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Fascismo potencial
A filósofa Marcia Tiburi aborda em seu texto a personalidade autoritária que se revela no dia-a-dia
TAGS: facismo, Marcia Tiburi, Poder, potência, submissão, Theodor W. Adorno

http://revistacult.uol.com.br/home/2012/04/fascismo-potencial/

A 1ª Divisão SS Leibstandarte SS Adolf Hitler (Foto: divulgação)

Marcia Tiburi
Theodor Adorno publicou em 1950 um estudo psicossociológico com a intenção de abordar o que
surgia naquela época como um novo tipo subjetivo. Hoje estamos acostumados com ele. A
característica fundamental do que se chamou de “personalidade autoritária” era a combinação
contraditória, num mesmo indivíduo, entre uma postura racional e idiossincrasias irracionais.
Na visão de Adorno, a pessoa marcada por esta personalidade seria um tipo individualista e
independente enquanto teria, ao mesmo tempo, uma propensão fortíssima a se submeter à
autoridade.
Naquele estudo, o objetivo era entender o que se chamou de tipo discriminatório. Queriam
desvendar os motivos do avanço do ódio ao outro em escala social que teria levado ao nazismo
alemão. Preocupavam-se com a mesma tendência nos EUA onde estavam exilados. O que chamaram
de “fascismo potencial” seria uma característica de indivíduos que teriam se mimetizado às
tendências antidemocráticas da sociedade.
Nessa formulação, o mais problemático seria entender o caráter antidemocrático comum em
indivíduos cultos porque se conceberia a priori que a educação leva a uma compreensão não apenas
racional, mas também “razoável” das condições sociais.
De onde viria a necessidade de submissão a um algoz, a um carrasco, a um líder paranoico, a uma
tendência autoritária por parte de quem poderia entender estes mecanismos?
Essa questão, colocada durante os anos da Segunda Guerra Mundial e que explicou o contentamento
de grande parte da população brasileira na época da ditadura militar, ainda é a nossa. Poderíamos
explicar o ódio ao outro na forma do racismo, da homofobia, do machismo, do ódio ao “comunista”,
pelo argumento da ignorância.
Mas não existe uma ligação direta entre o conhecimento como mera posse de informações eruditas e
o senso ético. Vemos intelectuais fascistas agindo em diversos países mascarando pela pompa
aristocrática do “conservadorismo”, o que muitas vezes não passa de ódio ao outro.
Poderíamos usar o estudo de Adorno para medir o nosso potencial fascista, ou seja, a nossa chance
de submetermo-nos à força de uma tendência política ou moral preponderante apenas porque surge
com mais força do que outras. Para entender por que tantos defendem aquilo que os oprime
enquanto ao mesmo tempo são opressores. Para entender vítima que elogia o sistema, que odeia
quem, parecendo mais vítima do que ela, denuncia a inverdade na qual ele se sustenta.
Ódio barato
Há um ódio barato vigente em nossa cultura. E ele é programado quando se dirige aos pobres, aos
tachados de loucos, às prostitutas, aos travestis, aos grupos de adolescentes que se vestem de modo
inusitado ou pertencem a uma tribo que não a das roupas de marcas sempre aceitas. Ódio barato
porque é fácil de sentir e dirige-se a quem é marcado como descartável pelo sistema econômico.
Ele se refere à todos aqueles que não se encaixam no econômico sistema mental de explicações pré-
estabelecidas ao qual o fascista serve. Daí que ele se realize com explicações econômicas e defenda-
se com um lema bem barato, um primor do senso comum: as coisas são como são e não podem ser
diferentes.
Por meio de um último exemplo relativo às ruas das grandes cidades, não será difícil entender como
pessoas “de bem”, corretas pagadoras de impostos e obedientes às leis possam ser portadoras desse
ódio barato. Ele aparece no mau-humor geral contra motociclistas que trabalham entregando
documentos e pizzas nas cidades grandes. Quem critica este tipo de trabalhador em geral se serve
dele.
Não é diferente o ódio crescente aos ciclistas por parte de uma população de “bons cidadãos” que
olham o mundo no limite das carcaças de seus carros. Ao ocuparem a rua com outra alternativa do
que a prescrita pela indústria da cultura automobilística, os motociclistas e ciclistas denunciam a
burrice do sistema.
O fascista, que só conhece a si mesmo enquanto se confunde com o sistema, sente-se ferido
narcisicamente pela imaginação dos outros que lhes denuncia a falsidade. Neste ponto, o fascista,
descobrindo-se subjetivamente morto, avança em seu ódio e pode nos atropelar.

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