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(QTE) Legado de Merlin 2 - Daughter of The Mist
(QTE) Legado de Merlin 2 - Daughter of The Mist
Filha da Bruma
Título Original: Daughter of the Mist
A bruma se enrolava pelo ar frio da noite como sedosos fios de linha num
tear. Armava uma teia prateada pela lua, enrodilhava-se em torno das chamas das
tochas e cintilava no manto que envolvia a jovem esguia postada nas muralhas.
− Ele virá para você, num tempo que não é um tempo e num lugar que não
é um lugar − a Voz murmurou em seu íntimo.
A luz das tochas a emoldurava. Seus cabelos eram como ouro torcido. A
pele, pálida, e as maçãs do rosto, salientes, os lábios entreabertos. Os olhos verdes
eram como as sombras da floresta, ansiosos por paixões desconhecidas.
Não mais parecia mortal, mas alguma criatura do outro mundo, feita de prata
e ouro como a bruma da alvorada, quando a Voz se dirigiu a ela de novo. Então, ao
se inclinar sobre as muralhas, ela viu a criatura.
Veio até ela através da bruma, escura como o céu da noite, suave e poderosa,
toda músculo e tendões debaixo da lustrosa pele negra, que cintilava, conforme o
ser saltava pelas ameias. A cabeça escura angulou-se em sua direção. Olhos luziram
quando a espreitaram. Não havia como escapar.
A respiração do animal ondulava como pluma na névoa fria. Músculos
elásticos esticavam-se e encolhiam-se debaixo da escura pelagem acetinada com um
poder mortal que era ao mesmo tempo terrível e belo. Num átimo, a criatura estava
sobre ela, puxando-a para baixo sob aquela força incrível e beleza fatal.
Poderia matá-la com facilidade. Mas, em vez de dentes afundando-se em sua
carne, seu hálito roçou contra a pele dela com um calor sensual. No lugar de garras
a dilacerá-la, a energia do animal fechou-se, gentil, em torno dela, e um calor como
a carícia de um amante envolveu-a sob o manto.
Ele virá para você.
De novo, as palavras sussurraram pela neblina conforme o ser erguia a
cabeça e revelava, não um terrível animal, mas as feições rijas de um guerreiro com
cabelos tão negros como a noite, olhos da cor do céu de verão e um corpo
poderoso que cintilava como ouro, tal como a alvorada.
Como a alvorada, ele veio até ela e, como a bruma à alvorada, ela se rendeu,
até que o guerreiro se apossou dela com uma feroz e gloriosa paixão.
Capítulo I
Inverness
Brianna acordou com a mão que de repente fechou-se sobre sua boca. A luz
tremia pelas paredes do quarto, iluminando as feições do gigante poderoso que se
postava sobre ela.
Arregalou os olhos ao reconhecê-lo, e a mão dele se afastou. De longe
vinham o som de gritos e um barulho distante, porém inconfundível, de batalha,
para além da porta de seu aposento.
− O que é? − Brianna perguntou. − O que aconteceu?
Sem responder, Thomas puxou-a do leito, pegou o maior dos mantos
grossos de lã e enrolou-o rápido em torno dos ombros dela.
Sua boca era uma linha dura no meio da barba áspera. O padrão de cicatrizes
que rendilhava suas faces ficava mais pavoroso com a expressão sombria na tez
avermelhada.
Além da porta, fechada por dentro, os sons da batalha recrudesciam, mais
altos e mais distintos. Horas antes, estavam todos reunidos em torno das canecas
de cerveja. Brianna fora se deitar entre gritos bem-humorados e os desafios de
força física dos mais jovens, enquanto os mais velhos cochilavam ao lado da lareira.
Agora, eram sons de uma batalha campal que vinham de dentro da fortaleza.
− Tem de me dizer o que aconteceu, Thomas!
Mas nenhuma explicação passou pelos pensamentos do gigante para
conectar-se com os dela, daquela maneira especial que os ligava.
Em vez disso, Brianna sentiu urgência e uma cega obstinação de vontade que
falava de perigo, palavras que Thomas não poderia pronunciar porque sua língua
fora cortada muito tempo antes.
Os próprios pensamentos de Brianna corriam céleres. Os chefes do Norte
tinham se reunido em Inverness para discutir as notícias do Sul, além das fronteiras
com a Inglaterra, e a crescente ameaça do invasor viking, Mardigan.
Por mais de vinte anos, Mardigan e seus homens assaltavam os portos da
costa e atacavam de surpresa as praias do norte da Escócia. Porém, tornara-se cada
vez mais ousado, ao penetrar pelo interior e pelas charnecas para saquear vilas e
fazendas.
Mardigan queria muito mais que o butim de alimento e animais. Seus
homens estupravam as mulheres, matavam os homens e meninos e queimavam as
vilas dos clãs do Norte.
Não fazia segredo do que ambicionava: Inverness, a fortaleza que protegia
todo o norte da Escócia.
Queria um domínio pelo casamento, uma aliança que não pudesse ser
quebrada, e laços de sangue com os clãs do Norte por intermédio de filhos que
nascessem dessa união.
Outro perigo também ameaçava a autonomia dos habitantes das Terras
Altas. Guilherme da Normandia se proclamara rei da Inglaterra e enviava seu
exército para o Norte. As Terras Altas eram vistas como o portal que deveria ser
bem fortificado contra aqueles que pudessem tentar tomar o trono da Bretanha
pelo portão dos fundos.
O pai adotivo de Brianna, Cullum, lorde de Inverness, reunira os chefes dos
clãs. Insistira com os chefes sentados à mesa de conselho, dois dias atrás, numa
aliança com a Inglaterra, que poderia bem ser a única esperança contra os
açougueiros nórdicos que repetidamente saqueavam e queimavam as vilas.
− Eles estupram nossas mulheres − Cullum dissera, sombrio. − Plantam
fundo sua semente e misturam seu sangue ao nosso, de modo que nunca ficaremos
livres deles.
Uma vez que isso acontecesse, ele avisara, os bárbaros nórdicos se tornariam
ainda mais poderosos, e os clãs não teriam esperança de livrar-se de Mardigan.
Uma aliança com Guilherme da Inglaterra lhes daria a força de que
necessitavam.
Então, chegaram notícias de que Mardigan queria permissão para conversar
com os chefes dos clãs sobre os termos de paz.
Embora suspeitando deveras de suas intenções, os membros do conselho
concordaram e estabeleceram os termos para a reunião. O salão da fortaleza estava
como um acampamento armado pronto para a batalha quando Mardigan entrou,
passados três dias, com quarenta de seus homens.
Falara de uma paz que só poderia ser obtida com uma aliança
inquebrantável. Nada mais, nada menos que o casamento com Brianna.
− Você não recusará, velho − Mardigan advertiu, os dentes reluzindo nas
feições belas e arrogantes. − Uma centena mais de meus homens aguarda meu
sinal. Recuse... − Apontou para os chefes em torno da mesa. − e todos morrerão.
É uma pequena exigência em troca do fim do banho de sangue.
Embora Cullum tivesse proibido sua presença, Brianna ouvira tudo do
corredor que levava à cozinha. Antes que Cullum e os chefes pudessem responder,
ela saiu das sombras e caminhou, orgulhosa, até os homens.
− Ele não recusa! − exclamou, ao atravessar o salão, chamando a atenção de
todos. − Eu recuso!
Mardigan se virou. Baixou a cabeça como um lobo que sente o cheiro da
caça. Seus olhos se estreitaram, de um azul nórdico tão frio e duro como o inverno
ártico. Brianna se postou diante dele, armada apenas com a altivez das Terras Altas
e a teimosia desafiadora.
Com as pernas musculosas enfiadas em calças de couro, Mardigan tinha a
postura de quem já ganhara o poder em Inverness. Os cabelos de um ouro
queimado caíam até seus ombros com uma trança grossa de cada lado da face.
Estava na plenitude de sua virilidade, porém não era um jovem. Nem tolo.
Brianna sentira alguma coisa sombria e demoníaca por baixo da força
poderosa dele, do brilho dos braceletes de ouro e daqueles olhos azuis gelados que
a fitavam com luxúria sem disfarces. Então Mardigan ergueu um punho fechado,
como se tivesse a intenção de esmurrá-la.
Um súbito rebuliço tomou conta do salão quando a mão de cada homem
buscou a arma. Porém, Mardigan não bateu nela. Seus dedos se enrolaram como
serpentes pelos cabelos de Brianna, que caíam por seu ombro.
Ergueu a massa dourada fechada no punho e em seguida a torceu como uma
corda, a apertar cada vez mais, forçando Brianna a aproximar-se até que a teve
prisioneira, o hálito quente a lhe queimar ao rosto.
− Eu juro que a terei, Brianna de Inverness e herdeira de Lochonnen. E
teremos belos filhos vigorosos. − E depois a ameaça: − Ou a terra se tornará
vermelha do sangue de seus parentes.
Escondida em sua manga, ela sentiu a frieza reconfortante da lâmina do
punhal que sempre carregava. Tirou-o da bainha e enfiou a ponta na carne
vulnerável sob o queixo de Mardigan.
− Você nunca verá o feito, pois seu sangue será o primeiro a correr! − E
Brianna viu, com satisfação, aqueles olhos frios se arregalarem de surpresa.
− Não preciso ver, Brianna. A sensação de minha carne dentro de você será
o bastante para saber que está feito. Você gostará. Posso ver em seu semblante.
Logo estará implorando para ter-me entre suas pernas.
Ela recusou-se a gritar ou deixar escorrer as lágrimas de raiva, humilhação e
ódio. Comprimiu mais fundo a lâmina e viu, com alegria, a expressão do viking
mudar quando o sangue escorreu pela adaga.
− O que vê é sua própria morte!
Rápida e implacável, a mão de Mardigan segurou o pulso dela. Suas unhas se
enterraram na carne e nos esguios tendões, procurando tirar-lhe a arma da mão.
Ao redor dela, as espadas foram empunhadas por highlanders e nórdicos. A
voz de Cullum ecoou no grande salão ao se adiantar, desarmado:
− Tem a resposta de minha filha, Mardigan. E a minha: Parta enquanto ainda
respira.
A mão de Mardigan apertava ainda o pulso de Brianna-. Sua face estava
muito perto da dela. Ela, então, pôde vislumbrar algo naquelas feições frias e
poderosas que não vira antes: uma perversidade de alma ainda mais terrível e cruel
do que supusera.
− Isso apenas começou, Brianna. Você será minha. Em seguida, ele e seus
homens partiram, desaparecendo pelos portões, pelas colinas e florestas que
rodeavam Inverness. Sem demora, os portões da fortaleza foram fechados e
barrados.
Naquele momento, os sons de batalha vinham de dentro do castelo, um
trágico lembrete de que os portões não tinham sido suficientes para impedir a
entrada de Mardigan e seus guerreiros.
Thomas conectou os pensamentos aos dela. Foi até à janela e abriu as
venezianas. O céu começava a se iluminar. Abaixo das muralhas íngremes, os
penhascos rochosos.
− Você precisa partir antes que seja muito tarde! Eles não devem encontrá-la
aqui.
Brianna meneou a cabeça. Não partiria sem Thomas.
− Iremos juntos, ou nada feito.
− Não posso voar, senhora. Não há tempo! Não discuta! Tem de ir agora!
− Não sou eu quem está discutindo. Não o deixarei! Socos ecoaram contra a
porta pesada. A madeira não agüentaria por muito tempo.
Thomas puxou-a pelo dormitório até a parede ao fundo. Colocou-lhe uma
tocha na mão e depois se esgueirou pelo pesado tartã de lã que cobria a parede.
Comprimiu a mão contra a base de uma pedra triangular. A pedra moveu-se e, com
um som rascante, uma seção da parede se abriu, revelando a sombria escuridão de
uma passagem. Uma lufada de ar gelado quase apagou a chama da tocha.
Cullum mandara abrir uma passagem secreta no fundo de cada quarto para
ser usada se houvesse necessidade de fuga. Brianna adentrou na escuridão gelada.
Tateou a parede oposta em busca da alavanca que soltava a seção da parede
de pedra que se abria para o quarto do lorde. Mirren decerto estaria ali, esperando
por eles. Porém, Thomas puxou-a pelas escadas.
− Não podemos deixá-la! − Brianna sentia algo estranho. Thomas jamais
deixaria Mirren ou Cullum.
Atrás dela, pedras rangeram quando o painel fechou-se no lugar. À frente, a
chama da tocha se refletia nos degraus brilhantes da umidade que escorria das
paredes.
Um presságio doloroso apertou o coração de Brianna.
Onde estavam Cullum e seus parentes? Será que Mirren se encontrava a
salvo?
Onde se achavam os outros chefes de clã que ainda não tinham retornado a
seus domínios?
O que era feito de Malcolm e o pai dele?
Ao chegarem a um nicho no estreito corredor que ligava a cozinha e a copa
ao salão, Thomas abriu a porta escondida.
Brianna ouviu o ruído da refrega, o tinir e raspar de aço contra aço, gritos
entre os clamores de dor dos feridos e os gemidos dos agonizantes. Entrou no
corredor de ligação. A destruição do salão principal a estarreceu.
Viu as longas mesas viradas, travessas e canecas espalhadas pelo solo, bancos
arrebentados. Passou por sobre os corpos de vários de seus próprios parentes, à
procura de Cullum. Foi quando avistou-o caído contra a parede da escada. Era
doloroso pular por sobre os cadáveres. A barra da camisola logo se encharcou de
sangue. Por fim, chegou a Cullum.
Ele fora o último a cair, sua mão ainda agarrando a espada, embora o braço
tivesse sido separado do corpo robusto. O segundo golpe o matara de imediato,
abrindo uma ferida de seu ombro até o peito, o sangue a bombear-se sobre o
xadrez de seu clã.
Mirren jazia contra a parede, atrás dele, segurando um punhal fino, a outra
mão sobre o ombro do marido, como se a defendê-lo. Um golpe poderoso
esmagara-lhe o crânio. Seus olhos sem vida encaravam Brianna.
Sons ecoaram do alto da escadaria. Os assassinos estavam lá agora,
saqueando seu quarto e derrubando a porta dos aposentos do lorde.
Brianna teria disparado degraus acima se Thomas não a impedisse. Ele
enlaçou-lhe a cintura e carregou-a para longe dali. Seus pensamentos penetraram
nos dela com angústia e sofrimento, como um golpe físico.
− Eles morreram para proteger você! Zombará de suas mortes entregando a
esses açougueiros o próprio prêmio que procuram? Precisamos partir agora, ou
suas mortes terão sido em vão!
Nesse momento, ecoaram gritos, e, embora Brianna não pudesse entender o
que diziam, distinguiu o som de raiva. Mardigan não encontrara aquilo que buscava.
Tochas surgiram no alto da escadaria.
− Precisamos partir agora, senhora! − Thomas avisou, aflito.
Segurou-a pelo braço e fugiram do salão pelo corredor que ligava à cozinha.
O pátio além estava um caos.
Thomas a conduziu para trás do pombal, adjacente aos cercados onde
Cullum criava as aves de caça. Penas voaram com a súbita intrusão. Logo,
entretanto, as pombas se acalmaram. Nos cercados, dois falcões moviam-se
inquietos nos poleiros. Thomas fez Brianna agachar-se no piso do cercado e
cobriu-a com palha ao ouvir os guerreiros se aproximando.
Ela não necessitava vê-los para saber que Mardigan vinha com eles. Sempre
haveria de se recordar de sua voz, cheia de orgulho e arrogância, a frieza com que
jurara voltar a Inverness depois que ela recusara sua oferta de casamento. Cumprira
a promessa.
− Procurem em cada prédio, cada cercado, cada carroça − Mardigan
ordenava a seus homens. − Lady Brianna tem de ser encontrada. Antes que este dia
acabe, estaremos casados. Antes que a noite passe, ela estará carregando meu
primeiro filho.
− Muitos dos highlanders fugiram. Milady pode estar entre eles − um deles
ponderou.
Mardigan estreitou os olhos. Glenross ficava ao norte, pelas charnecas.
Brianna poderia ter buscado segurança ali.
− Procurem em cada canto!
Seus pensamentos já se voltavam para Glenross. Uma moça e um mudo
abobalhado não poderiam viajar depressa. Suas pupilas luziram. Logo Inverness
seria sua e ninguém poderia impedir que tomasse a filha do antigo lorde como
esposa. A luxúria da batalha transformou-se numa outra luxúria mais aguda, ao
lembrar-se dela. Sim, Brianna lhe daria belos filhos.
Três guerreiros se espalharam, cada um procurando numa direção diferente.
Brianna conteve o fôlego quando um deles se aproximou do pombal, sua sombra a
surgir pelas frestas do cercado, os passos a se afastar e depois retornar. Ela enfiou a
cabeça para fora da palha, mas Thomas puxou-a para baixo com uma expressão
feroz.
Os cercados eram estreitos e pequenos, com poleiros e nichos para ninhos
de ambos os lados. Thomas fora forçado a manter a cabeça abaixada para caber no
espaço.
De repente, a lâmina de uma espada surgiu por entre as frestas de uma
parede. Depois, de novo, em intervalos, pela extensão do cercado.
Os dedos de Thomas enterraram-se nos ombros de Brian-na num aviso
mudo. Aves assustadas voavam entre gritos de alarme. Penas, poeira e palha
encheram o ar.
A lâmina foi lançada várias outras vezes mais, e então trouxe sangue. O
guerreiro sorriu de satisfação. Abriu a porta do cercado.
A poeira subia dos montes de palha que cobriam o chão. Pássaros voaram
num alto farfalhar. Uma criatura grotesca e deformada levantou-se no canto.
O corpo era torcido e nodoso. Uma corcunda rodeava um ombro. A criatura
o fitou com uma expressão vaga de idiota. Nas mãos, aninhava um falcão prateado.
O guerreiro examinou o feio arremedo de gente. Talvez não fosse humano,
afinal, mas um troll, um daqueles animais tolos e feiosos do submundo, com fedor
de latrina, que traziam infortúnio e desgraça para todos com quem cruzassem.
Chutou o ser, que saiu dali esparramando-se na poeira do pátio. O falcão
escapou e alçou vôo, até que desapareceu. O monstro rolou para longe e se pôs de
pé.
De repente, no entanto, pareceu aumentar de tamanho. O corpo torcido e
deformado transformou-se conforme a criatura ergueu-se à plena altura.
O guerreiro recuou, ao pensar em tais criaturas que mudavam à vontade, e
nos encantos que lançavam ao transformarem homens em pedra e montes de
estrume. Quando o ser avançou, ele deu-lhe as costas e fugiu.
O olhar aguçado de Thomas ergueu-se para o céu. Protegeu a vista do sol ao
marcar o vôo do falcão. Com um resmungo satisfeito, saiu da fortaleza, rastejando
pelo vão escondido na muralha, atrás dos jardins de lady Mirren.
Encontrou Brianna na praia do lago, onde ela sempre brincava quando
criança. Estava ajoelhada no abrigo da velha sorveira-brava. O tremor de seus
ombros denunciava o choro e as lágrimas, e as mãos cerradas revelavam o
sofrimento mudo e a ira.
Ela sentiu-lhe a presença e o amor, e a força que sempre a protegera e guiara.
− Mardigan e seus homens não desistirão da procura. Precisamos partir
depressa para um lugar que seja seguro, onde ele não possa encontrá-la.
Brianna o encarou.
− Não, Thomas. Não irei. Nem me esconderei.
− Mas não pode ficar. Não é seguro. Se Mardigan e seus homens
encontrarem este lugar, não poderei protegê-la.
− Não fugirei! Nem irei me oferecer como uma ovelha para o assassino.
− O que fará então, menina?
− Contra ele.
− Como, senhora?!
Ao olhar para a água escura e calma do lago Ness, Brianna se recordou da
criatura em seu sonho, um guerreiro que tinha a pele escura e carregava a cor do
céu nos olhos. Um poderoso soldado que não temia nada.
− Precisamos persuadir os outros chefes a retornar para o conselho. Juntos
encontraremos um jeito de deter Mardigan. Se fugirmos para as colinas e nos
escondermos, então ele terá nos vencido.
− E Inverness?
Os belos olhos verdes de Brianna escureceram, resolutos.
− Eu sou agora o lorde de Inverness.
Capítulo II
Faz quinze dias desde o ataque a Glenross. Agora, mais quatro vilas foram
queimadas, os rebanhos, mortos, famílias inocentes, assassinadas. Devemos
proteger as vilas! − Malcolm exclamou, zangado. − Ou em breve todo o Norte será
devastado.
− Só um tolo dividiria sua força − Stephen de Valois argumentou, sem
tentar disfarçar seu desprazer, ao ficar de pé.
Eram como dois leões enjaulados, prontos para a luta.
− Talvez! − Malcolm estava vermelho de raiva. − Mas pelo menos ele morre
com uma espada na mão, em vez de ferramentas de carpinteiro!
O desdém dos escoceses pelo trabalho que vinham desempenhando não era
segredo. Reclamavam muito dos grandes reparos e das inovações que Tarek
ordenara logo depois de retornarem a Inverness.
Embora patrulhas bem armadas de normandos e escoceses percorressem a
região vizinha, a maioria dos homens, também escoceses e normandos, fora
encarregada de reconstruir a fortaleza principal, inclusive de erguer uma muralha
exterior mais alta, agora de pedra e na maneira das fortificações normandas.
Brianna recuou para as sombras, não querendo ser vista. De seu esconderijo,
podia observar tudo o que acontecia sem ser notada. E podia ver Tarek al Sharif.
Ele estava sentado com uma calma forjada, o corpo relaxado na grande
cadeira que Cullum uma vez ocupara, enquanto ao redor os homens discutiam e
reclamavam, sem cessar. A tranqüilidade que prenunciava tempestade.
Os outros esvaziavam as canecas e batiam na mesa por mais. Ele os estudava
a todos. Ouvia sua discussão, as feições fortes em pensativa concentração.
− O que me diz você? − Malcolm se inclinou na mesa na direção de Tarek.
− Quantos escoceses mais devem morrer antes que Mardigan seja detido? Ou as
palavras normandas só guardam falsas promessas em vez de feitos?
Tarek contemplou os escoceses reunidos. Era de uma contenção de energia
tão intensa e bem controlada que atraía o olhar, e nunca ninguém podia antecipar
qual seria seu próximo movimento.
Brianna estremeceu ao se recordar daquele vigor, do contato daquele corpo
flexível contra o dela, no oco da árvore, e dos anseios estranhos que nunca
experimentara antes, sensações intensas e prazerosas que a confundiam.
Desde então, ela o evitava tanto quanto possível. Não era difícil, com a
fortaleza cheia de parentes, soldados e escoceses desabrigados, depois que as vilas
foram queimadas. Como filha do velho lorde, era sua responsabilidade hospedar e
alimentar quantos procurassem refúgio dentro das muralhas.
Com o tempo, Brianna teria de convencer Tarek de que aquele era um
casamento nominal apenas, pelo bem de uma aliança. Assim que ele aceitasse o
fato, iria sem dúvida procurar prazer com alguém mais. Talvez com Gillie, pois a
prima deixara clara sua disponibilidade desde o começo. Podia ser até que isso já
tivesse acontecido, pois Brianna notara que sempre que Tarek estava no salão Gillie
se mantinha por perto. Começou ela mesma a servir as refeições. Sempre o
rodeava, enchendo sua caneca, tirando suas botas cheias de lama, cuidando de
qualquer necessidade que surgisse.
Conforme Gillie tomava para si os deveres que deveriam caber a sua esposa,
Brianna experimentava uma sensação inexplicável de opressão quando pensava nas
outras necessidades que Gillie também poderia atender. Muitas vezes, Brianna a
vira no corredor do quarto do lorde, a esperar por ele, com um sorriso e uma
expressão que sugeriam que partilhavam algum segredo.
Agora, ela analisava e ouvia as discussões no salão. Malcolm se determinara a
forçar um confronto. Sua raiva era como uma ferida que destilava veneno.
− Vocês discutem entre si como velhas pechinchando num mercado −
Tarek falou aos homens reunidos. − Estamos perdendo tempo. Há outros assuntos
de maior relevância.
− Sim! − zombou Malcolm. − A construção de outra fortaleza normanda
como um monumento para o rei Guilherme, enquanto mais escoceses morrem.
Com que direito você toma decisões sobre os guerreiros e as terras escoceses?!
O olhar de Tarek encontrou o de Malcolm, e mesmo de onde se encontrava,
Brianna viu a expressão perigosa e predatória naqueles olhos azuis. Ele parecia um
felino, uma pantera mortal, capaz de escalar muralhas.
− Qualquer homem que se recusa a aprender com o passado está fadado a
repeti-lo, Malcolm de Drummond. Não pretendo passar pelo que já aconteceu,
inclusive o ataque a Inverness, em virtude das parcas fortificações, que Mardigan
conhece bem.
− Que tipo de palavrório é esse? Você vem aqui com suas palavras estranhas
que não têm nenhum sentido para nós. Que o diabo o carregue, seu bárbaro ladrão!
O som de aço tiniu pelo ambiente conforme os homens de Tarek puxavam a
espada, diante do insulto. Se houvesse um momento em que tudo poderia estar
perdido, Brianna soube que era aquele. E Malcolm seria a causa.
Ela não poderia permitir. Por isso, saiu das sombras e entrou no salão, na
quietude mortal que prometia um banho de sangue.
A atenção de normandos e escoceses voltou-se para ela. Era como se todos
esperassem que o lorde falasse e tomasse partido.
Brianna atravessou o recinto, rodeando a mesa à qual Tarek al Sharif se
sentava. Parou ao lado de sua cadeira, a mão descansando no espaldar. Cada olhar
permanecia cravado nela.
− Os clãs falharam em deter Mardigan antes − afirmou, numa voz clara e
forte. − O que fracassou no passado deve ser feito de modo diferente, ou não
teremos esperança de impedi-lo de continuar a nos atacar.
− O que sabe dessas coisas, Brianna? − Malcolm a encarava. − São assuntos
de guerra, não de mulher.
Ela se sentiu agredida. Uma sensação de constrangimento se espalhou pelo
salão. O ar estava impregnado de tensão. Malcolm desafiara não apenas a aliança,
mas a autoridade de Brianna como filha do velho lorde. Se não agisse depressa, o
sangue iria correr em Inverness.
Tarek inclinou-se para a frente na cadeira, um movimento flexível que se
tornara familiar em seus sonhos. Com um instinto tão natural como o respirar,
Brianna pousou a mão em seu ombro. Ele enlaçou os dedos nos dela, e Brianna
encarou os parentes e os demais chefes.
− Minha família e muitos parentes estão mortos. Glenross e uma dúzia de
outras vilas foram destruídas. Sepulturas enchem as colinas e os vales. A terra está
vermelha do sangue dos escoceses.
− A reconstrução de Inverness custará mais vidas escocesas pelo desperdício
de tempo.
− Talvez, Malcolm. Mas, quando estiver concluída, muitos escoceses estarão
protegidos dentro destas muralhas. Não vêem? − ela perguntou a todos. − Muitos
já morreram porque Inverness não pôde ser defendida de maneira adequada.
Inclusive muitos do clã Drummond!
− Podemos bem estar todos perdidos com essa aliança com o rei inglês −
Malcolm retrucou, furioso, um sofrimento mais profundo a retorcer as feições
tingidas de ódio.
− É possível, mas só o tempo dirá. No entanto, uma coisa é certa: já estamos
perdidos sem ela.
− Silêncio! − Ian, o pai de Malcolm, bateu com a mão calejada no tampo. −
Não discutiremos mais esse tema! Daremos uma chance à aliança, pois sem ela não
temos nada. − Voltou-se, o olhar a examinar as faces de seus companheiros chefes.
− Aqueles que estão de acordo com a aliança digam "sim".
Houve um burburinho de aprovação entre os escoceses.
− E aqueles que são contra? − ele quis saber. Quietude.
Malcolm encarou os mais jovens dos clãs que tinham decidido não desafiar
os mais velhos. Praguejando, jogando uma caneca na lareira, retirou-se da mesa e
foi sentar-se nas sombras.
Conforme as armas eram de novo embainhadas, Ian berrou para as criadas:
− Tragam cerveja e mantenham cheias as canecas. Toda essa discussão me
deu uma sede tremenda. − Ao se servir, bebeu um longo gole e então bateu a
caneca na mesa. − Punhal! Espada! Escudo! Que comecem os jogos, e veremos
quem é o melhor guerreiro.
Gargalhadas ecoavam de todos os cantos. Um enorme quadro de madeira foi
trazido e colocado diante dos chefes.
Brianna suspirou de alívio. Tentou livrar a mão da dele, mas Tarek a
impediu.
− Não vá. Por favor, fique.
− Tenho o que fazer, milorde − protestou, inquieta. Os dedos de Tarek se
fechavam em torno dos dela com um calor agradável e um vigor que parecia de
certa forma íntimo, como se fossem namorados, e não apenas parceiros numa
aliança estratégica.
− Uma outra pessoa pode cuidar de seus afazeres. Quero que fique aqui. −
Ao sentir-lhe a tensão, Tarek emendou:
− Para que possa explicar os detalhes do jogo para mim.
− Apontou para o quadro sobre a mesa do lorde.
Era entalhado com um padrão de quadrados: seis de lado a lado e seis para
baixo, cada um esculpido com um símbolo de aparência estranha, com uma, duas
ou três linhas onduladas, algumas marcadas com uma linha reta perpendicular,
outros com uma combinação de curvas, pequenos círculos, a figura de um pássaro,
peixe, estrela, sol ou lua crescente. Nenhum era igual ao outro.
− O que os símbolos representam, Brianna?
− O que vê são as antigas runas. Representam os elementos do mundo
conhecido, terra, fogo, água e céu.
− Como é jogado?
Quatro parentes de Brianna escolheram um lado do quadro para ficar.
Tiraram a sorte para ver a ordem em que cada um jogaria, enquanto as canecas
eram cheias de cerveja e as apostas feitas.
− É um jogo de perícia, memória e desafio físico. Para que a partida comece,
o marcador escolhe ao acaso três quadrados no quadro.
− E quando os três quadrados forem escolhidos?
− O primeiro jogador deve repeti-los na mesma exata ordem e adicionar
outro quadrado à seqüência. Cada um a seu turno acrescentará um quadrado
também. E deve repeti-la com exatidão. O marcador toma nota de cada escolha e
anota no pergaminho para todos verem. Desse jeito, todos os presentes
acompanham o jogo.
− O que acontece quando um jogador erra?
− Perde uma de suas armas: punhal, espada, escudo. Daí o nome do jogo.
− E se perder todas as armas?
A partida começou, e os primeiros três quadrados foram escolhidos.
− Deverá enfrentar o homem que perder em seguida em uma competição
física.
− Desarmado e desprotegido − Tarek adivinhou o óbvio. O jogo parecia
simples, quase banal a princípio, mas logo se revelava rico em perícia e estratégia
conforme os desenhos intrincados eram escolhidos, tornando a seqüência cada vez
mais difícil.
− Sim, até que reste apenas um. Aí, ele enfrentará o campeão com as armas
que tem.
− Até a morte?
− Não. Precisamos de nossos guerreiros. Um não pode tirar a vida do outro.
− Brianna torceu a boca adorável. Era evidente que não gostava de nada daquilo. −
Cullum não permitiria que uma competição chegasse a tanto.
− E agora você ocupa essa posição de autoridade.
− Todos conhecem meus sentimentos a esse respeito. São os mesmos de
Cullum.
− E quanto a Malcolm de Drummond?
Tarek se concentrou no jovem escocês, que se sentava a uma mesa adjacente,
com uma caneca na mão. De vez em quando, se voltava para o lado do lorde, o
olhar faminto a se demorar em Brianna.
− Malcolm nunca foi superado, Tarek al Sharif.
Conforme o jogo continuava, ela explicava certas estratégias.
Malcolm de Drummond sentou-se com seus parentes, a se encher de cerveja,
cada vez mais circunspecto e mal-humorado, até que se levantou de repente, bateu
a caneca na mesa e fez um novo desafio:
− Não jogaremos por armas, mas sim por apostas mais altas. − Virou-se
para a mesa do lorde. − Decerto não tem objeções, milady.
− Não − ela respondeu, cautelosa.
− Então, quem aceitará o desafio?
− Eu jogarei com você. − As pupilas de McDrury luziam de ansiedade para
derrotar o campeão de Inverness.
− Jogarei também − anunciou Stephen de Valois. Fez-se um súbito silêncio.
Nenhum normando jogara até então. Todos encararam Malcolm.
− Aceito. − Malcolm se mostrou satisfeito. − Agora, será necessário mais
um para completar o quadro. − Fitou a todos até, por fim, fixar-se em Tarek. − O
que me diz, bárbaro? Você e seu homem contra mim e o meu. Normando contra
highlander. E por uma aposta alta.
Tarek sentiu a mão de Brianna enrijecer de súbita apreensão.
− Qual é a aposta?
Malcolm arqueou uma sobrancelha.
− Apostaremos Brianna.
Capítulo IX
Tarek saiu dos estábulos e subiu as escadas para as ameias. Embora fosse
tarde, Brianna deveria estar mais calma, e poderiam conversar. No entanto, não a
encontrou.
Resmungando, voltou para a muralha, determinado a encontrá-la. Na luz
prateada da lua, um lampejo lhe chamou a atenção.
Era uma pena lustrosa, pálida e brilhante, as plumas de ouro-claro reluzindo
ao luar. Acariciou a pena entre o polegar e o indicador. Era macia como cetim e
cálida ao toque, como se ainda conservasse o calor da criatura que a perdera.
Estudou o céu noturno e ouviu o rufar de asas, e recordou-se do pequeno e
bem-treinado falcão que um dia pertencera a lady Vivian de Amesbury. Tarek não
vira esses caçadores em Inverness, apenas o pombal arruinado no pátio, que vinha
sendo reparado. E aquela não era a pena de uma pomba.
Enfiou-a dentro da túnica. Perguntaria ao jovem Duncan sobre o tipo de
pássaro a que poderia pertencer.
Passara-se muito tempo desde que ela estivera naquele lugar antigo, e
Brianna não tinha certeza de que poderia encontrá-lo. Todavia, como se algum
instinto a guiasse, localizou o lago entre as brumas, à margem da floresta.
O lago reluzia conforme a luz prateada de um quarto de lua incidia na água, e
ela podia ver a própria imagem refletida na superfície.
O rosto que a olhou de volta não mais era o de uma criança esperando
ansiosa por um relance de alguma criatura aquática imaginária que surgisse das
profundezas. O que viu a espantou: feições emolduradas por cabelos de ouro-claro,
que caíam além dos ombros em desalinho, e olhos que a encaravam, assombrados
por visões daquilo que não conseguia entender, além de uma profecia da infância
que a atormentava. Não eram seus olhos, mas os olhos de alguém mais.
Já os vira antes, em sonhos. Pertenciam a uma bela mulher que a chamava,
dizendo-lhe que era hora de se levantar.
− Mamãe? − Brianna murmurou.
A superfície da água arrepiou-se como se em resposta. Então, mais uma vez
ficou lisa como vidro, refletindo a pálida luminosidade da lua e as folhas da
sorveira-brava cujos galhos se penduravam sobre a beira do lago.
− Uma folha, duas folhas, três folhas... − ela recordou as palavras antigas,
esquecidas até então.
Apanhou três folhas da sorveira-brava e comprimiu-as entre as palmas.
Depois, ajoelhou-se e estendeu as mãos, palmas unidas, sobre as águas ainda calmas
e brilhantes, ao mesmo tempo que voltava os pensamentos para dentro,
procurando aquele lugar íntimo no fundo da alma.
Conforme a porta do passado se abria, Brianna deixou que uma folha caísse
no lago. Quando flutuou, ela repetiu as palavras antigas:
− Flutua, folha, folha de verde vívido, ajuda-me a ver o que está escondido.
Quando a primeira folha foi para longe, Brianna soltou outra, repetindo a
cantiga. Em seguida, liberou a terceira, a murmurar o encantamento.
Cada folha deslizou na mesma direção da anterior, como se guiadas por
alguma corrente invisível, fazendo ondular a água em círculos concêntricos até que
um círculo sobrepunha-se ao outro.
Ela olhou, incrédula, para o padrão perfeito, pois reconheceu-o de imediato,
embora mal fosse visível na água.
Os dois círculos expandiram-se até que tocaram as margens, o centro
sobreposto como uma abertura no coração dos círculos juntos. Impulsionada por
poderes desconhecidos, Brianna estendeu a mão e repetiu:
− Revele-me o que está escondido.
A luz partiu-se em raios das profundezas e penetrou o centro dos círculos, a
revelar imagens do passado, presente e futuro: um homem gentil, bondoso, belo de
feições, com extraordinários olhos azuis e sorriso adorável. Depois foi substituída
por outra imagem de um guerreiro de cabelos negros que carregava a espada do
Islã. Tarek al Sharif. Enfim, outro guerreiro, de cabelos loiros, olhos tão gelados
como a morte, mãos poderosas fechadas em torno de um machado de guerra
gigante. O sangue ensopava sua túnica.
Ele ergueu a cabeça devagar e a encarou. Mardigan. E, diferente de qualquer
sonho, Brianna sentiu que ele estava muito próximo.
Um frio súbito a dominou, envolvendo-lhe o coração. A superfície do lago
escureceu. A abertura no centro dos círculos sobrepostos fechou-se conforme a
visão desaparecia. Porém a certeza da proximidade de Mardigan permanecia, e
intensificada.
Brianna ergueu a cabeça tentando captar alguma mudança no odor e no som
da floresta circundante. Sentidos aguçados, virou-se quando uma sutil corrente de
ar trouxe um cheiro que não estava lá antes: era de homem, ardido de suor, de
sujeira, dos restos azedos de comida e o fedor de sangue.
Os pêlos se eriçaram em seus braços e na nuca. O coração disparou. Os
homens de Mardigan se encontravam por perto e bem escondidos, onde não
poderiam nunca ser encontrados. Confundiam-se com o terreno e se mesclavam às
redondezas. E se esquivavam da captura com mestria.
Brianna seguiu até a borda da mata. Seus sentidos a avisavam do perigo e,
contudo, não poderia partir até que soubesse o exato local onde se escondiam
Mardigan e seus homens. Por fim, através da densa cobertura de árvores,
encontrou-os.
Armaram o acampamento na base de uma rocha que aflorava do solo, bem
protegidos contra qualquer ataque de surpresa. Vinte soldados se reuniam em torno
de uma fogueira, os restos de uma caça ardendo num espeto. O fedor de corpos
sem banho impregnava a noite, o suor masculino a recender da batalha recente,
mesclado a um cheiro cru e animal de sexo.
As risadas eram estridentes, a linguagem, obscena. Um deles arrastava uma
jovem. Uma marca vermelha se espalhava pela face da mulher, e parecia aturdida.
Tinha o corpete do vestido aberto. Parecia atordoada e não fez nenhuma tentativa
de cobrir os seios. Suas saias estavam manchadas, e os cabelos, cheios de folhas e
gravetos.
− Ei! É minha vez com ela!
Mardigan, sentado, cortava um pedaço de carne do espeto.
− Talvez você quisesse ser o primeiro a prová-la − alguém debochou do
companheiro, numa caçoada;
− É minha vez! − reclamou o companheiro, zangado −, e não ligo para seus
restos.
Mardigan levantou-se.
− Parem! − Com a espada na mão, separou-os e jogou um dos homens
muito perto do fogo. − Não podemos atacar os escoceses se brigarmos entre nós!
O próximo que abrir a boca sentirá o amor de minha espada!
Lançou a arma de lado e agarrou a mulher. Em vez de levá-la para longe,
como os outros tinham feito antes, jogou-a sobre o leito de peles ao lado das
labaredas. Quando ela protestou baixinho, ele a esmurrou e a comprimiu no chão,
com a intenção de possuí-la na frente de seus homens.
Quando Mardigan puxou as saias da mulher para cima, sobre os quadris, um
grito agudo chegou até eles, silenciando as gargalhadas e os comentários boçais dos
invasores, em meio a um frenesi de asas poderosas e presas afiadas.
Mardigan se virou, e aquelas garras enterraram-se em sua face, abrindo a
carne até o osso. Ele saltou para o lado.
− Corra! − Os pensamentos de Brianna ligaram-se aos da moça,
sobrepujando o sofrimento e o estupor. − Escape enquanto pode!
Lenta para reagir, com o corpo machucado e sentindo muita dor, a mulher
lutou para ficar de pé. Olhou pelo acampamento, à procura de quem falava com
ela.
− Corra! Para a floresta. Eu a encontrarei! − Brianna assegurou. − Mas você
precisa ir agora.
Com o rosto a escorrer sangue, Mardigan berrou para seus homens:
− Matem essa criatura!
Caçador experiente, o falcão passou mais uma vez sobre eles, sua mira
infalível ao retalhar o lado da cabeça de outro soldado, arrancando-lhe a orelha. O
sujeito rolou pelo chão, comprimindo o ferimento.
− A mulher! − outro gritou. − Fugiu para a floresta! Pragas e gemidos
acompanharam o falcão, que também fugiu para a mata. Seguiu o ruído da jovem
pelos arbustos e galhos pendentes e voou para perto uma vez, mas ela se assustou e
mudou de direção, apavorada com aquelas garras mortais.
Chegou à colina, o som de seus perseguidores não muito longe, atrás dela.
Escorregou pelo pequeno declive rumo a um reluzente lago.
Brianna a viu quando chegou à margem. Agarrou-a pelo braço com uma das
mãos, e com a outra lhe tapou a boca. Ela arregalou os olhos de susto e começou a
se debater.
− Não grite! − avisou Brianna. − Não vou machucá-la. A moça ofegou,
espantada, quando Brianna a soltou.
− Foi você que eu ouvi... Mas não vi ninguém. Onde se escondia?
− Perto, na floresta. Temos de sair daqui, ou eles nos encontrarão. − Puxou
a desconhecida para trás de uma árvore caída à beira do lago e cobriu os ombros
dela com seu manto.
− Você foi ferida!
Brianna limpou o sangue dos dedos.
− Não é nada. − E fez um gesto para que a jovem se calasse.
Agacharam-se juntas atrás da árvore caída, ouvindo a aproximação de
Mardigan e seus homens. A neblina começou a subir da superfície brilhante do
lago, espessou-se e tornou-se mais densa, cobrindo tudo, empanando a visão.
Thomas a esperava nas ameias quando Brianna voltou, no momento em que
a aurora surgiu no horizonte, os pensamentos a se ligarem aos dela, com
preocupação.
− Você esteve no local antigo.
Ela estava com frio e exausta, e apoiou-se contra o ombro largo do amigo,
para lhe contar do acampamento de Mardigan na floresta e da mulher que trouxera
de volta para Inverness, uma sobrevivente de um ataque a uma vila, onde vira a
família inteira ser assassinada. Brianna demorara a retornar por não querer deixá-la
sozinha.
Agora, a jovem, Enya, esperava do lado de fora do portão, nos jardins.
− É preciso que todos acreditem que ela me informou dos assaltantes,
Thomas. − Diante da expressão cética do amigo, ela emendou: − Enya é grata por
estar viva, e não me trairá revelando que fui eu quem a encontrei no acampamento.
Dirá a todos que escapou.
Brianna sonhou que seguia para o lago. Era impulsionada por aquela
sensação inconfundível, como se fosse guiada por algum poder maior.
Encontrou-o, envolto em bruma. No sonho, estendeu a mão sobre a
superfície. Como antes, dois círculos entrelaçados surgiram num padrão infinito,
com o poder da luz ainda mais forte onde se sobrepunham.
Suas visões e seus sonhos sempre a levavam para aquele lugar. Estava
conectada a ele, por razões que não compreendia. A única coisa que sabia era que
as respostas que buscava se encontravam ali.
Concentrou-se na luz, sentindo seu calor a se infiltrar por seu corpo, os raios
dourados a luzir em torno de sua mão e depois subir pela extensão do braço para
dentro do corpo, queimando seu sangue e invadindo sua alma.
O céu explodiu com a luz de um bilhão de estrelas que se uniram num único
ponto de luz poderoso que abriu a superfície reluzente dos círculos concêntricos
para revelar um portal na água. Por instinto, ela foi atraída para lá. Sentiu que era
aquilo que procurava. Além do portal, encontraria as respostas.
A luz tremeluziu. Então, pareceu fenecer, o portal desaparecendo conforme
uma escuridão crescente ia buscando pela luz, afogando-a. A superfície do lago
também escurecia. Borbulhou e fervilhou, distorcendo os círculos até que também
sumiram.
− Não! Espere! Não vá! Eu preciso saber. Quem sou eu? Por que tudo isso
está acontecendo?
Era apenas outro sonho. Então, uma voz a chamou em seus pensamentos,
querida e familiar, como um guia para o mundo real.
− Fique tranqüila, menina. Está a salvo agora. Nenhum mal irá lhe
acontecer. Eu estou aqui.
Brianna acordou e estremeceu. Seu corpo lutava para se livrar de uma
fraqueza e letargia que a puxavam como dedos invisíveis, recusando-se a deixá-la
retornar ao mundo consciente.
− Thomas?
− Sim, menina.
− Onde estou?
Brianna viu a muralha recortada de ameias e sentiu a pedra fria do passadiço
sob os pés. Na noite anterior, trancara-se no quarto por trás da porta recém-
colocada.
− O que está acontecendo comigo? O que significa tudo isso?
Thomas apertou-a nos braços, tentando confortá-la como fazia quando ela
era criança. Porém, a menina tornara-se uma mulher atormentada por
pensamentos, sensações e lembranças que não compreendia.
− Calma, Brianna. Fique tranqüila. Você dormirá agora, em paz, sem ser
perturbada por nada.
Thomas sabia que os sonhos voltariam de novo. Puxou o manto em torno
dela e franziu a testa ao ver a marca no ombro esquerdo, onde o decote do vestido
escorregara. Eram dois círculos perfeitos, sobrepondo-se um ao outro, num
símbolo antigo.
Tomou-a no colo e carregou-a para baixo das ameias, pelo pátio, conforme a
aurora pincelava o céu de cores, e depois para cima, pela passagem escondida até o
dormitório.
Deitou-a na cama. Brianna já mergulhara num sono profundo que nenhum
sonho poderia perturbar, ao menos por algum tempo. Era sempre assim.
Um raspar suave à porta chamou-lhe a atenção. Zangado, Thomas abriu-a,
esperando ver a prima de Brianna, Gillie. Ela se tornara como uma sombra para a
patroa nas semanas que se passaram desde que os guerreiros partiram. E nunca
perdia a oportunidade de fazê-la saber da intenção de se tornar amante de Tarek al
Sharif.
Não era Gillie, porém, mas Enya, a quem a patroa resgatara na floresta.
Ela não fez perguntas. Apenas aceitou o que não conseguia entender ao
passar por ele e ir até a cama, ajeitando as cobertas de pele em torno de Brianna.
− Ficarei com ela. − Então, Enya o fitou e sorriu.
As linhas se suavizaram em torno da boca de Thomas, e ela o encarou com
ternura.
− Aposto que não pregou os olhos enquanto esperava nas ameias. − Não
esperava resposta, pois já sabia da mudez dele. − Vá e descanse um pouco. − Sua
voz assumiu a dureza do aço. − Devo a ela minha vida. Nenhum mal lhe
acontecerá enquanto eu puder respirar.
Thomas fitou a porta. Enya compreendeu o significado ao seguir a direção
do olhar.
− Sim, colocarei a tranca depois que você sair. Aquela prostituta fedida não
entrará aqui.
Satisfeito porque sua patroa ficaria em segurança, Thomas voltou-se para
sair. Enya o seguiu até a soleira e pousou a mão em seu braço.
− Você é um homem gentil e leal, Thomas. Serve sua patroa muito bem.
Desacostumado a receber afeição, a não ser de Brianna, ele puxou o braço. E
viu a tristeza no semblante de Enya.
− Sim. Como os outros, você pensa que não sou melhor que Gillie, depois
do que os assaltantes fizeram comigo.
Ele sentiu como se uma faca se enterrasse entre suas costelas. Nada o
preparara para o espírito indomável de Enya, para a lealdade feroz que dedicava a
sua patroa ou a gentileza que tinha para com ele. Assim, respondeu da única
maneira que poderia: afagou-lhe o rosto com a mão calosa.
Os olhos de Enya se iluminaram de surpresa com o gesto doce. Colocou os
dedos sobre os dele.
− Você é maravilhoso, Thomas. Tão bom quanto qualquer lorde ou rei.
Ele enrubesceu, pois ninguém nunca dissera algo semelhante a seu respeito.
Ou pelo menos daquele jeito.
Ainda mais confuso, Thomas saiu e parou do lado de fora apenas o tempo
suficiente para ter certeza de que Enya colocara a tranca.
− Beba tudo − Enya disse com firmeza ao levar a taça de metal aos lábios de
Brianna.
Ela pestanejou e cerrou os dentes. Sua cabeça latejava, a dor a pulsar nas
têmporas. Cada som, o raspar das cobertas ao serem puxadas, o chilrear de um
pássaro no vão da janela, o chiado do fogo na lareira, era amplificado cem vezes
para seus sentidos aguçados. Era sempre assim depois de acordar de um de seus
sonos profundos.
A tisana quente ajudou, acalmando os músculos, doloridos, aquecendo-lhe o
sangue, aliviando a dor de cabeça, e ela, por fim, conseguiu erguer as pálpebras.
Suas emoções estavam à flor da pele. Ao meio-dia, não fez a refeição com os
outros no salão, mas buscou a solidão dos jardins, onde brotos e folhas das
semeaduras que Mirren fizera no meio do inverno surgiam da terra em busca do
calor do sol.
Ao redor, o som da construção da robusta muralha que aos poucos se
fechava em torno de Inverness, e que também deixaria para fora seus inimigos.
Entre os operários achavam-se soldados normandos e guerreiros escoceses,
que se revezavam nas muralhas para montar guarda. O medo de ataque estava
presente na mente de todos, com um terço dos homens ausentes.
Brianna ouviu o primeiro grito das muralhas. Cavaleiros se aproximavam de
Inverness. Uma palavra fez nascer o temor instintivo com que ela reagiu.
Cavaleiros...
Correu para o quarto para se arrumar. Foi quando o jovem Duncan entrou
correndo e anunciou que Tarek e os outros chegavam aos portões. Seus olhos
brilhavam, porém mantinha a expressão séria com as notícias que trazia.
− Muitos foram feridos, milady. Brianna agarrou-o pelo braço.
− Quem?
− Vários de nossos parentes, e os guerreiros normandos também.
− Duncan, ache a curandeira e mande-a para mim.
O menino se preparava para reclamar de ter de fazer uma jornada até a vila
naquele momento, quando Brianna disse com veemência:
− Agora! Os feridos precisarão dela. Duncan obedeceu, embora
resmungando. Brianna encontrou Thomas no salão.
− Coragem, patroa.
Ela, porém, não se sentia corajosa. Apavorada, desceu correndo os degraus
do salão e cruzou o pátio, onde os escoceses e normandos se reuniam em torno
dos recém-chegados.
O povo do castelo também foi para lá, esposas, namoradas e crianças à
procura de seus entes amados, Ian, que permanecera em Inverness em vez de
retornar a seus domínios, sobreviventes de outras vilas e mulheres que tinham
criado laços de afeto entre os cavaleiros normandos.
Muitos daqueles homens já tinham desmontado e ajudavam os feridos a
apear. Brianna viu então um animal de longas pernas e bela ossatura. A égua árabe!
E os cabelos castanhos do jovem Duncan, que saudava o cavaleiro a despeito de
suas ordens para que fosse buscar a curandeira.
Naquele momento, porém, Brianna não se importou com a desobediência,
pois os cabelos do cavaleiro ao lado do garoto eram negros como as penas de um
corvo, longos e amarrados atrás com uma tira de couro. E a mão estendida para
saudar o menino era bronzeada pelo calor do sol.
− Milorde!
Um grito se destacou entre os demais. Uma voz feminina, cheia de excitação
e familiaridade, como de alguém que esperasse o retorno de um amante. Era Gillie.
A prima de Brianna abriu caminho, empurrou Ducan de lado e ficou na
ponta dos pés, para enlaçar o pescoço de Tarek. A boca ansiosa encontrou a dele
num beijo que era muito mais que um cumprimento.
Uma dor inesperada atingiu o coração de Brianna e, por um momento, ela
não conseguiu nem mesmo respirar. Assim, retornou de imediato para o salão.
Encontrou Thomas nos degraus.
− Há muitos feridos, patroa. Muitos não retornaram. Brianna se virou e
focalizou cada guerreiro.
− Malcolm! − exclamou, quando não o viu. Brianna o encontrou entre
aqueles que tinham sido tirados dos cavalos e carregados para o salão. Ao ser
levado pelos degraus, pelos amigos, com o pai do outro lado, sua mão procurou a
dela.
− Ele salvou minha vida.
Diante do espanto de Brianna, Malcolm sorriu.
− Mas, por um momento, pensei que ele iria me matar.
E levaram-no para onde Enya, Anne e a jovem Nel acomodavam os feridos,
de modo que ficassem confortáveis até a curandeira chegar.
− Brianna?
Aquela voz lhe assombrara os sonhos, a lembrança de seus toques lhe
excitara os sentidos. Ela acreditou que bastava saber que Tarek estava a salvo, ainda
mais depois de tê-lo visto com Gillie. Porém, naquele momento, soube que não.
Quis se voltar ao mesmo tempo que quis correr. No entanto, não havia
como escapar das coisas que ele a fazia sentir.
− Brianna...
O som de seu nome, rouco na garganta, a fez estacar. Seu olhar encontrou o
dele, ardente, cheio de incontáveis emoções da batalha passada e daquela que ainda
haveria entre eles.
Tarek a puxou. Suas mãos fortes correram pelos cabelos de Brianna, os
dedos a se emaranharem nos fios quando ele lhe ergueu a cabeça para beijá-la.
Sua boca era do mesmo modo ardente, a forçar a dela para que se abrisse, a
língua a escorregar pelos lábios trêmulos para se enterrar entre eles com um calor
fervente.
Era isso o que assombrara seus sonhos e cada momento acordada, o prazer
espantoso, doce, sensual da junção física que prometia muito mais.
Brianna tentou se agarrar à imagem de Gillie a beijá-lo, pois a raiva seria uma
arma contra Tarek, mas descobriu que não era capaz.
A ira desapareceu sob o assalto do calor daquela língua a se enroscar na sua,
das respirações que se mesclavam, do poder possessivo daquelas mãos em seus
cabelos.
− Brianna...
− Milorde, por favor...
Tarek soltou-a devagar. Quando ela se voltou para correr para as escadas, ele
a deteve.
− Você será uma esposa para mim de todas as maneiras, Brianna.
Ela se recusou a encará-lo.
− Por favor, milorde, os feridos precisam de mim.
Ele a deixou ir, mas tornou a afirmar, ao vê-la fugir pelas escadas:
− De todas as maneiras.
Capítulo XIII
Brianna emergiu aos poucos do torpor do sono pesado. Fora despertada por
sons que vinham do outro lado do cortinado da cama.
Remexeu-se, hesitante, no casulo quente de peles, tentando discernir o ruído.
Era de água escorrendo, misturado ao murmúrio de vozes:
− Há mais alguma coisa que eu possa trazer, milorde? A névoa da lembrança
clareou ao ouvir a voz de Tarek:
− Não, isso é tudo. Boa noite, Enya.
E quando as recordações brotaram, seu corpo se aqueceu ao pensar nas
horas passadas. Puxou uma pele espessa contra si, e os cortinados foram
empurrados para o lado.
− Vá embora! − protestou, ao se enterrar mais fundo nas peles macias, presa
ao torpor sensual do sono.
− Não foi isso o que me pediu pouco tempo atrás. − Tarek sorriu.
Sua mão afundou entre as cobertas, à procura de um tornozelo delicado que
desaparecia sob a borda da pele. Começaram um jogo de gato e rato pelas várias
camadas dos cobertores, até que ela teve de buscar por ar, quando ele, por fim, a
comprimiu entre os braços e os quadris, e a tirou da cama.
− Não! − Brianna reclamou, aconchegando-se contra ele. − Não pode ter
amanhecido ainda...
− Não mesmo. Mal passa da meia-noite.
A voz a reverberar no peito sob a face de Brianna provocou suaves arrepios
de prazer ao longo de suas terminações nervosas.
− Sendo assim, por que me acordou?
− Não o fiz. Você me acordou. Ou, para ser mais preciso, foi seu estômago.
E não posso tolerar uma esposa com um estômago roncando. Brianna ergueu a
cabeça, os olhos verdes a espiá-lo por trás de um véu de cabelos loiros que se
espalhavam pela testa.
Tarek roçou os lábios nos dela. Sem demora, porém, afastou-a dele, as peles
a deslizar pelo glorioso corpo nu, e a colocou numa larga barrica de madeira que
fora trazida da lavanderia. Em vez de camisas, lençóis e sabão de soda, estava cheio
de água limpa e fumegante. Todas as exclamações de protesto de Brianna
morreram num gemido deliciado.
− Como convenceu a lavadeira a ceder uma das barricas?
− Eu a roubei − ele afirmou, divertido.
− Vai perder a cabeça por isso − ponderou Brianna, pois a reputação da
mulher era bem conhecida. − E umas poucas outras partes de sua anatomia
também.
− Vale qualquer preço, se consigo agradá-la.
− Ah, isso eu posso garantir! − ela exclamou, numa profusão de bolhas, ao
submergir e depois reaparecer, afastando os cabelos do rosto.
Tarek ficou a observá-la a brincar na água, feliz. Parecia uma foca
escorregadia que ele vira certa vez.
− Muitos crêem que se banhar com freqüência faz adoecer e morrer, sabia,
milorde?
− Acredita nisso?
− Se acreditasse, iria cheirar como uma cabra.
− Eu lhe asseguro, você está bem longe disso. E não tenho o hábito de
dormir com cabras.
− Mesmo assim julgou que eu precisava de um banho. Eu o desgostei,
milorde?
− Agradou-me muito, isso sim. − Sua voz soou baixa e rouca com a
lembrança da paixão que partilharam. − Fiquei preocupado que pudesse sofrer de
algum desconforto depois. Água quente pode ser muito calmante, se é que me
entende.
Brianna arregalou os olhos, como poças verdes de água, de indisfarçada
surpresa.
− Sim, pode ser. − E desviou-se, constrangida à menção das horas de sexo.
− Estou bem, pode acreditar, não sofri nenhuma perturbação.
Fez uma pausa e emendou:
− Só a princípio. − Erguendo o olhar, encarou-o com aquela honestidade e
franqueza que Tarek tanto valorizava. − E não foi de fato um desconforto. Na
realidade, milorde, você foi ótimo.
Foi a vez de Tarek sorrir ao olhar para a água e descobrir outro prazer: o de
admirar aquele corpo reluzente, a curva dos seios a boiar sob a superfície, os braços
delicados em torno dos joelhos, as outras partes escondidas.
Não lhe ocorreu que pudesse ser diferente, pois sempre fora assim com
todas as mulheres, mesmo a mais exótica criatura do Império Bizantino. Porém,
descobriu que o agradava mais ouvir Brianna dizer isso, assim como fora bom
ouvir os gemidos e gritos dela ao fazerem amor, com seus movimentos ansiosos é
inexperientes.
Os dedos de Tarek correram pela água onde as pontas dos cabelos
flutuavam, enroladas nos ombros de Brianna, e se curvavam sobre um seio.
Acariciaram aquela curva lustrosa. Ele percebeu a sutil mudança na respiração, que
falava da excitação de Brianna, agora familiar a ele, e do jeito que o círculo plano do
mamilo aquecido pela água saltava de repente e se endurecia em compasso com a
rigidez de sua própria masculinidade. Ambos já se conheciam com um instinto
físico.
Então, ele deslizou os dedos mais para baixo, ao longo da curva interna da
coxa até o ninho macio de pêlos, a acariciá-lo ternamente, enquanto se recordava
das horas passadas em que julgara não poder encontrar nenhum prazer maior do
que se perder no calor úmido daquele corpo.
Como se drogada pela suave intoxicação de calor e por aquele toque, Brianna
fechou os olhos e sua cabeça apoiou-se na beira da barrica. Suas pernas se
afastaram conforme se abria para ele e ficou a esperar, tensa de antecipação.
Porém a sensação que sentiu a seguir foi do doce calor úmido da boca de
Tarek a roçar a sua. E ela deixou escapar um som que combinava surpresa, prazer e
desapontamento.
− É muito cedo, Brianna − ele disse a ela com a firmeza da preocupação,
pois na verdade ansiava por possuí-la de novo. − Vamos esperar e depois descobrir
outras delícias um com o outro.
− Por quanto tempo? − ela insistiu, sentando-se com uma impaciência que
fez a água transbordar pela borda.
Tarek achou graça, pois ela parecia uma criança geniosa a quem tinham dito
que não teria mais bolos.
− Até que eu diga que foi suficiente. − Estendeu-lhe a mão.
− Por que é que você tomará essa decisão, quando se trata de meu corpo?
− Porque sou muitíssimo mais experiente em tais assuntos. Agora, deixe-me
banhá-la.
Ela arregalou os olhos.
− É assim entre homens e mulheres no Império Bizantino?
− Não. Em geral é a mulher quem banha o homem. E se lava depois, mas
nunca na mesma água.
− Por que não?
− Porque seria impuro.
− Então, por que vai me lavar?
− Porque... − Ele se afastou, para depois voltar com uma barra de sabonete
na mão e se ajoelhar ao lado da barrica. – Me agrada. Não creio que haja espaço
suficiente para dois aqui.
− Pode ficar bastante apertado.
− Duvido que você mantenha sua decisão sobre a próxima vez em que
faremos amor, se formos partilhar este banho.
− É provável que tenha razão. Agora, vire-se.
O sabonete tinha um cheiro suave de especiarias, exótico e familiar, pois ela
o sentira antes, nele.
Tarek ensaboou-lhe os ombros, as costas e os cabelos. A seguir, o pescoço e
o colo, e ambos descobriram o prazer da espuma em outros lugares.
Brianna sentiu que os dedos dele demoravam-se em seu ombro.
− É uma marca muito incomum − ele comentou, os dedos quentes a
correrem pela marca na pele, que não era maior que uma moeda pequena.
Tinha uma cor rosada e a aparência de dois pequenos círculos, um
sobreposto ao outro. Havia outras marcas muito menores do lado de fora dos
círculos.
− Nasci com isso − ela explicou, e sentiu um aperto no peito por ele não
dizer nada. Virou-se para fitá-lo. − Existem aqueles que acreditam que tais marcas
são um sinal do mal.
Será que Tarek acreditava naquelas coisas? O fato era que ela pouco sabia
sobre aquele guerreiro moreno que agora era seu marido e lorde de Inverness.
Ele percebeu-lhe a hesitação na voz, viu a incerteza em seus olhos, ao
mesmo tempo que os ombros se endireitavam e a cabeça se erguia, altiva, como se
Brianna o desafiasse.
Tarek sorriu com ternura.
− Há também aqueles nos impérios orientais distantes
fazem de propósito essas marcas nos corpos como adorno, como prova de
seu status ou cultura. Vi tais enfeites cobrindo o corpo inteiro. Grandes desenhos
elaborados... − Apontou para o padrão do cortinado. Muito parecidos com uma
tapeçaria. E há culturas que reverenciam aqueles que nascem com tais marcas, pois
são os escolhidos.
− Escolhidos?
− São assim marcados, é o que se crê, porque foram escolhidos pelos deuses
para serem líderes ou governadores espirituais acima dos outros.
− Julga a marca ofensiva?
Havia quase um desafio na voz de Brianna, como se ela o confrontasse.
Tarek reprimiu um sorriso. Sua mulher era linda, orgulhosa, e tinha uma
inteligência aguda que não se dobrava a nenhum homem. "Pelo Profeta!" Ela lhe
instigava o sangue como nenhuma outra. Uma criatura etérea que era tão forte
como a mais fina lâmina de aço.
− Talvez eu julgasse ofensivo se fosse a marca de um porco selvagem.
− Porco selvagem? − Brianna fungou de desgosto. − Não creio que eu
gostaria disso também.
− Nem eu. − O sorriso dele se alargou. − Eu iria me distrair olhando para
um porco selvagem em seu ombro ao fazer amor como fizemos.
As faces de Brianna se coloriram de rubor e ficaram quentes, assim como
outras partes, quando ela se lembrou da maneira como tinham se unido, os ombros
de Tarek comprimidos contra os dela, sua mão a lhe descer pelo ventre para abri-la
e penetrá-la de modos inesperados e deliciosos.
Mesmo naquele momento, seu ventre estremecia e se contraía com a
recordação daquela junção, e Brianna ficou a imaginar quanto tempo era "muito
cedo". Não sentia nenhuma dor, a não ser nos músculos usados de maneiras a que
não estavam acostumados. Não era desagradável, mas uma gostosa fadiga que a
fazia se espreguiçar e antecipar a próxima vez com uma ansiedade sensual. Ele só
poderia estar brincando. Porco selvagem, ora essa!
Esborrifou água em Tarek, que lhe escorreu pela túnica, pela cintura e
reluziu nos cabelos negros que caíam até os ombros. Brianna gostou da brincadeira,
pois desviava sua mente de outros assuntos. Agora sabia pelo menos que era capaz
de sentir o que uma mulher sente quando se liga a um homem.
Seu banho esfriou. Tarek a fez ficar de pé e a ergueu da barrica. A água
produziu poças no chão.
Tarek a enrolou numa grande toalha de linho e mordiscou-lhe o ombro nu.
Brianna arquejou e o encarou. Seu olhar não era de ultraje ou dor, porém de um
desejo selvagem e poderoso. Parecia que mesmo o gesto mais travesso tinha um
efeito devastador em seus sentidos.
Ele virou-a para o fogo do braseiro, ordenando:
− Sente-se e se aqueça antes que morra de frio. Juro que nunca conheci uma
terra tão gelada. Não posso entender como alguém sobrevive aqui.
− Sobrevivemos muito bem, milorde. O frio fortalece o corpo. É que seu
sangue é muito fino.
− Não há nada de errado com meu sangue − assegurou-lhe, e sentiu as veias
queimarem ao vê-la se enxugar.
Depois aproximou-se e lhe abanou os cabelos perto do fogo, secando-os
entre os dedos, a exótica fragrância do sabonete em cada mecha dourada.
Apanharam a comida que Enya trouxera da cozinha e comeram diante do
fogo.
− Fale-me de seu lar. − Brianna mordeu uma fatia de pão com mel.
− Não tenho lar. − Tarek jogou mais lenha no braseiro, e as achas se
acenderam.
− Todos têm. Embora Cullurh e Mirren não fossem meus pais verdadeiros,
encontrei um lar aqui com eles, tão bom quanto qualquer um que eu pudesse
esperar. − Sua memória se desviou para algum outro lugar vislumbrado em visões e
sonhos, e outros rostos gentis e amorosos. Então, sumiram depressa.
Tarek franziu a testa e remexeu os carvões.
− Um lar é um lugar cheio de amor, com uma família, com pessoas que se
importam umas com as outras. Posso ver isso entre seus parentes, Brianna. São
todos ligados por uma lealdade forte, e um profundo amor por esta terra e Pelos
laços de sangue. Nunca experimentei tal coisa.
Ela estremeceu, a despeito do calor no quarto, ao pensar que ele nunca tivera
aqueles laços profundos que significam amor, segurança e felicidade.
− Mas você teve mãe e pai, lógico.
Tarek apertou o atiçador como se fosse uma espada.
− Sim − sua voz saiu baixa e tensa da garganta. − Todos têm mãe e pai.
O jeito como ele pronunciou a última palavra deixou claro que não sentia
nenhum amor por aquele que o gerara.
Então, Tarek contou a Brianna sobre Asmari, a filha favorita de um rico e
poderoso emir, e a caravana nupcial que a levava, aos quinze anos, acompanhada
pela velha tia, para Antioquia, ao encontro do jovem com quem se casaria. Falou
do ataque à cidade pelos invasores nórdicos, que saquearam e devastaram a região
ao redor, levando a filha do emir cativa.
− O emir pagou o resgate, pois amava Asmari, mais do que seu primogênito.
Porém ela fora desonrada.
Brianna ficou calada. Não havia nada a dizer.
− O nórdico que a raptou a violentou. Embora tivesse retornado para a
família, o casamento planejado para ela não era mais possível. − Tarek voltou-se, as
belas feições tensas com a frieza do ódio que se refletia em seus incomuns olhos
azuis, a marca do pai que o gerara.
A dor da vergonha de Asmari era ele mesmo. Brianna estendeu a mão, seus
dedos a se entrelaçarem nos dele.
− Não foi culpa dela. Asmari era inocente, Tarek.
− Jamais a culpei, Brianna. Houve outros, contudo, que a culparam.
− Como poderiam?!
− Alguém da família disse que ela deveria ter resistido. Mesmo que
significasse tirar a própria vida para impedir a vergonha que trouxe para todos eles.
Brianna se arrepiou. Não era tola. Muitas vezes aquele era o resultado da
guerra. Muitas escocesas sofreram coisa semelhante nas mãos de Mardigan e seus
homens.
Pensou em Enya, que enfrentava com coragem os soldados em Inverness. A
princípio, eles não a tratavam melhor do que a Gillie, que se entregava sem pudor a
qualquer guerreiro que a quisesse. Diferentemente dela, Enya conquistou respeito
com seus modos gentis e suas habilidades de cura, mantendo-se à parte e deixando
claro tanto em palavras como em atos que não seria tratada como uma prostituta.
O coração de Brianna condoeu-se por Asmari e por seu sofrimento. Doía até
mesmo pela criança que Asmari gerara, que era a mais inocente vítima de tudo.
A voz de Tarek soou baixa e cheia de sofrimento ao continuar a falar da
mãe.
Brianna gostaria de impedi-lo, de lhe dizer que não era preciso saber de tudo,
porém sentiu a necessidade maior de Tarek em desabafar o fluxo amargo de
palavras que não podiam ser contidas.
− Não muito tempo depois de seu retorno à família, Asmari percebeu que
iria ter um filho. Um bastardo, que traria mais vergonha sobre sua família.
Aquilo foi dito com tal frieza e auto-recriminação que Brianna sentiu
vontade de chorar.
− Asmari foi mandada para as colinas para viver com outras pessoas até que
seu filho tivesse nascido. Quando voltou para casa, não teve permissão de trazer a
criança, Pois isso seria um lembrete constante de sua desgraça. O bebê foi dado a
um mercador em Antioquia para que sua esposa o criasse, pois o homem tinha um
débito de honra para com o emir. Eles não tinham filhos, e assim poderiam aceitar
a criança como deles próprios. − Tarek fez um esgar. − O cão mais sarnento das
ruas receberia mais gentileza de um estranho que o menino recebeu deles.
Brianna condoeu-se por ele falar do "menino" como se fosse alguém que
conhecera, em vez dele próprio.
− A criança foi bem educada pelo emir, que fez disso uma condição ao
entregá-la para eles. Contudo, havia coisas que a riqueza e o poder do emir não
poderiam comprar: o amor de família e aceitação.
− E quanto a Asmari? Imagino que ela devia querer manter o filho.
Tarek assentiu, a expressão mais suave.
− Disseram-me que queria, sim. Não lhe foi dada uma escolha, entretanto.
Asmari foi ver o mercador numa visita a Antioquia, com o pretexto de comprar
seda. Eu a vi uma vez. Lembro-me de que era muito jovem, com cabelos negros
reluzentes, e que chorou ao me entregar um pacotinho embrulhado que continha
dois presentes. Pediu-me que os guardasse sempre, pois eram de grande
importância. Não me lembro de nada mais sobre ela. − Sua voz soou cheia de
sofrimento e saudade.
− O que era o presente?
− Um era a pedra que dei a você no dia em que nos casamos. Fora dada a
Asmari por seu pai, e passada de geração a geração. O emir nunca soube que ela a
entregara a mim.
− Sua mãe deve tê-lo amado muito − Brianna murmurou, com um aperto na
garganta.
− Talvez, embora nunca falasse disso. Creio que era muito doloroso para ela,
pois, embora eu fosse filho de seu ventre, também era o filho de sua vergonha. −
Virou-se e fitou o fogo na lareira. − Quando eu tinha sete anos, Asmari se matou,
incapaz de continuar vivendo em desgraça.
Brianna ficou tão espantada por um momento que não conseguiu pronunciar
uma sílaba sequer. Então, por fim, indagou:
− Qual era o outro presente que sua mãe lhe deu? Tarek tirou um medalhão
de dentro da túnica. A peça luziu na palma de sua mão, esculpida com a cabeça de
uma criatura estranha.
− Um filho bastardo, uma vergonha com a qual ela não podia viver, e este
medalhão. Isso foi tudo o que ele deixou com minha mãe.
A amargura do ódio mais uma vez toldou-lhe a voz, e Brianna compreendeu
que ele se referia ao homem que o gerara.
Tarek tirou um segundo medalhão, idêntico.
− Encontrei este na clareira onde lutamos contra Mardigan e seus homens.
− É igual.
− Sim, é o mesmo.
− Acredita que pertencia a um dos invasores?
- É provável, ou a alguém que conhece meu pai. Uma marca assim é como as
cores do xadrez usadas por membros de um mesmo clã.
− E se o encontrar?
− Quando encontrar aquele patife, eu o matarei. Brianna não pôde suportar
a dor do ódio que ouviu em sua voz. Era fria e assustadora, e tornava Tarek um
estranho para ela depois da paixão que tinham partilhado. Pôs-se de joelhos, a
toalha enrolada em torno do peito, e com toda a gentileza tomou as faces de seu
marido entre as mãos, sem saber se ele iria empurrá-la.
Tarek não o fez, mas a encarou sem emoção alguma. Naquele instante,
parecia ter se tornado incapaz de sentir o que quer que fosse.
Brianna não podia lhe dizer que aquilo que ele sentia era errado, pois
compreendia bem. De muitas maneiras eles tinham semelhanças, pois os escoceses
eram também orgulhosos, e muitos tinham matado para vingar a desonra de seus
entes amados.
− Minha mãe adotiva, Mirren, perdeu quatro bebês ainda por nascer. Um
quinto filho viveu apenas por um ano e depois faleceu, vítima de febre. Certa vez,
Mirren me disse que havia coisas na vida que podem ser suportadas pela alma e
outras que não podem. Ela não suportava a perda de seus filhos, e assim, quando
vim para eles, ajudei a aliviar essa perda. Portanto, lhe digo que Asmari não fez o
que fez por não conseguir viver com sua vergonha. Se fosse assim, teria se matado
bem antes. Ela não podia suportar viver sem seu filho.
Tarek a olhou com uma intensidade de sofrimento tão profunda e íntima que
Brianna teve, de novo, vontade de chorar. Porém, com a dor, também luziu um
relance de esperança diante de uma possibilidade que ele não considerara.
− São apenas palavras... - Ou talvez a verdade?
− É como você vê, Brianna.
− É como eu sei. Existem situações que devem ser suportadas porque assim
precisa ser. Contudo, creio que a perda de um filho não poderia.
Um tumulto de sentimentos perpassou o semblante de Tarek.
− Você me faz ver as coisas com humildade. Ela sorriu com doçura.
− Não, milorde. Você não conhece a humildade. Tarek tomou-lhe as mãos
entre as suas e beijou-lhe as palmas abertas.
− Creio que talvez deva ensinar isso a mim, minha mulher, porque tem o
poder em sua mão delicada de me tornar o mais obediente dos servos.
− É mesmo? − Fitou-o com malícia, com um sorriso de soslaio. −
Obediente... em tudo?
− Em tudo o que estiver em meu poder lhe dar. − Sua língua correu pela
pele suave, arrepiando-a.
− Nesse caso, ordeno que faça amor comigo de novo, milorde, pois já se
passou tempo bastante. E sem dúvida isso está em seu poder.
Ela puxou a toalha que escorregou até seus joelhos, e então, de repente,
estava gloriosamente nua. Com uma repentina impetuosidade que falava da tristeza
e solidão do menino, bem como do poder do adulto, Tarek ergueu-a nos braços e
sem demora a deitou na cama. Ali, com uma força ardente mal controlada que vivia
a conflitar com a necessidade mais racional de ser gentil com Brianna, uniram-se
como o céu da meia-noite e o sol do meio-dia, o escuro sobre o ouro pálido,
quando ela o acolheu entre os braços e no calor incandescente de seu interior.
− Eu tinha razão. − Brianna suspirou conforme ele se movia sobre ela,
como bronze reluzente, a carne máscula a investir ereta e potente entre os corpos
entrelaçados. − Não há nada de humilde em você.
E deixou escapar um murmúrio rouco de paixão ao lhe envolver a cintura
estreita com as pernas, abrindo-se para ele, e, enfim, deixando escapar uma violenta
exclamação de lascívia quando Tarek investiu mais fundo dentro dela.
− Sim, milorde − Brianna sussurrou, arquejante, enlouquecida de volúpia,−
de fato estava em seu poder
Brianna não tinha certeza do que a acordara. O quarto estava quieto, a não
ser pelo fogo no braseiro, que estalava, os restos de uma acha de lenha no estrado
de carvões. Enrolou-se numa pele e foi até a lareira, para abastecê-lo com mais
lenha.
Logo as labaredas aumentaram, consumindo a lenha de pinho recém-
cortada.
Não havia nenhum movimento na cama, apenas o som da respiração
profunda de Tarek, que lhe despertava uma sensação de profundo deslumbramento
e ternura diante das lembranças das horas que desfrutaram. Descobrira nos braços
dele que era possível ser uma mulher de todas as maneiras. Tarek dormia, sua
respiração muito calma para um guerreiro treinado para estar alerta com a virada do
vento.
Conforme ela se voltou para o leito, a luz do fogo no braseiro que projetava
desenhos dourados nas paredes pareceu de repente vacilar.
As sombras cresceram, e a luminosidade se tornou cada vez mais débil.
Brianna tornou a se virar para a lareira, onde as chamas um momento antes
queimavam firmes e brilhantes, e agora pareciam se extinguir.
O presságio de alguma força malévola moveu-se por seus sentidos, como se
a escuridão penetrasse seus pensamentos e se esgueirasse por baixo de sua pele. E
Brianna soube que não estavam sozinhos. Alguma coisa ou alguém se encontrava
ali, naquele aposento.
Sentiu, à maneira das criaturas da floresta, com um profundo instinto, que
havia ali algo mau e perigoso, que se abateu sobre ela, sufocante, frio e fétido.
− Brianna? − A voz era abafada e distante, como se viesse de muito longe.
E depois soou mais perto, conforme ela se concentrava no som que a
empurrava de volta para o mundo de luz, calor e amor.
Estremeceu ao respirar fundo, aspirando o doce e pungente aroma de pinho
da lenha para os pulmões sufocados. Quando se moveu, experimentou uma letargia
nas pernas que desapareceu de repente. Era como se tivesse estado morta e naquele
instante, retornasse à vida.
− O que é? − Tarek perguntou, saindo de entre as cobertas.
Então seus braços a envolveram, quentes. Brianna, ao contrário dele, estava
enregelada, a despeito da pele em que se enrolara.
− Algo errado? Pelo Profeta, você está fria como gelo!
− O fogo se apagou − Brianna murmurou entre os lábios endurecidos, ao se
aconchegar à quentura de Tarek.
Ele puxou-a de volta para a cama, onde a cobriu com as peles quentes.
− Cuidarei para que não se apague de novo − disse Tarek, quando ela se
aninhou em seu peito e começou a se aquecer.
− Não se afaste − implorou.
− Apenas para pôr mais lenha no fogo, prometo. Depois, voltarei.
Ele atravessou o dormitório até o braseiro, que mais uma vez queimava com
força. Ajoelhando-se diante dele; Tarek colocou mais duas achas, para ter certeza
de que queimariam até o alvorecer. Na realidade, o quarto não estava frio demais,
como Brianna dissera. E ele estava nu.
Voltou para a cama. Encontrou-a debaixo de um monte de peles e puxou-a
para mais perto, com um medo sombrio no coração de que pudesse tê-la
machucado de alguma forma.
− Por favor, Tarek, só me abrace. Vai passar.
Londres
− Por quê? − Nos olhos de Brianna só havia dor, confusão e raiva. − Por
que não me foi permitido conhecer a verdade? Todos esses anos sabendo apenas
que eu não era como as outras garotas, os sonhos e as visões, a primeira
transformação...
Cerrou as pálpebras ao se lembrar da primeira vez e do terror daquela coisa
desconhecida que lhe acontecera. Avançou para Nínian.
− Os boatos e as superstições sobre tudo aquilo, o que as pessoas diziam...
Minhas próprias dúvidas. Fiquei apavorada tantas vezes. Pensei que devia estar
ficando louca. Se não fosse por Thomas... − Sua voz se elevou de novo, zangada.
− É justo essa a razão pela qual mandamos Thomas para ficar com você.
− Precisei da senhora − Brianna argumentou, outra vez perto de lágrimas
bem humanas —, mas não estava lá para explicar isso tudo para mim!
Nínian percebeu o quanto poderia ser dolorosa a verdade para ambas.
Aquela sua bela filha loira, a, não era nenhuma criatura tresloucada, nem dócil, mas
um ser voluntarioso, teimoso e tão veemente como Vivian.
− Eu estava lá, Brianna − Nínian afirmou, gentil, tentando acalmá-la com
seus pensamentos, mas descobriu-se logo bloqueada.
− Oh, não! Não serei controlada ou dissuadida a crer em outra coisa. Quero
toda a verdade. Toda!
− Eu lhe disse tudo, minha filha. Não acredita que você seria capaz de
aceitar as transformações se eu não tivesse estado lá a minha própria maneira para
guiá-la? − Prosseguiu então, quando Brianna pareceu considerar o que ela dizia: −
A transformação é seu poder especial. Não poderia ser retido ou escondido de
você. Somos parecidas nisso, minha filha − emendou, a entonação a se suavizar ao
pronunciar a preciosa palavra filha, com o conforto de que Brianna agora se
recordaria.
Porém, era um pequeno conforto. Brianna estava tão brava... Diria a palavra
que Nínian ansiava e precisava ouvir em resposta?
− Embora eu não pudesse estar sempre a seu lado, estou sempre ligada a
você. Por aqui. − Nínian colocou os dedos na testa. − E por aqui. − Pousou a mão
sobre o coração.
− Mas não me era permitido lembrar! − Brianna acusou. − A senhora e meu
pai me abandonaram! Achei que desistiu de mim porque não me queria.
− Abrimos mão de você para entregá-la aos cuidados de duas pessoas que a
amaram como se fosse sua própria filha e que deram suas vidas para protegê-la
porque nós a amávamos! Então, fui forçada a aceitar o pouco tempo que tínhamos
juntas, construindo uma vida de amor dos momentos roubados, a observar outros
receberem seu carinho e partilhar de sua vida como eu não podia! Nínian começou
de novo a explicar:
− Você não tem lembranças, mas eu me recordo de cada momento doloroso
e vazio, dos bebês que não pude segurar ou cuidar, dos beijos que nunca ganhei e
do vácuo silencioso das risadas infantis. − Lágrimas reluziram nos olhos dela.
− Lembrei-me de cada momento vazio e desejei não poder lembrar. Pois aí
talvez a dor pudesse ir embora.
Por mais que tentasse manter a raiva, Brianna descobriu que não conseguia.
Deu-se conta de que sua dor não era a única, nem talvez a maior. Estava tão
conectada a Nínian, a mulher de seus sonhos, agora que as lembranças tinham se
aberto, que sentiu o padecimento dela.
− Você não compreenderá até que tenha um filho seu − Nínian murmurou.
− Será a maior alegria e o maior tormento que irá conhecer.
− Quer dizer que é possível? − Brianna perguntou, a ira agora
completamente extinta, substituída por um anseio de esperança.
− O que é possível, filha?
− Ter um filho. Uma criança mortal. Viver uma vida mortal.
Naquele momento de vulnerabilidade, com ambas à beira do pranto, Nínian
sentiu a incerteza e o temor de Brianna.
− Seu amor por ele é forte. Irá precisar de tal amor para que está por vir.
Você é mortal, Brianna. Tanto quanto eu todas as minhas filhas também. Não gerei
um ouriço ou corvo. Pelo menos não da última vez que verifiquei.
Brianna sorriu por entre o choro.
− Mas talvez uma mula teimosa? − sugeriu.
Nínian achou graça.
− Sim, porém ela ficará bem quando se transformar em seu eu verdadeiro
outra vez.
Então o olhar de Brianna tornou-se sombrio.
− Está muito perto, não está? − Podia sentir a opressão do mal de que
Nínian falara, que parecia se amontoar nas paredes do quarto, comprimindo-se,
sufocando a luz das velas assim como tentava sufocá-las também.
− Sim, muito perto.
− E a única esperança é o Graal.
− Ele não deve se tornar um instrumento das Trevas. − Nínian ergueu a
mão. − Seja paciente, filha. Você possui o conhecimento do Graal como nenhuma
outra pessoa. Em tempo, a memória dele irá retornar.
E como saberei onde pode ser encontrado?
− Isso também lhe será revelado. Se tudo fosse conhecido de uma vez, as
Trevas poderiam roubar o conhecimento de você. Tal é seu poder que nem mesmo
eu poderia impedir.
− E quanto a meu marido?
Nínian sentiu o poder do amor de Brianna por Tarek, que a fazia ao mesmo
tempo forte e frágil.
− Ele é parte disso agora, e não pode escapar mais, tal como você. − Franziu
a testa ao olhar para as mãos torcidas de Brianna, tentando encontrar palavras para
as outras coisas que ela tinha de saber, mesmo que lhe causasse uma dor muito
própria dos mortais.
− O que é?
Nínian ergueu o olhar. Brianna sentira suas emoções. Era grande o poder
dentro de sua filha. Ninguém, inclusive Nínian, conhecia a verdadeira extensão
deles. Cabia a Brianna descobrir. Sua preocupação era que fosse como uma criança
mortal a quem é dado pela primeira vez um gosto de liberdade. Essa liberdade
tanto poderia ser uma dádiva maravilhosa como uma maldição devastadora,
dependendo de como fosse manejada.
− Há algo mais que a senhora não está me dizendo! Algo que já aconteceu!
− Muita coisa tem acontecido. − Suspirou, triste. − As Trevas vêm
ganhando força desde o primeiro encontro com sua irmã. Usam mortais para seus
próprios fins.
Brianna franziu a testa.
− Usa-os? − Então compreendeu do que Nínian falava. − Sim, os guerreiros
que foram transformados naquelas criaturas hediondas, mas com rostos familiares
daqueles em quem podíamos confiar.
− Isso mesmo. É uma transformação comum, bastante usada pelas Trevas,
pois é um meio para espalhar de modo insuspeitado seu mal entre os mortais, até
que seja tarde demais. − Viu o momento em que a filha compreendeu tudo.
− Houve outros que foram transformados − Brianna disse com repentina
certeza. − Aqui em Inverness.
− Sim filha.
− Gillie!
− Não foi difícil, pois as sementes do mal nasceram dentro dessa mulher.
Gillie estava aqui na noite em que seus pais adotivos morreram.
Brianna suspirou, agoniada.
− Ela traiu Inverness. Mas por quê? – Seu olhar procurou o de Nínian, mas
não foi preciso perguntar, pois a resposta chegou a ela com a rapidez de um
relâmpago. – A própria cobiça. Voltou-se para as trevas por causa de seu ódio por
mim.
− As trevas habitam as almas de determinados seres desde o momento em
que foram criados. Os anciãos ensinam que é parte da balança que deve ser
mantida no mundo mortal.
− Entendo. Gillie apostou em Mardigan. E ela está morta. − Porém seu
olhar melancólico vinha imbuído de um novo conhecimento. − Mas não por
Mardigan.
Novas lágrimas encheram seus olhos ao dizer uma única palavra:
− Malcolm...
E soube que seu amigo também perecera.
− Sim, filha. Ele descobriu sua traição e seguiu-a quando foi se encontrar
com Mardigan, nas horas em que você dormia e se curava dos ferimentos. Malcolm
era um verdadeiro amigo, muito leal.
Brianna sentiu que sua dor pela morte de Malcolm era igual à fúria pela
constatação de que ele fora assassinado pelas Trevas. Nunca mais iria compartilhar
de risadas com ele. Nunca mais ele a provocaria.
Um novo medo surgiu, forte e poderoso.
Ao senti-lo, Nínian meneou a cabeça.
− Você não pode proteger seu marido disso, filha. Nem impedir que ele seja
parte. Pelo que sua irmã me contou, Tarek acredita no sobrenatural, e não permitirá
que você vá sozinha na jornada que virá, pois irá precisar de sua força e coragem de
guerreiro. As Trevas não contavam com isso.
− Não arriscarei a vida de Tarek − Brianna disse com veemência, a teimosia
a voltar ao verde de seus olhos. − Eu morreria primeiro.
− O risco é dele, Brianna, e não há nada que possa fazer. Pois, se você
falhar, tudo estará perdido. Inclusive Tarek al Sharif e o amor que encontraram
juntos.
− Mas se um exército de guerreiros não pode enfrentar as Trevas, se meu pai
não pôde impedi-la e salvar o reino de Arthur, então como é possível a mim
encontrar o Graal?
− Sagacidade, verdadeira coragem e os mesmos meios que o senhor das
Trevas usa tão bem, minha filha. − As pupilas de Nínian reluziram. − Com ilusão,
é claro. A verdadeira arte de uma encantada.
− Diga-me o que eu devo saber, mãe.
Nínian chorou ao som daquela palavra que tanto esperara ouvir de sua bela
filha loira.
− Terá de iludir seu marido.
A ilusão o porá em perigo?
− Não. Irá protegê-lo, tal como o conhecimento que ocultamos de você a
protegeu.
− Onde está ela? − Tarek indagou, ao se voltar para Nínian. − Saí do quarto
faz duas horas e Brianna jazia quase à beira da morte naquela cama. Que truque de
magia é esse?
− Um necessário − Nínian explicou, muito calma, ao pousar a mão no braço
dele.
Tarek se afastou como se queimado pelo fogo.
− Pelo Profeta, não tolerarei seus truques!
− Seu deus não pode ajudá-lo nisso, Tarek al Sharif. Você jurou que ela não
iria sozinha.
− Já começou? − murmurou, de olhos estreitados. Nínian aquiesceu ao se
virar para uma ampulheta num suporte de ferro batido sobre a mesa. Um fio de
areia escorria da cápsula superior para baixo.
− O tempo encurta.
− Responda, Brianna está a salvo?
− Por ora, sim.
− Posso vê-la?
− Você irá acompanhá-la, pois a jornada deve começar. Então ele fez a
pergunta mais séria de todas:
− Irei perdê-la?
Só se você se perder.
Maldita seja, mulher! Não fale em charadas!
− Falo apenas a verdade. − Nínian olhou mais uma vez o medidor de
tempo. − Por mais de quinhentos anos, o Graal esteve oculto em segurança, até o
momento em que seu poder pudesse ser unido ao de Excalibur. Não houve
ninguém que conseguisse isso com Merlin banido para o mundo entre os mundos.
Não houve ninguém para desafiar as Trevas. Até agora. As Trevas usarão todo seu
poder para impedir que a Luz se junte ao Graal.
Seu olhar cravou-se no dele, com uma sombra de esperança.
− Ela tentará impedi-lo. Porém, você deve ser bem-sucedido. Brianna terá de
juntar seu poder com aquele do Graal. Se falhar no que estará diante de você
quando o último grão de areia escorrer, então tudo estará perdido.
Ele não compreendeu o que Nínian disse, mas acreditava nos poderes que
vira. E agora Brianna era parte disso, e o único meio de salvá-la era ajudá-la.
− Como me preparo para essa jornada?
− Você enfrentará três desafios para alcançar o Graal. Eles não podem ser
revelados de antemão, pois o risco de as Trevas discernirem e resolvê-los é grande.
Terá de ir de encontro a cada desafio. Se falhar em algum deles, o Graal será
perdido para as Trevas.
− Como pode ter certeza de que conseguirei cumprir tarefas com bom êxito?
− Não posso. Mas Brianna tem certeza. Ela confia em você. Enfrentará um
desafio de sagacidade, um de coração fiel e um de coragem. Deve encontrar os
instrumentos dentro de si mesmo para se defrontar com cada um.
− Posso levar minha espada?
− Por todo o bem que ela lhe fará, sem dúvida. Porém, a maior batalha que
irá enfrentar não pode ser travada com uma espada. − Ao acompanhá-lo até a
porta do quarto, ela explicou: − Há outros que viajarão com você. Esperam no
pátio. Sei do medalhão que usa, Al Sharif. Brianna me falou dele. Porém, eu lhe
darei outro, um talismã para trazer boa sorte.
− Boa sorte? − retrucou com ironia. − Pensei que uma encantada não teria
necessidade de coisas como amuletos de boa sorte.
Nínian deu de ombros e sorriu.
− Não deixo nada ao acaso no que diz respeito a minha filha. E você
precisará de toda a sorte que puder encontrar, guerreiro. O cristal contém o maior
poder com que eu poderia presenteá-lo.
Tarek bufou ao aceitar o amuleto. Era muito menor do que o medalhão de
ouro marchetado, não maior que a ponta de seu dedo mínimo, uma gota límpida de
cristal cortada com centenas de facetas e suspensa por uma fita verde de cetim.
Ao prendê-lo ao cinto, a mão de Nínian fechou-se sobre o braço de Tarek
num aperto forte.
− Assim que deixar este lugar, guerreiro, meus poderes não poderão ajudá-
lo. Nem posso ver o que o destino lhe reserva. Você será guiado na direção em que
precisa ir. Porém, o que encontrar lá, você e seus companheiros devem enfrentar
sozinhos. Alguns sobreviverão, outros não. – Então o aperto acentuou-se. − Se
Brianna falhar, se seu coração se voltar do poder da Luz para o poder das Trevas...
− Ela não fará isso − Tarek afirmou, recusando-se a crer no contrário. − O
coração de Brianna é fiel e leal.
− O coração que você conhece é fiel e leal, seu coração mortal. Falo de sua
alma. − Seu aperto intensificou-se até que as unhas se enterravam nos músculos do
braço de Tarek.
− Se minha filha se voltar para as Trevas, você deverá impedi-la. Brianna não
poderá ter permissão para voltar ao mundo mortal.
− Explique isso a mim.
− Se as Trevas puderem tomá-la, usarão seus poderes e o conhecimento do
Graal. Você deve jurar ante o deus em que acredita e a mim que não permitirá que
isso aconteça.
Ele foi tomado de raiva ao entender o que ela lhe pedia.
− Brianna é minha esposa! Jamais poderia feri-la!
− E é minha filha! − Nínian afirmou, com veemência.
− Não a amo menos. Mas compreendo melhor do que você aquilo que está
em risco. − Seus olhos se encheram de lágrimas. − Se as Trevas reclamarem sua
alma, Brianna não será mais sua esposa. Será uma criatura das Trevas! Preciso que
você jure! Deve jurar, guerreiro! Se se recusar ela irá sozinha.
− Você não me dá escolha!
− Nenhuma, guerreiro.
A expressão nos olhos dele era tão fria como a morte quando, por fim,
assentiu:
− Tem meu juramento.
− Sendo assim, esteja pronto para partir, guerreiro.
− Quanto demorará a jornada?
− Apenas a um dia de cavalgada de distância. Num lugar no qual você já
esteve antes, mas em que nenhum outro mortal já esteve. − Estendeu-lhe a
cimitarra persa.
− Onde está Brianna? − Ele prendeu a arma na cintura.
− Como expliquei, ela estará com você. − Então, estendeu a ele o grande
manto de pele da cama, ainda quente com o toque de Brianna. Seus dedos roçaram
o medalhão de ouro pendurado no pescoço de Tarek. − Você será defrontado com
uma escolha muito difícil, guerreiro. Aja com sabedoria.
Ao chegarem ao pátio, Tarek se voltou.
− Onde estão meus homens?
− Estão todos aqui − Nínian lhe assegurou, com um gesto que englobava o
pátio e as construções exteriores. − Devem permanecer para trás, assim como eu.
Pois nenhum de nós pode ir aonde você vai. Apenas não pode vê-los neste lugar
entre o mundo mortal e imortal. − Sorriu de leve. − Lembre, guerreiro, você estará
deixando o mundo mortal para trás quando passar por aqueles portões. E eles não
podem segui-lo.
− Estão a salvo?
− Permanecerão assim, a menos que você fracasse. Nas palavras não
pronunciadas, Tarek sentiu o resto da resposta. Se falhasse, eles terminariam como
Malcolm, Mortain e os outros. Fez um gesto de compreensão.
E quanto a Mardigan? Sem dúvida ele irá atacar.
Mardigan também é parte disso, guerreiro. Você viu a prova do que digo
nos homens que morreram aqui.
− Ele se transformou nas Trevas?
− As Trevas usam muitas armas. Você deve estar preparado para enfrentar
qualquer coisa.
Aquilo explicava muito, inclusive a razão pela qual Tarek e seus homens
nunca conseguiam encontrar Mardigan. Ele era como um fantasma que desaparecia
quando queria.
− E quanto aos companheiros de que falou? − Tarek via apenas a égua
árabe, selada, a esperar, um odre de água e um embornal de comida amarrados na
sela.
Nenhum outro cavalo esperava pelo cavaleiro.
Ao saltar para o lombo da égua, Nínian assobiou baixinho. O ar ao alto se
agitou e, através da escuridão envolvente e sufocante, Tarek ouviu o som de asas.
Uma fêmea de falcão apareceu na luz trêmula da tocha que Nínian carregava
e pousou no braço esticado de Tarek. Era esguia e flexível, de penas manchadas de
prata e ouro, olhos de um verde dourado, que o contemplavam com uma
inteligência sagaz. Tarek encarou Nínian.
Ao sentir a pergunta, ela assegurou:
− Ela pode ir aonde você não pode e ver o que você não vê. Garanto que a
julgará uma companhia valiosa.
− Você falou de três companheiros. Vejo apenas um.
− Está vendo o que quer ver, guerreiro. Terá de aprender a enxergar o que
não pode ser visto com tanta facilidade.
Nínian fez um gesto de intimação. Tarek nada viu. Mas algo se moveu nas
sombras do pátio. Um felino grande e bronzeado caminhou devagar na direção
dele.
− Isso não é nenhum truque de magia, não é?
− Nenhum truque meu − Nínian assegurou, para então explicar: −
Guerreiro, você deve olhar além do óbvio. Possui três companheiros. Um rápido e
de cadência firme, capaz de suportá-lo em sua jornada; um poderoso e ágil, com os
instintos do caçador; o outro capaz de ver o que você não pode enxergar. Esses são
seus companheiros. − Então, ao lhe sentir os pensamentos, concordou. − Sim,
Brianna estará com você, porém não poderá saber que forma ela tomou. Nínian
tocou-lhe a mão que repousava na sela. − Não se esqueça de seu juramento, Tarek
al Sharif. Se o coração e a alma de Brianna se voltarem para as Trevas, você não
deve hesitar. Pois há outra filha com a qual pode haver ainda esperança. − Diante
de seu olhar de surpresa, ela meneou a cabeça. − Não posso dizer mais nada. O
tempo urge. Lembre-se disso: a maior força não é a da espada, mas esta. − Pousou
a mão em seu coração. − E não esqueça que as Trevas não podem tomar-lhe aquilo
que você não entregar em rendição. Medo e ódio são as armas que ela usa.
Resguarde-se contra elas.
Com um gesto de cabeça, Tarek cutucou a égua árabe com os calcanhares e
incitou-a pelos portões.
Após ter avançado vários metros, puxou as rédeas e olhou Para trás. No
crepúsculo, não viu nem as tochas das ameias, nem os portões. Não havia portões.
Nem havia ameias. A fortaleza de Inverness se desvanecera como se jamais tivesse
existido.
Você passou do mundo mortal para o mundo imortal, guerreiro. O que
conhecia antes cessou de existir. O caminho de volta jaz como o Graal.
Capítulo XXII
O falcão manteve seu curso, a planar adiante, guiando Tarek por um terreno
cheio de sombras, uma terra estranha que ele não mais reconhecia, mesmo tendo
cavalgado por ela apenas horas antes.
Ou seriam dias? Ou semanas? Quantos grãos de areia teriam passado pela
ampulheta desde que partira? Poucos? Todos?
Naquele lugar, as coisas como ele conhecia tinham cessado de existir. Não
havia marcos familiares. Nem luxuriantes florestas verdes, montanhas ou charnecas
varridas pelo vento.
Tarek entrara no mundo de Jehara, o plano imortal de Treva e Luz, onde os
poderes do bem e do mal eram equilibrados precariamente, onde a verdade não
mais existia, e a ilusão estava em toda parte. Mesmo entre seus companheiros
No que Brianna teria se transformado?
Seu olhar dirigiu-se para o felino. Parecia o mais lógico já que ele vira a
transformação anterior. A cor estava lá, a pelagem da pantera, assim como nos
olhos com lampejos de verde entre o dourado. Que destino os aguardava?
Enfrentaria qualquer coisa com alegria se pudesse impedir que a vida de Brianna
fosse posta em risco, porém sabia que não poderia.
Nínian falara de escolhas que deveriam ser feitas. No entanto, poderia ele
fazer a escolha certa? Saberia quando fosse confrontado com uma?
Continuou até que a égua ficasse suada e espumando por causa da árdua
subida pelas pedras e colinas íngremes. Por fim, seguindo o curso que o falcão
estabelecera, chegaram ao cume da última colina.
O panorama sombrio de uma terra desolada e a linha da margem de um
grande e vasto lago se abriam lá embaixo. O céu escureceu ao chegarem à margem.
O lago era isolado e luzia como uma fita negra que cortasse a terra.
− Conheço este lugar − ele disse em voz alta, mesmo que não houvesse
ninguém para responder. − Lochonnen. Foi aquele o nome que Brianna usara certa
ocasião, quando cavalgaram pelas Terras Altas, embrenhando-se pelo interior até o
lago reluzente em cujas margens crescia a sorveira-brava. E, no meio do lago,
protegida pela bruma, via-se a ilha do Graal.
Brianna trazia a marca do Graal no ombro, aqueles círculos sobrepostos que
simbolizavam a vida eterna.
O destino dela estava ligado ao Graal.
Tarek encontrou a sorveira-brava, porém num lugar diferente do de antes.
Estava do lado oposto da margem. Em vez de verde e luxuriante, seus galhos
estavam nus de quaisquer folhas, como um esqueleto.
Olhou pela escuridão sombria da água e, naquele lugar onde água e céu se
encontravam, havia o brilho tênue de uma luz difusa que fenecia.
De repente, a escuridão caiu como uma cortina pesada corrida pelo
firmamento. A luminosidade terminou no horizonte, céu e água se mesclaram no
escuro denso e opressivo, em uma imobilidade de silêncio que podia quase ser
sentida. Não havia um único som. Nem mesmo se ouvia a água a bater contra a
margem.
Nenhuma lua subiu no zênite, brilhante e clara, a banhar a terra. Nenhuma
estrela piscava ao alto. Era como se cada lampejo de luz tivesse se extinguido por
alguma mão malévola. Era impossível continuar sem uma tocha para clarear o
caminho. Como se sentisse isso, o falcão acomodou-se nos galhos mais altos da
sorveira-brava, com um farfalhar de asas, o olhar voltado para a água.
A pantera também pareceu aceitar que teriam de fazer ali o acampamento
para pernoite, se de fato fosse noite, ao se esfregar contra a perna dele.
Tarek estendeu a mão para o ferimento bem curado e sentiu o veludo macio
do pêlo dourado na ponta dos dedos. A cabeça régia da criatura estava voltada para
a extensão de água diante deles, como se observasse algo também.
Tarek desencilhou a égua. Ela estava nervosa, as orelhas sempre a girar para
trás e para a frente como se procurasse por ruídos que não estavam ali. Não havia
grama para pastar, por isso Tarek lhe deu punhados de grãos de um alforje que
carregava, e depois a levou até a água para beber. No escuro, ele não conseguia
enxergar, mas ouviu algo: na vasta e difusa quietude, o som repentino da água
contra a margem a seus pés.
Não era um suave ruído borbulhante, e sim mais parecido com o chiado de
uma panela a ferver e se derramar no fogão. De repente, Tarek perdeu o equilíbrio,
quando o banco da margem começou a desabar.
Era como se a terra tivesse desaparecido sob seus pés. A água subiu-lhe pelas
botas e a lama as atolou. Ele afundou até os tornozelos como se mãos poderosas o
puxassem para baixo, arrastando-o para a água revolta.
Com um relincho, a égua deu um salto para trás, e as rédeas tensas nas mãos
de Tarek tornaram-se sua salvação. Tarek precisava desesperadamente da força do
animal, pois nunca experimentara tal poder como aquele da água, que o puxava
para a morte certa. Torcendo as rédeas apertadas em torno dos pulsos, gritou:
− Siroco, para trás!
Ouviu o frenético bater de cascos quando ela lutou para encontrar solo
firme, e o estridular do falcão, em gritos agudos de alarme. O banco da margem
desabava debaixo de suas costas e ombros conforme Tarek era sugado ainda mais
para dentro das águas. De novo, chamou pela égua.
As rédeas se afrouxaram e tornaram a ficar tensas. A dor correu pelo braço e
ombro de Tarek, esticado num ângulo brutal. Ele puxou e chutou, tentando livrar
suas pernas da lama que as sorvia.
Por fim, livrou um pé, lutou por firmar-se e tentou subir pela margem. Por
duas vezes a terra cedeu sob ele, como Se alguma criatura estivesse cavando e
erodindo o terreno em que pisava.
Então sua bota encontrou piso sólido. Tarek chamou de novo a égua, e
quando ela esticou as rédeas, seu outro pé, livrou-se com um ruído de sucção.
Conforme Siroco continuava recuando Tarek foi arrastado para o alto da
margem e para longe da beira d’água. Caiu, gelado, molhado e exausto, o animal
postado acima dele, a bafejar a respiração quente em suas costas.
− Muito bem, Siroco − agradeceu, a mão ensangüentada onde as rédeas
tinham cortado a carne, à medida que a égua o puxava para um lugar seguro.
Quando teve força para sentar-se, seu olhar cravou-se na água escura e turva
que quase lhe tirara a vida. Nínian tinha razão. Começara.
Fez um leito debaixo dos galhos da sorveira-brava. A pele que Nínian lhe
entregara proporcionava calor sob a túnica e as calças molhadas. Tarek estava
exausto da cavalgada e da provação que enfrentara, mas o sono custou a chegar.
O vento veio, silencioso e brutal. Tarek puxou a pele para se proteger contra
uma friagem que parecia se entranhar na manta, ameaçando enregelá-lo. Então a
pantera acomodou-se ao lado dele, bloqueando o vento, o calor a penetrar o manto
de pele e a aquecê-lo.
Na escuridão, Tarek podia ver o suave brilho daqueles olhos que
observavam atentos as águas.
Tarek estendeu a mão e afagou o pêlo espesso e dourado. A criatura não se
mostrou perturbada pelo contato humano, nem o atacou, como outros animais
selvagens poderiam fazer. Em vez disso, aconchegou-se, arqueando o pescoço sob
a mão que a acariciava, um suave ronronado de contentamento a sair da garganta.
− Brianna... − ele murmurou, incerto, ao acariciar com ternura a criatura
macia a seu lado.
E, na agonia da saudade, recordou-se das palavras de despedida de Nínian:
"Se o coração e a alma de Brianna se voltarem para as Trevas, você não deve
hesitar".
Esposa. Amante. Alegria e risos. Força e coragem. Brianna era tudo isso para
ele, e muito mais.
Quando passara a significar tanto? Tarek sabia a resposta. Acontecera
tempos atrás, perto de uma lagoa, quando uma bela criatura aparecera na bruma e
arriscara a vida pela dele. Um ser que lhe assombrara os pensamentos e sonhos e
que agora vivia em seu coração.
Seus dedos se curvaram no pêlo da pantera ao imaginar a sensação dos
cabelos de Brianna nas mãos. Ele fizera um juramento, e teria de cumpri-lo. Porém,
se chegasse a isso, como suportaria matá-la?
− Maldita seja, Nínian, e seu juramento − murmurou, furioso. Mas sabia que
seu ódio estava mal dirigido, ao fitar a turva água escura. − Malditas sejam as
Trevas.
O grito suave e assobiado do falcão o despertou.
Tarek não tinha idéia do quanto dormira, pois não havia jeito de medir a
passagem do tempo. Naquele lugar onde tantas coisas agora eram o oposto do que
tinham sido antes, ele não confiava em nada, a não ser na espada a seu lado e nas
criaturas que o acompanhavam.
O falcão lançou-se da copa da sorveira-brava para o ar, a circular por perto e
a piar mais e mais. O olhar de Tarek correu para a superfície do lago. Um vislumbre
de luz surgiu a distância, à medida que a escuridão do céu e da água se separava. E
lá, na pálida aurora acinzentada, ele julgou ver a silhueta de terra.
Levantou-se depressa e seguiu para a beira d'água, ciente do grande risco que
correra na véspera. A pantera também se ergueu e caminhou para a margem.
A fenda estreita de cinza entre céu e água aos poucos se alargou e mostrou
uma forma escura no lago. Uma ilha. A ilha do Graal, de acordo com a antiga lenda
que Brianna lhe contara.
Relâmpagos cruzaram o horizonte bem acima da ilha distante. Então,
surgiram mais raios fulgurantes. Seria realidade ou alguma ilusão? E a ilha? Poderia
ser alcançada?
A água estremecia e se movia de modo estranho, como se alguma coisa
negra e malévola se espreguiçasse em suas profundezas.
O falcão continuou com seus piados frenéticos, deslizando por sobre a
superfície e depois retornando. Ondas se ergueram como se quisessem alcançar o
rápido e flexível caçador. O felino também se mostrava inquieto, o olhar cravado
naquela fita estreita de luz no horizonte.
− De acordo com a lenda, o Graal se achava em algum lugar naquela
margem distante. Porém, como chegar lá? Criando asas e voando?
− E agora, Nínian? − Tarek gritou, irado, como se ela pudesse ouvi-lo. −
Como isso deve ser feito? Não tenho o poder de cruzar a água como Jehara.
− Você enfrentará três desafios, guerreiro. − Era como se as palavras dela
murmurassem em resposta.
− Aceito de boa vontade qualquer desafio, mas esse... Apontou pela
extensão de água. − é impossível.
− O caminho está lá, guerreiro. Basta que escolha vê-lo − veio o aviso em
pensamento, como se Nínian estivesse logo atrás dele.
− Que eu escolha vê-lo! − Girou em volta, zangado. − Se eu escolher ver!
− Tenha cuidado, guerreiro. Você ainda precisa de minha ajuda.
− Preciso de um bote, isso sim.
− Tem de aprender a ver além do óbvio. Lembre, nada é o que aparenta ser.
Que necessidade tem de um bote, se pode cavalgar pela água?
Tarek olhou para as águas, tentando ver o que mais poderia estar lá. Não
conseguiu. Era como fitar a extensão do deserto, onde seus ancestrais eram reis.
Aquele lago era como um deserto, mutante, cambiante, escondendo seus segredos.
Não tinha idéia do que procurava, apenas as palavras de Nínian o guiavam.
Deixou-se esvaziar de todo pensamento, toda emoção, toda cautela, abrindo a
mente, enquanto olhava pela água em direção àquela ilha distante.
No pálido feixe de luz que se estendia do horizonte até a margem, avistou
uma estreita faixa de terra, um caminho elevado com apenas uns poucos passos de
largura, que aparecia logo abaixo da superfície e ligava a ilha à margem. Mas era real
ou uma ilusão?
Hesitou. Sua experiência na noite anterior o tornara cauteloso. Era muito
fácil. E ele aprendera, como Nínian avisara, que as coisas não eram o que pareciam.
Contudo, pela água, podia ver a ilha. O Graal estaria lá? Ou era também uma ilusão
das Trevas?
Lá no alto, o falcão circulava, inquieto. Voou sobre o lago na direção da ilha
e depois voltou. Tarek assobiou para chamá-lo. Ele mergulhou e pousou, as garras
suaves a se fecharem sobre o braço dele.
Rápido e seguro, podia ver o que Tarek não conseguia. E se lançou para o
alto outra vez, de novo voando sobre as águas na direção da ilha, seguindo o curso
que fizera antes.
Tarek desceu pela margem. Ao contrário da noite anterior, o lago estava
calmo. Ele pegou várias pedras e jogou-as naquele terreno mais alto submerso.
Ao caírem, nenhuma desapareceu, dragada para baixo pela areia sugadora,
nem a água se revolveu de repente e borbulhou, como se alguma criatura se
remexesse em suas profundezas. Em vez disso, Tarek pôde vê-las no terreno
elevado só uns poucos centímetros abaixo da superfície.
A ilusão era a ferramenta das Trevas. E, Tarek sabia bem, era também a
ferramenta de Jehara. Brianna era uma encantada, capaz de assumir diferentes
formas. Mais ilusão.
Avançou com um passo hesitante pelo caminho. O chão era sólido sob seus
pés. A água continuava calma. Tarek retornou à margem e livrou a égua da sela e de
qualquer fardo desnecessário.
O felino esperava na margem, na expectativa, sua cauda de um loiro tostado
a se balançar de um lado para o outro. O falcão estaria seguro o bastante no ar, mas
o felino ficaria tão vulnerável quanto ele, assim que estivessem na trilha sob a
superfície. O olhar de Tarek fixou-se naquela margem distante da ilha. Quanto
distava? Mil metros? Mais? Era impossível dizer.
Pegou as rédeas e saltou para o lombo da égua, puxando-a para a margem.
No alto, o céu de chumbo parecia se fechar uma vez mais. A ilha não era tão clara
como fora apenas momentos antes. Ou estava mais longínqua?
− Vamos, Siroco! Agora você precisará ser como o vento!
Conduziu-a pela margem e para o caminho elevado sob a superfície. A
pantera seguiu ao lado, as passadas longas e sinuosas a se emparelhar com as da
égua, enquanto no alto o falcão voava direto para aquela margem longínqua.
O vento soprou, revolvendo as nuvens até que elas pareciam pairar sobre a
água. Raios fulguravam, rasgando o firmamento como lâminas brancas, como se
tentassem empurrar para trás a escuridão.
De ambos os lados, a água tornou-se inquieta, em ondas que varriam a trilha
e se revolviam sob as patas da égua.
Tarek deixou o animal guiar-se pelo instinto e deitou-se sobre seu pescoço.
Como na véspera, a água tornou-se escura e turva, como uma força malévola que
lutasse para não lhes permitir passagem.
Varreu os lados da trilha, sugando as patas da égua, a puxá-la para baixo.
Tarek sentiu o animal começar a se cansar, e a ilha ainda parecia a centenas de
metros ao longe, e não mais perto.
Através da chuva que começara a cair, ele viu o felino não muito longe, atrás,
a saltar conforme a água se aprofundava. Então a égua tropeçou e caiu como se o
caminho desmoronasse sob eles. Esforçou-se para encontrar um ponto de apoio e
conseguiu se equilibrar.
A cada passada, a trilha desaparecia sob suas patas, a água a rodopiar em
torno de seus joelhos, a sugá-la para baixo. Tarek não conseguia mais ver a ilha.
Um raio estourou ao alto, de um branco dourado, brilhante como o sol,
iluminando o céu como uma tocha. A ilha estava apenas a uns poucos metros de
distância. Mas Siroco se mostrava sem energia sob ele.
A água subia. Siroco seguiu em frente, esforçando-se para encontrar o
próximo ponto de apoio. Com muita luta, deu uma última e desesperada arrancada
que lançou Tarek por sobre seu pescoço, sem a sela para segurá-lo.
Ele foi atirado na margem. O pedrisco áspero rasgou-lhe a túnica e enterrou-
se nas palmas das mãos. Então, foi sendo puxado de volta em direção à água pelas
rédeas enroladas com firmeza em seu pulso. Rolou e ficou de joelhos, segurando as
rédeas com ambas as mãos.
O caminho desaparecera por completo sob a água revolta.
Ondas estouravam nas pedras. Ligada ao dono pela rédea, a égua árabe se
esforçava por chegar à margem. Porém, não obstante lutasse para encontrar apoio,
era puxada para o fundo, sugada por aquele mesmo peso que quase levara seu dono
na véspera.
Tarek chamou por ela, gritando para se fazer ouvir acima da força da
tempestade. Mas foi inútil. Quanto mais Siroco lutava, mais era tragada para baixo.
E o arrastava junto.
"Alguns sobreviverão, outros não." As palavras proféticas de Nínian
ecoaram em seu cérebro mesmo quando Tarek lutava para salvar o animal. As
rédeas arrancavam-lhe a pele das mãos. Se continuasse a segurá-las, também seria
dragado. Com um grito de raiva impotente, abriu as mãos e deixou as rédeas se
soltarem de seu aperto.
Esforçou-se para retornar à margem, para longe da avidez mortal da água.
Quando olhou para trás, a égua sumira, tragada da superfície.
Capítulo XXIII
Epílogo
Tarek postou-se no alto das ameias, seu olhar fixo na revolta água
acinzentada do estuário do Moray, ao largo da costa de Inverness. Além, ficava a
fria e vasta expansão do mar do Norte.
− Quais as notícias? − perguntou, muito sério.
− Muitos dos homens de Mardigan preferiram fugir para mar aberto em vez
de serem feitos prisioneiros. Muitos pereceram. Seus corpos foram lançados na
praia.
Os pensamentos de Tarek se agitavam, tão sombrios e furiosos como as
ondas do estuário, pois não havia nenhuma menção daquele guerreiro cujo destino
ele mais queria saber.
− E aqueles que não se lançaram ao mar?
− Foram caçados. Não irão mais aborrecer o povo do país do Norte.
Com suas forças destroçadas e fragmentadas, e sem seu líder, os invasores
foram vencidos. Porém, era uma vitória vazia.
− E quanto a Mardigan? − O nome saiu baixo da garganta de Tarek, um
som doloroso mesclado a um velho ódio.
Gavin remexeu-se, desconfortável.
− Nossos homens vigiam o lago. Ninguém foi visto. Duvidamos que tenha
sobrevivido.
No entanto, ninguém tinha certeza.
Tarek fez um gesto de cabeça quando Gavin afastou-se para se juntar aos
demais no salão abaixo, na celebração.
Tarek não sentia nenhum desejo de celebrar. Não havia satisfação alguma no
resultado, apenas uma persistente sensação de algo deixado incompleto.
Ergueu a cabeça quando um repentino calor foi trazido do vento frio, como
uma carícia que se movia por seus sentidos. Então, ouviu o leve remexer de asas no
ar.
Uma sombra correu pelas ameias. Em seguida, uma calma absoluta reinou
conforme os dedos da bruma envolviam os penhascos abaixo e se curvavam sobre
as muralhas. O sofrimento e a ira aplacaram-se quando Tarek se virou e sorriu para
a bela criatura dourada que caminhava em sua direção.
Brianna entregou-se aos braços dele.
− Como sabia que eu tinha voltado? Nem mesmo Thomas está assim atento,
e ele tem muitos anos de prática.
Tarek puxou-a contra si, envolvendo-a no calor de seu manto. Ele a teria
puxado para dentro da alma, se pudesse. Talvez desse jeito conseguisse banir a dor
fria que parecia ter se assentado de uma vez ali.
− Sei sempre quando você está por perto. Posso sentir em meu sangue.
− Sim − ela murmurou, com um arquejo súbito que não tinha nada a ver
com a longa jornada que acabara de fazer. Seus olhos verdes faiscaram de desejo.
Ela riu de um jeito sensual, que reteve de repente quando as mãos de Tarek
escorregaram por suas costas e Brianna esfregou os quadris contra os dele. Seus
olhos se toldaram e escureceram de paixão.
− Eu sinto também.
Tarek tomou-lhe a cabeça sob o queixo, conforme o frio se dissipava dentro
de seu corpo, como a primeira brisa de primavera após um duro inverno.
Começava a acreditar que a primavera poderia surgir mesmo naquela terra gelada.
− Está feito?
− Sim.
− E o Graal?
− A salvo com Merlin. Significou muito para mim vê-lo, agora que as
lembranças voltaram e eu sei quem são meus pais verdadeiros. − Lágrimas lhe
marejaram os olhos. − Nínian pagou um alto preço por trazer-me esse
conhecimento, pois não pode voltar, nem meu pai poderá partir para estar com ela,
a menos que a maldição seja quebrada. Tudo o que lhes sobrou é o elo de seus
pensamentos. Eu não conseguiria suportar ter apenas seus pensamentos, Tarek,
sabendo que talvez jamais viesse a tocá-lo de novo.
− Não há algum jeito?
− Não enquanto a maldição persistir. Nem mesmo o poder do Graal foi
forte o bastante para quebrá-la. Meu pai estava tão esperançoso que pudesse...
Anseia por ela.
A boca de Tarek se estreitou.
− Então, não está terminado.
− Não, não está. − Brianna ergueu a mão que enfiara nas dobras do manto
de Tarek. Nela, segurava um tecido enrolado, ricamente colorido.
Tarek o reconheceu, pois o vira muitas vezes no tear no quarto de Rorke
Fitz-Warren, em Londres. Era a tapeçaria que Vivian vinha tecendo. Quando a
desenrolou, a luz do sol infiltrou-se pelas nuvens e brilhou nas imagens vividas na
tapeçaria.
O calor se espalhou pelo tecido pesado como se a tapeçaria estivesse viva.
Havia outras imagens também, sombras fugidias não tecidas que brincavam pela
superfície, esquivas como os sonhos. Naquelas sombras tênues ele pensou ter visto
algo familiar: o caos e a destruição de alguma grande batalha. Encarou Brianna.
Ela sentiu-lhe os pensamentos.
− Vivian a viu também, Tarek. Essa é a razão pela qual mandou a tapeçaria
comigo.
− O que significa?
Seus dedos moveram-se sobre as imagens tecidas nos fios. A batalha de
Hastings, incontáveis guerreiros e cavaleiros, a morte próxima de Guilherme, um
valente cavaleiro a quem Tarek reconheceu como sendo o amigo Rorke Fitz-
Warren e a bela tecelã de cabelos ruivos que se sentava diante de um tear e girava as
meadas do futuro. A própria imagem de Tarek se achava lá também, junto com a
de Brianna e de um reluzente cálice dourado. O Graal.
− Eis o porvir que temos adiante − ela explicou, solene.
− Guerra − Tarek concluiu, com um peso no coração.
− Sim, mas diferente de qualquer outra que tenha sido travada. A batalha por
toda a humanidade. Mesmo agora, as forças do mal se reúnem. Meu pai falou disso
quando coloquei o Graal em suas mãos.
− Será travada nas Terras Altas?
Antes, tudo o que Tarek queria era vingança. Agora, queria muito mais. Mais
tempo para estarem um com o outro, tempo para um filho que prometera a
Brianna. Uma criança nascida de pais amorosos que tinham feito juramentos um ao
outro; uma criança com um lar e uma família.
Brianna meneou a cabeça.
− Terminou aqui quando as Trevas perderam o Graal e seus poderes. Agora,
sua única esperança repousa no Oráculo dos Anciãos, através do qual ela pode se
apoderar dos poderes da Luz.
− Onde esse Oráculo pode ser encontrado?
− De acordo com a lenda, nas terras do Oeste, onde Merlin nasceu.
Tarek aceitou sem discussão. Depois da batalha contra as forças das Trevas
na ilha do Graal, não mais duvidava do que estava em risco.
− Darei ordens para que o exército se apronte. Partiremos para Londres com
as primeiras luzes. Rorke Fitz-Warren se juntará a nós, pois entende o perigo assim
como eu. Precisamos encontrar o Oráculo.
Brianna pousou a mão em seu braço.
− Isso não pode ser feito simplesmente, pois não é seu destino que está
tecido entre os fios. É o destino de outro, e apenas ele pode fazer a jornada e
procurar o Oráculo.
Brianna correu os dedos pela tapeçaria, para as últimas imagens que lady
Vivian tecera, um presságio do futuro. Uma era de um guerreiro jovem e valente. O
fogo e a paixão pela batalha queimavam em seus olhos cor de âmbar. Usava uma
armadura de guerreiro, mas o escudo que carregava não ostentava nenhum
emblema. Em vez disso, era de um preto sólido e trazia uma inscrição em latim:
Desdicado. Um homem sem honra e sem nome, nascido bastardo. Stephen de
Valois.
A imagem entrelaçada à de Stephen numa explosão de sombra e luz era de
uma jovem esguia, com belas feições refinadas, os cabelos da cor do céu da noite e
olhos violeta.
− Quem é ela?
− Seu nome é Cassandra. É minha irmã.
Nínian falava de outra que poderia manter a esperança de um futuro, se
Tarek fosse incapaz de salvar Brianna dos poderes das Trevas. Porém, havia
dúvida, assim como uma grande tristeza em sua voz quando falara disso. Agora ele
sabia a quem ela se referira. Mas a cena estava incompleta.
− E quanto ao resultado? Na certa lady Vivian o viu. Brianna meneou a
cabeça.
− É impossível a alguém saber com certeza. − Seus olhos verdes estavam
cheios de tristeza. − Cassandra escolheu, tempos atrás, não retornar ao mundo de
Merlin. Não posso imaginar que ela não quisesse voltar. Embora eu não tenha
conhecido minha verdadeira mãe e meu pai por tanto tempo, ainda assim tinha
Cullum e Mirren.
Roçou os lábios de Tarek.
− Mas não ter uma família, ninguém a quem se amou e a amou em
retribuição...
Tarek compreendia muito bem. Cada um deles sofrera perda semelhante,
mesmo não sendo pela própria escolha. A dor dessa perda fora aliviada pelo amor
que encontraram um com o outro.
Ele tomou Brianna nos braços, fechando o manto felpudo em torno deles.
Sentiu que ela estremecia.
− A tapeçaria ainda não está completamente tecida, minha adorada. Existe
ainda o porvir. Talvez aquilo que foi perdido no passado possa ser encontrado lá.
Brianna sabia que ele tinha razão, pois ambos haviam perdido muito e depois
encontrado um ao outro num futuro incerto. Ergueu a mão do casulo quente que
seus corpos faziam, comprimidos juntos dentro do manto, e traçou a curva da boca
de Tarek com a ponta dos dedos.
− Sim, milorde − afirmou, rouca.
Estremeceu de novo, mas por razões bem diferentes, quando as mãos dele
correram pela extensão de sua espinha e empalmaram suas nádegas, ao puxá-la
ainda mais.
Brianna cerrou as pálpebras e expulsou a escuridão que espreitava para além
das fronteiras de seus pensamentos.
− O porvir... − ela sussurrou, contra a boca de seu amado.