Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Susan King
Disponibilização.: Jo Slavic
Tradução............: Dani P.
Revisão..............: Silvia Helena
Formatação........: Graco
Prefacio
***
Capítulo 2
Capítulo 4
-Esta noite nevará. - Disse Uma. - Dizem-me isso os ossos doloridos de Lorne.
Olhou pela janela da oficina de Alainna. A tênue luz dava um reflexo de prata a
seu cabelo, parcialmente coberto pelo lenço de linho branco que tinha dobrado e envolto
ao redor da cabeça.
Era uma mulher pequena e estava nas pontas dos pés, se equilibrando com uma
mão apoiada no batente enquanto olhava para o exterior.
-Não me doem os ossos, mulher. - Disse Lorne. Pegou uma pequena pedra
esculpida em forma de cruz e a fez girar com delicadeza em suas longas mãos.
-Ach, claro que sim; hoje me pediu que pusesse uma dose de salgueiro na
cerveja. - Disse Una em tom impaciente. - Nevará com toda segurança, entre o que me
dizem seus longos ossos e essas nuvens cinza ali fora. O céu está da mesma cor que
algumas de suas pedras, Alainna.
-Já vejo. - Respondeu ela sem levantar os olhos. Seus tios avós tinham entrado
na oficina momentos antes, mas ela apenas os havia olhado. – Deixe que termine essa
parte, Una, e então olharei.
Alainna rodeou o banco, estudando com olho crítico a laje parcialmente
esculpida de calcária cinza que descansava sobre o mesmo. Logo apoiou o cinzel
(instrumento manual que possui em uma extremidade uma lâmina de metal usada para
entalhar ou cortar a madeira) formando um ângulo contra a pedra e deu uns golpes no
extremo com a maça de madeira que sustentava na mão direita.
-Esta é uma boa peça. - Disse Lorne, deixando a pequena cruz sobre a mesa. -
Melhor inclusive do que a que levou ao rei. Não a tinha visto até agora.
-Fiz esta semana. - Disse Alainna, soprando o pó da pedra que se havia
formado. - Prometi uma a Esa.
-Quando a levar, tente convencê-la outra vez de que fique em Kinlochan. -Disse
Lorne. - É teimosa, mas este ano o inverno vai ser muito duro. Todos os presságios assim
o indicam. - Sua voz profunda e suave, cuja magia Alainna adorava desde que era menina,
traía uma clara preocupação.
Levantou os olhos e viu que se detinha junto à larga mesa de cavalete em que
havia várias lajes de pedra, cada uma delas tão largas como o antebraço de um homem.
Inclinou-se para examiná-las, com os ombros encurvados e seu comprido cabelo branco
caindo adiante de seu belo perfil aquilino.
-Aqui está gelado. - Alguém fechou a veneziana de madeira com um golpe
vigoroso e a colocou o fecho. Pegará um resfriado nos pulmões se ficar com a janela
aberta todo o dia.
-Necessito luz. - Repôs Alainna, golpeando de novo com a maça. Fez uma
pausa para soprar o pó que se concentrava na beirada do cinzel.
-Aqui dentro está escuro como a noite. - Queixou-se Una. - Logo não verei nada.
- E deu um passou adiante.
-Acaba de fechar a janela. - Lembrou-lhe Lorne. - Nenhum de nós vê nada.
-Nessa estante há velas. – Apontou Alainna. - O braseiro também dá um pouco
de luz.
-Não muita. - Disse Una. - E tampouco muito calor. De modo que bem poderia
deixar de trabalhar durante um momento. Não parou toda a semana. Oh, se mova, cão
glutão, ocupa todo o espaço. Alainna, já sei que você gosta deste cão, mas não vale muito
como guardião; nem tampouco serve para fazer companhia, passa todo o dia deitado.
Alainna olhou o grande cão de caça, que dormia feliz contra o braseiro.
-Finan é um bom guardião quando tem que ser. E eu gosto de sua companhia.
Deixa-me em paz.
Lorne soltou uma risada ao mesmo tempo que encontrava uma vela e a acendia
com um pau seco que aproximou às brasas do braseiro.
-Alainna, viemos te chamar para jantar conosco esta noite. - Disse Una.
-E também a ver como ia com o trabalho. - Acrescentou Lorne. - Realmente está
muito bom. A laje que acaba de terminar é inclusive melhor que as outras.
Alainna sorriu.
-Obrigada. E não estou com fome, Una. - Deixou o cinzel para pegar uma
ferramenta de ferro com ponta, e usou a maça para introduzir o afiado instrumento no
extremo na laje e arrancar uma pequena lasca-. Morag me trouxe comida.
-Morag leva dois dias te trazendo comida aqui. Disse-me que ontem à noite que
se deitou muito tarde e que te levantou cedo para voltar a trabalhar. Ficará esgotada e
adoecerá.
-Tenho muito que fazer. - Disse Alainna enquanto soprava o pó branco da
superfície da pedra. - Esta é a sétima pedra. As cenas que tenho pensado esculpir
necessitam vinte, possivelmente mais.
-Impôs uma dura tarefa, pequena. - Disse Lorne. - Mas precisa descansar.
Ninguém pode terminar o trabalho de toda uma vida em uns meses.
-Eu devo fazê-lo. - Alainna golpeou a ponta com a maça.
-Vêem ao salão, janta conosco e se aqueça. - Insistiu Una. - Os velhos se
alegrarão de te ter com eles.
-Tenho muito que fazer. - Repetiu Alainna, arrancando outro pedaço de pedra.
-Está escurecendo. - Disse Una. - Uma vela não lhe dá luz suficiente. Apenas
pôs o pé no salão em dois dias. Tenho um guisado de veado quente na cozinha, e depois
do jantar Lorne nos contará uma agradável historia. Morag se ocupou de que tudo esteja
em ordem na casa, varreram o chão e pulverizaram a palha fresca, arejaram os tartans e a
roupa de cama, prepararam as camas e os colchões para a noite. - Dirigiu um olhar a seu
marido, e logo voltou a olhar para Alainna. - Tudo está em ordem em Kinlochan, exceto a
chefe do clã que se encerra em uma diminuta oficina com o chão sem varrer nem comida
no estômago, a trabalhar como um operário.
Alainna flexionou seus ombros doloridos.
-A prima Morag leva bem nossa casa. Adora o trabalho que faz por Kinlochan, e
nunca descansa até convencer-se de que suas tarefas se realizam à perfeição. E eu adoro
o trabalho que faço, mesmo que resulte um pouco sujo. Eu também quero continuar até
que fique satisfeita com o trabalho realizado.
Alguém suspirou impaciente.
-O que faz aqui não é trabalho de um dia, pequena, como a maioria das tarefas
domésticas. Tem que comer deve descansar! E os teus precisam ter a seu chefe entre
eles. Lorne lhe diga algo.
-Niall quer que esta noite comece o ciclo das histórias de Fionn. - Disse Lorne. -
Mas Una e Morag querem ouvir outra vez o conto de Deirdre e os filhos de Uisneach. O
que devo fazer? Niall diz que está cansado de historia de amor e que quer uma de guerra e
homens, que contenha uma longa passagem que narre uma batalha.
-Eu gosto do conto de Deirdre das Desditas. – Disse Alainna. - Nunca me canso
dessa história. Quando Deirdre vê a Naoise e seus irmãos pela primeira vez... - Suspirou. -
Ah, é muito formoso.
-Então contarei a história de Deirdre, se estiver conosco esta noite. Deixe o
trabalho. Há tempo.
Enquanto seu tio falava, Alainna contemplava com a cabeça inclinada a cena
que havia esculpido: três homens em um navio, sustentando umas lanças em posição
vertical, ligeiramente esboçados na superfície da pedra. Tão somente havia eliminado o
excesso de pedra, enquanto que o resto mostrava as marcas do cinzel, para formar um
alto-relevo.
Suspirou e olhou para Lorne, cujos olhos azuis brilhavam afetuosos. A seu lado,
Una, que nem sequer chegava ao ombro de seu marido, olhava-a com um cenho de
preocupação. Alainna suspirou outra vez e deixou o cetro.
-Têm razão. Estou cansada.
-Bem. Sua gente sente sua falta. - Disse Una.
Alainna limpou as ferramentas com um pano suave e as deixou a um lado. A
seguir cobriu a pedra com outro pano e se levantou e estirou os braços.
-Tenho que varrer isto. - Disse, lançando um olhar ao chão, que estava coberto
de lascas de pedra e pó.
-Varreremos amanhã. - Disse Uma. - Esta noite descansaremos. Vamos,
menina, trabalha muito. Preocupa-se muito.
-Não me preocupo. - Replicou Alainna, rígida. Retirou o lenço que protegia o
cabelo do pó da pedra e sacudiu as tranças. - Jamais me preocupo.
-É obvio que não. - Disse Lorne. - Esta noite deve jantar bem, escutar uma
história e pensar só no que é bom.
-Sobre tudo, não pense nesses cavaleiros normandos que talvez mande o rei. -
Disse Una.
-Uma. - Disse Lorne. - Parece-me que seu guisado necessita atenção.
-Morag se ocupará dele. - Replicou a aludida. O cão se levantou de seu lugar
contra o braseiro e bocejou estirando suas longas patas. Depois foi até Una e a empurrou
com a cabeça que lhe chegava quase até o ombro. Acariciou-lhe o focinho, e foi
recompensada com uma lambida.
-Vamos, Finan Mor, cão preguiçoso. - Disse-lhe. - Vou te dar um pedaço de
carne. - E se encaminhou para a porta com o cão.
Lorne aguardou enquanto Alainna apagava a vela e tirava a velha túnica que
levava por cima do vestido a modo de avental.
-Está preocupada com o que fará o rei, pequena. - Disse-lhe. - Vi em seus olhos
nas duas semanas que transcorreram desde que voltou. Por isso trabalha tanto em suas
pedras.
-O trabalho me ajuda a descansar a mente. É duro ficar esperando notícias do
rei.
-É difícil para todos nós. Vêm se relaxar com boa comida e boa companhia.
Talvez o conto de Deirdre não te convenha esta noite; necessita algo que te faça rir, como
a história do parvo nas bodas e de como tentou colocar o lago em casa para servir peixe
fresco aos convidados.
Alainna sorriu.
-Niall também gosta desta historia. Queremos que esteja contente, já que terá
que esperar para ouvir histórias de Fionn.
-Não estará descontente se nossa chefe se encontrar a salvo no salão, bem
alimentada e rindo, esquecendo suas preocupações.
-Nunca as esqueço, tio. - Murmurou ela, e suspirou.
-E o som de seu suspiro era como o murmúrio da grama no outono. - Disse
Lorne brandamente, olhando-a. - Ou como as folhas secas ao vento, que mudam para
preparar-se para o sono do inverno.
Alainna sorriu com tristeza.
-Como poderia rechaçar uma oportunidade de escutar semelhante poeta?
Melhor será que nos apressarmos. Alguém estará impaciente porque ainda não nos
sentamos à mesa, e a comida já está preparada.
-Estará muito atarefada evitando que Finan aproxime o focinho de seu guisado. -
Disse Lorne.
-Sire, eu não sou a pessoa adequada para essa tarefa. - Enquanto falava,
Sebastien olhava fixamente as chamas da chaminé do quarto privado do rei. Essa dama
quer um guerreiro celta com tranças e tartam.
-Não tem alternativa. - Replicou o rei-. Terá a você.
Em silêncio, com a mandíbula tensa, Sebastien se aproximou de uma mesa e
pegou uma jarra de bronze para verter vinho quente e picante em umas taças de madeira
com bordas de prata. A fumegante fragrância do líquido se pulverizou pelo ar quando
entregou uma ao rei, e depois colocou uma terrina de maçãs perto de sua cadeira.
Retornou junto à chaminé e ficou de pé enquanto bebia de sua taça.
-Lady Alainna pediu um guerreiro exemplar, e eu vou enviar lhe um. - Disse o rei.
Cortou uma maçã com uma pequena faca. - Vocês presenciaram a audiência, sabem que
seu clã necessita um protetor.
-Sim, meu senhor, lembro-me.
A elegante dignidade de Alainna MacLaren e a desesperada necessidade que se
lia em seus olhos azuis não eram coisas que se pudessem esquecer facilmente. A moça
inclusive havia aparecido em seus sonhos, inquietantes sequências de luxúria e angústia
que lhe deixaram com um sentimento de nostalgia. Sentia uma inegável necessidade de
ajudar a ela e a seu clã, e, entretanto se perguntava pela origem daquele desejo.
-Meu senhor. - Prosseguiu ao fim de uns instantes. - Honra-me com semelhante
favor, mas tenho pensado residir em Bretanha e me casar ali.
-Um viúvo com um filho necessita uma esposa. Estou-lhe dando uma herdeira
escocesa proprietária de vastas terras. Como meu paladino no norte melhorará de modo
incomensurável sua posição em Escócia, Inglaterra e França. Viva com sua família onde
lhes agrade, depois de se certificar de que Kinlochan se encontra em paz.
-A dama protestará pela concessão e pelas núpcias. Sem dúvida, seu clã
protestará também.
-Igual a você, parece-me. - Disse o rei. - Por que duvida?
-Prefiro minhas terras e minhas mulheres domesticadas, sire. - Respondeu
Sebastien em tom irônico. Guillermo riu ligeiramente.
Na realidade, Sebastien desejava aceitar aquele pedaço de terra, mas não
queria casar-se para tê-lo. Esperava encontrar uma esposa nobre francesa ou bretã que
substituiria a que havia perdido. Certamente, seu filho necessitava uma mãe, mas Conan
tinha direito a uma herança francesa através de sua mãe morta, e precisava educar-se na
França ou em Bretanha, não na fria e distante Escócia.
Contudo, a idéia de casar-se com Alainna MacLaren lhe causava um profundo e
sutil estremecimento no mais fundo de seu ser. Franziu o cenho, pensativo, sem deixar de
contemplar as vívidas chamas. As montanhas agrestes e remotas das Highlands,
habitadas por bárbaros, inclusive os governados por uma bela moça, não o ajudariam a
estabelecer o legado de terras e herança que asseguraria o futuro de seu filho. Soltou um
profundo suspiro.
-Tenho certeza de que Lady Alainna lhe agrada. - Disse o rei.
-É... encantadora. Mas a Escócia está muito longe de Bretanha, sire. E essa
moça espera que seu marido adote o sobrenome de sua família. – Calou-se por um
instante. - Não posso fazer isso.
-Então se negue a adotar seu sobrenome. - O rei encolheu os ombros. - Se
deseja possuir os direitos sobre essa terra, além disso do privilégio de ser o dono de uma
concessão assim na Escócia, terá que se casar com essa dama. Ela pagou o tributo de
sucessão. Kinlochan não pode ser entregue a ninguém mais no prazo de um ano, exceto
por meio de matrimônio. Quando enviarem uma cópia do contrato de núpcias entre você e
Lady Alainna a meu camareiro, a nova concessão se redigirá a seu nome.
-E não antes. - Comentou Sebastien em tom terminante. Sentiu um músculo
contrair-se em sua mandíbula, sentiu uma armadilha fechar-se sobre ele.
-E não antes -repetiu o rei em tom depravado. Cortou uma rodela de maçã. - Me
diga, Bastión, que terras possui agora?
-Um pequeno castelo e uma casa na Bretanha, de cinquenta e cem acres
respectivamente, entregues pelo duque de Conan. - Respondeu Sebastien. - Em York,
uma casa forte de mil acres concedidos pelo rei Enrique como pagamento de serviços
prestados há anos.
Prometeu-me um título junto com a terra, mas parece haver se esquecido desde
que vim para Escócia. - Acrescentou secamente. - Nunca residi em minhas propriedades,
mas sim as cedi a arrendatários.
-Existem terras que eram propriedade de sua finada esposa?
-Não diretamente, sire. Meu filho é herdeiro de um castelo e de algumas terras
na França, mas a família de sua mãe reside ainda ali.
Guillermo assentiu pensativo.
-Originalmente, devem sua lealdade ao duque de Conan, naturalmente. Mas ele
cedeu você e seus camaradas a meu serviço durante todo o tempo que eu lhes necessitar.
O ato de acatamento que assinaram não expirou ainda, e pode renovar-se.
-Sinto-me honrado, meu senhor. - Sebastien falou devagar, com cautela. - Mas,
como sabem, existe um assunto urgente que requer minha presença na Bretanha o quanto
antes.
Já havia lhe explicado dias antes o problema de seu filho e dos monges de
Saint-Sebastien. Havia-lhe sido estendido o privilégio de se servir de um mensageiro real,
a fim de que pudesse responder ao abade. Em sua carta lhe emprestava o uso de suas
propriedades na Bretanha e prometia retornar logo que pudesse comprar uma passagem
em um navio que se dirigisse a França.
-Certamente, deve voltar, mas ainda não. Para lhe tranquilizar, despacharei um
mensageiro com uma carta para o duque de Conan e sua duquesa, minha irmã.
Recomendarei que se ocupem do bem-estar desse grupo de monges.
-Estou em dívida com você. - Sebastien fez uma leve reverência, com os punhos
fechados. Não era nenhum tonto; percebia o quanto era muito aquela dívida.
-É meu dever caridoso. A dívida pode pagar-se com serviço contínuo. Assinaram
um voto de me servir que ainda seguirá em vigor durante vários meses mais. No momento,
suas destrezas resultam necessárias em Kinlochan.
Sebastien olhou ao rei com os olhos entrecerrados. Sentiu uma onda de raiva,
mas sabia que rechaçar abertamente aquela concessão poderia acabar não só com suas
possibilidades de obter terras em Ardia, mas também com a ajuda que o rei iria prestar a
Conan e aos monges.
-Meu senhor é generoso. - Disse brevemente. - Mas devo lembrar ao rei que não
sou o guerreiro que fui em outro tempo.
Naquele momento se sobressaltou ao apanhar a maçã que lhe lançou Guillermo.
Não a tinha visto vir de seu lado esquerdo até que quase foi muito tarde, devido a sua vista
defeituosa, mas a segurou em sua mão esquerda com rápida agilidade. Se tivesse sido a
folha de uma adaga, a teria desviado com o escudo ou com uma arma por puro instinto.
-Acredito, Bastien. - Disse o rei com suavidade. Que ainda é plenamente o
guerreiro que foi em outro tempo, mesmo que ultimamente apenas tenha provado suas
capacidades. Vá a Kinlochan e se ocupe por mim desse assunto.
-Sire. - Disse Sebastien.
-E se ocupe de que se construa ali um castelo de pedra.
-Um castelo? - Teve a sensação de que o atoleiro que o estava tragando
acabava de ficar mais denso, mais profundo.
-Kinlochan está situado em uma entrada às montanhas do oeste das Highlands.
A presença militar normanda nessa zona é essencial para garantir nossa autoridade e
desalentar a rebelião celta.
Sebastien o olhou consternado.
-Um projeto assim poderia levar anos. - Desejava ardentemente uma
oportunidade para fiscalizar a construção de um castelo dele, mas não daquela forma. Não
na Escócia.
-Disporá de tempo para ser o barão. Têm experiência na construção de castelos,
não é assim?
-Interessei-me por seu desenho. O barão inglês que me acolheu como escudeiro
e jovem cavaleiro construiu três castelos de pedra na Inglaterra enquanto eu fazia parte de
sua família e mais tarde estando a seu serviço. Permitiu-me assumir certas
responsabilidades na tarefa de contratar pedreiros e aprovar o desenho. O processo não
me é totalmente desconhecido.
-Necessitarão essa experiência quando contratarem pedreiros e iniciem as
obras. Com a ajuda de recursos reais, é obvio, mesmo que também se destinarão a essa
empresa os ganhos de Kinlochan.
-Esperemos que Kinlochan tenha ganhos próprios, sire. A julgar pelo que indicou
Lady Alainna, trata-se de um clã pobre.
-Sem dúvida descobrirá logo. De momento, pegue vinte homens e parta. Deixe-
me suficientes bretões para uma guarda de honra. Quando tiver visto o que falta ali,
busque mais homens. - O rei Guillermo sorveu seu vinho, relaxado e seguro de suas
ordens.
-E o que tem que esse tal MacNechtan, que apresentou uma petição?
-Afirma ser leal, mas se é uma ameaça para o clã dessa dama ou para a Coroa,
deverá ser reprimido.
-E se não for uma ameaça?
-Não sou tão estúpido para acreditar nisso. - O rei depositou sua taça. - Existe
outra razão pela qual quero que você monte uma guarnição ali. Os MacWilliam ainda se
mostram inflexíveis em afirmar que têm direito a este trono através de sua descendência
do rei Duncan. Pode que encontre apoio nessa parte das Highlands.
Sebastien franziu o cenho.
-Faz mais de um ano que derrotamos a um grupo desses rebeldes celtas. Os
que não morreram no campo de batalha e escaparam de ser capturados e executados,
fugiram para a Irlanda e ao exílio. Seriam uns loucos se voltassem.
-Dizem que ao menos um deles saiu da Irlanda para procurar apoio a sua causa
nas Highlands: Ruari MacWilliam.
-Lembro-me desse nome. Um celta de grande ferocidade, e uma força com a
que contar. - Disse Sebastien. – Pensei que estivesse morto.
-Assim acreditávamos todos. Meu informante esteve recentemente na Irlanda e
nas ilhas ocidentais, e disse que esse homem partiu da Irlanda não faz muito e se dirigiu à
zona dos arredores de Kinlochan.
-Por que? Não pode encontrar apoio que lhe seja de utilidade em um clã débil.
-Os MacNechtan podem lhe proporcionar esse apoio. Averigue se estão aliados
com os rebeldes. Poderiam estar dando refúgio a esse Ruari MacWilliam. Se for assim,
terá que se ocupar deles, e com dureza.
-Leal ou não, pode que MacNechtan se rebele quando se inteirar de que
Kinlochan foi entregue a um estrangeiro. As pessoas das Highlands se inflamarão logo e
não se esfriarão com facilidade.
-Esse sangue quente é precisamente o motivo pelo qual Kinlochan não pode cair
nas mãos dos celtas. Ali precisa de um cavaleiro de temperamento calmo e experiência
militar. Confio em você.
Sebastien se inclinou rigidamente e partiu sem dizer uma palavra. Quando
estendeu a mão para abrir a porta, tinha o punho fechado com tal força que os nódulos
estavam brancos.
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
***
Sebastien suspirou, contemplando-a. A moça não devia vagar pelas colinas de
noite e sem escolta, seria uma presa fácil para os lobos e os MacNechtan. Pôs-se a andar,
assombrado por seu parente mais velho a deixar partir. Tocou com a mão o punho da
adaga que levava no cinto e decidiu que aquela arma teria que bastar para afastar
possíveis problemas com os quais pudesse tropeçar-se. Ato seguido se encaminhou
rapidamente para as portas, percorrendo com o olhar o pátio iluminado pela luz das
estrelas quando passou.
O pátio era espaçoso, sua forma circular estava definido pela cerca de madeira e
seu centro dominado por uma alta torre de madeira. Baixas construções se apinhavam
contra o rosto interior do muro; abrigos, estábulos, cozinha e cervejaria, e também um ou
dois edifícios cuja função não soube identificar. Tão somente o da cozinha, construído de
pedra enquanto os outros eram de madeira ou de tijolo cru, resplandecia pelo fogo aceso.
Adiante da porta aberta cruzou a sombra de uma mulher ocupada em seus deveres. Em
outro lugar mugia uma vaca em um curral no canto, e também se ouvia o ameno bufar dos
cavalos no estábulo.
A torre se erguia por cima de tudo, com seus três andares de altura, apoiada em
robustos postes de madeira. Umas quantas janelas estreitas abertas nas paredes de
madeira piscavam como adormecidos olhos dourados. Música e risadas saíam do segundo
andar, onde se encontrava o salão. Quase todos que estavam naquele momento em
Kinlochan se encontravam ali dentro, fosse no salão principal situado em cima das
despensas ou nos dormitórios do terceiro e último andar.
-Que buscas, normando? - Perguntou-lhe o guarda da porta.
-Proteger ao chefe de seu clã. - Respondeu ele diretamente. - Quer segui-la
você mesmo, ou prefere que o eu faça?
-Você tem as pernas mais longas que eu. Vá, então. Gritarei para avisar se
aproximarem alguns demônios. Mas a Donzela de Pedra protege a nossa Donzela de
Kinlochan.
Sebastien lhe dirigiu um olhar confuso por aquela estranha afirmação e saiu
pelas portas. O ar de fora estava frio e fresco, e um pouco úmido por causa do lago. No
céu, a noite estava ficando de cor anil.
Entreabriu os olhos e esquadrinhou a paisagem em busca de uma sombra
efêmera ou do latido do cão. Então divisou a jovem e seu cão correndo entre a alta grama,
já na outra margem do lago. Começou a descer com cautela pela inclinação rochosa,
abrindo-se passo nas sombras através de uma paisagem que lhe era desconhecida. Uma
vez que esteve já pisando na grama, pôs-se a andar com passos longos e seguros.
Alainna corria em direção à alta pedra que se erguia até o céu à beira do lago, e
então desapareceu atrás dela. Sebastien diminuiu a marcha. Se a jovem necessitava
tempo para si mesma, ele não queria incomodá-la; mas não pensava deixá-la ali só, com
um cão ou sem ele. Não pôde ficar discretamente para trás, pois o cão ladrou e correu até
ofegando amigavelmente, posto que já o conhecesse. Cheirou-o e logo colocou sua
enorme cabeça sob a mão que o cavaleiro lhe estendia.
-Calma, fera. - Murmurou Sebastien em tom carinhoso. - Está muito disposto a
defender a sua senhora, eh? Eu não vou fazer lhe mau, mesmo que ela acredite que sim.
Bom menino. - Continuou caminhando, com o cão trotando a seu lado.
Ao aproximar-se, viu que a pedra se erguia enorme, um alto pilar de granito
semelhante a um tranquilo gigante que olhava o lago. Foi levantando os olhos ao
caminhar. Inclusive na escuridão apreciou os elegantes relevos das superfícies anteriores
e posteriores.
Alainna saiu da sombra da pedra como se fosse uma aparição. O cão correu
para ela, rodeou-a em círculo e depois voltou até Sebastien, cobrindo a distância cada vez
menor que separava a ambos, uma e outra vez.
-Finam - Chamou Alainna. - Vêm aqui. O cão voltou a rodeá-la e de novo
retornou com Sebastien. - Finam!
Sebastien estendeu uma mão para lhe coçar a cabeça. Finam lambeu a mão e
correu outra vez até sua proprietária, aceitou uma carícia dela e retornou de novo,
movendo a rabo sem parar.
Alainna foi até eles.
-Não o entendo. - Disse-. Trata-o como se fossem um de meus parentes, mesmo
quando apenas lhe conhece. Finam, vêem aqui!
O cão a obedeceu, com a língua pendurada retornou junto a Sebastien para que
este lhe coçasse outra vez a cabeça.
-Quando meus homens e eu chegamos a Kinlochan, grunhiu bastante. - Disse
Sebastien. - Agora já parece estar acostumado a minha presença.
-Cormac MacNechtan o viu muitas vezes, mas cada vez que se apresenta atua
com ele como se fosse o diabo.
-Ah, seu Finam é um bom juiz de homens, então.
-Nem sempre. - Observou Alainna. - Defenderia-me até a morte se fosse
necessário, mas a maior parte do tempo parece ter muito pouca inteligência. Finam Mor,
venha aqui!
Sebastien incentivou ao cão para que voltasse com sua proprietária.
-Está confuso. – Disse. - Pergunta-se por que anda vagando na escuridão
quando poderia estar lá dentro. - Inclinou-se quando o cão retornou com ele e lhe esfregou
a cabeça. - Junto a um bom fogo, dormindo enquanto os seres humanos escutam contos,
eh, moço? Vamos, vá com sua dona.
Alainna lhe acariciou a cabeça. Sebastien se aproximou um pouco mais.
-Esse cão gosta de você com verdadeira devoção. - Disse em tom macio. - Não
há mais que ver como a olha, tão ávido para satisfazê-la. Fará o que você quiser. É um
dom inspirar uma devoção assim em uma criatura.
-Ach, não tem nenhum mistério. Uma carícia na cabeça o deixa atordoado. -
Acariciou a cabeça do cão e voltou o olhar para Sebastien. - Agora está entre as poucas
pessoas que conhece o secreto de Finam.
Ele inclinou a cabeça.
-Que segredo?
-Finam Mór é mais que um feroz cão de caça. - Disse Alainna. As bajulações o
deixam louco.
-Ah. - Sebastien começou a rir. Alainna sorriu, e seu coração parou de repente. -
As criaturas mais ferozes podem converter-se em anjinhos pela mão de uma dama assim. -
Murmurou.
Ela se voltou sem responder e se aproximou do pilar de pedra. Finam saiu de
seu lado, e logo retornou junto a Sebastien. Este contemplou a pedra examinando-a das
sombras. Era quase duas vezes mais alta que ele e duplamente larga, e estava coberta na
frente e por trás com desenhos em relevo de estranha beleza.
-Na Bretanha também temos pedras verticais. - Disse. - Em campos como este,
ou junto a um rio. Há milhares delas, velhas como as montanhas. Algumas são imensas, e
outras têm símbolos gravados, e algumas outras estão associadas com histórias de
sacrifícios, magia ou milagres.
Alainna não disse nada, mas ele notou que escutava atentamente.
-Colocaram-nas ali os antigos bretões. – Disse Sebastien. - Era um povoado
celta. Nossa língua não se diferencia muito da sua.
-É descendente de uma linhagem celta? - Perguntou Alainna.
Ele encolheu os ombros.
-Poderia ser. Fale-me desta pedra.
Ela apoiou a palma da mão no granito.
-Esta é nossa Donzela de Pedra, que está a gerações vigiando o clã Laren. A
Donzela era filha do clã Laren, Há muito tempo. - Correu a mão pela pedra como se
consolasse a uma amiga. - Mas alguns dizem que sua magia já se acabou. É possível que
esteja... cansada. Está há muito tempo presa no interior de esta pedra.
Sebastien a contemplou enquanto coçava distraidamente a cabeça do cão.
-Eu gostaria de conhecer sua história.
-Talvez lhe conte algum dia. Se ainda estiver aqui.
-Estarei aqui ainda durante um tempo, pelo menos. – Calou-se uns instantes
para ouvir um grito leve e fantasmal, quase humano, que se elevou na escuridão para
desvanecer-se depois. Um som que fez com que um calafrio lhe percorresse as costas. - O
que foi isso?
-Um gato selvagem. - Respondeu Alainna. - De noite andam por aqui, sobre tudo
nas colinas. Igual aos lobos. E os ursos, como já sabemos.
-No inverno esses animais têm mais fome e soam ainda mais ferozes. Será
melhor que nunca ande por aqui sozinha, minha senhora.
-Aqui estou protegida pela Donzela. - Repôs Alainna com simplicidade,
colocando uma mão sobre a pedra. - Venho a este lugar frequentemente para trazer
oferendas em nome de meu clã, e nunca me aconteceu nada.
-Admiro sua fé na tradição, mas um pouco de precaução de sua parte me
deixaria mais tranquilo.
-Por que deveria me incomodar eu em lhe tranquilizar? - Espetou-lhe ela.
-Será minha esposa. - Assinalou ele. - Lady Alainna, sei que as notícias que lhes
trouxe não são fáceis de agüentar. As ordens do rei tampouco me agradaram.
Alainna não disse nada, sua silhueta estava recortada contra a escuridão, junto
à pedra.
-Já lhes disse em Dunfermline que meus planos eram outros, e o continuam
sendo. Devo retornar a Bretanha para atender... certos assuntos de importância. Assuntos
pessoais.
Alainna assentiu de novo, silenciosa. Sebastien franziu o cenho; a paixão que
parecia tão intensa havia diminuído. Não queria ser o responsável por subjugar seu
espírito, mas temia que assim fosse.
O cão a cheirou e se sentou, olhando-a fixamente com pura devoção. Ela se
inclinou e lhe tocou a cabeça, e sua ondulada cabeleira se assemelhou a uma brilhante
capa.
-E o que é o que quer, se não deseja se casar com uma escocesa para obter
terras na Escócia? - Quis saber.
-Sempre foi minha intenção me estabelecer na Bretanha ao finalizar meus
serviços como cavaleiro. Tenho ali... fortes vínculos. Quanto mais tempo estiver na
Escócia, a maiores perdas me arrisco a ter na Bretanha.
-Então vai embora. - Disse ela simplesmente.
-Dei minha palavra ao rei. Esta situação também beneficiará a você; necessita
nosso amparo.
-Eu não necessito o amparo de ninguém.
-Seu clã, sim. - Lembrou-lhe Sebastien. - E acredito que faria qualquer coisa por
seu clã.
Ela levantou a cabeça.
-Assim é.
-Até se casar com um normando.
-Não me casarei com um normando se isso supuser algum dano para meu clã
ou a perda de nossas terras.
-Eu não sou o paladino celta que queria, mas não dispõem de nenhum outro, por
ordem do rei.
Alainna acariciou o cão e não disse nada.
-Minha senhora. - Disse Sebastien. - Os dois estamos presos nesta difícil
situação. Se brigarmos ou nos negamos, o rei concederá esta terra a outra pessoa, e
poderia ser que esse homem se sentisse inclinado a jogar os anciões à intempérie e
maltratar você, enquanto que eu não vou fazer tal coisa. Ambos não temos outro remédio
que aceitar e suportar a situação.
-Está pedindo que haja paz entre nós.
-Paz, ou uma trégua.
-Diga-me uma coisa, Sebastien Le Bret. – Gostava de como soava seu nome
pronunciado por ela, como o sussurro do vento sobre a água. - Está disposto a adotar
como seu o sobrenome de meu clã?
Ele calou-se um momento.
-Não posso fazer isso. - Só pensava dizer isso. O sobrenome e o lar eram
direitos naturais no mundo dela. Como iria entender o muito que significava para ele aquele
nome simples, que ele mesmo havia criado?
-Permitirá que nossos filhos levem o sobrenome de MacLaren em vez do Le
Bret?
Sebastien suspirou, pensando em Conan e sem atrever-se a pensar em outros
meninos que aguardassem no futuro nas sombras.
-Tampouco posso aceitar isso, minha senhora.
-Nesse caso. - Disse ela, Não temos um acordo. E não sei como poderá haver
um matrimônio.
Afastou-se, deu meia volta e desapareceu na sombra da pedra. Finam a seguiu.
Capítulo 8
***
-Giric! - Chamou Alainna ao ver seu irmão adotivo cruzar o pátio conduzindo um
cavalo selado até as portas. - Eu gostaria de falar contigo. - Agarrou a saia de sua túnica
ao sentir um estremecimento de incerteza.
Estava decidida a dizer: abertamente o que sentia, mesmo que supunha qual iria
ser a reação de Giric a seu impulsivo, inverossímil plano. Mas se o moço aceitasse,
poderia resolver seu dilema.
Giric a saudou com a mão. Além dele viu vários cavaleiros normandos e
montanheses no interior do estábulo baixo e estendido. O bretão estava de pé perto da
porta, captou o brilho de seu cabelo dourado nas sombras enquanto falava com um jovem
escudeiro, um dos três moços que tinham acompanhado aos cavaleiros e que agora os
ajudava a preparar suas montarias para sair a cavalgar.
Giric deixou seu cavalo aos cuidados de Aenghus junto às portas e foi até
Alainna com passou relaxado e balançando os braços.
-O que acontece? - Perguntou-lhe. - Estamos a ponto de sair.
-Já sei. Só umas palavras, por favor, antes que vá.
O menino franziu o cenho.
-Alainna, sei que não está contente com os normandos. Logo falaremos disso,
se isso é o que necessita de mim.
-Não te chamei para me queixar. Venha comigo. Os cavaleiros podem esperar. -
E lhe puxou o braço. Giric segurou a brida do cavalo e pôs-se a andar com ele a seu lado.
Desceram o aterro rochoso que levava ao lago, cuja superfície estava frisada por
suaves ondas. Alainna se dirigiu até a água e levantou a barra da saia quando a espuma
quase roçou quase seus sapatos de couro, e esperou a que Giric deixasse o corcel na
grama.
-Alainna, o que ocorre?
Ela percebeu a preocupação em sua voz.
-O que faria eu sem ti, Giric MacGregor? - Disse, voltando-se sorridente.- É um
bom amigo e um irmão para mim desde que veio aqui quando criança junto a meu pai.
-Não era tão bom amigo quando cheguei aqui com sete anos. - Replicou ele. –
Puxava seu cabelo, te dava rasteiras e escapava de ti correndo, que eu me lembre, mesmo
que você fosse três anos maior que eu.
Alainna sorriu com tristeza.
-Às vezes me tratava mau, você e meus irmãos, mas agora te agradeço por isso.
Acredito que todas aquelas brincadeiras dos três meninos me fizeram mais forte.
-Rara vez chorava, e me lembro que frequentemente se vingava de nós. E não
há de que, pelo fato de se endurecer. – Piscou um olho.
-Ah, Giric - Disse ela passeando a vista ao redor e cruzando os braços para
proteger-se de um súbito frio. – Sinto falta, sinto falta de todos... muito. -Reprimiu um
soluço. - Eu gostaria de saber o que pensariam eles agora se soubesse que perderemos
Kinlochan para as mãos de um normando. - Levou o punho à boca e escutou o gemido do
vento no lago. – Ach. - Disse. Ouve a pena que flutua no vento?
Giric lhe rodeou os ombros com um braço e a atraiu para seu lado.
-Pode que seus irmãos e seu pai já não estejam como à maioria dos homens do
clã. – Disse. - Mas eu estou aqui, e os velhos também. Não está sozinha. -Esfregou-lhe o
braço.
-Já sei. É muito leal com todos nós, e lhe estamos agradecidos. Sei que deve
partir para retornar ao clã Gregor, mas... tinha a esperança de que quisesse ficar conosco.
-Agora que o rei enviou ajuda a Kinlochan, logo serei livre para voltar para casa.
Eu gostaria de fazê-lo. - Olhou para Alainna. - O que você precisa? Não tem mais que
pedi-lo, e o terá.
Ela contemplou as montanhas que davam à fortaleza e tremeu no refúgio dos
braços de Giric.
-Diga-me o que opina da decisão do rei, Giric.
-Acredito que é algo necessário. - Respondeu ele com o semblante grave. -
Você já não pode seguir lutando sozinha contra os problemas deste clã, necessita a ajuda
de um marido, um guerreiro que conte com homens que o apóiem. Acredito que o bretão é
muito adequado para essa tarefa.
-Mas não é adequado para mim, nem eu para ele.
-Com um homem assim por marido, um paladino em muitas cortes, conforme me
disse seus cavaleiros, seu clã prosperará por fim.
-Não quer adotar nosso sobrenome, e não é gaélico. Meu pai não o aceitaria.
-Seu pai se alegraria por isto. - Disse Giric. Ela o olhou, surpreendida. - Estou
seguro. Aceitaria que o clã, na situação em que se encontra agora, necessita o amparo dos
normandos.
-O que precisamos são homens para vencer a nosso inimigo, e os normandos
não prometem tal coisa.
-Certo, os anciões preferem tomar vingança contra o clã Nechtan. Isso é o que
quer você?
-Vingança é uma palavra de homens. Eu desejo paz, e pôr fim a esta disputa de
sangue. Mas o fato de me casar com Sebastien não é garantia disso, e suporá um convite
para mais problemas! - Afastou-se uns passos. - Isto trará mais batalhas, e poderia nos
destruir a todos. Os normandos não têm a habilidade necessária para combater os
montanheses. Como pode dizer que meu pai estaria de acordo? Como pode está-lo você?
Não o entendo! Nenhum de vocês está do meu lado, nem sequer você!
-Fique em paz. - Disse Giric elevando a mão. - Eu não sou seu inimigo.
Alainna suspirou e assentiu com um gesto. Seu irmão adotivo frequentemente
conseguia acalmá-la. Amava-o como a seu amigo mais querido, mas com frequência não
fazia mais que aplacá-la e não lhe oferecia nenhum argumento, nenhum desafio.
-Eu sou a última resta. - Disse, contemplando o lago.
-Eles se alegram de que vá se casar bem de que desse modo continue sua
linhagem.
-Me casar bem... Esse é o problema.
-Eu penso que o cavaleiro bretão é adequado para ti.
Alainna se ergueu tanto como o pilar que olhava para o lago, enquanto o vento
fazia ondear sua saia e suas tranças.
-Giric - Disse-lhe. - Pode que haja uma solução.
-Qual?
-Se case comigo. Adote nosso sobrenome. - A frase ficou flutuando no ar.
-Alainna. - Giric deu uns passos para situar-se atrás dela. - Faria qualquer coisa
por ti, mas não posso fazer isso.
-Sim pode. Poderíamos nos casar, segundo a Igreja de Roma. Não somos do
mesmo sangue.
-Mas nosso sacerdote obedece à Igreja celta. De acordo com as leis celtas, o
fato de me haver criado como filho adotivo nos dá um parentesco igual ao de irmãos de
sangue; inclusive mais íntimo, dizem alguns. O padre Padruig se negaria a ser testemunha
de nosso casamento. Alainna...
-Tem que haver um modo. - Disse ela. - Se nos casarmos agora, se nos
unirmos hoje pelo rito do apertão de mãos, sem a bênção do sacerdote, não teria que me
casar com o cavaleiro estrangeiro. - Começou a passear pela margem do lago.
-Por que está tão empenhada? Não é isto o que quer.
Alainna não fez caso de sua tranquila lógica. Queria ação, uma paixão para
proteger seu clã que fosse igual à que sentia ela.
-Ele se nega a adotar nosso sobrenome. - Disse. - Isso destroçará o coração de
meus!
-Alainna. - Disse Giric com calma. - Mesmo que pudéssemos nos casar, eu
tampouco posso tomar seu sobrenome. Meu pai é um chefe entre os Gregorach, e eu
respondo ante o toiseach do clã Gregor. Ficaria furioso se eu fizesse algo assim, e meu clã
também. - Tocou-a no ombro e o massageou. – Quem dera os Gregorach enviassem ajuda
ao clã Laren, mas nosso chefe não quer entrar em uma disputa de sangue com os
MacNechtan.
-Já sei que lhes pediste que nos ajudem. - Disse Alainna. - Giric, que mais posso
fazer? Você é o único homem que pode compreender por que meu marido deve adotar
meu sobrenome.
-E o compreendo. Mas não posso fazê-lo.
Ela olhou as pedras que rodeavam seus pés.
-Não acreditava que fosse aceitar, mas tinha que lhe pedir. Ele colocou a mão
sobre seu ombro.
-Você não me quer por marido. Somos irmãos adotivos, e amigos, mas não
enquadramos como outra coisa. Você com seu gênio e seu martelo de ferro, e eu com o
medo que te tenho desde que era um pirralho que nem te chegava à altura do ombro. -
Falou em tom de brincadeira.
Alainna piscou para afastar as lágrimas.
-E agora sou eu que não chega a seu ombro e necessita sua ajuda.
Ele a rodeou com o braço.
-Ach, já sabe quanto te quero. - Murmurou. - Sabe que quero que seja feliz. Não
quero ver você chorar. E quando tomar uma esposa quero que seja exatamente como
você.
Alainna sorveu as lágrimas.
-Teimosa e solene, como sempre me definiu?
-Linda como a chuva e brilhante como as estrelas. - Afastou-a para contemplá-
la. – Agradeço-te por esta honra, mas deve escutar o seu coração, não seus medos. Você
necessita um homem que tenha tanta paixão como você.
-Você tem suficiente paixão para mim. - Disse Alainna irritada.
-Pois você tem muita para mim. Esse cabelo, esse gênio. Esmaga-me, e eu não
sou mais que um covarde, um homem calado.
-Eu gosto dos homens calados.
-O cavaleiro bretão não é um homem gritão nem fanfarrão. - Disse Giric sorrindo
ligeiramente.
Ela secou mais lágrimas.
-Você e todo o resto do meu clã pensam que deveria me casar com ele. Nenhum
de vocês foi contra as ordens do rei.
-Não só porque o rei o ordena. - Disse Giric. - Mas também porque esse
normando é um verdadeiro guerreiro, o que necessita seu clã, e possui a força e o espírito
que necessita você em um marido. Se case com esse guerreiro.
-Isso é o que diz o resto de meu clã. Querem falar com o padre Padruig e
celebrar as bodas em seguida. E o cavaleiro deseja o mesmo. Não obterá a assinatura do
rei no documento de propriedade até que possa lhe mostar um contrato matrimonial. –
Acrescentou, séria. - É que eu sou a única que vê o perigo que seria isto?
-Eu também insisto a que o faça. - Giric a olhou seriamente. - Acende-te como o
fogo cada vez que o tem perto, sabia?
-Isso não é nada bom. - Murmurou Alainna.
-Às vezes não, mas essa faísca que surge entre duas pessoas pode provocar
uma fogueira.
-O que sabe você? Fala como uma velha. - O olhou de esguelha.
Ele riu brandamente e voltou a rodeá-la com o braço, e a seguir se girou com ela
em direção ao prado.
-Olhe, já estão saindo os cavaleiros da fortaleza. - Disse. - Demoraram bastante
para prepararem-se, com tantos arreios e adornos para os cavalos e para os cavaleiros. Eu
prefiro a simplicidade das Highlands.
-Eu também. - Respondeu Alainna. Contemplou como os cavaleiros conduziam
suas montarias ladeira abaixo e ganhavam velocidade ao chegar no plano. Inclusive por
cima do rítmico murmúrio do lago ouviu o retumbar dos cascos dos cavalos e o tinir das
cotas e as armas.
-Reluzentes como uma moeda nova, e montando bons cavalos da Espanha e
Arábia. - Assinalou Giric. - Suponho que deveríamos lhes dizer que esses cavalos de patas
magras tropeçarão e se machucarão em nossas rochosas ladeiras das Highlands.
-Certo, deveríamos dizer-lhe. – Concordou Alainna. - Realmente têm um aspecto
magnífico, brilhantes e reluzentes como um exército de fadas.
-Ah, cativada pelo esplendor da cavalaria? Agora me dirá que quer um cavaleiro
por marido em lugar de um singelo celta.
Alainna não respondeu. Ao contemplar o cavaleiro que cavalgava na frente do
grupo, seu coração saltou como se fosse um salmão nadando rio acima.
Giric a abraçou com mais força, e ela se refugiou no consolo que lhe oferecia.
Seu irmão adotivo tinha razão ao adivinhar o que ela necessitava; ansiava algo mais que
calor e complacência. Uma paixão que igualasse a sua faria com que o matrimônio fosse
forte e estimulante em vez de entediado.
O cavaleiro bretão possuía uma força contida que a Alainna resultava quase
tangível. Cada vez que ele estava perto, experimentava estranhos, emocionantes calafrios
de desejo que a deixavam atônita e confusa.
Mas se casasse com ele, temia que seu clã fracassasse que a perda de seu
sobrenome ante um normando, com o tempo, significasse a perda de todo seu legado.
Afastou-se de Giric quando os cavaleiros se aproximaram.
-Vá, quase chegaram. - Disse-lhe. - Agradeço-te por me escutar. Por favor, não
me considere uma tola pelo que te disse.
-Tola, não; uma moça desesperada que ama os seus. Não há nada vergonhoso
nisso. Tomara pudesse fazer o que desejas. - Sorriu-lhe com tristeza e a contemplou por
um longo instante.
Logo se voltou para encaminhar-se até seu cavalo, que estava pastando.
Alainna permaneceu de pé na margem enquanto a água sussurrava a seus pés,
e observou como Giric montava e se reunia com a companhia de cavaleiros. Sebastien Le
Bret puxou as rédeas de seu garanhão de cor marfim e a olhou com grande intensidade
dede o prado.
Alainna desejava desviar o olhar, mas não pôde. O céu ia ficando nublado e
cinza, o vento soprava com mais força, e sentiu umas poucas gotas de chuva gelada.
Contemplou-o ao passar a seu lado e se rodeou a si mesma com os braços, notando o frio.
Uma tormenta estava a ponto de estalar também em sua vida, trazendo consigo
poderosas forças que poderiam a destruir com a mesma facilidade que com que a
renovasse.
Capítulo 11
-Não guardaram pouco de feno para dar de comer aos animais durante o
inverno?
Fortes passos ressoaram no piso do grande salão, e a voz do cavaleiro bretão,
aguda de impaciência, levantou eco na sala quase deserta.
Alainna levantou os olhos quando ele se aproximou do fogo, onde estava
sentada em companhia de Una e Morag. Deixou um momento o fuso e a roca que
sustentava e o olhou com calma, mesmo com o coração lhe retumbava no seio.
-Guardar feno? A que se refere? - Perguntou-lhe.
Ele retirou da cabeça o capuz da cota e tirou as luvas de couro. Tinha o aspecto
de cansado, pensou Alainna, e parecia zangado, com aquelas olheiras e aquele gesto
tenso na mandíbula coberta pela barba castanha.
-Acabamos de retornar depois de estar todo o dia fora e agora me inteiro de que
não há forragem para os cavalos nem para o gado. - Disse-lhe o cavaleiro. - Só pegaram a
aveia, conforme disse Niall.
É que sua gente não cortou a grama dos campos e os prados para alimentar os
animais nos meses de inverno?
Alainna olhou para Una e Morag, que piscaram de modo silencioso a resposta e
se voltaram de novo para sua tarefa de estirar bolas de lã estendidas em fios e enrolar
estas nos ramos que tinham na mão.
-Nunca fizemos tal coisa. - Respondeu Alainna.
-Por que não? - Quis saber ele, e golpeou as luvas contra a mesa. - Como
esperam alimentar os animais nos meses de inverno, quando não podem pastar devido ao
mau tempo?
-Nas Highlands não se costuma colher feno.
-Que não se costuma? Pois deveria acostumar-se. - Lançou um suspiro de
exasperação e se correu os dedos pelo cabelo, de um brilhante dourado escuro sob a
tênue luz. - O que vamos dar de comer a vinte cavalos? - Perguntou, meio que para si
mesmo.
-Aveia e centeio, O mesmo que comemos nós. - Repôs Alainna. Olhou às outras
mulheres e traduziu aquilo ao gaélico. - Há suficiente para os cavalos dos normandos? -
Perguntou-lhes.
Alguém encolheu os ombros e Morag negou com a cabeça.
-Duvidou. - Respondeu enquanto passava o dedo por um fio azul.
Alainna voltou a olhar para Sebastien.
-Se soubéssemos que viriam. – Voltou. - Teríamos cultivado mais aveia.
-Temos um problema, senhora. Economize seu mau gênio.
-Então economize o seu também! Não estou disposta a ser repreendida por algo
do que não tenho a culpa. Lamento muito que os costumes das Highlands não sejam do
agrado dos normandos, mas assim são as coisas.
Ele deixou cair sua capa sobre um banco e se sentou com as mãos nos joelhos.
-Teremos que fazer algo a respeito, se quisermos ficar aqui.
-Então não fiquem. - Replicou Alainna. Viu que ele esticava a boca e que lhe
contraía um músculo na mandíbula, e percebeu que entreabria os olhos. Esperando uma
reação violenta, desviou o olhar e se concentrou em enrolar mais fios de lã vermelha ao
redor do tear.
Ele deixou escapar um comprido suspiro.
-Seus parentes dizem que não há feno nem forragem em nenhuma parte, nem
aqui nem nas pequenas fazendas dos arrendatários. - Disse já mais calmo. - Qual é,
exatamente, o costume das Highlands para alimentar o gado no inverno?
-Não temos mais que uns quantos cavalos, e os alimentamos a base de aveia e
centeio. No inverno não conservamos muito gado, exceto uma vaca leiteira ou duas, um
touro e umas poucas ovelhas. O resto sacrificamos em novembro para defumar a carne ou
o deixarmos em liberdade.
-Deixar em liberdade? Para que sobreviva por sua conta como os cervos?
-Naturalmente. O que vamos lhe dar de comer?
-Feno. - Replicou Sebastien. Quando chega a primavera, não têm rebanhos?
-Os animais que sobrevivem ao inverno os reunimos em rebanhos de novo. -
Disse Alainna. – Colocamos em pastos de grama para que comam até que se reponham.
Mesmo que alguns deles estejam tão fracos que temos que transportá-los. - Admitiu.
-Transportá-los? - Perguntou Sebastien com incredulidade. - Às vacas?
-Assim é como se faz.
-Então, no futuro terá que mudar.
-Não tem que mudar. Nada tem por que mudar exceto uma coisa: Peguem seus
vinte cavalos e retornem ao sul.
Sebastien a olhou fixamente.
-Encontraremos um modo de dar de comer aos cavalos mesmo que tenha que
sair às pradarias a cortar a grama eu mesmo.
-Muito bem. - Repôs ela tranquilamente. - Ou poderiam ir para casa.
Sebastien olhou para outro lado lançando um suspiro de clara exasperação, e se
golpeou a palma brandamente com o punho em um intento de controlar sua ira.
-E outros animais? - Perguntou. - Aenghus disse que só há três vacas e quatro
ovelhas nos currais.
-E é verdade. - Disse Alainna. Os MacNechtan levaram o resto. Carecíamos de
homens e mulheres para cuidar e proteger nossos rebanhos, assim que os perdemos nas
incursões ou foram devorados pelos lobos.
Sebastien a observou durante uns momentos.
-E diz que não quer que as coisas mudem. - Comentou em tom irônico.
Ela continuou enrolando a lã, dirigindo a roca e ajustando o peso do fuso.
-Algumas coisas devem permanecer tal como estão. - Replicou.
-E o que me diz de armazenar comida para sua gente e para a minha?
-Temos provisões de aveia e centeio, cestos de maçãs, cenouras, cebolas... -
Voltou-se para Una e Morag e traduziu ao gaélico a pergunta do cavaleiro.
-Temos comida. - Disse Una. - E também é pouca para os paladinos do rei ao
longo de todo o inverno, se isso é o que quer saber. O rei não enviou mantimentos para
seus cavaleiros nem para seus cavalos.
-Sorriu de sua própria piada. - Mas podem caçar e pescar para ter mais comida
enquanto perseguem os MacNechtan.
Sebastien suspirou.
-Tem razão, é obvio. Ajudaremos a procurar comida enquanto estivermos aqui.
-E quanto tempo vai ser isso? - Perguntou Alainna.
-Até que tenha terminado minha missão.
-Isso é muito. - Murmurou. Os dedos tremeram e lhe escapou o fuso, que caiu
rodando pelo estou chão e desenrolando um longo fio de lã vermelha. Sebastien o deteve
com a bota. Alainna foi até ele para recuperá-lo e se agachou. Ao mesmo tempo, ele se
inclinou adiante para recolhê-lo, e ao fazê-lo-suas cabeças se chocaram com um ruído
audível. Alainna, com um gesto de dor, levou uma mão à cabeça, segura de que havia feito
mais dano a ele que ele a ela.
Nesse mesmo instante, Sebastien apoiou a palma da mão na testa da moça.
-Está ferida? - Perguntou-lhe, ainda inclinado sobre ela.
O calor daquela mão resultou assombrosamente eficaz e dissipou a dor quase
imediatamente. Alainna lhe acariciou a testa alta e suave, sentindo seu cabelo grosso e
surpreendentemente sedoso ao tato.
-Não. Achei que você estivesse. - Disse.
-Eu tampouco. - Sebastien retirou a mão, e ela se afastou um momento depois. -
Têm a cabeça dura. - Admitiu, esfregando a têmpora.
-Igual à sua. - Repôs Alainna, e recolheu o fuso.
-Isso deve indicar de que é uma jovem teimosa. - Murmurou ele.
-Necessitava um sinal que lhe indicasse isso?
Sebastien riu levemente.
-Absolutamente. -Começou a enrolar os fios enquanto Alainna sustentava o
novelo. De um modo ou de outro. - Murmurou enquanto trabalhava, em voz muito baixa
para que só Alainna pudesse ouvi-lo. Terá que suavizar um pouco essa sua teimosia e
aceitar que sua vida vai mudar, Lady Alainna.
Ela ficou em silêncio, pois não tinha resposta para aquela verdade. Observou
como os dedos longos e ágeis de Sebastien dirigiam a lã com suavidade e destreza. Sentiu
que a percorria um calafrio, porque de repente teve a impressão de que o que tinha em
suas fortes e capazes mãos era o fio de sua própria alma.
Arrebatou-lhe o extremo do fio e retornou contra o fogo.
Capítulo 12
-No extremo sul do lago. - Disse Alainna, assinalando desde seu cavalo -.
Kinlochan tem colinas largas e ondulantes com bons pastos, e também algumas terras
cultiváveis. Ao norte. - Girou seu cavalo para assinalar de novo. - A terra é mais agreste,
mais dura, com altas montanhas e penhascos escarpados. Ali há zonas de pastos, mas
escasso terreno para cultivar.
Sebastien assentiu com um gesto, a lombos de seu corcel árabe de cor creme,
cuja crina resplandecia como a seda no ar frio e claro.
-Kinlochan se encontra situado a beira das Highlands, a modo de porta de
entrada. - Observou. - O lago mesmo está justo no ponto onde a terra muda. O resto da
montanha que domina o lago parece como se tivesse sido arrancado da rocha pura pela
mão de Deus.
-É um lugar espetacular e muito formoso. - Disse Robert. Sebastien se voltou
para olhá-lo. - Agora compreendo por que é uma propriedade tão desejável.
Giric deteve seu cavalo ao lado de Alainna.
-O clã Laren leva gerações lutando para defender estas terras.
-E agora as perdem com tanta facilidade. - Disse Robert. Sebastien captou a
preocupação que refletia o semblante de seu amigo e se deu conta de que este tampouco
aprovava o fato de arrebatar aquelas terras de quem tinha sido seus donos durante
gerações.
-Quantas fazendas arrendatárias existem em total dentro da propriedade? -
Perguntou Sebastien. - Não vimos mais que umas poucas.
-Quinze. - Respondeu Alainna. - A maioria delas já não estão habitadas.
-Os fazendeiros morreram, ou eles e suas famílias abandonaram o clã Laren e
se foram a outro lugar em busca de uma vida mais segura. - Explicou Giric. - Apascentar
rebanhos com os MacNechtan roubando tantas cabeças de gado não é gratificante.
-Imagino. - Disse Sebastien com gesto sério. Cavalgaram até o norte, em
direção a uma larga pradaria cheia de árvores. Uma magra capa de neve a havia
convertido em uma esplanada branca e as árvores nuas formavam escuros e complicados
desenhos que se recortavam contra o céu cinza.
-É mais tarde do que eu esperava. - Disse Alainna. - Quase anoiteceu, e já
passou da hora que deveríamos ter retornado a Kinlochan.
-Una e as mulheres terão já o jantar pronto. - Conveio Giric.
-E muitos dos cavaleiros se acostumaram aos contos que narra o bardo de noite.
- Comentou Robert. - Alguns saíram a patrulhar enquanto nós estávamos fora, mas é muito
provável que já tenham retornado e nos estejam esperando.
Sebastien assentiu e fez seu cavalo apertar o passo. Esse dia havia escolhido o
cavalo árabe, mas descobriu que tinha que selecionar cuidadosamente as rotas a seguir
por aquelas acidentadas colinas. Mesmo que os corcéis árabes tivessem uma pernada
mais longa e rápida que os percherones (uma raça especifica de cavalos escoceses)
corpulentos que montavam Alainna e Giric, os destes resultavam muito mais adequados ao
terreno. Robert também havia tomado um daqueles animais e parecia gostar de tê-lo
escolhido, mesmo que às vezes suas longas pernas faziam com que arrastasse os pés
pelas gramas maiores. O caráter afável de Robert havia convertido aquela circunstância
em objeto de diversão em vez de indignidade, como poderia ter sido o caso de muitos
cavaleiros normandos.
Sebastien diminuiu a marcha o suficiente para que Alainna pudesse situar-se a
sua altura. Ela mostrava uma atitude ligeiramente fria, mais formal que antes, mas ele não
podia censurá-la depois daquele surpreendente beijo.
Apontou para o lago que se divisava ao longe.
-Há várias ilhas no lago. Há construções em alguma delas?
-Só na maior, a do meio. - Respondeu ela. - Ali se levanta uma antiga torre. Giric
e eu, e meus irmãos, íamos ali de meninos. Há boa pesca. Às vezes vou recolher pedras
para o trabalho; as que estão lisas pela água aceitam bem as incisões, assim gravo cruzes
nelas.
-Deu uma ao rei. - Disse Sebastien. Alainna sorriu. - Tem nome seu lago? -
Perguntou-lhe depois.
-Lago Eiteag - Respondeu Alainna. - Que quer dizer «calhau branco e liso», a
mesma palavra que também pode significar «donzela loira». - Sorriu. - Chama-se assim
pela Donzela de Pedra, mas nós o chamamos simplesmente de lago.
Sebastien levou uma mão aos olhos a modo de viseira e olhou o lago.
-Eu gostaria de saber se essa ilha seria uma boa base para um castelo.
Ela encolheu os ombros.
-É um entorno muito belo, mas será prático? Necessitaria uma embarcação para
chegar até ele, a não ser que construa uma ponte.
-Isso pode ser feito. O lago é estreito, e proporcionaria um excelente amparo.
-Certo. - Disse Alainna. - E mais, algum antigo clã construiu nessa ilha. As ruínas
são muito velhas e agora só servem de casa para os pássaros.
Sebastien assentiu sem deixar de contemplar a ilha, e decidiu investigá-la mais
adiante, quando surgisse a oportunidade. Também faria um esboço de sua idéia, pois a
perspectiva de construir um castelo sobre uma ilha possuía um grande atrativo.
Enquanto prosseguiam a marcha, de repente Sebastien ouviu um uivo, violento
e alarmante, que reverberou por toda a pradaria. Voltou-se para olhar Robert e Giric, os
quais giraram em suas montarias com o cenho franzido.
-Isso parece um lobo. - Disse Giric.
-Mais de um. - Apontou Robert. - Veio dali... do bosque que há do outro lado do
prado.
Nesse momento se ouviu um chiado, agudo e estridente, logo outro grito, e
depois mais uivos.
Sebastien olhou para Alainna, que havia empalidecido e girava para
esquadrinhar o bosque.
-Não se movam daqui! - Ordenou-lhe Sebastien, e ato seguido esporeou o
cavalo árabe, que reagiu lançando-se para frente para atravessar o prado.
A suas costas, ouviu que Robert e Giric o seguiam a todo galope. Um rápido
olhar revelou que Alainna cavalgava atrás deles. Jurou baixo, mas de todos os modos não
esperava que ela obedecesse.
Ao aproximar-se do bosque, ouviu com claridade os gritos e os uivos inclusive
por cima do estrondo dos cascos dos cavalos sobre a neve. Freou seu cavalo e penetrou
com cautela na densa abóbada de árvores quase nuas, agachando a cabeça para evitar
um galho. Aferrou o punho de sua espada, desejando ter levado seu arco. Justo em frente
viu, através do emaranhado de galhos, figuras que lutavam nas sombras azuis. Os gritos e
os horríveis uivos continuavam sem cessar. Então se desprendeu da capa e desmontou.
Pôs-se a correr adiante e lançou um olhar fugaz a suas costas para ver se
Robert e Giric o seguiam. Assim era. Também viu que Alainna continuava montada, e
esperou que tivesse suficiente sentido comum para ficar ali.
Ao aproximar-se viu um homem em luta com um lobo, enquanto que um
segundo lobo saltava sobre ele. O homem, um montanhês a julgar por seu tartam e seus
joelhos nus, lançou um chute e, de um só golpe, deixou o lobo sem sentido. O animal
gemeu e desabou no chão, onde ficou imóvel.
O primeiro lobo tinha agarrado fortemente o homem pelo braço. Ambos se
debateram juntos, girando em uma horrível dança, o homem de pé e o lobo cinza
levantado sobre suas patas traseiras. Sebastien viu uma mulher que subia em uma árvore
levando um menino pequeno que empurrou até um robusto galho.
Sebastien se voltou rapidamente para Giric e Robert, que se encontravam a
vários metros dele.
-Seu arco! - Gritou agitando uma mão. - Seu arco de caça! Me de!
Giric, que levava consigo a arma, chegou correndo e a lançou para Sebastien,
tirou várias flechas de seu cinto e as deu também. Sebastien as pegou e se voltou para a
cena.
O montanhês lutando com o lobo, e agora o segundo estava levantando-se com
esforço. A mulher soltou um alarido.
Sebastien colocou a flecha, equilibrou-a e esticou a corda em um só movimento
fluido, e disparou o projétil sobre o lobo que avançava. O animal caiu no chão. Então
Sebastien se lançou adiante, com Giric e Robert lhe pisando os calcanhares. Não podia
perder um só momento em olhar para Alainna.
Ao aproximar-se percebeu que não podia disparar ao outro lobo tão facilmente; o
constante retorcer-se e girar de homem e lobo em sua resistência fazia com que disparar
resultasse muito traiçoeiro, e temia que pudesse matar ao homem em vez do animal.
Plantou-se com as pernas separadas e apontou uma e outra vez, sem disparar,
baixando cada vez o ângulo da flecha, sem ver uma possibilidade clara de atingir o alvo.
Os uivos e a violenta resistência suscitavam nele a desesperada necessidade de ajudar.
Estava claro que o montanhês se havia colocado em perigo para salvar à mulher e ao
menino, que continuavam na árvore, fortemente abraçados.
Só levava uns segundos ali de pé, mas o tempo era algo muito precioso para
tentar esperar. De modo que entregou o arco a Giric, desembaiou sua espada e se lançou
à carga. Pela extremidade do olho viu que Giric esticava o arco e o apontava, e que Robert
tirava uma adaga e o seguia, preparado para cobri-lo.
Com a folha nua, Sebastien se situou mais perto e se deteve, trocando o peso
de um pé ao outro, com a espada em alto. Quando homem e animal giraram de novo,
lançou a larga folha no ar, preparado para golpear. Assim que viu o lombo estendido e
musculoso do lobo girar até ele, deu um golpe lateral velozmente e com toda sua força,
que abateu o animal imediatamente. O lobo desabou no chão e soltou o braço do homem.
Por um momento, Sebastien e o montanhês se olharam fixamente um para o
outro. O homem estava coberto de sangue, o tartam esmigalhado e de cor clara que lhe
envolvia o braço como um frágil amparo se via empapado. Permaneceu de pé, respirando
pesadamente, o rosto de feições duras e bonitas mesmo que envelhecido, os olhos de um
penetrante azul sob umas sobrancelhas escuras, o cabelo escuro e com fios chapeados.
Cravou seu olhar no de Sebastien, e logo olhou os outros.
Então, com um rápido gesto da cabeça a modo de agradecimento a Sebastien,
deu meia virou e se internou rapidamente nas sombras do bosque.
Capítulo 13
Alainna gritou e começou a correr para frente, levantando as saias para avançar
sem tropeços, abrindo caminho através da vegetação e afastando os galhos magros de
seu caminho. Diante dela, a luta entre o homem e o lobo havia finalizado. De longe havia
visto Sebastien atacar e matar a um dos lobos, e viu aterrorizada que depois se
aproximava ainda mais, como se não temesse absolutamente por sua vida, para derrubar o
outro a pouca distancia com sua espada.
Deteve-se e observou como o montanhês encarava Sebastien ao outro lado do
corpo morto do animal. Naquele momento o coração, que lhe pulsava com força no peito,
quase parou.
Era Ruari MacWilliam que olhava para Sebastien, e o que logo a olhou para ela.
Os olhares de ambos se tocaram diretamente, reconhecendo-se.
Logo, o montanhês deu meia volta e pôs-se a correr.
Alainna deixou escapar uma leve exclamação e tampou a boca com as mãos
tremendo. Giric e Robert passaram velozes por seu lado fazendo ranger a neve e a erva
daninha sob seus pés. Estava segura de que o homem que havia visto era seu parente
Ruari Mór. Mas Ruari estava morto, lembrou-se a si mesma, morto pelos homens do rei no
campo de batalha ao sul da Escócia, no ano anterior. Entretanto, estava segura;
reconhecê-lo-ia em qualquer parte, sob qualquer barba, ensanguentado ou não. E ele
havia reconhecido a ela, Alainna tinha visto em seus olhos.
Com as pernas tremendo, avançou uns passos. Sebastien limpou sua espada na
neve e a guardou e a seguir se encaminhou até a base da árvore para ajudar à mulher e
ao menino que estavam nela.
Alainna acudiu em seguida para ajudar. Quando a mulher desceu da árvore, viu
que era uma amiga dela. Ambas as mulheres soltaram um grito e se fundiram em um
abraço.
-Lileas. - Exclamou Alainna. - OH, Lileas! Já está a salvo!
-Olhou para cima. - É Eoghan que está na árvore? Ach, pequeno, desça aqui! O
cavaleiro te pegará! Vamos, desça já!
-Eoghan. - Repetiu Sebastien, estirando-se para agarrar o menino pela cintura. -
Vêm comigo. Isso. - Disse com alivio enquanto pegava o leve peso do menino nos braços.
Voltou-se com o pequeno de cabelos escuros comodamente agasalhado em
suas braços e olhou para Lileas sorridente. Eoghan, o qual Alainna sabia que tinha três
anos, contemplou o cavaleiro e a sua mãe com grandes olhos castanhos notavelmente
tranquilo.
-Obrigada. - Disse Lileas em gaélico, e dirigiu a Alainna um olhar de
insegurança. - Alainna, este cavaleiro está contigo?
-É Sebastien Le Bret, que veio para Kinlochan com os homens do rei. -
Respondeu ela. - Sebastien, esta é Lileas, filha do padre Padruig, o sacerdote de nossa
paróquia. E seu filho Eoghan.
Alainna se fixou em Sebastien que ocultava sua surpresa admiravelmente bem;
estava segura de que não era frequente que conhecesse uma filha e um neto de um
sacerdote. O normando piscou e sorriu imediatamente, e inclinou a cabeça para Lileas a
modo de saudação.
-Estamos muito agradecidos. - Disse Lileas.
Estendeu os braços para tomar a seu filho, o qual sacudiu negativamente a
cabeça e se aferrou ao pescoço do cavaleiro. Sebastien parecia cômodo com o menino em
braços. Conversava com ele em voz baixa para distraí-lo da visão dos lobos mortos e as
manchas de sangue na neve enquanto o levava até a beirada exterior do bosque, onde
aguardavam os cavalos.
Alainna o seguiu com um braço ao redor de Lileas, que correu uma mão trêmula
pelo cabelo vermelho escuro. Estava tremendo de frio, e Alainna se deteve um momento
para tirar o tartam arisaid e colocá-lo sobre os magros ombros de Lileas, ao ver que a
jovem não usava o seu em cima da túnica de cor parda.
-Eoghan e eu voltávamos para casa, a nossa pequena cabana, depois de visitar
meu pai. - Disse a Alainna sem fôlego. Sebastien se girou para ouvi-la-. Não percebi que
estava tão tarde. Então apareceram os lobos e nos seguiram, tão silenciosos e
ameaçadores... - Estremeceu de novo, esta vez de horror.
-Quem era o homem que lhes acompanhava? - Perguntou-lhe Sebastien.
-Não nos acompanhava. Saiu do bosque para nos ajudar. De repente se
apresentou ali, graças a Deus. Nunca o havia visto. Deixou Eoghan na árvore e também
me ajudou a subir, e depois se enfrentou aqueles lobos como se não fossem nada que
temer. -Olhou a suas costas. - Esperou que o encontrem. Não sei por que se pôs a correr.
Esta ferido gravemente, tenho certeza, mesmo que lhe dando meu arisaid para que
envolvesse o braço com ele ao enfrentar-se os lobos.
-Provavelmente isso lhe salvou o braço. - Disse Sebastien, que olhou para
Alainna com o cenho franzido. - Conhece esse homem?
A jovem tragou saliva.
-Não... Não o vi de perto. - Respondeu com cuidado. - É estranho ver por aqui
um cavaleiro com armadura. Talvez seja esse o motivo pelo qual se assustou e saiu
correndo.
Sebastien riu, uma risada breve e concisa.
-Um homem que se enfrenta a dois lobos não se assusta facilmente.
-Voltou os olhos para trás. - Ah, já vêm Giric e Robert.
Alainna se voltou também.
-Sem o montanhês.
Seu irmão adotivo e o cavaleiro normando correram até eles.
-Foi-se. - Disse Robert sem fôlego. - Sumiu. Parece assombroso, para um
homem tão ferido gravemente. Nem sequer há uma pista de sangue para seguir.
Sebastien assentiu com um gesto.
-Um poderoso guerreiro, esse homem. - Disse pensativo, e se voltou para
Alainna com olhar claro e penetrante. Ela levantou o queixo e lhe devolveu o mesmo olhar,
com o coração acelerado. – Conhece-o? - Perguntou Sebastien para Giric.
-Não o vi bem. - Respondeu Giric. Dirigiu um olhar rápido e sério para Alainna, e
esta se deu conta de que seu irmão também havia reconhecido o guerreiro.
-Se era um MacNechtan. - Disse Robert. - Isso explicaria por que fugiu.
-Poderia ser. - Sebastien não parecia convencido.
-Lileas, está ferida? - Perguntou Giric.
-Estou bem. - Disse a jovem. - E meu filho também se encontra a salvo, graças a
este cavaleiro e ao homem que fugiu.
-Deixe que lhes leve a casa - Disse Giric, e olhou para Sebastien. - Robert e eu
carregaremos os lobos em um dos cavalos, e Robert pode levá-lo para Kinlochan. Depois
eu escoltarei Lileas e Eoghan até sua casa. Não está longe daqui, mas não se encontra
nas terras de Kinlochan. Alainna não deveria vir.
Sebastien aceitou com um movimento de cabeça.
-Eu a levarei de virou para Kinlochan.
Enquanto Giric ia procurar seu cavalo e Robert retornava à árvore, Sebastien se
voltou, ainda com o menino nos braços, e se dirigiu até onde estavam os cavalos. Alainna
e Lileas o seguiram. Eoghan assinalou o cavalo de Sebastien, que pastava
silenciosamente na grama e se sobressaía entre a neve.
-É esse seu cavalo?
-Sim. - Respondeu Sebastien. – Venha, vou lhe apresentá-lo, chama-se Araby.
Sua mãe era de um país no qual faz muito calor e muito sol. Não gosta de muito do frio. -
Acrescentou.
-Eu gosto do frio. - Disse Eoghan. - Eu gosto dos cavalos. Os cavalos brancos. -
Mostrou um largo sorriso.
Sebastien levantou o menino para que pudesse tocar as crinas longas e de cor
creme do cavalo e lhe acariciar a cabeça, enquanto o animal se mantinha passivo. Logo o
sentou na sela.
-Eu terei um cavalo e uma espada. - Anunciou Eoghan. - Serei um guerreiro
como meu pai.
-Estou seguro de que era um bom guerreiro, e você também o será
-Disse Sebastien. Fez o cavalo caminhar em círculos enquanto Eoghan, que
sustentava as rédeas, sorria feliz.
-Vamos já, sua mãe está esperando. - Disse Sebastien então. - Se alguma vez
vier a Kinlochan, poderá se sentar no lombo de Araby e dar uma volta. Você gostaria?
Eoghan assentiu muito a sério, e Sebastien o deixou nas mãos de sua mãe.
Despediu-se deles e aceitou o agradecimento de Lileas. Esta deu um abraço em Alainna e
levou Eoghan até Giric e Robert, que estavam saindo do bosque.
-Têm frio. - Disse Sebastien a Alainna em tom austero enquanto pegava na sua
sela sua capa forrada de pele e a colocava sobre os ombros da jovem. Vista isto.
Ela se estremeceu e o agradeceu com um gesto. Sebastien a ajudou a subir a
seu cavalo e depois, quando ele se voltou para montar também, Alainna olhou furtivamente
para o bosque, como se esperasse que aparecesse Ruari MacWilliam.
Estava segura de que Ruari estava já longe dali. Esperava que se refugiasse na
segurança da casa de sua esposa nas colinas. Reprimiu uma leve exclamação e se
perguntou se não teria estado já ali, se não seria aquela a razão pela qual Esa se negava a
descer das colinas e ficar em Kinlochan.
Sebastien deu volta em seu cavalo para ficar ao lado de Alainna. Esta sorriu
apesar dos angustiantes pensamentos que lhe corriam pela mente.
-Mostrou muito valor aí atrás. - Disse-lhe. Ele encolheu os ombros e murmurou
umas palavras de modéstia. - Foi um ato prodigioso. - Insistiu Alainna. - Giric contará aos
meus, e Lorne ficará encantado. Já está compondo um poema a respeito de você e do
urso. Agora terá que acrescentar mais versos. Estou muito agradecida por atuar tão
rapidamente para salvar à filha do padre Padruig e a seu filho. Ouvirá muitas palavras de
agradecimento pelo que fez.
Sabia que estava falando muito, mas é que queria evitar que seus pensamentos
e seus olhos escapassem até o bosque.
-Eu cheguei primeiro, isso é tudo. - Disse Sebastien. - Giric teria feito o mesmo,
ou Robert, ou qualquer outro que tivesse armas e capacidade. O valente foi esse
misterioso gaélico que fugiu antes que pudéssemos lhe agradecer.
Alainna manteve os olhos à frente.
-Esperou que não esteja ferido gravemente.
-Esperemos que tenha parentes perto que possam lhe curar as feridas. -
Murmurou Sebastien, olhando-a de relance. Alainna se limitou a assentir e não disse nada.
- Eoghan é um menino muito bom. - Comentou ao fim de uns instantes.
-Gosta dos cavalos e os guerreiros, como todos os meninos pequenos. -Disse
ela. – Foi muito paciência com ele.
-Foi um prazer. O sacerdote é avô dele?
-O padre Padruig e sua esposa têm três filhas. Os sacerdotes das Highlands que
pertencem à Igreja celta e não a de Roma tendem a casarem-se e formar uma família.
-Ouvi sobre isso. Sei que Roma condena essa prática, mas aos montanheses
isso não parece incomodá-los. - Olhou para Alainna. - O pai de Eoghan está vivo, ou é um
dos homens que morreram lutando pelo clã Laren?
Alainna titubeou.
-Seu pai é Cormac MacNechtan.
-Cormac! - Sebastien ficou olhando. – Pensei que não estava casado... Pediu
sua mão.
-Faz alguns anos ele e Lileas se uniram pelo rito do apertão de mãos. -Explicou
Alainna.
-O apertão de mãos? É como casar-se?
Ela assentiu.
-É um passo intermédio entre o compromisso e o matrimônio, com os votos de
um e os privilégios do outro. Se não forem felizes, o casal pode dissolver a união ao fim de
um ano e um dia. A maioria fazem os votos ante um sacerdote.
-Lileas e Cormac não fizeram os votos?
-Ela viveu com Cormac em Turroch, mas sua união pelo apertão de mãos não
chegou a durar um ano. Teve Eoghan poucos meses depois de retornar a casa de seu pai.
Agora, ela e o menino vivem em sua própria casa, que lhes proporcionou Cormac. Ele
reconheceu o menino, como devido.
-Então lhe cabe certa honra. - Disse Sebastien, um tanto irônico.
Alainna encolheu os ombros.
-Você se mostrou amável com o pequeno. Esperou que conhecer o nome de seu
pai não lhe faça mudar de opinião.
-Não penso fazer pagar o menino pelos pecados de seu pai. - Replicou ele. O
vento lhe revolveu o cabelo quando levantou os olhos para as montanhas. Lembra-me
alguém.
-Eoghan se parece com seu pai.
-Lembra meu filho.
Alainna o olhou boquiaberta.
-Seu filho? - Naquele dia já havia tido muitos emoções, disse a si mesma, meio
enjoada; primeiro os lobos, logo Ruari, agora isto. Continuou olhando-o fixamente. - Seu
filho?
Sebastien esboçou um lento sorriso, e Alainna viu nele orgulho e prazer.
-É um pouco maior que Eoghan. Eu sou viúvo.
-Não tinha me dito isso disse.
-Não me perguntou. - Repetiu as mesmas palavras que ela disse. - Este
matrimônio nos veio imposto muito rapidamente aos dois, há detalhes que não
conhecemos um do outro.
Ficou calado uns instantes. - Se tiver algo para me contar, esta é a ocasião de
fazê-lo.
-Eu não tenho marido. - Disse Alainna, séria. - Nem filhos.
-Me alegro de saber. - Repôs ele em tom macio.
-Quando se casaram? - Quis saber Alainna, de repente sem fôlego, com o
coração lhe retumbando no peito ao imaginá-lo com uma esposa anterior, sem dúvida uma
mulher com a qual se havia casado por decisão própria. De forma espontânea, a
lembrança do beijo que tinham compartilhado fazia seu rosto arder.
-Foi há seis anos. Faz mais de três desde que morreu. - Apoiou sobre a coxa o
punho fechado e com os nós dos dedos brancos. Aquela calada intensidade comoveu o
coração de Alainna.
-E o menino? Onde está agora?
-Na Bretanha. Só tem cinco anos. Chama-se Conan, como meu suserano, o
duque da Bretanha.
Contemplou-o, curiosa e atônita. Percebeu que aquele homem guardava um
profundo poço de sentimentos e experiências, que só lhe havia contado o mais superficial,
mas o que se vislumbrava por debaixo era muito tentador. Era pai, havia sido marido, havia
se criado órfão em um monastério para meninos enjeitados. Não lhe estranhava que
houvesse mostrado tanta paciência e amabilidade com Eoghan.
-Por que não me fala dele?
Sebastien deixou passar alguns uns instantes.
-É esperto e forte, loiro como eu, e tem os olhos de sua mãe. É como... como a
luz do sol. - O brilho sutil de seu sorriso oprimiu o coração de Alainna. - Deixei-o com
amigos, monges, em um monastério na Bretanha, o lugar onde eu vivi quando era
pequeno. Pareceu-me o melhor.
-Estou segura de que se encontra seguro e bem cuidado durante sua ausência.
Ele franziu o sobrecenho.
-Conan já não está ali. Um incêndio destruiu uma grande parte do complexo e
todos foram forçados a partir. Eu me inteirei disso pouco antes de ser enviado aqui. -
Esticou a mandíbula. - Agora não sei onde está.
-Oh, Sebastien. - Sussurrou Alainna, e estendeu uma mão para lhe tocar a
manga da cota. - Esse é o motivo pelo qual está tão decidido a retornar.
-Em parte. Logo que me inteirei mandei uma carta, oferecendo que fizessem uso
de minha propriedade na Bretanha, mas não sei se a carta chegou.
-Deve retornar e procurar o menino. - Disse Alainna com decisão-. E trazê-lo
com você para Escócia.
Sebastien levantou as sobrancelhas.
-Aqui?
Alainna afirmou com a cabeça.
-Aqui tem um lar e uma família.
Sebastien diminuiu o passa do cavalo e olhou fixamente para a jovem. Logo
reatou a marcha em silêncio, olhando as colinas, como se tivesse esquecido que ela
estava a seu lado.
-Sebastien? - Disse ela.
-Não... Não tinha pensado trazê-lo aqui. - Respondeu ele. - Sempre pensei que
Conan cresceria na Bretanha. Converter-se-ia em conde das terras de sua mãe na França,
que agora estão em posse de seu avô.
-Ah. - Sentiu que a invadia uma dor fria. - Entendo. Não quer que seu filho
cresça como um bárbaro em uma terra selvagem.
-Não é isso. - Replicou ele bruscamente.
-Não sou idiota. - Alainna não quis olhá-lo.
Sebastien suspirou, como sem vontade de falar.
-Eu... Eu tenho muitos sonhos, muitas ambições em minha vida. - Disse por fim.
- Não esperava que nada disso me conduzisse até aqui, mas por alguma razão aconteceu.
-E o lamenta. - Disse Alainna. O vento levantou a barra da capa que usava e lhe
revolveu o cabelo. - É compreensível em um cavaleiro de seu calibre e sua educação.
-Você conhece muito pouco sobre minha educação.
-Então me fale você, para que a conheça.
-Não contei a quase ninguém.
Alainna aguardou, mas ele não disse mais nada.
-Protege seu passado com grande zelo.
-Simplesmente não sou dado a falar disso. Meu passado é... meu.
Alainna o olhou séria.
-Algum dia romperá essa couraça que leva sobre o coração, Sebastien Bàn. -O
nome que usava Una para nomeá-lo veio aos lábios de forma natural.
-Pode ser que algum dia sim. - Repôs ele.
Robert os chamou com um grito. Eles se voltaram e pararam suas montarias
enquanto o outro cavaleiro chegava até eles, puxando um cavalo carregado com os dois
lobos.
Alainna saiu à densa névoa matinal levando uma oferenda de aveia para deixá-
la ao pé do pilar de pedra. Precaveu-se de que a nata, a aveia e o queijo que havia
deixado na vez anterior tinham desaparecido, a terrina, tudo. Normalmente as oferendas
eram devoradas por animais... mas os animais não estavam também com as terrinas.
-Finam! - Chamou o cão, que vagava por aí farejando a erva. Provavelmente
havia percebido o aroma da pessoa que tinha estado ultimamente perto da pedra. O cão
olhou de frente para o terreno rochoso que se estendia além da Donzela de Pedra e
ladrou.
-Cala, Finam - Disse Alainna. - Hoje não estamos perseguindo cervos. Volte
aqui!
O cão correu até sua dona, mas girou e voltou atrás de novo, pelo mesmo
caminho, e ladrou outra vez. Alainna olhou ao redor, mas não pôde ver nada mais lá da
pedra e a margem próxima do lago, onde a névoa formava redemoinhos.
Começou a cair uma chuva fina e gelada, e fechou um pouco mais seu arisaid
para tampar-se. Murmurou um cântico, rodeou a pedra no sentido do sol e se voltou para
retornar à fortaleza.
-Finam! - Chamou. Ach. - Murmurou irritada, porque o cão havia desaparecido.
Quando o ouviu ladrar perto das árvores, que estavam cobertas pela névoa, dirigiu-se até o
bosque olhando cautamente a seu redor.
A forma de ladrar do cão era a que utilizava com seus parentes e com Sebastien
Le Bret, mas os homens estavam ainda no interior da fortaleza. Estavam acostumados a
sair todos os dias a patrulhar a propriedade e visitar os arrendatários um por um. Sebastien
também havia começado a calcular o número de acres que tinha as terras medindo as
distâncias entre as pedras que assinalavam os limites. Aquela tarefa por si só levaria muito
tempo. Mas nada podia fazer-se com uma névoa tão espessa, assim que os cavaleiros
ficaram esse dia dentro de Kinlochan para reparar e limpar suas armas e cotas e os arreios
de seus cavalos.
-Finam! Aqui, moço! Vêm aqui!
-Alainna! - Uma voz de homem, baixa e em tom urgente, chegou-lhe das
árvores. Era uma voz familiar, mesmo que distorcida pela névoa.
-Niall? - Perguntou. - Lorne?
-Alainna, aqui. Ajude-me.
Então sentiu um calafrio lhe percorrer as costas. Avançou até o cão e o segurou
pela coleira.
-Leve-me até Ruari. - Insistiu.
Finam a conduziu ao refúgio das árvores, através da névoa. Alainna se lançou
adiante e ouviu que a voz a chamava de novo.
Surgiu um homem diante ela.
-Alainna. - Disse. Fazia muito tempo que não ouvia aquela voz tão familiar, tão
querida. Ele apoiou um largo ombro contra o tronco de uma árvore e sorriu.
Alainna parou em seco.
-Ruari! Oh, Ruari, é você!
-Alainna milis, doce menina. - Disse ele. Finam correu até ele, e Ruari lhe
acariciou a cabeça e sorriu para Alainna de novo. Tinha o cabelo mais branco do que ela
se lembrava, e a barba também, mas ainda conservava muitos fios negros. Seus olhos
eram do mesmo azul vivo que lembrava, sob umas sobrancelhas arqueadas e escuras. E
seu sorriso, sempre inclinado, sempre encantador, não havia mudado absolutamente.
Abriu um braço para receber Alainna, e esta correu até ele.
-É um fantasma? - Riu a meias enquanto o rodeava com os braços.
-Não sou um fantasma. - Respondeu Ruari com um leve grunhido. - Sou de
carne e osso, e voltei para casa com a esperança de ser bem-vindo.
Alainna lhe beijou a curtida bochecha e depois se afastou, secando as lágrimas,
ao se lembrar que estava ferido. Levava um braço envolto em um tecido puído e
ensanguentado e dobrado contra o peito.
-Como é que está aqui? Disseram-nos que tinha morrido! Viu a Esa! Sabe ela?
Oh, Ruari, mal pude acreditar o que viram meus olhos no outro dia, quando te vi no bosque
lutando com aqueles lobos! Está ferido gravemente?
Ele riu ante aquela torrente de pergunta.
-Esa não sabe ainda. - Respondeu. - Dirigia-me até aqui quando descobri os
lobos. Mas não estou tão ferido para morrer.
-E como é que está aqui? Disseram-nos que tinha morrido em uma batalha
contra os homens do rei!
-Ali caí gravemente ferido. Vários de meus homens escaparam e me levaram
com eles. Quando recuperei a consciência descobri que me encontrava na Irlanda, no
exílio. Não tive oportunidade de retornar até recentemente, e em segredo.
-E em todo este tempo não nos enviou notícias suas? Nem tampouco a Esa?
Como pôde? Ruari Mór, para nós foi terrível saber que estava morto, quando todo o tempo
esteve vivo!
Ele adotou uma expressão contrita.
-Não pude lhes fazer chegar nenhuma mensagem. Mas têm direito a estar
zangada.
-Eu estou, por Esa! Ela sofreu muito por ti, chorou sua morte, e a de seu filho...
Nem sequer aceita a abandonar sua casa nas colinas.
-Encontra-se bem? - Perguntou Ruari com urgência.
-Bem de corpo, mas fraca na alma. Vai agora a vê-la? Inclusive com esta névoa
saberá o caminho de cor.
-Iria, mas não posso, Alainna; necessito sua ajuda. - Afastou-se da árvore contra
a que estava apoiado, e Alainna se deu conta do quão débil estava, da palidez de suas
bochechas. Além disso, tinha o braço grosseiramente enfaixado, levava também a
panturrilha esquerda coberta de bandagens manchadas de sangue.
-Necessito um lugar seguro onde descansar. Encontrei uma cova e mantenho
um fogo aceso para afugentar às feras. Ontem à noite foi a primeira vez que tive forças
para sair. A aveia e a nata que deixou para a Donzela estavam deliciosas. - Sorriu.
Alainna emitiu um gemido de compaixão.
-Fique aqui com Finam, eu vou procurar a minha gente...
-Não. - Apressou-se a dizer Ruari. - Em Kinlochan há cavaleiros, um deles me
salvou a vida ao matar a aqueles lobos. Por que estão aqui? Quem são?
-Enviou-os o rei. Entregou Kinlochan a um normando, um cavaleiro bretão, que
lutou por ti. Vamos... nos casar.
-Você vai se casar com um normando? Kinlochan será dele?
-Ruari franziu o cenho. - Quando aconteceu tudo isto?
-Recentemente. Não me faz feliz, mas ajudará a proteger os meus dos
MacNechtan.
-Ach. - Repôs Ruari. - Então, seu pai morreu.
Ela mordeu o lábio ao perceber que Ruari não sabia nada.
-Pela mão de um MacNechtan, há uns meses. - Disse com atitude sombria.
Ruari assentiu gravemente.
-Deus seu benza alma. Não me surpreende que Kinlochan tenha caído nas
mãos da Coroa agora que Laren já não está.
-Tenho que conseguir ajuda para ti. - Disse Alainna com urgência ao ver sangue
fresco em seu braço. - Fique aqui, Ruari, por favor. Voltarei em seguida.
-Alainna, espera. Pode que você esteja a salvo com os homens do rei, mas eu
não. Sou um proscrito, um homem procurado. Se souberem que estou vivo e na Escócia,
me pendurarão pelos pés sem piedade.
-Os cavaleiros do rei procuram os rebeldes, mas eu lhes disse que estava morto.
Não há motivo para lhes dizer quem é se vier a Kinlochan.
-Não posso correr esse risco por ti, nem por mim, nem pelos meus. Se me
descobrirem me matarão, e trarão a desgraça a tudo o que esteja perto de mim.
-Ruari, o que ocorre? O que está fazendo aqui em segredo?
Ele sacudiu a cabeça em um gesto negativo.
-Sou um MacWilliam, e isso já é suficiente. Nós reclamamos o trono nos
apoiando em um laço sanguíneo mais próximo ao rei Duncan e aos antigos reis pictos da
Escócia que os direitos que possa esgrimir o rei Guillermo. Acreditamos que meu jovem
primo Guthred está na linha direta ao trono. Agora se encontra na Irlanda, mas jamais
renunciará ao reclamo de seu direito à coroa. Eu vim aqui para ajudá-lo. Não posso me dar
a conhecer, nem tampouco a causa de meu clã, aos normandos. Mas necessito sua ajuda;
devo ter comida e um lugar onde me ocultar até que me cure.
Alainna assentiu e se voltou nervosa, sem saber o que fazer.
-Ah! A ilha do lago! Ali há umas antigas ruínas nas quais pode se esconder, e
árvores de folha perene que o manterão coberto. Levar-te-ei ali no bote e farei chegar
comida. Poderá dispor de um bom fogo. Minha lhe ajudará também, quando souberem...
-Não deve sabê-lo ninguém. Sua gente não apóia minha causa.
-É certo, e nunca a apoiaram, mas estão de sua parte por ser um grande
guerreiro. Além disso, Esa é nosso sangue; não trairão o seu marido, faça o que for.
-Não deve sabê-lo ninguém. - Repetiu Ruari com insistência.
-Já sabe Giric MacGregor, ele também te viu no bosque. Deixe-me que diga a
ele, ajudará. - Viu que Ruari suspirava e cedia. - E também devo dizer a Essa. Tem o
coração quebrado de amor por ti.
-Diga aos dois. - Disse Ruari com voz rouca. - Mas a ninguém mais.
-Trarei Esa.
Ele desviou o rosto e afirmou com a cabeça.
-Estou desejando vê-la.
Alainna passou um ombro por debaixo do braço para lhe oferecer apóio, saíram
do bosque e começaram a caminhar devagar em direção ao lago, seguidos por Finam. Ao
passar por diante da grande pedra Ruari insistiu com Alainna para que se aproximasse
dela.
-Jura diante da Donzela. - Disse. - Jure que ninguém além de Esa e Giric
saberão que estou aqui.
-Não confia em mim? - Perguntou-lhe Alainna.
-Sim confio em ti. - Replicou ele. - Mas sei que se preocupa tanto por um velho
parente que poderia ser que tentasse ajudá-lo com muito entusiasmo. Jura pela Donzela
que guardará o segredo.
Alainna titubeou insegura de como iria ocultar aquilo a sua gente... e ao
cavaleiro que logo seria seu marido.
-Jure, pequena. - Disse Ruari com doçura. - Ou do contrário retornarei ao
bosque e não voltará a me ver nunca.
Ela lançou um suspiro e apoiou a mão no frio granito.
-Guardarei o segredo, Ruari Mór, e farei tudo o que estiver na minha mão para
que esteja a salvo. Pelo céu e pela terra, pela água e pela pedra, pela Donzela, juro.
-Feito. - Disse Ruari. Ambos continuaram avançando até a margem, onde
aguardava um pequeno bote que se balançava entre os juncos. - Faremos com que Giric e
Esa jurem também, mesmo que Esa não goste absolutamente, se a conheço bem. -
Acrescentou com ironia.
-Preocupe-se mais com seu mau gênio quando se inteirar de que está vivo e que
não lhe enviou nenhuma notícia. - Disse Alainna, e Ruari riu.
Uma vez que Ruari e Finam estiveram acomodados com muita dificuldade no
fundo do bote redondo e coberto de peles, Alainna pegou o remo triangular e começou a
remar com cautela até a ilha, uma massa escura e envolta na névoa que se elevava no
centro do lago.
Enquanto remava, e quando alcançaram a rochosa borda, sentiu-se agradecida
que tivessem permanecido ocultos à vista pelas profundas dobras brancas da espessa
névoa.
Capítulo 14
Capítulo 15
-A igreja de Santa Brígida está justo por aí. - Disse Giric a Sebastien assinalando
o leste. Na baixa saia de uma colina se recortava um edifício de pedra com uma torre
quadrada contra o fundo de uma paisagem nevada e de levantadas ladeiras.
-E essa cruz de pedra que se vê mais adiante no caminho? - Perguntou
Sebastien. - O que é que marca? - Uma alta cruz se erguia no caminho pelo qual
avançavam, com seus braços de pedra recortados contra o céu nublado. Trincada pelo
tempo, a cruz estava totalmente coberta de intrincados desenhos de espirais e ramos
entrelaçadas.
-Há muito tempo, estas cruzes marcavam os lugares de reunião para os
sacerdotes e seus fiéis. - Explicou Alainna. - Naquela época se chamava missa e era ao ar
livre, mas agora há igrejas por todas as Highlands.
Sebastien caminhou até a cruz puxando as rédeas de seu cavalo atrás dele. Em
Kinlochan, quando montanheses e cavaleiros se reuniram no pátio antes de percorrer os
três quilômetros que havia até a igreja, Sebastien sentou Una nos lombos de seu garanhão
árabe e preferiu ir ele andando. Robert, Hugo, Etienne e alguns outros cavaleiros seguiram
seu exemplo e emprestaram suas montarias a membros mais velhos do clã.
-Ainda há quem deve rezar aqui, ou a dizer votos matrimoniais. - Alainna se
aproximou de Sebastien. – Diante destas cruzes isoladas se pode realizar o rito de casar-
se por um apertão de mãos, com ou sem testemunhas.
Estava encantadora à luz da manhã, pensou Sebastien, com as bochechas
rosadas pelo frio, os olhos de um azul brilhante e o cabelo cor âmbar ali onde aparecia sob
o tartam marrom que lhe cobria a cabeça. Experimentou uma forte onda de desejo ao
lembrar a maravilhosa sensação de ter Alainna entre seus braços.
-Faremos também nós, então? - Murmurou.
Alainna mostrou para ele seu perfil tranquilo, perfeito, mas a cor rosada de suas
bochechas se intensificou.
-Tinha entendido que o rei requeria um casamento entre você e eu, com contrato
e testemunhas.
-E assim é. - respondeu Sebastien. - Mesmo assim, estaria bem realizar este
rito, singelo e rápido, sem o alvoroço de um casamento. - Arqueou uma sobrancelha e
obsequiou Alainna com um sorriso irônico, deliberadamente encantador, com a esperança
de provocar um pouco de desenvoltura nela. A jovem lhe devolveu um sorriso desconfiada.
-O padre Padruig terá que fazer esperar a missa por nossa culpa se não nos
apressarmos! Advertiu Una atrás deles. Então Alainna voltou a caminhar como Sebastien.
-Olhem ao oeste, ali. - Disse Alainna. – Ali é Turroch, que pertence a Cormac
MacNechtan.
Sebastien avistou uma fortaleza de madeira a uns três quilômetros de distância,
que coroava uma roda cercada de pinheiros contra um fundo de montanhas.
-Tenho intenção de lhe fazer uma visita e lhe leva a mensagem do rei. -Disse.
-Espere até depois do casamento. - Disse Alainna. Seu tom de súplica atraiu a
atenção de Sebastien, que a olhou com o cenho franzido.
-Verá Cormac antes disso. - Disse Giric. Ele e Niall tinham deslocado a seu
encontro, sua respiração formava nuvens de vapor no ar frio. - Olhe para o sul, aí vem
Cormac o Negro e outro, a pé.
-Seu irmão Struan. - Acrescentou Niall.
Sebastien se voltou para olhar, como fez Alainna. Dois homens se aproximavam
deles caminhando pela ladeira de uma colina. Eram enormes, desalinhados e de aspecto
feroz; o um com cabelo negro, o outro ruivo. Ambos vestiam tartans de cores vermelho e
marrom em cima de camisas e coletes, com meias de pele também.
Sebastien viu neles a classe de homens que tinham dado aos montanheses a
fama de selvagens.
-Por essas lanças e arcos que levam, saíram para caçar. - Disse Robert, que se
adiantou para reunir-se com Sebastien e os outros.
-Ou algo pior. - Disse Giric. - Não farão nada. Não são mais que dois homens
sozinhos, enquanto que nós somos vinte e mais fortes, e estamos armados.
-E tem as mulheres, e hoje é Sabbath. - Adicionou Alainna.
-Não farão nada. - Disse Niall. - A menos que tenham uma hoste de
MacNechtans escondida nas colinas para nos preparar uma emboscada.
Ao ouvir a leve exclamação que lançou Alainna, Sebastien captou seu olhar e
sacudiu a cabeça para tranquilizá-la.
-Estão sozinhos. - Disse. - Daqui a vista é muito ampla, e não se vê a ninguém
mais. Não há motivo de preocupação, minha senhora.
Um dos homens gritou uma saudação conforme foram se aproximando. Eram
indivíduos fornidos, armados com lanças, arcos e escudos. O ruivo levava duas lebres
mortas pendurada em uma corda.
-Cormac MacNechtan. - Disse Alainna. - Struan.
-Alainna de Kinlochan. - Disse o homem de cabelo negro. - Ouvimos dizer que
chegaram uns normandos a Kinlochan, e queríamos saudá-lo também. -Cuspiu no chão,
um óbvio insulto.
-Vá embora. - Disse-lhe Alainna. - Hoje é Sabbath.
-Não temos intenção de fazer dano a ti nem aos teus. - Disse o ruivo.
-Vejo que têm o arco e a lança preparados para caçar lebres. - Espetou Giric.
-Teme que vocês sejam essas lebres? - Perguntou-lhe Cormac.
-Nós seríamos lobos. - Replicou Giric.
-Haja paz. -Advertiu Sebastien. Seu cavalo, ao perceber a tensão que flutuava
no ar, retrocedeu nervoso. Entregou as rédeas a Lulach e se aproximou dos montanheses.
-Não é um sacerdote, para ordenar que haja paz entre inimigos. - Disse Cormac,
olhando a Sebastien com os olhos entreabertos. – O que busca um cavaleiro normando
nas Highlands? Veio provocar problemas e reclamar uma terra que não lhe pertence?
-É você Cormac MacNechtan de Turroch? - Perguntou-lhe Sebastien em gaélico.
Olhou para trás e viu que vários membros do clã, entre eles Alainna, estavam agora a suas
costas.
-Sou. Quem é você?
-Sebastien Le Bret, enviado aqui por ordem do rei. Trago uma mensagem do rei
que devo lhe entregar, mas o farei mais tarde. Este não é o lugar apropriado.
-Por fim, uma resposta a minha petição. - Disse Cormac. - Esperou que a
resposta me agrade e me proporcione uma boa esposa. - Disse olhando para Alainna.
Sebastien se moveu para interpor-se e não deixar que a visse, como se aquele
olhar sinistro pudesse manchá-la.
-O rei ordena que o clã Laren e o clã Nechtan deponham as armas e terminem
esta inimizade. Mais tarde falaremos sobre os detalhes.
-Só podemos resolver esta inimizade mediante o matrimônio entre ambos os
clãs. - Disse Cormac. - Nosso ódio é mais antigo que a linhagem celta do rei. Ele não pode
simplesmente nos ordenar que esqueçamos e esperar que o façamos, sem uma adequada
recompensa.
-O rei deseja assegurar-se de sua lealdade antes de lhe conceder uma
recompensa. Estou seguro de que estará desejoso de demonstrar-lhe.
-Diga ao rei que somos leais. - Interveio Struan. - Os rebeldes são os
MacWilliam. E os rebeldes que não morreram fugiram para Irlanda.
-Como vêem, nós não estamos mortos nem na Irlanda. - Cormac mostrou um
largo sorriso. - De modo que como vamos ser rebeldes?
Sebastien o olhou sem alterar-se.
-Se forem dignos de confiança, irá bem. Mas quem apóia os rebeldes celtas
arriscam tudo, a terra e a vida. - É obvio. - Disse Cormac. - Ultimamente ouvi dizer que os
rebeldes MacWilliam estão voltando para as Highlands para solicitar apoio. Chegou a meus
ouvidos que entre eles se encontra Ruari Mòr, que retornou dos mortos. Se o vir, negarei-
me ajuda. - Olhou com dureza para Alainna.
-Mesmo que estivesse vivo Ruari jamais pediria ajuda a ti! -Soltou Alainna.
-Ah, não? - Replicou Cormac-. Nós temos homens, coisa que o clã Laren não
tem. Se o fantasma de Ruari Mòr ou qualquer rebelde se aproximar de minha porta,
deixarei que o capturem os normandos. Agradaria isso ao rei, normando?
-Nada que você faça pode agradar ao rei. - Rugiu Lulach, dando um passo
adiante. Um murmúrio se estendeu entre o grupo.
Sebastien se interpôs entre os MacNechtan e o resto, decidido a cortar os
arranques de cólera entre ambas as partes.
-Já nos reuniremos para falar das ordens do rei. - Disse a Cormac. - De
momento, estão advertido de que a Coroa exige que demonstrem sua lealdade e que seu
clã deixe de guerrear com o clã Laren. Se não obedecerem, arriscam tudo. O rei possui o
direito de lhes arrojar de suas terras.
-E as tomar aos normandos? - Grunhiu o montanhês. - Por que estão em
Kinlochan? O que é que ainda não sabe o clã Nechtan? - Olhou para Alainna. – Diga-me o
que significa isso.
-Sir Sebastien Le Bret foi nomeado barão de Kinlochan por ordem do rei. -Disse
ela.
-Senhor de Kinlochan! - Cormac dirigiu a Sebastien um olhar de fúria, com o
peito agitado. Sebastien esticou a mão, preparado para desembaiar a espada se Cormac
tocasse na arma. Este se girou para Struan. - Vou matar a esse padre -Murmurou. -
Paguei-lhe para que escrevesse uma petição que me desse Kinlochan , não aos
normandos!
-Não pode culpar o sacerdote. - Disse Struan.
-Ora! - Cormac se voltou para Sebastien. - E sobre Alainna MacLaren? Melhor
seria casar-se comigo. Eu sou o homem mais forte que está perto de Kinlochan. Se não for
minha, haverá mais luta.
Sebastien permanecia inflexível, com a mão firmemente apoiada no punho da
espada e o olhar duro.
-Estamos preparados para isso.
-Peçam ao rei outra recompensa. - Disse Cormac. - As terras dos MacGregor
iriam bem.
Nesse momento Giric se equilibrou para frente, mas Sebastien levantou o braço
para lhe impedir de saltar. Robert, Hugo e outros dois cavaleiros avançaram um passo.
Sebastien sentiu o impulso básico de lançar o punho contra o rosto zombeteiro de Cormac,
mas obrigou a si mesmo a permanecer impassível.
-Quem se casará com ela? - Exigiu saber Cormac. - O normando que adulou o
rei para conseguir as terras que possui a dama? Eu, que apresentei uma petição com todo
direito? Ou seu irmão adotivo, que a deseja em segredo?
Giric voltou a inclinar-se para adiante, mas Sebastien lhe lançou um olhar
fulminante, com o braço estendido.
-Respeita o propósito do rei, não o teu próprio. - Vaiou. Giric entrecerrou os
olhos, furioso, mas se acalmou.
Nesse momento Alainna se abriu passou entre Giric e Sebastien. Os dois
tentaram segurá-la, mas ela escapou e cruzou a grama para plantar-se ante Cormac como
uma rainha, com a cabeça alta e o cabelo brilhando como uma coroa de ouro vermelho.
Sebastien se apressou para se colocar ao lado dela como se fosse seu guarda de honra, a
mão sobre a arma, o olhar alerta.
-Cormac MacNechtan. - Disse-lhe. - Eu mesma escolherei meu marido. Você
não tem que me dizer com quem me tenho que casar.
-Escolhe ao normando? - Perguntou Cormac.
-O normando é um grande guerreiro, e eu estou em dívida com ele. Matou um
urso de uma só lançada e me salvou a vida. Você também está em dívida com ele. Este
homem salvou Eoghan e Lileas dos lobos, junto com outro homem que se ocultou. Se esse
homem era um rebelde, você não deveria estar tão ansioso de entregá-lo aos homens do
rei.
-Desse modo estamos em dívida com o normando, e também com o outro
homem. - Disse Struan a Cormac.
Cormac franziu o cenho ante seu irmão e Sebastien.
-Quem quer que tenha ajudado meu filho. - Disse com cautela. - Se é um
inimigo, seguirá sendo um inimigo. Mas não morrerá por minha mão. Não posso prometer
nada mais.
Sebastien continuou olhando fixamente a Cormac e não disse nada.
-Com isso basta. - Disse Alainna. - Este homem demonstrou sua força e sua
vontade de ajudar a minha gente. Se eu escolher me casar com ele, se inteirará quando se
publicarem as admoestações.
-Não cometa o engano de se converter em sua esposa. - Disse Cormac.
-É minha decisão, para bem ou para mau. - Replicou Alainna.
-Cormac MacNechtan. - Disse Sebastien. - O rei ordena que haja paz neste
lugar, e nos enviou para cumprir essa ordem. Reunirei-me com você em Turroch para falar
da mensagem do rei. Se ameaçarem a este clã ou a esta gente, se preparem para a
batalha contra o próprio exército do rei.
Cormac flexionou seus grossos dedos sobre a haste da lança.
-Então venham a Turroch. - Disse em tom rígido. - De momento desejo falar em
privado com Alainna, de um chefe a outro chefe. Tenho algo mais a discutir com ela.
-Assiste-lhe esse direito. - Disse Alainna.
Sebastien flexionou a mão e despiu lentamente a ponta de sua espada.
-Não toleraremos nenhuma violência. - Advertiu, retrocedendo para que Cormac
e Alainna ficassem a sós.
-A fortaleza de Kinlochan é minha. - disse Cormac em um tom grave que
retumbou no frio do ar. - Você será minha. Seu pai desejava a paz tanto como qualquer
um, e teria te entregado a mim para consegui-la. Assim me prometeu isso o dia em que
morreu.
-Não poderia te prometer tal coisa!
-Poderia e o fez. Seu destino é ser minha.
-Jamais serei sua!
Ele a segurou pelo pulso.
-Se lembre da Donzela de Pedra. Nada poderá já te proteger quando chegar a
primavera. - Vaiou. - Nem sua gente nem os normandos, nem sequer as fadas.
Sebastien foi até eles com a espada em mão. O brilhante aço lançou um brilho
ao descrever um arco para ir posar se sobre o antebraço de Cormac.
-Afaste a mão dela ou a perderá. - Disse-lhe. A suas costas ouviu o ruído de
outros aços que eram desembaiados de suas capas pelos membros do clã e seus próprios
cavaleiros para brandir suas armas.
Cormac soltou Alainna. Sebastien a empurrou para trás dele com o braço
estendido e apoiou a ponta da espada no peito do montanhês.
-Parte já. - Rugiu.
-Normando. - Disse Cormac. - Agora que é o senhor de Kinlochan, você e eu
somos inimigos. Perdoarei-lhe a vida porque ajudou meu filho, mas nunca lhe chamarei
amigo... a não ser que cumpra a promessa que me fez Laren MacLaren e entregue sua
filha junto com uma justa porção de suas terras.
-Meu pai não te fez nenhuma promessa. - Replicou Alainna.
-Giric sabe! - Disse Cormac, voltando-se. – Diga-lhe o que disse no dia em que
Laren MacLaren resultou ferido de morte!
-Já lhe disse o que tinha que saber. - Respondeu Giric. - Que caiu em uma
emboscada que preparou você e seus homens. Que mais tem que saber, além dessa
traição?
Sebastien viu que Alainna fechava os olhos angustiada e logo olhava a seu
irmão adotivo.
-O que quer dizer, Giric? Que mais tenho que saber?
-Nada mais. - Disse Giric apertando os lábios e olhando furioso para Cormac.
-Laren MacLaren me deu permissão para desposar a sua filha. - Disse Cormac. -
Deu sua bênção a nosso casamento.
-É um embusteiro. - Rugiu Giric.
-Deveria te matar aqui mesmo. - Disse Cormac. - Conserva a vida só porque
estamos no Sabbath.
-Já basta! - Interveio Sebastien. – Vá embora.
-Você e eu nos veremos em Turroch, normando. - Disse Cormac. - Alainna
MacLaren, pergunte a Giric o que aconteceu nesse dia. Não esqueça que é minha. Se
estima seu clã, o que fica dele, escolherá-me como marido, porque eu conheço suas terras
tão bem como as minhas, e sou um montanhês até a medula dos ossos, a diferença de
outros. - Dirigiu a Sebastien um olhar feroz, afastou-se da pressão da espada e se afastou
com seu irmão.
Sebastien os observou até que desapareceram atrás de uma colina. Uma vez
que esteve seguro de que não havia mais homens com eles e de que se foram, embainhou
a arma. Ao se voltar descobriu Alainna e Giric não longe dele, falando muito sérios. Mais à
frente, o resto reatava a marcha.
-Não é assim. - Dizia Alainna quando Sebastien se aproximou.
-Foi. - Disse Giric, tocando o braço da jovem. Mas afastou a mão. - Sinto muito.
Esperava não ter que lhe dizer isso nunca. É verdade. Eu os ouvi conversar naquele dia.
Alainna olhou para Sebastien, e este captou desejo e medo em seus olhos.
-Meu pai me prometeu a Cormac? - Perguntou a Giric-. Como pôde fazer tal
coisa?
-Estava muito ferido e sabia que não iria sobreviver. Vi em seu esse rosto o que
surge nos olhos de um homem quando sabe que se aproxima a morte.
Alainna mordeu o punho e fechou os olhos com força durante uns instantes.
-Continue.
-Cormac não feriu Laren por sua própria mão, mas sim viu como caía. Eu não
pude ir até ele porque tinha ferido uma perna e Aodh o Vermelho havia caído a meu lado e
me havia bloqueado com seu peso, com as costas contra uma rocha.
-Aodh. - Disse Alainna. - Era um bom homem. Mas me conte o que ocorreu
depois com meu pai.
Sebastien tinha a intenção de afastar-se para lhes dar intimidade, mas Alainna
estendeu uma mão para lhe rogar que ficasse. Assim o fez e permaneceu em silêncio,
observando-os com olhar de preocupação.
-Vi que Cormac se ajoelhava junto a seu pai. Poderia ter dado ali mesmo o golpe
de misericórdia, mas não o fez.
-Meu pai falou com ele?
-Cormac exigiu que seu pai se rendesse ao clã Nechtan, mas ele se negou.
Entretanto, pediu que se fizesse a paz e que terminasse a disputa de sangue.
-Cormac lhe pediu minha mão, e meu pai a concedeu?
-Não sei o que foi dito entre eles, mas Cormac assentiu como se ficasse
satisfeito. Ordenou a seus homens que partissem quando podia ter matado a todos, porque
eram vinte mais e nos tinham pegado de surpresa. E eu sei o que me disse seu pai quando
por fim pude me arrastar até seu lado.
-Disse-me que esse dia não te disse nada. - Espetou Alainna. - Nunca me falou
sobre isso.
-Como iria te machucar, quando já estava sofrendo? - Replicou Giric-. Guardei
isso para mim mesmo. Sabia o que desejava Laren. - Lançou um longo suspiro para
combater uma poderosa emoção. - Laren me disse que logo você o substituiria como chefe
do clã. - Continuou. - Pediu-me que te vigiasse, suplicou-me que me certificasse de que se
casasse, antes que chegasse a primavera, com o guerreiro mais forte que pudesse
encontrar, alguém que vencesse a Cormac.
-Deve ter dado permissão a Cormac para me desposar quando terminasse o
encantamento da Donzela de Pedra. - Disse Alainna. - Então pediu a ti que se ocupasse de
que me casasse com alguém antes dessa data, para frustrar os planos de Cormac.
-Isso acredito eu. Cormac está decidido a se casar quando chegar a primavera.
Mas seu pai queria que estivesse a salvo, Alainna. Ele aprovaria seu casamento com
Sebastien.
Alainna afirmou com a cabeça. Voltou-se para Sebastien e cravou seu olhar no
dele.
-Meu pai desejaria este matrimônio. - Concordou.
Sebastien a olhou fixamente, enquanto o frio vento açoitava sua capa.
-Ele desejaria que fosse feliz. - Disse Giric em voz alta. - Todos nós o
desejamos.
Alainna o olhou.
-Sabem os velhos sobre a petição de meu pai?
-Alguns. - Respondeu Giric.
Ela assentiu devagar, com os olhos cheios de lágrimas.
Sebastien sentiu imediatamente uma opressão no coração. Deu um passo até
ela, empurrado pela necessidade que viu em seu semblante. Alainna elevou uma mão para
ele.
Deus santo pensou. Sentia tal necessidade de abraçá-la que lhe causou dor,
uma súbita sensação física no ventre. Deu outro passo mais.
Nesse momento Giric a puxou pelo ombro e a voltou para si para abraçá-la.
Sebastien se deteve. Viu o olhar de afeto que lhe dedicou Giric e como ela se
derrubava contra ele, e então fechou os punhos com força para reprimir o desejo que o
invadiu. Giric pertencia àquele mundo, disse-se a si mesmo; mas ele não, independente
das ordens do rei e do jogo do destino com as vidas de ambos. Não importava que ele
ansiasse formar parte de uma família assim, daquele legado; não importava que naquele
momento desejasse Alainna com cada parte de seu ser. Ele era uma alma errante, como o
havia definido Alainna; ele nunca havia conhecido um verdadeiro lar, e se perguntou se
alguma vez pertenceria a alguma parte, por muito que o desejasse.
Giric acariciou as costas de Alainna, e Sebastien experimentou uma sensação
no estômago parecida com uma navalhada. Deu a volta em silêncio. Sabia que Alainna
considerava Giric somente um irmão e que necessitava seu consolo, mas não gostava de
vê-lo.
Lançou um profundo suspiro e se afastou. Sentia uma estranha dor dentro de si,
como se uma fibra de seu coração tivesse sido arrancada, como se tivesse deixado uma
parte de si mesmo na ventosa cúpula daquela colina, com Alainna.
Capítulo 16
Alainna aguardou enquanto os outros iam saindo da igreja depois que o padre
Padruig repartisse a bênção final. As vozes ecoavam contra as paredes caiadas, e logo a
risada profunda do sacerdote se elevou por cima do resto, quando se reuniu com eles no
exterior. Ouviu que Lorne estava apresentando Sebastien ao padre Padruig, e viu que Una
e Giric voltaram os olhos até ela ao sair. Alainna os incentivou para que não se
detivessem; sabia que entenderiam o que ela tinha que fazer.
Cruzou o lado norte da igreja e atravessou uma estreita soleira. Segurou uma
vela que ardia em um nicho da parede e a protegeu com a mão enquanto descia os
degraus que conduziam à escura cripta.
Aquele quarto subterrâneo, que tinha o chão de terra e um teto de pedra baixo e
arredondado, continha várias tumbas. Alainna foi até o canto mais afastado, onde se
encontravam as tumbas de seus pais e seus irmãos em um espaço que formava uma
pequena capela. Deixou a vela no chão, ajoelhou-se sobre a terra fria e inclinou a cabeça
para rezar por suas almas.
As lágrimas lhe escorregaram pelas bochechas ao pensar em seu pai. Sabendo
que sua ferida era fatal, acossado em sua debilidade por seu mortal inimigo, havia-se visto
obrigado a aceitar algo que não acreditava que fosse correto. Havia protegido a sua filha
pedindo a Giric que se assegurasse de casá-la com um guerreiro antes que Cormac
pudesse reclamá-la para si.
Inclinou-se sobre as mãos juntas e chorou de pena e de agradecimento, mas o
fato de saber que seu pai aprovaria seu casamento com o cavaleiro bretão supunha um
grande alívio e uma verdadeira bênção. Secou-se as lágrimas sentindo-se desafogada,
limpa. Sabia que a pena voltaria espontânea como uma tormenta, capaz de afligi-la. Cada
vez conseguia vencê-la mais facilmente mesmo sabendo que possivelmente nunca se
recuperasse do todo da dor de ter perdido a sua família. O único que podia fazer era
procurar nichos para a pena, o vazio, as lembranças. E tinha a sensação de ter saído
fortalecida depois de carregar aquela dor.
Ao fim de um momento sussurrou uma prece por sua família, levantou-se e foi
para a escada da cripta. Nesse momento veio de acima o ruído de umas botas ao roçar a
pedra.
Na estreita soleira apareceu Sebastien. Alainna o olhou, sustentando a vela na
mão, e ato seguido, sem dizer nada, indicou-lhe por sinais à cripta.
-Estão aí? - Perguntou ele ao entrar.
Alainna sabia a que se referia, e afirmou com a cabeça.
-Venha, mostrarei-lhe. - Falou brandamente em inglês, a língua que ambos
usavam mais frequentemente entre si. Sustentou a vela no alto e conduziu o bretão até o
fundo. - Meus pais estão nesse lado, e meus irmãos neste. Eles também estão enterrados
um ao lado do outro, Conall e Niall, almas amigas em vida. Pusemo-los juntos também na
morte, sob uma só lápide.
-Almas amigas? - Perguntou Sebastien.
-São almas unidas entre si pelo amor e a lealdade ao longo de toda sua vida.
Podem ser camaradas, irmãos e irmãs ou amantes. Nem todo mundo tem uma alma
amiga, mas o que a tem é muito afortunado.
Tocou a laje de arenito que os cobria; esculpida em alto-relevo, mostrava dois
guerreiros rodeados por um entrelaçado de ramos ao redor de duas espadas.
-Meu primo Malcolm fez esta tumba para eles. - Disse, limpando o pó da
superfície. - Malcolm não está enterrado aqui, porque morreu em Glasgow e foi depositado
a descansar aqui. Ele fez a lápide de minha mãe, essa dali, quando eu era muito pequena.
Ela nunca conheceu a desgraça que caiu mais tarde sobre nós.
Sebastien assentiu. Alto e de ombros largos com sua armadura, e com o cabelo
brilhando como o ouro à luz da vela, parecia encher aquele diminuto espaço. Irradiava uma
serena força que parecia produzir uma sensação de consolo e segurança que Alainna
estranha vez havia experimentado.
Aquela resolução tangível provinha de algo mais que um corpo musculoso e
capaz ou da segurança que inspiravam umas poucas palavras; o bretão emanava uma
reserva de força interior. Alainna desejou extraí-la igual a se extrai a água de um poço;
desejava desesperadamente lhe dar também algo de si mesma, mas não estava segura de
como fazê-lo nem se ele estaria disposto a aceitar.
Parecia um homem privado, reservado, mas ela havia vislumbrado compaixão,
bondade e ternura nele. As breves referências a sua infância revelavam uma
vulnerabilidade que contrastava com a dura couraça de sua força.
Resultava estranho disse a si mesma ao olhá-lo nas sombras, ter sentimentos
assim por um homem que em outro tempo só havia pensado resistir e odiar. Resultava
estranho pensar que logo estaria casada com ele. Aquele pensamento suscitou uma sutil
emoção que lhe acelerou os batimentos do coração como se fosse um tambor.
Sebastien se voltou para a tumba contigua de sua mãe.
-E a lápide de seu pai? Quem a esculpiu, seu primo já não estava?
-Foi eu. - Alainna deslizou os dedos pela sianinha entrelaçada que rodeava um
cavaleiro com uma espada, e uma fortaleza em baixo.
-Você? - O bretão lhe dirigiu um olhar penetrante. - Meu deus. - Seu tom foi de
assombro e respeito. Ela voltou a piscar para afastar as lágrimas e se situou a seu lado,
com um braço apoiado contra o dele naquele apertado espaço. Sebastien não se afastou,
e sua solidez lhe proporcionou consolo. Alainna acariciou a lápide, tão bem conhecida por
seus dedos.
-A arenito for fácil de esculpir. - Disse. – Usei o cinzel como se fosse argila seca,
e não leva muito tempo trabalhá-la. Eu não estou acostumado a trabalhar com ela porque
desprende um pó desagradável e que faz tossir muito. Mas Malcolm havia talhado as
outras lajes com mesmo tipo de pedra, de modo que tínhamos vários blocos. Suportamos
muitas mortes. - Adicionou com suavidade. - Nos anos em que Malcolm esteve conosco
tivemos muitas tumbas e cruzes que esculpir. Nesta cripta há mais pedras, e várias mais
fora da igreja, para outros membros de meu clã. Mas esta. - Disse, acariciando a efígie de
seu pai. -Esta fiz eu.
Sebastien lhe cobriu a mão com a sua. O calor daquela palma invadiu Alainna,
filtrou-se em suas veias como se fosse ouro. Fechou os dedos ao redor do polegar dele e
ambos ficaram de pé em silêncio, com as mãos enlaçadas.
-Deve ser insuportável havê-los perdido a todos. - Disse Sebastien.
-Ainda tenho a outros. - Repôs Alainna. Terei a ti? Quis perguntar, mas se
conteve.
Apertou-lhe a mão e depois a soltou. Ela desejou sentir de novo aquele calor,
quase o buscou com os dedos, mas Sebastien se virou.
-Vamos. - Disse. - Sua gente está esperando à porta da igreja. Conheci o padre
Padruig, e está desejando falar conosco sobre preparativos do casamento.
Alainna recolheu a vela e se dispôs a sair da cripta com Sebastien.
-Só podemos falar com ele um momento. Há uma légua inteira de caminho para
casa, ao ar livre e com os anciões.
-Você e seus parentes estão seguros entre tantos cavaleiros armados.
-Eu sei. Cormac não nos atacará em um Sabbath, respeita as regras da igreja. -
Fez uma pausa. - Mas me preocupo com sua segurança, quando me reunir com Cormac.
-Estaremos preparados para lutar caso esteja pensando em cometer traição.
-E o estará. E o que ocorrerá então?
-Lutaremos. - Respondeu ele com simplicidade.
Alainna deixou escapar um suspiro.
-Os homens lutam. - Disse. - E as mulheres esperam. Estou cansada de tudo
isso. Tenho que escolher um marido, só para perdê-lo logo?
-Não me perderá. - Replicou Sebastien.
Estava à distância de um braço dela, nas sombras, e sua voz soou suave e
profunda. Algo vibrou em seu interior ao ouvi-lo dizer aquilo. Havia perdido a tantos seres
queridos... pai, irmãos, parentes. Desejava desesperadamente acreditar nele.
De repente experimentou o impulso de estender a mão até ele, de sentir como a
rodeava sua força, mas o espaço que havia entre eles parecia um largo precipício. Sentiu-
se insegura e se voltou, com a vela piscando em sua mão trêmula.
-Pelo menos, se volta para a Bretanha, poderia retornar algum dia. Se for a
Turroch, possivelmente não retorne nunca.
-Retornarei de ambos os sítios. - Sua voz era calma.
-Pode que não. - Insistiu Alainna. A sensação de desejo e do medo se
intensificou. - E sempre aconteceu isso com os homens de minha família, quando saíam a
guerrear com os MacNechtan, jamais tornaram! Acredita que desejo isso mesmo para
você? Absolutamente! - E se voltou para dirigir-se às escadas.
Mas Sebastien a segurou pelo braço e a obrigou a olhá-lo no rosto. Tirou-lhe a
vela da mão e a pôs a um lado.
-Venha aqui. - Disse-lhe com voz rouca, aproximando-a a ele. - Por acaso
tomaria eu uma esposa para abandoná-la logo? - Perguntou, mais para si mesmo que a
ela. - Tão tolo sou?
-É? - Sussurrou ela.
-Não. - Replicou Sebastien, e aproximou sua boca a da Alainna.
Seus lábios estavam secos e mornos, seu beijo terno. Alainna gemeu
brandamente e se aferrou a seus antebraços cobertos pela cota de malha. Sebastien
passou uma mão por sua nuca e afundou os dedos na espessura de seu cabelo, por cima
das tranças. Ela inclinou a cabeça para trás para aceitar um beijo mais profundo, com o
coração acelerado. Uma força surgiu daquele beijo, algo que se meteu em seu corpo e
vibrou ao longo de suas costas como uma corrente, como vento, chama, água, tudo de
uma vez.
Sebastien se retirou e apoiou a testa na de Alainna, ainda lhe sustentando o
rosto entre as mãos.
-Jesus. - Sussurrou com voz rouca.
Alainna se inclinou para ele, desejando mais daquela incrível maravilha que
havia exposto em seus braços, mas Sebastien só a beijou na bochecha.
-Se vou estar tão perto de ti, mais vale que te despose, ou correrei o risco de te
desonrar.
-Existem várias formas de desonra. - Murmurou ela. – Das quais não conheço
nada.
-Melhor que não as conheça.
-Sinto curiosidade. - Replicou Alainna enquanto inclinava o rosto para ele e
fechava os olhos. Sebastien a beijou de novo, com mais intensidade que antes, sua boca
exigente e segura, sua mão apoiada na nuca. Atraiu-a para si pela cintura, curva e
contracurva, inclinado sobre ela.
Alainna se elevou nas pontas dos pés e lhe rodeou a cintura com os braços,
atônita pelas sensações que experimentava, pela calma, quão perfeito era beijar e ser
beijada, ver-se envolta em seu abraço. A cota de malha penetrava através da lã, e sentiu o
forte apoio dos sólidos músculos que havia debaixo.
Quando Sebastien se afastou, ela voltou para buscá-lo. Ele emitiu um leve
gemido e rodeou uma vez mais seus quadris, abertamente, e deslizou as mãos até tomar o
rosto. Alainna se aferrou a seus pulsos nus e robustos como se fosse o contrapeso que a
sustentava em pé. Ansiava mais, e o expressou com os lábios enquanto se deixava
arrastar pela emoção que lhe percorria todo o corpo.
-Ah. - Disse uma voz por cima deles. - Vejo que não é muito cedo para falar de
celebrar um casamento.
Alainna proferiu uma exclamação, separou-se bruscamente e levantou os olhos.
O padre Padruig lhes sorriu do alto das escadas.
-Subam, subam. - Disse. - Saiam da escuridão à luz, vamos. Nessa cripta faz um
frio para congelar o nariz do muito mesmo diabo... mas vocês tenham encontraram um
modo de criar um pouco de calor, eh? - Riu jocoso e lhes fez gestos para que subissem.
-Mas, padre Padruig. - Disse Alainna levantando a voz ligeiramente por causa
dos nervos. - A um momento estava de acordo em que devíamos nos casar, e agora diz
que não? - Olhou com incredulidade ao sacerdote, e logo para Sebastien.
A declaração do sacerdote havia confundido tanto a ele quanto a Alainna, mas
não disse nada e se limitou a arquear a sobrancelha.
-Sei quais são suas razões para se casar. - Disse o padre Padruig. Falava um
inglês rápido e alegre. - E estou pensando que é insensato que eu seja testemunha de seu
casamento agora.
-Insensato? - Disse Alainna - Insensato é não fazer caso do que ordenou o rei!
Meu clã poderia perder Kinlochan para sempre e o rei poderia entregar estas terras a
algum outro cavaleiro normando. Necessitamos Sebastien e seus homens para que nos
ajudem a resistir ao clã Nechtan. Este matrimônio é imperativo para nós, nenhum de nós
pode escolher.
-De todos os modos, acredito que deveriam esperar um pouco. A menos que
queiram se unir pelo rito das mãos. Isso poderia valer.
-Que poderia valer? - Exclamou Alainna. - Por acaso precisamos mentir? No que
está pensando?
Sebastien franziu o cenho. Sua mente trabalhava a toda pressa enquanto
Alainna discutia veementemente com o sacerdote. Encontravam-se apinhados na nave da
singela igreja de pedra. A luz diurna penetrava por duas janelas sem fechar. Fora se ouvia
fracamente a conversa entre os membros do clã Laren e os cavaleiros do rei.
Tendo sido criado por monges piedosos e silenciosos, Sebastien nunca havia
conhecido um religioso como o padre Padruig. Aquele padre parecia mais um veterano
guerreiro com sua constituição larga e musculosa, suas grandes mãos e seu rosto
avermelhado e curtido pela intempérie. Ainda tinha o cabelo avermelhado com corte de
orelha a orelha típico dos sacerdotes celtas, o que parecia ser.
Sebastien descobriu que o padre Padruig era inteligente e culto, afetuoso e até
de caráter buliçoso. Havia abraçado Alainna como uma filha, e lhe havia dado umas
palmadas nas costas como se fosse um amigo de taberna e pontuado seu discurso com
uma risada alegre e contagiosa.
-Deixem que me explique. - Disse o padre Padruig levantando um dedo no ar-. -
Se atuar como testemunha de seu casamento, tal como se deve fazer nas escadas da
entrada da igreja enquanto vocês declararem os votos, todos saberão que estão casados.
Alainna assentiu.
-Assim é como se faz.
-Se aceitou atuar como testemunha de sua união. - Prosseguiu o padre Padruig
com o dedo levantado como se estudasse a direção do vento. - Antes de lhes colocar na
entrada da igreja devo expor as admoestações durante três domingos seguidos. Para
algumas pessoas isso é pouco tempo; neste caso é muito.
-Acredita nos domina a luxúria de tal maneira que não podemos esperar... Oh. -
Alainna se interrompeu, envergonhada. Sebastien reprimiu um sorriso, mas o padre
Padruig soltou uma gargalhada.
-Entendo o que o bom padre quiser dizer. - Disse Sebastien. - Opina que um
casamento público não é seguro.
O padre assentiu com um gesto.
-Se eu atuar como testemunha do casamento, chegará aos ouvidos de Cormac.
É um indivíduo imprevisível, e não acredito que queiram provocá-lo mais. Espere, a que
Sebastien negocie primeiro as ordens do rei com Cormac. Deve renunciar a idéia de que
tem direito antes que ninguém a reclamar a mão de Alainna.
-O rei requer uma cópia de nosso contrato matrimonial. - Disse Sebastien. - E eu
prometi partir para Bretanha na primavera. Quanto tempo tem intenção de esperar antes
de publicar as admoestações?
-È difícil esperar, eh? Mas já sabem que o matrimônio é algo mais que os
prazeres da carne. E suspeito que nenhum de vocês está em paz com este casamento;
ambos necessitam tempo para pensar nisso.
Sebastien viu que Alainna se girava de repente, como se as observações do
sacerdote a tivessem angustiado.
-Foi o rei quem tomou a decisão por nós, padre. - Disse. - Segundo o documento
que tenho em meu poder. - Pegou a bolsa que levava no cinto. -O contrato de matrimônio
tem que estar nas mãos do rei, ou a escritura da concessão da propriedade de Kinlochan
não será definitiva. Alainna e os seus poderiam certamente perder muito se o matrimônio
não se celebrar, e logo.
-Poderiam se unir pelo rito do apertão de mãos. - Sugeriu Padruig.
Sebastien olhou para Alainna com expressão de surpresa. Ela franziu o cenho.
-Consiste em tomar os votos diante de testemunhas por um período de um ano e
um dia. - Disse o padre Padruig. - Se ao término desse prazo não conseguem entrar em
um acordo, podem se separar.
Já não haverá obrigação que vos uma, exceto se houver um filho. Sebastien
deverá reconhecer o menino, naturalmente, mas não há por que celebrar um casamento
nem sequer então.
-Isso daria cumprimento à ordem do rei. - Disse Alainna devagar. - Podemos
redigir um contrato matrimonial e assiná-lo, como se faz com os compromissos.
-Para a união pelas mãos não precisa se publicar admoestações. - Disse o
padre Padruig. - Cormac não se inteirará até que queiram dizer-lhe.
-É um bom plano. - Disse Sebastien.
Alainna assentiu com o olhar baixo.
-Sugiro que realizem o rito da união pelas mãos o dia doe Natal, ou a véspera. -
Disse o padre Padruig. - Isso augurará uma sorte excelente, um bom futuro para os dois.
Com um augúrio assim, resolverão bem seus conflitos. - E sorriu.
Sebastien se fixou em que as bochechas de Alainna adquiriam uma encantadora
cor rosada. Ela deu a volta e correu até a entrada.
Capítulo 17
Capítulo 18
***
No dia seguinte, Alainna foi a mais silenciosa das três durante a viagem de volta
a Kinlochan. A descida foi muito mais rápida que a prolongada ascensão, inclusive com o
grosso manto de neve que cobria o chão. Acompanhavam-nos a ovelha e a cabra, guiadas
a base de gritos e fortes trancos. Esa era todo sorrisos e deslumbrante encanto, e Alainna
sabia que era o fato de pensar em Ruari o que fazia com que sua beleza resultasse
assustadora e atribuía aquela alegria a seu estado de ânimo.
Sebastien conversava bastante com Esa, e poucas vezes diretamente com
Alainna. Não se uniu muito a conversa, mesmo quando viu a expressão de preocupação
nos olhares fugazes e sérios que lhe dirigia Sebastien. O coração lhe saltava no peito cada
vez que ele a tocava: uma mão no braço para subir uma ladeira rochosa, um leve puxão
para lhe colocar bem o tartam quando lhe escorregava.
Quando por fim estiveram sentados no aquecido salão de Kinlochan, Alainna
observou como sua gente esbanjava uma carinhosa bem-vinda a Esa. Incluíram Sebastien
no círculo familiar para o jantar, e lhe agradeceram repetidamente por ter ajudado a trazer
Esa de novo com os seus. Alainna sorriu e compartilhou o regozijo geral, mas uma parte
dela se sentia distante.
O rito do apertão de mãos se celebraria dentro de muito pouco. Tinham
convidado o sacerdote e haviam caçado um cervo para o banquete. Una e as mulheres
tinham trabalhado muito durante todo o dia para preparar o salão, e Lorne havia se retirado
à solidão de sua cama de poeta para pôr a ponto suas habilidades trovadorescas para a
celebração.
Alainna tinha a sensação de estar caindo em algo imprevisível e assustador. O
fato de unir-se a Sebastien pelo rito do apertão de mãos iria imprimir a sua vida uma
mudança em uma direção nova, emocionante, apaixonada... e também poderia levar a
ambos ao desastre. Não sabia, e não podia expressar seus medos nem suas esperanças a
ninguém.
Antes de enfrentar-se a tudo aquilo, restava ainda a tarefa de cumprir em
segredo com Ruari e Esa.
-Aenghus Mac Og, deus do amor e da juventude. - Declamou Lorne sentado em
sua cadeira contra o fogo. - Apaixonou-se por uma donzela um dia. E quando o próprio
deus do amor sucumbe a esse feitiço, faz-se um poderoso entrelaçado das almas.
Alainna se inclinou adiante para murmurar a tradução enquanto Lorne falava,
vertendo as palavras para o inglês para os cavaleiros, que se tinham se acostumado a
sentar-se perto dela para poderem escutar também as histórias que se narravam pelas
noites. Robert e Hugo estavam sentados cada um de um lado, com outros cavaleiros perto.
Alainna percebeu que Sebastien havia escolhido uma vez mais um assento nas
sombras, o lugar que pelo visto preferia. Olhou-o sem deixar de falar e descobriu que ele já
a estava olhando, com olhos cinza e firmes, e reagiu ruborizando-se.
-Aenghus viu aquela linda donzela em um sonho. - Continuou Lorne, e Alainna
repetiu suas palavras-. Aparecia-lhe uma e outra vez, doce e deliciosa, às vezes tocando a
harpa para ele. Aenghus, louco de amor e incapaz de tê-la, sentia crescer cada dia seu
desejo. Buscou-a sem cessar, até que por fim descobriu que era Cair, filha de um rei, e que
podia encontrá-la em determinado lago junto com outras donzelas, de modo que correu
para aquele lugar.
Alainna se deteve quando o fez Lorne e olhou para Sebastien, pensando no
sonho que ela mesma havia tido com um mágico guerreiro. Aquele homem estava agora
sentado nas sombras, e lhe acelerou o coração.
-Quando Aenghus chegou ao lago, viu o triplo de cinquenta cisnes nadando
nele. Cair era um deles, e seu pai explicou a Aenghus que sofria um encantamento. Se
Aenghus fosse capaz de reconhecê-la, teria-a para si. Conheceu, a seu amor,
imediatamente.
»Cair era o mais encantado de todos os cisnes, o de um branco mais puro, o
mais grácil. Chamou-a e ela veio nadando até ele. Mas não podia ser sua porque ele tinha
a forma de um homem e Cair a de uma ave. Assim ele adotou a forma de um cisne por ela.
»elevaram-se juntos no ar, unidos por uma cadeia de ouro, e voaram o um ao
lado do outro até a fortaleza de Aenghus, onde viveram felizes para sempre, e cada dois
anos se transformavam juntos em cisnes.
Quando Alainna terminou de traduzir, certa frase ficou flutuando em sua mente.
E ele adotou a forma de um cisne por ela.
Ela havia pedido a Sebastien que adotasse sua forma, que se convertesse em
um guerreiro celta com um sobrenome das Highlands, mas ele havia se recusado. Fechou
os olhos e desejou ardentemente, fervorosamente, que Sebastien e ela pudessem ser
como os cisnes daquele conto, compartilhando a mesma forma, juntos para sempre.
Abriu os olhos e viu que Sebastien a estava olhando fixamente. E então
percebeu que ele também havia entendido o conto de Aenghus e Cair.
Correspondia a ele decidir, e lhe correspondia o direito de partir ou ficar.
Era já muito tarde, e a névoa era densa e fria. Alainna se alegrou de que Giric
estivesse ali para levar a ela e a Esa no barco de remos até a ilha quando todo mundo foi
dormir.
Ruari os aguardava na margem, uma figura alta e silenciosa na névoa à luz da
lua, com cabelo de prata. O bote tocou a praia de calhaus e Giric se levantou e saltou para
a terra para arrastar o bote até terra firme. Logo se voltou e estendeu uma mão. Esa se
levantou também e saltou do bote, enquanto Alainna observava desde seu assento.
Esbelta e elegante, Esa estava de pé em frente ao homem na praia. Ruari
estendeu a mão. Ela a pegou na sua e a levou a rosto, olhando-o com uma expressão
maravilhada que se apreciou com toda claridade à luz da lua, e depois lhe beijou a mão.
Tocou-lhe a bochecha, o cabelo, o peito. Acariciou-lhe a cabeça e disse algo. Então ela riu,
um som como campainhas de prata, e o rodeou com seus braços.
Alainna desviou o olhar com os olhos cheios de lágrimas.
Giric se sentou a seu lado e segurou o remo.
-Voltarei. – Disse. - Antes que amanheça para levá-la de volta a Kinlochan. E
todas as noites a trarei até aqui para que se reúna com ele, durante todo o tempo que
Ruari ficar. - Sua voz soou rouca.
Alainna afirmou com a cabeça, incapaz de responder devido ao nó que tinha na
garganta. Limpou as lágrimas e fechou um pouco mais o tartam sobre a cabeça, enquanto
o bote flutuava com a corrente do lago.
O amor que compartilhavam Ruari e Esa era forte e profundo. Ela ansiava ter
uma paixão assim em sua vida. Agora sabia que aquilo era o que sentia por Sebastien, e
estava segura de que ele sentia algo sincero por ela.
O que teria ali podia crescer e aprofundar-se, podia durar para sempre. Mas o
orgulho e a honra os separavam, e não sabia se aquela barreira poderia ser derrubada
alguma vez.
Voltou os olhos para trás pela última vez. Ruari e Esa tinham desaparecido em
seu mundo privado, envolto na névoa.
Capítulo 19
Através da janela viu Alainna inclinada sobre sua pedra, movendo as costas e os
braços com um ritmo regular, seguindo a cadência da canção, perdida em seu trabalho e
melodia. Não percebia que a estavam olhando. Sebastien olhou para Lorne e viu que seus
olhos se nublaram.
A suave voz continuou:
A canção se desvaneceu, e Sebastien não ouviu mais que o fraco coçar do ferro
contra a pedra. Piscou para afastar as lágrimas.
-Por que canta? - Perguntou a Lorne.
-As mulheres cantam quando tecem, cantam os pastores, cantam os barqueiros,
as mães, os amantes. - Respondeu o bardo. - Somos uma raça de poetas e cantores, além
de guerreiros. Este é um cântico especial, que não se deve interromper até que tenha
terminado. Poderíamos entrar em escutar, mas esta vez não.
Nesse momento começou uma canção de novo, os mesmos versos, em tom
grave e suave.
-Esta cantando à alma para que volte. - Disse Lorne.
Sebastien sentiu que o percorria um calafrio.
-A de quem? A de seu pai?
-A de nosso clã. - Respondeu Lorne.
Sebastien assentiu pensativo enquanto escutava a suave cadência daquela voz.
Lembrou o que Alainna lhe havia contado quando estiveram juntos ao lado da Donzela de
Pedra. Não havia duvida de que a jovem sentia a pressão do breve espaço de tempo que
restava para que desaparecesse o encantamento que os protegia.
-Está cantando à alma de seu clã para atraí-la ao lar porque começa a partir.
Quer fazê-la voltar antes que nosso clã se esfume na névoa do tempo. É como uma
espécie de magia, muito antiga. - E sorriu.
-Pode-se fazer isso? - perguntou Sebastien.
-Considera essa canção uma prece. - Disse Lorne. - Uma chamada. O que
Alainna faz aqui é tão sagrado como se ajoelhasse no interior de uma igreja. Está pedindo
ajuda a Deus, está lhe rogando por seu clã.
Sebastien assentiu sem dizer nada e olhou o degrau de cerca da porta, coberto
de neve.
-Você. - Murmurou Lorne. - É parte da resposta de Deus. – Bateu em Sebastien
no ombro e se foi.
Sebastien ficou de pé junto à porta durante um longo tempo, desejando poder
entrar, falar com Alainna, estar com ela. Agora tinha muitas perguntas, umas para o rei e a
Coroa, outras para ele só. A canção terminou, e levantou a mão para chamar. Mas não se
atreveu a incomodar Alainna; o que estava fazendo parecia muito valioso para interrompê-
lo. De modo que ficou ali, envolto em um tartam das Highlands e uma túnica normanda,
sentindo-se como um intruso.
Ali era um intruso; isso não mudaria pela maneira que usava o tartam, nem
tampouco pelo peso da grande espada que tinha na mão.
Podia escutar suas histórias, falar sua língua, beber sua água da vida, caçar em
suas colinas; podia construir uma fortaleza de pedra em frente a seu lago e converter-se
em um grande senhor entre eles; podia casar-se com sua bela chefe. Podia ficar ali para
sempre e criar ali a seus filhos, se quisesse fazê-lo. Mas se perguntava se alguma vez
poderia compartilhar de verdade aquela mesma lealdade, aquela história e aquela
sensação de família que existia em Kinlochan.
Apoiou a palma da mão na porta. O desejo que havia sentido da infância
renasceu novo e doloroso. Estava na soleira de tudo o que sempre havia desejado: um lar,
uma herança, amor e calor humano, e, entretanto não fazia parte daquilo. A vida agradável
que sempre havia imaginado para si estava em outra parte, do outro lado de um largo mar.
Fechou os olhos e soube que faria tudo o que estivesse em sua mão para
proteger aquela gente, para preservar suas vidas e sua maneira de viver. Não podia deixá-
los desfalecer.
Alainna voltou a cantar outra vez. Sebastien inclinou a cabeça e se afastou da
porta. A voz se filtrou ao exterior, bela e pura como os flocos de neve que flutuavam a seu
redor quando se afastou andando.
Capítulo 20
Achei no jardim
minha jóia, meu amor.
Seus olhos são como estrelas,
Seus lábios são fruta amadurecida,
sua voz for música celestial.
Achei entre a erva
uma donzela de olhar limpo.
Seus olhos são como estrelas,
suas bochechas como rosas,
Seus beijos como o mel.
Umas primeiras lágrimas brilharam nos olhos de Sebastien. Atraiu a Alainna até
ele, sem lhe soltar as mãos.
-Já está. - Sussurrou. - Que assim seja.
-E assim começará. - Murmurou ela enquanto inclinava o rosto até Sebastien
com os olhos semicerrados. Roçou-lhe ligeiramente os lábios com os seus em um beijo de
paz entre ambos. Encontrou os lábios de Alainna suaves, quentes e flexíveis.
Sentiu que o coração começava a pulsar de um modo diferente em seu peito, e
então soube que estava definitivamente apanhado em seu ritmo sem fim.
Capítulo 21
O delicado som das campainhas de prata se deixou ouvir por todo o salão.
Sobressaltado, Sebastien levantou o olhar da tranquila conversa que estava tendo com
Robert e olhou ao redor, mas só viu as cabeças e os ombros de quem o rodeava. Segurou
sua taça de madeira e bebeu um gole da potente água da vida.
O jantar que teve lugar depois do rito das mãos estava ainda nas mesas, em
terrinas de madeira meio vazios, junto às colheres e as facas de comer. As bandejas e
outras terrinas maiores continham ainda generosas porções de assado de veado e guisado
de cordeiro, cenouras e cebolas, bolachas de aveia e mel, queijos e maçãs. Por toda parte
havia jarras de vinho com especiarias, cerveja de urze e odres de uisge beatha, que eram
visitados de vez em quando pelos que ainda tinham sede.
Mesmo que a maioria estavam saciados, Sebastien havia comido pouco. Sabia
que Alainna, que estava sentada a seu lado falando em voz baixa com Giric, e apenas
havia tocado sua comida tampouco. Alguns montanheses e cavaleiros estavam ainda
sentados à mesa, enquanto que outros se transladaram a banquinhos e bancos ou tinham
encontrado um lugar no chão, prevendo que se aproximava o momento de contar histórias.
De novo se ouviu o agudo som. Os murmúrios se apagaram. Sebastien voltou a
levantar o olhar, e esta vez viu que Lorne entrava pela porta e avançava até o centro do
salão. O cabelo lhe flutuava sobre os ombros como se fosse neve. Levantou uma mão que
sustentava um galho de macieira curvada, cheia de raminhos entretecidas com fios de
cores, das que pendiam pequenas campainhas de prata, vidros reluzentes, bolotas e frutos
secos. Ao sacudir o galho com um ritmo distintivo, esta fazia um som ligeiro e musical.
Alainna ficou em pé quando Lorne entrou no salão. Foi até o lá para aproximar
uma cadeira contra o fogo, e a seguir serviu cerveja de uma jarra em uma taça de prata,
que deixou em cima de um banco baix. Logo retornou ao banco e se deslizou de novo em
seu lugar entre Giric e Sebastien, que a olharam com expressão interrogante, picados pela
curiosidade.
-O que está fazendo? - Perguntou.
Alainna se inclinou até ele, com o braço perto dele. Sebastien se inclinou para
ouvir a resposta.
-Leva o galho de prata, uma honra que se concede só aos bardos que se
formaram pelo menos durante nove anos. - Sussurrou ela. - Lorne é mais que um narrador
de contos; é um fili instruído, um poeta consumado. Aprendeu em uma escola de bardos a
oeste das Highlands, cujas tradições se remontam à antiga Irlanda. Estudou durante nove
anos de jovem para ganhar o direito de ser um dos filidh.
Sebastien assentiu com a cabeça, fascinado, desfrutando daquela singela
proximidade entre ambos, tão natural devido ao banco lotado de gente no qual estavam
sentados.
Lorne rodeou o lugar sacudindo o galho decorado com um alegre ritmo, fazendo
vibrar as campainhas, as bolotas e os vidros. A música mágica que produzia enchia a sala.
Lorne pegou o assento, depositou o galho no banco que tinha a seu lado e segurou a taça
para beber um gole de cerveja. Ato seguido se acomodou em sua cadeira e olhou a seu
redor, mostrando seu perfil forte e imponente à luz do fogo.
Cada movimento que fazia, cada olhar que dirigia, eram lentos e deliberados.
Sebastien percebeu como ia aumentando a tensão no ambiente, como se fosse algo
tangível. Um após o outro, presentes foram inclinando-se para frente, desejosos de que
começasse o relato. O ancião segurou de novo o galho e esta vez criou uma animada
cadência, levantando-a e deixando-a cair, uma e outra vez, até que por fim a deixou quieta.
O som das campainhas de prata diminuiu até desaparecer.
Alainna estava ao lado de Sebastien, fechada pelo outro lado por Giric e outros
que ocupavam o banco. Sebastien mudou de postura e voltou o torso para lhe deixar mais
espaço. Ao fazê-lo, o ombro dela encostou-se ao peito, e imediatamente surgiu calor entre
ambos. Consciente do fácil que lhe seria atraí-la a seus braços, permaneceu imóvel e
observou Lorne.
-Há muito, muito tempo. - Disse o bardo. - Perdido nas brumas dos séculos, vivia
um guerreiro chamado Conall das Vitórias, que viajava com quatro de seus camaradas
para o oeste. Viram uma linda ilha verde que brilhava sobre a água, e então foram procurar
um bote e navegaram até ela em busca de aventura, que foi o que acharam.
»O rei da ilha verde tinha uma bela filha a que havia encerrado dentro de uma
alta torre de prata com porta de bronze e um telhado feito de asas de pássaros brancos.
Aquela torre descansava sobre umas altas colunas. Então o rei disse a Conall que quem
fosse capaz de chegar a princesa daquela torre a receberia como esposa e herdaria a ilha
verde à morte do ancião rei.
Enquanto falava, Robert, Hugo e outros escutavam atentamente a tradução que
ia fazendo Alainna. Sebastien escutava tanto a Alainna como Lorne, e sentia o calor do
corpo da jovem, tão perto do dele, fluir através dele, uma sensação parecida com a do
vinho doce. A vibração de sua voz lhe penetrava no peito, e fechou os olhos.
A paz o envolveu semelhante à névoa no bosque. Saboreou aquela sensação,
sem saber muito bem se era produzida pelo suave eco de duas belas vozes; ou
possivelmente pelo quente toque do corpo de Alainna contra o seu; ou talvez pelo
ambiente sereno e atento que flutuava na sala. Não sabia. O único que desejava era sentir
como ia o envolvendo, de forma estranha e cálida.
-... E depois que todos os guerreiros tiveram provado e falhado, por fim Conall
empurrou com todas suas forças e derrubou as colunas que sustentavam a torre. -
Continuou Lorne. - A princesa caiu dela diretamente em seus braços. Quando a abraçou e
a olhou nos olhos, sentiu o amor nascer em seu peito como a um ser vivo...
Sebastien abriu os olhos. Ele conhecia bem aquela sensação. Voltou o olhar até
Alainna, e esta o olhou a sua vez fazendo uma pausa na tradução, como se
compartilhasse seus pensamentos.
-Mas Conall sabia que seu companheiro Mac Morna também amava a princesa
da torre de prata. E Conall amava a seu amigo, porque era seu amigo de alma. Quem se
casasse com a princesa ficaria na ilha verde para sempre. Mac Morna estava preparado
para desfrutar daquela paz em sua vida, enquanto que Conall tinha sede de virou e
depositou à moça nos braços de seu amigo. E depois Conall disse ao rei que Mac Morna
havia derrubado as colunas e ganhado à princesa...
Sebastien sentiu que algo intangível lhe encolhia no peito. Sabia a maravilhosa
sensação que era abraçar Alainna; não podia imaginá-la nos braços de outro homem, ser a
esposa de outro homem.
Sabia o muito que a desejava; sabia que havia sido um tonto ao pensar que
poderia abandoná-la. Estavam unidos pelas mãos pelo preço de um contrato e uma
escritura de propriedade, estavam juntos por uma ordem do rei. Mas, de algum modo,
entre eles havia se formado um vínculo mais profundo, quando nenhum dos dois queria
que acontecesse tal coisa. E o orgulho, tanto o dela como o dele, poderia romper aquele
vínculo como um martelo rompia a pedra. Fechou os olhos angustiados.
Ouviu que Lorne e depois Alainna finalizavam o relato e voltou a ouvir o delicado
som das campainhas de prata, e então abriu os olhos. Alainna lhe sorriu.
-Este conto é um de meus favoritos. - Disse-lhe, ainda apoiada contra seu lado.
-É uma história maravilhosa. - Murmurou ele, sentindo que um sorriso subia
desde seu coração até seus olhos e tomava forma em seus lábios.
Alegrava-se de que o banco estivesse totalmente ocupado, para que Alainna
tivesse que apertar-se contra ele daquele modo. Alegrava-se de não ter procurado seu
lugar habitual em um canto escuro, como a princípio pensou fazer, inclusive naquele dia. E
também se alegrava de ter tomado os votos da união pelas mãos com Alainna, mesmo que
só fosse por um breve espaço de tempo. Não importava o que o futuro lhe tinha reservado
a cada um; ele entesouraria o que havia forjado naquele dia.
-O padre está bêbado. - Disse Una. Alainna olhou por cima do ombro de
Sebastien para olhar o padre Padruig, que estava sentado ao outro lado.
-Como, já? - Disse Niall do outro lado da mesa. - Normalmente espera que
terminem as narrações. Vamos, padre Padruig, me dê isso. - Tirou o odre de ovelha de
entre as mãos inseguras, o aproximou de sua própria boca e começou a tragar com gosto.
Logo o deixou sobre a mesa e sorriu abertamente a Una. - Vê? Assim fica
menos para ele.
Una olhou a ambos com desgosto.
-Apenas está aqui a umas horas, desde que terminou a cerimônia do apertão de
mãos, e já está bêbado pela bebida.
O padre Padruig levantou os olhos.
-Não estou bêbado. - Disse fazendo gestos extravagantes. - E meu amigo Niall
o Maneta me contou o que foi dito na cerimônia. Ach! Que pena, ter perdido isso! Niall
disse que lhe saltaram as lágrimas.
-Assim é. - Concordou Niall. - E se você tivesse atuado como testemunha, agora
estaríamos celebrando um casamento e não uma união pelas mãos. - Ele e o padre caíram
em gargalhadas.
Una fez um ruído de impaciência.
-Este não está bêbado. - Disse o sacerdote, assinalando a Sebastien como se
fosse um exemplo. - E esteve bebendo água da vida, como você. E você é um sacerdote! -
Sacudiu a cabeça em um gesto negativo e se afastou andando.
-Sou um bom padre. - Disse o padre Padruig em tom defensivo.
-É. - Concordou Niall. Deslizou um olhar de relance para Sebastien. - Como é
que este cavaleiro não está bêbado, se o único que havia bebido antes de vir a Kinlochan
era vinho francês e cerveja inglesa?
-Criei-me com vinho da Bretanha, que tem que beber-se devagar, e só com as
costas apoiada contra a parede. - Sebastien esboçou um sorriso lânguido e olhou para
Alainna com os olhos brilhantes. Ela sorriu a sua vez, divertida.
-Quando for ali, nos traga um pouco. - Disse Niall.
-Não pode ir durante um ano. - Disse o padre Padruig. - Não pode ir-se a
Bretanha nem a nenhuma parte por um tempo de um ano e um dia, a menos que leve
consigo a Alainna. E ela não quer ir! - Arrancou o odre da mão de Niall.
Sebastien olhou para Alainna.
-Do que está falando?
Ela desceu o olhar, com o coração acelerado.
-Se me abandonar durante mais de três noites seguidas, a união pelas mãos
ficará anulada.
-Anulada? - Repetiu ele.
-Como se nunca tivesse acontecido.
O bretão ficou olhando. Logo, de repente, afastou a vista e franziu o cenho
enquanto dava voltas à taça meio vazia na mão.
Alainna desviou o rosto.
-Eu tampouco soube até hoje. Pensei que se alegraria se soubesse. –Murmurou.
- Dado que... tem que partir.
Sebastien não respondeu. Incapaz de interpretar aquele silêncio, como estava
acostumada a fazer frequentemente, Alainna não soube se estava contente ou
descontente com aquela revelação.
-Esse contrato nupcial que redigi para vocês está já assinado e é válido. -Disse o
padre Padruig, inclinando-se para Sebastien. - Mas faz falta um casamento para que siga
sendo-o. Tenha cuidado de não ir a nenhuma parte sem ela, eh? - Sorriu muito sensível.
-Alainna não se irá de Kinlochan. - Disse Niall. - Parece-se com sua parente Esa.
As raízes do lar são muito profundas nas duas.
-Que mais tenho que saber a respeito da união pelas mãos? - Perguntou
Sebastien em tom sério. Alainna lhe dirigiu um olhar penetrante.
-Se deitar com ela, casa-te com ela. - Disse o sacerdote. - Isso constitui uma
união matrimonial aos olhos de Deus, se não da Igreja.
-Isso já sei. - Repôs Sebastien com voz grave, enquanto que lhe contraía um
músculo na bochecha.
-E no que a mim diz respeito, como sacerdote, a união carnal é um matrimônio,
não importa se as pessoas desfizeram os votos ou não. - Disse o padre Padruig severo,
obrigando-se a olhar fixamente os dois. - A união pelas mãos está permitida só pelas leis
celtas. - Disse, agitando um grosso dedo no ar. - Mas a Santa Mãe Igreja de Roma não
reconhece essas uniões. – Encolheu os ombros. - Mesmo assim, se a abandona e não
retorna em três dias ou mais, segundo o costume ela não será sua esposa pelo rito das
mãos, e nunca o terá sido.
-Toda essa linda poesia se desperdiçará. - Lamentou-se Niall, com os olhos
avermelhados. O sacerdote lhe deu o odre.
Sebastien permaneceu sem dizer nada, sentado junto à Alainna. Não a olhou,
nem tampouco deixou de dar voltas à taça, como se seu singelo desenho o fascinasse.
Entretanto, ela percebia a profunda corrente de seus pensamentos como uma corda
invisível que unia a ambos.
A união carnal constituía em matrimônio, disse-se a si mesmo; com
independência dos votos pronunciados ou quebrados, aos olhos de Deus estariam
casados para sempre se entregavam às deliciosas tentações que já havia provado com
ele. Olhou para Sebastien, mas este não a olhou. Soltou um suspiro.
-Será melhor que pensem atentamente. - Disse o padre Padruig em tom sóbrio. -
A união pelas mãos não é um passo que se possa dar a ligeira.
-Sei, padre. - Sebastien dirigiu a Alainna um olhar fugaz.
Ela a acusou da cabeça aos pés, como um contato físico.
-Mas, entretanto, os dois obedecem ordens do rei. - Disse Niall com um largo
sorriso. - Que problema há? Já está tudo pensado, não? Agora encontrarão a paz e a
felicidade juntos, tal como quer o rei e como lhes desejamos todos. -Sorriu-lhes.
Sebastien inclinou a cabeça, com o cenho enrugando. Alainna desviou o olhar
com as bochechas acesas e o desejo bulindo em seu ventre com apenas olhá-lo, com
apenas estar sentada a seu lado.
Levantou os olhos quando Giric e Lulach se sentaram à mesa a cada lado de
Niall. Não fazia muito que os havia visto rir com Robert e com alguns outros cavaleiros
normandos. Nesse momento, na sala se fez de novo o silêncio, porque Lorne apoiou sua
harpa contra a coxa e começou a tocar uma suave melodia. Alainna se relaxou e
descansou um cotovelo na mesa para escutar a música. Deixou escapar um bocejo.
-Vai se deitar logo, eh? - Perguntou-lhe Lulach com uma piscada.
Ela se ruborizou.
-Ontem à noite não dormi bem. Estive trabalhando até muito tarde.
-Acabou-se isso, eh, Sebastien? - Riu Niall.
Sebastien não respondeu, mas sim cruzou os braços em cima da mesa e disse a
Giric:
-Amanhã ou passado, se o tempo permitir, tomarei uns quantos homens e
percorrerei a parte noroeste de Kinlochan.
-Para medir os limites? - Perguntou-lhe Giric.
-Para isso, e também para procurar renegados. Um dos fazendeiros
arrendatários com o que falei no outro dia me disse que dias atrás havia visto um homem
escondido em uma das covas que há nessas colinas. Pensou que podia ser um dos celtas
rebeldes. O tipo ao que vimos lutando com os lobos poderia ser um deles, já que Alainna e
você não o reconheceram. Seguirei procurando. Os rebeldes procurarão apoio entre os
montanheses desta zona.
Alainna clareou a garganta.
-O clã Laren não apóia a causa dos MacWilliam. Falo como chefe de meu clã.
-Como deve ser, mas persistem os rumores da existência de rebeldes. -Replicou
Sebastien. - Há pelo mínimo um deles por aqui. O arrendatário me disse que havia
chegado a seus ouvidos que os MacWilliam estão voltando da Irlanda de um a um.
-Eu também ouvi dizer isso. - Atravessou o padre Padruig. - De um em um,
preparando o caminho para outros, percorrendo as Highlands em silêncio em busca de
apoio para sua causa. Mais tarde pensam juntar-se e formar um grupo forte.
Alainna, nervosa, mordia-se o lábio enquanto escutava. Estava pensando em
Ruari, escondido a salvo na pequena ilha; adivinhava o que Sebastien pensaria daquilo,
mas se perguntava o que faria o resto de sua gente se descobrisse a verdade. Apoiariam
Ruari, ou o entregariam à Coroa?
-Ruari MacWilliam desapareceu. - Disse Giric com firmeza, sem olhar para
Alainna. - De modo que os rebeldes precisam de chefe na Escócia.
-Se estivesse vivo, viria aqui. - Disse Niall. - Eu gostaria de saber se os seus
estão procurando apoios em nossa região.
-Aqui não encontrarão. - Disse Lulach. - Nós nunca seguimos Ruari na causa de
seu clã, mesmo que teríamos coberto suas costas por estar casado com um dos nossos.
-Calem-se todos. - Disse Alainna, inclinando-se para frente. - Que Esa não lhes
ouça falar de Ruari. - Dirigiu um olhar a Esa, que estava sentada ao lado de Una, Morag,
Beitris e a calada esposa de Niall, Mairi. Sorria amavelmente a todos os que a rodeavam, e
o brilho de felicidade que lhe iluminava o rosto era tão evidente que Alainna sorriu para si,
contente de ter contribuído com aquela alegria.
-Ajudariam agora, se estivesse aqui? - Perguntou Sebastien.
Alainna retorceu as mãos por debaixo da mesa, agradecida de que Sebastien
estivesse olhando aos homens e não a ela.
-Ruari Mór era um grande homem. - Disse Lulach. - Um poderoso guerreiro e um
homem que deveria ter sido um rei, se os reis se escolhessem por sua valia e sua força.
Eu não duvidaria em ajudá-lo se o visse agora mesmo, e lutaria a seu lado para defendê-
lo. Mas não apoiaria a causa de seu clã.
-Eu também defenderia Ruari, se não fosse mais que um fantasma. - Disse Niall.
- Eu gostava muito dele. Possuía o coração e o orgulho de um leão. Mas o resto de seu clã
são temperamentais e muito orgulhosos, e não me importam.
Alainna olhou para Giric e viu que ele a estava olhando a ela com gesto sério e
eloquente. A seu lado, Sebastien franzia o cenho, pensativo.
-Não me surpreenderia que o clã Nechtan tivesse algo que ver com os
MacWilliam. - Disse nesse momento Lulach.
-Cormac declarava total lealdade em sua carta ao rei. - Disse Sebastien, e olhou
ao sacerdote. – Escreveu você essa petição?
-Sim. - Respondeu o aludido. - Ele insiste que é leal, como já sabe. Como
sacerdote dele, e como avô de seu filho, não posso dizer mais.
-Já vemos em seu rosto o que pensa. - Disse Niall com seriedade. - Não sairia
muito de seu caminho para defender esse homem.
O sacerdote segurou o odre e bebeu um gole, logo limpou a boca e expulsou o
ar com força.
Alainna se inclinou para frente, desejosa de mudar de assunto. O coração lhe
saltava nervoso cada vez que mencionavam Ruari e Cormac. Odiava pensar que Ruari
pudesse ter vindo a essa região só para procurar o apoio de Cormac. Se fosse assim, a
própria lealdade dela se veria dolorosamente dividida.
-Note. - Disse Niall. - Una e as demais vêm até aqui. Devem estar pensando que
já é hora de que estes dois se unam definitivamente. - E olhou para Sebastien com um
largo sorriso.
Alainna ouviu rir a Una e Beitris e ao levantar os olhos viu que várias pessoas
mais se levantavam de seus assentos para aproximarem-se da mesa. A maioria deles
sorria de orelha a orelha e falavam todos de uma vez. Esa vinha entre eles, alta e digna.
-Ainda fica que a noiva seja levada a cama, e se está ficando tarde. - Disse Una,
que encabeçava o grupo. Levava dois tartans dobrados nos braços. - Em pé, casal!
Sebastien se levantou e saiu do banco, e Alainna fez o mesmo. Sentiu um frio no
estômago e o coração começou a pulsar mais depressa.
-Em uma união pelas mãos, o ato de levar a noiva à cama é diferente do
matrimônio. - Disse Beitris a Sebastien. Pegou os tartans dos braços de Una e entregou
um a ele e outro a Alainna. - Não lhes acompanharemos até o dormitório com cânticos e
benções, porque isso está reservado para as núpcias. Devem sair e procurar um lugar
onde ficarão sozinhos, em um dos outros edifícios.
-Ou escada acima no quente dormitório de Alainna se quer passar na nossa
frente às escondidas. - Acrescentou Morag, sorrindo. - Fingiremos não ver nada. -Olhou
para o outro lado intencionalmente enquanto os outros começavam a rir a seu redor.
-Não lhes seguiremos. - Prometeu Una. - Desfrutarão de intimidade para fazer o
que quiserem. - Sorriu abertamente, e houve mais risadas.
Apesar de tudo, Alainna não podia sorrir. Notava as bochechas ardendo. Olhou
para Sebastien, e viu com surpresa que tinha o rosto avermelhado. Nunca o havia visto
ruborizar-se, mesmo sendo loiro. Parecia incômodo, ali de pé com o tartam nos braços
como se não estivesse seguro do que fazer com ele.
-Não lhes seguiremos. - Disse Lorne. - Mas sim lhes daremos um conjuro
benéfico. Venham aqui e fiquem do meu lado. - Fez um gesto.
Alainna se aproximou, como Sebastien, enquanto que os outros se retiraram e
formavam um amplo círculo ao redor. Lorne elevou a mão. De seus dedos se desenrolou
um fio vermelho atado e costurado com pequenos vidros brilhantes. Sacudiu-o
brandamente para que soasse e brilhasse sob a luz.
Alainna permaneceu junto a Sebastien enquanto Lorne caminhava ao redor
deles no sentido do sol agitando o fio de conta com um suave ritmo. Ao mesmo tempo ia
recitando uma bênção, e Alainna fechou os olhos e escutou.
No pátio iluminado pela lua, suas respirações formavam pálidas nuvens geladas.
Alainna caminhava em silêncio junto a Sebastien, ouvindo em suas costas os alegres
acordes da música que interpretava Lorne.
-Podemos entrar aí. - Disse quando se aproximaram da oficina. Abriu a porta e
Sebastien entrou atrás dela agachando a cabeça sob a porta.
A sala estava fria, penumbrosa e reinava um silêncio fantasmal; as lajes mudas,
pálidas presenças sobre as mesas e os bancos. Um débil resplendor vermelho emanava
do braseiro que havia no centro. Alainna passou por cima dele fazendo ranger a capa de
lascas de pedra, segurou um atiçador de ferro e começou a remover as brasas para ter
mais luz. Depois de acrescentar uns quantos carvões, limpou as mãos e se levantou.
Voltou-se insegura. Sebastien cruzou o quarto em direção a ela fazendo ruído ao
pisar nas partes de pedra. Pegou uma vela e se agachou para acendê-la no braseiro.
Continuando, de pé junto à Alainna, com a vela em alto e o tartam dobrado sob o braço,
elevou uma sobrancelha laconicamente.
-Vamos dormir aqui esta noite?
Alainna apertou o tartam contra seu seio.
-Eu passei aqui muitas noites. Neste momento faz frio, mas logo esquentará. -
Viu que ele percorria o lugar com o olhar: o chão cobertos de lascas de pedra, os bancos e
as mesas lotados de lajes esculpidas e toscamente cortadas, estantes cheias de
ferramentas de madeira e de ferro, e uma fina capa de pó branco que cobria quase tudo.
-É acolhedor. - Comentou.
Ela riu levemente e foi até o canto mais afastado da oficina para deixar o tartam
em cima de uma larga laje de arenito rosada que descansava, a modo de mesa, sobre três
robustas estacas de madeira, com um extremo um pouco mais alto que o outro. Sebastien
a seguiu depositou seu tartam ao lado do dela e deixou a vela em um canto da laje.
-Se está cansado e não quer voltar para o salão para procurar uma cama, pode
descansar aqui. – Apontou a laje. - Não é uma cama muito atraente, já sei, mas... - Deixou
a frase sem terminar.
Ele passou os dedos pela granulosa superfície. Observou uma sianinha de nós,
composta por linhas entrelaçadas e círculos sem fim, que havia sido esculpida em baixo-
relevo para formar um marco. A parte interior estava plana e em branco.
-Isto é um de seus projetos? - Perguntou.
-Este trabalho começou Malcolm. - Respondeu Alainna tocando a pedra. - É a
última das lajes de arenisca rosa que trouxe aqui há alguns anos. As outras peças
formaram as lápides que viu na igreja.
Franziu o cenho. - Espero que nunca tenha que terminar esta.
Sebastien assentiu com gravidade.
-O tapete do cão contra o braseiro servirá de cama.
Alainna enrugou o nariz e riu.
-Se você gosta da companhia das pulgas.
Ele riu, e o som ecoou entre as pedras da oficina.
-E se voltasse para salão, onde procuraria uma cama?
-Não acredito que conseguisse ocupar um lugar junto a outros cavaleiros e meus
parentes. Agora, não.
-Certo. – Cruzou os braços e apoiou um quadril contra a pedra. - Não espera
que vivamos como marido e mulher agora que nos unimos pelo rito das mãos? Faz parte
do costume.
Alainna cruzou de braços também, espelho da postura dele, e se apoiou contra a
pedra.
-Os casais que fazem os votos do rito do apertão de mãos também têm os...
privilégios do matrimônio. Mas tendem a estar apaixonadas e desejosos de casarem-se.
Unem-se pelas mãos até que seja possível chamar um sacerdote, por isso o costume se
estendeu até um ano e um dia. Nós temos a sorte de ter um sacerdote perto de Kinlochan,
mas não é o caso em uma boa parte das Highlands.
-Ah. - Disse Sebastien, afirmando com a cabeça. - Mas ainda se pode desfazer,
mesmo que seja um matrimônio aos olhos de Deus.
-Segundo nosso costume, pode. - O coração lhe golpeou com força no peito. -
Minha gente pensa que nós... completaremos nossa união. Acreditam que nos unimos
pelas mãos para que Cormac não fique sabendo do casamento durante um tempo. -
Deixou escapar um suspiro. - Querem que continuemos casados, e que você aceite tomar
nosso sobrenome e o de nossos filhos.
-Não posso fazer isso. - Disse Sebastien com um fio de voz.
Alainna encolheu os ombros.
-Mesmo assim, eles esperam que o faça. É difícil acreditar que alguém possa
rechaçar nosso sobrenome ou partir de Kinlochan.
-É um lugar muito belo, e um sobrenome orgulhoso. - Concordou ele. - Mas
meus laços estão na Bretanha, como os seus estão aqui.
-Poderia trazer para seu filho aqui, a seu novo lar... se quisesse viver aqui. -
Adicionou.
-Lar. - Disse ele, como se nunca tivesse ouvido aquela palavra.
Esfregou a beirada da pedra com os dedos.
-Acreditam que vai ficar aqui para derrotar o clã Nechtan e reconstruir o clã
Laren. Minha gente deseja te aceitar não só como o paladino enviado pelo rei, mas
também como um chefe.
-Você é seu chefe, não eu.
-Agora depositaram sua fé em ti também. - Replicou Alainna. - Acreditam em ti,
seu guerreiro dourado. - Não tinha intenção de dizer o que pensava, e se mordeu o lábio.
Ele franziu o sobrecenho.
-Seu o que?
-Seu herói. Provou sua valia ante eles. - Voltou-se para estender os tartans. -
Não é uma cama muito cômoda, mas, se quiser, pode descansar aqui.
-E você?
-Eu não estou cansada. E tenho trabalho a fazer.
-Pode que não te conheça tão bem como um marido conhece sua mulher, mas
vejo que está esgotada. Tem a voz rouca e profundas olheiras. Precisa descansar.
Ela negou com a cabeça.
-O trabalho me relaxa. Estou muito tensa depois de um dia como hoje. Já
descansarei mais tarde.
-Aqui? -Tocou a arenito e logo olhou o duro chão. - Aqui não há nenhum lugar
adequado. E amanhã, e depois de amanhã?
Alainna já havia pensado nisso.
-Estou disposta a compartilhar meu dormitório, mas não minha cama. Não é
necessário que saiba ninguém mais que você e eu.
Sebastien assentiu devagar.
-Está disposta a fazer quase qualquer coisa pela felicidade dos seus.
Ela se deteve um momento com as mãos sobre o tartam.
-Como vou contrariar seus desejos? Já sofreram muitas decepções, muitas
perdas. Não posso lhes dizer que nós não desejamos isto.
-Pode que alguns deles se voltem frágeis com a idade, Alainna, mas são
resistentes e espertos. - Seu tom era rápido e severo, quase uma reprimenda. - Não estão
tão necessitados como você acha. Não há motivo para protegê-los da verdade.
Ela sacudiu a cabeça em um gesto negativo.
-Não posso dizer. Nossa união pelas mãos, e sua chegada aqui, lhes trouxeram
esperança e alegria. Não sabia quanto significava para eles até que vi seus rostos esta
noite e ouvi suas risadas. Não penso destroçar isso. Ainda não. - E se afastou.
Sebastien estendeu uma mão para tocá-la no ombro. Ela se deteve, de costas a
ele.
-Ama-os tanto. – Murmurou. - Que inclusive está disposta a deixar acreditar que
nós vivemos como marido e mulher. Isso é respeito por eles, Alainna, ou quer evitar a
verdade?
-A verdade é que estamos fazendo isto só para assegurar a ajuda para
Kinlochan... e a propriedade das terras para ti.
-Não vim aqui só pelas terras.
-Por que, então?
-Por ti. Vim por ti.
Alainna sentiu que a percorria um calafrio. Olhou-o, cativada pela sinceridade
que havia em sua voz, e cativada também pela lembrança do que havia sonhado.
-Vi apresentando sua súplica ao rei. - Disse Sebastien. - Vi seu orgulho e seu
desespero. Via-se com claridade que estava preocupada com os teus e que necessitava
urgentemente um paladino. Vim aqui para te ajudar.
-Obrigada. - Respondeu ela em voz baixa. - Mas em Kinlochan necessitamos
muito mais que cavaleiros virtuosos.
-Já sei que tem uma pobre opinião da cortesia. Mas a cortesia e a honra lhe
mantêm a salvo neste momento.
-Por que? - Afastou-se da pressão de sua mão.
-A cortesia te manterá segura esta noite nessa incômoda cama de pedra. -Disse
ele indicando a laje. - E em sua própria cama mais tarde, asseguro-lhe isso. Se a cortesia
não fosse parte de minha forma de ser. - Inclinou-se a modo de parodia. - Não poderia
garantir sua virtude, minha senhora.
-Já sei o quão cortês pode ser. - Replicou Alainna. E por agora te permitirei
entrar em meu dormitório, mas não em minha cama.
-Então, que assim seja.
Seu tom de voz era suave e tranquilo, coberto com verniz de educação
semelhante a um vidro opaco. Alainna desejava com desespero ver através daquele vidro,
ansiava saber mais dele, desejava o fogo, a paixão, o forte desafio que pressentia nele.
Mas sua declaração havia levantado uma barreira entre ambos.
Sem mediar palavras, segurou a vela e a levou até um banco sobre o qual
descansava uma pedra coberta por um pano e várias ferramentas. Depositou a vela de
forma que a luz se derramasse sobre a pedra. Depois pegou uma túnica singela e solta
que havia por ali e a pôs por cima para proteger o delicado vestido do pó da pedra. Com
mãos hábeis e rápidas, trouxe a inquieta massa de cabelo sobre um ombro e a segurou em
uma larga trança que caiu às costas.
Sebastien observou como retirava o tecido que cobria a laje e escolhia um cinzel
e um martelo de entre um sortido de ferramentas. Colocou o cinzel em posição e começou
a golpeá-lo brandamente com o martelo no punho de madeira, movendo os dentes sobre
uma parte da laje.
Consciente de que Sebastien havia se aproximado dela, não conseguiu aquietar
o rápido pulsar de seu coração nem o tremor de suas mãos. Continuou manipulando o
cinzel.
-Que pedra é esta? - Perguntou ele. - Não te vi trabalhar nela. Tem uma formosa
cor, como nata fresca. - Disse, correndo um dedo pela beirada. E é muito suave ao tato. É
pedra calcária?
-Calcária de Caem. Trouxe-a Malcolm da França, acredito.
-De Normandia. Caem está na Normandia. Eu estive ali, e ouvi falar desta
famosa pedra calcária.
-E com razão, porque é muito cômoda de trabalhar. É o bastante macia para que
resulte fácil de esculpir, cede ao menor toque, mas também é bastante dura para aceitar os
detalhes finos e poder poli-la como o bom mármore. - Enquanto falava escolheu outro
cinzel. - Faz justo que quer da ferramenta, o que quer a mão e a mente, mas só necessita
o toque mais ligeiro, a mão mais delicada.
-Então é a pedra perfeita para ti. - Murmurou Sebastien.
Alainna desceu o olhar, mas adorou aquele calado elogio.
-Tomara tivesse mais pedra calcária como esta. - Disse, e voltou a golpear com
o cetro, concentrada em sua tarefa durante uns momentos. - Como só tenho esta peça,
quero esculpir nela algo que seja único.
Sebastien se inclinou um pouco mais para olhar a pedra.
-O que representa esta cena?
-Algumas partes estão só esboçadas, mas aqui há uma torre com uma cerca ao
redor, e um homem e uma mulher esperando dentro das portas...
-E fora, árvores, água, pássaros voando. Já entendo. Representa Kinlochan?
-É uma cena de uma história muito antiga de um lugar legendário chamado Tir
Tairngire, a Terra de Promessa, ou Tir na n' Og, a Terra da Eterna Juventude. Uma bela
ilha verde situada muito a oeste, onde o sol fica como se fosse oro fundido no brilhante
mar. Nessa ilha há uma torre cujas paredes são feitas de prata e o teto de asas de
pássaros brancos, e está rodeada por uma cerca de bronze novo. - Disse com voz
sonhadora.
-É tão boa poetisa e narradora de contos como seu tio avô, mesmo que você
não o veja. - Falou em gaélico, ainda que usassem o inglês. Sua voz desceu até um nível
terno, mais profundo.
Alainna sentiu que se ruborizava e que a percorria um ligeiro tremor.
-O senhor dessa terra é o guerreiro mais bravo de entre todos os homens, e sua
dama a mais graciosa e linda entre todas as mulheres. Sua terra está repleta de
abundância, frutíferas nas colinas, salmões no rio, pássaros em todas as árvores.
-O paraíso. - Murmurou Sebastien.
-O paraíso. - Repetiu Alainna, passando os dedos pelo desenho em forma de
trança da sianinha esculpida na pedra. - Uma terra cheia de alegria e esperança. Uma terra
em que ninguém fica velho nem se sente triste. - Um súbito desejo lhe umedeceu os olhos.
- Não é Kinlochan.
Sebastien inclinou a cabeça.
-É onde você gostaria de estar?
-Quem não quereria viver em uma terra de paz e abundância? - Perguntou ela,
enquanto se inclinava para escolher um cinzel diferente.
-Em efeito. - Repôs Sebastien. Permaneceu a seu lado enquanto ela trabalhava.
Ao fim de uns instantes ela levantou a vista.
-Queria te dizer que Donal e Lulach saíram para falar com os arrendatários das
terras de Kinlochan para lhes pedir aveia e centeio para que pudessem lhes dar para
alimentar a seus cavalos. Acredito que poderemos recolher suficiente para todo o inverno.
-Bem. Entretanto, no ano próximo teremos que trazer grama para fazer feno, ou
nosso gado sofrerá as consequências.
Nosso gado. Alainna desviou o olhar e deixou o cinzel para escolher uma ponta
afiada.
-Se os cavalos continuarem aqui no ano próximo, certamente precisaremos
cuidar bem deles. - Apoiou a ponta da ferramenta contra a pedra, inclinou-a com cuidado,
golpeou-a uma vez e arrancou uma lasca que caiu no chão.
-Já que estamos falando de assuntos relativos a Kinlochan em vez de nosso
casamento, seja o tipo de casamento que for. - Acrescentou Sebastien enquanto Alainna o
olhava sério. - Queria mencionar que no outro dia, quando fazia tanta névoa, estive te
procurando para te falar das provisões para o gado. Acreditei que estaria trabalhando aqui,
ou com Una e as demais mulheres, mas ninguém te havia visto.
-Oh. Esse dia. - Repôs ela com o coração acelerado. Levantou a rosto e se
encontrou com seu olhar inalterável. Ele tinha o cenho franzido e o olhar cinza como o
cristal e sério-. Estive... Estive fora das muralhas.
-Fazia mau tempo para estar aí. - Comentou ele. - Ou para remar em um bote.
-Qu-que bote? - Golpeou de novo o cetro.
-Fui andando até a donzela de Pedra para te buscar e te vi no meio do lago, em
um bote com Finam.
Alainna deixou escorregar a mão que segurava a ferramenta de ferro, e o cetro
chocou contra seus dedos. Com um gesto de dor, deixou as ferramentas e segurou o
polegar dolorido.
Sebastien estendeu uma mão para ajudá-la.
-Deixe-me ver.
-Não passa nada. - Insistiu ela, mas os dedos dele eram quentes e fortes, de
modo que lhe permitiu que pegasse sua mão. - Estou habituada a estas coisas Disse com
risada leve.
-É uma lástima que esteja habituada a se machucar. - Esfregou os dedos
provocando agradáveis estremecimentos.
-Passará em seguida. - Murmurou Alainna tentando retirar a mão, mas
Sebastien a reteve e continuou massageando-a.
-Estava no lago. - Disse, reatando o assunto que tinham deixado. - Então me
perguntei por que teria ido àquela ilha sozinha em um dia assim. Teria te chamado ou teria
ido eu mesmo te buscar, mas um dos escudeiros teve problemas ao dirigir meu cavalo no
estábulo enquanto o ferrava e vieram correndo me buscar. Quando voltei por ti. Alguém me
disse que já tinha retornado e que estava em seu dormitório.
-Oh. Oh. - Disse Alainna, procurando uma resposta. - Eu... Quando era pequena,
pensava que essa ilha era Tir na n' Og. Sobre tudo no verão, ao chegar o sol, é um lugar
muito formoso, verde e frondoso sobre a água. Às vezes vou ali procurar pedras para
esculpir. A maioria das pequenas cruzes que faço é com pedras tiradas da ilha. - Aquilo era
do todo verdade, pensou freneticamente.
-Em um dia frio, com névoa, não pode se parecer muito a um paraíso.
-Essa ilha é... um lugar tranqüilo, um remanso onde meditar sobre Deus, o qual
o padre Padruig frequentemente nos diz que façamos.
-Levou seu cão em um bote pequeno e foi a essa ilha para meditar sobre Deus e
coisas santas? -Sebastien a olhou incrédulo, ainda com os dedos sobre a mão dela.
-Para... er... pensar em atos de caridade. - Aquilo se aproximava bastante à
verdade. - Disse Alainna. - A névoa, igual ao amanhecer e o anoitecer, são considerados
pelos celtas coisas místicas. Resultam boas para meditar, não está de acordo?
-Ah. - Disse Sebastien. - E seu cão medita contigo?
Ela mostrou um sorriso angélico.
-É um cão notável.
-É claro que sim. - Soltou-lhe a mão, e ela flexionou o polegar e pegou de novo
suas ferramentas. Ele a olhou com o cenho franzido, com a mão relaxada no quadril. -
Quanto a atos de caridade, segundo meu entendimento, realiza-os diariamente aqui. Se
também deseja meditar sobre questões sagradas, deve ser quase uma Santa.
Alainna se deteve com o cinzel no ar.
-Estou muito longe de sê-lo.
-Minha senhora, se, sente-se inclinada à contemplação do céu em lugares frios e
místicos, seria mais feliz em um convento que casada com alguém. -Replicou Sebastien. -
Já o mencionou quando eu cheguei aqui.
-Foi meu mau gênio, o qual deveria servir para demonstrar que não sou Santa
nem mártir. - Voltou a inclinar-se sobre sua tarefa e deu um forte golpe ao cinzel. - O que
quer dizer? - Tremiam-lhe as mãos e o coração lhe pulsava desbocado, mas tinha que
averiguar o que suspeitava ele, pelo bem de Ruari, e de sua gente. - O estilo coloquial
normando me parece confuso em ocasiões. Os montanheses são tão diretos que resultam
descorteses, e isso é ao que estou habituada. De modo que se limite a dizer o que pensa.
Sebastien franziu o cenho e cruzou os braços sobre o peito.
-Posso ser direto, se isso é o que quer. O que fez foi perigoso e irresponsável, e
me fez pensar que nessa ilha há algo que você quer guardar em segredo.
Alainna deixou de trabalhar e ficou quieta, pensando a toda velocidade, e limpou
na túnica as mãos trêmulas e sujas de pó.
-Com frequência eu gosto de estar só, como você. O que outra razão pode
haver?
Seus olhos cinza adotaram uma expressão fria e precavida.
-Era uma estranha conduta, quando há homens ocultos nas colinas e quem sabe
onde mais. Não queria que sofresse dano algum.
-Estou a salvo em Kinlochan.
-Para isso estou eu aqui. - Respondeu ele com simplicidade. - Para me ocupar
de velar por sua segurança e pela dos seus.
Alainna assentiu.
-E para isso nos unimos pelo rito das mãos, quando nenhum dos dois o
desejava. Agora serei direto em outra questão. - Disse, desejosa de mudar de assunto. -
Ainda tem pensado partir da Escócia o antes possível?
-Sim. E tenho pensado retornar de vez em quando para me certificar de seu
bem-estar. Assim acontece com muitos matrimônios entre cavaleiros e suas esposas.
Esquadrinhou-lhe o rosto.
-De modo que tem a intenção de manter este matrimônio entre nós.
-É o que espera o rei, e o que nos ordenou.
O coração lhe golpeou o peito com força. Agitou uma mão em um gesto
impaciente, de veemente ira.
-Um matrimônio de cavalaria, no qual o marido faz o que lhe dá vontade, procura
aventuras aqui e lá, obtém terras e riquezas e cada vez mais valia, enquanto que sua
esposa o espera sentada dentro de uma torre e cria seus filhos sozinhos, durante todos os
anos que ele permanece ausente? - Foi elevando o tom de voz até terminar gritando. -
Melhor seria não casar-se nunca que ter um amparo e uma companhia assim!
Sebastien a segurou pelos braços com dedos como ganchos de ferro de aço.
Alainna apoiou as palmas das mãos em seu peito e sentiu ali o forte pulsar de seu coração
e também sua tensão, como se ele estivesse contendo um estalo de fúria.
-E que classe de matrimônio quer você? - Exigiu Sebastien.
-O que se tem nas Highlands. O que vi em minha família.
-Mostre-me.
-Sincero e forte. - Disse ela. - Vistas compartilhadas, cheias de amor.
-Acha que eu não desejo isso? - Rugiu ele contendo-se. Atraiu-a para si, desceu
a cabeça e procurou sua boca com uma segurança que deixou Alainna sem fôlego e a
lançou a um profundo torvelinho.
Deslizou um braço pelas costas semelhante a uma garra de ferro, e uma mão
por trás da nuca, afundando os dedos no cabelo, afrouxando a grossa tranca. Com seu
duro corpo junto ao dela, sua boca se moveu sobre a de Alainna com uma força e uma
suavidade que a aturdiram.
O beijo se prolongou, ficou ardente e delicioso, até que Alainna deixou escapar
um leve gemido e sentiu que lhe dobravam os joelhos. Sebastien se afastou, mas a
manteve abraçada estreitamente; se a tivesse soltado naquele preciso momento teria
desabado, insegura de que as pernas a sustentariam. Olhou-a nos olhos com um olhar
claro e penetrante.
-Isto é o que quer? - Perguntou-lhe com voz rouca.
Alainna fechou os olhos, seu corpo cedendo à força que encontrava nos braços
de Sebastien, sua mente aturdida. Assentiu com veemência. - Perguntei-te. – Ofegou. - O
que era o que queria você.
-Eu quero o mesmo que você. O paraíso. - Sua voz vibrou dentro do corpo de
Alainna, e seus dedos lhe acariciaram o cabelo com tal delicadeza que ela sentiu aquela
ternura até nas plantas dos pés. - Mas não acredito que exista para mim em nenhuma
parte.
E a soltou. Ela estendeu uma mão até a laje de pedra a procura de algum apoio,
com o coração retumbando e a outra mão sobre o peito. Sebastien se voltou e foi para a
porta. Quando Alainna pensava que ia abrir a e sair, ele se deteve.
-Alainna. – Disse. - Eu sou um homem solitário por natureza. Não é fácil revelar
o que me é mais importante.
-E que isso é? - Perguntou-lhe ela, quase em um sussurro.
-Meus sonhos. - Respondeu ele com voz rouca. - Meu filho. – Colocou uma mão
no fecho de ferro. - E agora, você.
Alainna fez um movimento até ele, tão ofegante que o corpo lhe tremeu.
-Fique. - Sussurrou-lhe. - Não vá.
-Que fique, pelo que? - Quis saber ele.
O coração lhe golpeava o peito com força.
-Pela paz. Pela esperança.
-Nosso orgulho não nos permite ter paz nem esperança, nem um matrimônio.
Alainna lhe tocou as costas.
-Fique. Fale-me de seus sonhos.
-Meus sonhos são meus. Para cumpri-los ou para perdê-los.
-E também para compartilhá-los. - Acariciou-lhe o ombro com a mão apalpando
a dureza de seu braço, a tensão que sentia nele. - Eu compartilhei os meus contigo.
Sebastien se voltou pela metade, com o rosto quase nas sombras.
-Seus sonhos? Ah, seu trabalho na pedra.
-Sobre tudo minha Terra de Promessa. Nunca mostrei essa laje a ninguém. Para
mim é a mais querida de todas, porque contém... todas minhas esperanças, todos meus
sonhos.
Ele se voltou de tudo e a olhou fixamente.
-Então, suponho que quererá saber quais são meus.
Falava em tom irônico, mas amável. Alainna assentiu. - Um menino que se criou
em um monastério aprende a ficar calado. Eu guardei meus sonhos para mim. É um
costume que ainda perdura.
-Conte-me. - Insistiu ela. - Crie um costume novo.
Ele riu brandamente, uma risada seca.
-De menino sonhei muito a respeito do que desejava ter na vida. Criei ambições
e metas que se foram fazendo maiores até que tive que atuar para as conseguir.
-O que é o que desejava? - Perguntou Alainna.
Sebastien olhou além dela, e ela soube que estava observando a laje de cor
creme com sua cena da Terra de Promessa.
-Um título de nobreza, terras, a categoria de cavaleiro, o valor de um
sobrenome. - Enumerou Sebastien. - Um lar. Família. - Acrescentou em voz baixa.
Alainna sentiu que lhe encolhia o coração por ele, ao pensar naquele menino
solitário.
-Já conseguiu essas coisas.
-Quase todas. Perdi... a parte mais importante de meu sonho. Minha esposa.
Meu lar... Possivelmente, meu filho também.
Alainna o olhou fixamente, aguardando. Ele a olhou a sua vez.
-Já está. Já lhe contei.
-Se tiver algo mais que dizer, esperarei. - Disse-lhe. - Esperaria aqui para
sempre... se você me pedisse isso.
Sebastien quase sorriu. Ela viu em seus olhos.
-Para ser uma mulher de tão mau gênio, tem muita paciência.
-Aprendi a ter paciência. A paciência desgasta a pedra.
Então sim que riu, com uma risada leve. Logo passou os dedos pelo cabelo.
-Nesse caso sente-se. - Disse-lhe, tocando-a no ombro para que desse a volta. -
Sente-se, e te contarei mais a respeito de meus sonhos.
Capítulo 23
Pôs uma mão no peito sentindo o frio da cota de aço sob a palma.
-Nenhuma folha te ferirá, nenhuma flecha te alcançará, nenhum fogo te
queimará. Um escudo de anjos leva ao redor, um escudo de fadas. Que volte para mim
igual a que se afasta de mim.
Fechou os olhos e inclinou a cabeça, sem tirar a mão de seu coração, e
permaneceu durante uns instantes em silêncio, com o gélido vento, úmido de neve,
soprando entre os dois.
Quando abriu os olhos, Sebastien a estava observando fixamente com olhar
penetrante e profundo. Pegou-lhe o rosto entre os dedos e sem dizer nada, velozmente,
apoderou-se de sua boca em um faminto beijo. Alainna inclinou a cabeça para trás e sentiu
que lhe dobravam os joelhos sob seu próprio peso. Por fim Sebastien a liberou e deu um
passou atrás, com seu olhar cravado no dela.
-Aí tem minha bênção. - Disse-lhe, e a seguir deu meia volta, deu uns passos
sob a intensa neve, montou seu cavalo e se afastou a um ligeiro galope.
Alainna tocou os lábios com os dedos, olhando-o. Quando chegou à altura de
seus companheiros, a neve o havia ocultado.
Alainna ainda percebia o laço de união entre eles, semelhante a um fio de prata.
E também percebia a sutil tensão que se abatia sobre ele, e isso a fez se sentir, de
repente, profundamente assustada.
Capítulo 25
Capítulo 26
Obrigou-se a abrir os olhos e mantê-los abertos. Não sabia que dia era, o
terceiro ou o quarto ou mais, que estava naquela cama. Alainna estava sentada junto a ele,
com sua gloriosa cabeleira e seus olhos profundos como o mar. Estendeu uma mão para
tocá-la.
-Estou acordado ou sonhando? - Perguntou com voz rouca. Seus dedos lhe
roçaram o braço. Percebeu, com certa surpresa, que havia falado em gaélico sem pensar.
Alainna sorriu, segurou-lhe a mão e lhe deu um suave apertão.
-Está acordado. - Respondeu. - Estava a ponto de te banhar outra vez. Estava
com febre. - Pôs uma mão fresca sobre sua testa. - Ah, já quase desapareceu. Bem. Una
se alegrará.
Sebastien apenas sorriu.
-E você, se alegrará?
-Sim.
Alainna desceu o lençol de linho que lhe cobria o torso nu e o ajustou um pouco
abaixo da cintura. Tinha o lado enfaixado e sentia os músculos rígidos e doloridos ao
mover-se. Ela molhou um pano em água, retorceu-o e a seguir o passou pelo peito com
movimentos imensamente suaves.
-Mmnn. - Sebastien arqueou uma sobrancelha. - Este não é o tato de um
trabalhador de pedreira, e sim o de um anjo. Ah, já me lembro. Você é as duas coisas. - E
lhe obsequiou um sorriso travesso.
Alainna riu.
-Parece-me que, depois de tudo, está sonhando.
Sebastien não podia deixar de sorrir.
-É possível. Esteve presente em todos meus sonhos. - Ela sorria enquanto
voltava a molhar o pano e o retorcia outra vez. - Quanto tempo passou desde...
-Quatro dias. - Respondeu Alainna. – Deixou-nos muito preocupados, Sebastien
Bán. Perdeu o Ano Novo. Recebemo-lo sem ti. - Sorria, mas Sebastien percebeu rastros
de fatiga nas olheiras azuladas e na palidez de seu rosto.
-E meus homens? Robert, os outros? Giric? Como estão?
Passou-lhe o pano pelo peito e subiu até o ombro, com o cenho franzido.
-Melhor. Giric também nos assustou porque tinha uma ferida grave na cabeça,
mas já se encontra mais forte e se levantou. Robert tinha uma ferida de lança na perna que
necessitou alguns pontos, mas já caminha. Etienne sofreu um corte em um braço, mas
também está se curando. Outros se encontram bem.
-E os... outros? - Quis saber Sebastien. - Mandou chamar o sacerdote e os
enterrastes?
Alainna negou com a cabeça.
-Há muita neve. Não pudemos enviar ninguém para procurar o padre Padruig.
Lorne rezou umas preces por eles e organizamos um velório na primeira noite. Una e
Morag se ocuparam dos corpos. Faremos o que é devido assim que nos seja possível.
Sebastien assentiu com a cabeça e logo voltou o rosto.
-Fomos traídos e apanhados, Alainna. Atacaram-nos sem nenhuma honra.
-Eu sei. - Disse ela. - Giric e Robert me contaram o acontecido. Sinto muito,
Sebastien. E também sinto por Hugo. Sei que era seu amigo.
Sebastien fechou os olhos por um instante para reprimir a intangível dor que lhe
causava mais dano que a ferida do lado.
-Era como um irmão. - Murmurou. - Se eu fosse um homem das Highlands, sua
só morte faria minha esta disputa de sangue. - Acrescentou com veemência.
-Sim. - Alainna introduziu de novo o pano na terrina de água e o retorceu. - Mas
não é um homem das Highlands. Não quero que faça tua esta inimizade.
Ele lançou um suspiro de frustração.
-Alainna...
-Cale-se. Não fale disso agora. Deve descansar e se relaxar, e pensar só em
coisas agradáveis. Essa é a maneira de se recuperar.
Ele suspirou outra vez, com a mente ainda imprecisa. Custava-lhe trabalho
pensar; a tristeza e a raiva que sentia também lhe supunham um esforço. Mas cada vez
que olhava para Alainna se sentia alagado de uma lenta alegria.
-Outros estão bem? - Perguntou.
Ela inclinou a cabeça em um gesto zombeteiro.
-Sim. Já lhe disse.
-E Ruari? - Perguntou com suavidade, lentamente. - Está aqui?
O pano que se deslizava por seu ombro se deteve. Alainna não se voltou para
olhá-lo. Seu cabelo parecia fogo à luz avermelhada.
-Está aqui. - Respondeu em voz baixa e com apreensão.
-Foi em nossa ajuda e brigou contra os MacNechtan.
-Giric nos disse isso. Agora está aqui, onde tem seu lugar, ao lado de sua
esposa e da família dela. - Sebastien percebeu um fio de desafio em sua voz.
-Vou ter que falar com ele. E também quero falar contigo. - Adicionou em tom
grave. - Você sabia que havia voltado Alainna.
-Já haverá tempo para isso. - Repôs ela com calma, evitando seu olhar fixo. -
Agora, o mais importante é que todos estão sãos e salvos. Que você está são e salvo. -
Murmurou.
Ele suspirou sem deixar de olhá-la e não disse nada. Alainna lhe passou o pano
pela cintura e ele se encolheu levemente, consciente daquele contato. As suaves
passadas levaram o pano até o abdômen, ainda que evitasse tocar a bandagem do lado
esquerdo, atado ao direito.
-Fez um conjuro antes de partir. - Começou a dizer Sebastien. - Mas fiquei
ferido, depois de tudo. - Sorriu brincando.
-Às vezes, o conjuro funciona de modo distinto ao que nós gostaríamos. -
Respondeu ela em tom rápido. - Mas voltou para mim tal como foi: vivo.
Sebastien afirmou com a cabeça sem afastar os olhos dela.
-Certo. Poderia ter morrido nesse lugar.
-Muito facilmente, Sebastien Bán. - Murmurou Alainna. - Perdeu muito sangue.
Mas o corte alcançou o músculo, não chegou mais fundo. Uma tem muita habilidade em
costurar feridas de espada. Curará-te rapidamente, agora que desapareceu a febre.
Enquanto conversavam, Alainna passava brandamente o pano úmido sobre a
pele, acima e abaixo do torso. A água ia deixando brilhantes gotinhas iluminadas pelo fogo,
que ficavam presas no pêlo castanho do peito e da cintura. Passou-lhe o pano pelos
braços e a mãos. Ele se sentia como um bebê sob seus cuidados, e continuou deitado,
deixando que ela o aliviasse no corpo e alma. Ferido e fraco, despojado de tudo, inclusive
de seu orgulho, entregou-se totalmente a seus cuidados; saboreou sua compaixão e o
prazer sensual que era inerente a seu contato, a sua presença.
Observou-a enquanto trabalhava, sentindo o quente toque do pano por seu
corpo, e pensou no muito que gostaria de fazer o mesmo a ela. Imaginou delícias que
naquele momento não podia tentar por falta de força, mesmo que seu corpo reagisse.
Reagia tão bem, que quando lhe passou o pano de novo pelo abdômen lhe
segurou o pulso.
-Alainna. - Murmurou com o olhar cravado no seu. - Se não quer se juntar
comigo nesta cama e se arriscar a me tirar as forças que ficam, deixe de me lavar.
Ela se ruborizou e deixou o pano de lado. Logo segurou outro mais grosso para
lhe secar o peito e os braços.
-Está bem. – Concordou. - Já não tem febre, de modo que isto já não é tão
necessário como antes.
-Ah. - Disse ele. - De modo que já me banhou antes, e eu sem poder desfrutá-lo,
não? - Deixou cair a cabeça entre os travesseiros, suaves e aromatizadas com urzes e
lavanda, os dois aromas que mais associava com Alainna. Levantou os braços e os cruzou
por detrás da cabeça. O quarto estava aquecido, havia um braseiro a mais no chão. Não
sentia frio, nem sequer com a pele molhada.
-Banhei-te todo o corpo. Una e as demais saíram do quarto e deixaram a tarefa
para mim, por ser sua esposa pelo rito das mãos.
-Todo o corpo? Lamento haver me perdido isso. - Repôs ele, irônico.
Alainna lhe secou o braço e a mão.
-Havia que fazê-lo para baixar a febre, mesmo que talvez uma dama como é
devido não teria feito algo assim por um cavaleiro.
Sebastien percebeu que as bochechas lhe ardiam como o fogo. Desejava tocá-
la, queria saber se o calor que sentia ela era tão intenso como o que inflamava e abrasava,
agora de maneira sã, seu próprio corpo. Estendeu uma mão e passou o dedo pela suave
curva de sua bochecha e lhe levantou o queixo.
-É possível que uma dama não tivesse feito isto por um cavaleiro. – Disse. - Mas
uma esposa sim o faria por seu marido.
Alainna inclinou a cabeça no oco de sua mão e o olhou com expressão solene.
-Em efeito. - Respondeu.
Levantou-se tão depressa que os dedos de Sebastien se fecharam no ar.
Recolheu a terrina de água e os panos e foi até a porta, abriu-a e a fechou depois de sair
sem pronunciar nenhuma palavra.
Sebastien fechou brandamente o punho e cobriu os olhos com o antebraço,
deixando escapar um profundo suspiro.
Sebastien coçou o lado, no ponto onde estava curando a ferida, e logo coçou
também a cabeça, desejoso de tomar um banho. Una levava vários dias negando-se deixá-
lo de modo que decidiu que pela manhã deixaria de lado sua dignidade e suplicaria.
Imaginou que Alainna já teria cedido, mas nos últimos dias não tinha visto mais que por um
breve espaço de instantes cada vez. Una disse que agora que ele se estava curando tão
bem, passava muito tempo em sua oficina.
Sentia falta dela. Sabia que não havia dormido em sua cama desde que o
feriram, e suspeitava que se deitava em um duro leito de arenito enquanto ele se
recuperava em um acolhedor ninho de travesseiros de plumas e quentes cobertores de
pele.
Tentou uma vez mais descansar, deu várias voltas, coçou-se de novo, e lançou
um juramento. Já era tarde, mas não estava especialmente cansado depois de passar
mais de uma semana fazendo pouco mais que dormir. O ruído de música e risadas e a voz
de Lorne declamando rítmicos poemas reverberavam através do chão do dormitório.
Levantou-se na cama e olhou para o companheiro que nos últimos dias havia
passado com ele mais tempo que ninguém: Finam, que estava sentado no chão perto do
braseiro, levantou uma pata traseira para coçar-se, logo apoiou a cabeça nas patas
dianteiras e olhou para Sebastien agitando a rabo.
-Ah. - Disse Sebastien. - De modo que foi você o que me causou estes picores,
eh?
Empurrou a um lado as peles e as mantas e ficou em pé com cuidado, estirando-
se completamente com precaução, pois ainda tinha sensíveis os músculos do lado e do
abdômen. Flexionou as costas e os ombros, tirou a bandagem que tinha enrolada à cintura
e a deixou de lado. A ferida costurada estava menos inflamada e estava se curando bem.
Sentiu-se muito mais cômodo sem a bandagem, ainda que tivesse certeza de que Una não
aprovaria que a tivesse tirado.
Caminhou nu pelo quarto, pisando nos juncos do chão, e se dirigiu para o canto,
onde havia um banco com várias roupas dobradas, limpas e remendadas. Vestiu-se com
cuidado e se pôs uma camisa, os braies e a túnica marrom, e depois a calça e botas. A
sobreveste verde havia sido lavada e costurada, mas não a vestiu.
Depois abriu a porta, esperou que Finam se deslizasse na frente dele e começou
a descer devagar os degraus em direção ao salão. Ao chegar, permaneceu uns instantes
no patamar escorado por vigas de madeira e observou.
De um a um, todos foram reparando nele. Foram voltando os rostos sorridentes
e algumas vozes amigas lhe deram as boas vindas e lhe desejaram benções. Lorne
interrompeu a canção que estava interpretando à harpa enquanto Sebastien lhe indicava
por gestos que continuasse. O ancião sorriu e mudou a melodia que estava tocando por
outra mais alegre.
Una correu até ele cacarejando como uma galinha.
-Volta agora mesmo para a cama! - Disse-lhe, puxando seu braço.
-Estou bem. - Assegurou-lhe. - Muito melhor do que estive, graças a ti, e à chefe
de seu clã. - Seu olhar percorreu a estadia procurando Alainna. - Eu gostaria de tomar um
banho. Acredito que Finam compartilhou suas pulgas comigo. - Adicionou.
Una olhou para Beitris, que estava atrás dela, e lhe disse:
-Temos que pôr mais mirto no colchão e nos travesseiros.
Sebastien passeou pela sala, detendo-se para saudar os cavaleiros e membros
do clã, procurando Alainna com o olhar, até que a viu.
Estava sentada em um banco junto a uma das mesas, rodeada pelo Giric,
Robert, Etienne e Lulach. Seus olhos resplandecia mais que o fogo mesmo do lar.
Aproximou-se dela.
A seu lado se encontrava outra pessoa que desejava ver, um homem alto, bonito
e de ombros largos, rosto de feições marcadas e cabelo escuro com alguns fios cinza.
Essa estava reclinada sobre ele. Fez-se silêncio no salão, com uma nota tensa, conforme
Sebastien avançava até eles. Sabia que todos estavam esperando para ver o que iria fazer
ele.
Primeiro se dirigiu a Alainna e lhe segurou a mão. Quando ela pôs a mão na
sua, ele a levou aos lábios e lhe beijou os suaves nós. Seu olhar foi só para ela, e Alainna
sorriu.
-Bem-vindo outra vez ao salão. - Disse-lhe com suavidade. - Minha gente se
alegra de te ver reposto por fim.
-E você não se alegra? - Murmurou Sebastien.
-Já sabe que sim.
Desceu-lhe a mão e a soltou, e ato seguido se voltou para o homem que estava
sentado em frente. Ruari se levantou devagar e encarou Sebastien do outro lado da mesa.
Sem pronunciar uma palavra, Sebastien se inclinou para frente, pegou uma taça
de madeira e uma jarra de cerveja, ergueu lentamente e a ofereceu ao montanhês.
-Devo lhe agradecer. - Disse-lhe. – Todos devemos.
Ruari aceitou a taça com um gesto de cabeça e um leve sorriso. Quando bebeu
e elevou a sua vez a taça como saudação a Sebastien, a sala toda estalou em felicitações.
Capítulo 27
O sino de bronze da torre da igreja estendeu o eco de seu lamento pelas colinas.
Alainna o escutou, de pé na porta de sua oficina e com uma mão na cabeça de Finam.
Cada som do distante sino deixava um rastro em seu coração, como se a pena fosse um
cinzel. O padre Padruig havia prometido fazê-lo soar cada hora em um canto fúnebre pelos
cavaleiros caídos até que estes fossem enterrados.
Fora continuava nevando, mas a nevasca da semana anterior havia derretido o
bastante para organizar uma solene procissão desde Kinlochan para transportar os
cavaleiros mortos e assistir a uma missa. Giric, Lorne e alguns mais estavam ainda na
igreja, cavando tumbas no chão quase congelado, mas Alainna, Sebastien e outros haviam
retornado um pouco antes.
Piscando para afastar as lágrimas, viu que o pátio estava silencioso, frio,
desencardido pela neve. Além da cerca e as agrestes montanhas azuis luziam uma coroa
de nuvens pálidas.
Então viu Sebastien que vinha cruzando o pátio com passos longos e ágeis,
cheios de uma natural elegância masculina, mesmo sabendo que ainda sentia o cansaço
da ferida e a convalescença. O vento açoitava seu cabelo dourado e fazia ondular o tartam
que levava sobre os ombros a modo de manto.
O coração lhe acelerou no peito, como acontecia cada vez que lhe via.
-Que Deus te guarde o caminho. - Disse em gaélico quando ele se aproximou.
-E que te guarde de todo mau. - Respondeu o bretão. Finam-lhe cheirou sua, e
coçou a cabeça e depois apoiou um ombro contra o marco da porta. O mundo dorme sob
um manto branco. - Murmurou. - Ao julgar pelo aspecto dessas nuvens, vamos ter mais
neve.
-Agora manda a rainha do inverno, enquanto Aenghus Mac Og, o dourado, está
adormecido. Logo despertará, e ele e Brígida trarão outra vez a primavera, e de novo
teremos sol e verde.
-Ah, isso é o que estamos aguardando. - Murmurou Sebastien. - A primavera.
Alainna contemplou a brancura da neve que enchia o ar de preguiça.
-Sempre penso na neve como um desses tempos entre tempos. - Disse. -
Nessas ocasiões há algo mágico, conforme nos contam as lendas. A névoa, o amanhecer,
o crepúsculo... Quando o mundo não é nenhuma coisa nem a outra. Aparece a neve e o
gelo, o mundo é convertido em um espaço branco, silencioso e muito belo, formado por
vidros e nuvens.
Sebastien inclinou a cabeça para olhá-la.
-De certo modo, sim é um momento mágico. A vida está congelada, e também o
tempo parece haver se congelado.
Ela assentiu. Ao longe voltou para ouvir o som do sino e Sebastien levantou a
cabeça para escutar. Seu perfil era formoso e forte.
-Sinto por seus homens. - Disse Alainna.
-Eu sei. Deveria estar ali, ajudando a outros.
-Já esteve esta manhã. - Repôs ela. - E eu te pedi que retornasse comigo e com
meus, o que você fez amavelmente.
Ele sorriu com tristeza.
-Una e você procuravam um pretexto para trazer o inválido para casa.
A casa. Aquela palavra ficou flutuando entre eles em silêncio.
-Assim é. - Disse Alainna. - Agora não deve fazer esse esforço de cavar, e se
arriscar a que se abra a ferida.
Ele assentiu.
-Lorne me disse que esteve fazendo lápides para as tumbas. Agradeço-lhe.
Alainna afirmou com a cabeça.
-Me alegro de poder fazer algo por seus amigos. Nossos amigos. -Acrescentou
em voz baixa. – Venha lhe mostrarei.
Entrou na oficina, seguida por Sebastien. Finam se adiantou a eles para ficar
com o lugar mais quente contra o braseiro, e Alainna fechou a porta e se voltou.
Sebastien se dirigiu ao banco de trabalho. Ela o seguiu.
-Usei umas lajes pequenas de arenito. - Assinalou uma das pedras. - Desenhei
as linhas e a base de incisões, em lugar de esculpir em relevo. É um método mais rápido e
a imagem sai mais bonita.
Sebastien assentia enquanto ela falava. As cruzes esboçadas estavam cheias
de um desenho de linhas entrelaçadas.
-Seguro que estas requerem maior esforço, entretanto já fiz quatro.
-O arenito é muito macio para poder trabalhá-lo depressa, mas não aceita bem
os detalhes finos, assim escolhi um desenho mais simples em ziguezague. Não gosto de
trabalhar com arenisca.
Sebastien arqueou uma sobrancelha.
-Por que a utiliza para fazer esculturas para as tumbas?
-Por isso. - Admitiu ela. - E também porque é macia e granulosa e levanta um pó
asfixiante que me faz tossir. E desgasta minhas ferramentas muito rápido. Lulach grunhe
quando tem que as afiar muito frequentemente.
-Estas peças as fez muito depressa. Trabalhou muito.
Alainna se sentou no banco e segurou um cinzel em forma de V e um cetro de
madeira.
-Tinha que fazê-las.
Começou a usar as ferramentas de forma rítmica, fazendo buracos na pedra,
que ia se esmiuçando como se fosse argila. Durante uns minutos o ligeiro tamborilar
enchia o ar.
-Esse cão azul teu dorme mais que nenhum outro que eu tenha conhecido. -
Comentou Sebastien elevando uma sobrancelha para olhar para Finam, que estava
deitado com os olhos fechados ao lado do braseiro. - O ruído não o pertubava
absolutamente.
-Já está acostumado, e quando quer dormir não há nada que possa despertá-lo.
- Disse Alainna. - Além disso, está ficando velho. Ultimamente parece que dorme mais
frequentemente e mais profundamente que antes. -Suspirou, pensando que aquele animal
era outro dos seres queridos que estavam ficando mais velhos.
Sebastien a olhou atentamente.
-Parece cansada. E está mais magra.
Ela observou as sombras do rosto de Sebastien, seus traços mais enxutos, que
revelavam o equilíbrio clássico de sua ossatura sob a pele.
-Você também.
Ele levantou uma mão para lhe roçar a bochecha com um dedo e limpar um
pouco de pó aderido.
-Tem olheiras.
Ela sorriu.
-Diz o mesmo que Una. Logo irá quer saber quando comi pela última vez,
quando dormi e quanto tempo.
-Bom. - Replicou Sebastien. - Pois me diga. - Sorriu ao ver seu gesto. - Um dos
monges do monastério de Saint-Sebastien nos esquadrinhava o rosto e fazia comentários
sobre se tínhamos as bochechas pálidas ou o nariz vermelho, e nos dizia que comêssemos
mais ou que dormíssemos melhor. Sua intenção era boa e se preocupava conosco.
Suponho que aprendi com ele. Preocupo-me com você. - Acrescentou com suavidade.
Alainna inclinou a cabeça sobre o trabalho. Sentiu que ia espirrar, mas se
conteve com a mão.
-A pedra está levantando muito pó. - Segurou um trapo úmido e o passou pela
superfície da laje.
-Alainna, acredito que deveria descansar um pouco. - Disse Sebastien.
-Quero terminar isto hoje. - Voltou a pegar as ferramentas. - É a última das
cruzes dos cavaleiros.
-Vê-se o cansaço em seu rosto e em sua voz. Passa muitas noites em pé, com
apenas uma cama de pedra onde se recostar. - Levantou-lhe uma das longas tranças para
sacudir umas quantas lascas de pedra que tinha no cabelo.
-Quando não posso dormir, o trabalho me tranqüiliza. - Disse ela.
-O trabalho não te permite dormir. Não há necessidade de se apressar pressa
em terminar estas pedras.
-Já quase estão terminadas. Não supõem um trabalho difícil. Se tenho pressa
por algo, é por voltar para meu próprio trabalho.
Sebastien foi até a mesa que havia debaixo da janela, cujo tabuleiro estava
coberto de lajes de calcária cinza. Foi olhando uma a uma.
-Fez muito nas últimas semanas. Terminou três mais. E também a cena da
Donzela de Pedra. - Inclinou-se para examiná-los de perto. - É um trabalho
verdadeiramente belo. É uma artista.
-Sou uma artesã. - Replicou ela enquanto golpeava com o cetro. - Uma
conservadora do legado de meu clã, e uma mulher que trabalha muito, uma vez que se
empenha em algo, não se rende. Temo que só tenho tempo até a primavera.
-Tem toda sua vida. - Sebastien se virou para ela. - O trabalho que faz é muito
notável, mas você não o considera assim; você só vê a necessidade de trabalhar, de
terminar outra pedra e continuar trabalhando. Pare, Alainna; por um momento e venha
aqui.
Fez-lhe um gesto para que se aproximasse, mas ela negou com a cabeça.
-Não posso parar. - Disse, e golpeou de novo o cinzel com o cetro e soprou
depois o pó. - Falta muito pouco tempo.
Sebastien cruzou a sala e segurou Alainna pelos braços, quase levantando-a do
banco, obrigou-a a se virar e a caminhar adiante dele empurrando-a com as mãos nos
ombros.
-Isso. - Disse-lhe, parando em frente da mesa. - Olhe.
-O que?
Tocou-lhe o queixo com um dedo e lhe voltou ligeiramente a rosto.
-Olhe suas pedras. - Disse com suavidade. Pôs uma mão sobre a pedra, com
seus dedos entre a laje dura e fria e os dedos dele, mornos e fortes. – Toque sua textura,
lisa e polida, limpamente esculpida. Olhe os desenhos. Esse é Labhrainn e a sereia que
amava; essa dali, Mairead a Valente lutando contra um lobo para salvar seu filho. Aqui,
debaixo de sua mão, está a Donzela de Pedra, Alainna a linda, que vigia seu clã para
sempre. - Suavizou o tom de voz. - Olhe as pedras, Alainna mo cáran. - Insistiu. – Diga-me
o que vê.
Ela o olhou com o coração acelerado e enternecido. Havia-a chamado mo cáran,
minha amada.
-Diga-me. - Repetiu.
Voltou a cabeça e olhou.
-Vejo... Oh. - Disse, passando os dedos pelo intrincado desenho de uma
sianinha e os nós que decorava outra. - É encantador. O relevo está... feito com muito
detalhe.
-Assim é. - Disse Sebastien. - Que mais?
-Vejo cenas de... valor, e de amor pelo clã. Oh - Murmurou outra vez, de repente
surpreendida pela arte daquelas obras, um equilíbrio de elegantes desenhos curvilíneos
combinados com intrincados detalhes. Sua intenção ao fazê-los havia sido captar a
história, mas não se havia atrevido a albergar a esperança de que também tivessem
beleza. Quase lhe cortou a respiração por conter um soluço que lhe nasceu do mais fundo
de si. As lágrimas foram a seus olhos. - São maravilhosos. - Disse.
-Em efeito. - Sebastien lhe segurou a mão e a beijou. - Todos sabemos. Mas
você precisa vê-lo por si mesma.
Alainna afirmou com a cabeça e olhou para Sebastien através de um véu de
lágrimas, agradecida por sua doçura. Ele a rodeou com seus braços e ela apoiou a
bochecha em seu peito coberto pelo tartam, ouvindo o batimento de seu coração,
percebendo sua vigorosa força, contente por ter se curado tão depressa.
Mas acima de tudo, alegrava-se de que estivesse ali, e vivo. O fato de havê-lo
visto tão perto da morte a havia assustado profundamente. Não lhe disse o quanto a havia
afetado fazer vigília junto a seu leito durante todos aqueles dias e noites.
Sebastien desceu a cabeça e a beijou. Sua boca era quente e suave. Alainna
inclinou a cabeça para trás, estendendo o pescoço, e sentiu que lhe tremiam os joelhos.
Independente do que passava por sua mente, o contato de Sebastien sempre parecia abrir
as portas de seu coração.
Sebastien separou sua boca da dela e deslizou as mãos pelas costas,
abraçando-a estreitamente, com a bochecha apoiada em sua cabeça. Finam dormita aos
pés de ambos movendo preguiçosamente o rabo. Fora, soprava um vento gélido que
assobiava ao passar.
Alainna deixou escapar um suspiro triste, sentindo a pesada carrega de seus
pensamentos na mente e na alma, e soube que devia falar, que não podia guardar durante
mais tempo o que tinha a dizer.
O que mais desejava não podia ser; o pânico que havia sofrido ao ver Sebastien
tão perto de morrer deixou clara a decisão que devia tomar. Temia por sua vida se ficasse
em Kinlochan.
-Sebastien Bán. - Começou a dizer. - Nos dias em que esteve ferido e doente
pensei muito, e tomei uma decisão. - Olhou-o com o coração retumbando no peito. - Ainda
tem a intenção de retornar para Bretanha quando melhorar o tempo?
-Eu também estive pensando. - Disse ele. - E falei com seus homens e com os
meus. Estamos todos de acordo. Assim que deixe de nevar iremos contra Cormac e o
faremos pagar por nos haver traído.
Alainna respirou agitadamente; não era aquilo o que desejava ouvir. Afastou-se
uns passados dele, com o cenho franzido, pensativa, e foi até outro banco situado junto a
um segundo banco de trabalho no qual descansava a laje de pedra calcária de cor creme.
Tirou o pano que a cobria, segurou um cinzel de ponta fina e um cetro e começou a sulcar
sua superfície.
Trabalhar com a calcária de Caem sempre lhe resultava reconfortante. A pedra
se abria com facilidade, macia como a manteiga, jamais se esfarelava, nunca precisava
usar a força. Era quase fluída sob o contato das ferramentas, como se soubesse a forma
que o artista desejava lhe dar.
Não acontecia isso com seus sonhos. Ouviu os passos de Sebastien aproximar-
se dela.
-Alainna? - Perguntou. - O que acontece?
-Não pode ficar em Kinlochan. - Disse ela impulsivamente.
-Já sei que te disse que iria, e é verdade que devo ir procurar meu filho. Mas não
penso partir até que tenha devolvido a hospitalidade que Cormac nos mostrou em suas
terras. – Disse com gesto severo.
Alainna tremia as mãos.
-Não mude de planos. - Disse-lhe. - Vá a Bretanha procurar a seu filho. Isso é o
mais importante, e é o que tem que fazer.
-Estou seguro de que compreende que antes devo enfrentar Cormac. - Disse
Sebastien.
-Não quero que entre nesta inimizade sem fim. - Replicou Alainna, teimosa. -
Você tem outras metas, outros assuntos que atender. Já fez o que o rei te ordenou fazer
aqui.
Os dedos lhe tremiam de tal maneira sobre o cinzel que teve que soltá-lo. Mas
estava muito nervosa, e não podia ficar sem fazer nada. Segurou de novo o cetro e um
buril de ferro e começou a limpar a pedra restante do lado esquerdo do desenho, onde o
fundo precisava ser desbastado um pouco mais. Colocou a ferramenta no lugar adequado
e a golpeou.
-A que vem esta mudança de idéia? - Quis saber Sebastien. - Não faz tanto
tempo que queria que eu ficasse.
Ela golpeou outra vez e soltou um pedaço de pedra de cor creme. A laje ficou à
exposta uma nova protuberância. Passou os dedos por ela e voltou a golpear como cetro.
-Alainna. - Disse Sebastien. – Deixe isso e fale comigo.
-Não pode ficar aqui. - Insistiu. - Seu filho está te esperando. Deve criar-se na
Bretanha, e você deve estar com ele. - Golpeou com força.
-Neste momento, o único que sei é que quero enfrentar Cormac MacNechtan e
fazê-lo pagar pelas vidas de meus camaradas.
-Não mude seus planos. Volte para Bretanha. - Golpeou outra vez, e uma cunha
de rocha saiu voando e caiu no chão. A desigual protuberância parecia agora maior, uma
imperfeição na pedra. Não havia suspeitado que tinha aquele defeito.
-Ainda não posso voltar.
-Não lhe necessitamos aqui, podemos nos encarregar nós mesmos de nossa
disputa de sangue, como sempre fizemos. Quando for, nossa união pelas mãos ficará
anulada e... minha gente procurará outro homem que nos ajude, como tínhamos pensado
fazer... antes que o rei enviasse seu paladino.
Com o coração desbocado, lamentou ter que dizer aquilo no mesmo momento
de abrir a boca, porque sabia que ia fazer lhe machucar; já havia feito mal a si mesma ao
dizê-lo. Mas é que obedecia a uma necessidade quase desesperada para convencer
Sebastien que se fosse de Kinlochan.
-Compreendo. Decidiu que, depois de tudo, prefere seu guerreiro celta antes que
se conformar com um cavaleiro estrangeiro.
-Nada disso. - Sacudiu a cabeça em um gesto negativo, abatida. - Se ficar,
Cormac atacará de novo. Pode que a próxima vez lhe mate. - Inclinou o cetro para arrancar
a imperfeição da pedra. - Não retrocederá em seu empenho até que te veja morto. -
Golpeou com força.
-Assim que isso é o que a preocupa. - Disse ele com suavidade.
-Vá para a Bretanha. Vá para a França, ou inclusive volte para Dunfermline.
Atinja seus objetivos e seja feliz.
-Meus objetivos mudaram. - Replicou Sebastien. - Inclusive agora, enquanto
conversamos, continuam mudando. - Seu tom era duro, grave, ferido.
-O que vai fazer? - Perguntou ela em tom inexpressivo enquanto coçava a
teimosa protuberância com o cinzel.
-Tanto se me quiser aqui como se não, agora tenho uma disputa própria com
Cormac MacNechtan e um assunto que resolver.
-Cormac e seus homens nunca resolverão nada conosco! - Elevou a voz,
frenética. - Levo toda a vida vivendo esta disputa de sangue. Muitos homens que amei
morreram lutando contra os MacNechtan. - Reprimiu um soluço. - E não posso suportar
que isso aconteça com você!
-Não me acontecerá nada. - Disse ele com calma.
Alainna sacudiu negativamente a cabeça.
-Por acaso acha que desejo esculpir a lápide de sua tumba com a laje de
arenisca em que... havemos... - Conteve uma exclamação ao lembrar a paixão
incandescente daquela noite em que ambos ficaram sobre aquela pedra. Voltou-se e
golpeou de novo a pedra, com força. - Quero que vá embora. Não posso suportar isto.
-O risco de que eu mora lutando nesta disputa por ti e pelos teus não parecia
preocupar-te antes.
-Antes não te havia visto perto da morte. - Replicou Alainna. - Antes não gostava
tanto de você.
Sebastien estendeu uma mão para ela.
-Alainna...
Se a tocasse, viria abaixo. De modo que golpeou o buril fortemente com o cetro.
Saltou outra parte, deixando exposta uma porção maior da imperfeição.
Ach Dhia. - Disse-se para si, passando o dorso da mão pelos olhos. Sentia-se
frágil, a beira das lágrimas.
-É uma concha marinha.
-Uma concha? - Perguntou Sebastien, aproximando-se.
-A pedra calcária às vezes tem conchas marinhas dentro. - Explicou Alainna.
Lançou um suspiro de cansaço. - Quando aparece uma, é difícil saber até que
profundidade chega. - Picou a borda da concha. - Acredito que posso tirá-la. -Disse. Situou
o cetro em posição e ficou de pé para incliná-lo.
A obstrução a sua felicidade não podia eliminar-se tão facilmente. Deu várias
batidinhas e tirou um pouco mais da concha. Voltou a situar com cuidado o cetro utilizando
a afiada ponta a modo de cunha.
-Alainna, espera. - Sebastien estendeu a mão.
Ela golpeou o aço contra a pedra e ouviu um rangido. Uma greta surgiu ao
passar a beirada da concha, e o lado esquerdo da superfície se desmoronou.
Então a pedra se partiu em duas e uma parte dela caiu no chão.
Capítulo 28
-Longe daqui há uma ilha que se eleva entre a névoa e reluz à luz do sol. -Disse
Lorne. - Ali há árvores que se dobram pelo peso dos frutos, e arbustos com galhos
inclinados. Por ela discorrem rios de vinho e mel e largas planícies verdes. As montanhas
estão coroadas de neve, brancas e redondas como os seios de uma mulher.
Alainna deslizou um olhar para Sebastien, o qual lhe acariciava as costas com a
mão sentado a seu lado no banco. Ela se estirou com preguiça sob aquela carícia e
continuou com a tradução.
-E as cristas das pradarias são lindas e da cor de malva, e os rios que fluem por
elas são doces e amáveis. Ali não se conhece o pranto nem a traição, nem jamais se viu a
velhice nem a enfermidade. A música é sempre alegre ao ouvido, e o canto dos pássaros e
o dourado som das cordas da harpa preenchem o silêncio dessa terra multicolorida. É a
Terra da Eterna Juventude, a Terra de Promessa...
Alainna se calou quando o fez Lorne, e fechou os olhos ao sentir a mão de
Sebastien deslizar-se sobre a sua, o dedo polegar acariciar sua palma, em um contato
quente e prometedor.
Logo abandonariam a pequena ilha que tinham criado para os dois; muito logo
desapareceria a neve e chegaria por fim a primavera.
***
Sebastien, escutando, sentiu que lhe encolhia o coração. Ele havia sido um
forasteiro ali, mas já não o era. Aquele era seu lar, agora sabia com todo o coração.
Amava aquela gente, amava ao ancião que transportava em seu próprio tartam
como se fosse o pai que nunca havia conhecido. As lágrimas lhe umedeceram os olhos, e
piscou para afastá-las.
Olhou para Alainna, que caminhava a seu lado levando sua espada, com o
cabelo estendido a seu redor como uma fogueira e os olhos brilhantes como um céu de
verão. O que então surgiu dentro dele possuía a solidez da rocha, a força do fogo. Amava
aquela mulher mais do que nunca havia amado a ninguém, mais do que amava sua própria
vida.
Mais do que valorizava seu próprio orgulho, seu próprio sobrenome.
O amor que sentia por ela o acalmava, estimulava-o, convertia-o em um homem
melhor do que havia sido jamais. Milhares de fios o atavam a ela, a sua gente, àquele
lugar.
Mas o desenho não estava completo; ainda sentia um desejo em seu coração,
uma dor profunda. Se pudesse encontrar a última fibra que faltava e incluí-la no tecido,
seria parte daquele lugar para sempre.
Capítulo 31
Começou a chover essa noite, enquanto faziam vigília por Lorne com orações e
cânticos que imploravam cura. Alainna estava sentada em companhia de Una e de outros
em um dormitório situado no último piso da torre, que compartilhavam Una e Lorne.
Sebastien também se encontrava ali, como uma força dourada, a voz calma e a
mão amável quando ofereceu sua ajuda a Alainna ou a Una e se sentou ao lado do velho
bardo para conversar ou a vigiar seu sonho.
Alainna teve poucas oportunidades de falar com ele a sós, mas apreciava muito
suas palavras de vez em quando, os sorrisos e os leves contatos. Apesar da tensão
daquelas horas, experimentava uma sensação aprazível quando ele estava ali, e outra de
nostalgia quando não estava.
Viu em seus olhos cinza a preocupação que sentia por Lorne, fixou-se no gesto
sério de sua boca e no cenho franzido. Desejou alisá-lo, fazê-lo desaparecer com um beijo,
mas o deixou sozinho. Percebia certo distanciamento nele, uma necessidade de solidão
que compreendia, porque ela era igual.
Mais tarde, conforme o alvorada ia foi aproximando e a chuva repicava com
força contra o telhado e os muros exteriores, entrou no salão para sentar-se com os outros.
Giric e Ruari jogavam xadrez enquanto Niall e Lulach observavam a partida. Beitris estava
sentada fiando. Donal, Aenghus, os cavaleiros e os escudeiros se deitaram em suas
camas para descansar.
Sebastien estava de pé junto à porta, contemplando como chovia, com o cenho
franzido em um gesto reflexivo. Tinha Finam a seu lado, com a cabeça erguida sob sua
mão.
Alainna observou como Beitris cortava três fios vermelhos e os trancava em um
desenho de nove nós, cantarolando preces de cura enquanto seus dedos voavam com
movimentos rítmicos. Sabia que Beitris, igual a cada um a sua maneira, cantava para
recuperar a alma de Lorne. Nenhum deles queria perdê-lo.
Chegou o amanhecer, prateado através da chuva, e apareceu Una descendo a
escada. Alainna levantou os olhos. Sua tia avó mostrava um aspecto envelhecido e frágil, o
cabelo grisalho sem vida, o tremor de sua cabeça semelhante ao de uma flor.
Una sorriu e se sentou ao lado de Alainna.
-Está muito bem, por fim. - Disse. - E acredito que ficará curado. - Depois
afundou a cabeça entre as mãos e começou a chorar.
Alainna abriu os braços e a estreitou contra si. Logo olhou para Sebastien, que
havia dado a volta. Viu o brilho de uma grande emoção em seus olhos, e sustentou seu
olhar durante longos instantes. Desejou desesperadamente correr até ele, sentir seus
braços ao abraçá-la, afundar-se no amor que sentia por ele. Mas Una estava soluçando, e
inclinou a cabeça para consolá-la. E quando voltou a levantá-la, Sebastien havia
desaparecido.
Sentiu profundamente aquela perda, e também cansaço. Desejou ir com ele,
mas Una a necessitava, e não estava segura de que a necessitasse Sebastien.
Nisso, uma mão a tocou no ombro, e ao levantar os olhos viu Esa.
-Vê com ele. - Disse Esa. - Vi-o da janela. Pegou seu cavalo e se dirigiu à
entrada. Vá com ele, não deixe que parta. É sua alma amiga, e você a sua. Esse vínculo
não deve romper-se.
Alainna se levantou e correu até a porta, abriu-a e saiu voando escada abaixo
em direção ao pátio. Finam foi com ela quando atravessou o chão empapado pela chuva.
As portas estavam abertas, e Sebastien não estava ali. A chuva caía sem
cessar. Cruzou as portas correndo, com a água jorrando por seu rosto, e viu a ladeira
deserta, o lago encaracolado pela chuva, a Donzela de Pedra solitária e misteriosa na
borda oposta, com a grama começando a crescer ao redor da base.
Ficou nas portas e esperou, mas ele não estava, e não havia se despedido.
Alainna lembrou outra ocasião em que ela esteve na porta esperando-o, em meio de uma
gélida nevasca. Agora o aguardava empapada sob uma manta na chuva. E ele não
aparecia, como havia esperado que ocorresse.
Permaneceu ali de pé com o cão, ambos empapados. Ao fim de um momento,
cobriu-se a cabeça com a parte superior de seu arisaid em um gesto inútil porque a lã
estava tão molhada como ela.
Por fim, deixou escapar um forte soluço e se cobriu o rosto. O cão apertou o
ombro contra seu quadril para lhe oferecer seu consolo e sua singela força.
Cavalgou nos lombos do corcel árabe pelo prado através da chuva, levantando
um ruído surdo no chão molhado. O tartam que levava sobre a túnica o protegia
surpreendentemente bem do aguaceiro, e jogou uma parte por cima da cabeça a modo de
capuz. Frente a ele estava o pequeno grupo de cavaleiros que havia avistado da torre.
Inclusive de longe distinguiu que vestiam armaduras e levavam o estandarte real. Havia
saído a seu encontro para averiguar que notícias traziam.
Ao aproximar-se reconheceu Robert e o saudou agitando a mão. Seu amigo
respondeu de igual maneira e cavalgou até ele.
-Robert! - Exclamou Sebastien freando seu cavalo enquanto o fazia Robert,
olhando-o através de uma corrente de chuva, elevando a voz para que o ouvisse por cima
do estrondo da água. - O que te traz tão rápido? Pensei que fosse ficar em Dunfermline! O
rei Guillermo envia alguma mensagem?
-Sim, trago uma mensagem de Guillermo. - Respondeu Robert. - E algo mais.
Quando chegamos em Dunfermline já havia ali uma mensagem para ti do duque da
Bretanha.
-O duque! - Exclamou Sebastien. Sentiu que o invadia um alarme. - Chama-nos
de novo a seu serviço?
-Está de acordo em nos deixar a serviço do rei Guillermo. - Disse Robert. - O
duque Conan enviou uma resposta à carta do rei na qual perguntava pelo bem-estar e o
paradeiro de seu filho.
-Uma mensagem de meu filho! - Sebastien se inclinou adiante e tranquilizou o
cavalo árabe com um leve giro. - Onde está a carta? - Estendeu a mão no meio da chuva.
Robert sorriu e assinalou.
-Aí. - Disse. - É um pequeno pacote que te envia o duque, seu próprio xará.
Sebastien se voltou. Outros três cavaleiros se aproximaram dele. Um deles, um
monge, sustentava um menino diante de si, envolto em um manto forrado de pele.
Ficou olhando com o coração desbocado. Então saltou do cavalo e pôs-se a
correr. O monge deteve seu cavalo e aguardou, e abriu a capa para que Sebastien
pudesse ver o pequeno rosto oval nas sombras, os grandes olhos castanhos, o brilho
sedoso de um cabelo loiro.
-Conan. - Ofegou, lhe estendendo as mãos. - Conan.
-Papai. - Disse seu filho, e se deixou cair facilmente nos braços de Sebastien.
A chuva repicava contra o chão lhe empapando os sapatos e salpicando de
barro a barra sua saia. Alainna se estremeceu e tocou a cabeça de Finam, cujo pêlo
molhado havia adquirido uma cor cinza escura e cujos olhos a olhavam enfermos embaixo
do povoada arbusto de cabelo da testa.
Afastou-se das portas. Sabia que Sebastien tinha que ir, mas nunca havia
imaginado que se iria tão rápido, sem uma despedida. Uma vez que soube que Lorne iria
recuperar-se, havia partido em silêncio. Talvez não queria lhe romper o coração.
Mas isso era justamente o que havia feito.
Pôs-se a andar, e então o cão ladrou.
-Vamos, Finam Mor. - Disse. - Sinto ter te trazido aqui fora. Vamos. - Indicou-lhe
por gestos que a seguisse e continuou caminhando.
Mas Finam ladrou outra vez e logo gemeu, cheirando sua mão. Ela o segurou
pela coleira e o puxou. O cão fincou as patas no barro e se negou a obedecer, sem deixar
de ladrar.
Então Alainna ouviu o trovão de cascos de cavalos e levantou os olhos. Quatro
cavaleiros atravessavam naquele momento as portas, um deles levando as rédeas um
corcel árabe de cor creme, sem cavaleiro. Alainna correu até eles, alarmada, pois havia
reconhecido o cavalo de Sebastien e o homem que o conduzia.
-Robert! - Gritou.
O bretão desmontou e se virou.
-Minha senhora. - Disse-lhe sorridente. Retornamos de Dunfermline.
Atrás dele, Alainna percebeu que havia três homens com capas, um deles
sustentando nos braços um grande pacote. Saudou-os com uma inclinação de cabeça e
não viu nada mais. Sebastien não se encontrava entre eles.
-Sebastien. - Disse ao Robert. - Você leva seu cavalo! Onde está?
-Virá logo. - Respondeu ele simplesmente. - Podemos entrar nos estábulos e
depois passar ao salão? - Sorria enquanto falava, e Alainna o olhou confusa.
-Por favor. - Disse com fadiga. - Entrem para se secarem e esquentar. Eu
esperarei Sebastien. - Voltou-se para as portas, e então se deteve surpreendida.
Ao outro lado da porta havia um homem de pé, um montanhês vestido com um
breacan, sem cavalo. A chuva lhe empapava o cabelo, que havia mudado de dourado a
castanho escuro, e também o tartam e a camisa que levava debaixo, inclusive a pele de
suas botas de lobo.
Olhou-o fixamente, sem fala.
-Mil benções para ti. - Disse-lhe ele em gaélico como saudação formal. - Que
Deus te guarde o caminho.
-E... E mil benções para ti também. - Disse ela a sua vez, dando um passo. -
Que Deus te proteja de tudo mau.
Sebastien também avançou um passo, mas não cruzou a soleira da porta
aberta.
-Há muito tempo, uma linda mulher foi a corte de um rei, lhe pedir uma mercê.
Alainna inclinou a cabeça, escutando, com o coração lhe retumbando no peito.
-E o que lhe pediu?
-Pediu ao rei que lhe enviasse um guerreiro. - Respondeu ele. - Um bom
guerreiro celta é o que desejava ela, um homem cuja linhagem fosse tão antiga como a
sua, um homem valoroso e compassivo, um homem que derrotasse o inimigo de seu clã.
-Ah. - Disse Alainna. - Queria um guerreiro exemplar.
-Assim é. Pediu que o rei lhe buscasse um guerreiro que soubesse falar gaélico
e que pudesse viajar desde suas terras até o lar dela em um só dia.
Alainna apoiou os punhos nos quadris.
-E o que aconteceu então com essa mulher? Encontrou seu guerreiro?
-Ele veio a ela. - Respondeu Sebastien. – Vestido com o uso das Highlands...
mesmo que estivesse mais molhado que um cachorrinho recém banhado. – Acrescentou. -
Porque com ele chegaram as chuvas da primavera. Foi até a fortaleça dela desde suas
próprias terras em um momento, pois as terras dele abrangiam as suas. E falou em gaélico
o melhor que soube... que era muito bem, em realidade. - Sorriu enquanto a chuva lhe
escorregava pelas bochechas e gotejava do queixo.
Alainna reprimiu um sorriso.
-E era um homem de coração e valor? - Perguntou, aproximando-se um pouco
mais. Finam a acompanhou, ofegando e gemendo, desejando a sua maneira o amor e a
devoção daquele homem, igual a Alainna à sua.
-Em efeito. - Respondeu Sebastien. - Mesmo que a mulher, que era para ele
mais bela que a lua e mais radiante que o sol, desafiou-o a que fosse um homem melhor
que antes.
Alainna conteve um soluço.
-E o que aconteceu com a linhagem dele, que a mulher havia pedido tão
bobamente ainda que não importasse?
-Ele provinha de uma terra de antigos celtas, mesmo que estava longe da terra
da dama. Era a melhor linhagem que podia lhe oferecer, e esperava que ela o aceitasse.
-Estou segura de que o considerou um legado excelente.
-Ele derrotou o seu inimigo. - Prosseguiu Sebastien. - Mesmo que o coração
estivesse a ponto de lhe estalar no peito, fez por ela. E também pelos seus, aos que
amava como se fossem sua própria família.
Alainna sentiu que as lágrimas lhe alagavam os olhos ao contemplar Sebastien
com o coração cheio de amor. As lágrimas se mesclaram com a chuva que lhe caía sobre
o rosto e também sobre Finam, que agora passeava entre ambos em círculo, confuso, mas
feliz.
-Ela impôs outra condição. - Disse Sebastien. - E era a mais difícil de todas.
O coração de Alainna deu um salto.
-Qual era? - Perguntou sem fôlego.
-Um sobrenome. Queria obsequiar ao guerreiro com seu próprio sobrenome,
mas ele se recusou devido a seu grande orgulho, porque gostava de seu próprio nome.
-Ah. - Respondeu Alainna. - E o que aconteceu então?
-Ele veio a ela... sob a chuva. - Adicionou. - E lhe ofereceu um trato. Ele adotaria
seu sobrenome e o legaria no futuro tal como ela desejava, aos filhos que tivessem ambos.
Mas a dama devia aceitar algo dele em troca.
A chuva continuava caindo, e a tênue luz se voltou mais brilhante quando os
dois olharam um ao outro através da soleira da porta.
-O que? - Perguntou Alainna.
-Seu coração.
Sentiu que o coração lhe saltava no peito e sorriu enquanto se aproximava um
pouco mais. Sebastien deu um longo passo e ambos ficaram frente a frente, separados por
uma fina cortina de chuva.
-Um sobrenome. - Disse ela. - Não é tão valioso como um coração. A dama se
ficou com a melhor parte do trato.
Sebastien inclinou a cabeça e Alainna levantou o rosto até ele. Gotas de água
titilavam como jóias nas cílios dele e escorregavam desde seu cabelo para ir cair nas
bochechas dela.
-Poderia-se fazer com que o trato fosse mais equilbrado. - Disse. - Ela poderia
lhe dar seu próprio coração em troca.
-Sim. - Alainna sorriu olhando-o nos olhos, cinzas e suaves como a chuva. - Um
coração por outro. E o que aconteceria então com o sobrenome?
-Ah, bom. Ele poderia lhe dar um filho que levasse o sobrenome.
Alainna lançou os braços no pescoço e se aferrou dele, com a boca junto à sua.
Sebastien a abraçou com as mãos firmes e fortes e lábios úmidos e frios, mas quentes por
dentro.
Afastou-se um pouco para olhá-la, sorrindo.
-E então? Deseja um marido, minha senhora, além de um guerreiro?
-Sim. - Respondeu ela rindo, rodeando-o com os braços e o corpo apertado
contra o seu. - Deseja você uma esposa das Highlands?
-Sim. - Respondeu Sebastien, e a beijou outra vez, profunda, plenamente. O cão
seguia caminhando ao redor deles, ladrando. Sebastien riu contra a boca de Alainna.
-Alainna, mo cáran, vai deixar a seu homem aqui no meio da chuva?
Ela riu também e puxou Sebastien para o interior da fortaleza. Sentia seu braço
quente e forte quando ambos se dirigiram à torre, onde se via o resplendor das tochas e
por cuja porta se filtrava o som das risadas.
Ao chegar ao pé dos degraus, a ponto de subi-los, Sebastien a deteve.
-Há outra coisa mais que o guerreiro trouxe para a mulher. - Disse. Estendeu a
mão e lhe afastou o cabelo molhado da testa.
-O que?
-Um filho. Um filho dele.
-Conan? - Ofegou Alainna.
Sebastien afirmou com a cabeça, logo voltou os olhos escada acima e sorriu, e
Alainna viu o relâmpago de amor em seus olhos. Mas esta vez não era de amor por ela.
Seguiu seu olhar. Justo ao outro lado da porta se encontrava Una e Giric com
um menino pequeno entre ambos, segurando suas mãos. Tinha uns formosos olhos
escuros e um cabelo semelhante a ouro fino.
Alainna conteve uma exclamação, e Sebastien a rodeou mais em seu abraço.
-Robert o trouxe. - Murmurou. - Vamos, mo cáran, esta chuva está gelada.
Vamos para dentro, onde faz calor, e conhecerá o membro mais jovem do clã Laren.
Alainna pôs o pé no primeiro degrau ao lado do dele, e os dois subiram juntos.
Epílogo
Verão de 1171
-Já se pode cruzar o lago? - Perguntou Conan em gaélico olhando a seu pai.
Sebastien sorriu, agradecido de que seu filho tivesse facilidade com os idiomas, porque
nos poucos meses que estava em Kinlochan havia aprendido quase tanto gaélico como ele
em três anos na corte do rei. - Quero andar pelo caminho novo à ilha que construíram os
homens!
-É uma passarela. - Disse Sebastien. - Ainda não, e já sei que está desejoso.
Estamos esperando os outros, porque vamos todos juntos ver o que têm feito os pedreiros.
Tenha paciência.
Conan dava saltos na praia de calhaus junto a seu amigo Eoghan, que era um
ano mais novo. Os dois meninos, vestidos com camisa e tartam, correram até as ondas de
espuma branca que formavam redemoinhos ao redor de seus pés nus. Riam e pulavam,
fazendo flutuar seu brilhante cabelo como seda clara e escura.
-Quando, Sebastien Bán. - Perguntou Eoghan. - Quando podemos ir?
-Paciência, meninos. - Disse de novo Sebastien, mas nenhum dos dois o
escutava. Levantou os olhos para ouvir uma risada de prata e viu Alainna. Movia-se com a
mesma graça de sempre, mesmo que mais devagar, agora que levava um menino
crescendo em seu ventre. À medida que crescia o menino, assim crescia sua viçosa beleza
e o infinito amor de Sebastien por ela. Sorriu ao contemplá-la.
-Paciência diz, mas não são mais que meninos pequenos. - Disse ela, sorridente
e em tom de brincadeira.
-Ah. - Respondeu Sebastien. - Dizem que a paciência é capaz de desgastar a
pedra. É uma boa virtude.
Alainna apoiou a cabeça no oco de seu braço.
-Todos vão precisar de paciência para seu projeto em Kinlochan.
-Dois anos. - Disse ele. - Possivelmente três, até que nosso castelo na ilha
esteja terminado. – Levantou uma sobrancelha ao olhá-la. - Falando de paciência, você
apenas pôde esperar que chegassem os primeiros carros cheios de pedra.
Alainna riu e levantou o rosto ao morno vento do verão, que brincava com suas
longas tranças.
-Confesso. - Disse. - Estava ansiosa de ver a pedra. Escolheu bem. A arenisca
de cor mel extraída das pedreiras do sul ficará bela em nossa ilha, brilhará como uma torre
de ouro.
-John, o professor pedreiro, disse-me que espera que hoje chegue outro
carregamento de pedra. - Disse Sebastien. - E vários mais nos próximos dias, até que
esteja aqui toda a pedra destinada aos alicerces e ao primeiro nível. Depois disso se
extrairá a pedra que se vá necessitando.
Alainna assentiu.
-E a pedra calcária para a capela?
-Essa chegará esta semana, acredito.
-Parece que por fim John aceitou que uma mulher realize os relevos decorativos
para a capela. - Disse Alainna. - O homem não acreditava que fosse possível.
-Até que lhe mostrou as obras que fez e o deixou encantado. - Disse Sebastien.
-E lhe assegurei que esperaria até que nascesse meu filho para começar. -
Acrescentou ela.
-Isso também me tranqüiliza. Disse Sebastien. - Quanto a essa pedra que
chegará hoje ou amanhã... John está seguro de que entre ela haverá calcária de Caem.
Alainna lançou uma exclamação de júbilo.
-A pedra de cor creme! Vai chegar já aqui, desde a Normandia? - Jogou os
braços ao redor do pescoço dele e o beijou. - É um marido maravilhoso, por ter pedido aos
monges bretões que me enviassem!
-Não podia ir procurá-la eu mesmo. Se te deixasse aqui, nossa união pelas
mãos ficaria anulada. - Sorriu. - Quando vai se celebrar nosso casamento? Não posso te
convencer de que seja antes do Natal?
-Minha gente quer que esperemos um ano e um dia para que possam ter um
casamento no Natal e se beneficiar da boa sorte que trará um acontecimento assim. Além
disso, para então já teria nascido nosso filho, de modo que eu também prefiro esperar.
Sebastien franziu o cenho e ficou em silêncio, contemplando como seu loiro filho
tagarelava com Eoghan enquanto ambos amontoavam pedras na praia.
-O que acontece? Ainda te preocupa a idéia da união pelo rito das mãos?
Estamos casados aos olhos de Deus, e aos olhos de todos os montanheses.
Sebastien afirmou com a cabeça.
-Já sei.
-Se preocupa o parto. - Disse Alainna com suavidade.
Ele encolheu os ombros sem querer admitir o quanto estava preocupado, o
medo que sentia às vezes ao pensar no que Alainna teria que confrontar com o parto da
criança, e ao lembrar que sua primeira esposa não havia sobrevivido a seu segundo parto.
Não poderia suportar perder Alainna. Segurou-lhe a mão em silêncio.
-Não nos acontecerá nada. - Disse ela lhe rodeando a cintura com os braços. -
Estou segura. Temos pela frente um futuro longo e formoso.
Passou-lhe um braço pelos ombros e a estreitou contra si enquanto os dois
contemplavam o lago. Logo lhe beijou a testa.
-Assim é. - Disse. - E viveremos juntos nesse castelo da ilha verde.
Assinalou a ilha que se elevava no meio do lago. A base da torre, parcialmente
construída com blocos de arenito, parecia dourada à luz do sol. Da borda até a praia de
calhaus discorria uma larga passarela nova, feita de pedra e cascalho. O ruído dos
martelos e os cinzéis dos pedreiros faziam eco na superfície do lago.
Alainna se voltou e olhou a suas costas.
-Ah. – Disse. - Já vêm. Os meninos já não terão que esperar muito para ver seu
castelo.
-Nosso castelo. - Murmurou Sebastien.
Nisso ouviu o latido de um cão e ao levantar os olhos viu que Finam cruzava
correndo o prado verde que rodeava o lago, seguido pelos membros do clã Laren. Conan e
Eoghan saltaram a seu encontro, gritando e gesticulando. O cão ladrou entusiasmado e
correu até eles para lhes lamber o rosto. Giric se lançou adiante para evitar que Finam
atirasse os meninos no chão com seu entusiasmo.
Lorne e Una vinham à frente do grupo, com Ruari e Esa atrás deles. Depois
vinham Niall, Lulach, Beitris, Donal, Aenghus e o resto. Lorne riu e se agachou quando os
dois meninos correram até ele para lhe mostrar as pedras que tinham reunido. Giric
levantou nos braços Conan e o subiu aos ombros, e Ruari fez o mesmo com Eoghan.
Sebastien riu ao vê-los.
-Mandei dizer a Struan que terei muito gosto em criar Eoghan como filho adotivo
em Kinlochan até alcançar a idade adequada. - Disse.
-Me alegro. Lileas ainda não está preparada para deixá-lo partir, mas tenho uma
boa notícia: Disse-me que ela e Struan esperam um filho para a próxima primavera.
Sebastien arqueou uma sobrancelha.
-Devo admitir que esse casamento foi uma surpresa para mim.
-Para mim, não. Cormac nunca foi tão bom para ela como seu irmão. E na antiga
tradição celta existe o costume de que o homem se case com a mulher de seu irmão
quando esta fica viúva e se encarregue de seus filhos. Struan considerou oportuno seguir
essa antiga tradição. Eu acredito que sempre gostou de Lileas, e o padre Padruig esta
contente. Agora o clã Nechtan será um clã diferente, tendo Struan como chefe até que
Eoghan alcance a idade adulta.
Sebastien olhou para trás, à Donzela de Pedra que se erguia de cor cinza
prateada, reluzente à luz do sol, olhando o lago.
-A Donzela deve estar muito feliz com estas mudanças, e com a paz que por fim
chegou a sua terra e a sua gente.
-É o que ela deseja para nós. - Disse Alainna. Seu sorriso era suave e lindo, e
Sebastien se inclinou para beijá-la, incapaz de resistir a aquela doçura.
-Mostrei-te o último desenho do castelo? - Perguntou-lhe.
-Mostra-me um novo quase todas as semanas, acrescenta um traço novo, ou
melhora alguma coisa, conforme avançam as obras. - Disse Alainna. - Você e o professor
pedreiro ficaram amigos rapidamente, e estes dias passa tanto tempo na ilha que acredito
que me deixou por seu castelo de pedra.
-Jamais te deixarei. - Replicou ele. - Além disso, você tem suas próprias pedras
para ser feliz. Quando me necessitar por qualquer motivo...
-Qualquer motivo? - Disse ela com os olhos brilhantes e um sorriso
encantadoramente perverso.
Sebastien a beijou; foi um beijo rápido e profundo, tanto que Alainna gemeu sob
sua boca e ele sentiu como começava a derreter-se em seus braços.
-Qualquer motivo. - Sublinhou. - Não tem mais que enviar a alguém por essa
nova passarela e correrei a seu lado. -Sorriu-lhe. - John e eu desenhamos os muros do
grande salão com nichos todos ao redor, para outras pedras que se inserirão mais tarde.
Alainna levantou o olhar.
-Minhas pedras? - Perguntou.
Sebastien afirmou com a cabeça.
-Cada uma delas, conforme vá terminando, colocará-se em seu lugar dentro do
grande salão, onde as sucessivas gerações do clã Laren poderão ver a história de seu clã,
no futuro.
Ela o abraçou e apoiou a cabeça em seu ombro.
-Obrigada. - Disse com a voz amortecida contra seu peito. - Mil benções por ter
pensado nisso.
-Essas mil benções, mo cáran. - Murmurou ele. - Já são minhas.
-Estamos preparados para ver esse teu castelo na ilha, Sebastien Bán. -Disse
Lorne aproximando-se com outros. - Faz muito bom dia para vê-lo. - Sorriu, enquanto seu
cabelo branco ondulava na suave brisa.
-Então, vamos lá. - Disse Sebastien, e segurou Alainna pela mão para conduzi-la
à praia de calhaus, com os outros atrás em fila.
A passarela, construída com uma variedade de pedra calcária, arenisca, xisto e
entulhos, fazia uma ponte de pedra da praia junto à Donzela até a ilha, e era bastante larga
para que coubessem três cavalos e bastante alta para que a água, inclusive com a
enchente da primavera, não cobrisse as pedras. Alguns homens enviados pelo rei haviam
trabalhado durante vários meses para construí-la, e mesmo que ainda não estava
terminada de todo, já se podia usar.
-Como se chamará? - Perguntou Niall, de pé na praia de calhaus, olhando a ilha.
-Ainda não decidimos. - Respondeu Sebastien.
-Castelo MacLaren. - Disse Lulach, e outros assentiram para mostrar-se de
acordo.
-Kinlochan. - Disse Donal. - Castelo de Kinlochan.
-Castelo da Donzela. - Sugeriu Esa.
Sebastien sorriu ao ouvir as sugestões. Levantou o rosto para os ventos que
varriam o lago, contemplou o pilar de pedra e depois sorriu a Alainna.
-Como acha você que deveríamos chamar a nosso castelo, meu amor? -
Murmurou.
Ela inclinou a cabeça, pensativa.
-Castelo de Promessa. - Disse. - Porque a ilha sobre a que repousa é a Terra de
Promessa.
Sebastien sorriu, e sentiu a alma transbordante de amor por ela e por aquela
gente. - Sua gente. - E por aquele lugar, seu lar. Desceu a mão para pegar a de Conan e,
com a de Alainna na outra, empreendeu com eles a marcha para cruzar à Terra de
Promessa.
Ao amanhecer, Alainna deixou uma oferenda ao pé do pilar de pedra, um buquê
de flores e uma pedra pequena esculpida por ela mesma que mostrava um relevo de um
nó sem fim dentro de um círculo. Levantou os olhos para a Donzela de Pedra e sussurrou
um cântico de agradecimento. Logo se afastou, com o verde do verão rodeando-a, o sol
suave e quente, uma miríade de flores salpicando a erva sob seus pés, e se afastou da
coluna entre o suave murmúrio das ondas do lago e o canto dos pássaros nas árvores.
Então sentiu um ligeiro beliscão, e se voltou.
Em frente ao pilar, onde o sol nascente deveria projetar a primeira sombra da
pedra, viu uma moça que contemplava fixamente o lago. A luz do sol emprestava um
suave brilho a seu contorno. Era esbelta e delicada, com o cabelo como ouro pálido que
lhe caía pelas costas. Seu singelo vestido era da mesma cor cinza clara que a pedra.
Alainna se fixou na larga barra do vestido que tocava o granito e parecia desaparecer
dentro dele, como se a moça fosse a sombra da pedra, que tinha cobrado vida.
Enquanto Alainna a contemplava, a jovem voltou o rosto e a olhou. Seus olhos
eram doces, do suave prateado da claridade que precede o amanhecer. Seu rosto
encantador e juvenil por alguma razão lhe resultou familiar.
-Alainna. - Disse a moça, sorrindo. Sua voz era como um suspiro no vento. - A
paz e a graça sejam contigo e com os teus.
-Paz e graça a ti. Donzela. - Sussurrou Alainna com reverencial assombro.
A Donzela sorriu.
-Quando tudo parecia estar perdido para nós, você foi nossa única esperança.
As lendas e a gente do clã Laren estavam a seu cuidado. Você as honrou, você e seu
guerreiro dourado, e as salvaram. Agora nosso clã poderá sobreviver.
-E você? - Perguntou Alainna. - Continuará vivendo, agora que já é livre da
pedra?
-Sou livre. - Repôs ela com voz suave como o ar de verão. - E estarei com meu
clã uma vez mais. Voltará para ver-me de novo.
-Quando? - Quis saber Alainna. - Aqui?
-Logo. - Respondeu a Donzela. Conforme o sol estava cada vez mais alto, foi
ficando translúcida como um delicado fragmento de quartzo rosa.
-Donzela...
-Reconhecerá-me. - Sussurrou a moça.
E então se desvaneceu na luz. No lugar onde havia estado tão somente ficou a
sombra da pedra.
-Cale-se. - Ouviu que dizia uma voz. - Sua mãe está dormindo.
Alainna abriu os olhos. Estava sentada na grama, com as costas apoiada no
pilar de pedra, cujo granito estava aquecido pelo sol. No colo tinha flores silvestres frescas.
Ao levantar a vista viu Sebastien e Conan sentados na grama perto dela,
pegando flores. Sebastien lhe sorriu e lhe lançou outra flor no colo. Finam, com as orelhas
erguidas, observava como Conan arrancava flores e as atirava.
-Dormia tão tranqüila. - Disse Sebastien. - Que não quisemos te perturbar. Mas
os outros retornaram à fortaleza depois de ver o castelo da ilha verde. - Foi até ela. - Nossa
aventura desta manhã na ilha te fatigou, mo cáran. Quase imediatamente depois de se
sentar aqui a descansar, ficou adormecida.
Alainna sorriu para Sebastien, e também para Conan, que ria e havia começado
a brincar de correr em círculos com Finam. Passou a mão pela suave curva de seu ventre.
-Sebastien. – Disse. - Importaria-te que nosso primeiro filho não fosse menino?
Ele estendeu uma mão e ajudou Alainna a ficar de pé.
-Não me importaria absolutamente. - Disse. - Eu gostaria muito.
Alainna sorriu ao sentir seu braço nos ombros. O menino se moveu em seu
ventre, um movimento de regozijo.
-Acredito que nosso filho vai ser menina. Uma menina bela, com cabelo loiro
claro e olhos de cor cinza prata.
-Parece-me que teve um sonho. - Disse ele andando, com Conan e Finam
saltando a seu redor em círculos.
-Estou vivendo um sonho. - Disse Alainna, e lhe sorriu.
Nota da Autora
Mesmo que muitos nomes de clãs têm sua origem em normandos que se
estabeleceram na Escócia, existem vários documentos medievais que demonstram que
alguns cavaleiros normandos adotaram os sobrenomes celtas de suas esposas escocesas,
em particular quando a herança delas era considerável. Mesmo que os sobrenomes não se
usavam de maneira constante no século XII, na cultura normanda um sobrenome
prestigioso era símbolo de honra, status e linhagem. Os nomes dos clãs das Highlands,
que também indicavam um legado honrado e antigo, aparecem nos documentos com mais
frequência, sobre tudo quando os normandos se foram filtrando na Escócia.
O fato de que os normandos às vezes tomassem sobrenomes escoceses se
converteu em parte da inspiração para A Donzela de Pedra. Perguntei-me o que poderia
acontecer se o sentido normando da honra e o orgulho, tão essencial para os cavaleiros do
século XII, encontrasse seu igual em orgulho e a teimosia nas Highlands.
Geralmente, tenho cuidado para não alterar os fatos históricos, mas confesso
que empreguei um pouco de criatividade relativa as origens do clã dos MacLaren. Mesmo
que as raízes deste clã se remontam a um abade do século XIII, tomei-me a liberdade de
lhe dar uma origem mais antiga, completado com raízes na Irlanda. Tive o cuidado de
conservar sua legendária sereia.
Outros aspectos da investigação que realizei para este livro me levaram a
fascinante trama da cultura celta. No século XII, a arte dos bardos e os narradores de
relatos já era antiga na Escócia. Certas práticas descritas nesta novela, como a «cama do
poeta» e o uso do galho de prata, eram usadas pelos primeiros bardos celtas e ainda se
acostumaram aos narradores das Highlands durante a Idade Média e até o século XVIII
pelo menos.
Os cânticos, os conjuros e as invocações celestiais e elementares sons comuns
nas Highlands da Antiguidade. Muitos destes formosos versos foram recolhidos por
Alexander Carmichael, cujo Carmina Gadelica (cantos dos gaélicos) foram publicados pela
primeira vez em 1899; em 1992 Floris Books publicou uma nova edição. Os versos que se
recitam na Donzela de Pedra estão apoiados nas traduções de Carmichael, mas são uma
compilação de material original com frases e cadências comuns nas canções celtas.
Escócia possui abundante pedra nativa, e a escultura na pedra era uma arte
ativa na Escócia medieval. As esculturas e os relevos, realizados tanto nas Terras Baixas
como nas Highlands, combinavam traços do românico e do gótico com elementos celtas
em obras de extraordinária beleza. Dado que na Idade Média as mulheres estavam
integradas dentro das artes na Grã-Bretanha e na Europa, é perfeitamente possível que na
Escócia uma mulher dirigisse o cetro e o cinzel para trabalhar a pedra.
Estou agradecida de maneira especial a Walter S. Arnold por compartilhar sua
perícia comigo e por ter a paciência de me explicar técnicas e métodos de trabalho. Sendo
um dos artistas da pedra escolhidos para trabalhar na Catedral Nacional de Washington
D.C., ajudou a conservar e continuar as respeitadas tradições da escultura medieval.