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Síria e Seus Motins Urbanos PDF
Síria e Seus Motins Urbanos PDF
- MOTINS URBANOS -
As consequências perenes e um breve ato inconsequente
Odilon F. G. Amaral
O New York Times localizou um dos jovens estudantes da cidade de Daraa, primo do suposto
autor da pichação, e o entrevistou, em 2013: “Foi o momento certo”, disse o jovem, então,
com 17 anos. De acordo com o jornal, o rapaz fugiu para a Jordânia, “onde passa boa parte do
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tempo em busca de trabalho como diarista e sonha em voltar para a Síria e lutar contra o
governo”. Ao jornal, o jovem, que não quis se identificar, afirmou ter sabido que o primo
conseguira escapar da polícia e se juntar à linha de frente dos rebeldes, “mas que havia sido
morto em batalha”.
Segundo a agência internacional de notícias EFE (2019), até o fim do ano passado,
“perderam a vida pelo menos 350 mil pessoas na Síria, embora esse número possa chegar a
meio milhão com os casos que a própria ONG não conseguiu comprovar” -referindo-se ao
Observatório Sírio de Direitos Humanos (Syrian Observatory for Human Rights), fundado em
maio de 2006 e sediado em Londres, que sustenta não ser vinculado a corpos e partidos
políticos. Porém afirma, em seu site, defender Democracy, Freedom, Justice and Equality, em
clara oposição ao governo de Bashar al-Assad. Só em dezembro de 2018, a ONG
documentou, com critérios e metodologia próprios, a morte de 1506 pessoas: “Das vítimas
mortais do último mês do ano, 710 são civis, entre eles 27 menores de 18 anos e 14 mulheres,
dos quais 53 morreram em ataques da coalizão internacional liderada pelos EUA, que
intervêm na Síria contra os jihadistas”, chegando a um total de 19.799 no ano, entre civis e
combatentes (EFE, 2019). Em março, a ONG divulgou que o número total de mortos havia
chegado aos 370 mil (JC ONLINE, 2019). Hoje, portanto, já se fala em mais de 500 mil.
Segundo Yassin-Kassab e Al-Shami (2018, p. 1), “A geografia conferiu diversidade à
Síria. (…) as terras a leste do Mediterrâneo consistem em montanhas, florestas, planícies e
desertos, e abrigaram povos plurais e às vezes ferozmente independentes”. A cooperação e o
livre intercâmbio de bens e ideias foram incentivados e, até mesmo, necessários, de acordo
com os autores: “Por milênios, as várias comunidades da Síria têm discutido e negociado nas
grandes cidades do Levante” (IDEM).
A região também recebeu sempre muita gente de fora, vinda de imigrações a
constantes invasões. “O país foi crucial no desenvolvimento das três principais variedades do
monoteísmo abraâmico, e tem sido um local de constante contestação entre religiões, seitas e
ideologias, e, mais violentamente, entre senhores da guerra e exércitos que utilizam a retórica
religiosa”. De acordo com os autores, cerca de 65% dos sírios são árabes sunitas. De 10% a
12% são Alawi Arabs. Os cristãos árabes, “principalmente ortodoxos e católicos orientais,
mas também assírios, caldeus e armênios, incluindo uma pequena comunidade de língua
aramaica em Maalula, constituem 10 por cento” (IBIEM).
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O último século foi bastante conturbado. Golpes sucessivos, até que o aplicado por
Hafez al-Assad, um baathista, em 1971, permitiu uma liberdade maior de crenças, numa
tentativa de unir a sociedade. Havia, contudo, uma intensa rede de fiscalização, vigilância e
repressão a movimentos contestadores. No final do reinado de Hafez, toda a oposição política
organizada havia sido esmagada e a sociedade civil, onde existia, era cooptada e inativa.
(YASSIN-KASSAB & AL-SHAMI, p.15, 2018). Desde que subiu ao poder, Hafez treinou o
filho mais velho para sucedê-lo: “Apresentado como uma figura viril, muitas vezes a cavalo,
ele subiu através das forças armadas e foi apresentado aos líderes estrangeiros. Mas morreu
em um acidente de carro, em 1994” (IDEM).
Então a sucessão recaiu sobre seu irmão mais novo, Bashaar, que parecia um candidato
improvável. O oftalmologista desajeitado, ligeiramente geek, foi trazido de volta do
hospital de Londres, onde trabalhava, e, nos anos seguintes, sua base de apoio foi
cuidadosamente nutrida. Bashaar nomeou amigos para o aparato militar e de segurança,
enquanto seu pai retirou os oficiais que poderiam desafiá-lo (IBIDEM).
Do lado de Bashar, estão Rússia (que já possuía bases militares no país) e Irã. Segundo a BBC
(2018), “milhares de muçulmanos xiitas que integram milícias armadas, treinadas e
financiadas pelo Irã - a maioria é do Hezbollah no Líbano, mas também do Iraque,
Afeganistão e do Iêmen - têm lutado ao lado do exército sírio”. Estados Unidos, Reino Unido,
França e outros países ocidentais estão do lado dos rebeldes: “Uma coalizão global liderada
por eles também realiza ataques contra militantes do Estado Islâmico na Síria desde 2014 e
ajudou uma aliança entre milícias árabes e curdas chamada Forças Democráticas Sírias (FDS)
a assumir o controle de territórios antes dominados por jihadistas” (IDEM). Os rebeldes
contam, ainda com o apoio da Turquia. E, segundo a BBC, a “Arábia Saudita foi um
elemento-chave para conter a influência iraniana e também armou e financiou os rebeldes. Ao
mesmo tempo, Israel tem se preocupado muito com o envio de armas iranianas para o
Hezbollah na Síria e tem realizado ataques aéreos para interromper isso” (IBIDEM).
Numa entrevista a Letícia Macedo, do G1, o socorrista, ex-professor de inglês Ammar
Al Selmo, voluntário há seis anos na organização Capacetes Brancos, “um coletivo de
socorristas que chegou a ser indicado para o prêmio Nobel da Paz em 2016”, contou que o
conflito “tomou outra proporção (…) quando o Estado Islâmico começou a expandir sua
atuação na Síria e o governo passou a lançar ‘bombas de barril’ [feitas com tambores, tanques
de combustível ou cilindros de gás, cheios de explosivos e fragmentos de metal] contra a
população civil” (MACEDO, 2019). Mas a longevidade do conflito -que teve como gatilho o
ato de rebeldia dos estudantes de Daraa- ainda pode ser atribuída às consequências dos
embates de 2011. Um jovem, depois que o corpo mutilado de um garoto de 13 anos foi
devolvido aos pais, naquela época, naquela cidade, disse: “Bashaar al-Assad é o líder da
revolução. Toda vez que ele mata alguém, toda vez que ele tortura, ele cria mais dez homens
determinados a destruí-lo.” (YASSIN-KASSAB & AL-SHAMI, p.48, 2018)
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Bibliografia
BBC. Por que há uma guerra civil na Síria: 8 perguntas para entender o conflito. In: G1, 14 de
abril de 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/por-que-ha-uma-guerra-civil-na-
siria-8-perguntas-para-entender-o-conflito.ghtml
EFE. ONG registra as primeiras duas mortes de civis na Síria em 2019. Publicado por Notícias
Uol, 1º de janeiro de 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2019/01/01/
ong-registra-as-primeiras-duas-mortes-de-civis-na-siria-em-2019.htm
G1. Entenda os protestos de 1968. São Paulo, 10 de maio de 2008. Disponível em http://
g1.globo.com/Sites/Especiais/Noticias/0,,MUL464249-15530,00-
ENTENDA+OS+PROTESTOS+DE.html
JC ONLINE. Guerra na Síria deixou mais de 370.000 mortos desde 2011. Disponível em https://
jconline.ne10.uol.com.br/canal/mundo/internacional/noticia/2019/03/15/guerra-na-siria-deixou-mais-
de-370000-mortos-desde-2011-373788.php
MACEDO, Letícia. 'O mundo silenciou e a guerra na Síria continua até hoje', diz socorrista que
perdeu mais de 120 conhecidos no conflito. G1, 16 de março de 2019. Disponível em: https://
g1.globo.com/mundo/noticia/2019/03/16/o-mundo-silenciou-e-a-guerra-na-siria-continua-ate-hoje-diz-
socorrista-que-perdeu-mais-de-120-conhecidos-no-conflito.ghtml
THE NEW YORK TIMES. O adolescente desconhecido que começou a guerra da Síria. In:
GaúchaZH, Porto Alegre, 19 de fevereiros de 2013. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/
mundo/noticia/2013/02/o-adolescente-desconhecido-que-comecou-a-guerra-da-siria-4049197.html
YASSIN-KASSAB, Robin; AL-SHAMI, Leila. Burning country: Syrians in revolution and war.
Pluto Press, 2018.