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Universidade Federal de Minas Gerais– UFMG

Graduação em Relações Econômicas Internacionais – 5º período

- MOTINS URBANOS -
As consequências perenes e um breve ato inconsequente

Trabalho apresentado à Universidade Federal de Minas Gerais –


Campus Pampulha, parte da disciplina de História das Relações
Internacionais II.

Odilon F. G. Amaral

Belo Horizonte, MG, junho/2019


França, maio de 1968: uma revolta opôs universitários e polícia em batalhas violentas.
Segundo o site de notícias G1:
O estopim da agitação na França foi o fechamento da Universidade de Nanterre, nos
arredores de Paris, em 2 de maio. Havia semanas, os estudantes vinham entrando em
conflito com a polícia francesa, depois que decidiram ocupar a universidade, protestando
contra a burocracia da instituição que, entre outras coisas, impedia os alunos de dividirem
os quartos da residência estudantil com colegas do sexo oposto. (G1, 2008)

Os colegas da tradicional Universidade de Sorbonne aderiram em apoio. Junto deles,


trabalhadores e sindicatos fizeram greve e ocuparam fábricas, por melhores salários e
condições de trabalho (Idem).
No Brasil, estudantes lutavam contra o regime militar e por melhor educação.
Inspirados pelos baianos Gilberto Gil e Caetano Veloso, entoavam: “é proibido
proibir” (Ibidem). Ainda segundo o G1, Primavera de Praga, na Tchecoslováquia, os
estudantes que protestaram no México às vésperas dos Jogos Olímpicos, a juventude norte-
americana contra a Guerra do Vietnã, estudantes de várias partes do mundo se mobilizaram
para dizer não.
Quarenta e três anos depois, estudantes voltaram a protagonizar o que muitas vezes se
chama de motins urbanos. Por causa de uma pichação no muro da escola, contravenção
corriqueira e inconsequente da juventude, um grupo de adolescentes foi preso e
“supostamente” torturado: “Agora é a sua vez, doutor” -escreveram, em alusão ao
oftalmologista Bashar al-Assad, presidente da Síria (THE NEW YORK TIMES, 2013). “O
governo, nervoso com a queda dos governos ao redor do mundo árabe, reagiu furiosamente ao
desrespeito, prendendo o adolescente [autor da pichação] e mais de doze outros meninos, e
torturando-os por semanas” (IDEM). Segundo o jornal norte-americano, a prisão e a tortura
deram início a “manifestações que, olhando em retrospecto, marcaram o início da guerra
civil”:
Os parentes e vizinhos dos meninos, além de centenas de outras pessoas da cidade, se
reuniram para protestar, exigindo a libertação dos garotos. As forças de segurança
abriram fogo contra a multidão. Eles acreditaram que agir com tolerância zero iria
impedir que os protestos aumentassem. Mas estavam errados (NYT, 2013).

O New York Times localizou um dos jovens estudantes da cidade de Daraa, primo do suposto
autor da pichação, e o entrevistou, em 2013: “Foi o momento certo”, disse o jovem, então,
com 17 anos. De acordo com o jornal, o rapaz fugiu para a Jordânia, “onde passa boa parte do

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tempo em busca de trabalho como diarista e sonha em voltar para a Síria e lutar contra o
governo”. Ao jornal, o jovem, que não quis se identificar, afirmou ter sabido que o primo
conseguira escapar da polícia e se juntar à linha de frente dos rebeldes, “mas que havia sido
morto em batalha”.
Segundo a agência internacional de notícias EFE (2019), até o fim do ano passado,
“perderam a vida pelo menos 350 mil pessoas na Síria, embora esse número possa chegar a
meio milhão com os casos que a própria ONG não conseguiu comprovar” -referindo-se ao
Observatório Sírio de Direitos Humanos (Syrian Observatory for Human Rights), fundado em
maio de 2006 e sediado em Londres, que sustenta não ser vinculado a corpos e partidos
políticos. Porém afirma, em seu site, defender Democracy, Freedom, Justice and Equality, em
clara oposição ao governo de Bashar al-Assad. Só em dezembro de 2018, a ONG
documentou, com critérios e metodologia próprios, a morte de 1506 pessoas: “Das vítimas
mortais do último mês do ano, 710 são civis, entre eles 27 menores de 18 anos e 14 mulheres,
dos quais 53 morreram em ataques da coalizão internacional liderada pelos EUA, que
intervêm na Síria contra os jihadistas”, chegando a um total de 19.799 no ano, entre civis e
combatentes (EFE, 2019). Em março, a ONG divulgou que o número total de mortos havia
chegado aos 370 mil (JC ONLINE, 2019). Hoje, portanto, já se fala em mais de 500 mil.
Segundo Yassin-Kassab e Al-Shami (2018, p. 1), “A geografia conferiu diversidade à
Síria. (…) as terras a leste do Mediterrâneo consistem em montanhas, florestas, planícies e
desertos, e abrigaram povos plurais e às vezes ferozmente independentes”. A cooperação e o
livre intercâmbio de bens e ideias foram incentivados e, até mesmo, necessários, de acordo
com os autores: “Por milênios, as várias comunidades da Síria têm discutido e negociado nas
grandes cidades do Levante” (IDEM).
A região também recebeu sempre muita gente de fora, vinda de imigrações a
constantes invasões. “O país foi crucial no desenvolvimento das três principais variedades do
monoteísmo abraâmico, e tem sido um local de constante contestação entre religiões, seitas e
ideologias, e, mais violentamente, entre senhores da guerra e exércitos que utilizam a retórica
religiosa”. De acordo com os autores, cerca de 65% dos sírios são árabes sunitas. De 10% a
12% são Alawi Arabs. Os cristãos árabes, “principalmente ortodoxos e católicos orientais,
mas também assírios, caldeus e armênios, incluindo uma pequena comunidade de língua
aramaica em Maalula, constituem 10 por cento” (IBIEM).

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O último século foi bastante conturbado. Golpes sucessivos, até que o aplicado por
Hafez al-Assad, um baathista, em 1971, permitiu uma liberdade maior de crenças, numa
tentativa de unir a sociedade. Havia, contudo, uma intensa rede de fiscalização, vigilância e
repressão a movimentos contestadores. No final do reinado de Hafez, toda a oposição política
organizada havia sido esmagada e a sociedade civil, onde existia, era cooptada e inativa.
(YASSIN-KASSAB & AL-SHAMI, p.15, 2018). Desde que subiu ao poder, Hafez treinou o
filho mais velho para sucedê-lo: “Apresentado como uma figura viril, muitas vezes a cavalo,
ele subiu através das forças armadas e foi apresentado aos líderes estrangeiros. Mas morreu
em um acidente de carro, em 1994” (IDEM).
Então a sucessão recaiu sobre seu irmão mais novo, Bashaar, que parecia um candidato
improvável. O oftalmologista desajeitado, ligeiramente geek, foi trazido de volta do
hospital de Londres, onde trabalhava, e, nos anos seguintes, sua base de apoio foi
cuidadosamente nutrida. Bashaar nomeou amigos para o aparato militar e de segurança,
enquanto seu pai retirou os oficiais que poderiam desafiá-lo (IBIDEM).

Em 2000, com a morte de Hafez, a população ofereceu resistência à possibilidade de uma


figura criada no ocidente chegar ao poder e contestou a capacidade de Bashar (Bashaar) de
sustentar com pulso firme o caos cultural da Síria. Numa espécie de autogolpe, o
oftalmologista assumiu o poder aos 34 anos, quando, pela lei, teria que ter, ao menos, 45. Seu
discurso era modernizante. Com uma reforma econômica, prometeu abertura do mercado e
privatização; com uma reforma cultural, propôs seminários periódicos e debates com
intelectuais (não apenas com os ligados ao partido Baath) sobre o que a Síria deveria fazer
para alcançar o progresso. Com seu poder contestado, reprimiu manifestações violentamente.
Depois dos episódios do início de 2011, o clima de revolta se espalhou e a repressão se
intensificou. “Apoiadores da oposição pegaram em armas, primeiro para defender a si
mesmos e depois para expulsar forças de segurança das áreas onde viviam. Assad prometeu
acabar com o que chamou de "terrorismo apoiado por estrangeiros” (BBC, 2018). Seguiu-se
uma rápida escalada de violência, e o país mergulhou em uma guerra civil. Mas pouco se sabe
quando, como e onde o conflito se tornou armado. Principalmente, quem financiou os
primeiros tiros. Dos primeiros ataques a bala, o conflito foi evoluindo para bombardeios até
chegar aos recentes ataques aéreos (IDEM).
O conflito adquiriu uma dimensão muito maior do que o enfrentamento entre forças
contra e a favor de Bashar al-Assad. Muitos grupos e países, cada um com suas próprias
agendas, se envolveram, tornando a situação muito mais complexa e prologando a guerra.
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Eles [tais grupos] foram acusados de cultivar o ódio entre os grupos religiosos na Síria,
colocando a maioria muçulmana sunita contra o secto xiita alauíta do presidente. Essas
divisões fizeram com que ambos os lados cometessem atrocidades, dividindo
comunidades e tornando mais tímida a esperança de paz. Também permitiram que grupos
jihadistas como o autodenominado Estado Islâmico e a al-Qaeda florescessem. Os curdos
sírios, que querem ter o direito de governar a si próprios mas não combatem as forças de
Assad, acrescentam outra dimensão ao conflito (BBC, 2018)

Do lado de Bashar, estão Rússia (que já possuía bases militares no país) e Irã. Segundo a BBC
(2018), “milhares de muçulmanos xiitas que integram milícias armadas, treinadas e
financiadas pelo Irã - a maioria é do Hezbollah no Líbano, mas também do Iraque,
Afeganistão e do Iêmen - têm lutado ao lado do exército sírio”. Estados Unidos, Reino Unido,
França e outros países ocidentais estão do lado dos rebeldes: “Uma coalizão global liderada
por eles também realiza ataques contra militantes do Estado Islâmico na Síria desde 2014 e
ajudou uma aliança entre milícias árabes e curdas chamada Forças Democráticas Sírias (FDS)
a assumir o controle de territórios antes dominados por jihadistas” (IDEM). Os rebeldes
contam, ainda com o apoio da Turquia. E, segundo a BBC, a “Arábia Saudita foi um
elemento-chave para conter a influência iraniana e também armou e financiou os rebeldes. Ao
mesmo tempo, Israel tem se preocupado muito com o envio de armas iranianas para o
Hezbollah na Síria e tem realizado ataques aéreos para interromper isso” (IBIDEM).
Numa entrevista a Letícia Macedo, do G1, o socorrista, ex-professor de inglês Ammar
Al Selmo, voluntário há seis anos na organização Capacetes Brancos, “um coletivo de
socorristas que chegou a ser indicado para o prêmio Nobel da Paz em 2016”, contou que o
conflito “tomou outra proporção (…) quando o Estado Islâmico começou a expandir sua
atuação na Síria e o governo passou a lançar ‘bombas de barril’ [feitas com tambores, tanques
de combustível ou cilindros de gás, cheios de explosivos e fragmentos de metal] contra a
população civil” (MACEDO, 2019). Mas a longevidade do conflito -que teve como gatilho o
ato de rebeldia dos estudantes de Daraa- ainda pode ser atribuída às consequências dos
embates de 2011. Um jovem, depois que o corpo mutilado de um garoto de 13 anos foi
devolvido aos pais, naquela época, naquela cidade, disse: “Bashaar al-Assad é o líder da
revolução. Toda vez que ele mata alguém, toda vez que ele tortura, ele cria mais dez homens
determinados a destruí-lo.” (YASSIN-KASSAB & AL-SHAMI, p.48, 2018)

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Bibliografia

BBC. Por que há uma guerra civil na Síria: 8 perguntas para entender o conflito. In: G1, 14 de
abril de 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/por-que-ha-uma-guerra-civil-na-
siria-8-perguntas-para-entender-o-conflito.ghtml

EFE. ONG registra as primeiras duas mortes de civis na Síria em 2019. Publicado por Notícias
Uol, 1º de janeiro de 2019. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2019/01/01/
ong-registra-as-primeiras-duas-mortes-de-civis-na-siria-em-2019.htm

G1. Entenda os protestos de 1968. São Paulo, 10 de maio de 2008. Disponível em http://
g1.globo.com/Sites/Especiais/Noticias/0,,MUL464249-15530,00-
ENTENDA+OS+PROTESTOS+DE.html

JC ONLINE. Guerra na Síria deixou mais de 370.000 mortos desde 2011. Disponível em https://
jconline.ne10.uol.com.br/canal/mundo/internacional/noticia/2019/03/15/guerra-na-siria-deixou-mais-
de-370000-mortos-desde-2011-373788.php

MACEDO, Letícia. 'O mundo silenciou e a guerra na Síria continua até hoje', diz socorrista que
perdeu mais de 120 conhecidos no conflito. G1, 16 de março de 2019. Disponível em: https://
g1.globo.com/mundo/noticia/2019/03/16/o-mundo-silenciou-e-a-guerra-na-siria-continua-ate-hoje-diz-
socorrista-que-perdeu-mais-de-120-conhecidos-no-conflito.ghtml

SYRIAN OBSERVATORY FOR HUMAN RIGHTS. http://www.syriahr.com/en/

THE NEW YORK TIMES. O adolescente desconhecido que começou a guerra da Síria. In:
GaúchaZH, Porto Alegre, 19 de fevereiros de 2013. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/
mundo/noticia/2013/02/o-adolescente-desconhecido-que-comecou-a-guerra-da-siria-4049197.html

YASSIN-KASSAB, Robin; AL-SHAMI, Leila. Burning country: Syrians in revolution and war.
Pluto Press, 2018.

Além de anotações em sala de aula.

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