durado mais que uma hora ainda
queimavam.
Deitada entre eles, protegida pela magia da luz da estrela, a pantera dourada
se espreguiçou. Embora tivesse presenciado antes, Tarek observou a transformação
com fascínio e incredulidade.
Um véu de bruma subiu em meio à luz, envolvendo a criatura como uma
mortalha de prata, a reluzir nas pontas dos pêlos como ele vira centenas de vezes
nos cabelos de Brianna.
Então as feições do felino se suavizaram e mudaram pouco a pouco, para
revelar outras feições sob a pelagem bronzeada. Um braço, a curva do pescoço, o
semblante delicado sobre os ossos frágeis, a curva sensual da boca que ele beijara
dezenas de vezes e que se abria desejosa e ávida para a dele.
Quanto dela era mortal? Quanto ainda era a criatura? Jehara. Aquela era a
palavra antiga entre seu povo que denominava as criaturas que não pertenciam a
nenhum mundo e que contudo eram parte de ambos.
Nínian o estudava. O que faria ele, agora que conhecia os fatos? Tarek
acreditava em Jehara, porém poderia aceitar, como devia, que a mulher que amava
era uma delas?
Ou se afastaria com horror e desgosto, como Brianna receara? Tudo
dependia dele. Brianna precisaria de sua ajuda naquilo que estava ainda por vir.
Mesmo assim, poderia não Ser suficiente.
Tarek tocou a mão dela, onde jazia curvada sobre a pele escura da mesma
maneira como quando dormia a seu lado. E compreendeu que não poderia ter uma
sem a outra. Ela e a criatura eram o mesmo ser.
Poderia ele viver sem Brianna?
Traçou a curva de seu rosto com os dedos, como fizera incontáveis vezes.
Sem despertar, ela se voltou sob o toque, o calor de sua respiração a lhe bafejar a
pele numa recordação das inumeráveis outras maneiras com que ela o tocara.
Naquele breve contato e nas violentas emoções que causou, Tarek soube a
resposta. Não poderia.
Uma batida na porta rompeu o silêncio reinante. As chamas das velas
tremeram. Na palma, ele sentiu um tremor passar pelo corpo de Brianna. Olhou
para Nínian mas os olhos dela estavam cravados na porta, a expressão intensa.
Nesse momento, as chamas das velas se firmaram mais uma vez. As sombras
pareceram ser mantidas a distância, pelo menos no momento.
− Leve-a para a cama, Tarek. Então, pode abrir a porta.
Ele tomou Brianna no colo e a conduziu ao leito. Na mesma ordem em que
acendera as velas, Nínian levou-as para a cama e colocou-as em torno da filha, mais
uma vez, restaurando o poder protetor.
Sua expressão era grave.
− Não há lugar a salvo do poder das Trevas, guerreiro. Porém, enquanto o
segredo ficar trancado dentro dela, Brianna não correrá imediato perigo.
− O que você fará?
− Quando ela estiver forte o bastante, irei libertar as lembranças dentro de
sua mente.
− E quando Brianna souber da verdade?
− Deverá procurar o Graal. Ela é a única com o conhecimento para
encontrá-lo. Não há outra maneira de deter as Trevas.
− Muito bem. Brianna não irá sozinha.
Quando Nínian colocou a última vela no lugar, completando o desenho da
estrela, Tarek foi até a porta e tirou a tranca. Stephen de Valois esperava, ansioso,
no corredor. Sua expressão era séria, as belas feições, tensas.
− Que notícias tem, Stephen?
− Os soldados que você deixou para proteger Inverness terminaram do
mesmo jeito que Mortain e seus homens. Não eram humanos e, quando
descobertos, desmoronaram e se transformaram em pó, deixando para trás feições
grotescas irreconhecíveis para qualquer um no castelo.
− E quanto a Mardigan?
− Centenas de invasores foram vistos na floresta. Escurecem o céu com as
plumas negras de seus adornos de cabeça, e suas espadas são da cor da noite. −
Então acrescentou, em voz mais baixa: − Gavin de Marte e Malcolm conseguiram
chegar perto de um acampamento. Não viram rostos por trás dos elmos e
protetores de nariz! Nada, a não ser a maldita escuridão.
No salão, as chamas derretiam as tochas, deixando todos inquietos. Nas
sombras, Tarek teve certeza de ver um movimento, mas quando passou por
Stephen com uma tocha a mão, não encontrou nada. Nada, a não ser mais
sombras.
Voltou-se para Stephen.
− É preciso fazer planos. − Depois, dirigiu-se a Nínian: − Barre a porta
quando eu sair. Não deixe ninguém mais entrar.
Nínian fez como ele pediu, mas, mesmo ao colocar a travessa no lugar, ela
sabia que era inútil. Quando as Trevas quisessem entrar ali, assim o fariam, e nem
mesmo o encantamento da estrela poderia impedir isso. A única esperança era o
Graal e seus poderes incomuns.
Tornou a voltar-se para a cama e para a jovem que jazia ali, sobre quem
agora repousava a esperança para o futuro de toda a humanidade.
Com o coração pesaroso de mãe e uma terrível visão de vidente, sussurrou:
− Acorde, filha. Começou.
Capítulo XX

Gillie esgueirou-se para fora, escapando pelo caminho do jardim de Mirren.


Descobrira o pequeno espaço na base da muralha, atrás de uma touceira de alecrim
semanas atrás, quando forçada a trabalhar na horta. Agora andava depressa ao
longo da muralha externa, rumo à floresta densa que beirava o litoral escarpado.
A escuridão crescente era uma vantagem para ela, decidiu, ao olhar para o
topo da muralha. Esperou e, como antecipara, um guarda apareceu. Esquadrinhou
o terreno ao longo do perímetro da muralha e deitou-se nas sombras.
Quando ele passou adiante, Gillie começou a contar conforme se afastava
dali, como fizera muitas vezes antes: um, dois, três, quatro, cinco e seis, o espaço de
tempo que sabia decorrer antes que o próximo guarda aparecesse. Na contagem de
seis, ela saiu correndo e enfiou-se no mato fechado à beira da floresta.
Encolheu-se ali sob os tojos e pinheiros até que sua respiração se acalmou.
Nenhum alarme soara das ameias. Quando tornou a olhar para trás, para Inverness,
uma estranha concentração de trevas pareceu envolver a fortaleza como um pálio
que aos poucos se fechava sobre tudo.
O vento soprava forte e, conforme a escuridão crescia, relâmpagos cortavam
o firmamento como dezenas de espadas, e o trovão soava como o ruído de batalha.
Gillie estremeceu e puxou o xale com mais força em torno de si.
Correu as mãos sobre o tecido rústico de lã e pensou em Brianna, que a
levara para Inverness e depois esperara que ela trabalhasse como qualquer um pela
comida e pelas roupas miseráveis, tão pobres como qualquer aldeão usaria; nos
olhos agudos de Enya, que sempre estavam a observá-la, pronta para correr até
Brianna com notícias de seu último-malfeito; e no gigante Thomas, que sempre a
seguia, aqueles grandes olhos escuros a vigiar, como se soubesse o que ela
pretendia. Seu único pesar era pelo novo lorde de Inverness.
Mesmo naquele momento, ficava excitada ao pensar em Tarek al Sharif e
como poderia ter sido entre eles, se não fosse por Brianna. Como sua vida inteira
teria sido diferente se não fosse pela prima. Ela poderia ser a senhora de Inverness.
Tinha certeza de que poderia persuadir Tarek al Sharif a compartilhar sua cama se
tivesse mais tempo. E assim que ele estivesse lá, ela, sem dúvida, teria dado vida a
sua semente, em vez de à criança que agora carregava.
Estremeceu outra vez ao lembrar-se do filho. Bebês eram como pequenos
mendigos indefesos e necessitados. Gillie vira as jovens escocesas com seus bebês,
as exigências, o cuidado constante que exigiam. Porém, havia umas poucas
vantagens a serem obtidas em troca, e Gillie sempre fora esperta. Ainda mais com
um homem que tinha ambições por um domínio e por filhos que consolidassem
sua posse. Cortou caminho pela mata, a se orientar pela luz tênue que se filtrava
pelas copas das árvores. Tudo parecia quieto demais. Nem uma folha ou animal se
mexia. Mesmo a água no riacho não fazia ruído ao escorrer pelas pedras.
Gillie puxou o xale mais apertado ao seguir o riacho para dentro da floresta.
Então, de repente, um guerreiro postou-se na frente dela, saído de uma moita.
Ela teve um sobressalto, pois o homem tinha a escuridão do demônio em
torno de si, uma sombra gigantesca sem luz nas feições. Gillie quis virar-se e correr,
mas não conseguiu. Ele era um invasor. Tinha essa aparência nos trajes com o
gibão e as calças de couro, os braços nus com braceletes marchetados de ouro e o
elmo em domo de metal. Porém seus olhos...
Gillie não conseguia vê-los por trás do elmo, e isso a inquietou, pois diziam
que aqueles sem olhos eram da prole do demônio.
Para mascarar o medo, Gillie ordenou:
− Leve-me até ele.
O guerreiro não a reconheceu de imediato, e continuou com a espada numa
das mãos e um machado de guerra na outra. Mesmo suas armas eram negras, como
se tingidas com fuligem. E uma lâmina coberta de fuligem podia cortar ao fundo
como uma limpa.
Quando Gillie tentou passar por ele na trilha estreita ao lado do riacho, o
guerreiro bloqueou-lhe o caminho. De novo ela recuou, inquieta. Até o ar parecia
sufocante.
− Eu trouxe notícias − ela o informou. − Se não me levar até ele, pagará por
isso.
Por fim, o homem se voltou e seguiu adiante, ao lado do riacho.
A floresta parecia se fechar em torno dela. Os galhos se enroscavam em sua
saia e lhe arranhavam o rosto. Por fim, aproximaram-se de uma clareira de rochas
enfileiradas e ao acampamento abrigado dentro das ruínas de um antigo círculo de
pedras.
Gillie hesitou, inquieta num lugar como aquele, pois havia quem acreditasse
que os círculos de pedra, tais como aqueles, pertenciam a templos religiosos dos
deuses antigos, cuja representação era esculpida nas pedras e nos troncos retorcidos
das árvores.
Uma única fogueira queimava sob o abrigo da rocha maior. Em torno dela,
reuniam-se outros invasores e aquele que ela procurava: Mardigan. Assim que lhe
contasse, ele iria acreditar que era seu o filho que carregava.
Uma única tocha queimava em meio às pedras, a luz débil e bruxuleante. A
expressão de Mardigan era feroz e marcada com linhas duras acima da barba
avermelhada. Sobrancelhas loiras se arqueavam com dureza acima dos olhos azuis
da cor de um fiorde do Norte.

Era um guerreiro violento e perigoso que venderia a alma ao demônio para


reclamar um domínio nas Terras Altas, e Gillie apostara tudo nele. Quando
recebesse a informação que lhe trouxera, Mardigan iria destruir a todos e reivindicar
Inverness. E Gillie seria a senhora da fortaleza.
Malcolm seguira Gillie do salão, ao passar pela lavanderia e pelos jardins. O
que ela poderia ir procurar ali, com a noite quase sobre eles?
Viu-a ir avante, sem hesitação e sem a necessidade de uma tocha na
escuridão crescente, como se o caminho lhe fosse familiar. Então, de repente,
desapareceu por trás de uma densa vegetação na muralha dos fundos.
Malcolm encontrou a abertura, larga o bastante para um homem de bom
tamanho passar se arrastando, e de imediato recordou que Brianna falara dele. Ia
entrar ali, mas hesitou. Poderia encontrar Mardigan e seus homens no aguardo, do
outro lado, e não haveria chance de avisar seus parentes.
Apurou a audição por vários instantes. Não ouvindo nada, arrastou-se pela
abertura e emergiu do lado de fora da muralha. Com um olhar para cima, avistou o
guarda a passar pelas ameias. Ninguém testemunhara a fuga de Gillie. Ela
cronometrara o tempo com perfeição, com a certeza de alguém que planejara a
escapada muito bem ou talvez já tivesse feito isso antes.
Quantas vezes Gillie teria saído de Inverness daquela mesma maneira?
Malcolm ficou a imaginar. Teria sido uma delas a noite do ataque, quando tantos
morreram? Era quase certo, pois Gillie não sofrera nenhum ferimento, e a maior
parte dos seus parentes tinha sido retalhada em pedaços pelos invasores que
ganharam acesso ao castelo pelos portões abertos.
Não havia tempo para reunir a guarda. Cada momento que passava levava
Gillie para mais fundo na floresta, e ele poderia não encontrá-la. Assim, Malcolm
desembainhou a espada e embrenhou-se na vegetação. Gillie tinha muito a explicar.
Malcolm logo divisou os vestígios de pegadas no terreno macio que cobria o
solo da floresta. Manteve uma boa distância entre os dois, seguindo o som dos
passos, os dele, silenciosos como os de uma raposa ao se mover num curso
paralelo.
Quando Gillie parava, ele parava. E quando ela rumou numa nova direção ao
longo da curva do riacho, ele foi atrás. Ficou tão aturdido quanto Gillie pela
aparição súbita do guerreiro, como se o homem tivesse se materializado da
escuridão.
Mas Malcolm sabia de coisas que Gillie não sabia, pois passara por ali horas
mais cedo, com Gavin de Marte. Deixando seus cavalos num abrigo isolado de
pedras, eles continuaram o caminho a pé, ambos vestidos com calças e túnicas de
pele de corça, misturando-se, assim, com as sombras. Rastejaram pela floresta por
horas, ouvindo os ruídos, sentindo a estranheza da escuridão que se condensava e
descia sobre eles. Estavam prestes a voltar quando Gavin viu um movimento entre
as sombras. Movendo-se num ângulo e alguma distância à frente, Malcolm quase
avançou sobre o acampamento dos invasores.
Como era possível que tivessem chegado ali tão depressa, sem nenhuma
fogueira, nenhum ranger de arreios, nem conversa abafada que pudesse denunciá-
los?
Estavam vestidos como invasores, as espadas pretas de fuligem para não
refletir luz e trair sua presença. Porém, quando Malcolm percebeu o alerta
assobiado de Gavin e ficou imóvel, testemunhou algo que fez seu sangue congelar
nas veias.
Havia apenas escuridão por trás dos protetores de nariz dos elmos rústicos
dos guerreiros. Suas feições não estavam sujas de lama. Ele não via feição alguma.
Apenas a abertura escura onde deveriam estar as faces!
Quem eram aqueles guerreiros sem rosto? Como puderam viajar até tão
longe num espaço tão curto de tempo desde as colinas do norte aonde Mortain os
levara para o reduto de Mardigan?
De repente, um dos invasores pareceu assumir o comando. Nenhuma
palavra foi dita. Ele apenas se levantou, pegou sua armadura de combate e seguiu
pela mata. Os demais se juntaram a ele, como aparições silenciosas que se moviam
a algum comando impronunciado. Dentro de segundos, sumiram.
Não faziam nenhum ruído na floresta. Nem marcavam a passagem. Quando
Malcolm e Gavin saíram de seus esconderijos e tentaram segui-los, não puderam
descobrir o rumo que tomaram. Nenhum galho baixo a se mexer, nenhum broto
quebrado, nenhuma impressão no solo macio sob os pés. Não podiam adivinhar a
direção em que os invasores desapareceram ou como tinham sumido. A única
escolha era voltar para Inverness. Naquele momento, porém, Malcolm
experimentava de novo aquela inquietude de horas antes, somada a uma raiva
tremenda da traição fria de Gillie. Recordou-se, desgostoso, de ter encontrado
prazer entre as coxas daquela criatura sórdida.
Quando o guerreiro e Gillie se embrenharam na floresta ele foi atrás.
− O que aconteceu?! − Tarek exclamou, ao erguer os olhos da mesa do
conselho e ver o cavaleiro que chegava.
Gavin de Marte entrava no salão. Sua expressão era diferente de qualquer
outra que Tarek já tivesse visto. Não mostrava a dureza de um guerreiro que encara
a triste realidade da batalha por vir e a possibilidade de sua própria morte, mas o
assombro de alguém que vislumbrara além da morte. Atrás dele, dois de seus
homens carregavam um terceiro, ou tudo o que restara dele.
Um jarro partiu-se nas pedras do chão. Nel gritou ao ver aquele que eles
carregavam.
− É o mesmo! − ela berrou, apontando para o morto. − Não tem face!
Tarek ajoelhou-se ao lado do guerreiro morto. As feições estavam encolhidas
e ressecadas, os ossos do crânio expostos onde a pele secara e caíra. Exceto pela
grotesca máscara da morte, o esqueleto era tudo o que sobrara.
As mandíbulas estavam abertas num sorriso feroz e mortal, a última atitude
antes de morrer. Tudo o que tinha ainda era a juba farta de cabelos ruivos
familiares e o anel que ele usara, muito pequeno para seu próprio anular, porém
colocado no dedo mínimo. Um anel de âmbar dourado e mala" quita, que Malcolm
um dia tivera esperanças de colocar no dedo de Brianna. Ian reconheceu o anel
também e chorou pelo filho morto.
− Foi assim também com Mortain e seus homens − Gavin disse, num tom
cheio de raiva e horror ao falar baixo para que Ian não ouvisse. − Ele ainda estava
vivo quando o encontramos na beira da floresta, mesmo enquanto a carne
despencava dos ossos.
− Disse alguma coisa? Gavin fez que sim.
− A prostituta, Gillie, também está morta. Foi ela quem traiu Inverness para
os invasores na noite do ataque. Gillie abriu-lhes os portões. E há mais: foi
encontrá-los esta noite, Estava grávida.
− Achou um amante entre os invasores − Stephen concluiu. − E traiu seus
parentes por suas próprias ambições.
Gavin assentiu.
− Ela foi procurar Mardigan, mas ele não a quis.
− Não tinha mais nenhuma serventia. − Tarek, muito sério, recordava-se do
aviso profético de lady Nínian.
As Trevas encontraram Brianna.
Capítulo XXI

− Por quê? − Nos olhos de Brianna só havia dor, confusão e raiva. − Por
que não me foi permitido conhecer a verdade? Todos esses anos sabendo apenas
que eu não era como as outras garotas, os sonhos e as visões, a primeira
transformação...
Cerrou as pálpebras ao se lembrar da primeira vez e do terror daquela coisa
desconhecida que lhe acontecera. Avançou para Nínian.
− Os boatos e as superstições sobre tudo aquilo, o que as pessoas diziam...
Minhas próprias dúvidas. Fiquei apavorada tantas vezes. Pensei que devia estar
ficando louca. Se não fosse por Thomas... − Sua voz se elevou de novo, zangada.
− É justo essa a razão pela qual mandamos Thomas para ficar com você.
− Precisei da senhora − Brianna argumentou, outra vez perto de lágrimas
bem humanas —, mas não estava lá para explicar isso tudo para mim!
Nínian percebeu o quanto poderia ser dolorosa a verdade para ambas.
Aquela sua bela filha loira, a, não era nenhuma criatura tresloucada, nem dócil, mas
um ser voluntarioso, teimoso e tão veemente como Vivian.
− Eu estava lá, Brianna − Nínian afirmou, gentil, tentando acalmá-la com
seus pensamentos, mas descobriu-se logo bloqueada.
− Oh, não! Não serei controlada ou dissuadida a crer em outra coisa. Quero
toda a verdade. Toda!
− Eu lhe disse tudo, minha filha. Não acredita que você seria capaz de
aceitar as transformações se eu não tivesse estado lá a minha própria maneira para
guiá-la? − Prosseguiu então, quando Brianna pareceu considerar o que ela dizia: −
A transformação é seu poder especial. Não poderia ser retido ou escondido de
você. Somos parecidas nisso, minha filha − emendou, a entonação a se suavizar ao
pronunciar a preciosa palavra filha, com o conforto de que Brianna agora se
recordaria.
Porém, era um pequeno conforto. Brianna estava tão brava... Diria a palavra
que Nínian ansiava e precisava ouvir em resposta?
− Embora eu não pudesse estar sempre a seu lado, estou sempre ligada a
você. Por aqui. − Nínian colocou os dedos na testa. − E por aqui. − Pousou a mão
sobre o coração.
− Mas não me era permitido lembrar! − Brianna acusou. − A senhora e meu
pai me abandonaram! Achei que desistiu de mim porque não me queria.
− Abrimos mão de você para entregá-la aos cuidados de duas pessoas que a
amaram como se fosse sua própria filha e que deram suas vidas para protegê-la
porque nós a amávamos! Então, fui forçada a aceitar o pouco tempo que tínhamos
juntas, construindo uma vida de amor dos momentos roubados, a observar outros
receberem seu carinho e partilhar de sua vida como eu não podia! Nínian começou
de novo a explicar:
− Você não tem lembranças, mas eu me recordo de cada momento doloroso
e vazio, dos bebês que não pude segurar ou cuidar, dos beijos que nunca ganhei e
do vácuo silencioso das risadas infantis. − Lágrimas reluziram nos olhos dela.
− Lembrei-me de cada momento vazio e desejei não poder lembrar. Pois aí
talvez a dor pudesse ir embora.
Por mais que tentasse manter a raiva, Brianna descobriu que não conseguia.
Deu-se conta de que sua dor não era a única, nem talvez a maior. Estava tão
conectada a Nínian, a mulher de seus sonhos, agora que as lembranças tinham se
aberto, que sentiu o padecimento dela.
− Você não compreenderá até que tenha um filho seu − Nínian murmurou.
− Será a maior alegria e o maior tormento que irá conhecer.
− Quer dizer que é possível? − Brianna perguntou, a ira agora
completamente extinta, substituída por um anseio de esperança.
− O que é possível, filha?
− Ter um filho. Uma criança mortal. Viver uma vida mortal.
Naquele momento de vulnerabilidade, com ambas à beira do pranto, Nínian
sentiu a incerteza e o temor de Brianna.
− Seu amor por ele é forte. Irá precisar de tal amor para que está por vir.
Você é mortal, Brianna. Tanto quanto eu todas as minhas filhas também. Não gerei
um ouriço ou corvo. Pelo menos não da última vez que verifiquei.
Brianna sorriu por entre o choro.
− Mas talvez uma mula teimosa? − sugeriu.
Nínian achou graça.
− Sim, porém ela ficará bem quando se transformar em seu eu verdadeiro
outra vez.
Então o olhar de Brianna tornou-se sombrio.
− Está muito perto, não está? − Podia sentir a opressão do mal de que
Nínian falara, que parecia se amontoar nas paredes do quarto, comprimindo-se,
sufocando a luz das velas assim como tentava sufocá-las também.
− Sim, muito perto.
− E a única esperança é o Graal.
− Ele não deve se tornar um instrumento das Trevas. − Nínian ergueu a
mão. − Seja paciente, filha. Você possui o conhecimento do Graal como nenhuma
outra pessoa. Em tempo, a memória dele irá retornar.
E como saberei onde pode ser encontrado?
− Isso também lhe será revelado. Se tudo fosse conhecido de uma vez, as
Trevas poderiam roubar o conhecimento de você. Tal é seu poder que nem mesmo
eu poderia impedir.
− E quanto a meu marido?
Nínian sentiu o poder do amor de Brianna por Tarek, que a fazia ao mesmo
tempo forte e frágil.
− Ele é parte disso agora, e não pode escapar mais, tal como você. − Franziu
a testa ao olhar para as mãos torcidas de Brianna, tentando encontrar palavras para
as outras coisas que ela tinha de saber, mesmo que lhe causasse uma dor muito
própria dos mortais.
− O que é?
Nínian ergueu o olhar. Brianna sentira suas emoções. Era grande o poder
dentro de sua filha. Ninguém, inclusive Nínian, conhecia a verdadeira extensão
deles. Cabia a Brianna descobrir. Sua preocupação era que fosse como uma criança
mortal a quem é dado pela primeira vez um gosto de liberdade. Essa liberdade
tanto poderia ser uma dádiva maravilhosa como uma maldição devastadora,
dependendo de como fosse manejada.
− Há algo mais que a senhora não está me dizendo! Algo que já aconteceu!
− Muita coisa tem acontecido. − Suspirou, triste. − As Trevas vêm
ganhando força desde o primeiro encontro com sua irmã. Usam mortais para seus
próprios fins.
Brianna franziu a testa.
− Usa-os? − Então compreendeu do que Nínian falava. − Sim, os guerreiros
que foram transformados naquelas criaturas hediondas, mas com rostos familiares
daqueles em quem podíamos confiar.
− Isso mesmo. É uma transformação comum, bastante usada pelas Trevas,
pois é um meio para espalhar de modo insuspeitado seu mal entre os mortais, até
que seja tarde demais. − Viu o momento em que a filha compreendeu tudo.
− Houve outros que foram transformados − Brianna disse com repentina
certeza. − Aqui em Inverness.
− Sim filha.
− Gillie!
− Não foi difícil, pois as sementes do mal nasceram dentro dessa mulher.
Gillie estava aqui na noite em que seus pais adotivos morreram.
Brianna suspirou, agoniada.
− Ela traiu Inverness. Mas por quê? – Seu olhar procurou o de Nínian, mas
não foi preciso perguntar, pois a resposta chegou a ela com a rapidez de um
relâmpago. – A própria cobiça. Voltou-se para as trevas por causa de seu ódio por
mim.
− As trevas habitam as almas de determinados seres desde o momento em
que foram criados. Os anciãos ensinam que é parte da balança que deve ser
mantida no mundo mortal.
− Entendo. Gillie apostou em Mardigan. E ela está morta. − Porém seu
olhar melancólico vinha imbuído de um novo conhecimento. − Mas não por
Mardigan.
Novas lágrimas encheram seus olhos ao dizer uma única palavra:
− Malcolm...
E soube que seu amigo também perecera.
− Sim, filha. Ele descobriu sua traição e seguiu-a quando foi se encontrar
com Mardigan, nas horas em que você dormia e se curava dos ferimentos. Malcolm
era um verdadeiro amigo, muito leal.
Brianna sentiu que sua dor pela morte de Malcolm era igual à fúria pela
constatação de que ele fora assassinado pelas Trevas. Nunca mais iria compartilhar
de risadas com ele. Nunca mais ele a provocaria.
Um novo medo surgiu, forte e poderoso.
Ao senti-lo, Nínian meneou a cabeça.
− Você não pode proteger seu marido disso, filha. Nem impedir que ele seja
parte. Pelo que sua irmã me contou, Tarek acredita no sobrenatural, e não permitirá
que você vá sozinha na jornada que virá, pois irá precisar de sua força e coragem de
guerreiro. As Trevas não contavam com isso.
− Não arriscarei a vida de Tarek − Brianna disse com veemência, a teimosia
a voltar ao verde de seus olhos. − Eu morreria primeiro.
− O risco é dele, Brianna, e não há nada que possa fazer. Pois, se você
falhar, tudo estará perdido. Inclusive Tarek al Sharif e o amor que encontraram
juntos.
− Mas se um exército de guerreiros não pode enfrentar as Trevas, se meu pai
não pôde impedi-la e salvar o reino de Arthur, então como é possível a mim
encontrar o Graal?
− Sagacidade, verdadeira coragem e os mesmos meios que o senhor das
Trevas usa tão bem, minha filha. − As pupilas de Nínian reluziram. − Com ilusão,
é claro. A verdadeira arte de uma encantada.
− Diga-me o que eu devo saber, mãe.
Nínian chorou ao som daquela palavra que tanto esperara ouvir de sua bela
filha loira.
− Terá de iludir seu marido.
A ilusão o porá em perigo?
− Não. Irá protegê-lo, tal como o conhecimento que ocultamos de você a
protegeu.
− Onde está ela? − Tarek indagou, ao se voltar para Nínian. − Saí do quarto
faz duas horas e Brianna jazia quase à beira da morte naquela cama. Que truque de
magia é esse?
− Um necessário − Nínian explicou, muito calma, ao pousar a mão no braço
dele.
Tarek se afastou como se queimado pelo fogo.
− Pelo Profeta, não tolerarei seus truques!
− Seu deus não pode ajudá-lo nisso, Tarek al Sharif. Você jurou que ela não
iria sozinha.
− Já começou? − murmurou, de olhos estreitados. Nínian aquiesceu ao se
virar para uma ampulheta num suporte de ferro batido sobre a mesa. Um fio de
areia escorria da cápsula superior para baixo.
− O tempo encurta.
− Responda, Brianna está a salvo?
− Por ora, sim.
− Posso vê-la?
− Você irá acompanhá-la, pois a jornada deve começar. Então ele fez a
pergunta mais séria de todas:
− Irei perdê-la?
Só se você se perder.
Maldita seja, mulher! Não fale em charadas!
− Falo apenas a verdade. − Nínian olhou mais uma vez o medidor de
tempo. − Por mais de quinhentos anos, o Graal esteve oculto em segurança, até o
momento em que seu poder pudesse ser unido ao de Excalibur. Não houve
ninguém que conseguisse isso com Merlin banido para o mundo entre os mundos.
Não houve ninguém para desafiar as Trevas. Até agora. As Trevas usarão todo seu
poder para impedir que a Luz se junte ao Graal.
Seu olhar cravou-se no dele, com uma sombra de esperança.
− Ela tentará impedi-lo. Porém, você deve ser bem-sucedido. Brianna terá de
juntar seu poder com aquele do Graal. Se falhar no que estará diante de você
quando o último grão de areia escorrer, então tudo estará perdido.
Ele não compreendeu o que Nínian disse, mas acreditava nos poderes que
vira. E agora Brianna era parte disso, e o único meio de salvá-la era ajudá-la.
− Como me preparo para essa jornada?
− Você enfrentará três desafios para alcançar o Graal. Eles não podem ser
revelados de antemão, pois o risco de as Trevas discernirem e resolvê-los é grande.
Terá de ir de encontro a cada desafio. Se falhar em algum deles, o Graal será
perdido para as Trevas.
− Como pode ter certeza de que conseguirei cumprir tarefas com bom êxito?
− Não posso. Mas Brianna tem certeza. Ela confia em você. Enfrentará um
desafio de sagacidade, um de coração fiel e um de coragem. Deve encontrar os
instrumentos dentro de si mesmo para se defrontar com cada um.
− Posso levar minha espada?
− Por todo o bem que ela lhe fará, sem dúvida. Porém, a maior batalha que
irá enfrentar não pode ser travada com uma espada. − Ao acompanhá-lo até a
porta do quarto, ela explicou: − Há outros que viajarão com você. Esperam no
pátio. Sei do medalhão que usa, Al Sharif. Brianna me falou dele. Porém, eu lhe
darei outro, um talismã para trazer boa sorte.
− Boa sorte? − retrucou com ironia. − Pensei que uma encantada não teria
necessidade de coisas como amuletos de boa sorte.
Nínian deu de ombros e sorriu.
− Não deixo nada ao acaso no que diz respeito a minha filha. E você
precisará de toda a sorte que puder encontrar, guerreiro. O cristal contém o maior
poder com que eu poderia presenteá-lo.
Tarek bufou ao aceitar o amuleto. Era muito menor do que o medalhão de
ouro marchetado, não maior que a ponta de seu dedo mínimo, uma gota límpida de
cristal cortada com centenas de facetas e suspensa por uma fita verde de cetim.
Ao prendê-lo ao cinto, a mão de Nínian fechou-se sobre o braço de Tarek
num aperto forte.
− Assim que deixar este lugar, guerreiro, meus poderes não poderão ajudá-
lo. Nem posso ver o que o destino lhe reserva. Você será guiado na direção em que
precisa ir. Porém, o que encontrar lá, você e seus companheiros devem enfrentar
sozinhos. Alguns sobreviverão, outros não. – Então o aperto acentuou-se. − Se
Brianna falhar, se seu coração se voltar do poder da Luz para o poder das Trevas...
− Ela não fará isso − Tarek afirmou, recusando-se a crer no contrário. − O
coração de Brianna é fiel e leal.
− O coração que você conhece é fiel e leal, seu coração mortal. Falo de sua
alma. − Seu aperto intensificou-se até que as unhas se enterravam nos músculos do
braço de Tarek.
− Se minha filha se voltar para as Trevas, você deverá impedi-la. Brianna não
poderá ter permissão para voltar ao mundo mortal.
− Explique isso a mim.
− Se as Trevas puderem tomá-la, usarão seus poderes e o conhecimento do
Graal. Você deve jurar ante o deus em que acredita e a mim que não permitirá que
isso aconteça.
Ele foi tomado de raiva ao entender o que ela lhe pedia.
− Brianna é minha esposa! Jamais poderia feri-la!
− E é minha filha! − Nínian afirmou, com veemência.
− Não a amo menos. Mas compreendo melhor do que você aquilo que está
em risco. − Seus olhos se encheram de lágrimas. − Se as Trevas reclamarem sua
alma, Brianna não será mais sua esposa. Será uma criatura das Trevas! Preciso que
você jure! Deve jurar, guerreiro! Se se recusar ela irá sozinha.
− Você não me dá escolha!
− Nenhuma, guerreiro.
A expressão nos olhos dele era tão fria como a morte quando, por fim,
assentiu:
− Tem meu juramento.
− Sendo assim, esteja pronto para partir, guerreiro.
− Quanto demorará a jornada?
− Apenas a um dia de cavalgada de distância. Num lugar no qual você já
esteve antes, mas em que nenhum outro mortal já esteve. − Estendeu-lhe a
cimitarra persa.
− Onde está Brianna? − Ele prendeu a arma na cintura.
− Como expliquei, ela estará com você. − Então, estendeu a ele o grande
manto de pele da cama, ainda quente com o toque de Brianna. Seus dedos roçaram
o medalhão de ouro pendurado no pescoço de Tarek. − Você será defrontado com
uma escolha muito difícil, guerreiro. Aja com sabedoria.
Ao chegarem ao pátio, Tarek se voltou.
− Onde estão meus homens?
− Estão todos aqui − Nínian lhe assegurou, com um gesto que englobava o
pátio e as construções exteriores. − Devem permanecer para trás, assim como eu.
Pois nenhum de nós pode ir aonde você vai. Apenas não pode vê-los neste lugar
entre o mundo mortal e imortal. − Sorriu de leve. − Lembre, guerreiro, você estará
deixando o mundo mortal para trás quando passar por aqueles portões. E eles não
podem segui-lo.
− Estão a salvo?
− Permanecerão assim, a menos que você fracasse. Nas palavras não
pronunciadas, Tarek sentiu o resto da resposta. Se falhasse, eles terminariam como
Malcolm, Mortain e os outros. Fez um gesto de compreensão.
E quanto a Mardigan? Sem dúvida ele irá atacar.
Mardigan também é parte disso, guerreiro. Você viu a prova do que digo
nos homens que morreram aqui.
− Ele se transformou nas Trevas?
− As Trevas usam muitas armas. Você deve estar preparado para enfrentar
qualquer coisa.
Aquilo explicava muito, inclusive a razão pela qual Tarek e seus homens
nunca conseguiam encontrar Mardigan. Ele era como um fantasma que desaparecia
quando queria.
− E quanto aos companheiros de que falou? − Tarek via apenas a égua
árabe, selada, a esperar, um odre de água e um embornal de comida amarrados na
sela.
Nenhum outro cavalo esperava pelo cavaleiro.
Ao saltar para o lombo da égua, Nínian assobiou baixinho. O ar ao alto se
agitou e, através da escuridão envolvente e sufocante, Tarek ouviu o som de asas.
Uma fêmea de falcão apareceu na luz trêmula da tocha que Nínian carregava
e pousou no braço esticado de Tarek. Era esguia e flexível, de penas manchadas de
prata e ouro, olhos de um verde dourado, que o contemplavam com uma
inteligência sagaz. Tarek encarou Nínian.
Ao sentir a pergunta, ela assegurou:
− Ela pode ir aonde você não pode e ver o que você não vê. Garanto que a
julgará uma companhia valiosa.
− Você falou de três companheiros. Vejo apenas um.
− Está vendo o que quer ver, guerreiro. Terá de aprender a enxergar o que
não pode ser visto com tanta facilidade.
Nínian fez um gesto de intimação. Tarek nada viu. Mas algo se moveu nas
sombras do pátio. Um felino grande e bronzeado caminhou devagar na direção
dele.
− Isso não é nenhum truque de magia, não é?
− Nenhum truque meu − Nínian assegurou, para então explicar: −
Guerreiro, você deve olhar além do óbvio. Possui três companheiros. Um rápido e
de cadência firme, capaz de suportá-lo em sua jornada; um poderoso e ágil, com os
instintos do caçador; o outro capaz de ver o que você não pode enxergar. Esses são
seus companheiros. − Então, ao lhe sentir os pensamentos, concordou. − Sim,
Brianna estará com você, porém não poderá saber que forma ela tomou. Nínian
tocou-lhe a mão que repousava na sela. − Não se esqueça de seu juramento, Tarek
al Sharif. Se o coração e a alma de Brianna se voltarem para as Trevas, você não
deve hesitar. Pois há outra filha com a qual pode haver ainda esperança. − Diante
de seu olhar de surpresa, ela meneou a cabeça. − Não posso dizer mais nada. O
tempo urge. Lembre-se disso: a maior força não é a da espada, mas esta. − Pousou
a mão em seu coração. − E não esqueça que as Trevas não podem tomar-lhe aquilo
que você não entregar em rendição. Medo e ódio são as armas que ela usa.
Resguarde-se contra elas.
Com um gesto de cabeça, Tarek cutucou a égua árabe com os calcanhares e
incitou-a pelos portões.
Após ter avançado vários metros, puxou as rédeas e olhou Para trás. No
crepúsculo, não viu nem as tochas das ameias, nem os portões. Não havia portões.
Nem havia ameias. A fortaleza de Inverness se desvanecera como se jamais tivesse
existido.
Você passou do mundo mortal para o mundo imortal, guerreiro. O que
conhecia antes cessou de existir. O caminho de volta jaz como o Graal.
Capítulo XXII

O falcão manteve seu curso, a planar adiante, guiando Tarek por um terreno
cheio de sombras, uma terra estranha que ele não mais reconhecia, mesmo tendo
cavalgado por ela apenas horas antes.
Ou seriam dias? Ou semanas? Quantos grãos de areia teriam passado pela
ampulheta desde que partira? Poucos? Todos?
Naquele lugar, as coisas como ele conhecia tinham cessado de existir. Não
havia marcos familiares. Nem luxuriantes florestas verdes, montanhas ou charnecas
varridas pelo vento.
Tarek entrara no mundo de Jehara, o plano imortal de Treva e Luz, onde os
poderes do bem e do mal eram equilibrados precariamente, onde a verdade não
mais existia, e a ilusão estava em toda parte. Mesmo entre seus companheiros
No que Brianna teria se transformado?
Seu olhar dirigiu-se para o felino. Parecia o mais lógico já que ele vira a
transformação anterior. A cor estava lá, a pelagem da pantera, assim como nos
olhos com lampejos de verde entre o dourado. Que destino os aguardava?
Enfrentaria qualquer coisa com alegria se pudesse impedir que a vida de Brianna
fosse posta em risco, porém sabia que não poderia.
Nínian falara de escolhas que deveriam ser feitas. No entanto, poderia ele
fazer a escolha certa? Saberia quando fosse confrontado com uma?
Continuou até que a égua ficasse suada e espumando por causa da árdua
subida pelas pedras e colinas íngremes. Por fim, seguindo o curso que o falcão
estabelecera, chegaram ao cume da última colina.
O panorama sombrio de uma terra desolada e a linha da margem de um
grande e vasto lago se abriam lá embaixo. O céu escureceu ao chegarem à margem.
O lago era isolado e luzia como uma fita negra que cortasse a terra.
− Conheço este lugar − ele disse em voz alta, mesmo que não houvesse
ninguém para responder. − Lochonnen. Foi aquele o nome que Brianna usara certa
ocasião, quando cavalgaram pelas Terras Altas, embrenhando-se pelo interior até o
lago reluzente em cujas margens crescia a sorveira-brava. E, no meio do lago,
protegida pela bruma, via-se a ilha do Graal.
Brianna trazia a marca do Graal no ombro, aqueles círculos sobrepostos que
simbolizavam a vida eterna.
O destino dela estava ligado ao Graal.
Tarek encontrou a sorveira-brava, porém num lugar diferente do de antes.
Estava do lado oposto da margem. Em vez de verde e luxuriante, seus galhos
estavam nus de quaisquer folhas, como um esqueleto.
Olhou pela escuridão sombria da água e, naquele lugar onde água e céu se
encontravam, havia o brilho tênue de uma luz difusa que fenecia.
De repente, a escuridão caiu como uma cortina pesada corrida pelo
firmamento. A luminosidade terminou no horizonte, céu e água se mesclaram no
escuro denso e opressivo, em uma imobilidade de silêncio que podia quase ser
sentida. Não havia um único som. Nem mesmo se ouvia a água a bater contra a
margem.
Nenhuma lua subiu no zênite, brilhante e clara, a banhar a terra. Nenhuma
estrela piscava ao alto. Era como se cada lampejo de luz tivesse se extinguido por
alguma mão malévola. Era impossível continuar sem uma tocha para clarear o
caminho. Como se sentisse isso, o falcão acomodou-se nos galhos mais altos da
sorveira-brava, com um farfalhar de asas, o olhar voltado para a água.
A pantera também pareceu aceitar que teriam de fazer ali o acampamento
para pernoite, se de fato fosse noite, ao se esfregar contra a perna dele.
Tarek estendeu a mão para o ferimento bem curado e sentiu o veludo macio
do pêlo dourado na ponta dos dedos. A cabeça régia da criatura estava voltada para
a extensão de água diante deles, como se observasse algo também.
Tarek desencilhou a égua. Ela estava nervosa, as orelhas sempre a girar para
trás e para a frente como se procurasse por ruídos que não estavam ali. Não havia
grama para pastar, por isso Tarek lhe deu punhados de grãos de um alforje que
carregava, e depois a levou até a água para beber. No escuro, ele não conseguia
enxergar, mas ouviu algo: na vasta e difusa quietude, o som repentino da água
contra a margem a seus pés.
Não era um suave ruído borbulhante, e sim mais parecido com o chiado de
uma panela a ferver e se derramar no fogão. De repente, Tarek perdeu o equilíbrio,
quando o banco da margem começou a desabar.
Era como se a terra tivesse desaparecido sob seus pés. A água subiu-lhe pelas
botas e a lama as atolou. Ele afundou até os tornozelos como se mãos poderosas o
puxassem para baixo, arrastando-o para a água revolta.
Com um relincho, a égua deu um salto para trás, e as rédeas tensas nas mãos
de Tarek tornaram-se sua salvação. Tarek precisava desesperadamente da força do
animal, pois nunca experimentara tal poder como aquele da água, que o puxava
para a morte certa. Torcendo as rédeas apertadas em torno dos pulsos, gritou:
− Siroco, para trás!
Ouviu o frenético bater de cascos quando ela lutou para encontrar solo
firme, e o estridular do falcão, em gritos agudos de alarme. O banco da margem
desabava debaixo de suas costas e ombros conforme Tarek era sugado ainda mais
para dentro das águas. De novo, chamou pela égua.
As rédeas se afrouxaram e tornaram a ficar tensas. A dor correu pelo braço e
ombro de Tarek, esticado num ângulo brutal. Ele puxou e chutou, tentando livrar
suas pernas da lama que as sorvia.
Por fim, livrou um pé, lutou por firmar-se e tentou subir pela margem. Por
duas vezes a terra cedeu sob ele, como Se alguma criatura estivesse cavando e
erodindo o terreno em que pisava.
Então sua bota encontrou piso sólido. Tarek chamou de novo a égua, e
quando ela esticou as rédeas, seu outro pé, livrou-se com um ruído de sucção.
Conforme Siroco continuava recuando Tarek foi arrastado para o alto da
margem e para longe da beira d’água. Caiu, gelado, molhado e exausto, o animal
postado acima dele, a bafejar a respiração quente em suas costas.
− Muito bem, Siroco − agradeceu, a mão ensangüentada onde as rédeas
tinham cortado a carne, à medida que a égua o puxava para um lugar seguro.
Quando teve força para sentar-se, seu olhar cravou-se na água escura e turva
que quase lhe tirara a vida. Nínian tinha razão. Começara.
Fez um leito debaixo dos galhos da sorveira-brava. A pele que Nínian lhe
entregara proporcionava calor sob a túnica e as calças molhadas. Tarek estava
exausto da cavalgada e da provação que enfrentara, mas o sono custou a chegar.
O vento veio, silencioso e brutal. Tarek puxou a pele para se proteger contra
uma friagem que parecia se entranhar na manta, ameaçando enregelá-lo. Então a
pantera acomodou-se ao lado dele, bloqueando o vento, o calor a penetrar o manto
de pele e a aquecê-lo.
Na escuridão, Tarek podia ver o suave brilho daqueles olhos que
observavam atentos as águas.
Tarek estendeu a mão e afagou o pêlo espesso e dourado. A criatura não se
mostrou perturbada pelo contato humano, nem o atacou, como outros animais
selvagens poderiam fazer. Em vez disso, aconchegou-se, arqueando o pescoço sob
a mão que a acariciava, um suave ronronado de contentamento a sair da garganta.
− Brianna... − ele murmurou, incerto, ao acariciar com ternura a criatura
macia a seu lado.
E, na agonia da saudade, recordou-se das palavras de despedida de Nínian:
"Se o coração e a alma de Brianna se voltarem para as Trevas, você não deve
hesitar".
Esposa. Amante. Alegria e risos. Força e coragem. Brianna era tudo isso para
ele, e muito mais.
Quando passara a significar tanto? Tarek sabia a resposta. Acontecera
tempos atrás, perto de uma lagoa, quando uma bela criatura aparecera na bruma e
arriscara a vida pela dele. Um ser que lhe assombrara os pensamentos e sonhos e
que agora vivia em seu coração.
Seus dedos se curvaram no pêlo da pantera ao imaginar a sensação dos
cabelos de Brianna nas mãos. Ele fizera um juramento, e teria de cumpri-lo. Porém,
se chegasse a isso, como suportaria matá-la?
− Maldita seja, Nínian, e seu juramento − murmurou, furioso. Mas sabia que
seu ódio estava mal dirigido, ao fitar a turva água escura. − Malditas sejam as
Trevas.
O grito suave e assobiado do falcão o despertou.
Tarek não tinha idéia do quanto dormira, pois não havia jeito de medir a
passagem do tempo. Naquele lugar onde tantas coisas agora eram o oposto do que
tinham sido antes, ele não confiava em nada, a não ser na espada a seu lado e nas
criaturas que o acompanhavam.
O falcão lançou-se da copa da sorveira-brava para o ar, a circular por perto e
a piar mais e mais. O olhar de Tarek correu para a superfície do lago. Um vislumbre
de luz surgiu a distância, à medida que a escuridão do céu e da água se separava. E
lá, na pálida aurora acinzentada, ele julgou ver a silhueta de terra.
Levantou-se depressa e seguiu para a beira d'água, ciente do grande risco que
correra na véspera. A pantera também se ergueu e caminhou para a margem.
A fenda estreita de cinza entre céu e água aos poucos se alargou e mostrou
uma forma escura no lago. Uma ilha. A ilha do Graal, de acordo com a antiga lenda
que Brianna lhe contara.
Relâmpagos cruzaram o horizonte bem acima da ilha distante. Então,
surgiram mais raios fulgurantes. Seria realidade ou alguma ilusão? E a ilha? Poderia
ser alcançada?
A água estremecia e se movia de modo estranho, como se alguma coisa
negra e malévola se espreguiçasse em suas profundezas.
O falcão continuou com seus piados frenéticos, deslizando por sobre a
superfície e depois retornando. Ondas se ergueram como se quisessem alcançar o
rápido e flexível caçador. O felino também se mostrava inquieto, o olhar cravado
naquela fita estreita de luz no horizonte.
− De acordo com a lenda, o Graal se achava em algum lugar naquela
margem distante. Porém, como chegar lá? Criando asas e voando?
− E agora, Nínian? − Tarek gritou, irado, como se ela pudesse ouvi-lo. −
Como isso deve ser feito? Não tenho o poder de cruzar a água como Jehara.
− Você enfrentará três desafios, guerreiro. − Era como se as palavras dela
murmurassem em resposta.
− Aceito de boa vontade qualquer desafio, mas esse... Apontou pela
extensão de água. − é impossível.
− O caminho está lá, guerreiro. Basta que escolha vê-lo − veio o aviso em
pensamento, como se Nínian estivesse logo atrás dele.
− Que eu escolha vê-lo! − Girou em volta, zangado. − Se eu escolher ver!
− Tenha cuidado, guerreiro. Você ainda precisa de minha ajuda.
− Preciso de um bote, isso sim.
− Tem de aprender a ver além do óbvio. Lembre, nada é o que aparenta ser.
Que necessidade tem de um bote, se pode cavalgar pela água?
Tarek olhou para as águas, tentando ver o que mais poderia estar lá. Não
conseguiu. Era como fitar a extensão do deserto, onde seus ancestrais eram reis.
Aquele lago era como um deserto, mutante, cambiante, escondendo seus segredos.
Não tinha idéia do que procurava, apenas as palavras de Nínian o guiavam.
Deixou-se esvaziar de todo pensamento, toda emoção, toda cautela, abrindo a
mente, enquanto olhava pela água em direção àquela ilha distante.
No pálido feixe de luz que se estendia do horizonte até a margem, avistou
uma estreita faixa de terra, um caminho elevado com apenas uns poucos passos de
largura, que aparecia logo abaixo da superfície e ligava a ilha à margem. Mas era real
ou uma ilusão?
Hesitou. Sua experiência na noite anterior o tornara cauteloso. Era muito
fácil. E ele aprendera, como Nínian avisara, que as coisas não eram o que pareciam.
Contudo, pela água, podia ver a ilha. O Graal estaria lá? Ou era também uma ilusão
das Trevas?
Lá no alto, o falcão circulava, inquieto. Voou sobre o lago na direção da ilha
e depois voltou. Tarek assobiou para chamá-lo. Ele mergulhou e pousou, as garras
suaves a se fecharem sobre o braço dele.
Rápido e seguro, podia ver o que Tarek não conseguia. E se lançou para o
alto outra vez, de novo voando sobre as águas na direção da ilha, seguindo o curso
que fizera antes.
Tarek desceu pela margem. Ao contrário da noite anterior, o lago estava
calmo. Ele pegou várias pedras e jogou-as naquele terreno mais alto submerso.
Ao caírem, nenhuma desapareceu, dragada para baixo pela areia sugadora,
nem a água se revolveu de repente e borbulhou, como se alguma criatura se
remexesse em suas profundezas. Em vez disso, Tarek pôde vê-las no terreno
elevado só uns poucos centímetros abaixo da superfície.
A ilusão era a ferramenta das Trevas. E, Tarek sabia bem, era também a
ferramenta de Jehara. Brianna era uma encantada, capaz de assumir diferentes
formas. Mais ilusão.
Avançou com um passo hesitante pelo caminho. O chão era sólido sob seus
pés. A água continuava calma. Tarek retornou à margem e livrou a égua da sela e de
qualquer fardo desnecessário.
O felino esperava na margem, na expectativa, sua cauda de um loiro tostado
a se balançar de um lado para o outro. O falcão estaria seguro o bastante no ar, mas
o felino ficaria tão vulnerável quanto ele, assim que estivessem na trilha sob a
superfície. O olhar de Tarek fixou-se naquela margem distante da ilha. Quanto
distava? Mil metros? Mais? Era impossível dizer.
Pegou as rédeas e saltou para o lombo da égua, puxando-a para a margem.
No alto, o céu de chumbo parecia se fechar uma vez mais. A ilha não era tão clara
como fora apenas momentos antes. Ou estava mais longínqua?
− Vamos, Siroco! Agora você precisará ser como o vento!
Conduziu-a pela margem e para o caminho elevado sob a superfície. A
pantera seguiu ao lado, as passadas longas e sinuosas a se emparelhar com as da
égua, enquanto no alto o falcão voava direto para aquela margem longínqua.
O vento soprou, revolvendo as nuvens até que elas pareciam pairar sobre a
água. Raios fulguravam, rasgando o firmamento como lâminas brancas, como se
tentassem empurrar para trás a escuridão.
De ambos os lados, a água tornou-se inquieta, em ondas que varriam a trilha
e se revolviam sob as patas da égua.
Tarek deixou o animal guiar-se pelo instinto e deitou-se sobre seu pescoço.
Como na véspera, a água tornou-se escura e turva, como uma força malévola que
lutasse para não lhes permitir passagem.
Varreu os lados da trilha, sugando as patas da égua, a puxá-la para baixo.
Tarek sentiu o animal começar a se cansar, e a ilha ainda parecia a centenas de
metros ao longe, e não mais perto.
Através da chuva que começara a cair, ele viu o felino não muito longe, atrás,
a saltar conforme a água se aprofundava. Então a égua tropeçou e caiu como se o
caminho desmoronasse sob eles. Esforçou-se para encontrar um ponto de apoio e
conseguiu se equilibrar.
A cada passada, a trilha desaparecia sob suas patas, a água a rodopiar em
torno de seus joelhos, a sugá-la para baixo. Tarek não conseguia mais ver a ilha.
Um raio estourou ao alto, de um branco dourado, brilhante como o sol,
iluminando o céu como uma tocha. A ilha estava apenas a uns poucos metros de
distância. Mas Siroco se mostrava sem energia sob ele.
A água subia. Siroco seguiu em frente, esforçando-se para encontrar o
próximo ponto de apoio. Com muita luta, deu uma última e desesperada arrancada
que lançou Tarek por sobre seu pescoço, sem a sela para segurá-lo.
Ele foi atirado na margem. O pedrisco áspero rasgou-lhe a túnica e enterrou-
se nas palmas das mãos. Então, foi sendo puxado de volta em direção à água pelas
rédeas enroladas com firmeza em seu pulso. Rolou e ficou de joelhos, segurando as
rédeas com ambas as mãos.
O caminho desaparecera por completo sob a água revolta.
Ondas estouravam nas pedras. Ligada ao dono pela rédea, a égua árabe se
esforçava por chegar à margem. Porém, não obstante lutasse para encontrar apoio,
era puxada para o fundo, sugada por aquele mesmo peso que quase levara seu dono
na véspera.
Tarek chamou por ela, gritando para se fazer ouvir acima da força da
tempestade. Mas foi inútil. Quanto mais Siroco lutava, mais era tragada para baixo.
E o arrastava junto.
"Alguns sobreviverão, outros não." As palavras proféticas de Nínian
ecoaram em seu cérebro mesmo quando Tarek lutava para salvar o animal. As
rédeas arrancavam-lhe a pele das mãos. Se continuasse a segurá-las, também seria
dragado. Com um grito de raiva impotente, abriu as mãos e deixou as rédeas se
soltarem de seu aperto.
Esforçou-se para retornar à margem, para longe da avidez mortal da água.
Quando olhou para trás, a égua sumira, tragada da superfície.
Capítulo XXIII

Tarek maldisse a tempestade, o céu escuro e seus próprios sentimentos de


impotência.
A égua o carregara por muitas batalhas, salvara-lhe a vida incontáveis vezes,
inclusive naquela, e formara um laço com o jovem Duncan como nunca tivera com
nenhum outro.
Então, experimentou um novo temor ao se recordar das palavras de Nínian
sobre os três companheiros enviados para acompanhá-lo. Estava tão certo de que
Brianna assumira de novo a forma de um felino... mas e se não o tivesse feito?
O pio estridente do falcão ao alto perpassou por sua raiva e seu temor. A ave
mergulhou e pousou numa pedra que aflorava à superfície. A cabeça flexível
pendeu primeiro numa direção e depois noutra, os olhos dourados a observá-lo
atentos. Então, lançou-se ao ar de novo, a voejar para trás e para a frente pela face
do penhasco rochoso que se erguia da praia, estendendo a distância do vôo a cada
passo, mais uma vez mostrando o caminho.
Ali perto, a pantera sacudiu a água do pêlo farto. Ao fitá-lo com aqueles
luminosos olhos verde-dourados, saltou sobre a primeira saliência de rocha onde o
falcão se empoleirara. Olhou para trás de novo e rumou para adiante, subindo a
montanha rochosa.
Embora lamentasse com tristeza a perda da égua árabe, o receio maior de
Tarek cessara. Tinha certeza de que Brianna ainda estava viva entre seus
companheiros.
Ao segurar a espada no cinto, seus dedos roçaram o talismã de cristal que
Nínian lhe dera. Rezou para que trouxesse boa sorte. Iria precisar dela.
Parecia que a ilha era toda de rocha. A margem era coberta de pedaços de
pedra triturada, e os penhascos nus e brilhantes subiam quase retos.
O falcão desaparecera em algum lugar ao alto. Tarek assobiou, e a ave
reapareceu, a voar para baixo de saliência em saliência. A pantera saltou impaciente
para adiante.
Tarek não tinha noção de por quanto tempo tinham subido. Poderia ter sido
uma hora ou várias. Ou até mesmo dias.
Não havia luz do dia, apenas o manto acinzentado que parecia sufocar o sol
à medida que as Trevas se agarravam ao pico da ilha. Abaixo, a linha da margem
desaparecera, a água escura e turva a se revolver em torno das rochas que eles
escalavam, anulando qualquer esperança de retorno.
Por fim, chegaram a um parapeito. Ali, o falcão cessou seu vôo inquieto para
se empoleirar numa rocha perto de uma fenda do lado da montanha.
Tarek se perguntou se aquela era outra ilusão. Uma armadilha talvez. Porém,
não viu nenhum outro caminho.
− Pelo Profeta... − resmungou, com a inquietude instintiva de guerreiro por
lugares assim. − Não podia ser no aberto, na praia lá embaixo ou no alto da
montanha. Não, havemos de viajar por dentro da montanha!
O falcão piscou para ele e arrepiou as penas, impaciente. O felino o encarou.
Tarek tirou a espada da bainha, a outra mão a se fechar sobre o talismã no
cinto. Nínian o avisara de três desafios que deviam ser enfrentados se ele fosse em
busca do Graal.
− Que comece! − E, solene, empunhou a cimitarra à frente, inclinando a
cabeça para entrar na cavidade.
E descobriu que não era, afinal, uma caverna, mas a abertura para uma
passagem que conduzia ainda mais fundo para dentro da montanha.
Mal havia espaço suficiente para ficar de pé ereto, não mais que um braço de
distância de cada lado, e a escuridão ameaçadora à frente. Contudo, em torno dele,
a passagem era estranhamente iluminada por incontáveis luzes minúsculas
espalhadas pela face das pedras, que permitiam ver adiante.
A pantera enroscou-se nas pernas de Tarek. Ele sentiu seu calor pelas calças
e botas molhadas. Aquelas luzes minúsculas luziam em seus olhos verde-dourados.
Tarek sentiu o toque das asas do falcão ao voar para dentro também.
Havia inúmeras curvas e contornos, e então a passagem terminou numa
parede. Nenhum caminho adiante e nem em torno. Apenas a escuridão que se
fechava, bloqueando toda luminosidade na passagem pela qual acabara de seguir.
"Você enfrentará três desafios, guerreiro. Ao chegar mais perto, as Trevas
tentarão impedir que você encontre o Graal."
Tarek comprimiu as mãos contra a parede e empurrou-a com todo seu peso.
Era sólida, feita de fila sobre fila de pedras cortadas, e irremovíveis. Pelo que podia
ver, não era ilusão.
− O primeiro desafio! − Bufou, tentando enfiar a espada sob a borda de uma
pedra, depois de outra, na parede, na esperança de soltar uma.
Tentou encontrar uma que talvez se movesse, uma pedra-chave, como na
passagem do quarto de Brianna em Inverness. Contudo, não achou nada, apenas
mais pedras recobertas com estranhas linhas e marcações. Como as runas antigas
sobre as quais Brianna lhe explicara.
Na débil luz ali dentro, ele viu marcações na face de cada pedra na parede
formando um padrão distinto que se repetia em conjuntos de três e de lado a lado,
de cima a baixo, em cada fila. Tinham certa semelhança com o jogo que jogara
contra Malcolm. Punhal, espada, escudo.
− É um jogo de rapidez, agilidade e memória − Brianna explicara. − Se fizer
um movimento em falso, você perde uma arma para seu oponente. Se perder todas
as três armas, perderá o jogo, e assim deverá enfrentar seu oponente.
Os Anciãos tinham criado o desafio para qualquer um que pudesse tentar
entrar e procurar o Graal. Mesmo que Tarek fosse bem-sucedido naquele desafio,
que outros haveria adiante?
A cada momento que se demorava, tinha consciência daqueles grãos de areia
correndo pela ampulheta. O tempo transcorria.
Estudou as marcas antigas, registrando o padrão na memória: a marca da
terra, do fogo e da água. Depois comprimiu a primeira pedra no primeiro padrão na
fila de baixo, que recuou um pouco, mas a parede continuou firme no lugar.
Comprimiu a segunda pedra no segundo conjunto. Nada. E uma terceira no
último conjunto. Essa moveu-se também. Pressionou uma pedra na segunda fila,
mudando a seqüência em um. Para sua surpresa e frustração, ela não se mexeu.
Estudou o padrão de desenhos mais uma vez. Deveria estar certo. O padrão
se repetia numa seqüência definida sem variar nem mesmo um signo. No entanto,
nenhuma das três pedras no primeiro padrão da segunda fila se mexeu. Repassou a
seqüência de novo, com os mesmos resultados. E, no processo, mais tempo perdia.
− Como posso saber o que é isto? Não há nenhuma lógica no padrão. Nada
neste maldito lugar é o mesmo! − Então, recordou-se do panorama inusitado e da
margem do lago. − É tudo diferente!
Sua mente aclarou-se. Tudo era oposto àquilo que fora da primeira vez que
Brianna o levara até ali. Como olhar para uma imagem num vidro espelhado que ele
vira certa vez no império do Oriente: tudo o que se via no vidro era o reverso do
original.
Estudou o padrão na parede. Se ele era inverso, então cada fila devia também
estar invertida.
Recomeçou, pressionando as três pedras originais na fila debaixo e depois,
na próxima fila, começou na ponta oposta à escolha anterior e comprimiu a pedra.
Ela se moveu.
Sua próxima escolha foi feita da mesma maneira dentro do próximo padrão:
uma imagem de espelho daquela escolhida na primeira fila. Também se moveu. E
aquela do terceiro padrão, idem. Seguiu para a próxima fila.
Devia pensar em opostos completos, criando a imagem na mente e depois
invertê-la como se refletida num espelho. Moveu as pedras para trás com rapidez
crescente, até que empurrou a última.
Assim que pressionou a última pedra, ouviu um som ras-cante, e a parede
inteira foi para trás, abrindo-se para uma imensa caverna.
Perdera tempo valioso na parede. Assim, entrou depressa na caverna, com a
espada em riste.
A pantera estava a seu lado. O falcão voou adiante, mas voltou de imediato,
em direção a ele, com súbita urgência. Quando Tarek recuou, sentiu a fria rajada de
ar na face. Por instinto, agarrou o colar de pêlos do pescoço do felino, puxando-o
para trás.
Não mais que palmos à frente e no exato lugar onde ele teria colocado o
próximo passo, o chão da caverna desintegrou-se. Como na passagem, a luz reluzia
nas paredes. Ao alto, avistou o falcão voando em pequenos círculos. Se não fosse
pela ave, teria afundado para a morte, talvez levando a pantera junto consigo.
Aquelas paredes também brilhavam com milhares de luzes minúsculas. Em
contraste, a expansão sem fundo se estendia escura e perigosa adiante dele, exceto
por uma trilha de rochas, como estrelas, que levavam rumo ao alto do parapeito, do
lado oposto. A parede, com sua fila sobre fila de pictogramas antigos, fora o
primeiro desafio. Seria esse então o segundo?
O primeiro degrau estava a uma boa distância do para-peito. O segundo em
igual distância além daquele, e depois outros. Parecia não haver nada a apoiar as
pedras. Apenas a escuridão que se escancarava abaixo.
Não existiam outros meios de se chegar ao outro lado. Nem poderiam
voltar, pois mesmo naquele instante Tarek sentia as Trevas ao redor. Seria aquele
um desafio dos Anciãos? Ou um truque das Trevas?
Por várias vezes o falcão voou pela extensão da caverna para o outro lado e
retornou, indicando que aquele era o rumo a ser seguido.
Tarek era um homem de pouca fé. Por isso, jogou um pedregulho no
primeiro degrau, que não desapareceu num vácuo de escuridão e ilusão, mas bateu
e rolou pela pedra.
Ele não estava muito disposto a saltar para o primeiro degrau apenas para
descobrir, quando estivesse lá, que não passava de uma ilusão, antes de ser
arremessado para a morte.
− Fique! − ordenou ao felino, não querendo pôr em risco o animal até que
soubesse o que enfrentava.
Segurou a espada no cinto, os dedos a roçar o talismã de boa sorte de
Nínian. Então, focalizou toda sua concentração no primeiro degrau, recuou vários
passos e saltou na corrida.
Aterrissou sem dificuldade e focou a atenção na segunda pedra. Tornou a
saltar e cobriu a distância. Ao se virar para a terceira pedra, viu que a pantera o
seguia, saltando na primeira pedra.
Em torno, conforme ele continuava, podia sentir a rajada fria de ar, um
constante lembrete da morte que o aguardava, se ele fizesse um único cálculo
errado ou desse um passo em falso.
O felino não parecia incomodado com tais preocupações da lógica humana,
mas continuava a seguir com espantosa facilidade. Porém, após terem passado por
mais de uma dúzia de degraus, Tarek teve a impressão de que não se achavam mais
próximos do lado oposto da caverna.
Tarek olhou para onde tinham começado. O caminho pelo qual vieram
parecia idêntico àquele que seguia em frente. Não apenas isso, mas havia agora
trilhas adicionais de degraus de pedra conduzindo a uma dúzia de direções
diferentes. Para onde ir?
A pantera se postou a seu lado. Parecia sentir sua incerteza e inquietação.
Em algum lugar ao alto, o falcão tentou guiá-los.
Tarek viu-o em doze lugares, cada um idêntico ao outro, e discerniu depressa
que o que via era a imagem refletida dúzias de vezes, assim como as doze diferentes
escadas de pedra que o rodeavam. Como se uma dúzia de espelhos refletisse as
imagens.
Ilusão e ardil. Sentiu as Trevas ao redor deles. Viu-a em dúzias de lugares,
fechando-se, tentando destruí-lo com um único passo em falso que o lançaria para
a morte.
Qual, porém, era o verdadeiro falcão e qual a ilusão? Qual conjunto de
degraus era falso, e qual o real?
Sua mão enterrou-se no pêlo do pescoço da pantera mais uma vez, para
impedir que desse um passo fatal. Devia haver um jeito de determinar o que era de
verdade e o que não era, pois não podiam nem ir para a frente, nem para trás.
Estava impotente, preso numa armadilha. E Brianna também. Desesperado, tentou
pensar num meio de saber o que era a próxima pedra. Trouxera apenas a espada e o
pequeno punhal preso no cinto.
Lembrou-se do aviso profético de Nínian, de que as armas em que
costumava confiar seriam de pouca utilidade. A seu lado, o felino ficava mais e mais
impaciente.
Tarek tirou o punhal e amarrou-o na ponta do cinto. Então, segurando pela
outra ponta, lançou-o para a pedra mais próxima. A lâmina passou por ela. Era uma
ilusão.
Por duas vezes mais, repetiu o gesto. Na quarta tentativa, o punhal reuniu ao
se chocar com a pedra verdadeira. Recolhendo o cinto, saltou rápido para lá. A
pantera o seguiu. Assim que a alcançaram, a ilusão mudou, imagens se alterando em
torno deles, forçando Tarek a começar todo o penoso processo de novo.
− É muito lento! − resmungou por entre os dentes. − Nesse ritmo passará
uma eternidade antes que eu tenha dado cinco passos.
Quantas pedras a mais restavam no caminho verdadeiro? Não tinha idéia.
Ao alto, o falcão também parecia sentir a urgência crescente. Tarek ouvia
seus pios frenéticos e via sua imagem numa dúzia de lugares.
O vôo tornou-se mais agitado. Rumou para o topo da caverna, a dúzia de
imagens todas convergindo para um único ponto. Então, todas aquelas imagens
afundaram de repente ao mesmo tempo, derrubando as paredes espelhadas do
ambiente numa perigosa velocidade.
"Três companheiros... Alguns sobreviverão, outros não."
Seus companheiros foram escolhidos pela sagacidade, força, velocidade e a
capacidade de ver o que ele não podia. Enquanto preciosos momentos decorriam
na ampulheta, Tarek só pôde olhar, incapaz de impedir o falcão, que voava direto
para a parede.
As doze imagens diferentes espatifaram-se numa chuva de vidro quebrado.
O barulho era ensurdecedor, uma explosão de luz e som à medida que a ilusão se
destroçava numa avalanche de milhões de fragmentos que luziam pelos lados das
paredes e choviam para o fundo da caverna.
Em questão de segundos estava acabado, o reflexo sumira, e o verdadeiro
caminho se revelava diante deles. Tarek saltou depressa para a próxima pedra, a
subir com firmeza para longe do ardil e da ilusão em que as Trevas tentaram
enredá-lo.
A pantera o seguiu, a saltar com facilidade de pedra em pedra, atrás dele.
Quando Tarek chegou ao parapeito, diante de uma abertura na parede da caverna,
o felino saltou a seu lado.
Dessa vez, o falcão não estava esperando para guiá-lo adiante. Sacrificara-se
para salvá-lo.
Tarek sentiu o frio temor da dúvida. Tinha tanta certeza de que o felino era a
transformação de Brianna... E se estivesse enganado?
"Três companheiros... Alguns sobreviverão, outros não."
Agora, havia apenas um.
Capítulo XXIV

Tarek avançou pelo parapeito e olhou em torno da câmara que se abria


diante dele.
Era estranhamente iluminada com uma pálida luz azul que reluzia nas
paredes e nas formações espiraladas de rocha que se erguiam do solo e caíam do
teto acima.
Quando olhou para trás, as pedras tinham desaparecido, envoltas naquela
escuridão que parecia lançar-se para o alto conforme o seguia.
Ao entrar na câmara, não houve nenhuma oportunidade de ponderar sobre o
próximo desafio da profecia de Nínian. Foi atingido por um golpe brutal que o
jogou de joelhos e fez seus dedos soltarem a espada. A arma foi lançada pelo piso
de pedra, a retinir. Um segundo golpe o pegou no ombro e o esparramou no solo.
Conforme seu atacante se aproximava, Tarek rolou depressa para fora do
rumo do terceiro golpe, ergueu-se com esforço e girou para se defrontar com o
próximo embate. Seu oponente era alto e de constituição poderosa, o corpo
protegido por uma couraça negra de metal e placas de proteção nas pernas, a
cabeça enfiada num elmo negro. Segurava um machado de guerra diante dele. Um
guerreiro formidável, não confiava nem na agilidade nem na velocidade, mas na
força bruta ao se postar entre Tarek e a espada, que jazia a não mais de doze passos
além, no chão da caverna. Se pelo menos ele pudesse alcançá-la...
Tarek atirou-se ao solo. Aterrissou com um gemido de dor e rolou várias
vezes. Ao pegar a cimitarra na última volta, levantou-se depressa, antecipando o
próximo golpe. Em vez disso, ouviu um rugido feroz.
A pantera pulara das sombras onde se agachara direto para a cabeça do
guerreiro. Garras mortais rasgaram a carne exposta dos braços poderosos,
enquanto enterrava os dentes em seu ombro.
Ele berrou em agonia, o braço ensangüentado, e tentou livrar-se dela. Por
fim, conseguiu. O animal rolou, saltou de pé e agachou-se para se lançar de novo.
Quando atacou, o guerreiro girou o machado de guerra num arco reluzente.
A lâmina apanhou o animal no ventre vulnerável, afundando, enquanto as
garras da pantera lhe arranhavam o antebraço. O animal rosnou, um som doloroso
e agonizante, quando o guerreiro cambaleou para trás sob o peso do ataque e
livrou-se das unhas afiadas.
O felino aterrissou com um baque surdo e não se moveu. Então, o guerreiro
virou-se, a boca curvada num sorriso mortífero sob a proteção de nariz do elmo.
− Agora enfrentaremos um ao outro, guerreiro. − O machado gotejava de
sangue diante dele. − Até a morte.
Antes que o desafio fosse completado, Tarek desferiu o primeiro ataque.
− Maldito seja você no inferno!
Um ardor sanguinário queimava dentro dele, à vista da pantera caída, o
sangue a ensopar o pêlo de pontas prateadas do corpo sem vida.
Atacou outra vez e outra, a investir, a bloquear os contragolpes e depois a
dar cutiladas sucessivas. Não sentiu nenhuma das investidas do oponente, ao se
mover numa distância segura, desviando-se de um ataque que poderia ser fatal, e
então trazendo a espada num giro em outra cutilada.
O guerreiro defrontou-se com ele a cada ataque, porém a falta de rapidez e
agilidade começou a influir quando, mais e mais, Tarek investia, sedento de sangue
para aplacar a onda de ódio que requeimava em seu peito.
Brianna, perdida! Morta! Sacrificada para lhe salvar a vida!
Tornou a atacar. E de novo, sem mesmo ouvir o tinir de metal contra metal
conforme empurrava o guerreiro para trás, e ainda mais longe com a força da raiva,
do ódio e da vingança.
O guerreiro cambaleou sob o golpe seguinte. Começou a vacilar e mostrar
sinais de fraqueza, enquanto mais e mais força era necessária para erguer o
machado de guerra e contra-atacar cada nova investida. Fraquejava, cedendo
terreno, tentando achar um ponto de vantagem melhor, sem encontrar nenhum,
descobrindo que não havia nada que pudesse fazer a não ser enfrentar cada novo
golpe ou ser abatido.
Por fim, tropeçou. Um guerreiro mais ágil poderia ter se recobrado. Todavia,
seus movimentos se tornaram toscos, e ele estava sobrecarregado pela armadura de
proteção e pelo tamanho.
Caiu, atingido por golpes sucessivos, quase incapaz de evitar ser rasgado em
pedaços. Ao erguer o machado de guerra para proteger-se, seu elmo caiu para trás,
o golpe seguinte a pairar sobre sua cabeça.
Tarek olhou incrédulo para o guerreiro que jazia a seus pés, e que, no
momento seguinte, seria morto sob sua espada. As feições morenas que aludiam a
ancestrais persas se fecharam, os ossos angulosos do rosto ficaram tensos, a boca
severa era um risco rígido, e os espantosos olhos azuis, tão claros como um fiorde
do norte, luziam de ódio.
Tarek ai Sharif olhou para o homem que estava prestes a matar.
Ele próprio!
Hesitou, a espada suspensa para o ataque. Por mais impossível que fosse de
se acreditar, aquele diante dele, com a mão erguida para se proteger, tinha suas
próprias feições.
Que ardil era aquele? Uma ilusão fazia parecer como se ele olhasse para um
espelho e visse o próprio reflexo?
Porém, aquilo não era reflexo. Embora as feições fossem idênticas às suas, o
traje era diferente, assim como a arma do guerreiro. E a postura, esparramada no
chão de pedra da caverna, não era também um reflexo.
Ilusão ou ardil? Fosse o que fosse, a surpresa proporcionou uma vantagem
momentânea ao adversário.
Tarek foi lento ao reagir quando o guerreiro trouxe o machado para cima e
atingiu a ponta de sua espada. Ele saltou para trás, para além do golpe mortal
daquele machado de guerra, e o guerreiro ficou de pé, desferindo um novo ataque.
Ao contra-atacar, Tarek livrou-se da incerteza de olhar para si mesmo.
O guerreiro mantinha-se fora da distância de uma cutilada e girava o
machado de guerra para atacar. Suas feições antes escondidas foram reveladas no
jogo de sombra e luz da câmara. Lutava com renovado vigor ao empurrar Tarek
para trás. E mostraram feições diferentes.
"Mardigan!"
Tão grande foi a surpresa de Tarek que ele mal conseguiu se esquivar do
golpe seguinte. Então, foi quase lançado de joelhos pelo incansável bater daquele
machado de guerra. A expressão de Mardigan era feroz e triunfante com a vitória
que sentia estar perto.
Tarek desviou-se dos ataques, lutando para ficar de pé, à medida que se
esforçava para entender a transformação. Uma verdade permanecia, porém.
Qualquer que fosse a face que seu adversário usasse, ele era responsável pela morte
de Brianna.
A raiva e o sofrimento focaram-se na concentração de Tarek e no poder por
trás de cada investida. Empurrou Mardigan para trás.
Lutava incansavelmente, além do ponto de exaustão, até que nada mais
sentia, a não ser ira, ódio e a dor por aquilo que fora tirado dele: Brianna.
Mardigan tropeçou, caiu de costas e levantou-se. Porém, foi lento ao se
recobrar, e a próxima investida já estava ali, a empurrá-lo para trás, os golpes a se
sucederem na couraça de metal, rompendo as grossas almofadas de couro dos ante
braços, até que o sangue escorreu de uma dúzia de diferentes feridas.
Quando ele ergueu o machado de guerra outra vez, Tarek trouxe a espada
para baixo, rumo ao ombro, que penetrou pelo couro. A couraça pendeu e expôs a
carne vulnerável do peito, e um reluzente medalhão dourado.
Tarek girou a espada para a próxima investida fatal, tendo diante de si a
imagem de uma cabeça de dragão gravada em relevo no reluzente metal amarelo,
idêntica à do medalhão dado, anos atrás, a um garotinho. O único legado do
homem que o gerara, e depois abandonara Asmari para uma vergonha com a qual
ela não conseguira viver.
Por mais de vinte anos, Tarek usara um medalhão idêntico. Por incontáveis
impérios e incontáveis guerras, procurara um guerreiro viking de olhos azuis que
usasse aquele medalhão como um emblema de família ou o xadrez de cores de um
clã.
Por igual tempo, jurara matá-lo: a seu pai. E agora, numa cruel reviravolta da
sorte, o homem que era responsável pela desgraça e morte de Asmari tornou-se
também responsável pela morte de Brianna. Postou-se com a espada suspensa para
atacar. Agarrou o punho da arma com tanta força que suas mãos tremiam. O ódio
se esparramou por dentro dele, toldando-lhe a mente, o coração e a alma,
enchendo-o de uma raiva insana e de um único pensamento, um único desejo: a
morte de Mardigan.
"Medo e ódio são as armas das Trevas." As palavras de Nínian ressoaram em
seu íntimo como se ela estivesse a seu lado e as pronunciasse.
− Maldita seja! − Tarek murmurou, furioso, como se ela pudesse ouvir.
E como se Nínian tivesse escutado, a resposta veio sussurrada:
− A maior batalha que irá enfrentar, guerreiro, não será combatida com uma
espada. Você deve escolher com sabedoria.
Com um feroz grito de guerra, Tarek trouxe a espada para baixo num
poderoso arco mortal.
Capítulo XXV

Mardigan gritou quando a lâmina retalhou seu ombro direito, o machado de


guerra caindo de seus dedos.
− Esse foi por Asmari − Tarek lhe disse. − Um presente do filho dela! −
Então, arrancou o medalhão que usara por mais de vinte anos no pescoço e o
arremessou para o guerreiro ferido.
Mardigan estendeu a mão, e seus dedos ensangüentados pegaram a jóia. Sua
respiração era entrecortada, a expressão de seus olhos cheia de incredulidade.
Quando encarou o adversário, aquele olhar com tonalidade idêntica de azul,
encontrou os olhos de Tarek.
− Você é o filho de Asmari?
Até aquele momento Tarek nem mesmo sabia se o pai conhecia o nome da
bela cativa persa que raptara em Antioquia e por quem depois pedira resgate ao
emir.
O rosto de Mardigan, uma mistura de tristeza, choque e incredulidade, aos
poucos deu lugar a uma nova agonia, e trouxe quase tanta satisfação quanto poderia
ter sua morte.
− Meu filho? − Mardigan o fitava com uma dor infinita. Então, um lento
sorriso forçou caminho pela dor. − Eu tenho um filho! Você tem minha marca na
cor de seus olhos e em sua força. Eu deveria ter sabido. Deveria ter visto. − Lutou
para ficar de pé.
Durante todos aqueles anos, Tarek quisera vingança por sua mãe. Aquilo o
empurrara para a frente como uma obsessão, para encontrar o guerreiro viking que
saqueara Antioquia e desgraçara uma filha de sangue real. No entanto, mais do que
qualquer coisa, queria ver medo no semblante de seu pai. Queria que ele se
agachasse a seus pés e implorasse pela vida.
Percebia agora que jamais teria isso. Não daquele orgulhoso e frio guerreiro.
Também se deu conta de como as forças das Trevas tinham usado Mardigan.
Usara-o da mesma forma, em todos aqueles velhos sentimentos de amargura e
solidão experimentados por um garotinho que tinha perdido a mãe e nunca
conhecera o pai. Usara seu próprio ódio contra ele mesmo. E lhe tomara Brianna.
Alguma coisa mais importava?
− As Trevas não podem tomar de você aquilo que não entregar em rendição.
Mais uma vez, as palavras de Nínian pareciam ser sussurradas em seu
cérebro. As Trevas não poderiam tomar aquilo que ele se recusasse a ceder. Seus
dedos se fecharam em torno do talismã. Arrancou-o do cinto, aninhando-o entre os
dedos. As facetas do cristal faiscaram na luz cambiante. A raiva acalmou-se em uma
dor surda, como se o simples toque do talismã aliviasse a ira.
− Você não me matará − Mardigan disse com satisfação, seus olhos luzindo
com a certeza disso. − Não pode tirar a vida de seu próprio pai.
Tarek suspirou.
− Tem razão − disse, a amargura e a raiva dando lugar a uma indiferença que
ele não teria julgado possível. Baixou a espada e empurrou o guerreiro ferido para
longe de si. − Sua morte não tem mais nenhum significado para mim.
Apertou mais o cristal. O único sofrimento vinha ao pensar em Brianna.
− Não importa o que aconteça, você deve encontrar o Graal.
Tarek não encontrou nenhum conforto nas palavras finais de Nínian, apenas
uma sensação de finalidade e propósito. Não sabia por que isso importava mais,
agora que Brianna estava perdida para ele. Porém, fizera um juramento e iria
mantê-lo.
− Não pode me deixar assim! − Mardigan gritou. Como Tarek não deu
resposta, virando-se para deixar a câmara, ele praguejou com ferocidade:
− Essa não é a maneira de um guerreiro morrer! Não serei deixado deste
jeito! Está me ouvindo? Você é meu filho! Eu o proíbo de me abandonar agachado
no chão, com meu sangue a escorrer! Se não quer me ajudar, então exijo que me dê
os meios para terminar com isso depressa!
Tarek girou para trás, o olhar tão gélido como um iceberg. Sua expressão era
sombria ao encarar o bárbaro que o gerara. Meneou a cabeça, devagar.
− Eu o deixo como você deixou minha mãe, Mardigan. Pode viver ou
morrer, essa é sua escolha. Mas, até o momento de sua morte, quero que se lembre
do destino que deu a ela, e que eu lhe poupei a vida para que pudesse recordar isso.
Essa será minha vingança contra você, e a satisfação de lhe negar uma coisa que
queria mais do que qualquer outra: um filho.
E Tarek deu-lhe as costas, saindo dali, ignorando os berros irados e as pragas
ferozes que ecoavam atrás de si, ao seguir por outra passagem que se erguia pelo
centro da ilha.
Acompanhou aquela reluzente e pálida luz azul pelos padrões cambiantes das
Trevas, com as pragas de Mardigan a ecoar atrás, o talismã de Nínian fechado com
força na mão. Sem aviso, a passagem terminou numa entrada para uma imensa
gruta.
A pálida luz azul inundou a caverna. Faiscou nas formações de cristal que se
alinhavam pelas paredes e pendiam do teto, tão altas como um homem, pela
superfície escura de água que enchia o fundo. Um monólito incomum de cristal
erguia-se da água como uma jóia numa coroa magnífica de espirais. No topo do
monólito de cristal estava um reluzente cálice dourado.
O Graal.
Era feito de ouro maciço e adornado de marcações, embora ele não pudesse
ver com clareza. Sabia, contudo, o que eram: as mesmas que aquelas nos ombros de
Brianna, os círculos gêmeos, entrelaçados. O símbolo do Graal.
"Não importa o que aconteça, você deve encontrar o Graal. Tudo depende
disso."
A água na lagoa batia na beira do parapeito de pedra onde ele se encontrava,
a lhe molhar as botas. Era escura e turva, movendo-se com forças invisíveis. Aos
poucos, atingiu um nível mais alto, do mesmo modo como a água do lago que
inundara a trilha.
Se continuasse a subir, poderia por fim inundar a gruta. Logo chegaria ao
topo e ao Graal.
− Você não pode falhar.
Não havia nenhuma trilha elevada dessa vez. Nem Tarek poderia se
aproximar de outra direção, pois o parapeito terminava apenas a poucos passos de
cada lado de onde estava, havia apenas um caminho para chegar ao monólito de
cristal e ao Graal.
Ele deu um passo para dentro d'água.
Vários metros além, a superfície ondulou como se algo se mexesse embaixo.
Tarek deu outro passo. De novo a água ondulou como se algo se movesse para
mais perto. Ele mergulhou rumo à rocha de cristal.
Ao emergir, seguiu nadando com braçadas poderosas. Assim como na trilha
do lago, sentiu a água a puxá-lo e tragá-lo para baixo. Algo roçou sua perna. Nadou
com mais ímpeto.
Ondas se revolviam e o empurravam, lançando-o para longe do monólito de
cristal. De novo algo roçou nele, irrompendo à superfície ali perto. Outra onda se
ergueu, cobrindo-o. Tarek bateu os pés com força quando a criatura se voltou,
passou muito mais perto e então atacou.
Tarek rolou na água. Ao dar um impulso de volta à superfície, a criatura
tornou a atacar. Desta vez, o golpe o atirou longe, lançando-o contra a ilha.
Bordas aguçadas cortaram-lhe as costas e os ombros. Ao alto, através das
sombras cambiantes da água turva, Tarek viu uma luz dourada reluzente. O Graal.
Antes que a criatura desferisse outro ataque esmagador, Tarek deu um
impulso forte para cima. Emergindo, arrojou-se para fora da água ao mesmo tempo
que o ataque seguinte o jogava contra o lado do monólito. As beiradas afiadas da
rocha cortaram-lhe as palmas quando lutou para subir pelo lado da pequena ilha até
a base do monólito de cristal. Quando a criatura irrompeu pela superfície, Tarek
sacou a espada e virou-se para enfrentá-la.
Era imensa, e avançava sobre ele, a cabeça larga suportada por um pescoço
longo e esguio do tamanho de um tronco de árvore. O corpo maciço mal saíra da
água, a longa cauda a se arquear conforme se movia com surpreendente agilidade.
Porém, acima da superfície, era lenta de movimentos, forçada a confiar na força
brutal, em vez da rapidez.
Era coberta de escamas, com enormes nadadeiras a revolver as águas,
conforme girava aquela cabeça maciça como um aríete de demolição. Ao virar em
sua direção, Tarek saiu da trilha do golpe e depois atacou com a espada.
A lâmina curva deslizou através das escamas e do tecido espesso. O ser
berrou de dor, aquela cabeça enorme a chicotear de um lado ao outro. Quando
tornou a atacar, Tarek investiu de novo com a espada, enterrando-a fundo no
pescoço do animal. Puxou a lâmina para libertá-la e saltou para as rochas na base
do monólito, e se arrastou para encontrar um apoio melhor.
Quando a criatura deu um bote, ele se esquivou sobre as rochas
escorregadias e abriu um novo ferimento pelo olho feroz do animal, cegando-o. O
bicho urrou de dor e sacudiu a cabeça para trás e para a frente, agora com apenas
um olho a enxergar. Seus berros dolorosos ecoavam na gruta, quando mergulhou
mais uma vez.
A água tornou-se calma, a superfície, lisa como um espelho. Nenhum
movimento vinha das profundezas.
Tarek esquadrinhou as águas, cauteloso. O golpe não fora fatal. A criatura
continuava viva, ele tinha certeza. Era um truque, e Tarek se pôs a imaginar com o
que as Trevas iriam confrontá-lo a seguir. Enquanto isso, estava ciente de que o
tempo se esgotava.
No topo do monólito de cristal, o Graal esperava em dourado esplendor.
Quando Tarek escalou as rochas, ouviu a água se revolver conforme a criatura
retornava. O ataque alcançou-o nas costas e o derrubou nas rochas. O ar foi
expulso de seus pulmões. O talismã de cristal que Nínian lhe dera se esmagou em
sua mão.
Tarek se recusara a crer que aquilo possuía alguma magia. Mesmo assim, era
tudo o que lhe restava. Agora, ele também se fora.
Rolou e ficou de pé e levou a cimitarra para cima ao se voltar para enfrentar
a criatura mais uma vez.
− Não tenho medo de você! − Seu olhar perscrutou a gruta, correndo pela
superfície. − Venha e nós terminaremos isso agora!
Girou na direção oposta, a espada erguida à frente. Porém, apenas sua
própria voz ecoou, e ele viu apenas a bruma, que serpeava em torno do monólito
de cristal.
Deu um passo atrás, cauteloso, espada ainda à frente, conforme a névoa se
condensava, aumentava e se fechava em torno dele. Roçou-lhe o rosto, cálida como
uma carícia.
Tarek girou em torno, procurando enxergar através da mortalha de nevoeiro
que envolvia tudo, tornando impossível ver a mão diante da face, e também
impedindo que a criatura o visse.
Ouviu o animal a se debater na água, a procurar por ele, os sons amortecidos
por aquela nuvem de bruma. A água batia na ilha rochosa conforme o animal
passava ali perto, e contudo não conseguia achá-lo.
De novo ele sentiu alguma coisa, quente e terna como um toque de mão, em
seu ombro. Virou-se depressa, espada em punho, imaginando que novo jogo as
Trevas preparavam.
A princípio, não viu nada. Então, a bruma aos poucos revolveu-se e
serpenteou, reunindo-se em longas faixas e gavinhas, como os fios sedosos de uma
crisálida a envolver uma figura esguia que começava a tomar forma: cabeça, corpo,
braços e pernas, até chegar à forma humana.
A criatura da névoa ergueu a cabeça, como a de uma borboleta a emergir
daquele casulo sedoso, enquanto o resto da névoa se dissipava aos poucos.
Os cabelos de um loiro claro se espalhavam sobre seus ombros delicados e
emolduravam belas feições frágeis. Os olhos se abriram devagar. Eram da cor das
sendas das Terras Altas.
De espada na mão, Tarek recuou, exclamando:
− Que truque é esse?!
Brianna estendeu a mão para ele, mas encontrou o caminho bloqueado por
aquela lâmina mortal.
− Não é nenhum truque, meu querido. Estou mesmo viva. − De novo
procurou tocá-lo, mas Tarek não permitiu, nivelando a ponta da espada ao coração
dela.
− Isso não é possível. Eu a vi morrer.
− Viu o que era necessário para proteger a verdade. Eu lhe asseguro, sou
muito real. − Mais uma vez estendeu a mão. − Toque-me e saberá que sou de
verdade.
− Ou uma criatura das Trevas? − sugeriu, sem se convencer.
− Jamais! − afirmou, com veemência. − Deve acreditar em mim. Estamos
desperdiçando tempo precioso.
− Se não é uma criatura das Trevas, como é possível que você esteja aqui?
Meus companheiros estão todos mortos.
Ela assentiu.
− Sim, você perdeu três companheiros e acreditou que eu fosse um deles.
Esse foi o ardil. Não poderia ser de outro modo. Pois, se você soubesse a verdade,
também as Trevas saberiam, e eu nunca poderia ter chegado a este lugar. − Sua voz
tornou-se mais terna: − Você me trouxe aqui, no cristal que Nínian lhe deu.
Tarek sentiu os minúsculos cortes na palma da mão do cristal quebrado,
enquanto as palavras de Nínian ressoavam em sua cabeça: "Alguns sobreviverão,
outros não..." "O cristal contém o poder maior que eu podia enviar com você..."
Brianna. Oculta em segurança dentro do cristal, enquanto ele fora levado a
crer que ela se transformara em uma das criaturas que o acompanhavam.
"As Trevas não podem tirar de você aquilo que não lhes entregar em
rendição."
Tarek a segurou pelo pulso com um aperto poderoso. Brianna pestanejou
como se de dor, porém ele não se convenceu. Aquilo também poderia ser uma
ilusão das Trevas.
Rorke Fitz-Warren certa vez se confrontara com uma criatura tão bela que
ele a princípio pensara ser lady Vivian, nas catacumbas sob a fortaleza de Londres.
No entanto, ela era um ser de ilusão e trevas, sem uma alma, mandada para iludi-lo
e destruí-lo.
E quanto a Mortain e seus homens?
Aqueles que tinham cavalgado com ele eram ilusões das Trevas, criaturas
sem alma com morte nos olhos, que ao serem destruídas murcharam e foram
reduzidas a pó. Nenhum sangue humano corria por aquelas veias, nenhum coração
mortal batia dentro daqueles peitos.
Tarek levou a ponta da espada para cima e comprimiu-a contra a garganta da
criatura que dizia ser Brianna. Se fosse real, então ele saberia. Porém, se fosse um
ser do mal, cumpriria sua promessa a Nínian.
Como se lesse seus pensamentos, Brianna o encarou, destemida. Não havia
nenhuma escuridão em seu olhar quando encontrou o dele, nenhuma sombra do
mal luzindo ali.
Os olhos eram claros, de um verde brilhante, e abertos para a alma quando
Brianna colocou a outra mão sobre a dele no punho da espada e por vontade
própria inclinou-se para aquela luzidia lâmina mortal.
− De todas as maneiras seremos unos.
Quando ele tentou puxar a espada para longe, ela comprimiu a ponta com
mais força. Uma única gota de sangue escorreu pela lâmina, enquanto Brianna
repetia os votos de casamento que tinham pronunciado um para o outro: uma
lembrança que ambos partilhavam:
− Uma vida − ela murmurou —, um coração, uma alma, por toda a
eternidade.
Tarek arrancou a cimitarra e a trouxe contra si. Seus dedos se enterraram
naqueles cabelos. Torceu-os no punho ao inclinar-lhe a cabeça para trás e olhar
dentro de seus lindos olhos verdes.
− Você é real! − exclamou, emocionado.
− Sim, milorde...
Qualquer outra palavra foi sufocada sob o beijo de Tarek.
A boca que se abriu sob a dele era terna e doce, cheia de ânsia e paixão.
Quando o beijo terminou, ele riu. Um som que era parte agonia, parte
incredulidade, e não apenas um pouco de raiva.
− Um ardil de Nínian! Amuleto de boa sorte! − Fez um esgar. − Vou dar-lhe
o troco por isso.
− Foi meu ardil também, querido, mas não importa pensar nisso. O tempo
fica cada vez mais curto. Temos de nos apressar. Meus poderes devem se juntar
àqueles do Graal, e depois deveremos deixar este lugar antes que seja tarde.
Conforme ela falava, a pequena ilha rochosa moveu-se a seus pés. A água
continuava a subir. A entrada da caverna estava quase lacrada. Um vento poderoso
surgiu como uma condensação de tempestade. Sob a superfície, a criatura retornou,
seus movimentos violentos a provocar ondas que varriam a ilha.
Tarek virou-se para enfrentar a criatura, procurando solo mais alto conforme
a ilha continuava a desaparecer sob a água. Ao redor, a gruta parecia estar se
desintegrando. A luz pálida que brilhava nas paredes foi sendo engolida pelas
sombras negras. Pedaços de rocha caíam enquanto as paredes desabavam.
− Detesto lugares assim. − Tarek ergueu a espada, pronto para enfrentar o
animal.
− Você não pode detê-lo! − Brianna gritou, acima da tempestade crescente
que se formava dentro da gruta, enquanto as Trevas reuniam energia para impedir
que ela chegasse ao Graal.
− Não − ele admitiu, ao se recordar de como a água e a criatura em suas
profundezas tinham se apossado de Siroco. − Todavia, ele não pode ir atrás de nós
dois ao mesmo tempo.
E Tarek empurrou Brianna para trás de si, quando outra onda lavou a ilha,
impelida pela força poderosa da criatura.
− Agora! − ele gritou, quando a criatura irrompeu da água.
Tarek a atraiu, enquanto Brianna escalava as rochas, rumo ao monólito de
cristal.
Vento e água rodopiavam em torno da ilha, e a tempestade crescia. As
Trevas desencadeavam todo seu poder.
A ventania chicoteava Brianna e a puxava para baixo. Uma onda alcançou-a
e arrastou-a para a escuridão revolta das águas.
Brianna sentiu que não fazia sentido lutar. Sua força mortal não era páreo
para a das Trevas. Em vez disso, usou a energia da tempestade que se criara.
Voltou seus pensamentos para dentro de si, para aquele lugar em seu âmago
onde seus poderes recém-descobertos vibravam. Quando a tempestade vergastou o
monólito de cristal, ela se transformou mais uma vez.
A bruma subiu das rochas enquanto a tempestade explodia sobre a
minúscula ilha. Chicoteou o cristal, tentando engolfar a luz dourada que luzia em
torno do Graal. A névoa foi impelida para cima, carregada pelo vento, e se enrolou
como uma serpente em volta do cálice sagrado.
Um som ensurdecedor explodiu na gruta, uma violência de raiva tão
poderosa que afogou o rugir do vento quando o poder do Graal se uniu ao de
Brianna.
O animal revolveu-se com violência no lago, provocando ondas que
arrebentavam sobre a ilha, e a água continuava a subir. Sob os pés, Tarek sentiu que
a rocha se partia. Gritou um aviso para Brianna, mas não houve resposta.
Quando o bicho ergueu-se, ele levantou a cimitarra e o enfrentou.
− Venha provar o doce gosto desta lâmina, seu fruto das Trevas!
A criatura atacou, e ele se desviou daquelas poderosas mandíbulas,
afundando a espada bem fundo no pescoço compacto do animal.
A besta se retorceu e se contraiu, sacudindo a cabeça ao redor, em agonia.
De novo, ele enterrou a espada.
A bruma começara a se reunir e se fechar em torno da ilha.
Ondas varriam as pedras quando Tarek rastejou para o topo. O monólito de
cristal e o Graal tinham desaparecido. O pouco que restava da ilha sumia rápido,
conforme afundava sob as ondas. E Brianna também se fora.
Teria se transformado e escapado de alguma forma? Tarek encontrou
conforto naquela possibilidade, ao ouvir o animal a chafurdar na água, muito mais
perto agora.
As paredes da gruta esboroavam. A escuridão fechou-se sobre ele. Ao
levantar a espada para se defrontar com o animal pela última vez, apegou-se a uma
lembrança: Brianna, como a vira ao lado de um lago, tempos atrás. Uma criatura da
luz do sol e da bruma, que estendera a mão para ele.
Quando o bicho atacou, a ilha explodiu num brilhante relâmpago. E Tarek
foi tragado pela luz.
O sol irrompera entre as nuvens. A água estava lisa como vidro. O calor do
sol na superfície da lagoa levantava uma névoa suave, que se espalhou pela
superfície e sobre a margem. Tarek conhecia aquele lugar. Estivera ali antes. As
Terras Altas perto de Inverness, meses atrás. Fora ao mesmo tempo uma
lembrança e seu último pensamento na gruta.
Ela apareceu do nada, esguia e graciosa como uma corça. Sua face tinha o
formato de coração, com uma pele sem manchas pelas maçãs altas do rosto. Sua
boca era cheia sobre um queixo pequeno e firme, os olhos de um espantoso e claro
tom de verde.
O capuz de seu manto caíra para trás, em seus ombros, revelando uma linha
de cetim verde tão brilhante como os olhos, e uma espessa cascata de cabelos da
cor dos raios do sol entre a bruma.
Estendeu a mão quando, devagar, pôs-se a caminhar na direção dele. E,
como fizera naquela manhã, tempos atrás, Tarek tomou-lhe os dedos.
Ela era pálida, contudo cálida e forte, cheia de vida e do incrível poder da
Luz da qual extraía seu poder.
Brianna sorriu ao se aconchegar nos braços dele.
− Estive esperando por você − murmurou, quando sua boca encontrou a
dele com uma feroz e doce paixão. − Bem-vindo ao lar, guerreiro.

Epílogo

Tarek postou-se no alto das ameias, seu olhar fixo na revolta água
acinzentada do estuário do Moray, ao largo da costa de Inverness. Além, ficava a
fria e vasta expansão do mar do Norte.
− Quais as notícias? − perguntou, muito sério.
− Muitos dos homens de Mardigan preferiram fugir para mar aberto em vez
de serem feitos prisioneiros. Muitos pereceram. Seus corpos foram lançados na
praia.
Os pensamentos de Tarek se agitavam, tão sombrios e furiosos como as
ondas do estuário, pois não havia nenhuma menção daquele guerreiro cujo destino
ele mais queria saber.
− E aqueles que não se lançaram ao mar?
− Foram caçados. Não irão mais aborrecer o povo do país do Norte.
Com suas forças destroçadas e fragmentadas, e sem seu líder, os invasores
foram vencidos. Porém, era uma vitória vazia.
− E quanto a Mardigan? − O nome saiu baixo da garganta de Tarek, um
som doloroso mesclado a um velho ódio.
Gavin remexeu-se, desconfortável.
− Nossos homens vigiam o lago. Ninguém foi visto. Duvidamos que tenha
sobrevivido.
No entanto, ninguém tinha certeza.
Tarek fez um gesto de cabeça quando Gavin afastou-se para se juntar aos
demais no salão abaixo, na celebração.
Tarek não sentia nenhum desejo de celebrar. Não havia satisfação alguma no
resultado, apenas uma persistente sensação de algo deixado incompleto.
Ergueu a cabeça quando um repentino calor foi trazido do vento frio, como
uma carícia que se movia por seus sentidos. Então, ouviu o leve remexer de asas no
ar.
Uma sombra correu pelas ameias. Em seguida, uma calma absoluta reinou
conforme os dedos da bruma envolviam os penhascos abaixo e se curvavam sobre
as muralhas. O sofrimento e a ira aplacaram-se quando Tarek se virou e sorriu para
a bela criatura dourada que caminhava em sua direção.
Brianna entregou-se aos braços dele.
− Como sabia que eu tinha voltado? Nem mesmo Thomas está assim atento,
e ele tem muitos anos de prática.
Tarek puxou-a contra si, envolvendo-a no calor de seu manto. Ele a teria
puxado para dentro da alma, se pudesse. Talvez desse jeito conseguisse banir a dor
fria que parecia ter se assentado de uma vez ali.
− Sei sempre quando você está por perto. Posso sentir em meu sangue.
− Sim − ela murmurou, com um arquejo súbito que não tinha nada a ver
com a longa jornada que acabara de fazer. Seus olhos verdes faiscaram de desejo.
Ela riu de um jeito sensual, que reteve de repente quando as mãos de Tarek
escorregaram por suas costas e Brianna esfregou os quadris contra os dele. Seus
olhos se toldaram e escureceram de paixão.
− Eu sinto também.
Tarek tomou-lhe a cabeça sob o queixo, conforme o frio se dissipava dentro
de seu corpo, como a primeira brisa de primavera após um duro inverno.
Começava a acreditar que a primavera poderia surgir mesmo naquela terra gelada.
− Está feito?
− Sim.
− E o Graal?
− A salvo com Merlin. Significou muito para mim vê-lo, agora que as
lembranças voltaram e eu sei quem são meus pais verdadeiros. − Lágrimas lhe
marejaram os olhos. − Nínian pagou um alto preço por trazer-me esse
conhecimento, pois não pode voltar, nem meu pai poderá partir para estar com ela,
a menos que a maldição seja quebrada. Tudo o que lhes sobrou é o elo de seus
pensamentos. Eu não conseguiria suportar ter apenas seus pensamentos, Tarek,
sabendo que talvez jamais viesse a tocá-lo de novo.
− Não há algum jeito?
− Não enquanto a maldição persistir. Nem mesmo o poder do Graal foi
forte o bastante para quebrá-la. Meu pai estava tão esperançoso que pudesse...
Anseia por ela.
A boca de Tarek se estreitou.
− Então, não está terminado.
− Não, não está. − Brianna ergueu a mão que enfiara nas dobras do manto
de Tarek. Nela, segurava um tecido enrolado, ricamente colorido.
Tarek o reconheceu, pois o vira muitas vezes no tear no quarto de Rorke
Fitz-Warren, em Londres. Era a tapeçaria que Vivian vinha tecendo. Quando a
desenrolou, a luz do sol infiltrou-se pelas nuvens e brilhou nas imagens vividas na
tapeçaria.
O calor se espalhou pelo tecido pesado como se a tapeçaria estivesse viva.
Havia outras imagens também, sombras fugidias não tecidas que brincavam pela
superfície, esquivas como os sonhos. Naquelas sombras tênues ele pensou ter visto
algo familiar: o caos e a destruição de alguma grande batalha. Encarou Brianna.
Ela sentiu-lhe os pensamentos.
− Vivian a viu também, Tarek. Essa é a razão pela qual mandou a tapeçaria
comigo.
− O que significa?
Seus dedos moveram-se sobre as imagens tecidas nos fios. A batalha de
Hastings, incontáveis guerreiros e cavaleiros, a morte próxima de Guilherme, um
valente cavaleiro a quem Tarek reconheceu como sendo o amigo Rorke Fitz-
Warren e a bela tecelã de cabelos ruivos que se sentava diante de um tear e girava as
meadas do futuro. A própria imagem de Tarek se achava lá também, junto com a
de Brianna e de um reluzente cálice dourado. O Graal.
− Eis o porvir que temos adiante − ela explicou, solene.
− Guerra − Tarek concluiu, com um peso no coração.
− Sim, mas diferente de qualquer outra que tenha sido travada. A batalha por
toda a humanidade. Mesmo agora, as forças do mal se reúnem. Meu pai falou disso
quando coloquei o Graal em suas mãos.
− Será travada nas Terras Altas?
Antes, tudo o que Tarek queria era vingança. Agora, queria muito mais. Mais
tempo para estarem um com o outro, tempo para um filho que prometera a
Brianna. Uma criança nascida de pais amorosos que tinham feito juramentos um ao
outro; uma criança com um lar e uma família.
Brianna meneou a cabeça.
− Terminou aqui quando as Trevas perderam o Graal e seus poderes. Agora,
sua única esperança repousa no Oráculo dos Anciãos, através do qual ela pode se
apoderar dos poderes da Luz.
− Onde esse Oráculo pode ser encontrado?
− De acordo com a lenda, nas terras do Oeste, onde Merlin nasceu.
Tarek aceitou sem discussão. Depois da batalha contra as forças das Trevas
na ilha do Graal, não mais duvidava do que estava em risco.
− Darei ordens para que o exército se apronte. Partiremos para Londres com
as primeiras luzes. Rorke Fitz-Warren se juntará a nós, pois entende o perigo assim
como eu. Precisamos encontrar o Oráculo.
Brianna pousou a mão em seu braço.
− Isso não pode ser feito simplesmente, pois não é seu destino que está
tecido entre os fios. É o destino de outro, e apenas ele pode fazer a jornada e
procurar o Oráculo.
Brianna correu os dedos pela tapeçaria, para as últimas imagens que lady
Vivian tecera, um presságio do futuro. Uma era de um guerreiro jovem e valente. O
fogo e a paixão pela batalha queimavam em seus olhos cor de âmbar. Usava uma
armadura de guerreiro, mas o escudo que carregava não ostentava nenhum
emblema. Em vez disso, era de um preto sólido e trazia uma inscrição em latim:
Desdicado. Um homem sem honra e sem nome, nascido bastardo. Stephen de
Valois.
A imagem entrelaçada à de Stephen numa explosão de sombra e luz era de
uma jovem esguia, com belas feições refinadas, os cabelos da cor do céu da noite e
olhos violeta.
− Quem é ela?
− Seu nome é Cassandra. É minha irmã.
Nínian falava de outra que poderia manter a esperança de um futuro, se
Tarek fosse incapaz de salvar Brianna dos poderes das Trevas. Porém, havia
dúvida, assim como uma grande tristeza em sua voz quando falara disso. Agora ele
sabia a quem ela se referira. Mas a cena estava incompleta.
− E quanto ao resultado? Na certa lady Vivian o viu. Brianna meneou a
cabeça.
− É impossível a alguém saber com certeza. − Seus olhos verdes estavam
cheios de tristeza. − Cassandra escolheu, tempos atrás, não retornar ao mundo de
Merlin. Não posso imaginar que ela não quisesse voltar. Embora eu não tenha
conhecido minha verdadeira mãe e meu pai por tanto tempo, ainda assim tinha
Cullum e Mirren.
Roçou os lábios de Tarek.
− Mas não ter uma família, ninguém a quem se amou e a amou em
retribuição...
Tarek compreendia muito bem. Cada um deles sofrera perda semelhante,
mesmo não sendo pela própria escolha. A dor dessa perda fora aliviada pelo amor
que encontraram um com o outro.
Ele tomou Brianna nos braços, fechando o manto felpudo em torno deles.
Sentiu que ela estremecia.
− A tapeçaria ainda não está completamente tecida, minha adorada. Existe
ainda o porvir. Talvez aquilo que foi perdido no passado possa ser encontrado lá.
Brianna sabia que ele tinha razão, pois ambos haviam perdido muito e depois
encontrado um ao outro num futuro incerto. Ergueu a mão do casulo quente que
seus corpos faziam, comprimidos juntos dentro do manto, e traçou a curva da boca
de Tarek com a ponta dos dedos.
− Sim, milorde − afirmou, rouca.
Estremeceu de novo, mas por razões bem diferentes, quando as mãos dele
correram pela extensão de sua espinha e empalmaram suas nádegas, ao puxá-la
ainda mais.
Brianna cerrou as pálpebras e expulsou a escuridão que espreitava para além
das fronteiras de seus pensamentos.
− O porvir... − ela sussurrou, contra a boca de seu amado.

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