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A Quem Pertence Deus?

: Razão e civilização no discurso da barbárie moderna1


LEÃO, Richard D. C. 2
Quando observamos as cenas de violência nos meios de comunicação presentes na
modernidade, ainda chegamos a nos indagar: como conseguimos absorver esta violência e ainda
dar a ela um caráter de normalidade?
Se analisarmos com parcimônia – virtude pouco presente nesta acelerada e
apressada modernidade – visualizaremos esta busca da normalidade da violência como uma
conseqüência da coisificação do outro e da completa ausência das relações de alteridade, onde
civilização e barbárie andam de mãos dadas, irmanadas e ao mesmo tempo atuando de forma a
tornar pejorativos os olhares que podem ser construídos e produzidos sobre o outro.
Ao fazer uma análise profunda sobre a obra “Dialética do Esclarecimento” 3, na obra
“O Discurso Filosófico da Modernidade”, Jürgen Habermas 4 nos indica que em parte as análises
de Adorno e Horkheimer estão corretas e que apenas confirmam ‘previsões’ feitas por Nietzsche
e Weber ao analisar o progresso da civilização humana, quanto ao caráter impositivo da razão
como forma de totalitarismo, mas que esta ‘razão instrumental totalitária’ (Grifo meu) não é a
razão realmente emancipatória e sim um instrumento de alienação e da construção da perda do
sentido do próprio ser humano que emerge na modernidade (HABERMAS, 1990).
Este ser humano moderno, totalmente desprovido do sentido, na verdade, nasce sob
o signo da própria violência como sentido de civilização e de imposição de uma visão de mundo
que o ‘liberte’ das amarras da ignorância ou do sentido mítico, fato este que Habermas, por
exemplo, nos mostra que o caráter que foi dado por Adorno e Horkheimer na sua ‘Dialética’ não
escapou do mítico e tampouco se dissociou dele, pois o homem moderno é um ser que está só e
abandonado, é um ser isolado de Deus e que se encontra sozinho e desamparado no mundo, pois
se sente completamente expulso da piedade divina e que luta constantemente para se impor ao
outro em um estado de guerra constante, em um sentido completamente hobbesiano.
Quando nos remetemos, por exemplo, à propriedade que fazemos da representação
da autoridade de Deus na terra, Francis Wolff 5 (2003) nos indica que os incidentes de 11 de
setembro de 20016 evocaram um debate sobre o sentido da cruzada do mundo civilizado e rico,
1
Trabalho apresentado no dia 10/05/07 como requisito de aprendizagem e avaliação constante da
disciplina Sociologia Contemporânea, ministrada pelo Prof. Dr. Daniel Chaves de Brito.
2
Aluno do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará
PPGCS/UFPA, sob a matrícula 2007146025.
3
ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução de Guido
Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
4
HABERMAS, Jürgen. O Entrosamento entre Mito e Iluminismo: Horkheimer e Adorno. In: O Discurso
Filosófico da Modernidade. Lisboa (Portugal): Publicações Dom Quixote, 1990.
5
WOLFF, Francis. Quem é Bárbaro? In: NOVAES, Adauto (org). Civilização e Barbárie. Rio de Janeiro:
Companhia das Letras, 2003.
6
Atentados suicidas contra os EUA, através do seqüestro de aviões comerciais e o conseqüente ataque
aos prédios do World Trade Center em Nova Iorque e o prédio do Pentágono, em Washington D. C.,
assumido pela rede Al-Qaeda, organizada e financiada pelo saudita Osama Bin-Laden, que tem como
objetivo erradicar todos os infiéis aos ensinamentos do islã, sob o caráter fundamentalista e impositivo de
uma ‘verdade’ muçulmana.
representado pelos EUA e pela Europa, sobre a população ‘pobre e sem civilização’
representada pelos grupos fundamentalistas muçulmanos, a partir do pressuposto colonialista e
coisificante de que estariam levando cultura e relações ‘civilizadas’ aos representantes do ‘Eixo
do Mal’, como ficaram conhecidas as três principais forças contrárias ao ‘bem’ ocidental, neste
caso os Talibãs do Afeganistão, os xiitas do Irã e os comunistas da Coréia do Norte.
Jean-François Mattei (2002)7 indica que a barbárie é resultante do avanço das
técnicas e da generalização da razão que levaram o homem a proclamar-se como o portador da
única forma de explicar ao mundo que sua visão era verdadeira e que a do outro era dotada de
um caráter não-civilizado e que, portanto, as luzes da razão deveriam ser transmitidas a eles
como forma de fazê-los compreender o mundo. Na verdade, esta é mais uma forma de
manifestação da barbárie que isola o outro ao ponto de querer unificar a sua visão e transforma-
la de forma a anular tudo aquilo que estes grupos sociais possuíam como seu patrimônio de
identidade, pois “...se a razão é bárbara, é porque põe indevidamente a pluralidade matizada do
mundo sob o jugo da Unidade, escorregando insensivelmente do Saber total para a Prática
totalitária” (MATTEI, 2002, 55).
Ao procurar responder quem é bárbaro, na verdade deveríamos nos perguntar: quem
é que possui a representação de Deus na terra?
Se analisarmos sob a ótica da modernidade, Deus deixou de ter um caráter
independente e criador de dependência humana como no período medieval e passou a ser
considerado um aspecto de imposição da verdade e da ‘civilização’ como forma de se
estabelecer uma relação de dominação sobre o outro, onde este assume um caráter
‘demonizado’ até a sua completa conversão ou ‘salvação’. Deus passa a ser uma propriedade
das instituições sociais e atua como o uso da razão instrumental a serviço da dominação e da
imposição de um estilo de vida totalitário e unificador, onde quem não segue esta tendência
passa a ser estigmatizado e tratado com profunda violência ao ponto até de se viabilizar guerras
e táticas de extermínio em nome Dele.
A barbárie, então, passa a ser rotinizada e utilizada sob o auspício de civilizatória,
onde o ser humano se percebe realizando a violência e banalizando-a, pois se Deus pode ser
visto sob o caráter não-emancipatório, formulador e justificador da violência sobre o outro
como forma de fazer valer a visão de uma civilização sobre a outra, chegamos ao ápice daquilo
que foi chamado por Huntington de ‘Choque das civilizações’, onde podemos compreender a
figura divina, que deveria ser alicerçada pelo amor e pela esperança como tábuas de salvação da
humanidade, como algo que demoniza, coisifica e busca a destruição do diferente.

7
MATTEI, Jean-François. A Barbárie Interior: Ensaio sobre o i-mundo moderno. São Paulo: UNESP,
2003.
Diante do exposto, poderíamos nos perguntar: até que ponto e de que forma a
humanidade chegou para a exclusão e extinção do outro e ainda dar a ela um caráter de
normalidade?
Chegamos à conclusão de que o uso e o domínio da figura de Deus é uma das
formas encontradas para justificar este estado de guerra hobbesiano constante que existe na
modernidade e que condiciona os seres humanos a barbárie total, onde nos percebemos sem
saída e sem sentido e, o que é pior, sem um catalizador que funcione como válvula de escape
para a construção de um sentido de existência no mundo, uma vez que o símbolo de amor e
obediência passa a ser utilizado com fins instrumentais com vistas à dominação e a coisificação
do outro, ou seja, nos percebemos desprovidos ou completamente privados do amor divino e
nos utilizamos dele como uma justificativa para a banalização da violência e do extermínio do
outro, através do uso do caráter ‘civilizador’, completamente sem esperanças no futuro da
humanidade, pois não sabemos se haverá um amanhã que garanta as nossas futuras gerações
uma sociedade menos violenta e mais fraterna.

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