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O Gênero da Modernidade

Rita Felski
Tradução a ser publicada
Autoria: Joana d’Arc Martins Pupo

Introdução: Mitos do Moderno

Qual é o gênero da modernidade? Como algo tão abstrato quanto um período histórico pode ter
um sexo? No contexto do interesse atual na “historicidade da textualidade e na textualidade da
história”, a ideia não é tão estranha como inicialmente possa parecer1. Se nossa ideia do passado é
inevitavelmente moldada pela lógica explanatória da narrativa, então as estórias que criamos por sua
vez revelam a presença e o poder inescapáveis do simbolismo de gênero. Esta saturação de textos
culturais com metáforas da masculinidade e da feminilidade não é mais evidente que no caso do
moderno, talvez o mais difundido, entretanto, o mais ilusório dos termos de periodização. Relatos da
idade moderna, sejam acadêmicos, sejam populares, comumente alcançam algum tipo de coerência
formal dramatizando e personificando processos históricos; sujeitos humanos, coletivos ou
individuais, são dotados com importância simbólica como condutores exemplares de significado
temporal. Se estes sujeitos são presumivelmente machos ou fêmeas tem importantes consequências
para o tipo de narrativa que se desenvolve. O gênero afeta não somente o conteúdo factual do
conhecimento histórico _ o que é incluído e o que fica de fora _ mas também os pressupostos
filosóficos subjacentes a nossas interpretações da natureza e do significado dos processos sociais.
Esta questão da generificação da história tanto quanto a historicidade do gênero servirão como um
leitmotif para a análise a seguir.
Considere, por exemplo, um recente e influente relato das políticas do desenvolvimento. Em
Tudo que é Sólido desmancha no Ar, de Marshall Berman, o autor aclama o Fausto de Goethe como
um herói exemplar da era moderna. No personagem Fausto, Berman argumenta, as contradições da
modernidade são retratadas com uma claridade penetrante: por um lado, um senso hilariante de
liberação resultante do desafio à tradição e a formas de autoridade; por outro lado, um
individualismo burguês nascente que se assevera no desejo por um crescimento incontrolável e uma
dominação da natureza. Deste modo, Fausto vem representar as aventuras e os horrores, as
ambiguidades e ironias da vida moderna como exemplificado na destruição criativa e na constante
transformação desencadeada pela lógica do desenvolvimento capitalista. E Gretchen, alguém poderia
perguntar, a jovem garota da aldeia que é seduzida e abandonada por Fausto no decorrer de sua busca
desenfreada por novas experiências e autodesenvolvimento ilimitado? Berman percebe que Fausto é
inicialmente “encantado por sua inocência infantil, por sua simplicidade interiorana, sua humildade
cristã”, mas gradualmente descobre que seu “ardor se dissolve em histeria, e é mais do que ele pode
suportar”2. “Levado impacientemente para novos domínios da experiência e da ação”, Berman
explica, Fausto “começa a sentir suas necessidades e medos mais e mais como um peso”3. Apesar de
Berman estar consciente de algumas das complexidades da posição de Gretchen, sua simpatia
claramente repousa em Fausto e sua inevitável rejeição ao mundo limitado e fechado que Gretchen
representa. A mulher é associada ao peso morto da tradição e do conservadorismo que o recém-
autônomo, ativo e autodefinido sujeito precisa buscar transcender. Assim ela funciona como uma
vítima sacrificial, exemplificando as perdas que subjazem à lógica ambígua, mas, no final das contas,
hilariante e sedutora do moderno.
De uma leitura do livro de Berman, seria tentador concluir que o gênero da modernidade é, sem
dúvida, masculino. Todos os heróis exemplares de seu texto _ Fausto, Marx, Baudelaire _ são é claro
símbolos não só da modernidade, mas também da masculinidade, marcadores históricos da
emergência de novas formas da subjetividade masculina burguesa e da classe trabalhadora. Ambos,

1
Louis A. Montrose, “Professing the Renaissance: The Poetics and Politics of Culture,” em The New Historicism, Ed. H. Aram Veeser (
Nova York: Routledge, 1989), p.23. Para discussão das dimensões textuais da representação histórica, ver, entre outros, Hayden White,
Metahistory: The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe (Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1973), e
Tropics of Discourse: Essays in Cultural Criticism (Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1978); Dominick LaCapra, History
and Criticism (Ithaca: Cornell University Press, 1985); e Lionel Gossman, Between History and Literature (Cambridge: Harvard
University Press, 1990).
2
Marshall Berman, All That is Solid Melts into Air: The Experience of Modernity (London: Verso, 1983), PP.53-54.
3
Ibid., p.57.
no relato de Berman de Fausto e em sua posterior evocação do flâneur de Baudelaire, o andarilho
que coleciona plantas no asfalto das ruas de Paris, o indivíduo moderno é assumido como um homem
autônomo e livre das amarras familiares e comunais. Aqui a obra de Berman confortavelmente se
alinha a uma longa tradição de escritos que leem a modernidade como uma revolta edípica contra a
tirania da autoridade, valendo-se de metáforas de contestação e lutas enraizadas em um ideal de
competitividade masculina. O Feminismo tem, nos últimos anos, desenvolvido uma ampla crítica a
tais representações idealizadas do sujeito masculino autônomo, argumentando que este ideal de
liberdade carrega dentro de si as sementes de dominação no seu desejo de subjugar o outro e o seu
medo de uma dependência alinhada ao feminino.4 Desta perspectiva, a fascinação de Berman do
ideal da autoexpansão incansável e interminável incorporada na figura de Fausto parece mais
problemática do que ele inicialmente intencionava.
Entretanto, a equação de Berman da masculinidade com a modernidade e da feminilidade com a
tradição é somente uma das várias histórias possíveis sobre a natureza e o significado da era
moderna. Em contraste, um livro de Gail Finney argumenta a centralidade imaginativa da psicologia
e sexualidade femininas para as representações da modernidade no fin de siècle europeu. Através da
leitura de algumas das mais memoráveis heroínas dramáticas do período – Hedda Gabler, Salomé,
Lulu _ Finney demonstra as interconexões profundas entre a feminilidade e a modernidade no
imaginário social do final do século XIX. Os conflitos psíquicos e sociais incorporados por estas
heroínas diferem marcadamente daqueles analisados pelo panteão exclusivamente masculino de
Berman. Mais notadamente, as relações íntimas emergem como uma arena central dentro da qual as
contradições do moderno são exauridas. Enquanto o texto de Berman tende a replicar uma visão
estabelecida de modernidade em termos de uma oposição polarizada entre indivíduo e sociedade,
Finney aponta para a centralidade dos laços familiares e das identidades – como mãe, filha, esposa _
na construção das formas modernas de subjetividade. A chamada esfera privada, sempre retratada
como um domínio onde as emoções naturais e intemporais dominam, é revelada como estando
radicalmente implicada nos padrões de modernização e nos processos de mudança social. A análise
da feminilidade moderna traz com ela um reconhecimento da natureza profundamente histórica dos
sentimentos privados.
As figuras da feminista e da histérica emergem na análise de Finney como símbolos-chave das
políticas de gênero da modernidade, aparentemente oposta e ainda assim, intimamente ligada às
imagens que permeiam a cultura de fin de siécle. Do mesmo modo que a feminista expressa uma
resposta rebelde, emancipatória e dirigida ao exterior, à condição de opressão feminina, assim, ela
argumenta, a histérica exemplifica uma rejeição da sociedade que era passiva, voltada para dentro,
no final das contas, autodestrutiva. Entretanto, ambas as figuras estão igualmente implicadas nos
sistemas de pensamento e representação: o aparente comportamento irracional e privado da histérica
foi ele mesmo um fenômeno socialmente determinado, um indício da preocupação do séc. XIX com
a sexualidade como verdade do self que encontrou expressão nas doutrinas emergentes da psiquiatria
e da psicanálise e sua histerização do corpo feminino. De fato, a distinção entre a feminista e a
histérica era frequentemente mesclada em muitos dos escritos do período que, constantemente,
buscava reduzir as ações políticas das sufragettes a explosões irracionais de um grupo de mulheres
perigosas e desequilibradas. Deste modo, Finney escreve, “este duplo espectro _ das respostas das
mulheres a sua opressão (feminismo e histeria) e as reações dos homens a estas respostas (feminismo
e histerização) _ produziu um campo de correntes de pensamento conflitantes que inevitavelmente
deixaram suas marcas sobre os teatrólogos da época.5 A figura da mulher permeia a cultura de fin de
siécle como um símbolo poderoso tanto dos perigos como das promessas da era moderna.
É elucidador neste contexto contrastar a discussão de Berman de Fausto _ o moderno Prometeu
_ com a leitura de Finney de Lulu _ a Pandora moderna. Primeiramente trazida à vida pelo teatrólogo
alemão Franz Wedekind, a sedutora, demoníaca, mas infantil Lulu tornou-se bem conhecida por um
amplo público como o resultado do sucesso do filme mudo de G.W. Pabst “Pandora’s Box”. Finney
4
Ver, por exemplo, Jessica Benjamin, The Bonds of Love: Psychoanalysis, Feminism, and the Problem of Domination (Nova York:
Pantheon, 1988).
5
Gail Finney, Women in Modern Drama: Freud, Feminism, and European Theater at the Turn of the Century (Ithaca: Cornell
University Press, 198(), p.13. Ver também Elaine Showalter, The Female malady: Women, Madness, and English Culture, 1830-
1980 (Londres: Virago, 1987).
sugere em sua leitura do trabalho de Wedekind que Lulu deveria ser vista não somente como um
produto da sociedade moderna, mas como a quintessência da incorporação de seus valores. Atriz,
objeto sexual, prostituta, performer, espetáculo; todas estas identidades rendem-na como símbolo
paradigmático de uma cultura crescentemente estruturada ao redor do erotismo e da estética da
mercadoria. Por um lado, Lulu exemplifica a associação fin de siécle da feminilidade com a natureza
e com as forças primitivas do inconsciente; e, entretanto, por outro lado, ela é também superfície sem
substância, uma criatura de estilo e artifício cuja identidade é criada através das várias fantasias e
máscaras que ela assume. Aqui a heroína de Wedekind junta-se ao repertório estabelecido de
imagens da prostituta e da atriz, cuja combinação paradoxal de Eros e artífice foi frequentemente
vista como a quintessência da manifestação de uma modernidade feminina.
Claramente, as versões de história propostas por estes dois textos são significativamente
afetadas pelo gênero de seus sujeitos exemplares. Na leitura de Berman, a modernidade é
identificada com a atividade dinâmica, o desenvolvimento, e o desejo por um crescimento ilimitado;
a autonomia do recém-liberado sujeito burguês é exemplificada no momentum acelerador da
produção industrial, na racionalização, e na dominação sobre a natureza. O texto de Finney, em
contraste, propõe um indivíduo moderno que é simultaneamente mais passivo e mais indeterminado,
um nexus descentrado de influências textuais, papéis sociais, e impulsos psíquicos rudimentares. A
proposital masculinidade esforçada de Fausto é substituída por uma feminilidade comodificada,
fetichizada, libidinizada produzida através de lógicas textualmente geradas das formas modernas de
desejo. Nestas contrastantes visões da modernidade de homens e mulheres, a referência básica de
Berman é Marx, enquanto a de Finney é Freud. Uma explicação básica para esta diferença repousa
no período de tempo que separa os trabalhos de Goethe e de Wedekin; claramente a “modernidade”
de seus textos é em muitos aspectos muito diferente. Ainda, como o livro de Berman deixa claro, o
mito de Fausto retém uma atualidade significante como uma articulação simbólica das contradições
da era moderna, suas ressonâncias ainda poderosas em nosso tempo.6 Realmente, as duas histórias
que recontei podem ser vistas como mitos de modernidade que competem e que recorrem através de
uma série de textos acadêmicos, populares, ficcionais ou teóricos. Para cada relato sobre a era
moderna que enfatiza a dominação das qualidades masculinas de racionalização, produtividade e
repressão, podemos encontrar um outro texto que aponta _ seja aprovando, seja censurando _ para a
feminilização da sociedade ocidental, como evidenciado na natureza hedonista, passiva e descentrada
da subjetividade moderna.
É claro, estas diferentes perspectivas não são, de modo algum, incompatíveis, e alguns
escritores buscaram uni-las em uma única e ampla teoria do desenvolvimento moderno. Uma das
mais conhecidas tentativas é A Dialética do Iluminismo, a análise da lógica autodestrutiva da
sociedade ocidental de Theodor Adorno e Max Horkeimer. Baseados nos trabalhos de Marx, Weber,
e Nietzsche, Adorno e Horkeimer anteciparam aspectos da teoria pós-estruturalista contemporânea
em sua explanação sobre a irracionalidade da razão moderna. O mito grego de Odisseu e a sereias é
lido pelos autores como um texto central da civilização e como uma parábola exemplar das aporias
da modernidade. Ordenando que seus marinheiros o amarrassem ao mastro para que ele não pudesse
responder à canção sedutora das sereias, Odisseu epitomiza o disciplinado indivíduo burguês
masculino, prenunciando a repressão do corpo e o feminino que determina o desenvolvimento da
cultura ocidental. Como Douglas Kellner argumenta em um útil resumo, “o texto de Homero é lido
como uma jornada alegórica na qual Odisseu supera as forças naturais primitivas (imersão no prazer,
sexualidade, agressividade animal e violência, tribalismo brutal, entre outros) e afirma sua
dominação sobre o mundo mítico/natural. Em seu uso da esperteza e da enganação, sua atração à
autopreservação e recusa em aceitar o destino mítico, seu controle empresarial sobre seus homens e
seu poder patriarcal sobre sua esposa e outras mulheres, Odisseu é apresentado como uma
prefiguração do homem burguês que revela as conexões entre a autopreservação, a dominação da
natureza e o entrelaçamento do mito e o esclarecimento.”7

6
Ver também Harry Redner, In the Beginning Was the Deed: Reflections on the Passage of Faust (Berkeley: University of
California Press, 1982).
7
Douglas Kellner, Critical Theory, Marxism, and Modernity (Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1989), p.91.
Este entrelaçamento é exemplificado em um mote central de “A Dialética do Esclarecimento”, a
assertiva de que “mito já é esclarecimento; e esclarecimento reverte à mitologia.”8 Através do cego
exercício do domínio sobre a natureza, a razão é transformada em seu oposto, como exemplificado
no irracionalismo e na barbárie de uma sociedade capitalista moderna orientada pelos imperativos
duais da razão instrumental e do fetichismo de mercadoria. Em um influente capítulo sobre as
políticas da indústria cultural, Adorno e Horkheimer argumentam seu mundo mitológico dos sonhos,
commodities sedutoras, e promessas de uma diversão infinita são um dos principais meios através do
qual os indivíduos são acomodados a uma perspectiva de uma sociedade totalmente administrada e
regida por uma lógica do lucro e pela padronização. O feminino reprimido das forças libidinais e
estéticas retorna na forma dos engodos regressivos e engolfantes da cultura de massa moderna e da
sociedade de consumo, que comercializa prazeres inautênticos e uma pseudo-felicidade para a
aquiescência do status quo. Assim, para Adorno e Horkheimer, a racionalização “masculina” e o
prazer “feminino” são simplesmente os dois lados da mesma moeda, a lógica perfeitamente
consistente da dominação que constitui a subjetividade moderna através dos processos de
subjugação.
Enquanto as teses de Adorno e Horkheimer foram poderosas e influentes particularmente nos
círculos marxistas, também estiveram sujeitas a críticas em vários aspectos. Primeiramente, pode ser
argumentado que “A Dialética do Iluminismo” abraça uma filosofia altamente pessimista da história
que concebe a modernidade como uma espiral inexorável de uma repressão ainda maior. Tal visão
apocalíptica da história como dominação nega os aspectos multidimensionais e ambíguos do
desenvolvimento moderno e permite pouco espaço para a possibilidade de contradição, resistência,
ou mudança emancipatória dentro do que é apresentado como um sistema fechado. Particularmente,
enquanto ostensivamente garante uma importância chave ao domínio cultural, , ao final das contas,
reduz o mesmo a um papel essencialmente subsidiário como uma reflexão de lógicas administrativas,
econômicas e tecnológicas. Como consequência, não reconhece as dimensões produtivas, interativas
e intersubjetivas das formas simbólicas, as frequentemente diversas e contraditórias constelações de
discursos, histórias e imagens através das quais os indivíduos interpretam e dão sentido a suas vidas.
Ao ignorarem a agência hermenêutica dos sujeitos sociais e a riqueza polissêmica dos textos
culturais, Adorno e Horkheimer reproduzem a própria lógica da identidade que eles dizem desafiar
através da sua representação dos indivíduos modernos como uma massa passiva, homogênea e
alienada.
Em segundo lugar, o posicionamento de gênero, na tese de Adorno e Horkheimer, permanece
desconfortável e, ao final, insatisfatório da perspectiva feminista. Por um lado, sua análise enfatiza a
base fundamentalmente patriarcal da modernidade ocidental, como exemplificado na tirania de uma
lógica da identidade que requer uma negação da diferença autônoma. Aqui, como em muitas críticas
do logocentrismo emanadas do pensamento pós-estruturalista francês, o fantasma do feminino
cumpre um papel central, incorporando um princípio de resistência e uma alternativa utópica para as
restrições da razão dominante. A exclusão das mulheres da modernidade ocidental lhes permite
funcionar como um símbolo de escape a todos os sistemas alastrados de poder.9 Por outro lado, esta
mesma crítica arrisca a identificação continuada das mulheres com a outridade pré-simbólica em sua
ênfase sobre a masculinidade fundamental do social. Em particular, a confiança no paradigma
freudiano da repressão revela suas limitações ao encorajar uma equação recorrente do feminino com
uma natureza reprimida e indiferenciada. Deste modo, como Patricia Mills observa em seu
engajamento crítico contra “A Dialética do Esclarecimento”, a voz feminina das sereias está ligada à
canção do mundo sensual da natureza, o engodo do princípio do prazer.10 Mill continua
argumentando que tal associação do feminino com o não-racional e com o assimbólico não permite
uma concepção independente da identidade, agência e desejo femininos. A mulher é reduzida ao
Outro reprimido, libidinal e inexpressável da razão patriarcal. A possibilidade de explorar as relações
variadas e complexas das mulheres com os processos de mudança social é excluída por uma visão
difundida do Esclarecimento como emblemático de uma lógica totalizante de dominação patriarcal.

8
Theodor Adorno and Max Horkheimer, Dialectic of Enlightment (Londres: Verso, 1979), p.xvi.
9
Andrew Hewitt, “A Feminine Dialectic of Enlightment? Horkheimer and Adorno Revisited,” New German Critique, 56 (1992):147.
10
Patricia Jagentowicz Mills, Woman, Nature , and Psyche (New Haven: Yale University Press, 1987), p.89.
O texto de Adorno e Horkheimer aponta assim para algumas dificuldades que surgem na busca
por um único relato explanatório da lógica subjacente da história ocidental. Ao mesmo tempo em
que sua análise tem o mérito óbvio de reconhecer a natureza dominante masculina do
desenvolvimento moderno, a consequente visão da agência masculina e do desempoderamento
feminino impede qualquer consideração dos papéis femininos distintos e de suas contribuições ativas
para os processos históricos. Dentro dos limites de uma narrativa mítica única, é inevitavelmente o
homem que assume o papel do sujeito coletivo da história, enquanto a mulher pode existir somente
como o Outro, como o objeto e não como o sujeito da narrativa histórica. Um possível caminho para
esta resposta a esta lógica de exclusão é reverter os papéis de homem e de mulher através das
construção de um contra-mito da feminilidade emblemática; assim Mills segue oferecendo uma
leitura feminista da história de Medéia, que ela descreve como sendo o Odisseu feminino, como uma
alegoria poderosa da problemática do desejo feminino.11 Entretanto, como ela simultaneamente
reconhece, qualquer tentativa de encapsular as relações distintas das mulheres com a modernidade
através de um mito alternativo arrisca tornar-se uma nova forma de “reificação universal” em sua
suposição que a história das mulheres possa ser resumida e simbolizada por uma única imagem
globalizante de feminilidade. Manter-se na crença em um significado unívoco tanto da mulher como
da modernidade, tal estratégia não se orienta para a multiplicidade e diversidade das relações das
mulheres com os processos históricos.
Precisamente por esta razão, minha própria análise não tenta oferecer uma conclusão grandiosa
e filosófica da natureza generificada e da lógica da história ocidental. Em vez de criar um mito
feminista abrangente do moderno, escolhi uma outra abordagem, que objetiva desvelar as
complexidades da relação da modernidade com a feminilidade através da análise de suas
representações variadas e concorrentes. Entrelaçando a teoria cultural e a história cultural, eu me
dirijo a questões teóricas mais gerais sobre as políticas de gênero do moderno via uma leitura de um
conjunto diverso de textos europeus do final do séc. XIX e do início do século XX. Através de tal
estratégia de interpretação, espero poder analisar meu tópico de uma variedade de pontos de
vantagem, e prestar grande atenção aos vários genres* e formas através dos quais nossa ideia do
moderno foi constituída.
Ao optar por tal método, não pretendo sugerir que as formas de abstração e totalização são elas
próprias práticas repressivas ou inaceitáveis. Um grau de generalização é inevitável em qualquer
argumentação que pretende ir além do empirismo e da mera notação de particulares na construção de
estruturas significativas, conexões, e argumentos. Neste sentido, como argumenta Horst Ruthrof, há
uma dimensão teleológica erradicável dentro de qualquer estratégia interpretativa; ao contrário de
desaparecer dentro da teoria pós-estruturalista, a teleologia simplesmente transformou-se do texto
interpretado para as ferramentas da interpretação.12 Desta maneira, apesar de eu questionar a crença
de que a modernidade possa ser reduzida a um significado único e à lógica histórica, meus
argumentos são eles próprios percebidos pelos telos implicados na teoria e nas políticas feministas. A
diferença é de grau, mais do que de tipo, e minha escolha de uma abordagem de multiperspectivas
das políticas culturais da modernidade é ela mesma orientada por considerações pragmáticas mais do
que pelas exclusivamente teóricas. Teorias filosóficas abstratas do moderno são de pouca serventia
para uma análise feminista, na medida em que elas ou resumem as mulheres a uma lógica única e
unilinear da história ou ainda as posicionam fora dos discursos e instituições modernas em uma zona
de outridade ahistórica e assimbólica. Elas são assim incapazes de iluminar as relações complexas e
dinâmicas das mulheres com os diversos legados culturais, filosóficos e políticos da modernidade,
uma questão que, não deveria ser necessário apontar, retém uma relevância contínua e urgente em
nossa época.
Ainda, se existe qualquer legitimidade na reivindicação de que o feminismo se constitui em uma
forma de política dialógica, esta atenção a outridade certamente necessita estender-se a um
compromisso com as vozes do passado. Mais do que simplesmente subordinar a história das relações

11
Ibid.;PP.192-195.
12
Horst, Ruthrof, “The Hidden Telos:Hermeneutics in Critical Rewriting”. Semiotica, 100, 1 (1994): 90-91.
*Nota da tradutora: genre em inglês refere-se a uma categoria de composição artística, em música ou literatura marcada por um estilo,
forma e conteúdos próprios. Seria a expressão que utilizamos em português para gêneros musicais ou textuais.
de gênero dentro da metateoria da modernidade articulada a partir da vantagem do presente, a crítica
feminista precisa levar a sério as próprias compreensões passadas de mulheres e de homens de suas
posições dentro dos processos históricos e sociais. É aqui que a análise cultural torna-se ela própria,
como um meio de abordar a história do moderno através de uma investigação dos diversos modos
pelos quais a modernidade tem ela mesma sido representada. Ao examinar algumas destas mais
significativas e penetrantes representações, busco elaborar os significados móveis e cambiantes do
moderno como categoria de consciência cultural. Neste contexto não é de jeito algum óbvio, tal
como assumido por afirmações descuidadas dentro da teoria pós-moderna, que nossa condição
histórica atual nos libertou de tais dogmas e dos pontos cegos que nós tipicamente projetamos sobre
nosso passado moderno. Na verdade, a modernidade que frequentemente caricaturizamos como
sinônimo como uma lógica totalizante de identidade revela-se em um exame mais cuidadoso uma
multiplicidade de vozes e perspectivas que não podem facilmente ser sintetizada em uma única
ideologia ou visão de mundo unificada. Assim, um dos meus objetivos é enfatizar as complexidades
e ambiguidades do moderno contra o tratamento redutor que tem recebido de algumas teóricas e
alguns teóricos feministas e pós-modernistas.
Ao focar minha discussão em um período particular (o fin de siècle) e em um conjunto de
culturas interconectadas (França, Inglaterra, Alemanha), espero revelar algumas dessas dimensões
ambíguas do moderno na medida em que moldam um conjunto particular e limitado de contextos.
Dado meu interesse em tais particularidades, a questão surge como a utilidade contínua do moderno
como uma categoria de análise. Existem duas razões em particular porque escolhi para reter e
complicar, mais do que simplesmente abandonar, o termo. Em primeiro lugar, a ideia do moderno,
apesar de (ou talvez por causa de) seus significados polêmicos e indeterminados, serve para dirigir
nossa atenção para os processos de longa duração de mudança social, para as interconexões
multidimensionais e ainda frequentemente sistemáticas entre uma variedade de estruturas
econômicas, políticas e culturais. A investigação de tais estruturas é, do meu ponto de vista, uma
tarefa central para a teoria feminista, cuja crítica da história universal não deve ser confundida com
uma mera celebração de identidades plurais e uma fragmentação do social em locais isolados e
dispersos. Por isso a relevância contínua da categoria do moderno como meio de compreender os
processos de mudança estrutural de longa duração e igualmente importante, de avaliar o impacto
diferenciador, desigual e frequentemente contraditório de tais processos sobre grupos sociais
específicos. A interseção entre feminilidade e modernidade se representa diferencialmente através
das especificidades do contexto sócio-histórico.
Em segundo lugar, a ideia do moderno satura os discursos, as imagens, e as narrativas do final
do século XIX e início do século XX. Trata-se de uma era profundamente moldada pela lógica da
periodização, pela tentativa de situar a vida e a experiência individuais em relação a padrões
históricos mais amplos e a narrativas abrangentes de inovação e declínio. “Modernidade” assim se
refere não simplesmente a um conjunto substancial de fenômenos sociais _ capitalismo, burocracia,
desenvolvimento tecnológico, entre outros _ mas acima de tudo a experiências específicas (apesar de
frequentemente contraditórias) de temporalidade e de consciência histórica. Enquanto a experiência
do moderno da historicidade tem, por razões óbvias, recebido atenção significativa da crítica
marxista, tem sido menos sistematicamente explorada pelas feministas, cujas explorações da cultura
do século XIX tem sido primeiramente organizada em torno da distinção espacial entre o público e o
privado. Ao relacionar a teoria feminista à análise de diferentes representações de temporalidade e de
história, espero, então, elucidar alguns dos modos pelos quais a feminilidade e a modernidade têm
sido postas em conjunção por mulheres e homens. O gênero, como meu parágrafo de abertura
sugeriu, revela-se uma metáfora organizadora central na construção do tempo histórico. Na verdade,
muitos dos mitos da modernidade que impregnam o último fin de siècle podem ser detectados
novamente em nós mesmas, sugerindo que nós talvez ainda tenhamos que nos livrar do poder de
sedução das grandes narrativas.
O ponto inicial de minha análise desse modo foi enganosamente simples: um desejo de reler o
moderno através das lentes da teoria feminista. Inicio perguntando a mim mesma as seguintes
questões: como nossa compreensão da modernidade muda se ao invés de tomarmos a experiência
masculina como paradigmático, nós olharmos para os textos escritos primeiramente por e sobre
mulheres? E se aos fenômenos femininos, frequentemente vistos como tendo um status secundário
ou marginal, fosse dada uma importância central na análise da cultura da modernidade? Qual
difference tal procedimento acarretaria? As estórias resultantes de tal investigação não seriam,
suponho, completamente alienígenas ou irreconhecíveis, dado o complexo enredamento e a
imbricação mútua das histórias de mulheres e homens. Mas poderiam talvez muito bem trazer novas
luzes sobre aquela aparentemente esgotada questão, a estética e as políticas da modernidade.

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