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Nº 508 | Ano XVII | 7/8/2017

Populismo
segundo Ernesto Laclau
Chave para uma democracia radical e plural

Carlos A. Gadea David Howarth


Chantal Mouffe María Cecilia Ipar
Léo Peixoto Rodrigues Mayra Goulart da Silva
Gerardo Aboy Carlés Fernando da Costa
Myriam Southwell Patrícia Ferreira
Daniel de Mendonça Samuel Martins
Hugo Cancino Massimo Faggioli

Leia também
Leo Pessini ■ ■ Fernando Del Corona
Bruno Lima Rocha ■ ■ Ricardo Machado
EDITORIAL

O populismo segundo Ernesto


Laclau. Chave para uma
democracia radical e plural

A
complexa Argentina que levou Perón à Casa Federal de Pelotas, se desafia a pensar em outra repre-
Rosada não cabia nas categorias históricas do sentatividade a partir do pensador argentino.
marxismo. Na tentativa de compreender o fe- David Howarth, da Universidade de Essex, anali-
nômeno, Ernesto Laclau (1935-2014) deu um passo sa como Laclau explora o primado da política sem que
adiante nos debates sobre a luta de classes e passou a institucionalização cesse as potências de grupos que
a construir um conceito que o tornou notável: o po- se insurgem contra o poder hegemônico.
pulismo. É justamente no contexto do peronismo que María Cecilia Ipar, doutoranda em Ciência Política,
ele vê emergir um antagonismo pluralista em que os trabalha o conceito de democracia radical como uma
conflitos sociais convivem harmonicamente e, juntos, das formas possíveis para superar a ideia de crise.
geram demandas comuns, sendo capazes de se insur- Mayra Goulart da Silva, da Universidade Federal
gir como alternativa ao poder hegemônico instituído. Rural do Rio de Janeiro, reflete sobre a ideia do re-
Laclau passa a perceber na articulação do povo em sua presentante e como sua centralidade pode ser nociva.
multiplicidade o desencadeamento de outra perspecti-
Fernando Nogueira da Costa, professor da Uni-
va de democracia. É da resistência e da rebelião, e não
camp, analisa que uma estratégia de política econômi-
da exploração, que começa a política. Enfim, para La-
ca inspirada pelo populismo é aquela que se volta ao
clau, “o populismo é muito mais do que um estigma,
Bem-Estar Social.
uma anomalia, uma saída dos trilhos da normalidade;
é um conceito-chave para pensar a política”, constata Uma análise da constituição da teoria de Laclau a
Myriam Southwell, aluna do sociólogo argentino. partir da psicanálise é o tema da entrevista com Pa-
2 trícia do Prado Ferreira.
No momento em que se vive uma grave crise da re-
presentatividade em nosso país e alhures, suscitando Para o professor Samuel Martins, Estado Demo-
graves desafios à democracia contemporânea, a edi- crático de Direito e Direitos Humanos são conceitos
ção da revista IHU On-Line desta semana debate basilares para o populismo.
sobre a contribuição teórica de Ernesto Laclau com a Massimo Faggioli, professor da Universidade
colaboração de pesquisadores e pesquisadoras nacio- de Villanova, na Filadélfia, demonstra como o po-
nais e internacionais. pulismo pode se manifestar hoje de formas muito
A Razão Populista, importante obra de Laclau, é particulares.
tema do artigo do professor Carlos A. Gadea, da Também podem ser lidos nesta edição o comen-
Unisinos. tário de Fernando Del Corona sobre o filme
Chantal Mouffe, cientista política, que foi parcei- Frantz, de François Ozon, a crônica de Ricardo
ra do pesquisador argentino, participa do debate com Machado, a análise de Bruno Lima Rocha so-
um artigo em que defende a importância do conceito bre os paraísos fiscais depois da crise financeira de
de populismo. 2008 e o extrato de um artigo de Leo Pessini.
Léo Peixoto Rodrigues, professor de Sociologia e A todas e a todos, uma boa leitura e uma excelen-
Ciência Política, parte da política de nosso tempo para te semana.
destacar que o conceito de Laclau deve ser compreen-
dido para além da dualidade dos “tipos políticos ide-
ais”, como esquerda e direita.
Gerardo Aboy Carlés, da Universidade Nacional
de San Martín, analisa os limites e os avanços da te-
oria desenvolvida para refletir sobre outras correntes
ideológicas que marcaram e marcam a trajetória da
democracia no mundo.
A pedagoga Myriam Southwell destaca que o po-
pulismo não pode ser tomado como instrumental de
análise de fenômeno político transitório.
Hugo Cancino, da Aalborg University, destaca o
pensamento de Laclau como uma espécie de redesco-
berta da potência da rebeldia do povo. Imagem da capa:
Site Brasil Escola
Daniel de Mendonça, professor na Universidade

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Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Leo Pessini: Sete questões éticas chaves em torno do caso Charlie Gard
12 ■ Ricardo Machado: Inácio, Charlie e nós, à espera de uma Primavera vindoura
14 ■ Tema de Capa | Carlos A. Gadea: Ernesto Laclau e a “razão populista”
18 ■ Tema de Capa | Chantal Mouffe: O desafio populista
27 ■ Tema de Capa | Léo Peixoto Rodrigues: Nem só da esquerda ou da direita, o populismo
vem das multidões
28 ■ Tema de Capa | Gerardo Aboy Carlés: Um olhar sobre a América Latina para
compreender o populismo e a política da região
34 ■ Tema de Capa | Myriam Southwell: Populismo é conceito-chave para pensar a política hoje
42 ■ Tema de Capa | Hugo Cancino: Laclau e a redescoberta da rebeldia do povo
48 ■ Tema de Capa | Daniel de Mendonça: A concepção de uma nova representatividade a
partir do povo
55 ■ Tema de Capa | David Howarth: De política vibrante a instrumento de governança
62 ■ Tema de Capa | María Cecilia Ipar: Democracia radical é a grande aposta teórica de Laclau
70 ■ Tema de Capa | Mayra Goulart da Silva: Os limites do populismo e seu caráter pouco
emancipatório
78 ■ Tema de Capa | Fernando Nogueira da Costa: Economia populista é aquela voltada ao
Bem-Estar Social
82 ■ Tema de Capa | Patrícia Ferreira: A leitura de Freud para muito além da Psicologia das Massas
3
87 ■ Tema de Capa | Samuel Martins: Estado Democrático de Direito e Direitos Humanos
são basilares ao populismo
93 ■ Tema de Capa | Massimo Faggioli: Bergoglio e Trump: duas formasparticulares de populismo
98 ■ Cinema | Fernando Del Corona: Uma melodia interrompida
102 ■ Crítica Internacional | Bruno Lima Rocha: Paraísos fiscais, jurisdições secretas e o fluxo
financeiro mundial pós-2008
104 ■ Publicações | Leandro Rogério Pinheiro: Itinerários versados: redes e identizações nas
periferias de Porto Alegre
105 ■ Publicações | Henrique Costa: Fugindo para a frente: limites da reinvenção da política
no Brasil contemporâneo
107 ■ Outras edições

Diretor de Redação Atualização diária do sítio


Inácio Neutzling Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
(inacio@unisinos.br) Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch,
Anielle Silva, Victor Thiesen e William
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Ricardo Machado – MTB 15.598/RS
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Jornalistas
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conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Editoração Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
Gustavo Guedes Weber (jacintos@unisinos.br)

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TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

A fome no Brasil é uma das facetas das


desigualdades
Para compreender as razões que podem fazer o Brasil retornar ao
Mapa da Fome, é preciso olhar a situação do país “do ponto de vista
da política”.
Francisco Menezes é graduado em Economia e pós-graduado em Desenvolvimento Agrícola. É
pesquisador do Ibase e colaborador de ActionAid.

A reforma tributária tem que considerar a


distribuição de renda e o financiamento dos
serviços sociais
A reforma tributária é uma pauta de extrema relevância, que tem sido
uma “bandeira” tanto da direita quanto da esquerda, porque “decidir onde
o Estado arrecada é tão importante quanto decidir onde o Estado gasta”.
Pedro Rossi é graduado, mestre e doutor em Economia. Dirige o Centro de Estudos de Conjuntura
e Política Econômica – Cecon da Unicamp.

4
Os Povos da Amazônia e o colonialismo interno
Os conflitos envolvendo os povos da Amazônia, como comunidades indí-
genas e quilombolas, permanecem os mesmos, em certa medida, desde a
Colônia, tendo a demanda por terras tradicionalmente ocupadas e a exe-
cução de grandes obras como as principais adversidades.
Jane Felipe Beltrão é mestra em Antropologia Social e doutora em História. Leciona na Universida-
de Federal do Pará – UFPA.

“A alternativa ao neoliberalismo é... romper


com o neoliberalismo!”
Quando o assunto é a discussão de qual seria o melhor modelo de desenvolvi-
mento econômico para o Brasil e qual corrente teórica poderia servir de base para
pensar o futuro econômico e social do país, “é preciso dizer que existe muita con-
fusão nessas clivagens que, pretensamente, dividem o pensamento econômico”.
Marcelo Carcanholo é graduado em Ciências Econômicas, mestre e doutor em Economia. Leciona na UFF.

O ciclo progressista na América Latina acabou?


Entrevista especial com Julio Gambina
O entrevistado coloca em causa a noção de que houve o fim de um ciclo na
América Latina. “O que há e continua a ocorrer é uma disputa entre a ofensi-
va capitalista, o neoliberalismo, e diversos processos críticos com a pretensão
mais ou menos decidida de organizar outra ordem socioeconômica.”
Julio Gambina é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires e professor na
Universidad Nacional de Rosario – UNR

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Facebook desativa Primeiros embriões Os riscos da transgenia


inteligência artificial que humanos modificados “faça-você-mesmo”:
criou linguagem própria nos EUA bactérias imunes
aos antibióticos

Um grupo de pesquisadores A primeira tentativa de O sítio do IHU reproduz o


do Facebook desativou uma criar embriões humanos ge- vídeo em italiano da repor-
inteligência artificial que neticamente modificados nos tagem de Elena Dusi, pu-
deixou de falar em inglês e Estados Unidos foi realizada blicada por La Repubblica,
desenvolveu uma linguagem por uma equipe de pesqui- 2-8-2017.
própria para se comunicar. sadores em Portland, Ore- O vídeo está disponível em http://bit.
A inteligência artificial em gon. A tentativa, liderada por ly/2uim29h
questão foi criada pela Fair Shoukhrat Mitalipov, da Uni-
(Facebook AI Research, a di- versidade de Saúde e Ciência
visão de pesquisa da rede so- de Oregon, envolveu a modi-
cial) em junho para simular ficação do DNA de um grande
situações de negociação. número de embriões unicelu-
Reportagem de Gustavo Sumares, pu- lares com a técnica de edição
blicada por Olhar Digital em 31-7-2017, de genes CRISPR.
disponível em https://goo.gl/Z4jGtL.
Reportagem de Steve Connor, publi-
cada por MIT Technology Review em
26-7-2017, disponível em https://goo. 5
gl/naDEvS.

O Dia da Sobrecarga “Na vida moderna, “Temer acha que é


da Terra acontece cada precisaríamos de pelo Itamar, mas é Sarney”, diz
vez mais cedo: menos meia hora de cientista político
2-8-2017 silêncio por dia.”

“O dia 02 de agosto é o dia O frade dominicano Timo- O resultado da votação na


em que a civilização global thy Radcliffe faz parte da Câmara nesta quarta-feira
sai do verde do superávit comunidade dos Blackfriars, tem efeitos muito mais amplos
ambiental para entrar no em Oxford, e foi mestre-ge- do que o arquivamento da de-
vermelho do déficit ambien- ral da ordem de 1992 a 2001. núncia por corrupção passiva
tal”, alerta José Eustáquio “Eu acho que temos que ir contra o presidente Michel Te-
Diniz Alves, doutor em de- além de pensar a santidade mer. A afirmação é do filósofo
mografia e professor titular principalmente como obede- e cientista político da Unicamp
do mestrado e doutorado em cer a regras. A santidade é Marcos Nobre, um especialista
População, Território e Es- viver as virtudes, tornando- em PMDB. De acordo com ele,
tatísticas Públicas da Escola se virtuoso e forte. Eu não em sua face mais visível, a vo-
Nacional de Ciências Esta- creio que haja uma nova re- tação lançou o peemedebista
tísticas – ENCE/IBGE, em ligião, porque as antigas re- e seu governo no colo do cha-
artigo publicado por EcoDe- ligiões se tornam novas.” mado Centrão - uma bancada
bate, 31-7-2017. suprapartidária de parlamen-
Reportagem publicada por La Stampa,
23-7-2017, disponível no link http://bit.
tares de pouca expressão.
Leia artigo completo em http://bit.
ly/2vFdHfg. ly/2vojDJH. A entrevista é de Mariana Sanches
publicada por BBC Brasil, em 4-8-2017,
disponível em http://bit.ly/2fecOUS.

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AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Oficina Observasinos: IHU ideias A contemporaneidade


Economia solidária e Reforma ontem e hoje em debate. Intérpretes e
as políticas públicas – Relevância social obras A Queda do Céu.
e eclesial Palavras de um Xamã
Yanomami, de Bruce
Albert e Davi Kopenawa
15/ago 17/ago 21/ago
Horário Horário Horário
14h às 16h30min 17h30min às 19h 19h30min às 22h
Ministrantes Palestrante Apresentação
- Esp. Kellen Cristine Pasqualeto Prof. Dr. Walter Altmann – Prof. Dr. José Antonio Kelly
- Prof. Dr. Luiz Inácio Germany Faculdades EST Luciani – UFSC
Gaiger – Unisinos
- Ms Maria Suziane Gutbier Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Local Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Sala Ignacio Ellacuría e Campus Unisinos Campus Unisinos
Companheiros – IHU São Leopoldo São Leopoldo
Campus Unisinos
São Leopoldo

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A biopolítica como Oficina Observasinos: A quarta Revolução


teorema da bioética – Dados educacionais – Industrial.
O poder e o panoptismo educação e Consequências nos
da cidadania, segundo políticas públicas modos de produzir
M. Foucault e viver

21/ago 24/ago 28/ago


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 14h às 17h 19h30min às 22h
Conferencista Ministrante Palestrante
Profa. Dra. Olaya Fernan- Profa. Dra. Flávia Obino Prof. Dr. Eduardo Mario
dez – Universidad de La Corrêa Werle – Unisinos Dias – USP
Rioja – UR – Espanha
Local Local
Local Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Auditório Erico Verissimo, Companheiros – IHU Companheiros – IHU
– Setor D2 118 Campus Unisinos Campus Unisinos
Campus Unisinos São Leopoldo São Leopoldo
São Leopoldo

EDIÇÃO 508
ARTIGO

Um bebê que chama atenção do mundo:


um olhar bioético do drama de vida
do bebê britânico Charlie Gard!
Ricardo Machado


Estamos diante de uma situação dramática de colorido ‘cinza’, não mais “preto ou branco”, daí
a necessidade de um discernimento a respeito dos interesses e valores éticos em conflito! Va-
mos aos pontos críticos da reflexão bioética com indicação de algumas perspectivas de valores
a serem respeitados”, aponta Leo Pessini.
Durante aproximadamente um ano, Chris Gard e Connie Yates, pais de Charlie Gard, bebê bri-
tânico que na última sexta-feira, 4-8-2017, completaria seu primeiro ano de vida, lutaram contra
o Estado para garantir que seu filho, com uma rara doença genética, pudesse ser tratado em
outro país ou, ao menos, morrer em casa. Em artigo publicado nas Notícias do Dia na página do
IHU, Leo Pessini faz uma minuciosa retomada das questões que emergiram do caso e atraíram
a atenção de especialistas do mundo todo.
Leo Pessini, brasileiro, atualmente reside em Roma e é o atual Superior Geral dos Camilia-
nos. Pós-doutor em bioética pelo Instituto James Drane da Universidade de Pensilvânia (EUA),
8 é autor de inúmeras publicações no âmbito da bioética, humanização dos cuidados da saúde,
cuidados de final de vida, pastoral e espiritualidade em saúde.
O artigo na íntegra pode ser lido em http://bit.ly/2v01QHZ.

A seguir publicamos um extrato do artigo.

Sete questões éticas chaves em torno do caso Charlie Gard


Estamos diante de uma situação dramática de colorido “cinza”, não mais “preto ou branco”,
daí a necessidade de um discernimento a respeito dos interesses e valores éticos em conflito!
Vamos aos pontos críticos da reflexão bioética com indicação de algumas perspectivas de va-
lores a serem respeitados:
1) “Charlie é o símbolo da cultura do descarte”, foi a manchete de um jornal a respeito do caso.
Sim, milhões de bebês e crianças morrem no mundo por causa da pobreza, desigualdades frente a
oportunidades de vida e falta de condições mínimas de cuidados de vida e saúde. A marca primeira
de vida, quando chegam a nascer, é a da rejeição, do descarte e são condenados à morte. Estamos
diante da prática da mistanasia1, morte sofrida, não apenas de alguns, mas de multidões por causa
do mínimo indispensável para se viver. A indiferença crescente em relação a este verdadeiro “ho-
locausto silencioso” é espantosa. Não deixa de ser um lance de esperança esta sensibilidade para o
pequenino Charlie, ao tentar salvá-lo das garras da justiça, da medicina e do próprio Estado. Mas
não podemos esquecer das centenas de milhares de “Charlies” quem nem nome ganham e são
descartados como se nunca tivessem existido! Isto é, sem dúvida alguma, um sinal de que nossa
civilização envelheceu moralmente.
2) Perante um diagnóstico médico-científico de “incurável” e “intratável”, ou seja, “inexistência
de um tratamento de cura”, não significa que não se possa continuar a cuidar da pessoa, com um
infausto diagnóstico como este de Charlie. “Incurável” não pode ser sinônimo de “não ser possível de
ser cuidado”. Como fomos cuidados para nascer, necessitamos igualmente de cuidados para o partir
desta vida. E aqui a ética do cuidado se chama cuidados paliativos. Filosofia de cuidados integrais e

1 Mistanasia: No sentido de morte miserável, fora e antes da hora. (Nota da IHU On-Line)

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“Nos extremos, de um lado


temos a pretensa ‘autonomia
absoluta’, e de outro o
‘paternalismo infantilizante’”

holísticos da pessoa, nas suas necessidades físicas (controle da dor e alívio do sofrimento), psíquicas,
sociais e espirituais. Não visa abreviar a vida (=eutanásia), muito menos prolongá-la inutilmente,
submetendo-a a tratamentos fúteis (=distanásia), mas respeitar o processo natural até o último sus-
piro de vida. Lembramos Cicely Saunders, médica inglesa, pioneira dos cuidados paliativos moder-
nos, que do alto de sua ciência e sapiência dizia que “o sofrimento somente é intolerável quando não
é cuidado”. Um procedimento científico, alinhado com um cuidadoso respeito pela vida, enquanto
proporciona cuidados paliativos, também poderia, havendo chances de melhoria de qualidade de
vida, experimentar terapias alternativas.
3) Em casos em que estamos diante de uma pessoa em fase terminal e que sente muita dor e
sofrimento, o recurso à sedação, para que a pessoa não sofra, se faz necessário. O indigno é deixar
a pessoa a sofrer. Esta sedação poderá comprometer por vezes o sistema respiratório e consequen-
temente antecipar o final de vida física. Neste caso a intenção é a de aliviar a dor e não de abreviar
a vida, mas tem como consequência indireta a “abreviação da vida”. Isto não é eutanásia, segundo 9
a ética católica estamos diante de tradicional princípio ético do duplo efeito. Trata-se de uma inter-
venção que provoca, como consequência, dois efeitos: um efeito desejado, qual seja o do “alívio da
dor e sofrimento”, e o outro denominado “indireto” (“indesejado e tolerado”), que seria um desfe-
cho prematuro da vida nestas circunstâncias. A utilização da UTI (Unidade de Terapia Intensiva)
para o paciente em situação crítica, isto é, que tem real chance de recuperar a saúde. Não deveria
ser para o paciente em fase final, que se beneficia dos cuidados paliativos.
4) A respeito da interrupção de alimentação e água. A alimentação artificial mediante tubos
nasogástricos, em nenhum caso poderá ser considerada como terapia, ou tratamento. Não é tal,
devido à artificialidade do meio usado para administrá-la, dado que não se considera terapia,
por exemplo dar leite ou água a um neonato com o auxílio de uma chupeta ou uma colherinha.
Não é terapia, devido aos processos por meio dos quais estes alimentos são produzidos, já que
não se considera terapia o leite em pó, cuja produção igualmente depende de um longo e com-
plexo procedimento industrial mecanizado.
A nutrição parenteral não é uma terapia, ainda que seja prescrita pelo médico e seja administrada
“artificialmente”. Portanto interromper o fornecimento de água e alimentação não é como suspender
uma terapia, mas deixar alguém morrer de fome e sede, alguém num estado de extrema vulnerabi-
lidade e que nem tem condições de se alimentar por si mesmo. Prover alimentação, água e oxigênio
a uma pessoa nestas circunstâncias – três elementos fundamentais e básicos sustentadores da vida
humana – é um imperativo que a solidariedade humana nos obriga, não pode ser visto como “um
tratamento ou uma terapia médica opcional”.
5) Até quando investir ou prolongar a vida sem agredir? Existiriam limites a serem respeita-
dos? Questão dificílima e complexa, cuja abordagem exige um processo de discernimento éti-
co lúcido e cuidadoso. Se estamos diante de um diagnóstico médico de terminalidade de vida,
eticamente falando, deve-se evitar a chamada “obstinação terapêutica”, ou seja, a prática da
distanásia. Estas intervenções fúteis e inúteis somente acrescentariam mais sofrimento que vida
propriamente dita, tentando encontrar a “cura” da morte, já que esta é vista como sendo uma
doença para a qual poderíamos encontrar cura! Não seria muito mais saudável abraçar carinho-
samente com sabedoria nossa finitude humana? Existem limites que, ultrapassando-os, estamos
agredindo a “dignidade” do ser humano e fugindo ao bom senso! Aqui surge a necessidade de

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comitês de bioética, multidisciplinares, em que pareceres de vários pontos de vista para além do
científico e jurídico podem ser luz para sairmos deste pantanal de incertezas.
A terapia experimental deveria ser testada em Charlie? Seria benéfica ou não? A pesquisa sem
critérios éticos pode ser uma prática disfarçada de distanásia. Chega um momento em que a
decisão deixa de ser exclusivamente técnico-científica ou jurídica, para ser uma sofrida “decisão
a respeito de valores humanos”, em que a família não pode ser alijada, ou deixada de lado, como
no caso de Charlie.
6) Quem é que decide num caso como este, do bebê Charlie? Para nós de cultura latina, que valori-
zamos mais os sentimentos e a dimensão do coração, e da família, a decisão da corte britânica de tirar
o poder dos pais de decidir a respeito de seu filhinho não deixa de ser uma violência, não podemos
concordar. Neste caso quem decide a respeito da vida através de um consenso médico, hospital e
justiça, é o Estado. No caso Charlie, os juízes, neste momento, estão assumindo o lugar dos pais. A
vontade dos pais é importante, mas em última instância cabe à justiça a decisão final. Eles nem se-
quer são autorizados a transferir para outro hospital, como tentaram. Fiorella Nash, uma especialista
inglesa de bioética, avalia esta solução como injusta, e afirma que “os nossos filhos não pertencem
ao Estado e este não deveria usurpar um direito dos pais”. E acrescenta que “esta abordagem é típica
dos países anglo-saxões, talvez também porque a taxa de divórcios é muito alta e com frequência
cabe aos tribunais e Serviços Sociais do Governo decidirem a respeito da sorte das crianças”.
7) A história dramática do pequeno Charlie demonstra que estamos diante de uma realidade em
que somos desafiados a implementar o chamado “cuidado respeitoso”. A tão decantada e celebrada
autonomia (ou soberania) individual – valor importante para nós adultos e conscientes –, que em-
basa muitas solicitações de eutanásia ou de suicídio assistido em alguns países do hemisfério norte,
aqui simplesmente inexiste. Frente a situações de extrema vulnerabilidade, o que temos de priorizar
são ações de proteção e cuidado, e não o contrário. Em nome da autonomia, facilmente promovemos
ações de desproteção e de indiferença, e também por não querer aparentar paternalismo. A lei neste
10 sentido, que embasa uma decisão judicial, por vezes não deixa de ser a legalização desta indiferen-
ça. Nos extremos, de um lado temos a pretensa “autonomia absoluta”, e de outro o “paternalismo
infantilizante”. Nem um, nem outro extremo são danosos, desejamos uma abordagem de cunho be-
neficente e sensível, que assume de forma responsável e samaritana situações de máxima vulnerabi-
lidade humana, visando implementar um cuidado respeitoso. ■

Leia mais
- A morte cerebral e a doação de órgãos. Entrevista especial com Léo Pessini, publicada
nas Notícias do Dia de 24-7-2008, no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2vx5nPf.
- Um bebê que chama atenção do mundo: Um olhar bioético do drama de vida do bebê
britânico Charlie Gard! Artigo de Léo Pessini, publicado nas Notícias do Dia de 31-7-2017, ,
no sitio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2uyvxfS
- Novo código de ética médica: “a medicina brasileira entra no século XXI’. Entrevista
especial com Léo Pessini, publicada nas Notícias do Dia de 26-4-2010, no sitio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2uyVkV9.
- Padre Léo Pessini é eleito novo Superior Geral dos Camilianos, reportagem de Religión
Digital, reproduzida nas Notícias do Dia de 23-6-2014, no sitio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em http://bit.ly/2ve9Za3.
- Entidade elabora guia para orientar médicos de UTIs sobre ortotanásia. Reportagem
é do jornal O Estado de S.Paulo, reproduzida nas Notícias do Dia de 15-11-2011, no sitio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2vcacMw.

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Inácio, Charlie e nós, à espera
de uma Primavera vindoura
Ricardo Machado


Diante dos muitos dilemas, apostare- sereia 4.0, ou teremos discernimento para
mos em uma formação humanista ou estarmos atentos ao ensinamento de Iná-
simplesmente tecnocrática? Seguire- cio de Loyola?”, escreve Ricardo Machado.
mos a letra fria da lei e dos manuais ou se-
Ricardo Machado é jornalista e douto-
remos capazes de enxergar no genoma não
rando em Comunicação na Universidade
um código, mas uma criança, uma pessoa
humana? Ouviremos passivos o espírito do Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
tempo presente, bestificados pelo canto da Eis a crônica.

12 Em tudo, amar e servir. No dia 31 de julho se faz memória a Inácio de Loyola, falecido há 461
anos e autor da frase que abre este texto. Neste mesmo dia, em 2017, fez um dia que Charlie
Gard, o bebê britânico com uma raríssima doença genética, morreu. Na verdade, Charlie foi
assassinado e é aí que o terceiro personagem entra em cena: nós.
Charlie é mais vítima de nosso tempo e de nossa racionalidade que da enfermidade que o aco-
meteu. Somos capazes de decodificar um DNA e nele detectar a ausência de uma enzima res-
ponsável pela subdivisão das células (o que leva à insustentabilidade da vida do ponto de vista
biológico), mas somos incapazes de ver no lado de fora dessas células uma criança, uma vida, um
ser humano. No réquiem do tempo presente, estamos diante de uma partitura vazia, frente ao
holocausto do silêncio brutal que, ao mesmo tempo, abre as cortinas ao fascínio das partículas
subatômicas que se colidem umas às outras sob os pés das autoridades europeias, as mesmas
que determinaram o desligamento dos aparelhos que sustentavam a frágil vida de Charlie.
No mundo são milhares os Charlies, senão pela raridade da doença, pela indiferença à morte
em escala global. Arriscaria dizer que sofrem todos da mesma patologia: nasceram homo sacer. A
Europa ilustrada, com seus séculos e séculos de iluminismo e academicismo do qual nutrem um
tipo de orgulho quase xenófobo, opta, no mais das vezes, pela saída tecnocrática em detrimento da
humanista. A decisão da suprema corte europeia, no caso de Charlie, é emblemática. Mas podería-
mos levar em conta a política de imigração da União Europeia - UE e seus campos de concentração
do século 21, como a Selva de Calais, na França. Podemos ainda, olhando um pouquinho para trás,
lembrar a onda de suicídios na Espanha depois que os bancos começaram a despejar pessoas com
hipotecas em atraso e sob ameaça de despejo. Quem sabe a Grécia, berço da democracia no velho
mundo, que ignorou o voto popular contra os ajustes econômicos e cujo presidente curvou-se em
reverência ao sistema financeiro. Falemos da África, onde a profunda miséria e absoluto descaso
do mundo ocidental transforma a vida de centenas de milhares de pessoas em um suplício dos
quais temos pouca dimensão.
Sob o sol dos trópicos, uma jovem universidade molha os pés no oceano da revolução 4.0 e vê
diante de si um mar de desafios. Recentemente a Unisinos, que comemorou aniversário no dia
31 de julho e está localizada na região metropolitana de Porto Alegre/RS, recebeu a chancela
definitiva do Ministério da Educação - MEC para seu curso de Medicina. A novidade é rece-
bida com entusiasmo e alegria por quem faz parte da universidade ou é por ela rodeado. Há,

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Sob o sol dos trópicos, uma


jovem universidade molha os pés
no oceano da revolução 4.0 e vê
diante de si um mar de desafios’”

contudo, muitas perguntas a serem respondidas, sobretudo para aqueles que pendurarão na
parede de seus consultórios ou gabinetes os certificados de graduação com seus nomes sobre
o logotipo da Unisinos. Diante dos muitos dilemas, apostaremos em uma formação humanista
ou simplesmente tecnocrática? Seguiremos a letra fria da lei e dos manuais ou seremos capa-
zes de enxergar no genoma não um código, mas uma criança, uma pessoa humana? Ouviremos
passivos o espírito do tempo presente, bestificados pelo canto da sereia 4.0, ou teremos discer-
nimento para estarmos atentos ao ensinamento de Inácio de Loyola, fundador da Companhia
de Jesus?
Nem tente responder apressadamente estas perguntas. Dê tempo ao tempo, mas seja capaz de
ouvir o florescer da primavera. Se não conseguir, contemple os jardins da utopia em memória a
Charlie. Todo o caso, se encucar com as perguntas, siga a pista: em tudo, amar e servir. ■

13

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

Ernesto Laclau e a “razão populista”


Carlos A. Gadea | Edição: João Vitor Santos


A ‘razão populista’ pareceu concretizar a promessa de
abrir, para muitos, uma nova frente de debate e de práti-
ca política após a desorientação provocada pelo declínio
do marxismo e a sua capacidade de mobilização”, escreve
Carlos Gadea, ao analisar a obra de Ernesto Laclau.
Em artigo, o professor ainda destaca que “por outro lado, tam-
bém é possível considerar que a versão de hegemonia de Laclau
teve uma forte influência no desenvolvimento de certos Estudos
Culturais, possibilitando-se perceber uma íntima relação entre
os Estudos Culturais e o populismo. Povo e cultura popular fa-
riam parte da crítica cultural e do projeto dos Estudos Culturais,
devendo muito a Laclau e a sua ‘razão populista’ algumas das
noções analíticas chaves para o seu posterior desenvolvimento”.
O professor apresentará e debaterá a obra de Laclau no dia
05 de setembro, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU -
Campus Unisinos São Leopoldo. Saiba mais em ihu.unisi-
14 nos.br/eventos.
Carlos A. Gadea professor e pesquisador do Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos. Pós-doutora-
do pela Universidade de Miami (Centro de Estudos Latino-a-
mericanos). Doutor em Sociologia Política pela Universidade
Federal de Santa Catarina - UFSC. Recentemente foi professor
visitante na Universidade de Leipzig (Centro de Estudos Ibe-
ro-americanos), Alemanha. Entre suas obras publicadas estão
Realidade juvenil e violência intersubjetiva em bairros de Por-
to Alegre. Contextos, situações e perspectivas (Porto Alegre:
Cirkula, 2015) e Negritude e pós-africanidade: críticas das
relações raciais contemporâneas (Porto Alegre: Sulina, 2013).
Eis o artigo.

O principal interesse de Ernesto Laclau em A Razão Populista1 foi elaborar uma abordagem al-
ternativa para a compreensão do fenômeno do populismo. Reduzi-lo a uma mera ideologia, ao
simples produto do desenvolvimento irracional de certa retórica e prática política ou a um fenôme-
no sociocultural estreitamente identificado com a liderança carismática de um líder não contem-
pla, para Laclau, a realidade ou situação social que, na realidade, o populismo expressa. O populis-
mo seria muito mais do que uma mera série de adjetivações negativas (irracional, indefinível etc.)
sobre um determinado cenário e processo político. Para Laclau, a compreensão desse fenômeno
tinha recaído, equivocadamente, na análise do “conteúdo social” que expressava (interesses de
classe, ou outros interesses), permanecendo a incógnita com relação aos motivos pelos quais essa
forma de expressão política e social se tornava “necessária” em determinado contexto histórico e
cultural. A respeito, ele se perguntaria: por qual motivo algumas alternativas ou objetivos políticos
conseguem se expressar, unicamente, por meios populistas? “(...) o populismo, mais do que uma
tosca operação política e ideológica, não seria um ato performático dotado de racionalidade pró-
pria, isto é, em determinadas situações a vagueza (da sua definição) não seria precondição para a

1 São Paulo: Três Estrelas, 2013. (Nota da IHU On-Line)

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“A ideia de esfera pública,


para Laclau, está constituída
pelo conflito e pela divisão”

construção de significados políticos relevantes?” (Laclau, 2013 [2005]: 53).


A instigante obra de Ernesto Laclau intitulada A razão populista não pode ser entendida, uni-
camente, como uma reflexão a mais em torno do fenômeno sociopolítico conhecido como po-
pulismo, aquele fenômeno muito bem enraizado no senso comum. Tratar-se-ia, muito mais,
de uma inquietação teórica que sugere invocar o histórico fenômeno do populismo como uma
expressão social que se constitui na dimensão precisa da política, no “momento político” por ex-
celência, uma espécie de “instância” de constituição de “novas identidades políticas” que emer-
gem, eventualmente, nas recentes democracias modernas.
E como essas identidades se expressariam? Claramente inserido em certa tradição analítica
vinculada ao pós-estruturalismo, para Laclau as identidades políticas não preexistiriam em tor-
no a determinantes estruturais (como as classes sociais), senão que se materializariam através
de uma “construção discursiva” contingente, em torno a uma série de experiências sociais e
políticas que terminariam elaborando uma representação da sociedade; experiências que permi-
tiriam articular-se na figura de um “sujeito popular”, na figura do “povo”.
Evidentemente, esta “construção discursiva” sugere um cenário político decorrente da expres-
são de relações sociais antagônicas, de oposições de interesses discursivamente articulados para
15
nomear determinadas experiências: por exemplo, o “povo” em oposição à “elite”, os ricos contra
os pobres, “nós” em oposição a “eles”. Resulta evidente, desta maneira, que a ideia de esfera
pública, para Laclau, está constituída pelo conflito e pela divisão, caracterização societária ne-
cessária, inclusive, para a formação de uma política democrática e plural. Como se percebe,
Laclau não aderiria a uma ideia de esfera pública dominada pela argumentação racional à la
Habermas2, algo que acompanhou, durante os anos de 1990, grande parte das análises da so-
ciedade civil e do Estado no ambiente acadêmico. Por isso, e como bem afirma Beasley-Murray3
(2010), para Laclau o “povo” é um sujeito político constituído por meio da instância política do
populismo, mais do que um sujeito prévio a uma política populista que o expressaria.
O populismo se entenderia, assim, como uma lógica própria de constituição da política, e
o “povo”, uma matéria-prima discursivamente construída. O que, em definitivo, estaria im-
plícito nesta perspectiva é uma descrição da realidade social compreendida como uma “rede
discursiva” de identidades políticas (com seus interesses) materializadas em relações sociais
antagônicas. Estas identidades, constituídas nas diversas lutas e articulações, assumem o que
Laclau define como “posições de sujeito”, “posições” que emergem das relações políticas e ide-
ológicas de dominação constitutivas em uma formação social determinada.
Aqui, justamente, chega-se a uma noção chave em Laclau. A noção de “posições de sujeito”
seria central para compreender a dinâmica do populismo. Para Laclau, toda “posição de sujeito”
é, indefectivelmente, uma “posição discursiva”, que participa do caráter aberto do discurso e que
não fixa totalmente essas “posições” em um sistema fechado de diferenças. Dependendo, então,
da “posição” desse sujeito numa relação social particular, expressada na ampla rede de rela-
ções antagônicas pelas quais se vê atravessado, estar-se-ia produzindo um conflito social claro
e evidente, passível de poder descrever e estabelecer uma experiência política que conduziria à
construção da ideia de “povo”.

2 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, principal estudioso da segunda geração da Escola de Frankfurt. Herdando as discussões da Escola de Frank-
furt, Habermas aponta a ação comunicativa como superação da razão iluminista transformada num novo mito, o qual encobre a dominação burguesa
(razão instrumental). Para ele, o logos deve se construir pela troca de ideias, opiniões e informações entre os sujeitos históricos, estabelecendo-se o
diálogo. Seus estudos voltam-se para o conhecimento e a ética. (Nota da IHU On-Line)
3 Jon Beasley-Murray: é professor na Universidade de British Columbia, onde aborda áreas como Estudos Latino-Americanos e onde também é diretor
do programa de Estudos Latino-Americanos. Publicou uma ampla literatura sobre América Latina, política e cultura, bem como sobre a teoria social e
cultural. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

Assim, se as “posições de sujeito” são “posições discursivas” em uma determinada estrutura social,
deve-se compreender que essas “posições” indicam, também (e como já se antecipou), vários anta-
gonismos que surgem como efeito da heterogeneidade social. Já em uma obra bem anterior, Laclau e
Mouffe4 (1987) tinham atribuído uma enorme importância à noção de antagonismo devido ao fato de
que ela torna impossível pensar a “reconciliação final” de todo conflito de interesses. Sem resolução
final, todo e qualquer consenso, ao dizer de Laclau, é o resultado de uma “articulação hegemônica”.

Antagonismo e hegemonia
Têm-se, assim, duas noções importantes para compreender a abordagem sobre o populismo à la
Laclau: antagonismo e hegemonia. Em definitivo, um cenário político de diversos antagonismos
(de acordo com a diferença que as identidades ativam no estabelecimento de determinado confli-
to) sugere, continuamente, uma divisão do espaço social em duas partes (por exemplo, o “povo”
contra a “elite”), sendo isto uma precondição para o estabelecimento de uma dinâmica política po-
pulista. Para Laclau, o populismo seria a instância em que o “povo” se encontra, discursivamente,
com ele mesmo, a partir de nomear um cenário de conflito de antagonismos claros.
Mas, como bem antecipam Lopes5 e Mendonça6 (2013, 13-14), para que se possa falar em popu-
lismo é preciso algo mais do que reconhecer o espaço social antagonicamente dividido: “É preciso
que o campo popular se consolide a partir de um processo hegemônico de representação por meio
da produção de significantes vazios”. Trata-se, evidentemente, de uma “representação qualitativa
para além da mera soma de demandas articuladas” (Idem, 14), quer dizer, de um processo polí-
tico gerador de hegemonias obtidas através da “presença discursiva”. A respeito, Beasley-Murray
(2010) afirmaria, por exemplo, que pouco importaria, para a emergência de uma política populis-
ta, se as demandas sociais existentes e articuladas por determinadas identidades políticas tenham
sido satisfeitas ou não: as demandas fazem com que o “povo” e o ‘bloco de poder’ compartilhem
uma relação antagônica, obtenham “presença discursiva”, e quando estas ficam insatisfeitas se
conseguiria estabelecer, entre elas, uma “relação de equivalência”, relação que permitiria construir
16 o “povo” como ator histórico potencial. Representação hegemônica como inerente a uma “relação
de equivalência” política: chega-se, assim, a outra noção chave nas análises de Laclau.
A noção de hegemonia, de grande importância para compreender a “razão populista”, tem sido
uma preocupação constante nas diversas análises sociopolíticas de Laclau. Já presente no seu livro
Hegemonia e estratégia socialista7, a teoria da hegemonia apresenta a ordem social como o resul-
tado da coerção ou do consenso, sugerindo que a dominação se consegue por uma imposição vinda
de cima ou por meio de um contrato vindo de baixo (Beasley-Murray, 2010). Ou as pessoas se consi-
deram sob o domínio de um Estado transcendente, ou se submetem, voluntariamente, à hegemonia
dominante. Mas, como a pura coerção resulta verdadeiramente impensável, a teoria da hegemonia
termina sustentando que sempre existe um restante de consentimento desejado: as pessoas se man-
têm juntas submetendo-se a leis porque, de uma maneira ou outra, pensam o mesmo, da mesma
maneira. Como bem argumenta Beasley-Murray (2010), as pessoas prestam seu consenso porque
lhes resulta razoável fazê-lo, ou por puro “hábito”.
Em Laclau, a “razão populista” está ligada a esta teoria da hegemonia. As eventuais demandas so-
ciais surgidas concomitantemente às identidades políticas transcendem o seu significado, e passam
a fazer parte de uma “construção discursiva” nova. A hegemonia radica, justamente, na articulação
de elementos discursivos (demandas, críticas, ideologias) em que a “equivalência” (o ponto comum)
substitui a heterogeneidade, de forma tal que o “sujeito popular”, o “povo”, surge como princípio de
unificação. A instância populista, para Laclau, seria justamente essa: a operação política por excelên-
cia é sempre a construção de um “povo”, e esta construção implica, também, a elaboração de fron-
teiras discursivas que o “povo” pressupõe e dá início a um novo jogo hegemônico. Populismo e he-
gemonia são, para Laclau, o mesmo; e o populismo é sinônimo de política (Beasley-Murray, 2010).

4 Chantal Mouffe: filósofa belga, autora de Dimensions of radical democracy (London: Verso, 1992) e The democratic paradox (London: Verso, 2000).
Mouffe era parceira de Ernesto Laclau. Nesta edição da IHU On-Line, Mouffe assina um artigo. O sítio do IHU vem publicando diversos textos da e
sobre a autora. Entre eles A influência de Laclau e Mouffe no Podemos: hegemonia sem revolução, disponível em http://bit.ly/2sY0vAL; “O kirchnerismo é
uma fonte de inspiração”. Entrevista com Chantal Mouffe, disponível em http://bit.ly/2t284r8; e “Existe uma necessária dimensão populista na democracia”.
Entrevista com Chatal Mouffe, disponível em http://bit.ly/2vFPl4Y, (Nota da IHU On-Line)
5 Alice Casimiro Lopes: é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Atualmente é professora associada da Faculdade
de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e procientista nesta mesma instituição. (Nota da IHU On-Line)
6 Daniel de Mendonça: é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, possui mestrado
e doutorado em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e estágio pós-doutoral em Ideology and Discourse Analysis
na University of Essex. É professor na Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Nesta edição da IHU On-Line, é um dos entrevistados que reflete sobre
a obra de Ernesto Laclau. (Nota da IHU On-Line)
7 São Paulo: Intermeios, 2015. (Nota da IHU On-Line)

7 DE AGOSTO | 2017
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Mas a noção de populismo, na perspectiva de Laclau, constrói uma imagem demasiadamente sim-
plificada da sociedade. Estabelece, por exemplo, um cenário excessivamente simplificado em torno
de dicotomias por vezes forçadas, em torno a visualizar antagonismos que, mais do que qualquer
outra coisa, apresentam-se como se fossem inerentes da política tout court. Sobre seus críticos em
torno a sua eventual simplificação do espaço político, Laclau se perguntaria: “(...) não seria essa lógi-
ca de simplificação e de tornar alguns termos imprecisos o que constitui a própria condição da ação
política”? (Laclau, 2013 [2005], 54). Imprecisão e vaguidade não podem ser erradicadas da esfera
pública, algo que Laclau considera como precondição para a posterior construção de significados
políticos. O populismo é, em definitivo, um “significante vazio”, e este o grau zero da política.
Para finalizar, pode-se considerar que a “razão populista” pareceu concretizar a promessa de
abrir, para muitos, uma nova frente de debate e de prática política após a desorientação provocada
pelo declínio do marxismo, e a sua capacidade de mobilização. Por outro lado, também é possível
considerar que a versão de hegemonia de Laclau teve uma forte influência no desenvolvimento de
certos Estudos Culturais, possibilitando-se perceber uma íntima relação entre os Estudos Cultu-
rais e o populismo. Povo e cultura popular fariam parte da crítica cultural e do projeto dos Estudos
Culturais, devendo muito a Laclau e a sua “razão populista” algumas das noções analíticas chaves
para o seu posterior desenvolvimento. Transcende aos interesses destes comentários sobre a obra
de Laclau se perguntar se, de fato, os Estudos Culturais seriam, também, um projeto político po-
pulista. A resposta a isto pode ser motivo, quem sabe, de futuras reflexões.■

Referências
Beasley-Murray, Jon (2010), Poshegemonía. Teoría política y América Latina. Paidós,
Buenos Aires.
17
Laclau, Ernesto (2013 [2005]), A Razão Populista, Três Estrelas, São Paulo.
Lopes, Alice & Mendonça, Daniel de (2013), “O populismo na visão inovadora de Laclau”, IN:
Laclau, Ernesto, A Razão Populista, Três Estrelas, São Paulo.
Laclau, Ernesto & Mouffe, Chantal (1987), Hegemonía y estrategia socialista. Hacia una ra-
dicalización de la democracia, Siglo XXI, Madrid.

Ernesto Laclau
Ernesto Laclau nasceu em Buenos Aires, em 1935. Faleceu em Sevilha, na Espanha, em 2014. Teórico político, foi
pesquisador e professor da Universidade de Essex, no Reino Unido. Recebeu o título de Doctor Honoris Causa de di-
versas universidades, como Universidade de Buenos Aires,
Universidade Nacional de Rosário, Universidade Católica
de Córdoba, Universidade Nacional de San Juan e Univer-
sidade Nacional de Córdoba.
O pensamento de Laclau e de sua companheira, a cien-
tista política belga Chantal Mouffe, é geralmente definido
como pós-marxista. Ambos participaram do movimento
estudantil dos anos 1960 e trabalharam com a hipótese de
aliança com a classe trabalhadora para criar uma nova so-
ciedade. Posteriormente, Laclau e Mouffe abandonaram
o determinismo econômico marxista e a luta de classes
e passaram a enfatizar a importância de se desencadear
Ernesto Laclau | Foto: Wikimedia Commons
uma democratização radical e um antagonismo pluralista
no qual se possam expressar harmonicamente os conflitos
sociais. As ideias de Laclau e Chantal Mouffe constituem uma das principais influências intelectuais do Podemos,
na Espanha, e do Syriza, na Grécia.
Entre seus livros mais citados, destacam-se Hegemonia e Estratégia Socialista: por uma democracia radical e
plural (São Paulo: Intermeios, 2015) e A Razão Populista (São Paulo: Três Estrelas, 2013).

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

O desafio populista
Chantal Mouffe | Tradução: André Langer


Estou convencida de que nos próximos anos o eixo cen-
tral do conflito político vai girar entre populismo de di-
reita e populismo de esquerda, e é imprescindível que
os setores progressistas entendam a importância de se en-
volverem nessa luta. Conceber um populismo de esquerda
requer a necessidade de visualizar a política de maneira que
se reconheça seu caráter guerrilheiro (partisano). Devemos
descartar a perspectiva racionalista dominante no pensa-
mento político liberal-democrático e reconhecer a impor-
tância dos afetos comuns (o que chamo de ‘paixões’) na
formação das identidades coletivas. É através da constru-
ção de outro povo, de uma vontade coletiva que resulte da
mobilização das paixões em defesa da igualdade e da justiça
social, que se pode combater a política xenófoba promovida
pelo populismo de direita”, escreve Chantal Mouffe, em ar-
tigo enviado à IHU On-Line.
Chantal Mouffe, de origem belga, é cientista que atua na
18 área da teoria política. Estudou em Lovaina, Paris e Essex e
tem trabalhado em várias universidades na Europa, Améri-
ca do Norte e América Latina. Foi professora convidada em
Harvard, Cornell, Princeton e no Centre National de la Re-
cherche Scientifique. De 1989 a 1995, foi diretora de depar-
tamento no Collège International de Philosophie, em Paris.
Atualmente, é Professora de Teoria Política na Universidade
de Westminster, no Reino Unido. Foi companheira de Er-
nesto Laclau, com quem desenvolveu inúmeros trabalhos,
com destaque para o desenvolvimento da análise do discur-
so, ou Essex School of Discourse Analysis. Entre seus livros
publicados em português, destacamos Hegemonia e estraté-
gia socialista – por uma política democrática radical (São
Paulo: Intermeios, 2015), escrita em parceria com Laclau, e
Sobre o Político (São Paulo: Martins Fontes, 2015).
Eis o artigo.

Já faz um bom tempo que múltiplas vozes nos alertam contra o perigo do populismo, que
é apresentado como uma ‘perversão da democracia’. Mas com a vitória do Brexit1 no Reino
Unido e a inesperada popularidade de Trump2 nos Estados Unidos, a denúncia do populismo

1 Brexit: a saída do Reino Unido da União Europeia é apelidada de Brexit, palavra-valise originada na língua inglesa resultante da fusão das palavras
Britain (Grã-Bretanha) e exit (saída). A saída do Reino Unido da União Europeia tem sido um objetivo político perseguido por vários indivíduos, grupos de
interesse e partidos políticos, desde 1973, quando o Reino Unido ingressou na Comunidade Econômica Europeia, a precursora da UE. A saída da União é
um direito dos estados-membros segundo o Tratado da União Europeia. Em 2016, a saída foi aprovada por referendo realizado em junho 2016, no qual
52% dos votos foram a favor de deixar a UE. O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, na seção Notícias do Dia de seu site, vem publicando uma série de
análises sobre o tema. Entre elas, A alma da Europa depois do Brexit, artigo de Roberto Esposito, publicado no jornal La Repubblica e reproduzido nas
Notícias do Dia de 1-7-2016, disponível em http://bit.ly/2gazMuF; e O Brexit e a globalização, artigo de Luiz Gonzaga Belluzzo, publicado por CartaCapi-
tal e reproduzido nas Notícias do Dia de 12-7-2016, disponível em http://bit.ly/2eY4F68. Confira mais textos em ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line)
2 Donald John Trump (1946): é um empresário, ex-apresentador de reality show e atual presidente dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump
foi eleito o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republicano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton no número de delegados
do colégio eleitoral; no entanto, perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o protecionismo norte-americano, por onde passam questões
econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The Trump Organization e fundador

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“É imperativo fazer uma análise serena do


estado atual das nossas democracias”

tornou-se mais estridente. Os membros do establishment parecem ter começado a se preocu-


par com o potencial descontentamento social que até agora tinham menosprezado. Eles nos
bombardeiam com declarações alarmistas que clamam que o populismo tem que ser elimina-
do, porque significa uma ameaça mortal para a democracia. Eles acreditam que a demonização
do populismo e o medo de um possível retorno do ‘fascismo’ serão suficientes para esconjurar
o crescimento de partidos e movimentos que desafiam o consenso neoliberal.
É importante enfrentar essa histeria antipopulista examinando o que esteve em jogo na
emergência dos movimentos chamados ‘populistas’ nos últimos anos na Europa. É impe-
rativo fazer uma análise serena do estado atual das nossas democracias a fim de visualizar
a maneira de fortalecer as instituições democráticas contra os perigos aos quais estão
expostas. Esses perigos são reais, mas provêm do abandono, por parte dos partidos que
se apresentam como ‘democráticos’, dos princípios de soberania popular e igualdade, que
são constitutivos de uma política democrática. Com a ascensão do neoliberalismo, esses
princípios ficaram relegados a categorias zumbis, e nossas sociedades entraram em uma
era ‘pós-democrática’.

I
19
O que se entende exatamente por ‘pós-democracia’? Vamos começar por esclarecer o
significado de ‘democracia’. Como se sabe, etimologicamente, democracia provém do gre-
go demos/kratos e significa poder do povo. Trata-se de um princípio de legitimidade que
não se exerce em abstrato, mas através de determinadas instituições. Quando, na Europa,
falamos de ‘democracia’ referimo-nos a um modelo específico: o modelo ocidental, que
resulta da inscrição do ideal democrático em um contexto histórico particular. Esse mode-
lo – que recebeu uma variedade de nomes: democracia moderna, democracia representa-
tiva, democracia parlamentar, democracia constitucional, democracia liberal, democracia
pluralista – caracteriza-se pela articulação entre duas tradições diferentes. Por um lado,
a tradição do liberalismo político: o Estado de Direito, a separação dos poderes e a defesa
da liberdade individual; por outro lado, a tradição democrática, cujas ideias centrais são
a igualdade, a identidade entre governantes e governados e a soberania popular. Ao con-
trário do que se diz às vezes, não existe uma relação necessária entre estas duas tradições,
mas apenas uma articulação histórica contingente que – como mostrou C. B. Macpherson 3
– se materializou no século XIX através das lutas conjuntas de liberais e democratas con-
tra os regimes absolutistas.
Alguns autores, como Carl Schmitt 4, afirmam que essa articulação – que está na origem
da democracia parlamentar – produziu um regime inviável, já que o liberalismo nega
a democracia e a democracia nega o liberalismo; outros, seguindo Jürgen Habermas 5,
sustentam a cooriginalidade entre os princípios da liberdade e da igualdade. Schmitt tem
razão, sem dúvida, ao assinalar a presença de um conflito entre a ‘gramática’ liberal da

da Trump Entertainment Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal, riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná-lo famoso.
(Nota da IHU On-Line)
3 Crawford Brough Macpherson (1911-1987): cientista político canadense, autor de A democracia liberal. Origens e evolução. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1978, e considerado teórico da democracia liberal. (Nota da IHU On-Line)
4 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo político e professor universitário alemão. É considerado um dos mais significativos e controversos especia-
listas em direito constitucional e internacional da Alemanha do século 20. A sua carreira foi manchada pela sua proximidade com o regime nacional-
socialista. O seu pensamento era firmemente enraizado na teologia católica, tendo girado em torno das questões do poder, da violência, bem como da
materialização dos direitos. (Nota da IHU On-Line)
5 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, principal estudioso da segunda geração da Escola de Frankfurt. Herdando as discussões da Escola de Frank-
furt, Habermas aponta a ação comunicativa como superação da razão iluminista transformada num novo mito, o qual encobre a dominação burguesa
(razão instrumental). Para ele, o logos deve se construir pela troca de ideias, opiniões e informações entre os sujeitos históricos, estabelecendo-se o
diálogo. Seus estudos voltam-se para o conhecimento e a ética. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

igualdade – que postula a universalidade e a referência à ‘humanidade’ – e a ‘gramática’


da igualdade democrática, que requer a construção de um povo e a fronteira entre um
‘nós’ e um ‘eles’. Mas eu penso que ele se equivoca ao apresentar esse conflito em termos
de uma contradição que leva inelutavelmente a democracia liberal pluralista à autodes-
truição. Em La paradoja democrática 6 propus conceber a articulação dessas tradições
– certamente, em última análise, irreconciliáveis – sob o modo de uma configuração pa-
radoxal, como o locus de uma tensão que define a originalidade da democracia liberal e
garante seu caráter pluralista.
A lógica democrática de construir um povo e defender práticas igualitárias é necessária
para definir um demos e subverter a tendência ao universalismo abstrato do discurso libe-
ral; mas a articulação com a lógica liberal permite desafiar as formas de exclusão que são
inerentes às práticas políticas de determinar o povo que deve governar. A política liberal
democrática consiste em um constante processo de negociação – por meio de diferentes
articulações hegemônicas – dessa tensão constitutiva. Essa tensão, que se expressa em
termos políticos pela fronteira entre direita e esquerda, só pode se estabilizar temporaria-
mente mediante negociações pragmáticas entre forças políticas, e estas negociações sem-
pre estabelecem a hegemonia de uma delas. Revisitando a história da democracia liberal
pluralista, constatamos que em algumas ocasiões predominou a lógica liberal e em outras
a lógica democrática, mas as duas lógicas permaneceram ativas, e a possibilidade de uma
negociação agonística entre direita e esquerda – típica do regime liberal – democrático –
sempre se manteve.

II
Se se pode qualificar a situação atual como ‘pós-democracia’, é porque nos últimos anos, com
o enfraquecimento dos valores democráticos em decorrência da implementação da hegemo-
nia neoliberal, essa tensão constitutiva foi eliminada e desapareceram os espaços agonísticos
20 onde diferentes projetos de sociedade podiam se confrontar. No terreno político, essa evolu-
ção manifestou-se através daquilo que En torno a lo político propus chamar de ‘pós-política’
para indicar a diluição da fronteira política entre direita e esquerda. Com esse termo refiro-me
ao consenso estabelecido entre os partidos de centro-direita e de centro-esquerda sobre a ideia
de que não havia alternativa à globalização neoliberal.
Sob o pretexto da ‘modernização’ imposta pela globalização, os partidos social-democratas
aceitaram os diktas do capitalismo financeiro e os limites que impunham às intervenções do
Estado nas políticas redistributivas. O papel dos parlamentos e das instituições que permi-
tem aos cidadãos influir sobre as decisões políticas foi drasticamente limitado e os cidadãos
foram despojados da possibilidade de exercer seus direitos democráticos. As eleições já não
oferecem nenhuma oportunidade de decidir sobre verdadeiras alternativas por meio dos
partidos tradicionais de ‘governo’. A política passou a ser uma mera questão técnica de ges-
tão da ordem estabelecida, um domínio reservado à competência de peritos.
A única coisa que a pós-política permite é a alternância bipartidarista no poder entre os
partidos de centro-direita e de centro-esquerda. Todos aqueles que se opõem a esse ‘con-
senso no centro’ são vistos como ‘extremistas’ e qualificados de ‘populistas’. A soberania
popular foi declarada obsoleta e a democracia foi reduzida ao seu componente liberal. Assim
se foi enfraquecendo um dos pilares do ideal democrático: o poder do povo. Certamente,
ainda de fala de ‘democracia’, mas apenas para indicar a presença de eleições e a defesa dos
direitos humanos.
Essas mudanças em nível político ocorreram no contexto de um novo modo de regulação
do capitalismo, no qual o capital financeiro ocupa um lugar central. Com a financeiriza-
ção da economia, produziu-se uma grande expansão do setor financeiro em detrimento da
economia produtiva. Sob os efeitos conjuntos da desindustrialização, da promoção de mu-
danças tecnológicas e de processos de relocalização para países onde a força de trabalho
era mais barata, houve uma redução dos postos de trabalho. As políticas de privatização
e desregulação também contribuíram para criar uma situação de desemprego endêmico, e
os trabalhadores encontraram-se em condições cada vez mais difíceis. Se acrescentarmos

6 MOUFFE, Chantal. En torno a lo político. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007. (Nota da autora)

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a isso os efeitos das políticas de austeridade que foram impostas depois da crise de 2008,
podemos entender as causas do aumento exponencial das desigualdades que presenciamos
em vários países europeus, particularmente no sul. Essa desigualdade já não afeta apenas
as classes populares, mas também boa parte das classes médias, que entraram em um pro-
cesso de pauperização e precarização. Os partidos social-democratas acompanharam esta
evolução e em muitos lugares inclusive exerceram um papel importante na instauração das
políticas neoliberais. Isto contribuiu para que o outro pilar do ideal democrático – a defesa
da igualdade – também tenha sido eliminado do discurso liberal-democrático. O que reina
agora é uma visão liberal individualista que celebra a sociedade de consumo e a liberdade
oferecidas pelos mercados.

III
O resultado da hegemonia neoliberal foi a instauração, tanto em nível socioeconômico
como político, de um regime verdadeiramente ‘oligárquico’. É precisamente essa oligarqui-
zação das sociedades europeias que dá origem ao sucesso dos partidos populistas de direita.
De fato, são, muitas vezes, os únicos que denunciam essa situação e prometem voltar a dar
ao povo o poder que lhe foi confiscado pelas elites e defendê-lo contra a globalização. Tradu-
zindo os problemas sociais em chave étnica, em muitos países chegaram a articular em um
vocabulário xenófobo as demandas dos setores populares, as quais foram ignoradas pelos
partidos de centro por serem incompatíveis com o projeto neoliberal. Os partidos social-
democratas, prisioneiros de seus dogmas pós-políticos e resistentes a admitir os seus erros,
negam-se a reconhecer que muitas dessas demandas são demandas democráticas legítimas,
às quais é preciso dar uma resposta progressista. Nisso reside sua incapacidade de apreen-
der a natureza do desafio populista.
Para poder apreciar esse desafio é necessário rejeitar a visão simplista disseminada pelos
meios de comunicação, que tacham o populismo de pura demagogia. A perspectiva analítica 21
desenvolvida por Ernesto Laclau nos oferece instrumentos teóricos importantes para abor-
dar essa questão. Ele define o populismo como uma forma de construir o político, que con-
siste em estabelecer uma fronteira política que divide a sociedade em dois campos, apelando
à mobilização dos ‘de baixo’ frente ‘aos de cima’. Surge quando se busca construir um novo
sujeito da ação coletiva – o povo –, capaz de reconfigurar uma ordem social vivida como in-
justa. Não é uma ideologia e não se pode atribuir a ele um conteúdo programático específico.
Também não é um regime político. É uma maneira de fazer política que pode tomar várias
formas de acordo com as épocas e os lugares e é compatível com uma variedade de formas
institucionais. O populismo refere-se à dimensão da soberania popular e da construção de
um demos que é constitutiva da democracia. Ora, é justamente essa dimensão que foi des-
cartada pela hegemonia neoliberal. E é por isso que a luta contra a pós-democracia requer
uma intervenção política de tipo populista.

IV
O ‘momento populista’ que estamos presenciando nos oferece a oportunidade de restabe-
lecer uma fronteira política que permita recriar a tensão agonista própria da democracia. De
fato, vários partidos populistas de direita já o estão fazendo, e é o que explica seus avanços
recentes. A força do populismo de direita se explica precisamente porque foi capaz, em mui-
tos países, de traçar uma fronteira e de construir um povo para proporcionar uma tradução
política às diversas resistências ao fenômeno da oligarquização induzido pela hegemonia
neoliberal. Seu atrativo é particularmente notável nas classes populares, mas também está
prosperando nas classes médias afetadas pelas novas estruturas de dominação ligadas à
globalização neoliberal.
Infelizmente, até agora, a resposta das forças progressistas não esteve à altura do desafio.
Elas se deixaram influenciar pelos discursos das forças do establishment, que desqualificam
o populismo para poder manter sua dominação. Seguem defendendo estratégias políticas
tradicionais, inadaptadas para a profunda crise de legitimidade que atinge os regimes libe-
ral-democráticos. Esta crise é a expressão de demandas muito heterogêneas, que não podem
ser formuladas de maneira adequada através da clivagem direita/esquerda, tal como é con-
figurada tradicionalmente. Ao contrário das lutas características da época do capitalismo

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TEMA DE CAPA

fordista, quando existia uma classe operária defendendo seus interesses específicos, no ca-
pitalismo neoliberal pós-fordista surgiram resistências em muitos lugares fora do proces-
so produtivo. Essas demandas já não correspondem a setores sociais definidos em termos
sociológicos e por sua localização na estrutura social. Muitas demandas são reivindicações
que tocam questões que têm a ver com a qualidade de vida e que possuem um caráter trans-
versal. Também adquiriram uma crescente centralidade as demandas ligadas às lutas contra
o sexismo, o racismo e outras formas de dominação. Para articular essa diversidade em uma
vontade coletiva, a fronteira tradicional esquerda/direita já não dá mais conta. Unir essas
diversas lutas exige o estabelecimento de uma sinergia entre o movimento social e formas
partidárias com a finalidade de construir um ‘povo’ e para isso se requer uma fronteira cons-
truída de maneira populista.
Isso não quer dizer que a oposição esquerda/direita deixe de ser pertinente, mas deve ser
concebida de outra maneira, em função do tipo de populismo que está em jogo e das cadeias
de equivalência através das quais se constrói ‘o povo’. Entendido como categoria política, o
povo é sempre uma construção discursiva, e o ‘nós’ em torno do qual se cristaliza pode ser
construído de diferentes maneiras, dependendo dos elementos que o constituem e da ma-
neira como se define o ‘eles’ ao qual está confrontado. É ali que se encontra a diferença entre
um populismo de direita – como o de Marine Le Pen7, que constrói um povo que se limita
aos ‘verdadeiros nacionais’, excluindo os imigrantes relegados ao ‘eles’, junto com as forças
‘anti-nação’ das elites – e um populismo de esquerda de corte progressista. Este último é
representado na França pelo movimento de Jean-Luc Mélenchon8, que tem uma concep-
ção mais ampla de ‘nós’, que inclui os imigrantes, os movimentos ecologistas e os coletivos
LGBT, definindo o ‘eles’ como o conjunto de forças cujas políticas promovem a desigualdade
social. No primeiro caso, estamos diante de um populismo autoritário, cujo objetivo é uma
restrição da democracia, ao passo que no segundo caso trata-se de um populismo que visa
ampliar e radicalizar a democracia.
22
V
Além de examinar como se constrói o povo, devemos considerar outra questão importante
para distinguir as várias formas de populismo: a maneira como se concebe a relação entre
o povo e os ‘de cima’. As identidades coletivas sempre requerem a distinção nós/eles, mas
no campo político a fronteira entre o nós e o eles indica a presença de um antagonismo, isto
é, de um conflito que não pode ter uma solução racional. Mas esse antagonismo pode ma-
nifestar-se sob diversas formas. Pode tomar a forma de um confronto amigo/inimigo, cujo
objetivo é erradicar o ‘eles’ para estabelecer uma ordem radicalmente nova. A revolução
francesa nos proporciona um exemplo desse populismo ‘antagonista’. Mas esse confronto
também pode dar-se sob uma forma ‘agonista’, onde o ‘eles’ não é visto como um inimigo,
mas como um adversário contra o qual se vai lutar através de meios democráticos. Para que
um movimento populista seja compatível com a democracia pluralista, o confronto tem que
ser de tipo agonista. Um populismo agonista não defende a rejeição total do marco institu-
cional existente. Seu objetivo não é a destruição das instituições liberal-democráticas, mas a
desarticulação dos elementos que configuram a ordem hegemônica e a rearticulação de uma
nova hegemonia.
Um populismo de esquerda idôneo para a situação europeia deve ser concebido como um ‘re-
formismo radical’ que se esforça para recuperar e aprofundar a democracia. É uma luta que
se trava por meio de uma ‘guerra de posição’ no interior das instituições, com a finalidade de
transformá-las. Uma luta que, certamente, vai exigir mudanças institucionais significativas para
permitir que a vontade popular se expresse, mas essas mudanças não representam um desafio
radical para as instituições chamadas ‘republicanas’. Não se trata de acabar com a democracia
representativa, mas de fortalecer as instituições que dão voz ao povo. É uma forma de ‘republi-
canismo plebeu’ que se inscreve na linha democrática da tradição republicana, cujo precursor
foi Maquiavel9.

7 Marion Anne Perrine Le Pen (1968): mais conhecida como Marine Le Pen, é uma advogada e política de direita da França. Deputada do Parlamento
Europeu desde 2004, foi eleita presidente da Frente Nacional em 16 de janeiro de 2011, em substituição a seu pai, Jean-Marie Le Pen. É também conse-
lheira regional de Nord-Pas-de-Calais desde março de 2010 e conselheira municipal de Hénin-Beaumont desde março de 2008. (Nota da IHU On-Line)
8 Jean-Luc Mélenchon (1951): político francês, atual líder do movimento França Insubmissa (La France insoumise) que ele fundou
em fevereiro de 2016. Ele foi o candidato deste partido na eleição presidencial de 2017. (Nota da IHU On-Line)
9 Nicolau Maquiavel (1469-1527): historiador, filósofo, dramaturgo, diplomata e cientista político italiano do Renascimento. É reconhecido como fun-

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A atual crise se deve ao fato de que nossas instituições não são suficientemente repre-
sentativas, não ao fato mesmo da representação. A solução não pode ser a eliminação da
representação e a instauração de uma democracia ‘presentista’, como querem alguns. Como
destaquei em Agonística10, em uma sociedade democrática que reconhece a possibilidade
sempre presente do antagonismo e onde o pluralismo não é concebido de um modo harmo-
nioso e antipolítico, as instituições representativas – ao darem forma à divisão da sociedade
– desempenham um papel crucial, porque permitem a institucionalização dessa dimensão
conflitual. Ora, esse papel só pode ser cumprido mediante a existência de uma confrontação
agonista. O problema central da pós-democracia é a ausência de tal confrontação agonista e
a incapacidade dos cidadãos de escolherem entre verdadeiras alternativas. É por isso que a
questão das fronteiras é decisiva.
Estou convencida de que nos próximos anos o eixo central do conflito político vai girar
entre populismo de direita e populismo de esquerda, e é imprescindível que os setores pro-
gressistas entendam a importância de se envolverem nessa luta. Conceber um populismo
de esquerda requer a necessidade de visualizar a política de maneira que se reconheça seu
caráter guerrilheiro (partisano). Devemos descartar a perspectiva racionalista dominante
no pensamento político liberal-democrático e reconhecer a importância dos afetos comuns
(o que chamo de ‘paixões’) na formação das identidades coletivas. É através da construção
de outro povo, de uma vontade coletiva que resulte da mobilização das paixões em defesa
da igualdade e da justiça social, que se pode combater a política xenófoba promovida pelo
populismo de direita.
Ao recriar fronteiras políticas, o ‘momento populista’ ao qual estamos assistindo na Europa nos
aponta um ‘retorno do político’. Um retorno que pode abrir o caminho para soluções de natureza
autoritária – através de regimes que enfraquecem as instituições liberais democráticas –, mas
que também podem levar a uma reafirmação e a um aprofundamento dos valores democráticos.
Tudo vai depender do tipo de populismo que sair vitorioso da luta contra a pós-política e a pós-
democracia.■ 23
dador da ciência política moderna por escrever sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser. Separou a ética da política.
Sua obra mais famosa, O Príncipe, foi dedicada a Lourenço de Médici II. Confira a edição 427 da IHU On-Line de 16-9-2013, A política desnudada. Cinco
séculos de O Príncipe, de Maquiavel, disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/427. (Nota da IHU On-Line)
10 MOUFFE, Chantal. Agonística. Pensar El mundo politicamente. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2014. (Nota da autora)

Leia mais
- “O kirchnerismo é uma fonte de inspiração”. Entrevista com Chantal Mouffe, publicada
nas Notícias do Dia de 24-6-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2t284r8.
- A influência de Laclau e Mouffe no Podemos: hegemonia sem revolução, artigo de
cientista ambiental Miguel Sanz Alcántara, publicado nas Notícias do Dia de 14-7-2015, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2sY0vAL.
- Quem tem medo do populismo? Artigo de Roberto Andrés, publicado nas Notícias do
Dia de 23-2-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2t2LNcj .

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Nem só da esquerda ou da direita,


o populismo vem das multidões
Léo Peixoto Rodrigues, a partir da análise da política de nosso
tempo, destaca que o conceito de Ernesto Laclau deve ser
compreendido para além da dualidade dos “tipos políticos ideais”
João Vitor Santos

A
eleição e o impeachment de Dilma tivas. Para o professor, a política é um
Rousseff no Brasil, a derrota kir- pêndulo que oscila nos dois sentidos. “A
chnerista e a vitória de Mauricio remodelação do espaço político pela glo-
Macri na Argentina, a eleição de Donald balização da comunicação certamente
Trump nos Estados Unidos e o Brexit da acelerará o movimento desse pêndulo,
Inglaterra são, na perspectiva do profes- como esforço de um controle (também)
sor Léo Peixoto Rodrigues, acontecimen- social”. E, por isso, defende: “não me
tos políticos importantes da atualidade parece que existe esgotamento nem da
que alargam a compreensão do conceito esquerda nem da direita, mas, sim, um
de populismo trabalhado por Ernesto La- movimento pendular entre uma e outra”.
clau. Para ele, os acontecimentos “mos-
Léo Peixoto Rodrigues é licenciado
tram resultados surpreendentes e o fato
e bacharel em Ciências Sociais pela Uni-
de que, como eventos democráticos, de
24 novo, surpreenderam tanto a ‘esquerda’
versidade Federal do Rio Grande do Sul
- UFRGS, mestre e doutor em Sociologia
como a ‘direita’, ao mesmo tempo”. “O
pela mesma universidade. Atualmente é
populismo não necessita obrigatoria-
professor dos Programas de Pós-Gradu-
mente de um ‘lado’, desde que venha das
ação em Sociologia da Universidade Fe-
multidões – e veio – pode ser tanto de di-
deral de Pelotas - UFPel e do Programa
reita como de esquerda”, completa.
de Pós-Graduação em Ciência Política da
Na entrevista a seguir, concedida por UFPel. Entre suas publicações destaca-
e-mail à IHU On-Line, Rodrigues des- mos o livro Pós-Estruturalismo e a Teoria
taca que “o populismo se constitui em do Discurso: em torno de Ernesto Laclau
uma lógica do fazer político e social; é (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014), organi-
uma forma de expressão do político legí- zado em parceria com Daniel Mendonça.
tima e que necessita ser resgatada, como
teoria e prática (não menores), pela ci- A entrevista foi publicada nas Notícias
ência política”. E, voltando à perspectiva do Dia de 22-7-2017, no sítio do Institu-
weberiana de “direita” e “esquerda” como to Humanitas Unisinos – IHU, disponí-
“dois ‘tipos ideais’ políticos”, não acredita vel em http://bit.ly/2ve2aBf
num esgotamento de ambas as perspec- Confira a entrevista.

IHU On-Line – De que forma propõe repensar o populismo – re- res), pela ciência política.
as perspectivas de Emancipa- legado pela própria ciência política
Emancipação e Diferença cons-
ção e Diferença (Rio de Janei- à posição marginal, denegrida, em
seus próprios termos, para conce- titui-se num conjunto de ensaios
ro: EdUERJ, 2011) podem con-
bê-lo – a partir de uma perspectiva (com exceção de um deles), como
tribuir para a compreensão da
renovada, com relação à tradição. O menciona o próprio Laclau no “Pre-
Razão Populista (São Paulo:
populismo se constitui em uma ló- fácio à edição inglesa”, escritos en-
Três Estrelas, 2013), ambas
gica do fazer político e social; é uma tre 1991 e 1995. Este conjunto de
obras de Ernesto Laclau?
forma de expressão do político legí- ensaios refere-se, em boa medida,
Léo Peixoto Rodrigues – Em tima e que necessita ser resgatada, à retomada reflexiva da estrutura
Razão Populista, Ernesto Laclau como teoria e prática (não meno- conceitual de sua proposta teórica, a

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“Não me parece que existe


esgotamento nem da
esquerda nem da direita,
mas, sim, um movimento
pendular entre uma e outra”

Teoria do Discurso1, que aparece em to de pensamento tributário às princi- IHU On-Line – Como Laclau
língua inglesa, no livro Hegemony pais teses do estruturalismo, mas com compreende o conceito de mas-
and Socialist Strategy: towards a avanços importantes. Aliás, falar dos sa? E como, a partir dessa for-
Radical Democratic Politics2, em diferentes “pós” – pós-estruturalis- mulação, chega à ideia de povo?
1985. Em Emancipação e Diferença, mo, pós-modernismo, pós-marxismo,
Léo Peixoto Rodrigues – La-
Laclau reflete sobre emancipação, li- pós-crítica, pós-fundacionalismo – é
clau parte de algumas das posições
berdade, identidade, universalismo, falar centralmente da crise do deter-
do psicólogo social francês Gustave
particularismo, significante vazio minismo, seja ele metafísico, científi-
Le Bon4, no que se refere à psicolo-
etc., orientado pelas transformações co, epistemológico ou ontológico.
gia das multidões (ou das massas)
no cenário mundial, onde já aponta-
Não seria de todo incorreto dizer para quem as palavras guardam seu
va a emergência de uma direita po-
que o pós-estruturalismo constitui-se poder em associação às imagens por
pulista na Europa Ocidental.
em uma renovação à perspectiva te- elas evocadas, independentemente
Em Razão Populista, a análise que órica nas ciências sociais, da mesma de seu significado “real”. Para Laclau, 25
Laclau faz do populismo serve-se forma que o pós-modernismo reno- Le Bon está apontando para a falta de
(também) de sua estrutura concei- vou a visão de cultura no Ocidente. fixidez na relação entre significante e
tual para ressignificar o populismo Nesse sentido, o pós-estruturalismo, significado e como uma palavra pode
como uma forma hegemônica de se como um movimento francês, que apresentar uma pluralidade de sig-
fazer política, portanto legítima. emerge a partir (e de dentro) do pró- nificados. Laclau busca demonstrar,
prio estruturalismo, sobretudo na assim, a importância da relação entre
década de 1970, deve ser visto como palavra e imagem e que, no discurso
IHU On-Line – Ernesto Laclau uma renovação, como uma abertura das massas, essa relação pode fazer
pode ser considerado um pós e um avanço teórico, epistemológico emergir uma pluralidade de sentidos.
-estruturalista? Por quê? E qual e filosófico, nas ciências sociais, como
a leitura e importância da teoria Mas é em Freud5 que Laclau reco-
um todo. A Teoria do Discurso formu-
do discurso para o autor? lada por Ernesto Laclau vincula-se a
Léo Peixoto Rodrigues – Sim! uma matriz pós-estruturalista, uma científica fundada em 1965 e localizada no Reino Unido.
vez que explica o político e o social, A universidade possui um caráter internacional com 132
Laclau, ele mesmo, considera-se um países representados em seu corpo estudantil. A Escola de
pós-estruturalista e um pós-marxista. como sendo “realidades” indeter- Essex é a linha como trabalham na universidade a Teoria
do Discurso, fundamental para o pensamento de Laclau e
O pós-estruturalismo é um movimen- mináveis, contingentes, precárias. Mouffe. (Nota da IHU On-Line)
Para esse autor, a sociedade (e suas 4 Gustave Le Bon (1841-1931): foi um psicólogo social,
sociólogo e físico amador francês. Foi o autor de várias
diferentes dimensões) é impossível obras nas quais expôs teorias de características nacionais,
1 Análise do discurso: também chamada Teoria do Dis- superioridade racial, comportamento de manada e psico-
curso ou análise de discurso, é uma prática e um campo de ser essencializada, apresentando logia de massas. (Nota da IHU On-Line)
da linguística e da comunicação especializado em analisar permanentemente (e importante) vo- 5 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista nascido em
construções ideológicas presentes em um texto. A análise Freiberg, Tchecoslováquia. É o fundador da psicanálise. In-
do discurso é proposta a partir da filosofia materialista latilidade em seus processos. teressou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como mé-
que põe em questão a prática das ciências humanas e todo a hipnose, estudou pessoas que apresentavam esse
a divisão do trabalho intelectual, de forma reflexiva. De
acordo com uma das leituras possíveis, discurso é a prá-
“Qual a importância da teoria do quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas
pulsões, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abando-
tica social de produção de textos. Isto significa que todo discurso para o autor?”. Posto que nando a hipnose em favor da associação livre. Estes ele-
discurso é uma construção social, não individual, e que mentos tornaram-se bases da psicanálise. Desenvolveu a
só pode ser analisado considerando seu contexto histó- Ernesto Laclau, ele mesmo, foi o ide- ideia de que as pessoas são movidas pelo inconsciente.
rico-social, suas condições de produção; significa ainda alizador da Teoria do Discurso, no Freud, suas teorias e o tratamento com seus pacientes
que o discurso reflete uma visão de mundo determinada, foram controversos na Viena do século 19 e continuam
necessariamente, vinculada à do(s) seu(s) autor(es) e à so- âmbito da ciência política, e a figura ainda muito debatidos. A edição 179 da IHU On-Line, de
ciedade em que vive(m). Texto, por sua vez, é o produto 8-5-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o título Sig-
da atividade discursiva; é a construção sobre a qual se de- fundamental da chamada Escola de mund Freud. Mestre da suspeita, disponível em http://bit.
bruça o analista para buscar, em sua superfície, as marcas Essex (U.K.)3. ly/ihuon179. A edição 207, de 4-12-2006, tem como tema
que guiam a investigação científica. É necessário, porém, de capa Freud e a religião, disponível em https://goo.gl/
salientar que o objeto da análise do discurso é o discurso. wL1FIU. A edição 16 dos Cadernos IHU em formação
(Nota da IHU On-Line) tem como título Quer entender a modernidade? Freud ex-
2 Londres, Inglaterra: Verso, 2014 (2. ed). (Nota da IHU 3 Universidade de Essex (em inglês: University of Es- plica, disponível em http://bit.ly/ihuem16. (Nota da IHU
On-Line) sex): é uma universidade pública com foco em pesquisa On-Line)

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TEMA DE CAPA

nhece um importante avanço teórico Reino Unido da União Europeia, e a temporaneamente, deve-se ao mes-
sobre a psicologia das massas. Para acirrada disputa eleitoral nos Esta- mo fenômeno que tem acelerado os
Freud, os diferentes modelos a que o dos Unidos mostram resultados sur- processos socioculturais, ou seja, as
indivíduo está vinculado desde o co- preendentes e o fato de que, como tecnologias de informação, que es-
meço da sua vida (objetos, pessoas, eventos democráticos, de novo, tão remodelando o “espaço público”,
situações) torna borrada a diferença surpreenderam tanto a “esquerda” tornando-o um “espaço público digi-
entre psicologia individual e psico- como a “direita”, ao mesmo tempo. tal”, onde a distância deixa de ser um
logia social, devido à discrepância Os números também foram aper- fator impeditivo para a construção
entre impulso social e impulso narci- tados: o Reino Unido decidiu sair de uma “opinião pública” – ou publi-
sista. A partir dessa perspectiva, Er- da UE por 52% dos votos, e Donald cada, como diria Pierre Bourdieu9.
nesto Laclau vai demonstrar que as Trump8 lutou até o último instante
Neste sentido, a remodelação do
massas possuem uma lógica própria, para obter maioria no Colégio Elei-
espaço político pela globalização
complexa e por este motivo a relação toral. Neste sentido, um dos aspec-
da comunicação – aspectos de uma
populismo versus multidão (a ideia tos possíveis a se aduzir dos fatos po-
democracia radical, no laclaunia-
de povo), que se plasma em uma con- líticos concretos e, em boa medida,
no – certamente acelerará o movi-
creta forma do fazer político, deve ser coerente com a perspectiva teórica
mento desse pêndulo, como esforço
vista à luz de novas abordagens. de Laclau, é que o populismo não
de um controle (também) social.
necessita obrigatoriamente de um
Portanto, não me parece que existe
“lado”, desde que venha das mul-
IHU On-Line – De que forma esgotamento nem da esquerda nem
tidões – e veio – pode ser tanto de
podemos compreender o con- da direita, mas, sim, um movimento
direita como de esquerda.
ceito de populismo em Laclau pendular entre uma e outra.
a partir das experiências políti-
cas de nosso tempo no mundo? IHU On-Line – O senhor con-
IHU On-Line – Em que me-
corda com as perspectivas de
Léo Peixoto Rodrigues – Tenho dida o populismo tensiona as
que há um esgotamento da
dito que a derrota do kirchnerismo6 perspectivas liberais de merca-
esquerda no mundo? De que
e a eleição de Mauricio Macri7, na Ar- do?
26 gentina, bem como a eleição de Dil-
forma as perspectivas do popu-
lismo de Laclau podem trazer Léo Peixoto Rodrigues – O ca-
ma Rousseff e seu impeachment, no
uma espécie de “novos ares” pitalismo como modo de produção
Brasil, guardadas as suas diferenças
a ideias de esquerda, com in- e os mercados como uma de suas
e peculiaridades, apresentam notá-
clusão social? E até que ponto dimensões mais ágeis, ambos extre-
vel semelhança quando vistos a par-
podemos afirmar que a direita mamente plásticos e autopoiéticos,
tir da perspectiva do “povo-eleitor”,
apreendeu melhor essa neces- sempre estão dispostos a interferir
ou como reflexo do “desejo das mul-
sidade de atualização? nas flutuações políticas, no sentido
tidões”. Macri se fez presidente com
de se autopreservarem. Os merca-
51,42% dos votos válidos, opondo-se Léo Peixoto Rodrigues – O
dos, ao mesmo tempo em que são
ao estilo kirchnerista, acusado de que penso é que se considerarmos
tensionados pela política, tensionam
não dialogar com o povo, de não ou- “direita” e “esquerda” como dois
a política no sentido de seus interes-
vir opiniões contraditórias, mesmo “tipos ideais” políticos, no sentido
ses. Salvo poucas exceções, a história
tendo um viés populista. Dilma tam- weberiano, portanto “puros”, sendo
tem mostrado que nas democracias
bém se fez presidente do Brasil com a direita uma perspectiva que privi-
liberais o povo tem apresentado
margem de votos mínima (51,64%), legia o indivíduo em detrimento do
um certo pragmatismo econômico,
e seu governo foi impedido por ra- coletivo, e a esquerda, o coletivo em
quando tem de apontar caminhos
zões, se tomarmos somente as de detrimento do indivíduo, o pêndulo
para a política. Como mencionei
cunho político, muito semelhantes político tem oscilado, em diferentes
anteriormente, o populismo parece
às que derrotaram o kirchnerismo. momentos da história ocidental, en-
tre um lado e outro. Parece-me que
O “Brexit”, plebiscito pela saída do
essa oscilação, tão mais visível con- 9 Pierre Bourdieu (1930-2002): sociólogo francês. De ori-
gem campesina, filósofo de formação, chegou a docente
na École de Sociologie du Collège de France, instituição
que o consagrou como um dos maiores intelectuais de
6 Kirchnerismo: é um movimento político de orienta- seu tempo. Desenvolveu, ao longo de sua vida, mais de
ção peronista, fundado em 2003, que reúne os principais 8 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um empre- trezentos trabalhos abordando a questão da dominação,
postulados ideológicos plasmados nos governos dos sário, ex-apresentador de reality show e atual presidente e é, sem dúvida, um dos autores mais lidos, em todo mun-
presidentes Nestor Kirchner (entre 2003 e 2007) e Cristi- dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito do, nos campos da Antropologia e Sociologia, cuja con-
na Fernández de Kirchner (entre 2007 e 2015), que juntos o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republi- tribuição alcança as mais variadas áreas do conhecimento
ocuparam o Poder Executivo da Argentina por 12 anos, 6 cano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton humano, discutindo em sua obra temas como educação,
meses e 15 dias. Acompanham o movimento político al- no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto, cultura, literatura, arte, mídia, linguística e política. Seu
guns setores que pertenciam ao radicalismo, o socialismo, perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o pro- primeiro livro, Sociologia da Argélia (1958), discute a orga-
o comunismo e o humanismo. (Nota da IHU On-Line) tecionismo norte-americano, por onde passam questões nização social da sociedade cabila, e em particular, como
7 Mauricio Macri (1959): engenheiro civil, político, execu- econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos o sistema colonial interferiu na sociedade cabila, em suas
tivo, empresário, que assumiu como presidente da Argen- Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The estruturas e desculturação. Dirigiu, por muitos anos, a re-
tina em dezembro de 2015. Anteriormente, foi deputado Trump Organization e fundador da Trump Entertainment vista Actes de la recherche en sciences sociales e presidiu o
nacional pela Cidade Autônoma Buenos Aires entre 2005 e Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal, CISIA (Comitê Internacional de Apoio aos Intelectuais Ar-
2007 e chefe de governo do mesmo distrito por dois man- riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná gelinos), sempre se posicionado clara e lucidamente con-
datos (2007-2011; 2011-2015). (Nota da IHU On-Line) -lo famoso. (Nota da IHU On-Line) tra o liberalismo e a globalização. (Nota da IHU On-Line)

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não ter lados, nem direita nem es- barthe15, dentre outros. A exploração em direção aos setores populares da
querda; por este motivo, tanto a elei- dessa diferenciação conceitual in- sociedade, buscaram atender deter-
ção de Macri, como de Trump, bem fluenciou a filosofia política e a re- minadas demandas – muitas delas
como o impeachment de Dilma e a flexão teórica pós-estruturalista, no centralmente vinculadas à possibi-
vitória do Brexit, foram pautados, âmbito da teoria política. lidade de consumo – reprimidas em
em ampla medida, por questões eco- governos anteriores.
O “político” refere-se, de forma ge-
nômicas e de mercado. O mais con-
ral, à impossibilidade se fundamen-
tundente exemplo disto é o que está
tar (no sentido de um fundamento IHU On-Line – Que respostas
ocorrendo na Venezuela atualmente
último) a própria teoria política e e caminhos o populismo laclau-
com o populismo (de esquerda?) de
também a ideia de um fundamento niano pode nos indicar para a
Nicolás Maduro10.
ausente na própria sociedade, como superação de problemas polí-
uma unidade sistêmica. Neste senti- ticos e sociais de nosso tempo?
IHU On-Line – Como compre- do, por um lado, a noção de “o políti-
co” refere-se à dimensão ontológica Léo Peixoto Rodrigues – A
ender a afirmação de Laclau, teoria do discurso, formulada por
quando diz que “o populismo da sociedade, enquanto “a política”,
por outro lado, refere-se a sua di- Ernesto Laclau, de um modo geral,
é o caminho para se compre- e não apenas a sua renovada pers-
ender algo sobre a constituição mensão ôntica, que indica as práti-
cas cotidianas da política. pectiva teórica sobre “o populismo”
ontológica do político enquanto – que não foge às suas formulações
tal” (Razão Populista, p.115)? E É exatamente o conceito de “o po- conceituais pós-estruturalistas –
por que é importante essa com- lítico”, dentro de referentes pós-es- constitui-se, em minha opinião,
preensão sobre a constituição truturalistas, que abre a concepção num potente arcabouço teórico para
“do político”? de sociedade – e do próprio fazer a compreensão da sociedade e da
Léo Peixoto Rodrigues – A di- político – à contingência e à precarie- política contemporâneas. Uma das
ferença conceitual entre “o político dade de seus processos, tornando-a importantes lições, não apenas da
e a política”, como tem menciona- impossível de ser domesticada por teoria do discurso, mas de toda a re-
do Oliver Marchart11, aparece pela determinismos de qualquer natureza, flexão pós-estruturalista, é que tan-
e de escoimar concepções e práticas to os “problemas” políticos como as
27
primeira vez em Carl Schmitt12 e,
posteriormente, com pensadores no âmbito da política, que refletem demandas sociais, sobretudo nesta
franceses como Paul Ricoeur13, Jean as demandas massivas, denominan- contemporaneidade, jamais serão
-Luc Nancy14 e Philippe Lacoue-La- do-as (negativamente) de populistas. superados completamente, no sen-
tido de uma “resolução definitiva”,
10 Nicolás Maduro Moros (1962): é um político vene- dada a sua base epistemológica não
zuelano, atual presidente da República Bolivariana da Ve- IHU On-Line – Como a razão linear, mas complexa.
nezuela. Depois de, como vice-presidente constitucional,
assumir o cargo com a morte do presidente Hugo Chávez, populista pode ser compre-
foi eleito em 14 de abril de 2013 para mandato como 57º endida a partir da ideia de de- Sistemas complexos, como a so-
presidente da Venezuela. (Nota da IHU On-Line)
11 Oliver Marchart (1968): é um filósofo político e soció- manda social, dois conceitos ciedade ou, no sentido laclauniano,
logo austríaco. (Nota da IHU On-Line)
12 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo político e de Laclau? E como apreende como os sistemas e subsistemas dis-
professor universitário alemão. É considerado um dos essa demanda social dentro da cursivos que compõem o social, são
mais significativos e controversos especialistas em direito
constitucional e internacional da Alemanha do século 20. perspectiva do lulismo? processos continuados e, portanto,
A sua carreira foi manchada pela sua proximidade com o só podem ser “administrados”, ja-
regime nacional-socialista. O seu pensamento era firme-
mente enraizado na teologia católica, tendo girado em
Léo Peixoto Rodrigues – Er- mais resolvidos. A ideia de “solu-
torno das questões do poder, da violência, bem como da nesto Laclau propõe o conceito de ção de problemas” vai estar sempre
materialização dos direitos. (Nota da IHU On-Line)
13 Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo francês. Sobre ele, “democracia radical” que, em ter- vinculada a uma base de funda-
conferir o artigo intitulado Imaginar a paz ou sonhá-la?, mos sintéticos, significa a emergên-
publicado na edição 49 da IHU On-Line, de 24-2-2003, mentação linear, determinística, ou
disponível para download em http://bit.ly/ihuon49 e uma cia de toda a diferença, plasmada nos termos da teoria do discurso,
entrevista na edição 50 que pode ser acessada em http://
bit.ly/ihuon50. A edição 142, de 23-5-2005, publicou a em demandas sociais, no campo da fundacionalista. Teorias pós-fun-
editoria Memória sobre Ricoeur, em função de seu fale-
cimento. Confira o material em http://bit.ly/ihuon142. A
discursividade política, de diferen- dacionalistas, como a proposta por
formação de Ricoeur se dá em contato com as ideias do tes sociedades. Neste sentido, os Ernesto Laclau, têm a virtude de
existencialismo, do personalismo e da fenomenologia.
Suas obras importantes são: A filosofia da vontade (pri- governos Lula, durante seus dois demonstrar que a sociedade, o polí-
meira parte: O voluntário e o involuntário, 1950; segunda
parte: Finitude e culpa, 1960, em dois volumes: O homem
mandatos, através de diferentes pro- tico, a política e suas demandas não
falível e A simbólica do mal). De 1969 é O conflito das in- gramas sociais, que se capilarizaram cessam e tendem, sempre, a uma
terpretações. Em 1975 apareceu A metáfora viva. O sentido
do trabalho filosófico de Ricoeur deve ser visto em uma complexidade crescente – o sistema
teoria da pessoa humana; conceito - o de pessoa - re- envolvimento com figuras essenciais para a filosofia fran-
conquistado no termo de longa peregrinação dentro das cesa do século 20 (Nietzsche, Heidegger, Bataille, Merle- social inflaciona a si próprio em au-
produções simbólicas do homem e depois das destruições au-Ponty, Derrida etc.), assim como reflexões sobre arte e mento de complexidade –, portanto
provocadas pelos mestres da “escola da suspeita”. (Nota literatura. (Nota da IHU On-Line)
da IHU On-Line) 15 Philippe Lacoue-Labarthe (1940-2007): foi um filóso- tudo que nos será exigido (e cada
14 Jean-Luc Nancy (1940): é um filósofo francês. A obra fo francês. Ele também era um crítico literário e tradutor.
de Nancy é marcada pelo grande tamanho de publicações Lacoue-Labarthe foi influenciado por e escreveu extensi- vez mais) é também uma crescente
e pela heterogeneidade de temas. Datam da década de
1960 o início de suas reflexões, que atravessam desde a
vamente sobre Martin Heidegger, Jacques Derrida, Jac-
ques Lacan, o romantismo alemão, Paul Celan e Gérard
habilidade em conseguirmos conti-
leitura de filósofos clássicos (Descartes, Kant, Hegel), ao Granel. (Nota da IHU On-Line) nuar vivendo juntos.■

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

Um olhar sobre a América Latina


para compreender o populismo
e a política da região
Gerardo Aboy Carlés analisa os limites e os avanços da teoria
desenvolvida por Laclau para refletir sobre correntes ideológicas que
marcaram e marcam a trajetória de democracia de países latinos
João Vitor Santos | Tradução: André Langer

P
ara estender a compreensão sobre século passado em muitos países”, justi-
o conceito de populismo e também fica. E acrescenta: “contudo, a tensa re-
forjar outro olhar sobre a realidade lação entre o populismo e a democracia
da política na América Latina, o sociólogo liberal deve ser analisada em cada caso
Gerardo Aboy Carlés sugere uma análise em particular, isto é: uma tensão que
mais focada na região. Ele destaca como pode tornar-se incompatível de acordo
“populismo clássico” movimentos como o com circunstâncias particulares”.
yrigoyenismo e o peronismo argentinos,
O que, para ele, não significa que não
o cardenismo mexicano e o varguismo
haja experiências populistas contempo-
brasileiro. O que marca e une esses mo-
râneas. “Creio que constituem experiên-
vimentos, segundo ele, é o fato de que “o
cias populistas o processo liderado por
28 populismo supunha a existência de gran-
Evo Morales na Bolívia e, durante mui-
des transformações da sociedade que
tos anos, o chavismo. O colapso autori-
não podiam ser resolvidas pelo sistema
tário da Venezuela de hoje é muito mais
institucional vigente”, essencialmente no
um sinal do esgotamento do populismo
período em que se desenvolvem essas cor-
do que de sua vigência”, analisa.
rentes ideológicas. “Acredito que Laclau
é muito útil, mas não devemos esquecer Gerardo Aboy Carlés é licenciado
sua combinação com outras contribuições em Sociologia pela Universidade de Bue-
inevitáveis”, adverte. nos Aires e doutor em Ciências Políticas
Na entrevista a seguir, concedida por e Sociologia pela Universidade Complu-
e-mail à IHU On-Line, Aboy Carlés tense de Madri. Atualmente é pesquisa-
também analisa os limites e os avanços dor do Conselho Nacional de Pesquisas
de Laclau na busca por explicações para Científicas e Técnicas da República Ar-
movimentos como o peronismo. Ele é gentina - Conicet e professor do Instituto
crítico sobre considerar que movimen- de Altos Estudos Sociais da Universida-
tos mais recentes possam ser compreen- de Nacional de San Martín. Entre suas
didos através do populismo. “Não penso publicações, destacamos o livro Las dos
que o Brasil do PT, nem a Argentina dos fronteras de la democracia argentina.
Kirchner tenham constituído experi- La reformulación de las identidades po-
ências populistas”, dispara. “Hoje, não líticas de Alfonsín a Menem (Barcelona:
existem essas margens para a instabi- Homo Sapiens Ediciones, 2001).
lidade do demos que caracterizaram o Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compre- Gerardo Aboy Carlés – Uma das ram as demandas sociais populares
ender movimentos políticos, vantagens da teoria das identidades não resolvidas das demandas de-
como o peronismo, a partir da políticas de Laclau é sua grande capa- mocráticas canalizadas pelo sistema
ideia de populismo em Ernesto cidade descritiva. Os antagonismos institucional dão lugar à formação de
Laclau? sociais que, na sua perspectiva, sepa- cadeias de equivalência definidas por

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“O peronismo mantém-se
durante 10 anos precisamente
por seu mecanismo populista”

sua comum oposição a algum tipo de clau é muito útil para compreender Penso, ao contrário de Laclau, que
poder estabelecido que tem a capa- o surgimento do fenômeno: uma sé- este mecanismo pendular de excluir
cidade de solucioná-las. A verdade é rie de demandas desatendidas que e incluir o adversário do campo po-
que Laclau nunca explica cabalmente faziam as condições de trabalho e lítico legítimo é a marca distintiva
esse salto da demanda não atendida a o nível de vida dos trabalhadores, dos populismos latino-americanos.
um antagonismo social. mas também a descrença diante Essa constante gestão entre a ruptu-
das instituições que não eram o ra e a conciliação social que permite
Contudo, suas duas lógicas, forma-
resultado genuíno do sufrágio, so- a introdução de grandes inovações.
lizadas em 1985 junto com Mouffe,
mado tudo isso a reivindicações de Laclau está muito influenciado pelo
a equivalencial (a comum oposição
corte nacionalista críticas das polí- imaginário revolucionário dos anos
a outro) e a diferencial (a própria re-
ticas implementadas na década de 60 e 70. Sua concepção da política
lação com aquele com quem se com- 29
1930, vão convergir para produzir como idêntica ao populismo consti-
partilha esse comum opor-se a outro),
uma fronteira dentro da própria co- tui um reflexo do imaginário jacobi-
têm grande capacidade para descrever
munidade, apresentando-se como no que lê o populismo a partir da vi-
a formação de solidariedades sociais
um conjunto sintético antagônico tória da plebs emergente e concebe
de certa permanência. Esse é o mé-
frente a determinados fatores do a nova ordem como o império desta.
rito inegável de sua formalização do
poder político e econômico que im- Há, às vezes, em Laclau, e apesar de
conceito de hegemonia gramsciano,
peraram nos anos anteriores. La- sua ideia dos significantes flutuan-
focalizado na passagem das “relações
clau descreve muito bem essa plebs tes, uma concepção muito rígida,
de força” dos Cadernos do Cárcere1.
que sentia não ser nada e procura quase leninista, das identidades po-
Ao pensar o limite do social, das iden-
erigir-se em representante do con- líticas: estas aparecem como exérci-
tidades, Laclau trouxe ferramentas
junto da comunidade. tos enfrentados quando me parece
de particular importância não apenas
para a teoria política, mas para a so- Ora, se Laclau descreve acertada- que, no caso dos populismos, é mui-
ciologia, os estudos culturais, a antro- mente o surgimento do peronismo to mais útil concebê-las como man-
pologia etc. em meados dos anos 1940, acredi- chas superpostas.
tamos que, embora haja em sua te-
Peronismo oria os elementos conceituais para Populismo e instituições
compreender o funcionamento do
A leitura que o próprio Laclau faz peronismo no poder entre 1946 e Da mesma forma, a contraposi-
do peronismo2 em seus trabalhos de 1955, sua leitura tende a ter um ção entre populismo e instituições
1977 e 2005 tem méritos inegáveis desempenho menor. Vamos nos que Ernesto realizou em sua obra
e também algumas diferenças. La- explicar: o peronismo mantém-se parece a reprodução invertida da
durante 10 anos precisamente por incapacidade do institucionalismo
1 São Paulo: Civilização Brasileira, 14 de agosto de 2002.
(Nota da IHU On-Line) seu mecanismo populista, isto é, mais fechado para analisar as ex-
2 Peronismo: o Movimento Nacional Justicialista é gene- uma constante instabilidade do de- periências populistas. A diferença
ricamente chamado peronismo. Os ideiais são baseados
no pensamento de Juan Domingo Perón (1895-1974), pre- mos legítimo que lhe permitia afas- é que um dá bênçãos onde o outro
sidente as Argentina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974. O
Movimento transformou-se, mais tarde, em Partido Justi- tar antagonismos: às vezes, a nação provoca excomunhões. Ambos os
cialista, que é a força política maioritária na Argentina. Os era apenas o peronismo emergente, olhares esquecem a ampla constru-
ideais do peronismo se encontram nos diversos escritos
de Perón como “La Comunidad Organizada”, “Conducción mas outras vezes a solidariedade ção de instituições realizadas pelas
Política”, “Modelo Argentino para un Proyecto Nacional”,
entre outros, onde estão expressos a filosofia e doutrina nacional cobria o conjunto da co- experiências populistas na região e
política que continuam orientando o pensamento acadê- munidade e a nação identificava-se a análise das características especí-
mico e a vida política da segunda maior nação sul-ameri-
cana. (Nota da IHU On-Line) com o populus. ficas dessas instituições.

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TEMA DE CAPA

Em suma, parece-me que a contri- sileiro. Penso que Gino Germani, na Bolívia e, durante muitos anos, o
buição de Ernesto foi fundamental embora criticasse fortemente estas chavismo11. O colapso autoritário da
para ler as origens do movimento, experiências, viu claramente que o Venezuela de hoje é muito mais um
mas falha na hora de analisar sua populismo supunha a existência de sinal do esgotamento do populismo
passagem pelo poder: assim, deve grandes transformações da socieda- do que de sua vigência.
atribuir à progressiva instituciona- de que não podiam ser resolvidas
Também não me satisfaz a carac-
lização, com suas palavras, a pas- pelo sistema institucional vigente.
terização do recente governo de
sagem da figura do “descamisado” Não desconheço que muitas des-
Rafael Correa 12 como populista.
à da “comunidade organizada”, o tas experiências acabaram em um
E isso por outras razões: tratou-
eclipse do populismo peronista. A colapso autoritário e censurável: o
se de um movimento reformista
tensão entre a ruptura e a concilia- peronismo, a partir de 1953, ou as
de forte conteúdo tecnocrático e
ção social é, pelo contrário, consti- próprias eleições de 1940 no Mé-
frágil organização de seus segui-
tutiva destes fenômenos. Acredito xico. Contudo, entendo que essa
dores. Porque esta tem sido uma
que Laclau é muito útil, mas não mecânica de partir da comunidade
característica central dos populis-
devemos esquecer sua combinação para voltar a uni-la em um estado
mos na região: longe do reiterado
com outras contribuições inevitá- diferente ao anterior foi muito fun-
erro dos teóricos do chamado “ne-
veis, como as de Germani3, Weffort4 cional a um processo de democrati-
opopulismo”, os populismos lati-
ou Touraine5. zação social e político na região, à
no-americanos caracterizaram-se
extensão de novos direitos que fo-
por uma ampla e forte organização
ram impulsionados, em alguns ca-
IHU On-Line – Que outros de seus seguidores, cujo caso pa-
sos (neste aspecto específico o var-
movimentos populistas você radigmático é o cardenismo. Não
guismo merece uma consideração à
identifica na América Latina e há distância maior com o modo re-
parte) em todo o território, acaban-
como analisa suas trajetórias? volucionário à francesa caracteri-
do de forjar os Estados.
zado pelo combate dos grupos in-
Gerardo Aboy Carlés – Eu Quanto às experiências mais re- termediários do que o populismo
gostaria de me concentrar nos cha- centes, não penso que o Brasil do latino-americano.
mados populismos clássicos latino PT, nem a Argentina dos Kirchner9
30 -americanos: o yrigoyenismo6 e o tenham constituído experiências po-
peronismo argentinos, o cardenis- pulistas, embora possuam algumas IHU On-Line – Em termos de
mo7 mexicano e o varguismo8 bra- características daquelas. A verda- identidade política, em que se
deira revolução democrática vivida distinguem os países da Améri-
3 Gino Germani (1911-1979): foi um sociólogo italiano,
pela região nos anos 80 tornou-nos ca Latina de outros lugares do
precursor e referente da Argentina à sociologia latino-a-
mericana. Ele praticou uma sociologia de base científica, saudavelmente mais liberal-demo- mundo, mais especificamente
longe da filosofia social, mas também comprometida.
Germani deu especial atenção para os métodos de inves- cráticos que nossos antepassados. da Europa, cujo modelo demo-
tigação. (Nota da IHU On-Line) Hoje, não existem essas margens crático é a base dos países la-
4 Francisco Correia Weffort (1937): é um cientista polí-
tico brasileiro. Obteve doutorado em Ciência política pela para a instabilidade do demos que tinos? Quais são os pontos em
Universidade de São Paulo, com a tese Populismo e Classes
Sociais. Foi membro do Partido dos Trabalhadores, tendo caracterizaram o século passado em comum?
exercido, na condição de um de seus principais dirigen- muitos países. Contudo, a tensa re- Gerardo Aboy Carlés – Penso
tes, as funções de diretor executivo da Fundação Wilson
Pinheiro - fundação de apoio partidária instituída pelo PT lação entre o populismo e a demo- que uma diferença fundamental tem
em 1981, antecessora da Fundação Perseu Abramo; e tam-
bém de Secretário Geral do partido na segunda metade cracia liberal deve ser analisada em sido precisamente a nossa forma
dos anos 1980. No contexto de eleição de Fernando Hen- cada caso em particular, isto é: uma de democratização social e políti-
rique Cardoso à Presidência da República em 1994, deixa
o PT assumindo o cargo de Ministro da Cultura. (Nota da tensão que pode tornar-se incompa-
IHU On-Line)
5 Alain Touraine (1925): é um sociólogo francês conheci-
tível de acordo com circunstâncias
do por sua obra dedicada à sociologia do trabalho e dos particulares. xto Jumpiri e alguns outros, na liderança do campesinato
movimentos sociais. Tornou-se conhecido por ter sido o indígena do seu país. (Nota da IHU On-Line)
pai da expressão “sociedade pós-industrial”. Seu trabalho 11 Chavismo: é o nome dado à ideologia de esquerda
é baseado na “sociologia de ação” e seu principal ponto de Creio que constituem, ao contrá- política baseada nas ideias, programas e estilo de gover-
interesse tem sido o estudo dos movimentos sociais. Tou-
raine acredita que a sociedade molda o seu futuro através
rio, experiências populistas o pro- no associados com o ex-presidente da Venezuela Hugo
Chávez. Chavista é um termo utilizado para descrever
de mecanismos estruturais e das suas próprias lutas so- cesso liderado por Evo Morales10 apoiadores de Chávez. O chavismo, nas palavras de alguns
ciais. (Nota da IHU On-Line) dos seus principais partidários, é composto por três fon-
6 Yrigoyenismo: perspectiva política inspirada na gestão tes básicas: as ideias de Simón Bolívar, Ezequiel Zamora e
e Juan Hipólito del Sagrado Corazón de Jesús Yrigoyen Simón Rodríguez, e também um socialismo revisado que
Alen, político argentino, por duas vezes presidente de seu 9 Néstor Kirchner (1950-2010): advogado e político ar- é definido como o “socialismo do século XXI”. Da mesma
país. (Nota da IHU On-Line) gentino, foi o 54º presidente da Argentina. Casado com forma, o chavismo toma ideias de Ernesto Guevara, Fidel
7 Cardenismo: o termo cardenismo usado como nome Cristina Kirchner, foi sucedido por ela na Casa Rosada. Castro, Augusto César Sandino, Camilo Cienfuegos, entre
da escola de pensamento aberto por Lazaro Cardenas del (Nota da IHU On-Line) outros. (Nota da IHU On-Line))
Rio, general e estadista mexicano, presidente do México a 10 Juan Evo Morales Ayma (1959): é o atual presiden- 12 Rafael Vicente Correa Delgado (1963): economista e
partir do 1 de dezembro de 1934 a 30 novembro de 1940. te da Bolívia. Líder sindical dos cocaleros, destacou-se ao político equatoriano, atual presidente de seu país. Cria-
(Nota a IHU On-Line) resistir aos esforços do governo dos Estados Unidos para do numa família de classe média na cidade portuária de
8 Varguismo: caracteriza-se pela admiração à pessoa de substituição do cultivo da coca, na província de Chapare, Guaiaquil, Correa ganhou bolsas para estudar na Europa e
Getúlio Dornelles Vargas, que ficou conhecido como “o pai por bananas, originárias do Brasil. De orientação socialista, nos Estados Unidos. Economista, foi assessor do ex-pre-
dos pobres”. A sua doutrina e seu estilo político foram de- o foco do seu governo tem sido a implementação da re- sidente Alfredo Palacio durante suas funções como vice
nominados de “getulismo” ou “varguismo”. Os seus segui- forma agrária e a nacionalização de setores chaves da eco- -presidente. Depois, foi ministro de Economia e Finanças
dores, até hoje existentes, são denominados “getulistas”. nomia, contrapondo-se à influência dos Estados Unidos e no início da gestão de Palacio na presidência, entre abril
As pessoas próximas o tratavam por “Doutor Getúlio”, e das grandes corporações nas questões políticas internas e agosto de 2005, após a destituição de Lucio Gutiérrez.
as pessoas do povo o chamavam de “O Getúlio”, e não de da Bolívia. De etnia uru-aimará, Morales destacou-se a Renunciou ao cargo por discordar da política presidencial.
“Vargas”. (Nota da IHU On-Line) partir dos anos 1980, juntamente com Felipe Quispe e Si- É casado com Anne Malherbe. (Nota da IHU On-Line)

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ca. É necessário distinguir a demo- os direitos individuais, embora, há uma comunhão entre a Doutrina
cratização como processo social e hoje, o giro político na região es- Social da Igreja15 e parte do imagi-
político da democracia como regi- teja começando a nos demonstrar nário peronista. Digo “peronista
me. Sabemos que uma democrati- que o problema parece se inverter tradicional” para distingui-lo da
zação, entendida como processo de de maneira preocupante. Acredito esquerda peronista dos anos 70, na
homogeneização, pode ter caracte- também que a região é mais jovem qual o cristianismo radicalizado,
rísticas autoritárias ou não, mas e tem uma capacidade maior de como aconteceu em boa parte da
hoje concordamos em que a demo- inovação do que uma Europa muito América Latina, desempenhou um
cratização é condição da democra- fortemente sedimentada em suas papel fundamental.
cia como regime. A Europa não é tradições e rotinas institucionais,
Laclau teve uma formação muito
uma entidade homogênea: temos menos preparada para processar a
mais laica, mas, por muitos motivos,
ali o modelo gradualista britânico novidade: uma crise, por exemplo,
manteve em alguns aspectos o lastro
estudado por Marshall13, em que como a argentina de 2001, que re-
de certa afinidade com as categorias
os ciclos de cidadanização abarca- presentou praticamente a dissolu-
com que a esquerda peronista via o
ram três séculos e que acabou eli- ção do poder político sem que uma
mundo, suavizados, claro, por sua
minando o voto plural no segundo alternativa autoritária emergisse
longa experiência britânica e seu
pós-guerra, e, por outro lado, a tra- no horizonte.
compromisso democrático. Penso
dição revolucionária francesa, com
Temos em comum o fato de que que coincidiriam em pouquíssimas
seus auges e ocasos, que conheceu
nós também quisemos construir coisas, mas uma delas são seus ad-
o sufrágio universal às vésperas do
democracias liberais. Nossa tenta- versários. Há um ponto em que o
Segundo Império.
tiva é parcialmente exitosa e par- conservadorismo popular e a es-
A nossa democratização tem sido cialmente não. A nossa realidade é querda nacionalista coincidem e isso
mais moderada, rápida e aos assal- uma hibridação entre a democracia não é muito produtivo para a demo-
tos, e nela os populismos tiveram liberal e a herança de nossa tradição cracia liberal.
sua contribuição. Também não é populista; algo muito mais específi-
uma realidade homogênea. A tra- co que as “democracias delegativas”
gédia dos direitos civis no México é de O’Donnell14. Mesmo com as di- IHU On-Line – Por outro lado,
até que ponto podemos asso-
31
um exemplo claro: uma sociedade ficuldades que a Europa atravessa
que, em seus setores progressistas, hoje, sua democratização foi muito ciar o trumpismo16 a um movi-
descarta a ideia dos direitos huma- mais profunda que a nossa e tam- mento populista?
nos por sua associação com dis- bém sua democracia é mais saudá- Gerardo Aboy Carlés – Nos
cursos de ordem que mergulha na vel. Novas forças políticas, novas termos de Laclau, sem dúvida, as
tragédia de 100 mil mortos e desa- coalizões puderam responder às características de sua emergência
parecidos. Muito menos há homo- crises que os partidos atravessam, são populistas: Trump17 fala a indi-
geneidade no tocante aos direitos ao passo que aqui assistimos à fra- víduos deslocados e desacreditados
políticos: a Argentina instaura o queza de fazer política a partir dos do sistema político que se sentem
voto universal masculino obrigató- tribunais de Justiça. perdedores e marginalizados e pro-
rio em 1912, ao passo que o Brasil mete-lhes que vão voltar a ocupar o
universalizaria o sufrágio no final
do século passado. Creio que a nos- IHU On-Line – O papa Fran-
15 Doutrina Social da Igreja (DSI): é o conjunto dos
sa tradição populista teve um for- cisco é considerado um líder ensinamentos contidos na doutrina da Igreja Católica e
no Magistério da Igreja Católica, constante de numero-
te conteúdo democratizante, mas, internacional muito popular, sas encíclicas e pronunciamentos dos papas inseridos na
ao mesmo tempo, afetou aspectos não apenas por questões reli- tradição multissecular, e que tem suas origens nos primór-
dios do cristianismo. Tem por finalidade fixar princípios,
centrais que formam tanto a tradi- giosas, mas também por suas critérios e diretrizes gerais a respeito da organização
social e política dos povos e das nações. É um convite a
ção republicana como a liberal. posições geopolíticas. Em que ação. A finalidade da doutrina social da Igreja é “levar os
medida podemos identificar homens a corresponderem, com o auxílio também da re-
Há ganhos e perdas ali. Penso que elementos do populismo, se-
flexão racional e das ciências humanas, à sua vocação de
construtores responsáveis da sociedade terrena”.(Nota da
na região forjamos uma forte e sau- gundo Laclau, nos posiciona- IHU On-Line).
16 Trumpismo: referente ao estilo de governo do atual
dável ideia dos direitos coletivos e mentos de Francisco? presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que pauta
que, às vezes, foram descuidados suas ações em políticas nacionalistas conservadores de
extrema-direita. (Nota da IHU On-Line)
Gerardo Aboy Carlés – Ber- 17 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um em-
goglio é um peronista tradicional, presário, ex-apresentador de reality show e atual pre-
13 Alfred Marshall (1842-1924): considerado um dos sidente dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump
economistas mais influentes de sua época. Sua principal embora eu não ache que isso possa foi eleito o 45º presidente norte-americano pelo Partido
obra, Principles of Political Economy, de 1890, trouxe as Republicano, ao derrotar a candidata democrata Hillary
teorias da fonte e da demanda, da utilidade marginal e
defini-lo como Papa. Nesse sentido, Clinton no número de delegados do colégio eleitoral; no
dos custos de produção. O Instituto Humanitas Unisinos, entanto, perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras es-
através do evento I Ciclo de Estudos Repensando os Clás- tão o protecionismo norte-americano, por onde passam
sicos da Economia, promoveu a palestra A era industrial 14 Guillermo A. O’Donnell (1936-2011): cientista político questões econômicas e sociais, como a relação com imi-
e a contribuição de Marshall, em 5-10-2005, na Livraria argentino, passou a maior parte de sua carreira trabalhan- grantes nos Estados Unidos. Trump é presidente do con-
Cultura, em Porto Alegre, ministrada pela Profa. Dra. Maria do na Argentina e nos Estados Unidos e fez contribuições glomerado The Trump Organization e fundador da Trump
Aparecida Grandene de Souza, da UFRGS, e no dia 20-10- duradouras para a teorização do autoritarismo e da demo- Entertainment Resorts. Sua carreira, exposição de marcas,
2005, na Unisinos, pela Profa. Dra. Ana Lucia Gonçalves da cratização, Democracia e estado, e as políticas da América vida pessoal, riqueza e modo de se pronunciar contribuí-
Silva – UNICAMP/SP. (Nota da IHU On-Line) Latina. (Nota da IHU On-Line) ram para torná-lo famoso. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

centro do palco. Eu concordo com Em ambos, os antagonismos sociais visão mais horizontal da política,
essa leitura da emergência de um ocupam um lugar destacado e esta é de múltiplas lutas democráticas
“populismo reacionário” ao estilo do a grande linha de continuidade em que podiam confluir em um movi-
qualunquismo. sua concepção de democracia. En- mento democrático radical elimi-
tretanto, creio que o aprofundamen- nando relações de subordinação,
No entanto, não tenho tão clara a
to da democracia, sua radicalização progressivamente vai concebendo
caracterização do Trump governan-
em um sentido democratizante, tem que é necessário a existência de
te: suas idas e vindas parecem muito
hoje muito mais a aprender do pri- um desnível que garanta essa con-
mais o resultado das restrições ins-
meiro Laclau do que do segundo. fluência, que misture esse conjun-
titucionais impostas pelo sistema do
Toda a sua concepção de hegemonia to de lutas dispersas. Surge assim
que uma vontade de dividir e conci-
está marcada pela desagregação do a ideia do significante vazio: um
liar alternativamente. Também não
antigo bloco antiperonista que viveu particular que progressivamente
vejo os processos de negociação mo-
como militante nos anos 60. se esvazia de seu conteúdo para
lecular da fronteira que caracterizam
alcançar uma representação mais
a relação entre o populismo e seus
ampla, a da cadeia equivalencial.
adversários. Trump parece mais um
Seu exemplo clássico é o do sin-
palhaço enjaulado que chuta as gra-
des do que um governante populista.
“A democratiza- dicato Solidariedade 23 na Polônia,
que, de representante das deman-
ção é condição das dos trabalhadores dos esta-
IHU On-Line – Que ideia de
democracia podemos fazer a
da democracia leiros de Gdansk, passa, pouco a
pouco, a representar o conjunto
partir do conceito de populis-
mo de Laclau?
como regime” de demandas da sociedade polo-
nesa contra a opressiva ditadura
de Jaruzelski 24.
Gerardo Aboy Carlés – Aqui
não é fácil dar uma resposta. Há um Progressivamente, Ernesto foi
IHU On-Line – Qual é a impor- deslocando a identificação do sig-
Laclau que escreve, em 1985, com tância do indivíduo e do todo,
32 Chantal Mouffe Hegemonia e estra- nificante vazio com um nome (Soli-
do líder e do povo no concei- dariedade) para a sua identificação
tégia socialista18. O Laclau pluralis- to de populismo de Laclau? E
ta que pensa numa proliferação das com uma singularidade, com um
como se contrapõe à ideia de nome próprio e, finalmente, asso-
lutas democráticas sem um centro, hegemonia?
que rompe com Gramsci19 não ape- ciado a este com o nome do líder.
nas no que diz respeito à ideia de Gerardo Aboy Carlés – Acredi- O grande functor, como escreveu
“organicidade” que compaginava os to que o lugar do líder é um ponto em uma bela crítica seu grande
movimentos da política com os da central no qual o pensamento de amigo Emilio de Ípola25. No cami-
estrutura econômica, mas que abo- Laclau se transformou ao longo nho, Laclau acabou por se inscre-
minava o imaginário jacobino de um destes 20 anos que separam um ver em uma concepção muito mais
só centro ou cena (talvez o Estado livro do outro e do que vão dando vertical e autoritária de política do
Nação) de constituição da política. progressiva conta seus trabalhos que aquela que fazia duas décadas
intermediários: Nuevas reflexio- atrás. Paradoxalmente, na defini-
Laclau foi mudando gradativamen- nes sobre la revolución de nuestro ção de populismo de A razão popu-
te, e em muitos sentidos, o livro de tiempo, The Making of Political lista o líder está ausente, mas sua
2005, A razão populista20, é a ne- Identities, Emancipação e diferen- presença recobre toda a obra: para
gação daqueles postulados iniciais, ça e Misticismo, retórica y política
com uma ideia mais vertical da po- e sua participação na iniciativa de 23 Sindicato Solidariedade: é uma federação sindical
lítica e a reintrodução do imaginário Richard Rorty22 em Contingencia, polaca fundada em 31 de Agosto de 1980 nos Estaleiros
jacobino21 em todo o seu esplendor. hegemonía, universalidad.
Lenin, em Gdańsk, sendo originariamente liderada por
Lech Wałęsa. Na década de 1980, o Solidariedade era
um amplo movimento social antiburocrático que utiliza
Se o primeiro Laclau tinha uma os métodos de resistência civil para fazer avançar a causa
18 São Paulo: Intermeios, 2015. (Nota da IHU On-Line) dos direitos dos trabalhadores e da mudança social.[1] Ele
19 Antonio Gramsci (1891-1937): foi um filósofo marxis- representava 9,5 milhões de membros em seu primeiro
ta, jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu congresso em setembro de 1981, o que correspondia a
sobre teoria política, sociologia, antropologia e linguística. mente aplicada de forma pejorativa a qualquer corrente 1/3 da população total da Polônia em idade de trabalho.
Com Togliatti, criou o jornal L’Ordine Nuovo, em 1919. Se- de pensamento republicana e laicista de extrema-esquer- (Nota da IHU On-Line)
cretário do Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em da, assim como, o de jacobino para quem fosse e seja 24 Wojciech Witold Jaruzelski (1923-2014): foi um po-
1926 e só foi libertado em 1937, dias antes de falecer. Nos “defensor de opiniões revolucionárias extremistas” dessa lítico e militar comunista da Polônia. Ocupou os cargos
seus Cadernos do cárcere, substituiu o conceito da ditadu- mesma linha política social e económica (Nota da IHU de primeiro-ministro (1981-1985), chefe do conselho de
ra do proletariado pela “hegemonia” do proletariado, dan- On-Line). estado (1985-1989) e presidente da Polônia (1989-1990).
do ênfase à direção intelectual e moral em detrimento do 22 Richard Rorty: filósofo pragmatista estadunidense. Es- (Nota da IHU On-Line)
domínio do Estado. Sobre esse pensador, confira a edição teve em pé de guerra com a filosofia toda a sua vida. De- 25 Emilio de Ipola (1939): é filósofo e sociólogo argenti-
231 da IHU On-Line, de 13-8-2007, intitulada Gramsci, fendia-se contra a pretensão de absoluto do pensamento no. Formou-se em Filosofia pela Universidade de Buenos
70 anos depois, disponível para download em http://www. analítico e renunciou durante décadas, a modo de protes- Aires 1964 e PhD em Ciências Sociais da Universidade de
ihuonline.unisinos.br/edicao/231. (Nota da IHU On-Line) to contra as correntes tradicionais do seu âmbito, a diri- Paris de 1969. Ele tem um doutorado de Estado liderado
20 São Paulo: Três Estrelas, 2013. (Nota da IHU On-Line) gir uma cátedra de filosofia (apenas aceitou até 1982 um por Henri Lefebvre na Universidade de Paris X Nanterre,
21 Jacobismo: originário da Revolução Francesa, o termo lugar na Universidade de Princeton). Sua principal obra França. Atualmente é Professor Emérito da Faculdade de
jacobinismo, também chamado jacobinos, é evolutivo ao é Filosofia e o Espelho da Natureza (Princeton: Princeton Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires e pes-
longo dos tempos. Mas, como expressão, era e é geral- University Press, 1979). (Nota da IHU On-Line) quisador sênior do Conicet. (Nota da IHU On-Line)

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Laclau, é o investimento afetivo no demandará laboriosas operações e macro, e o permanente debate entre
líder que torna possível a equiva- equivalenciais em uma sociedade esse incerto limite entre o social como
lência hegemônica. fortemente fragmentada. A res- política sedimentada e a politização do
ponsabilidade dos dirigentes foi, naturalizado, que lhe dá vida.
Discordo desta visão de Laclau. neste sentido, maior e ainda não
Ninguém nega o papel dos indivídu- sabemos se os atuais atores parti-
os na política, mas o lugar da lide- dários terão capacidade para recu- IHU On-Line – Deseja acres-
rança está fortemente sobrevaloriza- perar essa estrutura ou se apenas centar algo?
do em sua teoria, a ponto de levá-lo uma renovação mais substantiva
a postular a reeleição indefinida dos Gerardo Aboy Carlés – Com o
terá condições para fazê-lo.
líderes latino-americanos em di- passar dos anos e quando ficarem
versas intervenções públicas. Mais IHU On-Line – Atualmente para trás os enfrentamentos da con-
ainda, creio que para que o meca- também se vive a ideia da rejei- juntura presente, a obra de Ernesto
nismo populista descrito mais acima ção da política e a ascensão de Laclau será reconhecida em sua ver-
funcione, nem mesmo é necessária líderes que assumem o poder dadeira magnitude. Laclau escreveu
a figura do líder unipessoal. Julián com a ideia de que são grandes um único grande livro através de
Melo26 mostrou como o radicalismo gestores e não agentes políti- todos os seus livros: o da relação en-
cos. Quais são os riscos desta tre particularidade e universalidade
intransigente da Província de Bue-
perspectiva e como o pensa- como constitutivas da política. Ele
nos Aires, na década de 40 do sécu-
mento de Laclau enfrenta esta fez isso em várias linguagens: a teo-
lo passado, transformou-se em uma
formulação? ria dos antagonismos, o pós-estru-
força populista sem contar com uma
liderança personalista. Gerardo Aboy Carlés – Creio turalismo derridiano, a retórica ou o
que Laclau via este perigo no amplo legado lacaniano. No princípio, sua
desenvolvimento de uma lógica dife- formalização da teoria da hegemonia

“Nossa demo- rencial que ele identificava com o ins-


titucionalismo, vendo ali o colapso do
representou a comunhão de duas te-
orias antagônicas: a diacrítica estru-
cratização tem populismo e da própria política. Está
claro que há setores da gestão que re-
turalista (que concebe toda identi-
dade como relacional) e o agonismo 33
sido mais mo- querem competências especializadas,
mas as decisões são sempre políticas
existencial de Schmitt27 (tácito em
Laclau, expresso em Mouffe), o que,
derada, rápida e devem estar submetidas ao debate
público, isto é, à conformação aberta
sem dúvida, produz desajustes na te-
oria (o fato de que uma identidade se
e aos assaltos” de uma vontade política. Sem isso, defina por sua relação com outra não
não há democracia. implica a existência de uma relação
antagônica entre ambas).
IHU On-Line – Atualmente, e Não acredito em absoluto nos tro-
essencialmente no contexto da vadores que falam de um “retorno Seu interesse inicial pelos popu-
política do Brasil de hoje, vi- da política”. A política sempre esteve lismos, do que dá conta o seu texto
ve-se o que alguns estudiosos aí. Acontece que todos os atores pro- “Hacia una teoría del populismo” de
chamam de crise de represen- curam despolitizar e naturalizar suas 1977, abriu passagem para uma pre-
tatividade democrática. Que conquistas. O que faz a direita com ocupação com a ontologia política,
alternativas apresenta o popu- sua defesa até a morte da propriedade cuja expressão máxima é A razão po-
lismo laclauniano a esta pers- privada inviolável e o fazem aqueles pulista. Este é um livro sobre como
pectiva de crise? que, a partir da esquerda, defendem o Laclau entendeu a política, não sobre
Bolsa Família. Os patamares de convi- os populismos (confundidos sem mais
Gerardo Aboy Carlés – As cri- vência também requerem que alguns com as identidades populares quando
ses de representação são um dado elementos básicos fiquem fora da dis- aqueles constituem tão somente uma
na emergência de todo populismo, puta, mas muitos outros poderão ser a forma, entre outras possíveis, destas
mas não de toda crise de repre- fonte de novos antagonismos. Duran- últimas). Contudo, e nesta entrevista
sentação se segue a emergência de te anos, nós também naturalizamos as eu não poupei críticas, eu acredito que
um fenômeno populista. Também diferenças trabalhistas de gênero ou a sua marca está destinada a alcançar
não acredito que isso seja desejá- garantia muito diferente com que os um lugar privilegiado no futuro.■
vel. Sem dúvida, o sistema político diversos setores sociais tinham aces-
brasileiro foi minado pela conjun- so aos direitos civis. Se determinados 27 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo político e
ção conjuntural de oportunismos níveis de democratização são uma professor universitário alemão. É considerado um dos
mais significativos e controversos especialistas em direito
de todo tipo e sua recuperação condição da democracia, devemos constitucional e internacional da Alemanha do século 20.
A sua carreira foi manchada pela sua proximidade com o
compreender que a democracia hoje regime nacional-socialista. O seu pensamento era firme-
26 Julián Melo: professor e pesquisador do Instituto de
Estudos Sociais da Universidade Nacional de San Martin,
também é um veículo de democratiza- mente enraizado na teologia católica, tendo girado em
torno das questões do poder, da violência, bem como da
Argentina. (Nota da IHU On-Line) ção, e é a prática social e política micro materialização dos direitos. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

Populismo é conceito-chave
para pensar a política hoje
Para Myriam Southwell, Laclau não analisa apenas um
fenômeno político transitório, “mas um fenômeno de
estruturação da vida política que está sempre presente”
João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

E
rnesto Laclau reflete sobre o compreender o nosso tempo. “O ciclo
ambiente político na emergên- de políticas democratizadoras da pri-
cia do século XX na Argentina. meira década do século XXI em nossa
Entretanto, a pedagoga Myriam Sou- região, com as ferramentas conceituais
thwell acredita que suas elaborações que a teorização populista proporcio-
vão muito além do entendimento de na, permitem dizer que essas experi-
um fenômeno isolado que ocorria em ências foram impulsionadas pela bus-
determinado local e época. Segundo a ca da ampliação de direitos”, conclui.
professora, que foi orientada pelo pró- Para Myriam, essa teoria precisa ser
prio Laclau, “a teoria populista contem- entendida como discurso político com
porânea nos permite transcender essa base na relação entre os que estão em
antiga noção de que se trata de uma posição de inferioridade e o poder ins-
anomalia específica da América Latina, tituído. “O populismo, portanto, tende
34 a dividir a sociedade em dois campos
o que também implica uma perspecti-
va de emancipação do colonialismo do antagônicos”, conclui.
pensamento”. “Graças a intervenções Myriam Southwell é pedagoga. Re-
como as de Laclau, Mouffe e alguns alizou sua graduação na Universidade
outros acadêmicos, o populismo é, por- Nacional de La Plata, mestrado na Fa-
tanto, muito mais do que um estigma, culdade Latino-Americana de Ciências
uma anomalia, uma saída dos trilhos da Sociais - FLACSO, na Argentina, e dou-
normalidade; é um conceito-chave para torado na Universidade de Essex, na In-
pensar a política”, destaca. glaterra, sob orientação de Laclau. Atu-
Na entrevista a seguir, concedida por almente é pesquisadora independente
e-mail à IHU On-Line, a discípula do do Consejo Nacional de Investigaciones
pensador reflete sobre o caminho per- Científicas y Técnicas - CONICET, na
corrido por ele, passando da linguística Argentina, e coordena o doutorado em
à psicologia social, para a elaboração do Ciências da Educação da Universidade
conceito de populismo. Para ela, con- de La Plata.
ceito que se mostra atual e potente para Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a inter- trabalhada por Ernesto Laclau? tall Mouffe à Teoria do discurso e à
pretação da Teoria do Discurso1 Quais são as contribuições de teorização social e política em geral
Chantal Mouffe à perspectiva é muito significativa. Penso no tra-
1 Análise do discurso: também chamada Teoria do Dis- do autor? balho deles em conjunto porque
curso ou análise de discurso, é uma prática e um campo
da linguística e da comunicação especializado em analisar o livro de referência, que abriu os
Myriam Southwell – A contri-
construções ideológicas presentes em um texto. A análise caminhos desta teoria, Hegemo-
do discurso é proposta a partir da filosofia materialista que buição de Ernesto Laclau e Chan-
põe em questão a prática das ciências humanas e a divi- nia e Estratégia Socialista2, é uma
são do trabalho intelectual, de forma reflexiva. De acordo
com uma das leituras possíveis, discurso é a prática social contribuição de ambos. Além disso,
de produção de textos. Isto significa que todo discurso é
uma construção social, não individual, e que só pode ser
vive(m). Texto, por sua vez, é o produto da atividade dis-
cursiva; é a construção sobre a qual se debruça o analista
embora logo após essa produção
analisado considerando seu contexto histórico-social, suas para buscar, em sua superfície, as marcas que guiam a in-
condições de produção; significa ainda que o discurso re- vestigação científica. É necessário, porém, salientar que o
flete uma visão de mundo determinada, necessariamente, objeto da análise do discurso é o discurso. (Nota da IHU
vinculada à do(s) seu(s) autor(es) e à sociedade em que On-Line) 2 São Paulo: Intermeios, 2015. (Nota da IHU On-Line)

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“Se a democracia é possível,


é porque o universal
não tem o corpo nem o
conteúdo necessário”

compartilhada ambos tenham pu- trutura básica da mente que trans- lizando-a, aplicando-a, pertence-
blicado também de maneira inde- cendia todas as variações históricas, mos a uma série de configurações
pendente, se reconhece facilmente a teoria do discurso contemporânea de sentido que têm uma estrutura
as múltiplas referências entre ele e é profundamente histórica e tenta da qual estamos profundamente
as marcas do pensamento de cada estudar o campo discursivo com a inconscientes, assim como todo
um no trabalho de ambos. experiência das variações temporais. ato social é profundamente in-
A partir desse corpus teórico se de- consciente. A tarefa do analista do
A noção de discurso estabelece
senvolveram teorias do discurso que discurso, assim como a tarefa do
uma nova reviravolta na filosofia
estiveram fortemente ligadas à lin- linguista, é reconstruir a gramá-
ocidental, direcionando-a não mais
guística estrutural e outras nas quais tica de uma língua, é reconstruir
a atos ou eventos, mas às condições
prevalecia uma análise independen- essa forma, essa sequência básica
de possibilidade, ou seja, as condi-
te da crítica à noção saussuriana de de sentido através da qual o social
ções de possibilidade para que de- signo. A partir desta perspectiva, a
terminados discursos se constituam tarefa da análise do discurso para o
se configura. 35
de maneira hegemônica. Assim, a estruturalismo clássico foi encontrar Consequentemente, entendemos
ação passa a ser vista como uma as regularidades básicas que regem que a estrutura discursiva origina
estruturação de um certo campo de a produção de sentido na vida social. uma prática articulatória que cons-
sentido preexistente. A investiga- titui e organiza as relações e iden-
ção das condições de possibilidade As proposições teóricas de Laclau
tidades sociais diferenciais sem
já estava presente no pensamento e Mouffe constituem uma analíti-
nunca chegar a criar uma sutura
de Kant3 e Husserl4, mas enquanto ca teórica no sentido foucaultiano,
definitiva. Essa impossibilidade de
na fenomenologia ou na filosofia de como marco teórico dependente do
contexto e do histórico, mas não são fixação definitiva de sentidos im-
Kant o “a priori” constituía uma es-
o objetivo para análise das forma- plica que sempre haverá fixações
3 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, consi- ções discursivas. Quanto ao contex- parciais e que o social existe como
derado como o último grande filósofo dos princípios da
to, além disso, a dependência ocor- um esforço para produzir esse ob-
era moderna, representante do Iluminismo. Kant teve um
grande impacto no romantismo alemão e nas filosofias re porque as formações discursivas jeto total impossível.
idealistas do século 19, as quais se tornaram um ponto de
partida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção entre analisadas em termos particulares
os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon),
isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mes- sempre são contextualizadas; tam-
IHU On-Line – Em que consis-
mo. A coisa-em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto bém não há dependência sobre o
de conhecimento científico, como até então pretendera a
metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mun- histórico no sentido de tentar re- te o conceito de populismo para
do dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a prio-
construir uma história completa, Laclau e quais são suas contri-
ri da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do
entendimento. A IHU On-Line número 93, de 22-3-2004, mas que isso seja feito através do buições para se pensar o espa-
dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador
com o título Kant: razão, liberdade e ética, disponível em reconhecimento da temporalidade ço político? Como a razão po-
http://bit.ly/ihuon93. Também sobre Kant, foi publicado o
na qual se inserem. pulista pode se articular com
Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emma-
nuel Kant – Razão, liberdade, lógica e ética, que pode ser as ideias do peronismo5?
acessado em http://bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a edi-
ção 417 da revista IHU On-Line, de 6-5-2013, intitulada Universos unificados
A autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios, dis- 5 Peronismo: o Movimento Nacional Justicialista é generi-
ponível em https://goo.gl/SIII5H. (Nota da IHU On-Line) camente chamado peronismo. Os ideiais são baseados no
4 Edmund Husserl (1859-1938): Edmund Gustav Albrecht A ideia básica dessa teoria é que pensamento de Juan Domingo Perón (1895-1974), presi-
Husserl, matemático e filósofo alemão, conhecido como dente da Argentina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974. O
o fundador da fenomenologia, nascido em uma família vivemos em universos que pare- Movimento transformou-se, mais tarde, em Partido Justi-
judaica numa pequena localidade da Morávia (região da cem unificados, através de uma cialista, que é a força política maioritária na Argentina. Os
atual República Tcheca). Husserl apresenta como ideia ideais do peronismo se encontram nos diversos escritos
fundamental de seu antipsicologismo a “intencionalida- série de atos de sentido. Da mesma de Perón como “La Comunidad Organizada”, “Conducción
de da consciência”, desenvolvendo conceitos como os da Política”, “Modelo Argentino para un Proyecto Nacional”,
intuição eidética e epoché. Influenciou, entre outros, os forma que, por exemplo, falamos entre outros, onde estão expressos a filosofia e doutrina
alemães Edith Stein, Eugen Fink e Martin Heidegger e os a nossa língua sem explicitar sua política que continuam orientando o pensamento acadê-
mico e a vida política da segunda maior nação sul-ameri-
franceses Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Michel
Henry e Jacques Derrida. (Nota da IHU On-Line). gramática, embora estejamos uti- cana. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

Myriam Southwell – De acordo flitos que ocorrem ao seu redor, eles rón10 foi deposto em 1955, criou-
com Laclau, a categoria política popu- não podem se fixar em uma única se a necessidade de “desperonizar
lismo tem sido abordada pela teoria articulação discursiva. E justamente a sociedade”, e, nessa tentativa, o
política como uma categoria que se nas disputas suscitadas ao seu redor é sistema de ensino desempenhava
refere a um fenômeno político carac- que reside sua potencialidade e capa- um papel importante. A estratégia
terizado pela imprecisão, pela irracio- cidade de interpelação. Aqui convém das forças políticas que aparece-
nalidade, pelo vazio ideológico e pela parar e esclarecer uma confusão habi- ram a partir desse momento era
transitoriedade. Em contraste com tual, porque muitas vezes se entende criar um sistema liberal estável,
esse modelo, Laclau argumenta que o o qualificativo de vazio em detrimento que fizesse com que o peronismo
populismo não é um fenômeno políti- do termo; muito pelo contrário, o es- fosse passando – cada vez mais –
co transitório, mas um fenômeno de vaziamento parcial fala da potência de ao horizonte do social, sem repre-
estruturação da vida política que está um significante que consegue absor- sentar uma ameaça. Isso só podia
sempre presente. O populismo passa a ver a outros, se esvazia parcialmente acontecer se as reivindicações so-
ser entendido como um discurso po- e ao mesmo tempo incorpora senti- ciais que haviam constituído a es-
lítico baseado na interpelação aos que dos e significações que o excedem. O pinha dorsal do peronismo fossem
estão em posição de “inferioridade” ponto nodal cujo nome gera a unidade absorvidas uma por uma pelo siste-
perante o poder. O populismo, por- de uma formação discursiva não tem ma. No sistema educacional houve
tanto, tende a dividir a sociedade em identidade positiva própria, mas é um tentativas nesse sentido: a reestru-
dois campos antagônicos. O que conta significante puro que cumpre a função turação da Universidad Obrera, a
não é o conteúdo do recorte populis- de fixar o nó. criação do CONET, a expansão do
ta, mas seu momento. Mas o conteú- sistema em todos os seus níveis etc.
do concreto em que é investido muda Peronismo Se a estratégia fosse bem-sucedida,
historicamente e precisa ser definido o resultado seria um conjunto de
caso a caso. Na verdade, é sempre pro- A reflexão sobre o peronismo era demandas individualizadas dentro
dutivo manter em aberto a questão de uma constante de Ernesto Laclau, já de uma estrutura altamente ins-
quais são as dimensões atuais do in- que ele era um intelectual com forma- titucionalizada (e provavelmente
vestimento. ção acadêmica e política na Argentina isto poderia ser analisado com as
36 dos anos de 1950 e 1960. Mas sua teo- modalidades de desenvolvimentis-
Segundo Laclau, o populismo é uma ria também tem sido muito proveitosa mo autoritário que tomam forma
forma de constituir a unidade de um na análise de outras experiências po- na segunda metade do século XX).
grupo, chamada “prática articulatória líticas latino-americanas, como o var- Se, ao contrário, o sistema não fos-
populista”. As noções de hegemonia e guismo6 no Brasil (como o trabalho de se capaz de absorver essas reivin-
de princípio de equivalência são cen- Alejandro Groppo7 sobre o peronismo dicações das massas, o que poderia
trais neste sentido. A divisão antagô- e o varguismo a partir desta perspecti- acontecer é que haveria um acúmu-
nica da sociedade – condição da estru- va de análise) e o cardenismo8 mexica- lo de demandas insatisfeitas com
turação populista – implica a presença no, como demonstram os trabalhos de um aparato institucional incapaz
de alguns significantes privilegiados
Rosa Nidia Buenfil Burgos9. de absorvê-las e, nesse caso, fala-
que condensam a significação de todo
mos de seus símbolos.
um campo antagônico ao seu redor Ernesto sempre dava um exemplo
(povo vs. oligarquia é a sua expressão sobre o peronismo em suas aulas Dessa forma, as cadeias de equiva-
mais clara e recorrente). A noção de mostrando claramente a potên- lência entre todas essas demandas
hegemonia pressupõe que esses signi- cia de seu esquema de análise. O tenderiam a se reunir entre todos os
ficantes se constituem em um terreno exemplo é o seguinte: quando Pe- símbolos político-ideológicos do pe-
no qual as demandas não obedecem ronismo. O que realmente aconteceu
a uma lógica a priori. A contingência 6 Varguismo: caracteriza-se pela admiração à pessoa de foi que esses símbolos eram cada vez
Getúlio Dornelles Vargas, que ficou conhecido como “o pai
é parte constitutiva dessa lógica. O dos pobres”. A sua doutrina e seu estilo político foram de- mais vazios e desenvolveram uma
nominados de “getulismo” ou “varguismo”. Os seus segui-
povo, finalmente respondendo à sua dores, até hoje existentes, são denominados “getulistas”. capacidade progressiva de absorção
pergunta, é o resultado da sobredeter- As pessoas próximas o tratavam por “Doutor Getúlio”, e dessas demandas. Qual era o símbo-
as pessoas do povo o chamavam de “O Getúlio”, e não de
minação hegemônica de uma deman- “Vargas”. (Nota da IHU On-Line) lo? O retorno de Perón.
7 Alejandro Groppo (1969-2013): cientista político argen-
da democrática específica que funcio- tino, com pós-especialização e doutorado em sociologia
política e análise do discurso pela Universidade de Essex, 10 Juan Domingo Perón (1895-1974): militar e político
na como um significante vazio. Reino Unido, onde foi um aluno do filósofo Ernesto Laclau. argentino, presidente de seu país de 1946 a 1955 e de
Lecionou em várias universidades no país e no exterior. 1973 a 1974. Foi líder do Movimento Nacional Justicialista.
Entendemos significante vazio como (Nota da IHU On-Line) Genericamente, esse Movimento é chamado peronismo.
8 Cardenismo: o termo cardenismo é usado como nome Os ideiais são baseados no pensamento de Perón. O Movi-
certos termos que são objeto de uma da escola de pensamento aberto por Lazaro Cardenas del mento Justicialista transformou-se, mais tarde em Partido
forte luta ideológica na sociedade. Rio, general e estadista mexicano, presidente do México Justicialista, que é a força política maioritária na Argentina.
de 1 de dezembro de 1934 a 30 novembro de 1940. (Nota Os ideais do peronismo se encontram nos diversos escri-
Portanto, esses termos tendem a ser da IHU On-Line) tos de Perón como “La Comunidad Organizada”, “Con-
9 Rosa Nidia Buenfil Burgos: PhD em Teoria Política pela ducción Política”, “Modelo Argentino para un Proyecto
significantes tendencialmente vazios Universidade Essex, Inglaterra, é pedagoga, com mestrado Nacional”, entre outros, onde estão expressos a filosofia e
– apesar de nunca totalmente vazios em Especialidade de Investigação em Educação. Também doutrina política que continuam orientando o pensamen-
é membro do Sistema Nacional de Pesquisadores desde to acadêmico e a vida política da segunda maior nação
–, pois, dada a pluralidade de con- 1995. (Nota da IHU On-Line) sul-americana. (Nota da IHU On-Line)

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Qualquer termo da cadeia equiva- A necessidade de estabelecer um


“A noção de lencial cumpre a função de absor- povo surge apenas quando a pleni-
ver demandas, condensa sentidos tude não é alcançada e objetos par-
discurso es- e expressa não somente o seu sig- ciais dentro da sociedade (objetivos,

tabelece uma nificado particular, mas torna-se figuras, símbolos) são de tal maneira
uma poderosa síntese de demandas investidos que se tornam os nomes

nova reviravol- (podem ser sinais dessa condensa-


ção as noções de paz, pão e trabalho
de sua ausência. A partir daí, há a
centralidade da dimensão afetiva

ta na filosofia em várias experiências políticas; a


noção de estabilidade na Argentina
neste processo.

ocidental” da crise econômica dos anos 1990;


indo a um período anterior, a no-
IHU On-Line – Como com-
preender o cenário político do
ção de desenvolvimento; ou, ainda
mundo atual a partir do con-
IHU On-Line – A partir da Te- mais, a noção de civilização).
ceito de populismo de Laclau?
oria do Discurso, qual a com- A identidade popular deve ser con- Até que ponto sua teoria ainda
preensão de Laclau acerca do densada ao redor de significantes é útil para compreender o es-
conceito de povo? (palavras, imagens) relativos à ca- paço político na América La-
Myriam Southwell – Segundo deia equivalencial como um todo. tina hoje, principalmente na
Laclau, o populismo é uma forma Nesse sentido, a identidade popular Argentina?
de constituir a unidade de um gru- funciona como um significante vazio Myriam Southwell – A tare-
po, chamada “prática articulatória que condensa demandas (que com- fa do analista do discurso, assim
populista”. A menor unidade de tal partilham entre si o vínculo negativo como a tarefa do linguista é re-
articulação são as demandas de- inerente ao laço equivalencial) em construir a gramática de uma lín-
mocráticas. O surgimento de uma um campo social heterogêneo. O gua, é reconstruir essa forma, essa
demanda democrática implica al- momento equivalencial/articulador sequência básica de sentido através
guma forma de exclusão ou priva- não ocorre por necessidade lógica, da qual o social se configura. O po-
ção, já que é formulada por um ator mas é constituído pela unificação de lítico tem um papel ontológico na
37
excluído do sistema com base em uma pluralidade de demandas. concepção do social, ou seja, que a
um princípio de igualdade. A plu- A heterogeneidade social implica sociedade se estruture em um de-
ralidade de demandas que, através demandas que não podem ser repre- terminado sentido básico, através
de sua articulação equivalencial, sentadas em uma localização estru- de suas articulações políticas. O
constituem uma subjetividade so- discurso implica em ação, e a prá-
tural específica dentro de um campo
cial mais ampla, conformam as de- tica é discursiva. Por isso não seria
antagônico. Por exemplo, a situação
mandas populares. viável afirmar a distinção entre
das mulheres e a demanda por reco-
discurso e prática. Se o político é
Portanto, o populismo pressupõe, nhecimento e justiça foi adquirindo
constitutivo do laço social, haverá
em primeiro lugar, a formação de novos elementos e se configura de
sempre uma dimensão política pela
uma fronteira antagônica interna forma diferente a partir da demanda
qual a sociedade e o povo são cons-
que separa o povo do poder. É “uma por “Trabalho Igual, Salário Igual”
tantemente reinventados. E esta é
divisão antagônica do campo social”, até a expressão mais atual “Nenhu-
uma análise atual e relevante em
já que o povo é a expressão de uma ma a menos”11. A unidade do agente
nossas sociedades.
“totalidade ausente”. Em segundo social é o resultado de uma plurali-
lugar, também pressupõe uma arti- dade de demandas sociais que cons- A unidade do agente social é o
culação equivalencial de demandas, tituem uma cadeia de equivalências resultado de uma pluralidade de
o que implica, por se tratarem de agrupadas de acordo com o princípio demandas sociais que constituem
demandas, uma pluralidade de posi- de nomeação. A nomeação é, por- uma cadeia de equivalências agru-
ções subjetivas. tanto, o momento-chave da consti- padas de acordo com o princípio de
tuição de um povo, cujos limites e nomeação. Quanto mais heterogê-
Por outro lado, Laclau também componentes equivalenciais oscilam neas as demandas sociopolíticas,
apresenta a categoria de conden- constantemente. Um aspecto central mais autônoma será a construção
sação, que ele entende como o de- na argumentação de Laclau é o nome do povo a respeito de tais deman-
nominador comum que encarna como fundamento da identidade po- das. O ponto nodal afetivamente
o vínculo equivalencial entre uma pular, o que permite falar de uma investido (o “nome”) não apenas
série de demandas específicas. Esse expressa essa cadeia de equivalên-
“produtividade social do nome”.
denominador comum advém da cias, mas torna-se seu fundamen-
mesma série equivalencial e cons- 11 O IHU, em seu sítio na internet publicou textos sobre o to. A nomeação é, portanto, o mo-
titui, ao mesmo tempo, uma parti- movimento. Entre eles, Nem uma a menos: América Latina
despertou, diz organizadora de protesto argentino, disponí-
mento-chave da constituição de um
cularidade e uma universalidade. vel em http://bit.ly/2vxffZ3. (Nota da IHU On-Line) povo, cujos limites e componentes

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equivalenciais oscilam permanen- que são característicos da nova estruturado, que requer alguma re-
temente. O momento equivalen- fase: as dimensões de autonomia composição política: o sistema pode
cial/articulador não ocorre por ne- e de hegemonia. Enquanto a hege- ser contestado, mas por manter sua
cessidade lógica, mas é constituído monia predominava no primeiro capacidade de autoestruturação as
pela unificação de uma pluralidade populismo latino-americano, nos forças populistas atuam dentro e
de demandas. As demandas de li- populismos atuais ela se constrói fora do quadro institucional; e (iii)
beração, ou contra a dependência, através de uma passagem pela or- um sistema que entrou em um pe-
a democratização, a estabilidade, a ganização autônoma de uma plu- ríodo de “crise orgânica” no sentido
inclusão e a mudança constituíram ralidade de atores sociais. gramsciano: as forças populistas não
cadeias equivalenciais que conse- apenas desafiam o sistema, mas se
guiram tornar hegemônica a dis- lançam à reconstrução de um novo
cursividade em vários momentos núcleo populista.
nas últimas décadas. “Populismo
A teoria populista contemporâ-
Ernesto produziu a conceituação
de “limiares da política”, apresenta- é uma forma nea nos permite transcender essa

de constituir
da na revista Debates y Combates, antiga noção de que se trata de
liderada por ele nos últimos anos uma anomalia específica da Amé-
de sua vida. Na revista, ele defen-
deu que o limiar fazia referência a
a unidade de rica Latina (já que está se expres-
sando em vários outros lugares),
um horizonte discursivo, uma li-
nha divisória entre o representá-
um grupo” o que também implica uma pers-
pectiva de emancipação do colo-
vel e o irrepresentável. Há certos nialismo do pensamento. Graças
objetos que se constituem a partir a intervenções como as de Laclau,
desse horizonte, enquanto outros IHU On-Line – A ideia do po- Mouffe e alguns outros acadêmi-
que poderiam ter sido importantes pulismo pode ser associada a cos, o populismo é, portanto, mui-
em um horizonte anterior perdem uma concepção de construção to mais do que um estigma, uma
38 toda a viabilidade e possibilidade democrática? Por quê? anomalia, uma saída dos trilhos
de representação. Não é que sejam da normalidade; é um conceito-
Myriam Southwell – As dimen- chave para pensar a política.
“superados” em um sentido dialé- sões que definem o populismo são:
tico, mas sua força de organização O ciclo de políticas democratiza-
de um campo significativo de repre- 1. O surgimento de um con- doras da primeira década do século
sentações ao seu redor desaparece: junto de forças e demandas hetero- XXI em nossa região, com as fer-
os componentes discursivos que gêneas que não podem ser integra- ramentas conceituais que a teori-
apareciam articulados ao redor de das organicamente dentro do siste- zação populista proporciona, per-
tal hegemonia ganham autonomia ma institucional/diferencial vigente. mitem dizer que essas experiências
em sua particularidade e o campo 2. Como os vínculos entre es- foram impulsionadas pela busca da
das representações coletivas perde sas demandas são diferenciais, só ampliação de direitos. Por isso, o
qualquer coerência interna. podem ser equivalentes (há uma cer- populismo é a lógica de articulação
ta “familiaridade” entre elas, porque política que estabelece uma fron-
A partir dessa noção, ele entende todos têm o mesmo inimigo). teira entre superiores e inferiores,
que o que aconteceu em vários paí- 3. A cadeia de equivalências entre os que se apropriam do Es-
ses latino-americanos nos últimos atinge seu ponto de cristalização em tado para dirigi-lo de acordo com
anos é que um novo limiar de per- torno de um significante vazio. seus interesses classistas individu-
cepção da política já começou a ser 4. Para desempenhar esse pa- ais e os que colocam o Estado como
desenvolvido, enquanto os limia- pel, o significante vazio é reduzido a um lugar de política pura – dilemá-
res anteriores entraram em uma um nome. tica, conflituosa – para ampliar os
crise irremediável. Mas também 5. Para que o nome desempe- direitos a uma parcela mais ampla
trata-se de variantes completa- nhe sua função, ele deve estar inves-
da população.
mente novas, porque pressupõem tido de “afeto”.
uma articulação completamente 6. A partir de um ponto de 7. Concluindo, Laclau aponta
diferente entre populismo e insti- vista conceitual, é possível perceber que há uma assimetria entre a
tucionalismo, que são os dois polos essa variabilidade como a relação comunidade como um todo (o
fundamentais em torno dos quais (instável) entre o movimento popu- populus) e quem está “abaixo” (a
a política se constitui. De acordo lista e o sistema institucional: (i) um plebe). A plebe é sempre uma parte
com Laclau, a tradição democrá- sistema institucional autorregulado que se identifica como um todo.
tica nacional popular representa que relega qualquer desafio anti-ins- Isto implica que uma demanda
um componente essencial desse titucional a uma situação marginal; popular específica encarne a pleni-
limiar político, mas há outros dois (ii) um sistema institucional menos tude ausente da comunidade, por

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meio de uma cadeia de equiva- das políticas educacionais na sempre precária – de significados
lências potencialmente infinitas. Argentina? ligados à docência.
Isto ocorre justamente pelo vazio
Myriam Southwell – A lógica de Nesse sentido, o caráter inerente-
do significante, que sendo parcial-
articulação que é tão significativa na mente político da reflexão, da ação
mente vazio pode absorver outras
análise de Laclau é uma grande con- e da organização educativa se con-
demandas e, assim, essa particu-
tribuição para pensar esse espaço firmam não mais como uma condi-
laridade adquire uma significação
tensionado, de múltiplas demandas, ção quase unidirecional de poder em
que o excede. A plebe nunca deixa
lugar de enunciação de posições e função de um determinado direcio-
de ser uma particularidade, o que
exigências diferentes e de diversas namento, mas como motor, como o
significa que o todo é sempre uma
ordens, como a educação. Vou resu- que se coloca em funcionamento em
totalidade fracassada.
mir o que para mim são duas con- torno de dilemas e, portanto, cria as
Não há campo popular sem o tribuições importantes dessa teoria condições de possibilidade para que
estabelecimento de uma relação para a teorização educacional: uma as disputas, confrontos, hibridações
equivalencial entre um conjunto perspectiva que transcende a deter- e negociações aconteçam e para que
de demandas sociais. A estrutu- minação (tão frequente ao tentar ex- realidades cotidianas sejam constru-
ração interna de cada demanda é plicar processos educativos) e uma ídas. É aí que reside o caráter políti-
o que importa e compreende di- forma de explicitação da natureza co da educação, que se vincula à na-
ferentes possibilidades. Ao entrar política da educação. tureza inalienável da decisão, assim
em uma cadeia equivalencial, toda como as decisões que são tomadas
A respeito do primeiro aspecto, a
demanda social aparece interna- em diferentes posições, não pre-
perspectiva da análise política do
mente: por um lado, temos a es- viamente estabelecidas, mas cons-
discurso nos permite ir além de uma
pecificidade, a particularidade da truídas em cada situação. Assim, a
abordagem dos sistemas de ensino
demanda; por outro, a rejeição im- educação se desenvolveu em torno
como reflexos que dependem da ló- de uma posição ativa, decisiva, ine-
plícita ao poder contra o qual ela gica externa; o que não quer dizer
é formulada. Laclau explicou que rentemente política, que se desen-
negar taxativamente a incidência de volve in loco e não é completamente
esses dois componentes da estru- características globais ou de aspec-
turação de cada demanda – a sua predeterminada. 39
tos econômicos, de crises socioeco-
especificidade e sua entrada no nômicas e regulações sociais etc. O
campo popular – têm peso relativo que queremos destacar é que o cam-
variável. Se a demanda específica
é imprecisa na sua formulação,
po da educação e os atores que lhe
dão vida não estão simplesmente su- “A hegemonia
predominava
sua constituição dependerá mais jeitos a determinações sobre as quais
de sua inscrição diferencial. Se, não têm relação, impassíveis e até
por outro lado, ela for mais autô-
noma e específica em sua formu-
mesmo indefesos perante as ondas
que encerram a politicidade de seu
no primeiro po-
lação, sua inscrição equivalencial
será sempre submetida a proces-
posicionamento e suas ações. pulismo latino
sos de renegociação contínua. É
a passagem da primeira para a
A respeito da segunda contribui-
ção, entender que o social é cons- -americano”
segunda alternativa que caracte- tituído por articulações políticas
riza o populismo latino-america- nos permitiu renovar e enfatizar
no atual, em relação ao populismo o peso da história e das tradições
IHU On-Line – Como é possí-
clássico. Enquanto incorporava à que funcionavam como uma forte
vel compreender os processos
esfera pública massas em grande base de tradução, especialmente
de transmissão cultural segun-
parte virgens e com baixo nível de no que diz respeito à dinâmica es-
do Laclau? Que alternativas ele
organização e identidade corpora- colar. As políticas de regulação do
apresenta para romper com a
tiva, os novos populismos devem trabalho docente poderiam, então,
ideia de hegemonia, tanto edu-
partir de sociedades civis muito ser entendidas como processos so-
cacional como política?
mais estruturadas e de atores so- ciais de significação, nas quais se
ciais muito mais autônomos em tenta fixar de maneiras diversas a Myriam Southwell – A educa-
sua ação coletiva. docência como posição de sujeito, ção, considerada como transmissão
no âmbito das diferentes enuncia- cultural, vincula-se aos projetos do
ções e significados em disputa. En- governo de cada sociedade de ma-
IHU On-Line – Quais são quanto intervenções discursivas, neira direta e muito complexa. Não
as contribuições de Laclau e estas políticas têm um caráter emi- existe um processo puramente co-
Mouffe na concepção de polí- nentemente político, controverso e municativo em termos funcionais,
ticas educacionais? O que re- associado às lutas pela hegemonia mas existem processos de significa-
velam sobre a história recente em termos de alcançar a fixação – ção, apropriação e seleção baseados

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em um contexto e realidades cons- gico é constituído como uma con- singularidade do indivíduo e
truídas que não estão previamente dição para a produção, reprodução qual o seu papel na articulação
mapeadas de maneira irreversível. e transformação da cultura. Não há com o todo, com o povo?
Em suma, um projeto pedagógico um processo de comunicação puro,
Myriam Southwell – Na teori-
deveria ser analisado não em relação em termos funcionalistas. Se con-
zação de Laclau e Mouffe, o sujeito
de continuidade com uma determi- siderarmos o processo educacional
não se encontra previamente consti-
nada demanda social, mas em rela- como uma reprodução da cultura
tuído, mas é efeito de atos de nome-
ção de articulação. dominante inalterada, sua histori-
ação, constituídos nas relações, não
cidade inerente é desconsiderada.
Já a noção de hegemonia não deve antes, ao contrário das construções
A transmissão/aquisição da cultura
ser pensada como algo negativo ou apriorísticas da subjetividade. Isso
deve ser entendida como um pro-
– por isso mesmo – deve-se procu- parte das contribuições da psicaná-
cesso de significação; caso contrário,
rar eliminá-la. Muito pelo contrá- lise e, portanto, é possível repensar
as identidades de quem ensina e de certas dinâmicas sociais, em termos
rio, essa noção possibilita reconhe-
quem aprende seriam consideradas de processos complexos que se rela-
cer a dinâmica do social sobreposta
essenciais e estabelecidas por deter- cionam com a necessidade de con-
à política. O conceito de hegemonia
minados mecanismos sociais. A rela- clusão, para cobrir uma falta, uma
advém inicialmente do pensamen-
ção política entre diferentes sujeitos tentativa sempre fracassada frente
to gramsciano, embora na obra de
dentro da sociedade pode participar a uma falta inerente. Devido a essa
Laclau e Mouffe esta categoria se
do processo de ensino-aprendiza- dinâmica de busca permanente de
distancie da centralidade classis-
gem, desordenando o dispositivo conclusão, são produzidos processos
ta no protagonismo revolucionário
de reprodução. Portanto, como for- de identificação simbólica perma-
e de caráter teleológico; também
mulado por Adriana Puiggrós12 em nentes, incompletos e instáveis, es-
introduz elementos discursivos.
1996, a educação pode ser entendida truturados em torno da “aceitação”
Conceber o discurso como uma
como um processo de transmissão e dessa falta constitutiva.
configuração significativa e aberta
aquisição, ensino e aprendizagem,
possibilita entendê-lo como condi- Isso pode gerar uma chave para a
de formas de diferenciação e articu-
ção de práticas hegemônicas. Con- compreensão das identidades so-
40 lação acumuladas culturalmente.
ceituar a hegemonia como prática ciais e políticas de forma não sim-
discursiva não implica reduzi-la a plista, bem como resgatar seu cará-
formas linguísticas de construção
de consenso, mas reconhecer que “Nos populis- ter de movimento, de eterna busca.
Por outro lado, permite compreen-
as operações específicas envolvidas
em uma prática hegemônica têm mos atuais, ela der a instabilidade constitutiva des-
sas identidades. Isto se contrapõe
como condição estarem enquadra-
das em redes significativas social-
[a hegemo- à ideia de sociedade como um todo
fechado e centrado. Em suma, for-
mente compartilhadas. A dinâmica
de uma prática hegemônica faz com
nia] se cons- nece elementos para uma subjetivi-
dade sociopolítica da subjetividade,
que uma demanda social específica
transforme seu conteúdo em uma
trói através de compatível com as bases teóricas do

fixação parcial de significado, em


torno do qual outras demandas so-
uma passagem pós-estruturalismo.
Há algo que também aprendemos
ciais são articuladas. Consequente- pela organiza- muito bem com sua estratégia ana-
lítica: que a pluralidade de relações
ção autônoma
mente, esta transformação dentro
dos elementos articulatórios envol- sociais de dominação que compõem
o plexo social exige uma estratégia
ve uma luta política.
Um projeto educacional não deve
de uma plura- política de articulação das múlti-

lidade de ato-
plas lutas em torno das diferentes
ser analisado em relação de conti- demandas democráticas de uma for-
nuidade com uma demanda social
específica, mas em uma relação de res sociais” mação social concreta.

articulação. Além disso, as identida-


des particulares são sempre instá- IHU On-Line – Quais são os
veis e os conteúdos dessa relação de IHU On-Line – De que forma
discursos pedagógicos da Ar-
Laclau e Mouffe entendem a
articulação são permanentemente gentina pós-ditadura? Até que
“renegociados”. A educação está di-
12 Adriana Victoria Puiggrós (1941): pedagoga argen-
ponto esses discursos podem
retamente ligada aos projetos políti- tina. Também integra o partido Frente Grande, pelo qual trazer luz às reflexões sobre
foi deputada federal. Entre 2005-2007 foi diretora geral da
cos de cada sociedade, mas de uma Cultura e Educação da Província de Buenos Aires. Em 2001, a política no país hoje? E que
forma muito mais complexa do que foi secretária de Estado da Ciência, Tecnologia e Inovação relações podemos estabelecer
Produtiva. É a filha do intelectual e político Rodolfo Puig-
se imagina. O dispositivo pedagó- grós. (Nota da IHU On-Line) com outros países latino-ame-

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ricanos que viveram a experi- argentino tinha antes da ditadura,


ência da ditadura militar, como ampliando sua cobertura, remo- “Não há cam-
o Brasil? vendo as restrições para a admissão
Myriam Southwell – A análise
às instituições de ensino e promo- po popular sem
da experiência de recuperação de-
mocrática na Argentina envolveu a
vendo formas de participação. O
caráter polissêmico da democra- o estabeleci-
reconstrução da hegemonia imple-
mentada pelo novo governo, através
cia também estava presente, e os
debates educacionais eram o eixo mento de uma
da confrontação com o regime mi-
litar, o restabelecimento do Estado
da dicotomia democracia-autori-
tarismo como ponto de partida. relação equi-
de Direito, buscando acordos ou a Significantes como a democracia, a
participação, o pluralismo, a sobe-
valencial entre
realocação das instituições clássicas
de representação. Através desse po- rania, entre outros, foram adotados
como o quadro a partir do qual di-
um conjunto
de deman-
sicionamento, o primeiro governo
pós-ditatorial procurou estabelecer ferentes projetos pedagógicos eram
enunciados. Isto criou condições
uma fronteira com o passado como
condição para o surgimento de um para que documentos oficiais, bem das sociais”
novo regime político, a partir da como os não oficiais, as prescrições
criação de um antagonismo que ha- e recomendações para experiências
via cristalizado, de uma só vez, uma pedagógicas compreendessem essas IHU On-Line – De que forma
fronteira temporal e política. ideias antiautoritárias. Esse clima os escritos de Laclau podem
estimulou fortes apostas quanto ao nos inspirar a pensar sobre as
O alfonsinismo13 construiu sua he- ensino de direitos humanos, experi- ditaduras latino-americanas?
gemonia em torno do significante ências de educação não formal, mo- Até que ponto seu pensamen-
democracia. A democracia ocupou vimentos estudantis etc. to contribuiu na construção de
um lugar central em todos os dis- uma democracia que supera o
cursos da época; por exemplo, uma Neste contexto, a Igreja Católica or-
totalitarismo ditatorial? 41
das declarações mais famosas – e ganizou seu campo de argumentação
reiteradas – de Alfonsín14 foi “com a partir da ideia de pluralismo, invo- Myriam Southwell – Duas coisas
a democracia se come, se cura e se cando a noção de pluralidade (que podem ser entendidas por democra-
educa”... Assim, articulavam-se sig- não exercia) para discutir com aqui- cia: o funcionamento das instituições
nificados relacionados ao bem-es- lo que entendia como monopólio liberais, ou então o ator democrático
tar da sociedade (nutrição, saúde, estatal no campo pedagógico. Este e coletivo inspirado no conceito de
educação, liberdade, representação é um exemplo de uma tentativa de igualdade. Ou seja, as reformas po-
política etc.) em torno do signifi- dominar o campo da discursividade pulares democráticas se desenvolve-
cante democracia. Toda a produção por meio da articulação do conceito ram em um quadro institucional não
discursiva presidencial tentou ligar de pluralidade ao significante demo- liberal. Em 2013, Laclau defendia que
o sentido de cada ação governa- cracia, relacionando a discussão do as tradições popular-nacional-de-
mental ao propósito de construção continente democrático com o con- mocrática e liberal-democrática, por
de um regime político democrático. teúdo do “pluralismo”. Ou seja, par- muito tempo, foram linhas paralelas,
Nas palavras de Laclau, a restaura- ticipava da discussão sobre o signifi- mas que nos últimos trinta anos, de-
ção da ordem democrática funcio- cante democracia carregando-o com vido às mais brutais ditaduras que o
nou como a superfície de inscrição, o sentido de pluralidade que possibi- continente já viveu, que golpearam as
sempre incompleta, para uma ple- litava dar um xeque-mate à presença duas tradições, têm convergido, pois
nitude ausente. do Estado, buscando restaurar sua já não são incompatíveis com o fun-
presença como agência educacional cionamento democrático-liberal das
Em termos pedagógicos, o discur- desenvolvida na segunda metade do instituições.
so que impulsionou as políticas e
século XX.
instituições da época foi anunciado Se a democracia é possível, é porque
como “democrático” para superar Processos semelhantes acon- o universal não tem o corpo nem o
o regime autoritário anterior, ten- teceram nos países vizinhos, em conteúdo necessário. Pelo contrário,
tou generalizar as características relação às cadeias equivalenciais diversos grupos – entre semelhantes
estruturais que o sistema educativo que se desenvolveram em torno da – competem entre si para dar a suas
ideia que desenvolveu o direito à funcionalidades uma função de repre-
13 Alfonsinismo: perspectiva política relacionada a Raúl educação, ou com os significantes sentação universal, de modo tempo-
Ricardo Alfonsín, ex-presidnete da Argentina, advogado,
político, estadista e promotor de direitos humanos. (Nota inclusão ou profissionalização, ar- rário. A sociedade gera todo um vo-
da IHU On-Line)
14 Raúl Ricardo Alfonsín (1927-2009): advogado e po- ticulando-o com conteúdos espe- cabulário de significantes vazios cujos
lítico argentino, presidente de seu país de 1983 a 1989. cíficos, como parte da discussão sentidos temporários são o resultado
Foi uma das figuras mais importantes da história de seu
partido, a União Cívica Radical. (Nota da IHU On-Line) hegemônica. de uma competição política.■

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

Laclau e a redescoberta
da rebeldia do povo
Hugo Cancino observa a obra laclauniana como forma de atualizar
perspectivas de obras clássicas. Para ele, é por meio do pensador
argentino que se pode chegar à potência dos pobres e submersos
João Vitor Santos | Tradução: Moisés Sbardelotto

H
ugo Cancino é um dos pesqui- tante perceber, como Laclau percebeu,
sadores que recomenda a leitu- que a realidade “não podia se reduzir
ra de Ernesto Laclau com vistas às classes sociais em conflito, mas sim
à inspiração para pensar mais sobre o à existência e luta de muitos sujeitos so-
tempo em que vivemos. E, para fazer o ciais, étnicos e culturais”. “Nessa mes-
atravessamento entre a realidade con- ma compreensão e tentando compre-
creta e a teoria do autor, sugere: “Tal- ender Laclau, no nosso mundo de hoje,
vez, junto com Laclau, devêssemos ler, estão presentes outros componentes,
como Laclau, os anarquistas, os que como as crises políticas, de representa-
perderam a batalha, como Leon Trot- ção e também a crise das elites políti-
ski”. Cancino acredita que o pensador cas. Como se vê, por exemplo, nos casos
é importante para que se consiga trazer do Chile e do Brasil”, completa. E pro-
para a atualidade grandes clássicos que, voca: “Até agora, o populismo realmen-
42 no passado, foram fundamentais para te existente nunca alcançou a altura e
compreender o mundo. “O pensamento a radicalidade do peronismo de 1945 a
de Laclau, sua releitura da hegemonia 1955. Essa foi a temática de Ernesto La-
gramsciana e dos outros clássicos do clau para iniciar a sua pesquisa sobre os
pensamento marxista passam a fazer movimentos nacional-populares”.
parte dos rebeldes de hoje na França,
Itália, Espanha e América Latina, que, a Hugo Cancino é professor emérito
partir da indignação, chegaram, depois do Institut for Kultur og Globale Stu-
de uma longa jornada, a redescobrir a dier da Aalborg University, Dinamarca.
rebeldia que está latente nos pobres, Licenciado em História pela Univer-
nos submersos, em última análise, nos sidad de Chile, Santiago, é Ph.d. em
de baixo”, destaca. História pela Aarhus Universitet. Re-
centemente, publicou o artigo sobre a
Na entrevista a seguir, concedida por
pesquisa que desenvolve: Ernesto La-
e-mail à IHU On-Line, o professor
clau y su contribución a los Estudios
demonstra como o pensador argentino
elabora que, ao longo do século XX, a Latinoamericanistas (In: Sociedad y
“realidade havia se tornado complexa discurso, AAU, No. 30, 2017, p. 4-23).
e opaca”. Assim, destaca que é impor- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compre- mo” na compreensão de Laclau. O A significação e a contribuição de La-
ender a realidade política do termo existia antes de Laclau, com clau foram de criar um novo aparato
nosso tempo a partir do concei- uma acepção negativa de demago- conceitual, crítico e aberto, para com-
to de populismo de Laclau? gia, caudilhismo, ofertas de melho- preender a “nova realidade” emer-
ria social desmedidas etc. Foi Laclau gente depois do fim da Guerra Fria e
Hugo Cancino – Atrevemo-nos quem conferiu ao termo um status do bloco soviético, e da dissolução do
a postular que a “realidade” política científico no contexto de uma nova paradigma do “marxismo-leninista”
do nosso tempo é bastante complexa lógica política que podia levar a uma que foi a “ideologia” da esquerda. La-
e, talvez, não poderia ser totalmente nova forma de democracia e repre- clau enfatizou em seus trabalhos e ar-
compreendida pelo termo “populis- sentação. tigos que a “realidade” havia se torna-

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Laclau enfatizou em seus


trabalhos e artigos que a
‘realidade’ havia se tornado
complexa e opaca”

do complexa e opaca e, portanto, não ou Macron3? processo da transição democráti-


podia se reduzir às classes sociais em ca, fundamentada no consenso dos
Hugo Cancino – Ambos os ca-
conflito, mas sim à existência e luta dois grandes partidos: Aliança Po-
sos de irrupção populista se enqua-
de muitos sujeitos sociais, étnicos e pular e Partido Socialista Operário
dram em contextos políticos, sociais
culturais. Nessa mesma compreen- Espanhol - PSOE. Na realidade,
e ideológicos, em última análise,
são e tentando compreender Laclau, ambas as formações reagiram com
muito diferentes. Em nenhum dos
no nosso mundo de hoje, estão pre- hostilidade contra os jovens que
três casos houve um vazio de po-
sentes outros componentes, como protestavam a partir de baixo, em
der, nem na Espanha, na França ou
as crises políticas, de representação vez dos espaços institucionalizados
nos Estados Unidos. O que houve
e também a crise das elites políticas. (aqueles que, aliás, estavam obstru-
foi uma rebelião contra as elites de
Como se vê, por exemplo, nos casos ídos pelo sistema).
poder, uma classe política, no caso
do Chile e do Brasil.
espanhol, uma casta oligárquica, Esse contexto foi preparando o ca-
Esse contexto [de crises] não leva afastada do povo e de seus proble- minho para o que seria o Podemos, 43
necessariamente à irrupção de movi- mas cotidianos, e velhos partidos um partido-movimento, que não ti-
mentos populistas, ou seja, à rebelião políticos esgotados, sem discursos nha um domicílio institucionalizado,
dos de baixo, que crie um novo cená- de renovação. A esquerda tradicio- como os velhos partidos-sistema.
rio, em que os antagonismos sociais nal faz parte desse processo de crise Não se declararam nacional-popula-
se aprofundem de tal maneira que o do discurso e de carência de pers- res, mas, ao se lerem seus manifes-
impasse entre os blocos sociais se re- pectivas para continuar. tos, intervenções e vídeos na web,
solva com a força de um sujeito social eles mostravam simpatia para com
ou de um líder carismático que encha Podemos os novos movimentos nacional-po-
de conteúdos classistas o significante pulares na América Latina. A partir
vazio, de que Laclau fala, e produza O Podemos, na Espanha, está dire- do momento em que ingressaram
a ruptura populista: todo o poder aos tamente vinculado às mobilizações no Parlamento, foram acusados pe-
cidadãos. Isto é, criar poder popular dos “indignados”, que irromperam los dois partidos eixos do poder de
nos termos de Laclau. no cenário social proclamando uma serem “populistas” e “demagogos”.
corrente de reivindicações, tanto da Pela primeira vez, escuta-se nas cor-
juventude quanto dos desemprega- tes e nos meios de comunicação um
IHU On-Line – A partir desse dos, aposentados e marginalizados discurso que denuncia a “casta” diri-
conceito de populismo, como na Espanha. A geração que operou gente, seus escândalos de corrupção
entender a ascensão de partidos como vanguarda emitiu um discur- com bens públicos e a atitude com-
como Podemos1, na Espanha, e so de desconfiança e crítica radical placente do PSOE. Sua presença so-
também de líderes como Trump2 ao sistema, à ordem que surgiu no cial e política é inegável, mas ainda
estão longe de criar uma maioria que
1 Podemos: partido político espanhol que foi fundado em Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal,
2014, fortemente influenciado pelas ideias do movimento riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná
consiga reverter o regime de Rajoy4,
15M. Um de seus principais representantes é Pablo Igle- -lo famoso. (Nota da IHU On-Line)
sias Turrión. Surge num momento de reestruturação da 3 Emmanuel Macron [Emmanuel Jean-Michel Frédé-
esquerda no mundo. Atualmente, é o favorito para eleição ric Macron ] (1977): é um político, funcionário público e 4 Mariano Rajoy Brey (1955): é um político espanhol,
presidencial na Espanha. (Nota da IHU On-Line) banqueiro francês, atual presidente do seu país. Macron presidente do governo da Espanha. Realizou os seus es-
2 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um empre- estudou na escola jesuíta de Amiens, tendo boas notas, tudos no Colegio Discípulas de Jesús de León, no Colegio
sário, ex-apresentador de reality show e atual presidente até ser enviado por seus pais para estudar seu último ano Sagrado Corazón de los Jesuitas de León e concluiu os
dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito do ensino secundário em Lycée Henri-IV, de Paris. Macron estudos secundários numa escola pública de Pontevedra.
o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republi- estudou filosofia na Universidade de Paris X - Nanterre, Licenciado em Direito, é conservador do Registo Predial
cano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton concluiu um mestrado em políticas públicas no Instituto espanhol, carreira em que ingressou imediatamente após
no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto, de Estudos Políticos de Paris. Enquanto estudou nesta ins- finalizar o curso, em 1978. A partir de 1981 foi deputado
perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o pro- tituição, foi assistente do filósofo Paul Ricœur. Depois, se na comunidade autônoma da Galiza, eleito pela Aliança
tecionismo norte-americano, por onde passam questões formou na Escola Nacional de Administração em 2004. Em Popular, movimento que estaria na gênese do atual Par-
econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos seguida, passou a trabalhar na Inspeção-Geral de Finanças tido Popular. Em 1983 foi eleito membro do Conselho
Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The antes de se tornar um sócio do banco Rothschild. (Nota Municipal da Câmara Municipal de Pontevedra. Em 1987
Trump Organization e fundador da Trump Entertainment da IHU On-Line) foi eleito vice-presidente da Junta da Comunidade da Ga-

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TEMA DE CAPA

reduzir a gravitação da Igreja Católi- ção entre populismo e capita- vismo, com Maduro11, tem poucas
ca, eliminar o apoio financeiro para lismo no nosso tempo? perspectivas de vida longa, acossado
uma instituição que não representa por movimentos civis com ampla
Hugo Cancino – Se, na primeira
as jovens gerações da Espanha. representação de jovens da oligar-
parte da sua pergunta, você se refere
quia tradicional, jovens brancos ou
aos movimentos nacional-populares
Macron branqueados. As mobilizações vene-
da América Latina, seria possível
zuelanas dos setores oligárquicos me
Macron é o caudilho dos setores afirmar que nenhum deles alcançou
lembram mobilizações semelhantes
médios franceses. A sua rebelião não um desenvolvimento de uma força
no Chile no período de 1972 – que
sairá dos marcos do neoliberalismo, social e política que lhes permita
preparou o caminho para o Golpe de
cuja dimensão mais impiedosa nós desalojar o capital financeiro dos
1973. A crítica central da esquerda
conhecemos no Chile desde Pino- seus bastiões de poder econômico e
revolucionária dos anos 1970 foi que
chet5 até a Sra. Bachelet6. cultural: em geral, podemos afirmar
os movimentos populistas nunca
que até agora dominou um reformis-
chegaram muito longe nos seus ob-
Trump mo moderado, que não impulsionou
jetivos anticapitalistas. Até agora, o
medidas anticapitalistas nem criou
populismo realmente existente nun-
Trump recolheu a indignação dos um novo Estado nacional, tarefa his-
ca alcançou a altura e a radicalidade
setores do povo branco e de todos tórica que Evo Morales7, o chavismo8
do peronismo de 1945 a 1955. Essa
aqueles que viam na elite governan- ou o movimento de Correa9 no Equa-
foi a temática de Ernesto Laclau para
te, em seus privilégios e em seus tí- dor prometeram.
iniciar a sua pesquisa sobre os mo-
tulos profissionais, os seus inimigos.
Há algum tempo, eu li um artigo de vimentos nacional-populares, nome
Diante da indignação de todo esse
James Petras10, em que ele afirmava outorgado pelo cientista ítalo-argen-
mundo, tão longe de Deus como das
que, em três anos, a Unidade Popu- tino Gino Germani12.
elites governantes aos empresários e
lar chilena fez mais do que o cha-
com um discurso confuso e contra- Com relação aos movimentos po-
vismo, embora nas condições mais
ditório, a primeira coisa que fez foi pulistas emergentes na Europa nas
difíceis do processo chileno. No caso
chamar empresários a fazerem parte últimas duas décadas, posso dizer
de Correa e Evo, parece-me que eles
44 do seu governo, junto com generais que todos se inscrevem em uma
foram generosos ao alcançar acordos
aposentados. A religião sempre este- perspectiva nacional-étnica. Tenho
com setores do capital financeiro in-
ve presente na velha direita republi- dúvidas de que seus dirigentes ou
ternacional. Entendemos que o cha-
cana, nos setores racistas etc. ideólogos leram Laclau, que os ana-
lisa brevemente em seu livro pós-
7 Evo Morales [Juan Evo Morales Ayma] (1959): é o atual
presidente da Bolívia. Líder sindical dos cocaleros, desta-
tumo. Restaurar a nação étnica, “a
IHU On-Line – Podemos afir- cou-se ao resistir aos esforços do governo dos Estados pureza do sangue”, como diziam os
mar que a perspectiva do po- Unidos para substituição do cultivo da coca, na província
de Chapare, por bananas, originárias do Brasil. De orien- conquistadores hispânicos, é uma
pulismo pode ser um caminho tação socialista, o foco do seu governo tem sido a imple- utopia impossível de se realizar em
mentação da reforma agrária e a nacionalização de seto-
para enfrentar os movimen- res chaves da economia, contrapondo-se à influência dos países que, durante décadas, recebe-
tos do capital financeiro hoje? Estados Unidos e das grandes corporações nas questões
políticas internas da Bolívia. De etnia uru-aimará, Morales ram e recebem enormes aportes de
Como compreender essa rela- destacou-se a partir dos anos 1980, juntamente com Feli- população de outros países europeus
pe Quispe e Sixto Jumpiri e alguns outros, na liderança do
campesinato indígena do seu país. (Nota da IHU On-Line) ou do Oriente Médio, como no caso
8 Chavismo: é o nome dado à ideologia de esquerda polí-
liza. Em 1989 foi eleito deputado nacional, numa altura tica baseada nas ideias, programas e estilo de governo as- dos turcos, que são a maior minoria
em que passou também a fazer parte do Comité Execu-
tivo Nacional do recém-criado PP. Também foi ministro
sociados com o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez. étnica na Alemanha e na Dinamarca.
Chavista é um termo utilizado para descrever apoiadores
da Administração Pública do governo espanhol liderado de Chávez. O chavismo, nas palavras de alguns dos seus
por José María Aznar entre 1996 e 2003, vice-presidente principais partidários, é composto por três fontes básicas: Todos os partidos nacionalistas,
do Governo (2000-2003), e presidente do Partido Popular as ideias de Simón Bolívar, Ezequiel Zamora e Simón Ro- novos e antigos, se projetam para
(PP), principal partido na Espanha após as eleições de 20 dríguez, e também um socialismo revisado que é definido
de novembro de 2011. Em fevereiro de 2001 deixou de ser como o “socialismo do século XXI”. Da mesma forma, o a extrema direita. Embora a direita
ministro da Presidência para suceder na pasta do Interior chavismo toma ideias de Ernesto Guevara, Fidel Castro,
a Jaime Mayor Oreja. Como responsável deste ministério, Augusto César Sandino, Camilo Cienfuegos, entre outros. clássica não os tolere muito, em cer-
Rajoy conseguiu importantes conquistas na luta contra a
organização terrorista ETA. (Nota da IHU On-Line)
(Nota da IHU On-Line)
9 Rafael Correa [Rafael Vicente Correa Delgado] (1963):
tos casos, o fim justifica os meios,
5 Augusto Pinochet (1915-2006): general do exército chi- economista e político equatoriano, atual presidente de como no caso do Partido Popular
leno, governante do Chile após chegar ao poder em 11 de seu país. Criado numa família de classe média na cidade
setembro de 1973, pelo Decreto Lei Nº 806 editado pela portuária de Guaiaquil, Correa ganhou bolsas para estudar Dinamarquês, partido xenófobo
junta militar (Conselho do Chile), que foi estabelecida para na Europa e nos Estados Unidos. Economista, foi assessor que apoia a coalizão de direita que
governar o Chile após a deposição e suicídio de Salvador do ex-presidente Alfredo Palacio durante suas funções
Allende, e posteriormente tornado senador vitalício de seu como vice-presidente. Depois, foi ministro de Economia
país, cargo que foi criado exclusivamente para ele, por ter e Finanças no início da gestão de Palacio na presidência,
sido um ex-governante. Governou o Chile entre 1973 e entre abril e agosto de 2005, após a destituição de Lucio 11 Nicolás Maduro Moros (1962): é um político vene-
1990, depois de liderar a junta militar que derrubou o go- Gutiérrez. Renunciou ao cargo por discordar da política zuelano, atual presidente da República Bolivariana da Ve-
verno de Salvador Allende. (Nota da IHU On-Line) presidencial. É casado com Anne Malherbe. (Nota da IHU nezuela. Depois de, como vice-presidente constitucional,
6 Michelle Bachelet [Verónica Michelle Bachelet Jeria] On-Line) assumir o cargo com a morte do presidente Hugo Chávez,
(1951): médica e política chilena. É a atual presidente da 10 James Petras: professor emérito de Sociologia da Uni- foi eleito em 14 de abril de 2013 para mandato como 57º
República do Chile, eleita em 2006. Desde 2008, é também versidade de Binghamton, em Binghamton, Nova York, e presidente da Venezuela. (Nota da IHU On-Line)
presidente da União de Nações Sul-Americanas. Membro professor adjunto da Universidade de Saint Mary, Halifax, 12 Gino Germani (1911-1979): foi um sociólogo italiano,
do Partido Socialista do Chile, ela ocupou o lugar de Mi- Nova Escócia, Canadá. Autor prolífico, publicou vários tra- precursor e referente da Argentina à sociologia latino-a-
nistra da Saúde no governo de Ricardo Lagos, entre 2000 balhos sobre questões políticas da América Latina e Orien- mericana. Ele praticou uma sociologia de base científica,
e 2002, e mais tarde, o carto de Ministra da Defesa, sendo te Médio. Ele há muito apoia os revolucionários das FARC longe da filosofia social, mas também comprometida.
a primeira mulher a exercer este cargo na América Latina. na Colômbia e vem apoiando o Movimento dos Sem Terra Germani dá especial atenção para os métodos de inves-
(Nota da IHU On-Line) no Brasil. (Nota da IHU On-Line) tigação. (Nota da IHU On-Line)

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governa a Dinamarca. Não resta Esse internacionalismo se forta- na depois do fim da Guerra Fria”.
dúvida de que todos esses partidos leceu com a Revolução Russa de Postulamos, então, uma tipologia
se identificam com o sistema capi- 1917, que tomou o céu de assalto. A da esquerda em três categorias:
talista, com as oligarquias e com as fundação da Terceira Internacional, esquerda tradicional marxista-le-
elites de poder. primeiro, fez do internacionalismo ninista, um centro-esquerda que
um imperativo objetivo e ético. Os se orientava cada vez mais a uma
partidos comunistas e operários da capitulação da sua essência, a
IHU On-Line – Como analisa América Latina foram seções da Ter- aceitar pactos com as elites eco-
a esquerda no mundo de hoje? ceira Internacional. Depois da morte nômicas, a comer do mesmo pra-
Hugo Cancino – Eu me atre- de Lenin16 e do stalinismo17, a con- to com a oligarquia e, em seguida,
veria a defender que a crise da versão em dependências sem direito manter uma presença formal no
esquerda na América Latina faz a discutir criticamente os desvios da movimento operário. Nesse mes-
parte da crise da esquerda global. Internacional. A constituição de um mo artigo, afirmávamos que a úni-
Seria preciso acrescentar que a corpus ou cânone ideológico, o mar- ca esquerda realmente existente
nossa esquerda, desde a sua gesta- xismo-leninismo, é apenas o começo se expressava nos movimentos na-
ção no fim do século XIX, em pa- da grande crise ideológica da esquer- cional-populares que irromperam
íses como Argentina, Chile, Brasil da global. no fim do século XIX.
etc., que experimentaram uma
Todos esses esquemas, manuais
primeira industrialização e, quase
da doutrina, rituais canonizados,
paralelamente, ali, foram se estru-
turando formas sindicais como as
geraram crise no fim do século XX. “Podemos afir-
Derrubou-se o sistema, os muros da
Mancomunais [Mancomunales],
com uma gravitação de grupos e
teoria, que, na verdade, foi um dog- mar que até
agora dominou
ma. A dissolução do paradigma que
organizações anarquistas. As emi-
foi o guia do movimento internacio-
grações a partir da Europa de mi-
litantes anarquistas, alguns dos
quais tinham participado na fun-
nal derrubou as organizações mar-
xistas-leninistas. A crise também um reformis-
45
dação da Primeira Internacional13
e da Comuna de Paris 14. Ou seja,
foi a crise da Social-Democracia
europeia e dos partidos socialistas mo moderado”
desde o começo, o movimento se europeus e, singularmente, do PS
projetou como internacionalista chileno, supostamente renovado,
no espírito do Manifesto Comu- que renunciou ao marxismo e, fi-
nista15 e do discurso anarquista. nalmente, entrou sem discussão no IHU On-Line – Como as pers-
curso da globalização neoliberal. pectivas políticas da direita se
13 Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT): apropriam das lógicas do popu-
também conhecida como Primeira Internacional ou sim- Hoje, a corrupção generalizada
lismo?
plesmente Internacional, foi uma organização internacio- da elite política chilena faz com
nal fundada em setembro de 1864. Foi a primeira orga-
nização operária a superar fronteiras nacionais, reunindo que o partido da bandeira verme- Hugo Cancino – Não é possível
membros de todos os países da Europa e também dos
Estados Unidos. A organização abrigou, em seu seio, tra- lha, com um machado indígena no detectar uma influência da teoria
balhadores das mais diversas correntes ideológicas de es- seu centro, seja um partido cuja política de Laclau e da lógica da polí-
querda: de comunistas marxistas até anarquistas bakuni-
nistas e proudhonianos, além de sindicalistas, reformistas, liderança se articulou com a eli- tica do populismo na direita clássica
blanquistas, owenistas, lassalianos, republicanos e demo-
cratas radicais e cooperativistas. (Nota da IHU On-Line) te empresarial chilena. Há alguns europeia, isto é, os partidos conser-
14 Comuna de Paris: foi o primeiro governo operário da anos, escrevemos um artigo intitu- vadores, liberais e social-democra-
história, fundado em 1871 na capital francesa por ocasião
da resistência popular ante a invasão por parte do Reino lado “A esquerda latino-america- tas. Eu não acho que os dirigentes e
da Prússia. A história moderna registra algumas experiên-
cias de regimes comunais, impostos como afirmação re- militantes desses grupos conhecem
volucionária da autonomia da cidade. A mais importante cialismo científico Karl Marx e Friedrich Engels, expressa os trabalhos de Laclau. Como parên-
delas — a Comuna de Paris — veio no bojo da insurrei- o programa e propósitos da Liga. (Nota da IHU On-Line)
ção popular de 18 de março de 1871. Durante a guerra 16 Lênin [Vladímir Ilyitch Lenin ou Lénine] (1870-1924): teses, eu gostaria de acrescentar que
franco-prussiana, as províncias francesas elegeram para a originariamente chamado de Vladímir Ilyitch Uliânov.
Assembleia Nacional Francesa uma maioria de deputados Revolucionário russo, responsável em grande parte pela Laclau nunca foi muito conhecido
monarquistas francamente favorável à capitulação ante a execução da Revolução Russa de 1917, líder do Partido em círculos amplos fora das univer-
Prússia. A população de Paris, no entanto, opunha-se a Comunista e primeiro presidente do Conselho dos Co-
essa política. Louis Adolphe Thiers, elevado à chefia do missários do Povo da União Soviética. Influenciou teori- sidades. Nas universidades euro-
gabinete conservador, tentou esmagar os insurretos. Es- camente os partidos comunistas de todo o mundo. Suas
tes, porém, com o apoio da Guarda Nacional, derrotaram contribuições resultaram na criação de uma corrente teó- peias, sempre houve estudantes que
as forças legalistas, obrigando os membros do governo a rica denominada leninismo. (Nota da IHU On-Line) fizeram seus mestrados e também
abandonar precipitadamente Paris, onde o comitê central 17 Stalinismo: designa o período em que o poder políti-
da Guarda Nacional passou a exercer sua autoridade. A co na antiga União Soviética foi exercido por Josef Stalin. suas teses doutorais inspirados em
Comuna de Paris — considerada a primeira república pro- O stalinismo não chega a ser uma teoria, uma vez que
letária da história — adotou uma política de caráter socia- sequer articula de forma sistemática ou original deter- seus escritos. Seus melhores acertos
lista, baseada nos princípios da Primeira Internacional dos minados conceitos ou princípios. O termo “stalinismo”, foram como expositor, nas entrevis-
Trabalhadores.(Nota da IHU On-Line) na maioria das vezes, designa essencialmente o domínio
15 Manifesto Comunista: originalmente denominado absoluto de uma dada liderança, a qual dispõe de meios tas e nas conferências que proferiu
Manifesto do Partido Comunista (em alemão: Manifest der por intermédio dos quais estabelece como verdade a sua
Kommunistischen Partei), publicado pela primeira vez em interpretação particular do marxismo, do qual se arvora a na Argentina e na Venezuela e em
21 de fevereiro de 1848, é historicamente um dos tratados condição de único e legítimo intérprete. Neste sentido, o outros países da região, em nível de
políticos de maior influência mundial. Comissionado pela stalinismo reproduz e alimenta uma estrutura de pensa-
Liga Comunista e escrito pelos teóricos fundadores do so- mento único. (Nota da IHU On-Line) base operária popular. Nesse setor,

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TEMA DE CAPA

demonstrou uma imensa capacidade um regime populista (a palavra era belecer a separação do espaço políti-
pedagógica e de comunicação. inexistente na linguagem política co do povo e o antipovo. Ele ganhou
dos anos 1920). Até a segunda déca- a eleição por poucos votos, com o
Todos esses partidos da Europa
da do século XX, as bases sociais de apoio da jovem oficialidade do Exér-
Ocidental professam um nacio-
sustentação do Estado oligárquico cito e conseguiu impor uma série de
nalismo extremo e de mitos fun-
eram demasiadamente estreitas para reformas sociais e políticas, e gerar
dacionais sobre a história de seu
resistir ao embate das demandas so- uma nova Constituição, a Constitui-
país. De acordo com o que foi ex-
ciais e políticas das classes médias ção de 1925. O movimento popular
posto, duvido que a extrema direi-
emergentes, que se articulavam com alessandrista pode se associar com
ta nacionalista e étnica entendeu
as reivindicações operárias e popu- outros movimentos populares e na-
a lógica da globalização. Desde o
lares. A classe operária chilena ges- cionais semelhantes, como o de Iri-
fim do século XX, esses grupos e
tada nas jazidas de salitre do Norte goyen21 na Argentina e o de Batlle y
também a esquerda revolucionária
Grande já havia se constituído como Ordóñez22 no Uruguai, que geraram,
a repudiaram a partir de ângulos
um ator social com suas incipientes em maior ou menor grau, reformas
diferentes. Para os nacionalistas
organizações classistas e políticas. políticas e sociais de alcance limita-
de direita, a globalização destrui-
O bloco oligárquico no poder, inte- do.
ria as culturas nacionais e permiti-
grado pelos proprietários de terra, as
ria a emigração massiva de etnias
facções financeiras, comerciais e de Significante vazio
e povos indesejados.
mineração da burguesia, continuava
A esquerda se pronunciou contra a agindo como o único sujeito coletivo Uma vez, Ernesto Laclau escreveu
globalização capitalista e a imposi- atuante na cena política no manejo que os movimentos populistas emer-
ção desse modelo por toda a parte. do poder do Estado. giam no cenário social como atores
Tinha razão nesse ponto. Embora o frente a uma situação marcada por
Com o movimento social encabe- uma crise política, em que se esten-
próprio Karl Marx18 tenha previsto
çado pelo político e agitador liberal de o descontentamento no povo e as
esse mesmo fenômeno que chamou
Arturo Alessandri Palma20 como queixas generalizadas. Laclau men-
de universalização. No Manifesto
candidato presidencial em 1920, cionou que uma corrente de queixas
Comunista19, ele afirmou que ne-
46 emergiu no cenário político um am- heterogênea não é suficiente para
nhuma muralha chinesa poderia im-
plo movimento popular integrado uma ruptura populista. Essa cor-
pedir o intercâmbio de mercadorias,
por profissionais, funcionários do rente precisa daquilo que denomino
livros, e a revolução sempre foi vista
setor público e privado que exigiam como significante vazio, que unifi-
como um processo internacional.
representação no poder de Estado, que essas demandas frente ao po-
sua democratização e a implemen- der, isto é, as elites que não podem
IHU On-Line – De que forma tação de reformas sociais, junto solucionar o impasse entre o povo e
a experiência nacional-popular com uma crescente classe operária, a elite. O significante vazio pode ser
do Chile no século XX ajuda a que, já há duas décadas, havia erigi- um slogan ou um líder que emerge
compreender o conceito de po- do suas primeiras formas de orga- como caudilho nacional e popular.
pulismo em Laclau? E o que es- nização social e política. O povo se
sas experiências revelam sobre sentiu interpelado pelo discurso de
a potência e os limites dessa reforma da política social de Ales- 21 Juan Hipólito del Sagrado Corazón de Jesús Yri-
goyen Alem (1852-1933): foi um político argentino, por
perspectiva? sandri. Um político jovem, filho de duas vezes presidente de seu país (1916-1922 e 1928-
emigrantes, cuja oratória projetou 1930). Em 1893, assume a presidência da União Cívica Ra-
dical na província de Buenos Aires. Logo depois da morte
Hugo Cancino – Com efeito, o pela primeira vez a imagem de um de seu tio Leandro, em 1896, assume a liderança do parti-
Chile experimentou duas experiên- político antioligárquico. do. A UCR segue a política de abster-se de participar tanto
das eleições, como do governo até que se satisfaçam suas
cias fracassadas de instauração de reivindicações por um sistema eleitoral mais amplo, elei-
Pela primeira vez na história social ções livres e honestidade no governo. Assume como polí-
tica, uma postura de total oposição ao regime, que alter-
do Chile, um político cujo discur- nava no governo distintos setores conservadores. Seu zelo
18 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, econo-
mista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensa-
so interpela a todos os segmentos levou o seu partido à ação armada em 1893 e 1905. Mais
tarde, orienta sua ação de forma não violenta mediante
dores que exerceram maior influência sobre o pensamen- do povo trabalhador o une em uma a abstenção revolucionária. Logo depois da promulgação
to social e sobre os destinos da humanidade no século XX. da Lei Sáenz Peña em 1912, que estabelecia o sufrágio
A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda coalizão que enfrenta o bloco oligár- obrigatório, secreto e universal (ainda que excluindo as
Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl quico nas eleições presidenciais de mulheres), os radicais iniciam sua ação política e elegem
Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre Yrigoyen para presidente em 1916. (Nota da IHU On-Line)
o autor, a edição número 278 da revista IHU On-Line, de 1920, representando a União Libe- 22 José Batlle y Ordóñez (1856-1929): foi um político e
20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo e sua jornalista no Uruguai. Presidente da República por dois
crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível em https://
ral. Sua candidatura conseguiu esta- períodos: 1903-1907 e 1911-1915. Realizou reformas eco-
goo.gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: os homens não são o nômicas e sociais que permitiram ao Uruguai se tornar um
que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por dos países mais estáveis política e economicamente na
Pedro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição 327 20 Fortunato Arturo Alessandri Palma (1868-1950): foi América Latina. Ele impulsionou a constituição de 1917,
da IHU On-Line, de 3-5-2010, disponível em http://bit. um advogado e político chileno, patriarca da família Ales- cuja principal característica era estabelecer um executivo
ly/2p4vpGS. A IHU On-Line preparou uma edição especial sandri (de ascendência italiana). Foi presidente nos perío- colegiado. É considerado a figura mais influente na política
sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty dos 1920-1925 e 1932-1938. É considerado um dos políti- do seu país desde sua primeira presidência até sua morte,
O Capital no Século XXI, que retoma o argumento central cos mais influentes no Chile do século XX, nomeadamente período de mais de 25 anos. Historiadores uruguaios se
de O Capital, obra de Marx, disponível em http://www. através de uma série de reformas, incluindo a Constituição referem a este período como a Era Batllista. Ainda hoje
ihuonline.unisinos.br/edicao/449. (Nota da IHU On-Line) de 1925, que marcou o fim do regime parlamentar e do podem ser encontrados setores do Partido Colorado e até
19 MARX, Karl; ENGEL, Friedrich. Manifesto do partido co- estabelecimento do presidencialismo no Chile. (Nota da mesmo dentro da Frente Ampla que se definem como se-
munista. Petrópolis: Vozes, 1988. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) guidores de José Batlle y Ordóñez. (Nota da IHU On-Line)

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Um general aposentado, idoso, Car- Lei de Defesa da Democracia, que jetiva, tanto nas Ciências Naturais
los Ibáñez del Campo23, erigiu-se reincorporou a legalidade ao PC. quanto nas Humanas. O ocaso
como um líder de um movimento so- De acordo com a pesquisa históri- desse mundo nos lançou na pós-
cial hasteado pelas elites políticas, o ca posterior, o regime ibañista teve modernidade, no naufrágio da
Partido Radical, que, depois de três contato permanente com Perón25 e modernidade. E assim chegamos
períodos de governo marcados por o movimento peronista. O ibañis- à hermenêutica filosófica de Hans-
alianças oportunistas com a esquer- mo foi um populismo informal, sem Georg Gadamer26, que é o cerco
da e a direita, considerava o Estado programa e sem projeto de um novo final definitivo do mundo seguro
como seu patrimônio, para criar Estado e uma nova sociedade. positivo para acessar as interpreta-
postos para seus membros. ções do texto, do mundo como uma
proposta. Nesse cenário complexo
Ibañismo “Todos os par- social, étnico, cultural já não po-
demos nos afirmar voltando para
Ao contexto de uma crise de repre-
sentação, agregavam-se o aumento
tidos naciona- o Marx clássico, nem para a teoria
da revolução de Lenin. As propos-
do custo de vida para os assalaria-
dos, a dependência dos Estados
listas, novos e tas de Laclau estão longe do mun-
do que já abandonamos, embora
Unidos e a repressão ao movimento
operário e proscrição do PC. O mo-
antigos, se pro- ele nos indique que é preciso reler
Gramsci27 para superá-lo, man-
vimento ibañista usou como sím-
bolo uma vassoura. Ibañez obteve
jetam para a tendo a sua audácia em romper os
dogmas e postulados do mundo
um triunfo esmagador com mais de
55% dos votos. Sua eleição varreu a
extrema direita” stalinista. Talvez, junto com La-
clau, devêssemos ler, como Laclau,
esquerda tradicional e a direita. O os anarquistas, os que perderam
movimento ibañista foi um movi- IHU On-Line – Quais são os a batalha, como Leon Trotski28. O
mento populista informal composto desafios para conceber uma pensamento de Laclau, sua releitu-
por organizações políticas de classe atualização do pensamento ra da hegemonia gramsciana e dos
média. O único partido de esquerda político frente aos desafios do outros clássicos do pensamento 47
que o apoiou e participou um ano do mundo pós-moderno? E até marxista passam a fazer parte dos
governo foi o Partido Socialista Po- que ponto as perspectivas de rebeldes de hoje na França, Itália,
pular, que tentou fortalecer uma ala Laclau com sua razão populis- Espanha e América Latina, que, a
populista de esquerda. As únicas leis ta vão nesse sentido? partir da indignação, chegaram,
progressistas que foram decretadas depois de uma longa jornada, a re-
Hugo Cancino – Até o fim do
foram iniciativas do PSP. descobrir a rebeldia que está laten-
século XX, vivemos em um mundo
No fim, o ibañismo, sufocado pela acessível e previsível no pensamento te nos pobres, nos submersos, em
luta interna e por uma inflação ga- filosófico e na reflexão teórica. Dis- última análise, nos de baixo.■
lopante, convidou ao Chile a Mis- púnhamos de um aparato sociológi-
são Klein-Saks24. Pela primeira vez co e historiográfico que nos permitia 26 Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, autor de Ver-
dade e método (Petrópolis: Vozes, 1997), faleceu no dia 13-
no Chile, introduz-se o discurso de ver, apreciar o mundo das classes 3-2002, aos 102 anos. Por essa razão, dedicamos a ele a
uma política de austeridade nos sociais em seus antagonismos e até matéria de capa da IHU On-Line número 9, de 18-3-2002,
Nosso adeus a Hans-Georg Gadamer, disponível em http://
gastos públicos e o congelamento prever seu desenvolvimento e seu migre.me/DtiK. (Nota da IHU On-Line)
27 Antonio Gramsci (1891-1937): foi um filósofo marxis-
dos salários. A única medida pro- fim. Concebíamos a sociedade como ta, jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu
gressista foi a criação de uma Fren- um objeto transparente, fácil de ana- sobre teoria política, sociologia, antropologia e linguística.
Com Togliatti, criou o jornal L’Ordine Nuovo, em 1919. Se-
te de Esquerda que, junto com os lisar com os instrumentos do mate- cretário do Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em
1926 e só foi libertado em 1937, dias antes de falecer. Nos
partidos de centro, revogaram a rialismo histórico. seus Cadernos do cárcere, substituiu o conceito da ditadu-
ra do proletariado pela “hegemonia” do proletariado, dan-
Do século XIX, recebemos como do ênfase à direção intelectual e moral em detrimento do
domínio do Estado. Sobre esse pensador, confira a edição
23 Carlos Ibáñez del Campo (1877-1960): foi um político herança teses para se alcançar na 231 da IHU On-Line, de 13-8-2007, intitulada Gramsci,
chileno, presidente de seu país por dois mandatos (1927-
1931 e 1952-1958). Participou dos movimentos militares
pesquisa científica a verdade ob- 70 anos depois, disponível para download em http://www.
ihuonline.unisinos.br/edicao/231. (Nota da IHU On-Line)
de 1924 no Chile, e após golpe de janeiro de 1925 é no- 28 Leon Trótski (1879-1940): foi um intelectual marxista e
meado Ministro da Guerra pelo então presidente Arturo revolucionário bolchevique, organizador do Exército Ver-
Alessandri. Foi eleito em 1927 com 98% dos votos; seu pri- 25 Juan Domingo Perón (1895-1974): militar e político melho e, após a morte de Lenin, rival de Stalin na disputa
meiro governo foi marcado por dificuldades ocasionadas argentino, presidente de seu país de 1946 a 1955 e de pela hegemonia do Partido Comunista da União Soviética
pelos efeitos da crise de 1929. Esse mandato foi marcado 1973 a 1974. Foi líder do Movimento Nacional Justicialista. (PCUS). Nos primeiros tempos da União Soviética, Trótski
pela impopularidade do militar, tanto que fora exilado. Genericamente, esse Movimento é chamado peronismo. desempenhou um importante papel político, primeiro
Teve um governo marcado por grande interferência na Os ideiais são baseados no pensamento de Perón. O Movi- como Comissário do Povo (Ministro) para os Negócios
economia chilena, criou diversas empresas estatais que mento Justicialista transformou-se, mais tarde, em Partido Estrangeiros; posteriormente, como organizador e co-
acabaram sem sucesso, o que fez com que seu governo Justicialista, que é a força política maioritária na Argentina. mandante do Exército Vermelho e fundador e membro do
perdesse apoio. Retirou-se da vida pública após o término Os ideais do peronismo se encontram nos diversos escri- Politburo do PCUS. Afastado do controle do partido por
de seu último mandato, em 1958. (Nota da IHU On-Line) tos de Perón como “La Comunidad Organizada”, “Con- Stalin, Trótski foi expulso deste e exilado da União Soviéti-
24 Missão Klein-Saks: foi uma comissão de economistas ducción Política”, “Modelo Argentino para un Proyecto ca, refugiando-se no México, onde veio a ser assassinado
americanos no Chile, convocada pelo segundo governo de Nacional”, entre outros, onde estão expressos a filosofia e por Ramón Mercader, agente da polícia de Stalin. As suas
Carlos Ibáñez del Campo. Alguns a consideram o primei- doutrina política que continuam orientando o pensamen- ideias políticas, expostas numa obra escrita de grande ex-
ro antecedente da aplicação do neoliberalismo no país. to acadêmico e a vida política da segunda maior nação tensão, deram origem ao trotskismo, corrente ainda hoje
(Nota da IHU On-Line) sul-americana. (Nota da IHU On-Line) importante no marxismo. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

A concepção de uma nova


representatividade a partir do povo
Daniel de Mendonça observa o conceito de populismo em Laclau
como algo gerado a partir do coletivo, levantando demandas em
perspectivas que se opõem ao poder hegemônico estabelecido
João Vitor Santos

P
ara compreender o populismo o povo ou os inimigos do povo?”, explica.
de Ernesto Laclau, é necessário ir Daniel de Mendonça é graduado
além da ideia de líderes ou de go-
em Ciências Jurídicas e Sociais pela
vernos populares. Daniel de Mendonça,
Pontifícia Universidade Católica do Rio
professor da Universidade Federal de Pe-
Grande do Sul – PUCRS, possui mestra-
lotas – UFPel, destaca que o populismo
do e doutorado em Ciência Política pela
não se atém a uma ideologia específica. Ou
Universidade Federal do Rio Grande
seja, ele parte da pluralidade de demandas
do Sul – UFRGS e estágio pós-douto-
coletivas heterogêneas para só então cons-
ral em Ideology and Discourse Analy-
tituir uma homogeneidade representativa
sis na University of Essex. É professor
para fazer frente a um poder, ou hegemo-
na Universidade Federal de Pelotas
nia, instituída. “O populismo é, antes, uma
– UFPel. Entre suas publicações, des-
forma de construir identidades coletivas”,
48 tacamos 1961-1964: a ditadura brasi-
completa. “O populismo não é uma lógi-
leira em dois golpes (Curitiba: Appris,
ca institucional, mas anti-institucional: é
2017), Tancredo Neves: da distensão
a construção de um povo contra as insti-
à Nova República (Santa Cruz do Sul:
tuições estabelecidas. É fundamental que
EdUNISC, 2004), Ernesto Laclau e seu
este elemento contrário ao status quo es-
legado transdisciplinar (São Paulo: In-
teja presente para que possamos verda-
termeios, 2017) e A Teoria do Discurso
deiramente falar em populismo”.
de Ernesto Laclau: ensaios críticos e en-
Na entrevista a seguir, concedida por trevistas (São Paulo: Annablume, 2015).
e-mail à IHU On-Line, Mendonça ain-
Mendonça ministrará uma palestra
da coloca o pensamento laclauniano no
no dia 18 de setembro, às 19h30min,
contexto da chamada crise da represen-
na Unisinos – Campus de Porto
tatividade de nosso tempo. Ele parte do
Alegre, sobre obra A razão populis-
pressuposto de que não existe a política
ta (São Paulo: Três Estrelas, 2013),
sem a representação, e o populismo, como
outras, é uma forma de representação de Laclau. A atividade é promovida
política. No entanto, não se pode encarar pelo Instituto Humanitas Unisi-
como uma negação a ideia de crise da re- nos – IHU. E entre 25 e 27 de se-
presentação. “[Populismo] é uma forma tembro, em Pelotas, na Universida-
de representação que desafia a represen- de Federal de Pelotas, ocorrerá o “II
tação política institucional tradicional Simpósio pós-estruturalismo e teoria
como, por exemplo, a que é exercida em social: Ernesto Laclau e seus interlo-
certos contextos parlamentares. É impor- cutores”. A entrevista foi publicada
tante considerar que Laclau não é contrá- nas Notícias do Dia de 14-7-2017, no
rio ao funcionamento dos parlamentos. sítio do Instituto Humanitas Unisi-
Sua crítica reside na questão de que até nos – IHU, disponível em http://bit.
que ponto os parlamentos nas democra- ly/2wALIKO.
cias representativas liberais representam Confira a entrevista.

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Populismo não tem uma ideologia


específica, não representa qualquer
subdesenvolvimento institucional ou
democrático, tampouco pode ser visto
como uma forma de manipulação”

IHU On-line – De que forma da4. O sentido que estou usando para conceituais propõe e quais seus
Laclau reconfigura as inter- o termo “heterodoxo” diz respeito ao limites?
pretações sobre o marxismo, a fato de que Laclau, ainda que tenha
Daniel de Mendonça – Gramsci
política e a sociedade no século sido influenciado por uma série de
foi uma influência constante ao longo
XX, com efeitos que podem ser autores, sempre dividiu tais influên-
do desenvolvimento da teoria do dis-
vistos e aplicados também no cias com o seu próprio pensamento
curso de Laclau. Hegemonia é a cate-
século XXI? político, na minha perspectiva, mui-
goria gramsciana central para o filósofo
to original. Assim, de uma forma
Daniel de Mendonça – O marxis- argentino e, na minha opinião, Grams-
ampla, o marxismo, a política e a
mo é uma tradição intelectual que exer- ci foi ainda o autor marxista que mais
sociedade são lidos por Laclau a par-
ceu uma importante influência sobre o influenciou o pensamento de Laclau.
tir de posições ontológicas e episte-
pensamento de Ernesto Laclau. No en- É claro que Laclau ressignificou esta
mológicas pós-estruturalistas e pós-
tanto, tal afirmação deve ser entendida categoria, a partir de 1985. O contexto
fundacionais, tradições que, desde
num certo contexto. Primeiramente, social e político do final do século XX e 49
sobretudo o século XX, percebem
Laclau nunca foi um marxista ortodo- do início do XXI é o de um mundo con-
que a complexidade social e política
xo, de modo que a sua fase “pós-estru- figurado de uma forma muito diferente
deve ser analisada livre de qualquer
turalista” ou “pós-marxista”, que tem daquele da primeira metade do século
essencialismo ou determinismo em
início, pelo menos formalmente, com passado, quando a teoria da hegemo-
última instância.
o lançamento, em 1985, de Hegemony nia foi desenvolvida por Gramsci. É
and Socialist Strategy1 (escrito em co- sobretudo em relação a esta diferença
laboração com Chantal Mouffe), não IHU On-Line – No que con- temporal que Laclau realiza a releitura
representou, na minha opinião, ruptu- siste a leitura de Laclau à obra da hegemonia do filósofo italiano.
ra drástica com a sua herança marxista. de Gramsci5? Que atualizações O problema identificado por Laclau
Isso não quer dizer que o “pós-marxis-
é o de que a hegemonia de classe para
mo” de Laclau não tenha sido crítico, e heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929), Gramsci apresenta-se como um fun-
muito crítico, com a ortodoxia marxis- Cartas sobre o humanismo (1947) e Introdução à metafí-
sica (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de damento ontológico em última instân-
ta, com a qual Laclau definitivamente 19-6-2006, intitulada O século de Heidegger, disponível
em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, intitulada
cia. Tal fundamento impossibilita o
nunca comungou. Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, disponível em desenvolvimento da hegemonia justa-
http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, Cadernos IHU em
Minha leitura de Laclau indica que formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução da me- mente em um contexto social tal como
tafísica, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12,
este autor sempre foi heterodoxo e a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da
o do final do século XX e o do começo
com as tradições e teorias que lhe fo- revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível em https:// deste século, momento em que defen-
goo.gl/dn3AX1, intitulada O biologismo radical de Nietzs-
ram caras. Foi assim com o marxis- che não pode ser minimizado, na qual discute ideias de der a necessidade da hegemonia de
mo, mas também com a psicanálise sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de classe não passa de um anacronismo.
Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do
freudiana e lacaniana, com as filoso- ciclo de estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI No entanto, a noção de hegemonia em
Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da
fias de Husserl2, Heidegger3 e Derri- vida humana. (Nota da IHU On-Line) Gramsci não deveria ser abandonada,
4 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, criador
do método chamado desconstrução. Seu trabalho é as-
conforme Laclau, devido ao seu gran-
1 EUA: Verso Press, 1985. (Nota da IHU On-Line) sociado, com frequência, ao pós-estruturalismo e ao pós- de potencial heurístico e politicamen-
2 Edmund Husserl (1859-1938): Edmund Gustav Albrecht modernismo. Entre as principais influências de Derrida
Husserl, matemático e filósofo alemão, conhecido como encontram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre
o fundador da fenomenologia, nascido em uma família sua extensa produção, figuram os livros Gramatologia
judaica numa pequena localidade da Morávia (região da (São Paulo: Perspectiva), A farmácia de Platão (São Pau- Togliatti, criou o jornal L’Ordine Nuovo, em 1919. Secre-
atual República Tcheca). Husserl apresenta como ideia lo: Iluminuras), O animal que logo sou (São Paulo: Unesp), tário do Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em
fundamental de seu antipsicologismo a “intencionalidade Papel-máquina (São Paulo: Estação Liberdade) e Força de 1926 e só foi libertado em 1937, dias antes de falecer. Nos
da consciência”, desenvolvendo conceitos como os da lei (São Paulo: WMF Martins Fontes). É dedicada a Derrida seus Cadernos do cárcere, substituiu o conceito da ditadu-
intuição eidética e epoché. Influenciou, entre outros, os a editoria Memória, da IHU On-Line nº 119, de 18-10- ra do proletariado pela “hegemonia” do proletariado, dan-
alemães Edith Stein, Eugen Fink e Martin Heidegger e os 2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119. (Nota da IHU do ênfase à direção intelectual e moral em detrimento do
franceses Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty, Michel On-Line) domínio do Estado. Sobre esse pensador, confira a edição
Henry e Jacques Derrida. (Nota da IHU On-Line) 5 Antonio Gramsci (1891-1937): foi um filósofo marxista, 231 da IHU On-Line, de 13-8-2007, intitulada Gramsci,
3 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu sobre 70 anos depois, disponível para download em http://www.
obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática teoria política, sociologia, antropologia e linguística. Com ihuonline.unisinos.br/edicao/231 . (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

te estratégico. O filósofo argentino mas também desafia o funciona- No entanto, se a demanda não for
propõe o seu uso a partir da retirada mento das instituições. O populis- atendida, apesar da frustração gera-
do caráter ontológico essencialista de mo é igualmente percebido como da, esta pode até mesmo desapare-
classe. Assim, a hegemonia, seja a de resultado de um subdesenvolvi- cer, a menos que outras demandas
classe seja a não classista, deve ser o mento da democracia representa- também não atendidas passem a es-
resultado prático de um processo de tiva liberal de determinados Esta- tabelecer uma relação articulatória
luta, o que abre a esta categoria um dos. Além do mais, o populismo é entre si. Neste caso, as demandas
leque de opções muito mais rico e pro- também acusado de representar a mudam o status de simples pedidos
dutivo em um mundo dominado pela manipulação das massas ignoran- para o de reivindicações.
contingência e pela precariedade dos tes por um líder inescrupuloso que Segundo Laclau, um corte anta-
projetos políticos. promete representá-las, mas que, gônico passa a dividir negativa-
O pós-estruturalismo foi terreno na verdade, representa somente a mente o espaço social entre essas
fértil que Laclau vislumbrou para si próprio. Essas diversas acusa- demandas populares articuladas
o desenvolvimento desta categoria, ções contra o populismo vêm tanto e a institucionalidade. Esta é a
livre dos últimos resquícios de es- da direita liberal, como de diversos pré-condição para uma ruptura
sencialismo que ainda limitavam o setores da esquerda. populista. Gera-se uma identifica-
seu desenvolvimento. Em Laclau, a Laclau propõe uma leitura com- ção entre os “de baixo” versus “o
hegemonia, que é a possibilidade de pletamente diferente acerca desse poder”. Contudo, é preciso adicio-
uma identidade assumir uma condi- fenômeno. Primeiramente, para nar um elemento a mais, ou seja,
ção de representação de um contex- ele, o populismo não tem uma ide- o campo popular constitui o seu
to social e político muito mais am- ologia específica, não represen- próprio processo de representa-
plo, pode ser exercida por qualquer ta qualquer subdesenvolvimen- ção. Tal processo tem lugar quan-
demanda social, sem qualquer pro- to institucional ou democrático, do uma das demandas articuladas,
tagonismo apriorístico. A liderança tampouco pode ser visto como num dado momento, precário e
hegemônica pode ser exercida pelo uma forma de manipulação. O po- contingente, passa a representar
proletariado, da mesma forma que pulismo é, antes, uma forma de a cadeia de equivalências popular
50 esta pode ter a proeminência de construir identidades coletivas, a – que evidentemente a excede em
grupos feministas, ecológicos etc. O construção política par excellen- sentidos – e exerce, assim, uma
fundamental na noção laclauniana ce. É, numa palavra, a construção tarefa hegemônica. Quanto mais
de hegemonia não está no seu exer- do povo contra o seu inimigo. Para extensa for a cadeia equivalen-
cício efetivo (que sempre dependerá cial, mais frágeis serão os sentidos
o filósofo argentino, o populismo
de um contexto político específico da(s) demanda(s) particular(es)
é uma categoria ontológica, cons-
historicamente determinado), mas que assume(m) o papel de repre-
truída num nível formal e desvin-
na possibilidade infinita de sujeitos sentação dessa cadeia.
culada de quaisquer elementos
poderem assumir o papel da repre-
ideológicos, temporais, históricos, Neste momento, chega-se ao
sentação em um contexto social e
numa palavra, ônticos. Assim, ve- ponto crucial para a compreensão
político complexo e a priori inco-
jamos, rapidamente e em linhas da lógica populista: a identidade
mensurável com a identidade da-
gerais, a lógica populista proposta coletiva popular surge a partir da
quele que o representa.
pelo autor. produção discursiva de signifi-
cantes vazios. A importância dos
Primeiramente, a unidade mínima
IHU On-Line – O que é o popu- significantes vazios está em jus-
que Laclau considera para a possi-
lismo para Laclau e como com- tamente homogeneizar um espa-
bilidade de uma experiência popu-
preender a razão, ou a lógica, ço social em si heterogêneo, que
lista é a demanda. Existem, para o articula uma série de demandas
populista? autor, duas formas de compreen- insatisfeitas que, antes do proces-
Daniel de Mendonça – Popu- der esta categoria. Demanda pode so articulatório, não tinham qual-
lismo é uma espécie bête noir6 seja ser um pedido (uma simples soli- quer relação entre si, pois estavam
no mundo político, seja no meio citação) ou uma reivindicação. Na isoladas em suas particularidades.
acadêmico. Em ambos os contex- primeira forma, a demanda é vista Para Laclau, o corolário desse
tos, tradicionalmente este termo como uma solicitação diretamente processo de homogeneização é o
tem sentido pejorativo. De uma feita aos canais institucionais for- nome do líder.
forma geral, para os seus críticos, mais. Nesse sentido, a falta de uma
o populismo está ligado a uma re- escola primária num determina-
lação direta entre líder e massa, a do bairro pode ensejar tal pedido IHU On-Line – Em que medi-
qual não somente desconsidera, à municipalidade. Se a escola for da o conceito de populismo é
construída, o problema termina, a capaz de explicar fenômenos
6 Bête noire, expressão no idioma francês que se refere a
algo que é fortemente desprezado ou evitado. (Nota da
demanda exaure-se. O atendimento da política contemporânea no
IHU On-Line) desta se dá no plano administrativo. mundo, especialmente a as-

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

censão de líderes políticos tão 1989 entre Collor9 e Lula10, neste IHU On-Line – Qual a impor-
distintos que, sejam liberais ou caso com tons ideológicos ainda tância da liderança política
conservadores, à direita ou à mais acentuados no que toca o an- e o que se compreende como
esquerda, têm em comum vie- tagonismo entre direita e esquer- massa populacional dentro da
ses populistas? da. No entanto, é fundamental perspectiva laclauniana? Como
ressaltar que o populismo não é, os dois conceitos se articulam?
Daniel de Mendonça – Como
para Laclau, uma lógica que apa- Que relações estabelecem?
mencionei acima, o populismo
rece preferencialmente em perío-
para Ernesto Laclau é uma cate- Daniel de Mendonça – O líder
dos eleitorais em que projetos tão
goria ontológica, destinada a ex- e a identidade coletiva e povo são
distintos se confrontam. E mesmo
plicá-la num sentido formal e não elementos necessários para uma
considerando períodos eleitorais,
está ligada a qualquer experiência formação populista desde as pri-
há uma questão fundamental a ser
(ôntica) em si. Assim, os fenôme- meiras abordagens teóricas acerca
levada em consideração. O populis-
nos populistas podem ser os mais desta temática. No entanto, é muito
mo não é uma lógica institucional,
variados possíveis. Por exemplo, comum, como disse acima, inter-
mas anti-institucional: é a constru-
na última eleição presidencial nos pretações que apontam a proemi-
ção de um povo contra as institui-
Estados Unidos, dois candidatos nência do líder sobre a massa. Em
ções estabelecidas. É fundamental
foram identificados como popu- Laclau, isso não acontece dessa for-
que este elemento contrário ao
listas: à direita, Donald Trump 7, ma. Alguém não se torna um líder
status quo esteja presente para que
à esquerda, Bernie Sanders 8. Isso populista simplesmente em função
possamos verdadeiramente falar
foi possível, pois havia condições do seu carisma, no sentido que We-
em populismo.
de emergência para articulações ber11 atribui a este termo no tipo de
de dois tipos distintos e antagô- dominação carismática. É necessá-
nicos de demandas populares na- rio algo mais. É preciso que existam
quele contexto político. Como o
povo, para Laclau, não significa o “Laclau nunca condições de possibilidade – uma
demanda popular em constituição
mero conjunto de cidadãos de um
Estado, mas sempre uma constru- foi um marxis- – para que o nome do líder possa
exercer essa “capacidade simbólica 51
ção política precária e contingen-
te, com a existência de demandas ta ortodoxo” de representação”.
Toda representação é em si simbó-
populares à direita ou à esquer-
lica, mas enfatizo essa redundância
da no contexto estadunidense,
para ressaltar que a ideia laclau-
Trump e Sanders ocuparam tais
niana de o “nome do líder” é justa-
espaços de representação de am-
mente algo muito mais amplo do
bos os campos. 9 Fernando Collor de Mello (1949): político, jornalista,
economista, empresário e escritor brasileiro, prefeito de
que a figura do líder populista em
No Brasil, algo semelhante ocor- Maceió de 1979 a 1982, governador de Alagoas de 1987 carne e osso. Por exemplo, no caso
a 1989, deputado federal de 1982 a 1986, 32º presidente
reu na disputa presidencial de do Brasil, de 1990 a 1992, e senador por Alagoas de 2007 do chavismo na Venezuela, o nome
até a atualidade. Foi o presidente mais jovem da história
do Brasil e o presidente eleito por voto direto do povo,
de Hugo Chávez12 é um significante
após o Regime Militar (1964/1985). Seu governo foi mar-
cado pela implementação do Plano Collor e a abertura
do mercado nacional às importações e pelo início de um 11 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, conside-
7 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um empre- programa nacional de desestatização. Seu Plano, que no rado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e
sário, ex-apresentador de reality show e atual presidente início teve uma boa aceitação, acabou por aprofundar a o espírito do capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das
dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump foi eleito recessão econômica, corroborada pela extinção, em 1990, Letras, 2004) é uma das suas mais conhecidas e importan-
o 45º presidente norte-americano pelo Partido Republi- de mais de 920 mil postos de trabalho e uma inflação na tes obras. Cem anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe
cano, ao derrotar a candidata democrata Hillary Clinton casa dos 1200% ao ano; junto a isso, denúncias de corrup- a sua 101ª edição, de 17-5-2004, intitulada Max Weber.
no número de delegados do colégio eleitoral; no entanto, ção política envolvendo o tesoureiro de Collor, Paulo César A ética protestante e o espírito do capitalismo 100 anos
perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras estão o pro- Farias, feitas por Pedro Collor de Mello, irmão de Fernando depois, disponível em http://bit.ly/ihuon101. Sobre Max
tecionismo norte-americano, por onde passam questões Collor, culminaram com um processo de impugnação de Weber, o IHU publicou o Cadernos IHU em formação nº
econômicas e sociais, como a relação com imigrantes nos mandato (Impeachment). (Nota da IHU On-Line) 3, de 2005, chamado Max Weber – o espírito do capita-
Estados Unidos. Trump é presidente do conglomerado The 10 Luiz Inácio Lula da Silva [Lula] (1945): trigésimo quin- lismo disponível em http://bit.ly/ihuem03. (Nota da IHU
Trump Organization e fundador da Trump Entertainment to presidente da República Federativa do Brasil, cargo que On-Line)
Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida pessoal, exerceu de 2003 a 1º de janeiro de 2011. É cofundador 12 Hugo Chávez Frías (1954-2013): político e militar
riqueza e modo de se pronunciar contribuíram para torná e presidente de honra do Partido dos Trabalhadores (PT). venezuelano, tendo sido o 56º presidente da Venezuela,
-lo famoso. (Nota da IHU On-Line) Em 1990, foi um dos fundadores e organizadores do Foro governando por 14 anos desde 1999 até sua morte em
8 Bernard “Bernie” Sanders (1941): é um político esta- de São Paulo, que congrega parte dos movimentos po- 2013. Líder da Revolução Bolivariana, Chávez advogava
dunidense, atualmente servindo como senador júnior dos líticos de esquerda da América Latina e do Caribe. Foi a doutrina bolivarianista, promovendo o que denomina-
EUA pelo estado de Vermont. Filiado ao Partido Democra- candidato a presidente cinco vezes: em 1989 (perdeu para va de socialismo do século XXI. Chávez foi também um
ta desde 2015, ele foi o político independente com mais Fernando Collor de Mello), em 1994 (perdeu para Fer- crítico do neoliberalismo e da política externa dos Esta-
tempo de mandato na história do Congresso dos Estados nando Henrique Cardoso) e em 1998 (novamente perdeu dos Unidos. Oficial militar de carreira, Chávez fundou o
Unidos, embora sua coligação com os democratas permi- para Fernando Henrique Cardoso), e ganhou as eleições Movimento Quinta República, da esquerda política, depois
tiu-lhe postos em comissões parlamentares e, por vezes, de 2002 (derrotando José Serra) e de 2006 (derrotando de capitanear um golpe de estado mal-sucedido contra o
deu maioria ao partido em votações. Sanders representa a Geraldo Alckmin). Lula bateu um recorde histórico de po- governo de Carlos Andrés Pérez, em 1992. Chávez elegeu-
minoria na Comissão de Orçamento do Senado desde ja- pularidade durante seu mandato, conforme medido pelo se presidente em 1998, encerrando os quarenta anos de
neiro de 2015 e, anteriormente, serviu por dois anos como Datafolha. Programas sociais como o Bolsa Família e Fome vigência do Pacto de Punto Fijo (firmado em 31 de outu-
presidente da Comissão dos Veteranos de Guerra. Sanders Zero são marcas de seu governo, programa este que teve bro de 1958, entre os três maiores partidos venezuelanos)
concorreu às eleições primárias que definiram o candidato seu reconhecimento por parte da Organização das Nações com uma campanha centrada no combate à pobreza. Re-
democrata à presidência dos Estados Unidos no pleito de Unidas como um país que saiu do mapa da fome. Lula teve elegeu-se, vencendo os pleitos de 2000 e 2006. Com suas
2016. Derrotado nas urnas pelos eleitores de Hillary Clin- um papel de destaque na evolução recente das relações políticas de inclusão social e transferência de renda obteve
ton, Sanders acabou reconhecendo a derrota em julho de internacionais, incluindo o programa nuclear do Irã e do enorme popularidade em seu país. Durante a era Chávez,
2016 e declarou apoio à ex-Secretária de Estado nas elei- aquecimento global. É investigado na operação Lava Jato. a pobreza entre os venezuelanos caiu de 49,4%, em 1999,
ções presidenciais daquele ano. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) para 27,8%, em 2010. No plano político interno, Chávez

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

vazio cuja ausência de significado é da normativa mágica, a representa- de hoje, como compreender a
a própria condição de possibilida- ção parlamentar seria mais efetiva formulação de demanda social
de de uma representação tão ampla se estivesse mais atenta às deman- presente em Laclau?
quanto a que é lá exercida naquela das evocadas pelo povo.
Daniel de Mendonça – Como
experiência populista. Se a liderança
vimos, toda constituição de uma
populista se esgotasse na pessoa do
líder, certamente fenômenos como demanda social de tipo populista é
o próprio chavismo ou o peronismo
não teriam sentido após as mortes
“A identidade sempre, no mínimo, crítica a um sis-
tema político e social estabelecido.
de Chávez e de Perón13. coletiva po- Temos visto, no Brasil e no mundo,
impressionantes movimentos de
IHU On-Line – O populismo
de Laclau tensiona a ideia de
pular surge a protesto, tais como aqueles que fi-
caram conhecidos como a Primave-
representatividade ou vislum-
bra uma saída possível diante
partir da produ- ra Árabe14, no norte da África e no
Oriente Médio, o Occupy Wall Stre-
dos impasses da política repre-
sentativa? Por quê?
ção discursiva et15, nos Estados Unidos da Améri-

de significan-
ca, o Los Indignados16, na Espanha,
Daniel de Mendonça – O popu- entre outros. No Brasil, tivemos as
lismo é uma forma de representa-
ção política. Aliás, para Laclau, não tes vazios” Jornadas de Junho de 201317. Ain-
da que tenhamos de considerar tais
há política sem representação. No
14 Primavera Árabe: os protestos no mundo árabe ocor-
entanto, é uma forma de represen- ridos de 2010 a 2012 foram uma onda revolucionária de
tação que desafia a representação manifestações e protestos, compreendendo o Oriente

política institucional tradicional IHU On-Line – De que forma Médio e o Norte da África. Houve revoluções na Tunísia e
no Egito, uma guerra civil na Líbia e na Síria; grandes pro-
como, por exemplo, a que é exercida o populismo é capaz de gerar testos na Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Omã e
Iémen e protestos menores no Kuwait, Líbano, Mauritânia,
em certos contextos parlamentares. identidades coletivas? E como Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental. Os

Dito isso, é importante considerar essas identidades reconfigu- protestos têm compartilhado técnicas de resistência civil
em campanhas sustentadas envolvendo greves, manifes-
52 que Laclau não é contrário ao fun- ram as ideias do todo e de in- tações, passeatas e comícios, bem como o uso das mídias
sociais, como Facebook, Twitter e Youtube, para organizar,
cionamento dos parlamentos. Sua divíduo? comunicar e sensibilizar a população e a comunidade in-
ternacional em face de tentativas de repressão e censura
crítica reside na questão de que até Daniel de Mendonça – O popu- na Internet por parte dos Estados. (Nota da IHU On-Line)
que ponto os parlamentos nas de- 15 Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street): é um movi-
lismo é a constituição de uma identi- mento de protesto contra a desigualdade econômica e
mocracias representativas liberais dade coletiva, o povo. Tal identidade social, a ganância, a corrupção e a indevida influência das
empresas - sobretudo do setor financeiro - no governo
representam o povo ou os inimigos é resultado de uma difícil articulação dos Estados Unidos. Iniciado em 17 de setembro de 2011,
do povo? As experiências populistas entre duas lógicas, a da diferença e a
no Zuccotti Park, no distrito financeiro de Manhattan, na
cidade de Nova York, o movimento ainda continua denun-
surgem justamente pelo fato de que da equivalência. A primeira é aque- ciando a impunidade dos responsáveis e beneficiários da
crise financeira mundial. Posteriormente surgiram outros
as instituições pouco ou nada repre- la das demandas democráticas ou movimentos Occupy por todo o mundo. As manifesta-
sentam as pessoas que deveriam re- isoladas, ou seja, as que represen-
ções foram a princípio convocadas pela revista canadense
Adbusters, inspirando-se nos movimentos árabes pela de-
presentar, mas interesses corpora- tam claramente particularidades. A mocracia, especialmente nos protestos na Praça Tahrir, no
Cairo, que resultaram na Revolução Egípcia de 2011. (Nota
tivos, empresariais que raramente
segunda, a lógica da equivalência, é da IHU On-Line)
convergem com os populares. Para 16 Indignados: um dos nomes dados às manifestações de
aquela que articula essas diferenças, 2011 na Espanha, também chamadas de Movimento 15 de
Laclau, ainda que não haja uma saí- Maio (por terem se iniciado no dia 15-5-2011). São uma
estabelecendo as condições de possi- série de protestos espontâneos de cidadãos, inicialmente

fundiu os vários partidos de esquerda no PSUV. Fortaleceu


bilidade para que a lógica populista organizados pelas redes sociais e pela plataforma civil e
digital ¡Democracia Real Ya! (“Democracia Real Já!”). (Nota
os movimentos e as organizações populares, estabele- de fato possa ser construída. Nesse da IHU On-Line)
cendo uma forte aliança com as classes mais pobres. Nas 17 Junho de 2013: os protestos no Brasil em 2013, tam-
várias eleições, realizadas ao longo de aproximadamente sentido, a articulação entre identida- bém conhecidos como Manifestações dos 20 centavos,
15 anos, a oposição foi derrotada. Inconformados, os ad- Manifestações de Junho ou Jornadas de Junho, foram
versários de Chávez promoveram um golpe de Estado, no
des isoladas numa formação discur- várias manifestações populares por todo o país que ini-
início de 2002, com apoio do governo dos Estados Uni- siva populista modifica os próprios cialmente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas
dos. Apesar de o governo norte-americano ter usado de de transporte público, sobretudo nas principais capitais.
sua influência para obter o reconhecimento imediato do conteúdos dessas identidades. O po- Inicialmente restrito a pouco milhares de participantes,
novo governo, a comunidade internacional – inclusive o os atos pela redução das passagens nos transportes pú-
Brasil, então governado por Fernando Henrique Cardoso –
pulismo é, nesse sentido, o resultado blicos ganharam grande apoio popular em meados de
condenou o golpe. Chávez acabou voltando ao poder três de um tipo de homogeneização po- junho, em especial após a forte repressão policial contra
dias depois. (Nota da IHU On-Line) os manifestantes, cujo ápice se deu no protesto do dia
13 Juan Domingo Perón (1895-1974): militar e político lítica realizada a partir de um com- 13 em São Paulo. Quatro dias depois, um grande número
argentino, presidente de seu país de 1946 a 1955 e de de populares tomou parte das manifestações nas ruas em
1973 a 1974. Foi líder do Movimento Nacional Justicialista.
plexo processo de articulação de he- novos diversos protestos por várias cidades brasileiras e
Genericamente, esse Movimento é chamado peronismo. terogeneidades, em que a lógica da até do exterior. Em seu ápice, milhões de brasileiros esta-
Os ideais são baseados no pensamento de Perón. O Movi- vam nas ruas protestando não apenas pela redução das
mento Justicialista transformou-se, mais tarde em Partido equivalência adquire uma primazia tarifas e a violência policial, mas também por uma grande
Justicialista, que é a força política maioritária na Argentina. variedade de temas como os gastos públicos em grandes
Os ideais do peronismo se encontram nos diversos escri- em relação à lógica da diferença. eventos esportivos internacionais, a má qualidade dos ser-
tos de Perón como “La Comunidad Organizada”, “Con- viços públicos e a indignação com a corrupção política em
ducción Política”, “Modelo Argentino para un Proyecto geral. Os protestos geraram grande repercussão nacional
Nacional”, entre outros, onde estão expressos a filosofia e e internacional. Sobre o tema, confira a edição 193 dos
doutrina política que continuam orientando o pensamen- IHU On-Line – A partir da re- Cadernos IHU ideias, intitulada #VEMpraRUA: Outono
to acadêmico e a vida política da segunda maior nação Brasileiro? Leituras, disponíveis em http://bit.ly/2aVdHxw.
sul-americana. (Nota da IHU On-Line) alidade do Brasil e do mundo (Nota da IHU On-Line)

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

movimentos como extremamente global e muito pouco ao povo. La- de sujeitos que se intitulam
díspares entre si nos mais distintos clau, é bom que se diga, não tem um administradores capazes de
aspectos, há uma estrutura comum projeto teórico normativo no senti- melhor gerir o poder público.
que, na minha opinião, os acompa- do da proposição de cenários políti- Vivemos uma utopia de socie-
nha. Todos resultam, ao menos, na cos ideais, tais como, por exemplo, dade sem poder, essencialmen-
tentativa da construção de um povo, os projetos deliberativos de Rawls19 te sem poder político? Quais os
que foi, conforme cada caso, mais ou e de Habermas20. riscos dessa perspectiva e como
menos bem-sucedida. as ideias de Laclau reagem a
Para o filósofo político argentino,
esse cenário?
Neste sentido, a teoria do populis- a partir de uma inspiração mui-
mo de Ernesto Laclau é muito pro- to gramsciana, toda luta política é Daniel de Mendonça – Não
dutiva para que possamos compre- uma guerra de posições, com avan- existe, na verdade, uma substituição
ender cada um desses movimentos. ços e com recuos. Certamente esta- dos políticos pelos administrado-
Vou tomar o exemplo da experiência mos hoje vivendo, especialmente no res, pois a política é inerradicável. O
brasileira. O Junho de 2013 certa- Brasil, um cenário político e social que existe é a tendência a uma certa
mente foi uma tentativa de constru- de muitos recuos, com a política à hegemonia política conservadora –
ção de um povo contra o seu inimigo serviço da economia das grandes que serve somente às grandes corpo-
(a elite política em geral), ou seja, a corporações nacionais e internacio- rações econômicas e às suas regras
primeira parte da estruturação de nais. No entanto, tal situação nega- – que afirma haver a superioridade
um discurso populista. No entan- tiva, tendo em vista o compromisso de uma administração empresarial
to, no Brasil, diferentemente, por militante de Laclau, deve ser motivo da coisa pública sobre uma adminis-
exemplo, da Revolução de Jasmim para o surgimento de experiências tração baseada na política. Isso não
– o berço da “Primavera Árabe”, na políticas de constituição de identida- representa a substituição da políti-
Tunísia, que rapidamente foi capaz des coletivas cada vez mais ousadas ca pela administração ou mesmo a
de derrubar Ben Ali18, presidente e criativas que se possam apresentar substituição dos políticos pelos ad-
naquele país desde a década de 1980 como alternativas a lógicas políticas ministradores, visto que ainda esta-
–, a constituição de uma identida- e econômicas excludentes. mos no terreno da política.
de coletiva, no sentido laclauniano,
Nesse sentido, um discurso “admi-
53
não foi efetivamente estabelecida,
uma vez que a lógica da equivalência
não conseguiu superar a da diferen-
“Para Laclau, o nistrativista” é ainda uma decisão
propriamente política. Laclau en-
ça. As Jornadas de Junho, portanto,
não possibilitaram conquistas mais
corolário des- tende que este discurso, levado ao
extremo, seria o de uma sociedade
substantivas à sociedade brasileira se processo totalmente organizada a partir da
lógica da diferença. No entanto, ne-
devido justamente a uma heteroge-
neidade que não conseguiu ser hege- de homoge- nhuma sociedade funciona a partir
dessa lógica extremada, pois isso
neização é o
monicamente representada.
representaria, no limite, o fim da
política. O que acontece, de fato, é a
IHU On-Line – Como a pers- nome do líder” permanente tensão entre ambas as
pectiva laclauniana pode fazer lógicas. Os movimentos sociais e de
frente à submissão da política à protesto existem para tensionar essa
economia? IHU On-Line – Vivemos um mera “administração das coisas”.
tempo de gestores, onde políti- Laclau sempre foi muito consciente
Daniel de Mendonça – Não sei cos são postos de lado em nome dessas tensões entre essas lógicas
se seria justo com Laclau dizer que
que estão presentes em todo o tipo
a sua perspectiva tenha por obje- 19 John Rawls (1921-2002): filósofo, autor de Uma teoria
da justiça (São Paulo: Martins Fontes, 1997), Liberalismo
de sociedade. Não há nada mais po-
tivo fazer frente à política e à eco- Político (São Paulo: Ática, 2000) e O Direito dos Povos (Rio lítico do que a defesa de uma lógica
nomia como tais. Talvez fosse mais de Janeiro: Martins Fontes, 2001), além de Lectures on the
History of Moral Philosophy (Cambridge: Harvard Universi- “meramente” administrativa.
adequado dizermos que Laclau eti- ty Press, 2000). A IHU On-Line número 45, de 2-12-2002,
camente sempre teve uma posição dedicou seu tema de capa a John Rawls, sob o título John
Rawls: o filósofo da justiça, disponível em http://bit.ly/
política contrária a uma certa lógica ihuon45. Confira, ainda, a primeira edição dos Cadernos
IHU On-Line – Que associa-
IHU ideias, A teoria da justiça de John Rawls, de autoria
democrática liberal associada às po- de José Nedel e disponível em http://bit.ly/ihuid01. (Nota ções e dissociações podemos
líticas neoliberais que servem muito da IHU On-Line)
fazer entre o trumpismo, o
20 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, principal
bem aos interesses do capitalismo estudioso da segunda geração da Escola de Frankfurt.
kirchnerismo, o lulismo e o
Herdando as discussões da Escola de Frankfurt, Habermas
aponta a ação comunicativa como superação da razão varguismo e o populismo de
18 Zine El Abidine Ben Ali (1936): é um militar, general iluminista transformada num novo mito, o qual encobre
tunisiano, ditador de seu país de 7 de novembro de 1987 a dominação burguesa (razão instrumental). Para ele, o Laclau?
- quando tomou o poder mediante um golpe de Estado logos deve se construir pela troca de ideias, opiniões e in-
- até 14 de janeiro de 2011, na sequência dos protestos formações entre os sujeitos históricos, estabelecendo-se o Daniel de Mendonça – Vejo to-
de 2010-2011, origem da chamada Revolução de Jasmim. diálogo. Seus estudos voltam-se para o conhecimento e a
(Nota da IHU On-Line) ética. (Nota da IHU On-Line) das essas experiências como populis-

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

tas. Todas visam à articulação de um derarmos como tal. tendo que considerar o lulismo po-
povo contra os seus inimigos. Laclau pulista, no sentido de Laclau, amplia
Publiquei, há alguns anos, na re-
costumava dizer que algo não é em si em muito a possibilidade de com-
vista argentina editada por Ernes-
populista, mas que deveríamos per- preensão desse fenômeno.
to Laclau, “Debates y Combates”,
ceber distintas gradações de popu- um texto cujo título enuncia minha
lismo em cada experiência analisada. posição sobre o tema: ¿Por qué el
Vou tomar o lulismo como exemplo. IHU On-Line – E o papa Fran-
Lulismo no sería populista?. Neste
Há alguns anos, sobretudo depois da cisco é populista? Por quê?
artigo, procuro demonstrar, a partir
publicação do livro de André Singer21 Como?
da própria interpretação de Singer,
Os sentidos do lulismo22, este fenô- e contra ela própria, que o lulismo Daniel de Mendonça – De fato,
meno tem sido estudado no país. No tem todas as condições políticas de poderíamos perceber alguns traços
entanto, é curioso que os cientistas ser analisado como populista. Re- de um discurso populista enunciado
sociais brasileiros que se debruçam centemente publiquei, pela editora pelo papa Francisco, mas não creio
sobre o tema, a começar pelo próprio Intermeios, uma versão atualizada e que seja um caso típico desse fenô-
Singer, em momento algum, por puro ampliada deste texto como capítulo meno no sentido laclauniano. Não
preconceito, afirmam que o lulismo é do livro Ernesto Laclau e seu legado há claramente estabelecidas, pelo
uma experiência populista, ainda que transdiciplinar23, obra organizada menos não as percebo, demandas de
tenhamos, sob o ponto de vista de La- por mim e pelos colegas Léo Peixoto católicos que são por ele representa-
clau, todas as condições para o consi- Rodrigues24 e Bianca Linhares25. En- das. Penso que o papa inova pelo seu
progressismo, mas não por um dis-
21 André Vítor Singer: jornalista e cientista político brasi- 23 São Paulo: Intermeios, 2017. (Nota da IHU On-Line)
leiro. Foi porta-voz da Presidência da República. Filho do 24 Léo Peixoto Rodrigues é um dos entrevistados desta curso populista, já que as posições
economista Paul Singer, é professor do departamento de edição da IHU On-Line. (Nota da IHU On-Line)
Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências 25 Bianca de Freitas Linhares: doutora em Ciência Po-
por ele tomadas, por mais progres-
Humanas da Universidade de São Paulo. Confira as Notí- lítica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - sistas que sejam, estão num contex-
cias do Dia do IHU: Raízes sociais e ideológicas do lulismo. UFRGS. Possui graduação (bacharelado e licenciatura) em
A análise de André Singer, disponível em http://migre.me/ Ciências Sociais e mestrado em Ciência Política pela UFR- to de manutenção de institucionali-
qklP e PT terá que se reposicionar diante do lulismo, afir- GS. É professora adjunta do Departamento de Sociologia
ma André Singer, disponível em http://migre.me/qkmC. e Política e do Programa de Pós-Graduação em Ciência dade da Igreja Católica que não me
(Nota da IHU On-Line) Política da Universidade Federal de Pelotas - UFPel. Tem parecer ser, em termos gerais, por
54 22 São Paulo: Companhia das Letras; 2012. (Nota da IHU
On-Line)
interesse pelas áreas de cultura política, percepção tribu-
tária e de análise de discurso. (Nota da IHU On-Line) ele questionada.■

Leia mais
- Hegemonia e Populismo revisitados no pensamento de Laclau. Entrevista com Daniel
de Mendonça, publicada na revista IHU On-Line número 442, de 5-5-2014, disponível em
http://bit.ly/2sT3gl1

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

De política vibrante a
instrumento de governança
David Howarth analisa de que forma Laclau, através de seu
populismo, explora o “primado da política” na sociedade sem
cessar a pluralidade em detrimento da representatividade
João Vitor Santos | Tradução: Luís Marcos Sander

P
artindo da ideia de que populis- Afinal, como fazer com que permane-
mo, segundo Laclau, é algo que ça múltiplo algo que necessita ser re-
emerge de desejos coletivos que presentado? Eis, na visão de Howarth,
se insurgem contra um poder hegemô- uma das grandes provocações de nosso
nico e institucionalizado, podemos pen- tempo. “Um dos maiores desafios com
sar que o movimento populista é algo que se defrontam novos movimentos
organizado. No entanto, a desordem é populistas de tendência esquerdista na
parte essencial ao populismo. O profes- Europa, nos Estados Unidos e na Améri-
sor David Howarth faz questão de desta- ca Latina é como se transformar de uma
car que manifestações dessa ordem são política vibrante de protesto em um ins-
múltiplas, como a Primavera Árabe. “As trumento eficaz, plural e democrático de
várias concretizações da Primavera Ára- governança”, sem se institucionalizar.
be, cada uma diferente, exibem muitas Para ele, é preciso manter a capacidade
das marcas do populismo”, destaca. São, 55
de preservar “seus aspectos radicais e
segundo o professor, movimentos da democratizantes” ao mesmo tempo.
política de hoje com demandas plurais e
interesses em comum que materializam David Howarth é professor do De-
o conceito de democracia radical. partamento de Governo e codiretor do
Centro de Estudos Teóricos da Univer-
Na entrevista a seguir, concedida
sidade de Essex, no Reino Unido. Tra-
por e-mail à IHU On-Line, Howarth
balha com teorias pós-estruturalistas da
explica que “Laclau sustenta que a de-
sociedade e da política, concentrando-se
mocracia radical denota um conjunto
especialmente no estudo empírico das
de dimensões”, as quais devem ser ar-
ideologias e discursos políticos. Atual-
ticuladas entre si. Do contrário, uma
mente está trabalhando em dois projetos
dessas perspectivas se sobressai, e o
de livros: um sobre as temáticas pós-es-
populismo, enquanto movimento con-
tra-hegemônico, cai no erro de elencar truturalistas de teoria social e política –
apenas demandas que homogeneízam Poststructuralism and After (Londres:
os movimentos. “Ele [o populismo] não Palgrave) – e outro sobre governança de
pode ser fixado por apenas uma única aeroportos no Reino Unido – The Politi-
forma e um único conjunto de institui- cs of Sustainable Aviation (Manchester:
ções.” Logo, produz uma tensão entre Manchester University Press).
as formas de representação. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como com- David Howarth – A preocupa- do-o em termos simples, ele procura,
preender o pensamento de ção de todos os escritos teóricos de assim, contestar e reformular a ideia
Laclau a partir de sua teoria Laclau era desenvolver uma aborda- de que uma base econômica, gover-
política pós-marxista alicer- gem marxista da política e da ideolo- nada por leis e lógicas econômicas
çada na teoria materialista do gia que pudesse evitar os problemas precisas, determina ou estrutura
discurso? E quais as contri- do determinismo econômico e do formas políticas – como o Estado e
buições de Mouffe? reducionismo de classe. Expressan- suas intervenções (decisões, políti-

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

cas etc.), por exemplo –, bem como necessária” (Laclau, 1977, p. 159), ou cognitiva da análise de discurso,
as ideias e formas de consciência mas que certos apelos e interpela- Laclau e Mouffe definem o discur-
dominantes na sociedade. Ele tam- ções – p. ex., referentes à nação, ao so como uma prática articulatória
bém questiona a ideia de que todas povo, à raça ou à religião – podem que conecta elementos contingentes
as formas de subjetividade humana ser conectados com projetos políti- – linguísticos e não linguísticos, na-
– nossa identidade e capacidade de cos radicalmente diferentes. turais e sociais – em sistemas rela-
agir – são decisivamente moldadas cionais, em que a identidade dos ele-
Depois, em Hegemony and Socia-
por nossa localização na estrutura de mentos é modificada em decorrência
list Strategy [Hegemonia e estra-
classe das sociedades, onde esta últi- da prática articulatória.
tégia socialista] (1985)6, escrito em
ma é determinada unicamente pela
coautoria com Chantal Mouffe, e em Uma condição-chave dessa abor-
posse e controle da propriedade,
New Reflections on the Revolution dagem é que todos esses elemen-
bem como pelo acesso diferenciado
of Our Time [Novas reflexões sobre tos são contingentes e não fixos, de
aos meios de produção.
a revolução de nosso tempo] (1990)7, modo que seu sentido e sua identi-
Entretanto, esses esforços produ- ele articulou uma teoria claramente dade só são parcialmente fixados
ziram fases diferentes, com ênfases pós-marxista da hegemonia e da por práticas articulatórias. Sistemas
diferentes. Dizendo-o de modo mui- política que incorpora diferentes incompletos de sentido e prática são
to simples, suas várias contribuições aspectos da filosofia pós-estrutura- os resultados de tais práticas. E, fi-
ao desenvolvimento da teoria mar- lista (p. ex., dos escritos de Derrida8, nalmente, em textos como Emanci-
xista podem ser divididas em três Foucault9 e Lacan10). Essa aborda- pation(s) [Emancipação e diferença]
fases básicas. Primeiro, em textos gem rompe decisivamente com o de- (1996)11 e On Populist Reason [A
como Politics and Ideology in Mar- terminismo e essencialismo residual razão populista] (2005)12, ele refi-
xist Theory [Política e ideologia na do paradigma marxista ao elaborar na mais ainda essa abordagem pós
teoria marxista] (1977)1, ele procu- uma concepção distintiva de dis- -marxista da análise política através
rou elaborar uma teoria não redu- curso e hegemonia. Rejeitando uma de uma confrontação mais profunda
cionista da ideologia e da política abordagem puramente linguística com a filosofia desconstrucionista e
confrontando-se com a obra de An- a interpretação da psicanálise freu-
56 tonio Gramsci2 e Louis Althusser3, e diana proposta por Lacan.
6 EUA: Verso Press, 1985. (Nota da IHU On-Line)
outros proponentes da escola althus- 7 EUA: Verso Press, 1990. (Nota da IHU On-Line)
8 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, criador
seriana, incluindo Étienne Balibar4 e do método chamado desconstrução. Seu trabalho é as- Construção e representação
Nicos Poulantzas5. Laclau sustenta sociado, com frequência, ao pós-estruturalismo e ao pós-
modernismo. Entre as principais influências de Derrida
que nem todos os elementos ideo- encontram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre
Cada um desses desdobramentos
lógicos têm “uma pertença de classe sua extensa produção, figuram os livros Gramatologia teóricos se vincula grosso modo com
(São Paulo: Perspectiva), A farmácia de Platão (São Pau-
lo: Iluminuras), O animal que logo sou (São Paulo: Unesp), uma série de questões prementes na
1 EUA: Verso Press, 2011. (Nota da IHU On-Line)
Papel-máquina (São Paulo: Estação Liberdade) e Força de
lei (São Paulo: WMF Martins Fontes). É dedicada a Derrida
política contemporânea: a constru-
2 Antonio Gramsci (1891-1937): foi um filósofo marxista, a editoria Memória, da IHU On-Line nº 119, de 18-10- ção e representação de demandas
jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu sobre 2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119. (Nota da IHU
teoria política, sociologia, antropologia e linguística. Com On-Line) da classe trabalhadora e demandas
Togliatti, criou o jornal L’Ordine Nuovo, em 1919. Secre- 9 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Suas populares em um projeto expandido
tário do Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em obras, desde a História da Loucura até a História da sexu-
1926 e só foi libertado em 1937, dias antes de falecer. Nos alidade (a qual não pôde completar devido a sua morte), para a transformação socialista; o
seus Cadernos do cárcere, substituiu o conceito da ditadu- situam-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Fou-
ra do proletariado pela “hegemonia” do proletariado, dan- cault trata principalmente do tema do poder, rompendo desenvolvimento de um projeto para
do ênfase à direção intelectual e moral em detrimento do com as concepções clássicas do termo. Em várias edições, a democracia radical como maneira
domínio do Estado. Sobre esse pensador, confira a edição a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: edição
231 da IHU On-Line, de 13-8-2007, intitulada Gramsci, 119, de 18-10-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119; de articular as demandas e identida-
70 anos depois, disponível para download em http://www. edição 203, de 6-11-2006, disponível em https://goo.gl/
ihuonline.unisinos.br/edicao/231. (Nota da IHU On-Line) C2rx2k; edição 364, de 6-6-2011, intitulada ‘História da
des associadas com os novos movi-
3 Louis Althusser (1918-1990): filósofo marxista francês. loucura’ e o discurso racional em debate, disponível em mentos sociais; e, finalmente, uma
Seu envolvimento com a ideologia marxista pode ser de- https://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo biopolí-
vido ao tempo gasto nos campos de concentração nazista, tico da vida humana, de 13-9-2010, disponível em https:// ênfase na criação de novas formas
durante a segunda guerra mundial, depois da qual come- goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolítica, estado de exce-
çou sua carreira acadêmica. (Nota da IHU On-Line) ção e vida nua. Um debate, disponível em https://goo.gl/
de “universalismo contingente” face
4 Étienne Balibar (1942): é um filósofo e professor uni- RX62qN. Confira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU a uma preocupante fragmentação da
versitário francês. Até 2002, ensinou Filosofia Política e em formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel
Moral na Universidade Paris Oeste Nanterre La Défense Foucault – Sua Contribuição para a Educação, a Política e a política radical causada pela ascen-
(antes Universidade Paris X - Nanterre), da qual é professor
emérito. Atualmente leciona francês, italiano e Literatura
Ética. (Nota da IHU On-Line)
10 Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista francês. Re-
são de novas formas de particularis-
Comparada e é professor associado do departamento de alizou uma releitura do trabalho de Freud, mas acabou mo e identidade/diferença.
Antropologia da Universidade da Califórnia em Irvine, nos por eliminar vários elementos deste autor. Para Lacan, o
Estados Unidos. Foi também professor visitante do Depar- inconsciente determina a consciência, mas ainda assim
tamento de Francês e Filologia Românica da Universidade constitui apenas uma estrutura vazia e sem conteúdo.
Mas, embora seja possível delinear
Columbia. (Nota da IHU On-Line) Confira a edição 267 da revista IHU On-Line, de 4-8-2008, e mapear essas mudanças na abor-
5 Nicos Poulantzas (1936-1979): foi um filósofo e soció- intitulada A função do pai, hoje. Uma leitura de Lacan,
logo grego. Poulantzas era marxista e membro do Partido disponível em http://bit.ly/ihuon267. Sobre Lacan, confira dagem do estudo da ideologia e da
Comunista da Grécia. Exilou-se em Paris, onde lecionou as seguintes edições da revista IHU On-Line, produzidas
a partir de 1960. Foi aluno de Louis Althusser, do qual tendo em vista o Colóquio Internacional A ética da psi-
política por parte de Laclau, também
herdou uma interpretação do marxismo inovadora e con- canálise: Lacan estaria justificado em dizer “não cedas há continuidades significativas. Cada
troversa chamada de althusserianismo, com a qual rompe de teu desejo”? [ne cède pas sur ton désir]?, realizado
ulteriormente. Suas obras resumem-se em uma complexa em 14 e 15 de agosto de 2009: edição 298, de 22-6-2009, uma das diferentes fases nos textos
análise funcional das Estruturas ou Instâncias - o Econô- intitulada Desejo e violência, disponível em http://bit.ly/
mico, o Político e o Ideológico - do Modo de produção ihuon298, e edição 303, de 10-8-2009, intitulada A ética
capitalista, sobretudo no que diz respeito à forma como da psicanálise. Lacan estaria justificado em dizer “não cedas
essas estruturas determinam as práticas sociais que as de teu desejo”?, disponível em http://bit.ly/ihuon303. (Nota 11 EUA: Verso Press USA, 1996. (Nota da IHU On-Line)
sustentam. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) 12 EUA: Verso Press USA, 2005. (Nota da IHU On-Line)

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

de Laclau é moldada pela busca de zios”, que resultam de um proces- parâmetros nítidos, mas eles são
uma explicação antiessencialista e so em que uma demanda ou sinal sempre arriscados e perigosos.
não reducionista de relações e prá- particular passa a significar o que é
ticas sociais. Portanto, todas as suas universal nas diferentes demandas Concepções de hegemonia
intervenções procuram dar mais es- que são unidas umas com as outras.
paço para o papel relativamente au- A unidade e identidade são produ- No desenvolvimento da teoria de
tônomo da política e da ideologia na zidas por meio de sua oposição a Laclau, a categoria de hegemonia foi
explicação de processos sociais. E, um outro comum. Os significantes um dispositivo central para juntar
em cada estágio de seus escritos, ele vazios salientam a importância da os diferentes elementos e concei-
explora e às vezes integra correntes retórica, pois invocam os tropos da tos de sua abordagem. Entretanto,
não marxistas de pensamento em catacrese e da sinédoque e, portan- há formulações e ênfases diferentes
sua abordagem. to, o papel central do ato de “no- nos escritos dele nesse tocante. Em
mear” – tanto a si mesmo quanto Hegemonia e estratégia socialista, a
ao outro –, bem como a maneira hegemonia é um tipo de prática que
IHU On-Line – Qual o concei- como uma “parte” pode represen- une diferentes demandas e identida-
to de hegemonia para Laclau? des na construção de projetos hege-
tar o “todo”.
Como constitui esse conceito mônicos. Essa prática articulatória,
a partir da leitura de Antonio Entretanto, dentro de tais coa- por sua vez, pressupõe o caráter in-
Gramsci? lizões ou ajuntamentos se dá es- completo e aberto do social, acopla-
paço para graus de autonomia e do à presença de forças antagonísti-
David Howarth – A hegemonia,
respeito pela diferença. Temos, cas e à instabilidade das fronteiras
no pensamento de Laclau, não tem
então, as lógicas interagentes de que as separam. Nessa concepção, é
a ver apenas com a dominação ou li-
equivalência e diferença. Equiva- só a presença de uma vasta área de
derança política, concebidas em ter-
lências entre demandas e identi- elementos flutuantes e a possibilida-
mos estreitos. E tampouco tem a ver
dades diferentes são criadas ao se de de sua articulação em formações
apenas com o Estado moderno e as
nomear outros – ou um “Outro” opostas que torna possível uma prá-
lutas pelo poder estatal, que muitas
no singular – que bloqueiam sua tica hegemônica. Sem equivalência
vezes só envolvem relações de força
e coerção. Radicalizando a obra de
consecução. Assim, os valores da e sem fronteiras, é impossível falar 57
Antonio Gramsci ao desconstruir igualdade e solidariedade são rea- rigorosamente de hegemonia.
seus compromissos residuais com firmados dessa maneira. Contudo,
Em seus textos mais recentes, a no-
um núcleo econômico decisivo e a as diferenças não são completa-
ção de hegemonia está estreitamente
reafirmação de uma classe social mente obliteradas na criação de
ligada ao funcionamento dos signifi-
fundamental como o agente princi- um projeto ou coalizão mais uni-
cantes vazios. Em A razão populista,
pal da mudança social, Laclau se re- versal, pois elas precisam ser res-
por exemplo, a hegemonia é descrita
fere, antes, à construção de projetos peitadas e valorizadas. Portanto, a
como uma operação em que “uma di-
e ajuntamentos amplos que possam liberdade e o pluralismo também
ferença [...] assume a representação
desenvolver e instituir novos valores são valorizados e endossados. de uma totalidade incomensurável”,
e relações sociais, bem como políti- Mas há perigos à espreita. As de modo que na consequente intera-
cas públicas e formas de governança. equivalências podem se dissolver ção entre universalidade e particula-
Assim, o conceito de hegemonia e dissipar depois que vitórias par- ridade, onde a totalidade encarnada
elucida a criação e reprodução de ciais sejam alcançadas. E todas as é um objeto impossível, a identidade
sistemas sociais ao enfocar a ma- vitórias nessa abordagem são, até hegemônica assume a forma de um
neira como demandas, identidades certo ponto, parciais, mesmo que significante vazio.
e grupos são entretecidos em pro- sejam substanciais – não há uma
jetos animados por um discurso emancipação última, mas ape-
nas uma série de emancipações. IHU On-Line – Quais os limi-
comum. Esse discurso comum se
As diferenças podem facilmente tes e as potencialidades do con-
mantém unido por sua oposição
se solidificar em novas formas de ceito de populismo, segundo
a um conjunto nomeado de práti-
hierarquia e divisão social, depois Ernesto Laclau, para compre-
cas, ideias e políticas. A oposição é,
endermos a política de nosso
assim, cristalizada em significan- que um projeto alcança certo grau
tempo?
tes que vinculam esses elementos. de poder e hegemonia. Demandas
“Para os muitos, e não para os pou- equivalenciais podem ser desco- David Howarth – Os conceitos
cos” – o slogan do Partido Traba- nectadas e absorvidas em sistemas de discurso e hegemonia são as pe-
lhista na recente eleição geral no de poder, e sua radicalidade pode dras angulares da abordagem teórica
Reino Unido – é um bom exem- ser, assim, mitigada. Em suma, os de Laclau, e o projeto para a demo-
plo desse tipo de representação. jogos de equivalência e diferença cracia radical é a alternativa de La-
Em termos técnicos, tais slogans são estrategicamente necessários clau e Mouffe para o neoliberalismo
funcionam como “significantes va- em um mundo sem regras fixas ou e o capitalismo irrestrito. Mas é o

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

populismo que constitui o foco subs- za14 e outros movimentos populistas minados em termos empíricos.
tantivo central de sua obra. vêm reivindicando e tentando fazer
Isso exige um esclarecimento con-
atualmente. Para muitos, eles agora
Logo de início, é importante acen- ceptual adicional do populismo e
simbolizam as esperanças das pes-
tuar que a abordagem do populismo de sua aplicação. Assim, proponho
soas que foram excluídas e deixadas
de Laclau difere de teorias rivais em distinguir entre: 1) populismo como
para trás em decorrência da política
aspectos fundamentais. Em termos ideologia ou dimensão ideológica de
de austeridade, bem como daquelas
teóricos, ele rejeita propostas ecléti- discursos e relações sociais; 2) for-
que aspiram a algo novo e diferente.
cas que atribuem uma falsa unidade mas equivalenciais e institucionais
à política populista subsumindo mo- A estratégia teórica de Laclau nos da política (que podem ser distribu-
vimentos e práticas extremamente ajuda a elaborar conceitos que po- ídas em um espectro limitado por
diversos sob sua bandeira. Ele tam- dem elucidar toda uma gama de ma- esses dois ideais reguladores); e 3)
bém contesta abordagens que redu- nifestações populistas. Tomando-a formas autoritárias e excludentes
zem a política populista a impulsos por base, podemos distinguir entre da política equivalencial, por um
irracionais e retrógrados, ou a inte- várias formas e práticas, caracte- lado, e política equivalencial popu-
resses e localizações de classe dados rizando algumas como populistas lar-democrática e/ou democrática
previamente. O populismo não é e outras não. Por exemplo, um de- radical, por outro.
uma fachada que bloqueie ou distor- magogo populista que apela consis-
ça as lutas da classe trabalhadora ou tentemente para “o povo”, ou um
autoafirmações nacionalistas, como partido político que faz afirmações IHU On-Line – Partindo do
pretendem algumas pessoas. e intervenções ambíguas e distorci- conceito de Laclau, é possível
das, mas não estabelece equivalên- se constituir a ideia de popu-
Em vez disso, com base em sua te- lismo de direita e populismo de
cias entre demandas heterogêneas,
oria do discurso e da hegemonia, La- esquerda? Por quê? Como?
não pode ser considerado populismo
clau sustenta que o populismo mos-
nesse esquema. David Howarth – Laclau acen-
tra um modo distintivo de articular
identidades políticas e de construir tua que o populismo assume for-
Inconvenientes em potencial mas múltiplas. Ele pode ser facil-
coalizões. As lutas populistas colo-
58 cam em primeiro plano a dimensão mente vertido em uma política de
Contudo, também há inconvenien-
política na sociedade – a divisão da direita que culpa os imigrantes e
tes em potencial, especialmente
sociedade em dois campos – e impli- outros bodes expiatórios pelo de-
quando Laclau retorna aos fenô-
cam a junção de demandas expres- semprego, estagnação econômica
menos empíricos armado com as
sas por aqueles que estão margina- e piora dos serviços públicos. Não
categorias que foram elaboradas.
lizados e excluídos dos sistemas e precisamos olhar muito longe para
Neste ponto, sustento que há uma
discursos dominantes. Além disso, ver esse tipo de política na Europa
ambiguidade produtiva (ainda que
líderes carismáticos podem encarnar de momento. Mas a reafirmação
potencialmente problemática). Po-
essa oposição comum fornecendo de um populismo progressista por
pulismo é tanto o nome e represen-
pontos com os quais as pessoas po- parte de Laclau também implica
tante da própria política quanto um
dem se identificar e nos quais podem um compromisso forte com a de-
tipo de discurso ou objeto político,
investir. Dessa maneira, identidades mocracia, ainda que em um sen-
o que se evidencia, por exemplo, na
políticas populares e vontades cole- tido mais radical do que nossos
exposição de Laclau a respeito de va-
tivas podem ser forjadas e ativadas, arranjos neoliberais atuais. Em-
riações populistas, seja o peronismo
e novas relações e práticas sociais bora Laclau provenha da tradição
na Argentina ou o People’s Party nos
podem ser instituídas. marxista, sua teoria política pós
Estados Unidos, que podem ser exa-
-marxista apoia resolutamente os
Portanto, Laclau contesta a con- valores da democracia, igualdade
em 2014, fortemente influenciado pelas ideias do movi-
cepção de que os líderes populistas mento 15M. Um de seus principais representantes é Pablo e liberdade política. Com efeito, o
são sempre demagogos de direita ou Iglesias Turrión. Surge num momento de reestruturação
da esquerda no mundo. Atualmente, é o favorito para que ele e Chantal Mouffe chamam
que os partidos e movimentos popu- eleição presidencial na Espanha. (Nota da IHU On-Line)
de projeto para a “democracia ra-
14 SYRIZA: em português, Coligação da Esquerda Radical;
listas são inerentemente antidemo- em grego, Συνασπισμός Ριζοσπαστικής Αριστεράς, Sy- dical e plural” exige a ampliação e
cráticos. Ele sustenta, pelo contrário, naspismós Rizospastikís Aristerás, abreviado SYRIZA. É um
partido político de esquerda da Grécia, surgindo num mo- aprofundamento de valores como
que o populismo é um ingrediente mento de reestruturação da esquerda no mundo. Foi fun-
igualdade e liberdade para além
dado em 2004 como uma aliança eleitoral de 13 partidos
essencial das sociedades democrá- e organizações de esquerda, tendo como componente das instituições formais do Parla-
ticas modernas, porque funciona principal o partido Synaspismós (Em português, Coligação
de Movimentos de Esquerda e Ecológicos- SYN; em gre- mento e do Estado.
para representar a voz marginali- go Συνασπισμός της Αριστεράς των Κινημάτων και της
zada dos oprimidos na sociedade. Οικολογίας, Synaspismos tis Aristerás tu Kinīmátōn kai tis
Oikologías). Em maio de 2012, o SYRIZA apresentou-se
Portanto, tanto Laclau quanto
Isso, por exemplo, é precisamente como um único partido. Vitorioso na eleição de janeiro de Mouffe se referem às diferenças
2015, o líder do Syriza, Alexis Tsipras, foi empossado como
o que os líderes de Podemos13, Syri- primeiro-ministro para dirigir o novo governo da Grécia, entre populismo “de direita” e “de
viabilizando um governo de coalizão com o partido na-
cionalista conservador, Gregos Independentes. (Nota da
esquerda”. Mas, falando em ter-
13 Podemos: partido político espanhol que foi fundado IHU On-Line) mos rigorosos, isso não é algo que

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

possa ser derivado ou deduzido de o caso do peronismo15, especial- Wall Street17, entre outros?
sua abordagem teórica. Para eles, mente na década de 1950 – o mo-
David Howarth – Em geral,
com efeito, o populismo não é ab- mento, disse-me ele certa vez, em
deveríamos observar que a expli-
solutamente um objeto político ou que os significantes começaram a
cação do populismo proposta por
uma entidade política – um movi- “flutuar” –, ocupa algo assim como
Laclau é sinônimo de suas tentati-
mento, partido, ideologia etc. –, e um status paradigmático na elabo-
vas de entender a lógica da mobi-
sim uma dimensão de todas as re- ração de seu pensamento. É claro
lização coletiva e da construção de
lações sociais. Assim, se tomarmos que os contextos variam considera-
identidades populares. Com efei-
Laclau ao pé da letra, populismo velmente, e Laclau estava atento a
to, ele às vezes junta esses aspec-
de esquerda e de direita é mais ou essas particularidades. tos em sua compreensão do pró-
menos sinônimo de política de es-
Em alguns escritos, ele fez uma prio conceito de política. Quanto
querda ou de direita (embora isto,
divisão tendencial entre lutas “de- aos casos específicos menciona-
naturalmente, implique perguntas
mocráticas populares” e “democrá- dos na pergunta, eles são, é claro,
a respeito dessa distinção).
ticas radicais”, que, em certo sen- mobilizações e intervenções mui-
Em vez disso, portanto, em minha tido, refletia as diferenças entre a to diferentes, embora o contexto
interpretação da obra deles é pos- América Latina e a Europa, falando global mais amplo – a ascensão
sível isolar e extrair a ideia de que em termos amplos: a América La- e consolidação do que se poderia
formas e apelos populistas podem tina marcada em muitos casos pelo chamar de “neoliberalismo global”
ser ligados a projetos políticos e surgimento de formas autoritárias e os desdobramentos geopolíticos
movimentos sociais radicalmente e clientelistas de política, e a Euro- associados com essa era – forne-
diferentes. Pressupondo isso, o que pa pelo desenvolvimento mais gra- ça efetivamente algumas conexões
se poderia chamar de lutas “popu- dativo e desigual de instituições e frouxas entre eles.
lar-democráticas” ou “democráti- práticas democráticas mais liberais. Laclau não escreveu muita coisa
cas radicais” podem, portanto, ser Ele também mostrou como diferen- diretamente sobre esses novos acon-
contrapostas a estilos mais autori- tes demandas “liberais”, como, por tecimentos e processos, embora seus
tários, hierárquicos ou excluden- exemplo, a luta por direitos huma- alunos e alunas na Escola de Análise
tes de política. As lutas popular- nos básicos em países latino-ameri- 59
do Discurso de Essex tenham feito
democráticas, por sua vez, podem canos durante as décadas de 1970 e isso. As várias concretizações da Pri-
ser distinguidas de outros tipos 1980, puderam se tornar demandas mavera Árabe, cada uma diferente,
de política, incluindo campanhas populares e, assim, passar a fazer exibem muitas das marcas do po-
intensas em torno de um único parte da identidade popular.
assunto, assim como formas mais pulismo: o entretecimento de várias
institucionais e pragmáticas de po- Por fim, Laclau também insiste em demandas articuladas e dirigidas a
lítica, que muitas vezes implicam o pluralizar nossa compreensão de elites e regimes (muitas vezes) cor-
fechamento de acordos e soluções formas democráticas modernas, de ruptos e escleróticos por movimen-
conciliatórias (embora todas essas modo que as instituições democrá- tos e campanhas, pacíficos e às vezes
formas políticas possam ter em co- ticas liberais não esgotem – e não violentos. Também é possível ver o
mum algumas “semelhanças de fa- deveriam esgotar – nosso conceito e movimento Occupy18 nesses termos.
mília”, para usar a terminologia de compreensão de democracia.
no Egito, uma guerra civil na Líbia e na Síria; grandes pro-
Wittgenstein). testos na Argélia, Bahrein, Djibuti, Iraque, Jordânia, Omã e
Iémen e protestos menores no Kuwait, Líbano, Mauritânia,
Marrocos, Arábia Saudita, Sudão e Saara Ocidental. Os
IHU On-Line – Como, a par- protestos têm compartilhado técnicas de resistência civil
IHU On-Line – Qual a impor- tir da perspectiva do populis- em campanhas sustentadas envolvendo greves, manifes-
tações, passeatas e comícios, bem como o uso das mídias
tância do contexto (e história) mo de Laclau, compreender os sociais, como Facebook, Twitter e Youtube, para organizar,
comunicar e sensibilizar a população e a comunidade in-
político(a) da América Latina chamados novos movimentos ternacional em face de tentativas de repressão e censura
para compreender o conceito sociais, como os que derivam na Internet por partes dos Estados. (Nota da IHU On-Line)
17 Occupy Wall Street (Ocupe Wall Street): é um movi-
de populismo para Laclau? E da Primavera Árabe16, Occupy mento de protesto contra a desigualdade econômica e
social, a ganância, a corrupção e a indevida influência das
quais as distinções da experi- empresas - sobretudo do setor financeiro - no governo
ência política latina com a de 15 Peronismo: o Movimento Nacional Justicialista é ge-
nericamente chamado peronismo. Os ideiais são basea-
dos Estados Unidos. Iniciado em 17 de setembro de 2011,
no Zuccotti Park, no distrito financeiro de Manhattan, na
países da Europa? dos no pensamento de Juan Domingo Perón (1895-1974), cidade de Nova York, o movimento continua denunciando
presidente as Argentina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974. a impunidade dos responsáveis e beneficiários da crise
O Movimento transformou-se, mais tarde em Partido Jus-
David Howarth – É evidente a ticialista, que é a força política maioritária na Argentina. Os
financeira mundial. Posteriormente surgiram outros mo-
vimentos Occupy por todo o mundo. As manifestações
partir de seus escritos iniciais que ideais do peronismo se encontram nos diversos escritos foram a princípio convocadas pela revista canadense
de Perón como “La Comunidad Organizada”, “Conducción Adbusters, inspirando-se nos movimentos árabes pela de-
toda a teoria política de Laclau foi Política”, “Modelo Argentino para un Proyecto Nacional”, mocracia, especialmente nos protestos na Praça Tahrir, no
fortemente moldada por suas expe- entre outros, onde estão expressos a filosofia e doutrina Cairo, que resultaram na Revolução Egípcia de 2011. (Nota
política que continuam orientando o pensamento acadê- da IHU On-Line)
riências sociais e políticas na Amé- mico e a vida política da segunda maior nação sul-ameri- 18 Occupy: série de protestos mundiais iniciados no dia
cana. (Nota da IHU On-Line) 15 de outubro de 2011, a partir da ocupação de Wall
rica Latina, particularmente de sua 16 Primavera Árabe: os protestos no mundo árabe ocor- Street, nos Estados Unidos, dando origem ao movimen-
terra natal, a Argentina. Em pales- ridos de 2010 a 2012 foram uma onda revolucionária de
manifestações e protestos, compreendendo o Oriente
to Occupy. O movimento se espalhou por várias cidades
do mundo, organizado por coletivos locais, organizações
tras, conversas e textos publicados, Médio e o Norte da África. Houve revoluções na Tunísia e de bairro ou movimentos sociais, os quais propunham al-

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Desde a pers- ti-União Europeia, acopladas com ça e da particularidade (Laclau,
pectiva de Laclau, como com- conclamações a um maior prote- 2005b, p. 259-261).
preender o que se tem chama- cionismo das indústrias nacionais
Cada uma dessas dimensões é as-
do de retomada da direita nos e serviços públicos etc. –, a função
solada por dificuldades: os princí-
governos de países da América delas tem sido primordialmente
pios e regras da democracia liberal
Latina, como na Argentina e defender elementos importantes
na concepção formal de democra-
no Brasil, e até mesmo ascen- do status quo, especialmente a ló-
cia são estreitos e tênues demais.
são de líderes conservadores gica dominante do crescimento
Eles são, portanto, compatíveis
na Europa e a própria eleição econômico, bem como toda uma
com várias desigualdades na so-
de Donald Trump nos Estados gama de interesses próprios no Es-
ciedade civil, ao mesmo tempo
Unidos? tado, na economia e na sociedade
que também ocultam relações de
como um todo.
David Howarth – Como obser- dominação e hierarquia em nome
vei, Laclau distingue entre populis- do universalismo. Uma democracia
mo de esquerda e de direita, e entre IHU On-Line – O conceito de puramente populista corre o risco
projetos hegemônicos insurgentes, populismo é uma forma de La- de identificar a comunidade com
que operam por meio da lógica clau explorar o “primado da uma seção particular dela, excluin-
equivalencial, e formas mais insti- política” na sociedade. Mas do, assim, o pluralismo e a “inte-
tucionais de política, que são mar- em que medida sua metodolo- ração democrática”. E, finalmente,
cadas pela preservação de sistemas gia de análise tensiona o mo- se a democracia radical fosse equi-
dominantes, mostrando muitas ve- delo de política representati- parada com a simples reafirmação
zes lógicas complexas de diferença va? Como ele trata a chamada do pluralismo e da diferença, ela
na construção e reprodução do po- “crise de representatividade”? privaria o conceito de uma ordem
der. A ascensão de Donald Trump E como vislumbra a “demo- simbólica comum dentro da qual
e o sucesso de outros partidos de cracia ideal”? essas reivindicações e queixas pu-
direita na Europa, como, por exem- dessem ser reafirmadas.
David Howarth – Essas são
plo, o UKIP19 de Nigel Farage20 no perguntas complexas e difíceis, que Assim, Laclau sustenta que a de-
60 Reino Unido e a FN21 de Marine levantam questões-chave para a po- mocracia radical necessita de uma
Le Pen22 na França, podem ser ca- lítica radical atualmente. Nos escri- articulação política entre essas
racterizados como concretizações tos de Laclau e Mouffe, elas podem três dimensões, e não de uma me-
variáveis de estilos autoritários e ser abordadas por meio do conceito diação lógica entre elas, ou da lógi-
excludentes de populismo. de democracia radical, que é em si ca da subsunção de duas delas sob
mesmo rico e multiforme. Mas no uma concepção dominante. Isso
Embora exibam uma postura
tempo e espaço limitados que tenho deixa uma concepção de democra-
anti-establishment, bem como
à minha disposição, não tenho con- cia e de democracia radical como
um modo equivalencial de asso-
dições de explorar todas elas deta- um conjunto heterogêneo de ele-
ciar diferentes demandas – p. ex.,
lhadamente. Em vez disso, irei me mentos em tensão mútua, deixan-
demandas anti-imigração e an-
concentrar em uma tensão produti- do, assim, espaço para articulações
ternativas de desenvolvimento voltadas à preservação do va que surge na obra de Laclau. contingentes por parte de diferen-
planeta e ao consumo consciente de produtos, opondo-se tes atores e forças.
à especulação financeira e à ganância econômica. (Nota Em uma linha de pensamento,
da IHU On-Line)
19 Partido de Independência do Reino Unido (em inglês Laclau sustenta que a democracia Democracia e liberalismo
UK Independence Party; ou conhecido pela sigla UKIP): é
um partido político britânico eurocético e de direita, fun- radical denota um “conjunto de
dado em 1993, pela antiga “Liga Antifederalista”. Eles se dimensões”, cada uma das quais Isso é um conjunto de observa-
descrevem como um partido “democrático e libertário” e
afirmam possuir, até setembro de 2014, mais de 48.000 carece de algo, e, quando tomadas ções sobre a democracia radical.
membros. (Nota da IHU On-Line)
20 Nigel Paul Farage (1964): político britânico. Foi um dos
em conjunto, elas não se encaixam Mas há outra linha de fuga, que é
líderes mais influentes do Partido de Independência do perfeitamente. As três concepções mais proeminente na obra de La-
Reino Unido (UKIP), de orientação conservadora e eurocé-
tica, desde 1998 e seu presidente de 2010 a 2015, quando são democracia como regime polí- clau intitulada A razão populista.
renunciou após uma tentativa fracassada de ser eleito para
a Câmara dos Comuns. (Nota da IHU On-Line)
tico, isto é, um sistema universal Aqui ele traça uma forte ligação en-
21 Frente Nacional - FN: em francês: Front National; é de regras institucionais (p. ex., li- tre populismo e democracia. Isso se
um partido político francês de extrema-direita e de caráter
protecionista, conservador e nacionalista. Foi fundado em berdade e igualdade para todos); deve ao fato de que “a democracia
1972 com o intuito de unificar as várias correntes nacio-
nalistas da época. Jean-Marie Le Pen foi o primeiro líder
democracia como forma particular se fundamenta apenas na existên-
do partido e sua figura central até sua renúncia em 2011. de subjetividade democrática – a cia de um sujeito democrático, cujo
A atual líder da FN é Marine Le Pen, sua filha. (Nota da
IHU On-Line) constituição de “o povo”, por exem- surgimento depende da articulação
22 Marion Anne Perrine Le Pen (1968): mais conhecida plo – que Laclau identifica como horizontal entre demandas equi-
como Marine Le Pen, é uma advogada e política de direita
da França. Deputada do Parlamento Europeu desde 2004, “populista”; e a conexão entre de- valenciais” (Laclau, 2005a, p. 171;
foi eleita presidente da Frente Nacional em 16 de janeiro
de 2011, em substituição a seu pai, Jean-Marie Le Pen. É mocracia radical e pluralismo, em grifo meu). Uma implicação disso é
também conselheira regional de Nord-Pas-de-Calais des-
de março de 2010 e conselheira municipal de Hénin-Beau-
que a noção de universalidade é que a articulação entre democracia
mont desde março de 2008. (Nota da IHU On-Line) questionada em nome da diferen- e liberalismo é contingente. Isso é

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assim porque, em primeiro lugar, genuína e viável para os atuais ar- de Laclau ao lado de Butler, Žižek e
“outras articulações contingentes ranjos neoliberais? Negri, bem como das diferentes tra-
também são possíveis, de modo dições teóricas que moldam esses di-
que há formas de democracia fora
do marco simbólico liberal (o pro- “As diferen- ferentes conjuntos de obras.
Talvez seja melhor salientar a con-
blema da democracia, visto em sua
verdadeira universalidade, tor- ças podem tribuição decisiva da obra de Laclau
em relação a esses pensadores. O
na-se o da pluralidade de marcos
que tornam possível o surgimento facilmente se que é completamente distintivo em
sua abordagem? Aqui eu diria que é
de um ‘povo’)”, e, em segundo lu-
gar, “visto que o surgimento de um solidificar em a radicalização da obra de Gramsci

novas formas
‘povo’ não é mais o efeito direto de através de uma confrontação com a
qualquer marco particular, a ques- filosofia e teoria francesa moderna e
tão da constituição de uma subjeti-
vidade popular se torna parte inte-
de hierarquia e “pós-moderna” entendida em termos
amplos, especialmente com a obra de
grante da questão da democracia”
(ibid., p. 167).
divisão social” Jacques Derrida, Michel Foucault e
Jacques Lacan. Essa confrontação se
beneficiou, por sua vez, por uma apro-
Temos, então, duas ênfases di- priação e articulação cuidadosa dos
ferentes, e as duas contestam a IHU On-Line – Quais os pon-
modelos linguísticos elaborados por
imagem e o modelo tradicionais tos que se aproximam e quais
Ferdinand Saussure26, Louis Hjelms-
da democracia representativa, en- os que afastam o pensamento
lev27, Emil Benveniste28 e outros nas
carnada nas instituições e práticas de Laclau, no campo da polí-
tradições linguística e semiótica.
centrais das democracias liberais tica, ao de outros pensadores
modernas. Em ambas, a versão contemporâneos como Judith O resultado dessa articulação com-
mais “bagunçada” da democra- Butler23, Slavoj Žižek24 e Anto- plexa foi um foco no “primado da po-
cia, e na concepção que enfatiza nio Negri25? lítica”, onde a política foi distinguida
a dimensão populista acima de do social e do econômico e conceptu-
David Howarth – Em seus tex-
alizada em termos da contestação de 61
outras, o ideal da democracia se tos e em sua vida acadêmica, Laclau
torna mais contingente e variável: relações sociais em diferentes locais,
lidou com muitos teóricos contempo-
ele não pode ser fixado por apenas e da instituição de novas normas, va-
râneos, incluindo diálogos importan-
uma única forma e um único con- lores e regras. O primado da política
tes com Judith Butler, Slavoj Žižek e
junto de instituições. se concentra, assim, nos processos
Antonio Negri. Uma análise cuida-
distintivos da atividade política –
Finalmente, é importante subli- dosa e intensa desses diálogos seria
contestação e instituição – dando a
nhar que um dos maiores desafios um empreendimento frutífero, prin-
tais processos e práticas uma prio-
com que se defrontam novos movi- cipalmente porque eles contribuíram
ridade ontológica. A política como
mentos populistas de tendência es- – tanto positiva quanto negativamen-
arena ou espaço, como o Estado, por
querdista na Europa, nos Estados te – para o desenvolvimento geral
exemplo, e a busca de determinantes
Unidos e na América Latina é como do pensamento dele. Entretanto, no
causais e estruturais fora do político
se transformar de uma política vi- pouco tempo que temos, é difícil, se
– sejam infraestruturas econômicas
brante de protesto em um instru- não impossível, oferecer uma leitura
ou ação racional – foram, assim, re-
mento eficaz, plural e democrático comparativa detalhada e exaustiva
legadas a um status secundário, em-
de governança, ao mesmo tempo bora sua consideração não seja tida
que mantêm seus aspectos radi- 23 Judith Butler (1956): filósofa pós-estruturalista esta-
dunidense, uma das principais teóricas da questão con- como irrelevante.■
cais e democratizantes. Expresso temporânea do feminismo, teoria queer, filosofia política
e ética. Ela é professora do departamento de retórica e
nas palavras de Hegemonia e es- literatura comparada da University of California em Berke- 26 Ferdinand de Saussure (1857-1913): linguista suíço,
tratégia socialista: como é possí- ley. (Nota da IHU On-Line) cujas elaborações teóricas propiciaram o desenvolvimento
24 Slavoj Zizek (Slavoj Žižek, 1949): filósofo e teórico crí- da linguística enquanto ciência e desencadearam o sur-
vel para novas forças populistas tico esloveno. É professor da European Graduate School gimento do estruturalismo. Além disso, o pensamento
e pesquisador senior no Instituto de Sociologia da Uni- de Saussure estimulou muitos dos questionamentos que
negociar “a diferença entre o que versidade de Liubliana. É também professor visitante em comparecem na linguística do século XX. (Nota da IHU
poderia ser chamado de uma ‘es- várias universidades estadunidenses, entre as quais estão On-Line)
a Universidade de Columbia, Princeton, a New School for 27 Louis Trolle Hjelmslev (1899-1965): foi um linguista
tratégia de oposição’ e uma ‘estra- Social Research, de Nova York, e a Universidade de Mi- dinamarquês cujas ideias formaram a base do Círculo
chigan. Publicou recentemente Menos que nada. Hegel e Linguístico de Copenhague. Nascido em uma família de
tégia de construção de uma nova a sombra do materialismo dialético (São Paulo: Boitempo, acadêmicos (seu pai era o matemático Johannes Hjelms-
ordem’?” (Laclau; Mouffe, 1985, 2013). (Nota da IHU On-Line) lev), Hjelmslev estudou Linguística comparativa em Cope-
25 Antonio Negri (1933): filósofo político e moral italiano. nhague, Praga e Paris (com Meillet e Vendryes). Em 1931,
p. 189). Como pode o mito de um Durante a adolescência, foi militante da Juventude Italiana Louis Hjelmslev fundou o Cercle linguistique de Copenha-
de Ação Católica, como Umberto Eco e outros intelectu- gue. Em parceria com Hans Jorgen Uldall, ele desenvolveu,
novo início – o fim da austeridade ais italianos. Em 2000, publicou o livro-manifesto Império dentro da corrente estruturalista a teoria da Glossemática,
e da dívida causadora do próprio (Rio de Janeiro: Record), com Michael Hardt. Em seguida, que desenvolveu a teoria semiótica de Ferdinand de Saus-
publicou Multidão. Guerra e democracia na era do império sure. (Nota da IHU On-Line)
fracasso – ser transformado em (Rio de Janeiro/São Paulo: Record), também com Michael 28 Émile Benveniste (1902-1976): foi um professor de
um novo imaginário social coletivo Hardt – sobre esta obra, a edição 125 da IHU On-Line, de
29-11-2004, publicou um artigo de Marco Bascetta, dis-
linguística francesas no College de France entre 1937 e
1969, quando se aposentou por motivos de saúde. (Nota
que possa fornecer uma alternativa ponível em https://goo.gl/9rjlQw. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

Democracia radical é a grande


aposta teórica de Laclau
María Cecilia Ipar reflete sobre a representação dentro da
perspectiva do populismo e chega ao conceito de democracia
radical, elaborado pelo autor em parceria com Chantal Mouffe
João Vitor Santos

A
nalistas políticos têm apontado o parte do Bloco Socialista e da União
atual momento como um estado Soviética”, recupera. Para Cecilia, a
de crise da representatividade grande constatação dos autores é de
democrática. Mas significa um esgota- que todo projeto emancipatório “deve
mento da democracia? A perspectiva partir da constatação de que o sujeito a
do populismo, segundo Ernesto Laclau, ser emancipado haverá de ser o resulta-
pode trazer elementos para pensar em do de uma construção hegemônica dis-
representatividade. A socióloga e cien- cursiva. O populismo é uma forma de se
tista política María Cecilia Ipar destaca atingir esta construção”. Assim, acre-
que “Laclau propõe analisar a questão dita que “a emancipação que pode ser
da representação à luz da questão da atingida pela constituição de uma nova
constituição das identidades políticas”. hegemonia política é e será sempre par-
“A questão fundamental que está em cial e contingente”, daí a importância
62 jogo na democracia é resguardar um es- de sempre radicalizar a democracia.
paço sempre aberto à transformação”,
pontua. Ou seja, ela não se esgota, mas María Cecilia Ipar é argentina e
está em constante transformação. “A vive no Brasil desde 2010. É doutoran-
importância da democracia reside no da em Ciência Política pela Universida-
fato de ser uma forma de organização e de de São Paulo - USP, possui mestrado
administração do poder simbólico que em Ciência Política pela USP e gradua-
cuida da abertura do espaço público ção em Sociologia pela Universidade de
onde acontece a transformação da pró- Buenos Aires, na Argentina. Atualmen-
pria insatisfação em demandas sociais te é pesquisadora participante do proje-
democráticas”, analisa María Cecilia. to de pesquisa internacional Theorizing
Transnational Populist Politics. Entre
Na entrevista a seguir, concedida por
suas produções, está La dimensión de
e-mail à IHU On-Line, a pesquisado-
la representación en el populismo se-
ra também se atém ao conceito de de-
gún la teoría de la hegemonia, publica-
mocracia radical, que para ela é grande
do no Atas de trabalho das VI Jornadas
aposta teórico-política de Laclau e de
de Debates Actuales de la Teoría Políti-
sua parceira, Chantal Mouffe. “Eles es-
ca Contemporánea (o artigo está dispo-
tão preocupados em repensar o campo
político da esquerda que entra em crise nível em http://bit.ly/2v4dVcr).
a partir dos anos 1980 com a queda de Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como Ernesto uma das figuras que pode articular trução, quer dizer, uma das formas
Laclau compreende o concei- e cristalizar a identidade política, e de positivação da identidade política
to de povo e como chega à for- o “populismo” se refere a uma lógi- entendida como sendo basicamente
mulação do populismo? Na sua ca pela qual esta é atingida. Nesse negativa, vácua, sem fundamento
opinião, quais as potencialida- sentido, a primeira coisa que de- ontológico. Por isso podemos dizer
des e as fragilidades dessas for- veríamos assinalar em referência à que o povo não equivale, por exem-
mulações?
noção de povo de Ernesto Laclau é plo, ao eleitorado ou aos cidadãos
María Cecilia Ipar – “Povo” é que não é um dado, senão uma cons- que habitam um determinado terri-

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“Povo é uma das figuras que


pode articular e cristalizar
a identidade política”

tório nacional ou transnacional to- nificante que organiza e dá sentido lutista, determinista. Ele combate
mados em conjunto. E aqui devemos a toda a experiência política repre- estas três frentes ao mesmo tempo
esclarecer algo importante: sendo sentada no discurso do líder popu- com a mudança do foco epistemoló-
o povo uma forma de positivação lista. Mas aqui devemos poder ser gico que a perspectiva discursiva da
da identidade política, ela se refere imaginativos e tomar muito cuidado ontologia social e a incorporação das
sempre a uma identidade coletiva porque o líder não deve confundir-se principais teses da teoria psicanalíti-
e nunca a indivíduos isolados ou a com a “pessoa” que eventualmente ca lhe permitem realizar. A pendên-
uma somatória de indivíduos – no possa encarnar este discurso. O líder cia (mais que desvantagens ou pon-
sentido adotado pela ciência política é o lugar da enunciação que permi- tos fracos) da sua teoria política, eu
de corte liberal. te legitimar o discurso que dota de diria, está no fato de não haver con-
sentido a experiência da ação po- seguido (talvez por uma questão de
O caráter coletivo, social das iden- lítica, e não apenas a “boca” de um falta de tempo mais que de interesse
tidades políticas está dado pelo fato ser humano. Assim, pode-se inferir do próprio autor) explorar e levar
de ser uma construção discursiva, que a liderança política é um lugar mais a fundo as consequências deci- 63
isto é, o resultado de um processo vazio que precisa ser criado e logo sivas que tem para a teoria política,
de luta simbólica que o autor deno- assaltado, apropriado, encarnado. E justamente, a incorporação da teoria
minou, junto com Chantal Mouffe1, encarnar um discurso é, justamente, psicanalítica.
hegemonia. Sendo assim, o que o assumir o lugar da enunciação (va-
“povo” na prática verdadeiramente A psicanálise nos ajuda a repen-
zio) que permite legitimá-lo. sar a antropologia humana desde a
nomeia nunca é uma unidade ho-
Pensando metaforicamente, pode- qual qualquer teoria política se apoia
mogênea e definitiva, como o ponto
mos interpretar a liderança política como sendo seu ponto de partida.
limite infranqueável entre “nós” (os
como a potência que cria um furo na Por exemplo, eu duvido que alguém
que pertencem ao povo) e “eles” (a
parede (a ordem social dominante, vá pôr em questão que o grande pro-
alteridade constitutiva desse povo,
não contestado até então) no qual blema/tema da ciência política seja
os adversários que impedem que
virá se alocar o prego (discurso hege- o poder, para além de que depois
ele possa se identificar plenamente
mônico) que sustenta o quadro (ex- haja mais de cem maneiras de defi-
com a comunidade da qual surgiu). ni-lo. Pois bem, a psicanálise apor-
O resultado desta operação política periência política subversiva). Penso
que este é um bom exemplo, que nos ta muito nesse sentido, pois indica
de emergência do populismo é a ins- de maneira drástica que existe uma
tauração de uma sociedade necessa- permite ponderar bem a importân-
cia que têm o discurso e a liderança dependência no ser humano que é
riamente dividida (e por isso Laclau estrutural, portanto definitiva, que
chegou a sustentar aquela afirmação na hora de entender a experiência
política que funda o povo no popu- reside no fato de ele ser um ser fa-
polêmica que diz “a sociedade não lante e sexuado.
existe”, na qual o que realmente não lismo. Não há povo sem furo, prego,
existe é a univocidade de “a”). quadro e parede; assim como tam-
pouco há populismo sem a habilida- IHU On-Line – E, nesse senti-
A questão a ser frisada no caso de de colocar o quadro na parede. do, de que forma a psicanálise
do populismo é que a categoria de
contribui para a formulação
“povo” adquire uma importância Potência e pendências da desses conceitos de Laclau?
capital, pois se revela como o sig- teoria Como a teoria psicanalítica,
de modo geral, pode subsidiar
1 Chantal Mouffe: filósofa americana, autora de Dimen- O principal mérito da teorização do
sions of radical democracy (London: Verso, 1992) e The reflexões no campo da Ciência
democratic paradox (London: Verso, 2000). Mouffe era populismo de Laclau é que nos per-
Política na atualidade?
grande parceira de Ernesto Laclau. Esta edição da IHU On
-Line traz um artigo assinado por Mouffe. (Nota da IHU
mite entender a identidade política
On-Line) de maneira não essencialista, abso- María Cecilia Ipar – Reconhe-

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

cendo nesta conexão entre a teoria direta para presidente de 1989 em geral. Esta definição de democracia
política de Laclau e a inspiração na que ganhara Fernando Collor de não é apenas conceitual, como tam-
psicanálise como uma das contri- Melo3 – , a democracia adquire um bém significativa de uma luta política
buições mais interessantes do autor valor significante para além do con- específica de uma parte da população
para a ciência política, diria que no ceitual. A democracia começa a ser brasileira que se via prejudicada pe-
caso do tema do populismo a psica- desejada e demandada para além las condições sociais e econômicas do
nálise auxilia Laclau a melhor enten- do consenso genérico estabelecido país, e que por isso mesmo exigia po-
der a dimensão do afeto inerente à ao redor da definição conceitual – der votar diretamente nos represen-
política. E digo “inerente” porque ela conseguido, em grande parte, pela tantes do governo, o que levou a um
está justamente atrelada à dimensão fachada democrática que a ditadura processo de democratização igual-
discursiva à qual me referi recente- brasileira teve graças à manutenção mente singular, pois mediado por
mente. Nesse sentido, quando trans- de eleições para alguns cargos e em uma eleição indireta de um civil para
mitimos ideias, opiniões, vivências, momentos específicos. a chefia do executivo que acabara de
em definitivo, quando pretende- maneira trágica, com a morte de Tan-
mos nos situarmos discursivamente Democracia singular credo Neves4.
diante do outro, atrelada à palavra
A demanda por Diretas Já! começa A diferença fundamental entre os
mesma se gera uma carga de ener-
a significar a democracia de um modo significantes e os conceitos políticos é
gia, no sentido econômico, que im-
singular, como uma forma de se opor que os segundos estabelecem um piso
pulsiona a palavra de quem fala que
abertamente à ditadura militar. Nesse de entendimento comum e genérico,
é e deve ser igualmente importante
sentido, a democracia se revela como enquanto os primeiros articulam o
e decisiva como as palavras mesmas
um significante vazio que a demanda discurso que permite compreender o
na sua especificidade conceitual.
por Diretas Já! começa a significar sentido e a singularidade intranspo-
E aqui já poderíamos dar mais uma de um modo singular, pois organiza nível das experiências políticas his-
pista da maneira em que a psicanálise o sentido de uma experiência de luta toricamente situadas. Mas voltando
auxilia a teoria da hegemonia de La- política que é também contra a infla- a sua questão, acredito que a psica-
clau para pensar a política e a relação ção, a censura à imprensa e o mau nálise permite repensar a validade
64 entre discurso e afeto: a psicanálise desempenho da economia de forma e (deveria ajudar-nos a) redefinir os
nos ajuda a entender a diferença capi- pressupostos que definem a antropo-
tal entre tomar a palavra como concei- 1983-1984. A possibilidade de eleições diretas para a
logia da qual sempre partimos, que-
to e como significante. Por exemplo, Presidência da República no Brasil se concretizaria com rendo-o ou não, para pensar a natu-
a votação da proposta de Emenda Constitucional Dante
quando se fala de democracia, exis- de Oliveira pelo Congresso. Entretanto, a Proposta de reza do político e a sociedade quando
Emenda Constitucional foi rejeitada, frustrando a socie-
te um entendimento ao redor desta dade brasileira. Ainda assim, os adeptos do movimento
politicamente estruturada.
palavra que é, nós diríamos, de tipo conquistaram uma vitória parcial em janeiro do ano se-
guinte quando Tancredo Neves foi eleito presidente pelo
conceitual. Desta forma, o consenso Colégio Eleitoral. A ideia de criar um movimento a favor
que dele se depreende é igualmente de eleições diretas foi lançada em 1983, pelo então se- IHU On-Line – Quais as leitu-
nador alagoano Teotônio Vilela no programa Canal Livre
conceitual. A democracia seria desejá- da Rede Bandeirantes. A primeira manifestação pública a ras que Ernesto Laclau faz das
vel, por exemplo, porque nos iguala a
favor de eleições diretas ocorreu no recém emancipado
município de Abreu e Lima, em Pernambuco, no dia 31
perspectivas de Lacan5? Que
todos diante da lei, porque permite a de março de 1983. Organizada por membros do Partido
do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) no municí-
liberdade de manifestação das múlti- pio, a manifestação foi noticiada pelos jornais do estado. 4 Tancredo Neves [Tancredo de Almeida Neves] (1910-
Diversas outras manifestações se seguiram a esta, porém 1985): eleito presidente do Brasil por um colégio eleitoral
plas formas da existência social e pes- a que ganhou mais notoriedade pública foi a realizada em em 1985, não chegou a tomar posse no cargo. Em 1950,
soal, porque os representantes são es- São Paulo, no Vale do Anhangabaú, no Centro da Capital, foi eleito deputado federal pela primeira vez. A partir de
que comemorava seu aniversário – dia 25 de janeiro. Mais junho de 1953, exerceu os cargos de Ministro da Justiça e
colhidos diretamente pelos cidadãos e de 1,5 milhão de pessoas se reuniram para declarar apoio Negócios Interiores até o suicídio do presidente Getúlio
ao Movimento das Diretas Já. O ato foi liderado por Tan- Vargas. Em 1954, foi eleito novamente deputado federal,
por tempos breves, e assim por diante. credo Neves, Franco Montoro, Orestes Quércia, Fernando cargo que ocupou por um ano. Com a instauração do re-
Henrique Cardoso, Mário Covas, Luiz Inácio Lula da Silva gime parlamentarista, logo após a renúncia do presidente
Este é um tipo de uso da palavra. e Pedro Simon, além de artistas e intelectuais engajados Jânio Quadros, foi nomeado primeiro-ministro do Brasil,
pela causa. (Nota da IHU On-Line) ocupando este cargo de setembro de 1961 a julho de
Outro uso bem distinto surge quan- 3 Fernando Collor de Mello (1949): político, jornalista, 1962. Foi um dos principais líderes do Movimento Demo-
do ela cumpre a função significante, economista, empresário e escritor brasileiro, prefeito de
Maceió de 1979 a 1982, governador de Alagoas de 1987
crático Brasileiro (MDB) e reelegeu-se deputado federal
em 1966, 1970 e 1974. Após a volta do pluripartidarismo,
e portanto quando necessariamente a 1989, deputado federal de 1982 a 1986, 32º presidente foi eleito senador em 1978 e fundou o Partido Popular
do Brasil, de 1990 a 1992, e senador por Alagoas de 2007 (PP). Em 1982, ingressou no Partido do Movimento Demo-
haverá de adquirir um valor singu- até a atualidade. Foi o presidente mais jovem da história crático Brasileiro (PMDB) e foi eleito governador de Minas.
lar, parcial e contingente. Seguindo do Brasil e o presidente eleito por voto direto do povo, No período em que governou Minas, houve uma grande
após o Regime Militar (1964/1985). Seu governo foi mar- agitação em prol do movimento Diretas Já, numa ação
com o exemplo, e pensando na his- cado pela implementação do Plano Collor e a abertura popular que mobilizou o país e pregava as eleições diretas
do mercado nacional às importações e pelo início de um para presidente. Com a derrota da emenda que instituía as
tória recente do Brasil e no processo programa nacional de desestatização. Seu Plano, que no eleições diretas para presidente da República em 1984, foi
de redemocratização que podemos início teve uma boa aceitação, acabou por aprofundar a o nome escolhido para representar uma coligação de par-
recessão econômica, corroborada pela extinção, em 1990, tidos de oposição reunidos na Aliança Democrática. Em
identificar no período – que vai da de mais de 920 mil postos de trabalho e uma inflação na 15 de janeiro de 1985 foi eleito presidente do Brasil pelo
casa dos 1200% ao ano; junto a isso, denúncias de corrup- voto indireto de um colégio eleitoral por uma larga dife-
emergência da demanda por eleições ção política envolvendo o tesoureiro de Collor, Paulo César rença. No entanto, adoeceu gravemente em 14 de março
Diretas já!2 desde 1984 até a eleição Farias, feitas por Pedro Collor de Mello, irmão de Fernando do mesmo ano, véspera da posse. Em 21 de abril, morreu
Collor, culminaram com um processo de impugnação de de infecção generalizada. Tancredo é considerado um dos
mandato (Impeachment). Atualmente, está entre os de- mais importantes políticos brasileiros do século XX. (Nota
nunciados da Operação Lava Jato, que investiga esquema da IHU On-Line)
2 Diretas Já: foi um movimento civil de reivindicação de corrupção envolvendo agentes políticos e empresários. 5 Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista francês. Re-
por eleições presidenciais diretas no Brasil ocorrido em (Nota da IHU On-Line) alizou uma releitura do trabalho de Freud, mas acabou

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associações e dissociações há Althusser10 e o próprio Marx11 foram jeito nenhum. Que isso seja assim
na forma como os dois concei- importantes na sua própria elabora- não tem a ver com o fato de que no
tuam “o sujeito”? ção e busca intelectual. Sendo assim, caso da psicanálise se pensa o sujei-
e aproveitando que você pergunta to como equivalente ao indivíduo e,
María Cecilia Ipar – É preciso sobre a noção de “sujeito”, devo dizer no caso da política, a identidade po-
deixar claro que Ernesto Laclau bebe que no trabalho de Laclau, Lacan não lítica a um conjunto de indivíduos.
de várias tradições intelectuais, den- toma a cena que toma, por exemplo, Nenhuma das duas coisas é verda-
tre as quais está a psicanálise. Po- Freud12. Mas o fato de Laclau traba- deira, e talvez seja este um primei-
rém, tem que ser dito também que lhar mais extensamente a psicanálise ro ponto de encontro ao redor da
outras influências como Gramsci6, sobre a perspectiva freudiana e não questão da subjetividade: ela não é
Heidegger7, Wittgenstein8, Derrida9, tanto a lacaniana, me parece, não equivalente nem ao indivíduo nem
deve nos levar a pensar que para ele a a identidades coletivas fixas, senão
por eliminar vários elementos deste autor. Para Lacan, o importância do segundo seja menor.
inconsciente determina a consciência, mas ainda assim o resultado de uma relação de poder
constitui apenas uma estrutura vazia e sem conteúdo. Pelo contrário, considero que houve, determinada pelo simbólico. Mas a
Confira a edição 267 da revista IHU On-Line, de 4-8-2008,
intitulada A função do pai, hoje. Uma leitura de Lacan, talvez, uma falta de tempo mais do determinação simbólica da subjeti-
disponível em http://bit.ly/ihuon267. Sobre Lacan, confira
as seguintes edições da revista IHU On-Line, produzidas
que de interesse por parte de Laclau vidade em Laclau e Lacan está de-
tendo em vista o Colóquio Internacional A ética da psi- para desenvolver melhor as conse- senvolvida de maneiras distintas e
canálise: Lacan estaria justificado em dizer “não cedas
de teu desejo”? [ne cède pas sur ton désir]?, realizado quências que hão de ser trabalhadas até incomensuráveis.
em 14 e 15 de agosto de 2009: edição 298, de 22-6-2009, para pensar a política se adotarmos
intitulada Desejo e violência, disponível em http://bit.ly/
ihuon298, e edição 303, de 10-8-2009, intitulada A ética certas elaborações teóricas da psica- Porém, junto com a aproximação
da psicanálise. Lacan estaria justificado em dizer “não cedas entre Laclau e Lacan, há o fato de en-
de teu desejo”?, disponível em http://bit.ly/ihuon303. (Nota
nálise como premissas fundantes de
da IHU On-Line) nosso saber. tender a subjetividade como resulta-
6 Antonio Gramsci (1891-1937): foi um filósofo marxista,
jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu sobre do de um domínio de caráter discur-
teoria política, sociologia, antropologia e linguística. Com De qualquer modo, sendo ou não
sivo. Assim, podemos acrescentar que
Togliatti, criou o jornal L’Ordine Nuovo, em 1919. Secre- desta maneira, o que fica claro é que
tário do Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em haveria igualmente a coincidência de
1926 e só foi libertado em 1937, dias antes de falecer. Nos a categoria de “sujeito” não tem o
seus Cadernos do cárcere, substituiu o conceito da ditadu- Laclau com Lacan quando aquele
ra do proletariado pela “hegemonia” do proletariado, dan- mesmo peso específico na psicaná-
considera que a identidade política
do ênfase à direção intelectual e moral em detrimento do lise e na teoria política de Laclau. 65
domínio do Estado. Sobre esse pensador, confira a edição é sempre um suplemente de uma fa-
231 da IHU On-Line, de 13-8-2007, intitulada Gramsci, 70 E de fato não são equivalentes, de
anos depois, disponível para download em http://www. lha, de uma falta em ser constitutiva
ihuonline.unisinos.br/edicao/231. (Nota da IHU On-Line)
7 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua lei (São Paulo: WMF Martins Fontes). É dedicada a Derrida
a toda ordem social, portanto, im-
obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática a editoria Memória, da IHU On-Line nº 119, de 18-10- possível de apagar totalmente. Nesse
heideggeriana é ampliada em Que é Metafísica? (1929), 2004, disponível em http://bit.ly/ihuon119. (Nota da IHU
Cartas sobre o humanismo (1947) e Introdução à metafí- On-Line) sentido, se anteriormente dizemos
sica (1953). Sobre Heidegger, confira as edições 185, de 10 Louis Althusser (1918-1990): filósofo marxista francês.
19-6-2006, intitulada O século de Heidegger, disponível Seu envolvimento com a ideologia marxista pode ser de- que a subjetividade é o resultado de
em http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, intitulada vido ao tempo gasto nos campos de concentração nazista, uma disputa hegemônica, devemos
Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, disponível em durante a segunda guerra mundial, depois da qual come-
http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, Cadernos IHU em çou sua carreira acadêmica. (Nota do IHU On-Line) acrescentar agora que essa luta nun-
formação nº 12, Martin Heidegger. A desconstrução da me- 11 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, econo-
tafísica, que pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12, mista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensa- ca é total nem definitiva, pois sempre
e a entrevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da dores que exerceram maior influência sobre o pensamen- haverá algo que foge da totalização
revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível em https:// to social e sobre os destinos da humanidade no século 20.
goo.gl/dn3AX1, intitulada O biologismo radical de Nietzs- A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda hegemônica. Por isso a hegemonia
che não pode ser minimizado, na qual discute ideias de Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl
sua conferência A crítica de Heidegger ao biologismo de Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre deve ser entendida como uma guerra
Nietzsche e a questão da biopolítica, parte integrante do o autor, a edição número 278 da revista IHU On-Line, de de posição constante, de cuja vitória
ciclo de estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI 20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo e sua
Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível em https:// não se tem mais garantias que as que
vida humana. (Nota da IHU On-Line) goo.gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: os homens não são o
8 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo austríaco, que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por surgem do trabalho de reatualização
considerado um dos maiores do século 20, tendo contri-
buído com diversas inovações nos campos da lógica, da
Pedro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição 327
da IHU On-Line, de 3-5-2010, disponível em http://bit.
do discurso que organiza e dá sentido
filosofia da linguagem e da epistemologia, dentre outros ly/2p4vpGS. A IHU On-Line preparou uma edição especial à vontade popular de um povo que é
campos. A maior parte de seus escritos foi publicada pos- sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty
tumamente, com exceção de seu primeiro livro: Tractatus O Capital no Século XXI, que retoma o argumento central também, de alguma maneira, “sexua-
Logico-Philosophicus, em 1921. Os primeiros trabalhos de de O Capital, obra de Marx, disponível em http://www. do e mortal”.
Wittgenstein foram marcados pelas ideias de Arthur Scho- ihuonline.unisinos.br/edicao/449. (Nota da IHU On-Line)
penhauer, assim como pelos novos sistemas de lógica ide- 12 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista nascido em
alizados por Bertrand Russel e Gottllob Frege. Quando o Freiberg, Tchecoslováquia. É o fundador da psicanálise. In-
Tractatus foi lançado, influenciou profundamente o Círculo teressou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como mé-
de Viena e seu positivismo lógico (ou empirismo lógico). todo a hipnose, estudou pessoas que apresentavam esse IHU On-Line – O que, a partir
A edição 308 da IHU On-Line, de 14-9-2009, apresenta a quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas
entrevista O silêncio e a experiência do inefável em Wit- pulsões, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abando- da perspectiva de Laclau, po-
tgenstein, com Luigi Perissinotto, disponível em https://
goo.gl/HGR6jZ. A entrevista A religiosidade mística em
nando a hipnose em favor da associação livre. Estes ele-
mentos tornaram-se bases da psicanálise. Desenvolveu a
demos compreender como “o
Wittgenstein, concedida por Paulo Margutti, consta na edi- ideia de que as pessoas são movidas pelo inconsciente. político” e “a política”? Qual a
ção 362 da revista IHU On-Line, de 23-5-2011, disponível Freud, suas teorias e o tratamento com seus pacientes
em https://goo.gl/J0krYa. (Nota da IHU On-Line) foram controversos na Viena do século 19 e continuam centralidade desses conceitos
9 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, criador ainda muito debatidos. A edição 179 da IHU On-Line, de
do método chamado desconstrução. Seu trabalho é as- 8-5-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o título Sig-
para compreendermos a ideia
sociado, com frequência, ao pós-estruturalismo e ao pós- mund Freud. Mestre da suspeita, disponível em http://bit. de populismo?
modernismo. Entre as principais influências de Derrida ly/ihuon179. A edição 207, de 4-12-2006, tem como tema
encontram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre de capa Freud e a religião, disponível em https://goo.gl/
sua extensa produção, figuram os livros Gramatologia wL1FIU. A edição 16 dos Cadernos IHU em formação María Cecilia Ipar – Existe um
(São Paulo: Perspectiva), A farmácia de Platão (São Pau- tem como título Quer entender a modernidade? Freud ex- pesquisador, discípulo de Ernesto
lo: Iluminuras), O animal que logo sou (São Paulo: Unesp), plica, disponível em http://bit.ly/ihuem16. (Nota da IHU
Papel-máquina (São Paulo: Estação Liberdade) e Força de On-Line) Laclau, chamado Oliver Marchart

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

(2009)13, que identifica o trabalho de jeto de estudo, de pensamento onto- nia e da função de constituição sim-
uma série de intelectuais da filosofia logicamente dividido. bólica de um novo sujeito político (o
política contemporânea com o nome povo, por exemplo), não haja espaço
A Política (uso a maiúscula para
de pensamento “pós-fundacional”. para se pensar em novas formas de
não confundir com o que vem) seria
Eu iria um pouco além, diria que institucionalidade. Com isto, embo-
então um objeto ontologicamente
o que Marchart entende por “pen- ra o populismo seja por definição
dividido entre o político e a política,
samento” na verdade é uma forma uma forma de deslocar e subverter
onde a separação, o vazio inerra-
específica de pensar o pensamento, a representação da ordem social vi-
dicável, estrutural que existe entre
que questiona as bases epistemoló- gente e institucionalizada, não sig-
ambas dimensões deve poder enten-
gicas modernas ancoradas em uma nifica que um movimento populista
der-se como tendo igualmente um
ou outra forma de “metafísica da não possa criar uma nova concepção
certo estatuto ontológico. Na lingua-
presença”. Mas a designação “pós- de institucionalidade.
gem de Laclau, e em parte de acordo
fundacional”, segundo o entendi- com aquilo que anteriormente disse
mento de Marchart, pretende indi- sobre o populismo, a Política deve IHU On-Line – Como Laclau
car que haveria coincidência dentro ser entendida como a ação coletiva atualiza os conceitos de classe
deste conjunto de autores (Ricoeur14, destinada à fundação hegemônica e indivíduo? Que relações po-
Wolin15, Mouffe, Nancy16, Badiou17, da sociedade; sendo assim, o políti- demos estabelecer entre esses
Rancière18, Laclau, dentre outros) co seria o momento negativo, repre- dois conceitos com identidade
em entender que a política é um ob- sentado pela tendência dos grupos política e espaço político, tam-
a questionar e desarticular a ordem bém tratados pelo autor?
13 Oliver Marchart (1968): é um filósofo político e soció-
logo austríaco. (Nota da IHU On-Line) social vigente (e a legitimidade da-
14 Paul Ricoeur (1913-2005): filósofo francês. Sobre ele, quilo que é politicamente represen- María Cecilia Ipar – Esta per-
conferir o artigo intitulado Imaginar a paz ou sonhá-la?,
publicado na edição 49 da IHU On-Line, de 24-2-2003, tável) e pela configuração simbólica gunta tem relação com a questão
disponível para download em http://bit.ly/ihuon49 e uma
de um novo sujeito político. da categoria de “sujeito”, da qual já
entrevista na edição 50 que pode ser acessada em http://
bit.ly/ihuon50. A edição 142, de 23-5-2005, publicou a falamos um pouco. Pois, de fato, a
editoria Memória sobre Ricoeur, em função de seu fale- Isso é o que acontece no populis- forma em que Laclau pensa a noção
cimento. Confira o material em http://bit.ly/ihuon142. A
formação de Ricoeur se dá em contato com as ideias do mo, por isso Laclau diz que de cer- de identidade política (que devemos
66 existencialismo, do personalismo e da fenomenologia.
ta forma o populismo equivale à
Suas obras importantes são: A filosofia da vontade (pri- entender como sinônimo de subje-
meira parte: O voluntário e o involuntário, 1950; segunda política, por esta coincidência com tividade, por mais que isso seja ab-
parte: Finitude e culpa, 1960, em dois volumes: O homem
falível e A simbólica do mal). De 1969 é O conflito das in- a dimensão de o político. Acontece solutamente incorreto do ponto de
terpretações. Em 1975 apareceu A metáfora viva. O sentido que nem todo sujeito político novo
do trabalho filosófico de Ricoeur deve ser visto em uma vista da teoria psicanalítica) nega
teoria da pessoa humana; conceito - o de pessoa - re- coincidiria com a figura do “povo”, e ou contradiz a categoria de classe
conquistado no termo de longa peregrinação dentro das
produções simbólicas do homem e depois das destruições por isso muitos autores criticam La- social e, sobretudo, a de indivíduo
provocadas pelos mestres da “escola da suspeita”. (Nota
da IHU On-Line)
clau e esta superposição conceitual como sendo o ator natural, pressu-
15 Sheldon S. Wolin (1922): filósofo político norte-ame- entre populismo e política hegemô- posto, obrigado da ação política. Em
ricano e atualmente é professor emérito na Princeton Uni-
versity. Wolin é conhecido por ter criado o termo “totalita- nica. Paralelamente, a política são as A razão populista19, Ernesto Laclau
rismo invertido”, fazendo referência às tendências políticas
do governo dos Estados Unidos. Este, ao mesmo tempo
instituições e as práticas sociais se- tentará compreender a identidade
em que promove investidas em todo o mundo em defesa dimentadas que permitem, susten- política popular como o resultado
da democracia, assume ele próprio comportamento tota-
litário – partilhando semelhanças e diferenças em relação tam e “naturalizam” a representação de uma articulação tal que impos-
ao regime nazista. (Nota da IHU On-line) política vigente, a dominação da he- sibilita apreendê-la em termos de
16 Jean-Luc Nancy (1940): é um filósofo francês. A obra
de Nancy é marcada pelo grande tamanho de publicações gemonia para além da mobilização e consciência individual ou de classe
e pela heterogeneidade de temas. Datam da década de
1960 o início de suas reflexões, que atravessam desde a do reclamo popular. homogênea. Por isso eu disse ante-
leitura de filósofos clássicos (Descartes, Kant, Hegel), ao
envolvimento com figuras essenciais para a filosofia fran- Esta dimensão de a política não riormente que não devemos pensar
cesa do século 20 (Nietzsche, Heidegger, Bataille, Merle-
está tão desenvolvida nos trabalhos o povo na chave populista em ter-
au-Ponty, Derrida etc.), assim como reflexões sobre arte e
literatura. (Nota da IHU On-Line)
de Laclau. Porém, é importante as- mos, por exemplo, do eleitorado. Por
17 Alain Badiou (1937): filósofo, dramaturgo e romancis-
ta, leciona filosofia na Universidade de Paris-VII Vincennes sinalar que ambas categorias, como sua vez, o conceito de classe social do
e no Collège International de Philosophie. É autor, entre
disse, não são complementárias, no marxismo tampouco seria adequado
muitos outros, do livro Saint Paul. La fondation de l’univer-
salisme (Paris: PUF, 1997), várias vezes reeditado na França
sentido de que não são “partes” atra- para indicar quem é o agente cole-
e traduzido em diferentes línguas como o inglês e o italia-
no. (Nota da IHU On-Line) vés de cuja junção nós poderíamos tivo da ação política significativa,
18 Jacques Rancière (1940): filósofo argelino, professor
obter um conhecimento global e ab- se por “classe” entendemos não um
na universidade de Paris 8. Pensa a história, a sociedade,
os movimentos políticos ou o cinema. É colaborador fre- soluto acerca do que é a Política. Em “significante”, e sim uma categoria
quente da lendária revista Cahiers du Cinéma - de forma universal derivada de um nível de
a apresentar ao seu leitor e ouvinte um novo contexto e, outras palavras, não há uma forma
como consequência, uma nova possibilidade para se en-
política ou institucionalidade ade- realidade (o processo produtivo, por
tender a cultura, o poder ou a força das ideologias. Um
dos colaboradores do pensador Louis Althusser no volu- quada ou que se corresponda com exemplo) superior ou anterior à rea-
me Lire le Capital (Ler o Capital). É o autor de Os nomes da
história - Um ensaio de poética do saber (Educ), Políticas da a representação plena do sujeito da lidade material simbólica.
escrita, O desentendimento: política e filosofia (ambos pela
ed. 34) e O mestre ignorante (ed. Autêntica), entre outras ação política surgido da irrupção do Contra todas as formas essencialis-
obras. Esteve no Brasil em 2005, quando participou do
Congresso Internacional do Medo, que aconteceu em São
acontecimento político. O que não
Paulo e no Rio de Janeiro. (Nota da IHU On-Line) significa que, no limiar da hegemo- 19 São Paulo: Três Estrelas, 2013. (Nota da IHU On-Line)

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

tas de entender a política e o agen- um fenômeno político ao populismo,


te da ação política, Laclau permite IHU On-Line – Em que medi- pelo menos desde a perspectiva de
pensar na subjetividade política da o conceito de populismo de Laclau, é importante entender que
entendendo-a como o resultado de Laclau serve para compreen- esta liderança, e o fato de que ela
atos de identificação. Por isso ele diz der movimentos políticos como seja representativa de uma iden-
que, para além da existência da di- peronismo20, varguismo21 e até tidade política específica que tem
visão social entre as classes, a ação mesmo o lulismo22? E como conseguido costurar a legitimidade
política significativa – por exemplo, você lê esses movimentos à luz de falar em nome da comunidade, é
a luta de classes – não pode derivar- da teoria psicanalítica? uma consequência da luta política e
se mecanicamente do fato de haver não um dado a priori (baseado, por
María Cecilia Ipar – Uma pri-
a exploração de uma classe sobre as exemplo, em dotes especiais de pes-
meira indicação em relação a sua
outras como do fato de que os tra- soas isoladas). Nos casos que você
pergunta que acho importante as-
balhadores que a sofrem se identifi- pergunta, no caso do peronismo sem
sinalar é que não devemos associar
quem como tais e, a partir disso, ten- dúvida nenhuma, a análise de La-
tão rapidamente o “ismo” com o
tem elaborar formas de resistência à clau serve para interpretar o surgi-
qual possamos substantivar qual-
exploração. A política começa com a mento e a sua persistência histórica.
quer nome próprio dos políticos
resistência e não com a exploração. Acredito que também possa ajudar
(Perón-peronismo, Vargas-varguis-
Poderíamos chamar espaço políti- mo, Lula-lulismo, Chávez-chavismo, a interpretar a experiência do var-
co ao lugar de emergência e atuação Kirchner-kirchnerismo etc.) ao fenô- guismo, por mais que o trabalhismo
das identidades políticas. Portanto, meno do populismo. É verdade que inaugurado com Vargas23 no Brasil
é igualmente determinado pelo dis- no populismo o nome que encarna não tenha conseguido, depois de sua
curso, que tem que ser entendido em a liderança do movimento é suma- morte, continuar com seu programa
termos Políticos (lembremo-nos das mente importante e cumpre uma e agudizar as reformas de base da
dimensões de o político, a política e função capital. Porém, como já dis- época de Goulart24.
o hiato existente entre elas), isto é, se, acredito que no caso da constru- É verdade que isso não aconteceu
nos termos da hegemonia. Mas, cui- ção de uma hegemonia política do
dado, porque afirmar que devemos tipo populista o líder expressa uma 23 Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles Vargas] (1882- 67
1954): político gaúcho, nascido em São Borja. Foi presi-
entender o discurso em termos polí- unidade e uma identificação que vai dente da República nos seguintes períodos: 1930 a 1934
ticos não é apenas dizer que estamos muito além da validação eleitoral ou (Governo Provisório), 1934 a 1937 (Governo Constitucio-
nal), 1937 a 1945 (Regime de Exceção) e de 1951 a 1954
nos referindo a discursos de conteú- da simpatia pessoal com o candida- (Governo eleito popularmente). Recentemente a IHU
On-Line publicou o Dossiê Vargas, por ocasião dos 60
do político. O caráter político do dis- to/governante. anos da morte do ex-presidente, disponível em http://
curso não está dado pelo conteúdo, É claro que estes são indicadores
bit.ly/1na0ZMX. A IHU On-Line dedicou duas edições
ao tema Vargas, a 111, de 16-8-2004, intitulada A Era
pelo fato de que se faça referência importantes e necessários, mas não Vargas em Questão – 1954-2004, disponível em http://
bit.ly/ihuon111, e a 112, de 23-8-2004, chamada Getúlio,
a temas comumente associados à suficientes. Isto às vezes se passa por disponível em http://bit.ly/ihuon112. Na edição 114, de
vida política nacional ou internacio- alto, mas quando tentamos assimilar
06-09-2004, em http://bit.ly/ihuon114, Daniel Aarão Reis
Filho concedeu a entrevista O desafio da esquerda: articu-
nal (as diversas questões vinculadas lar os valores democráticos com a tradição estatista-desen-
volvimentista, que também abordou aspectos do político
com a governabilidade, as eleições, o 20 Peronismo (Movimento Nacional Justicialista): o Mo- gaúcho. Em 26-8-2004, Juremir Machado da Silva, da PU-
estabelecimento de novas leis, trata- vimento Nacional Justicialista é genericamente chamado
peronismo. Os ideais são baseados no pensamento de
C-RS, apresentou o IHU ideias Getúlio, 50 anos depois. O
evento gerou a publicação do número 30 dos Cadernos
dos internacionais etc.). Juan Domingo Perón (1895-1974), presidente da Argen- IHU ideias, chamado Getúlio, romance ou biografia?, dis-
tina de 1946 a 1955 e de 1973 a 1974. O Movimento ponível em http://bit.ly/ihuid30. Ainda a primeira edição
transformou-se, mais tarde, em Partido Justicialista, que dos Cadernos IHU em formação, publicada pelo IHU em
Se levarmos a sério os argumen- é a força política maioritária na Argentina. Os ideais do 2004, era dedicada ao tema, recebendo o título Populismo
tos de Laclau, o discurso somente é peronismo se encontram nos diversos escritos de Perón e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Brizola, disponível em
como “La Comunidad Organizada”, “Conducción Política”, http://bit.ly/ihuem01. (Nota da IHU On-Line)
político quando cumpre ou disputa “Modelo Argentino para un Proyecto Nacional”, entre ou- 24 João Belchior Marques Goulart ou Jango (1919-
tros, onde estão expressos a filosofia e doutrina política 1976): presidente do Brasil de 1961 a 1964, tendo sido
a função hegemônica de representa- que continuam orientando o pensamento acadêmico e também vice-presidente, de 1956 a 1961 – em 1955, foi
ção do tecido social no seu conjunto. a vida política da segunda maior nação sul-americana. eleito com mais votos que o próprio presidente, Juscelino
(Nota da IHU On-Line) Kubitschek. Seu governo é usualmente dividido em duas
Isto nos ajuda a entender que La- 21 Varguismo: caracteriza-se pela admiração à pessoa de fases: fase parlamentarista (da posse, em janeiro de 1961,
Getúlio Dornelles Vargas, que ficou conhecido como “o pai a janeiro de 1963) e fase presidencialista (de janeiro de
clau, na verdade, não tem tanto uma dos pobres”. A sua doutrina e seu estilo político foram de- 1963 ao golpe militar de 1964). Jango fora ainda ministro
“teoria do discurso” – como muitas nominados de “getulismo” ou “varguismo”. Os seus segui- do Trabalho entre 1953 e 1954, durante o governo de Ge-
dores, até hoje existentes, são denominados “getulistas”. túlio Vargas. Foi deposto pelo golpe militar do dia 1º de
vezes costumamos dizer para simpli- As pessoas próximas o tratavam por “Doutor Getúlio”, e abril de 1964 e morreu no exílio. Confira a entrevista “Jan-
as pessoas do povo o chamavam de “O Getúlio”, e não de go era um conservador reformista”, com Flavio Tavares, de
ficar o assunto –, como uma teoria “Vargas”. (Nota da IHU On-Line) 19-12-2006, em http://bit.ly/ihu191206; João Goulart e um
política do discurso, uma teoria que 22 Lulismo: O termo cunhado pelo cientista político An- projeto de nação interrompido, com Oswaldo Munteal, de
dré Singer, que também foi porta-voz do ex-presidente 27-8-2007, em http://bit.ly/ihu270807. Confira também as
consegue pensar de forma política Lula, de 2002 a 2007. Nascido durante a campanha de entrevistas com Lucília de Almeida Neves Delgado intitu-
2002, o lulismo representou o afastamento em relação lada O Jango da memória e o Jango da História, publicada
o discurso, qualquer discurso. No a componentes importantes do programa de esquerda na edição 371 da IHU On-Line, de 29-8-2011, em http://
caso do populismo, o espaço políti- adotado pelo PT e o abandono das ideias de organiza- bit.ly/ihuon371 e ‘’Dúvidas sobre a morte de Jango só au-
ção e mobilização. Busca um caminho de conciliação com mentam’’, de 5-8-2013, em http://bit.ly/ihu050813. Veja
co fica reduzido à divisão simbólica amplos setores conservadores brasileiros. Sob o signo da ainda “João Goulart foi, antes de tudo, um herói”, com Ju-
contradição, o lulismo se constitui como um grande pacto remir Machado, de 26-8-2013, em http://bit.ly/ihu260813
da sociedade entre o “povo” ou os de social conservador, que combina a manutenção da polí- e Comício da Central do Brasil: a proposta era modificar as
baixo e o “outro” antagônico ou os de tica econômica do governo Fernando Henrique Cardoso estruturas sociais e econômicas do país, com João Vicente
(1995-2002) com fortes políticas distributivistas sob o go- Goulart, de 13-3-2014, em http://bit.ly/ihu130314. (Nota
cima. verno Lula (2002-2010). (Nota IHU On-Line) da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

porque veio a ditadura. Mas meu Paradoxalmente, isso aconteceu pontes teóricas devem ser costura-
ponto é que as demandas de trans- muito palpavelmente no extraordiná- das e articuladas, não dá para passar
formação radical também se defu- rio discurso de defesa de Dilma Rous- de uma linguagem (psicanalítica) a
maram ao longo do tempo. Na re- seff26, dia 29 de agosto de 2016, dian- outra (política) sem mediações. La-
democratização, Lula construiu um te dos parlamentares que acabariam clau ajuda nessa direção, mas consi-
partido dos trabalhadores baseado derrocando-a, pois ela colocou o PT dero que é um caminho apenas re-
na força de um “novo” sindicalismo, em uma linha histórico-política pou- centemente aberto no qual ainda há
desconhecendo, de certa forma, a co usual, quando menciona as razões muito por percorrer.
história de luta do trabalhismo no da queda de Vargas, Kubitschek27,
país previamente a 1964. E este que- Goulart e a própria situação atual
rer começar do zero, sem reivindicar dela; ela afirmou: “hoje, mais uma IHU On-Line – Até que ponto
nenhum legado histórico, sem pas- vez, ao serem contrariados e feridos podemos afirmar que Laclau
sado a redimir, me parece que foi a tensiona a ideia de crise da
nas urnas os interesses de setores da
fraqueza mais marcante do lulismo, democracia representativa? E
elite econômica e política, nos vemos
inclusive quando pensarmos nele como ele trabalha a ideia de re-
diante de um risco de uma ruptura
já não como um populismo, e sim presentação democrática?
democrática”. Penso que essa linha
como um fenômeno de caráter elei- histórica é muito pertinente e deveria María Cecilia Ipar – Antes de
toral – de realinhamento eleitoral, ser mais explorada e expandida na Laclau tensionar a ideia de demo-
como o define André Singer25 –, já futura forma de construção política cracia representativa, ele tensiona a
que de todo modo se pretendia de- do PT. Isso já aproximaria bem mais própria ideia de representação. Por
senvolver um programa de governo o lulismo do populismo, pois permi- quê? Porque todo o desenvolvimento
de esquerda. tiria identificar uma fronteira social teórico-filosófico que sustenta o tra-
Com isto que digo, fica claro que radical entre “nós” e “eles”. balho de Laclau é orientado a pensar
não existe emancipação política ou a forma de constituição das identida-
transformação histórica significativa Psicanálise des políticas, que tensiona o próprio
sem tornar pendentes, persistentes imaginário consolidado (inconscien-
as lutas políticas passadas que fra- Em relação a como poderíamos temente até) ao redor da noção de
68 analisar estas experiências políticas identidade pressuposta na ideia de
cassaram. Pois aquilo que na arena
política se considera como absoluta- à luz da psicanálise, podemos sem- representação. Isto se relaciona com
mente novo só pode ser o que surge pre voltar aos clássicos textos de a pergunta a respeito da categoria de
de uma revolução, e penso que não Freud que são mais sociológicos, por indivíduo e classe social. De forma
era essa a intenção de Lula nem o assim dizer (O mal-estar na civiliza- geral, podemos dizer que tanto o li-
objetivo da criação do PT. Nesse ção, O futuro de uma ilusão, Psicolo- beralismo como o marxismo (porém,
sentido, querendo ou não, tem se gia das massas e análise do eu, Por sobretudo isso é bem mais claro no
contribuído para enfraquecer a me- que a guerra? e outros), e dizer que primeiro caso), quando discutem os
mória histórica de uma luta política o que há sempre em jogo na política dilemas e as peripécias da represen-
que muito bem poderia haver contri- é a produção de atos de identificação tação, pressupõem a identidade de
buído para fortalecer o trabalhismo como suplemento de uma falha-em- uma maneira fixa e até essencialis-
que o discurso do PT dizia represen- ser estrutural do sujeito. Mas essas ta, quer dizer, não a problematizam.
tar. Atrelar o seu programa de gover- O representante (indivíduo racional
no de esquerda às lutas políticas do 26 Dilma Rousseff (1947): economista e política brasilei- ou a classe social homogênea) sabe
ra, filiada ao Partido dos Trabalhadores-PT, presidente do
passado recente ou de algum outro Brasil de 2011 (primeiro mandato) até 31 de agosto de o que quer, o que gostaria que mu-
passado – inclusive não só do Brasil
2016 (segundo ano de seu segundo mandato). Em 12 de
maio de 2016, foi afastada de seu cargo durante o proces-
dasse, qual é o interesse que mais lhe
como da América Latina – talvez pu- so de impeachment movido contra ela. No dia 31 de agos- convém etc., e então todo o assunto
to, o Senado Federal, por votação de 61 votos favoráveis
desse ter subministrado às políticas ao impeachment contra 20, afastou Dilma definitivamente ocorre ao redor da questão de ver se
parciais do governo uma significa- do cargo. O episódio do impeachment foi amplamente o representante (cuja identidade po-
debatido nas Notícias do Dia no sítio do IHU, como, por
ção política mais ampla, que lhe per- exemplo, a Entrevista do Dia com Rudá Ricci intitulada lítica também é vista de forma fixa e
Os pacotes do Temer alimentarão a esquerda brasileira e
mitisse enquadrá-las no marco de ela voltará ao poder, disponível em http://bit.ly/2bLPiHK. essencialista) cumpre/deveria cum-
um discurso mais potente do ponto Durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da prir ou não a função de representar
Silva, assumiu a chefia do Ministério de Minas e Energia e
de vista da identificação política da posteriormente da Casa Civil. Em 2010, foi escolhida pelo aquela identidade preestabelecida.
PT para concorrer à eleição presidencial. (Nota da IHU
base social. On-Line)
Pois bem, nos antípodas desta for-
27 Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976): médi-
co e político brasileiro, conhecido como JK. Foi presiden- mulação, Laclau propõe analisar a
25 André Vítor Singer: jornalista e cientista político bra- te do Brasil entre 1956 e 1961, sendo o responsável pela
sileiro. Foi porta-voz da Presidência da República. Filho do construção de Brasília, a nova capital federal. Juscelino ins- questão da representação à luz da
economista Paul Singer, é professor do departamento de tituiu o plano de governo baseado no slogan “Cinquenta questão da constituição das iden-
Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên- anos em cinco”, direcionado para a rápida industrialização
cias Humanas da Universidade de São Paulo. Confira as do País (especialmente via indústria automobilística). Além tidades políticas. E, desta forma, a
Notícias do Dia do IHU: “Raízes sociais e ideológicas do do progresso econômico, no entanto, houve também um
lulismo. A análise de André Singer”, disponível em http:// grande aumento da dívida pública. Sobre JK, confira a edi- relação entre representantes e re-
migre.me/qklP e “PT terá que se reposicionar diante do
lulismo, afirma André Singer”, disponível em http://migre.
ção 166, de 28-11-2005, A imaginação no poder. JK, 50
anos depois, disponível em http://bit.ly/ihuon166 . (Nota
presentados não em termos de es-
me/qkmC. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) pelho ou de autorização para atuar

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

em nome de outros, mas como uma o sujeito a ser emancipado haverá de to o papa Francisco como o pre-
relação de mútua contaminação na ser o resultado de uma construção sidente dos EUA, Donald Trump,
qual tanto a identidade do repre- hegemônica discursiva. O populis- como populistas? O que os apro-
sentante como a do representado se mo é uma forma de se atingir esta xima e o que os distancia?
configuram no movimento interno construção.
María Cecilia Ipar – Esta sua
de representação.
Também é importante, neste pon- pergunta em parte eu já respondi,
Nesse sentido, a questão fundamen- to, frisar que a aposta na democracia de maneira geral, quando surgiu a
tal que está em jogo na democracia é radical através da subversão hege- pergunta sobre o peronismo, o var-
resguardar um espaço sempre aberto mônica não é uma aposta normativa, guismo e o lulismo. Tentaria não
à transformação, que nos permita re- romântica, no sentido de correr atrás assimilar tão rapidamente os perso-
formular de diversas maneiras a de- de uma emancipação definitiva. A nagens fortes da política (que muitas
manda de querer saber quem somos e emancipação que pode ser atingida vezes são o resultado de produtos
o que queremos. Em outras palavras, a pela constituição de uma nova hege- de marketing político e propaganda
importância da democracia reside no monia política é e será sempre parcial midiática) com lideranças populis-
fato de ser uma forma de organização e e contingente. Embora a fantasia de tas. Agora, sem dúvida nenhuma que
administração do poder simbólico que plenitude da identidade cumpra papel Trump e o papa Francisco são atores
cuida da abertura do espaço público importante no momento do estabele- políticos centrais da política interna-
onde acontece a transformação da pró- cimento de uma fronteira social radi- cional, que inclusive detêm uma boa
pria insatisfação em demandas sociais cal, é necessário assinalar que o desejo parte da responsabilidade pelo futu-
democráticas. O que é interessante da de plenitude forma parte de um mero ro da humanidade.
perspectiva de Laclau é que o que tem “fantasma a ser atravessado” (como
de ser representado, quando falamos Este meu último comentário, quan-
poderíamos brincar levando em con- do em relação ao papa Francisco, deve
de uma representação que produz sideração certo jargão lacaniano).
identidade política, não é uma positivi- ser ponderado entendendo que estou
dade senão uma carência. E, como tal, fazendo uma avaliação política, e não
a canalização popular da dimensão da religiosa da sua figura. Portanto, dizer
IHU On-Line – Quais as con-
representatividade não pode estar con- que o papa Francisco tenha em gran-
tribuições de Ernesto Laclau
de medida a responsabilidade pelo 69
dicionada de antemão. É esse o ponto para compreender a política de
de conexão imanente entre a sua ideia futuro da humanidade nada tem a ver
nosso tempo?
de democracia – a participação ativa na com o fato de ser o representante na
manifestação coletiva das deficiências María Cecilia Ipar – A contribui- Terra do Salvador, com entender sua
do sistema – e representação – como ção mais fecunda de Ernesto Laclau palavra como ‘a palavra de Deus’. A
uma teoria baseada na indeterminação para pensar a política é a de indicar a importância política do papa Francis-
do signo linguístico, que pressupõe um dimensão inerradicável de o político, co apoia-se no fato de que seu discurso
processo de “mútua contaminação” en- do antagonismo, inclusive como sen- de paz articulado ao redor das três T
tre o interesse ou desejo do represen- do o fator mais importante na preser- (terra, teto e trabalho), a partir do qual
tado e a atuação política e institucional vação da democracia – entendida no o trabalho militante dos movimentos
do representante. sentido amplo, como a via de acesso à sociais cristãos cobra significação, é
emancipação politicamente possível talvez hoje em dia, depois da queda da
do sujeito. Por outra parte, mas vin- União Soviética, o discurso mais con-
IHU On-Line – Que nexos se culada a isto, Laclau salienta a impor- fortativo da legitimidade da hegemo-
pode estabelecer entre repre- tância de tentar pensar os afetos como nia capitalista e o mais contestatário
sentação populista e democra- sendo constitutivos dessa dimensão das potências (sobretudo os EUA) que
cia radical? Ou os conceitos são de o político. a representam.
diametralmente opostos?
Nesse sentido a análise política do Nesse sentido, penso que é uma
María Cecilia Ipar – Podemos discurso de Laclau nos convida a de- tarefa fundamental hoje em dia, so-
dizer que a democracia radical é a frontar-nos igualmente com o limite bretudo para quem conhece bem a
grande aposta teórico-política de do simbólico, com aquilo que neces- linguagem da religião católica (e que,
Laclau e Mouffe, na medida em que sariamente excede ao que pode ser portanto, pode mensurar melhor o
eles estão preocupados em repensar falado ou vir a se tornar um discurso significado e o peso específico das pa-
o campo político da esquerda que articulado. Para capturar este limite, lavras do Papa), prestar muita aten-
entra em crise a partir dos anos 1980 inerente à discursividade, é pertinente ção ao discurso do papa Francisco,
com a queda de parte do Bloco So- aprender a capturar e fazer uma leitu- pois é e será por muito tempo ainda
cialista e da União Soviética. Nesse ra aguda dos silêncios, do não-dito. um ator político central para articular
sentido, o que os autores percebe- no nível global as demandas contra a
ram é que todo projeto emancipa- injustiça, a opressão e a capacidade
tório – de esquerda, digamos assim IHU On-Line – A partir de La- de destruição anti-humana do siste-
– deve partir da constatação de que clau, podemos compreender tan- ma capitalista.■

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

Os limites do populismo e seu


caráter pouco emancipatório
Mayra Goulart da Silva analisa o conceito de Laclau
e aponta os riscos que podem conter na centralidade
que o líder assume nessa perspectiva
João Vitor Santos

N
a análise que faz do conceito de povo. A consequência pode ser a consti-
populismo em Ernesto Laclau, tuição de um líder que passa a agir por
a professora Mayra Goulart da conta própria. “Inclusive contrariando
Silva reconhece que o autor frisa que a eventuais compromissos contra-hege-
aclamação de uma maioria não basta mônicos que tenham forjado sua iden-
para que se dê algum tipo de ordena- tificação com as camadas populares”,
mento político. Todavia, compreende completa a professora. Por isso, reitera
que “o populismo não é a melhor fer- que “a razão populista é um operador
ramenta para a luta hegemônica”. Para da soberania popular, conferindo co-
ela, o risco não está somente em se cons- esão a um grupo de indivíduos que se
tituir um autoritarismo, a partir dessa transforma em um sujeito político, exa-
ideia do líder e de unidade. “Sua incom- tamente porque ambiciona constituir-
patibilidade advém do caráter elitista da se como povo soberano”.
70 concepção de política e de representação Mayra Goulart da Silva é professo-
que o estrutura, a qual, por estar dema- ra de Teoria Política e Política Interna-
siado centrada na função do líder, torna- cional na Universidade Federal Rural
se pouco emancipatória sob a perspec- do Rio de Janeiro – UFRRJ. Graduada
tiva do demos [no sentido de unidades em Ciências Sociais pela Universidade
fundamentais do Estado]”, analisa. do Estado do Rio de Janeiro e em Re-
Na entrevista concedida por e-mail à lações Internacionais pela Universida-
IHU On-Line, Mayra aprofunda que de Estácio de Sá, é mestra e doutora
populismo é distinto das noções de ra- em Ciência Política. Entre suas pro-
zão e emancipação. “A razão populista duções, destacamos Bolivarianismo e
não opera a partir de critérios valorati- luta hegemônica no Brasil: (re)signifi-
vos, cuja legitimidade remeta a um fun- cações do conceito durante o governo
damento ulterior ao ato de representa- do Partido dos Trabalhadores (2003-
ção estabelecido entre representantes 2015) (apresentado no I Simpósio Pós
e representados”, aponta. Sem esses Estruturalismo e Teoria Social: o lega-
critérios, há o risco de, por se conside- do transdisciplinar de Ernesto Laclau,
rar a própria identidade do povo, o lí- 2015, em Pelotas, RS).
der acabar se desvinculando do próprio Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consis- que Laclau configura sua categoria, mônica, voltada à luta política.
te o conceito de populismo, se- cujas singularidades serão abor-
Pela sua feição polissêmica, o con-
gundo Ernesto Laclau, e como, dadas na segunda parte da respos- ceito de populismo pode ser usado
a partir dessa categoria, é pos- ta. O conceito, por sua vez, assume como um marcador das viragens pe-
sível compreender governos da uma função descritiva e normativa las quais passou o pensamento e a
Europa e da América Latina no em face das lideranças surgidas na práxis política latino-americana ao
século XXI? região no início do século, sendo longo do século XX. Essa função de
Mayra Goulart da Silva – Pri- simultaneamente uma ferramen- bússola, capaz de conduzir o obser-
meiramente, falarei sobre o contexto ta heurística, direcionada ao plano vador interessado em andar pelos
latino-americano, pois é a partir dele analítico conceitual, e contra-hege- labirínticos caminhos da história

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Populismo disseminou-se no vocabulário


político latino-americano como uma
categoria negativa utilizada para denunciar
governos que manipulavam os trabalhadores
e cooptavam os atores econômicos”

política deste subcontinente, resul- de direita ou extrema direita que, na nas (1934-1940)4; do peruano Fer-
ta da sua sensibilidade às mudanças leitura apressada na mídia e de es- nando Bealúnde Terry (1963-1968 e
de humores na região, mas, tam- pecialistas, ávidos por encontrar um 1980-1985)5; e do equatoriano José
bém, da reincidência de alguns de rótulo que os poupe de uma análise María Velasco Ibarra (1934-1935,
seus temas como o personalismo, mais acurada, recorrem ao conceito 1944-1947, 1952-1956, 1960-1961 e
o multiclassismo e a debilidade das ignorando suas singularidades. 1968-1972)6.
instituições liberais. Em particu-
lar, tal reincidência está associada Não obstante, se observarmos Neste negativo, o retrato deste pe-
a contextos nos quais a sociedade uma das origens axiológicas do con- ríodo passa a ser revelado pelas suas
civil tem pouco espaço para o exer- ceito neste subcontinente, percebe-
cício da autonomia, haja vista uma se que o termo foi utilizado como do ex-presidente, disponível em http://bit.ly/1na0ZMX.
A IHU On-Line dedicou duas edições ao tema Vargas, a
excessiva concentração de recursos uma espécie de negativo sobre o 111, de 16-8-2004, intitulada A Era Vargas em Questão –
econômicos e políticos nas mãos de qual marxistas e liberais revelavam 1954-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon111, e a 112,
de 23-8-2004, chamada Getúlio, disponível em http://bit.
lideranças locais, carentes de pro- suas impressões sobre os governos ly/ihuon112. Na edição 114, de 6-9-2004, em http://bit.ly/ 71
ihuon114, Daniel Aarão Reis Filho concedeu a entrevista O
jetos nacionais ulteriores aos seus nacionalistas ou nacional-desen- desafio da esquerda: articular os valores democráticos com

interesses pecuniários. volvimentistas. Estimulados pelas a tradição estatista-desenvolvimentista, que também abor-
dou aspectos do político gaúcho. Em 26-8-2004, Juremir
oportunidades criadas em tempos Machado da Silva, da PUC-RS, apresentou o IHU ideias
Diante disto, elites políticas que de guerra, este tipo de liderança se Getúlio, 50 anos depois. O evento gerou a publicação do
número 30 dos Cadernos IHU ideias, chamado Getúlio,
almejem a execução de uma agenda dissemina na América Latina, as- romance ou biografia?, disponível em http://bit.ly/ihuid30.
Ainda a primeira edição dos Cadernos IHU em forma-
programática em âmbito nacional sumindo várias facetas, a exemplo ção, publicada pelo IHU em 2004, era dedicada ao tema,
dependem da capacidade de arregi- do argentino Juan Domingo Perón recebendo o título Populismo e Trabalho. Getúlio Vargas e
Leonel Brizola, disponível em http://bit.ly/ihuem01. (Nota
mentação destes dois elementos (o (1946-1955 e 1973-1974)1; do chile- da IHU On-Line)
4 Lazaro Cardenas del Rio (1895-1970): general e esta-
povo e as oligarquias), cujos interes- no Carlos Ibáñez del Campo (1927- dista mexicano, presidente do México a partir do 1° de
ses na maioria das vezes são antagô- 1931 e 1952- 1958)2; do brasileiro dezembro de 1934 para 30 novembro de 1940. Ele é reco-
nhecido, entre outras ações de governo, a reforma agrária
nicos. Em termos práticos, a combi- Getúlio Vargas (1930-1945 e 1951- e a criação dos “jidos” no setor agrícola mexicano; pela na-
cionalização da indústria do petróleo, e por dar asilo polí-
nação entre ambos muitas vezes se 1954)3; do mexicano Lázaro Cárde- tico a espanhóis exilados durante a guerra civil espanho-
estabelece em termos inversamente la. Também é lembrado por ter consolidado as bases do
funcionamento do Partido Nacional Revolucionário e seu
proporcionais, isto é, quanto mais 1 Juan Domingo Perón (1895-1974): militar e político processo evolutivo, incorporando grandes trabalhadores
argentino, presidente de seu país de 1946 a 1955 e de centrais, ao Partido da Revolução Mexicana, a história do
apoio das elites, menor a necessi- 1973 a 1974. Foi líder do Movimento Nacional Justicialista. Partido Revolucionário Institucional (PRI). Em termos de
dade de disputar o apoio do povo, e Genericamente, esse Movimento é chamado peronismo. educação, ele criou o Instituto Politécnico Nacional (IPN).
Os ideais são baseados no pensamento de Perón. O Movi- (Nota da IHU On-Line)
vice-versa. Quando enveredam pela mento Justicialista transformou-se, mais tarde, em Partido 5 Fernando Belaúnde Terry (1912-2002): político perua-
segunda opção, buscando sustenta- Justicialista, que é a força política maioritária na Argentina. no, presidente de seu país por duas vezes, entre julho de
Os ideais do peronismo se encontram nos diversos escri- 1963 e outubro de 1968, quando foi derrubado por um
ção política na popularidade entre tos de Perón como “La Comunidad Organizada”, “Con- Golpe Militar liderado pelo general Juan Velasco Alvarado
ducción Política”, “Modelo Argentino para un Proyecto e entre julho de 1980 até julho de 1985. Fundou o partido
os cidadãos comuns, em detrimento Nacional”, entre outros, onde estão expressos a filosofia e Ação Popular nos anos 50 e em 1956, bem como em 1962,
das elites tradicionais, os atores polí- doutrina política que continuam orientando o pensamen- havia se candidatado à presidência, porém sem êxito. Ar-
to acadêmico e a vida política da segunda maior nação quiteto de profissão, faleceu aos 89 anos em 2002. Em
ticos são tipificados como populistas sul-americana. (Nota da IHU On-Line) 1982 tentou mediar um acordo de paz durante a Guerra
2 Carlos Ibáñez del Campo (1877-1960): foi um político das Malvinas, porém seus bons ofícios não foram aceitos.
– sendo importante salientar que tal chileno, presidente de seu país por dois mandatos (1927- Sua segunda presidência foi sacudida pela crise econômi-
opção vem acompanhada por uma 1931 e 1952-1958). Teve um governo marcado por grande
interferência na economia chilena, criou diversas empre-
ca e assistiu ao recrudescimento dos movimentos guer-
rilheiros de esquerda radical, nomeadamente o Sendero
visão do Estado como instrumento sas estatais que acabaram sem sucesso, o que fez com que Luminoso e o Movimiento Revolucionario Túpac Amaru.
seu governo perdesse apoio. Retirou-se da vida pública Em 28 de julho de 1985 entregou a presidência do Peru a
redistributivo que visa ao favoreci- após o término de seu último mandato em 1958. (Nota Alan García. (Nota da IHU On-Line)
mento da cidadania (do povo) em da IHU On-Line)
3Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles Vargas] (1882-1954):
6 José María Velasco Ibarra (1893-1979): foi um político
do Equador. Foi presidente do Equador por eleição popu-
detrimento de grupos privilegiados político gaúcho, nascido em São Borja. Foi presidente da lar em cinco ocasiões e Chefe Supremo por duas vezes.
República nos seguintes períodos: 1930 a 1934 (Governo Formado nas Universidades de Quito e Paris, foi conside-
(oligarquias). Esse é um traço consti- Provisório), 1934 a 1937 (Governo Constitucional), 1937 rado um dos maiores oradores de seu país, além de ser
tutivo do populismo e que serve para a 1945 (Regime de Exceção) e de 1951 a 1954 (Governo
eleito popularmente). Recentemente a IHU On-Line pu-
indicado como o responsável direto da eliminação dos
fortes vestígios da economia colonial ainda predominan-
diferenciá-lo de alguns movimentos blicou o Dossiê Vargas, por ocasião dos 60 anos da morte tes no início do século XX. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

ausências. No caso dos marxistas, nização dessas sociedades. Enqua- Brasil (1990-92), e Alberto Fujimo-
é ressaltado o caráter multiclassis- dradas no assim chamado Consenso ri10, no Peru (1990-2000).
ta desses movimentos, denunciado de Washington7, essas abordagens
No entanto, observando sua tra-
como falta de consciência de classe. atribuem às estratégias nacional-
No caso dos liberais, a denúncia gira jetória política é possível perceber
desenvolvimentistas o fracasso no
em torno da ausência de uma socie- que, embora críticos do nacional-
processo de industrialização que te-
dade civil autônoma e empreende- ria resultado na criação de uma bur- desenvolvimentismo, estes perso-
dora que, em virtude de suas debili- guesia parasitária e em uma imensa nagens reúnem uma série de atri-
dades, acaba orbitando em torno de dívida pública. Populismo econômi- butos políticos que os aproximam
líderes paternalistas. co torna-se uma expressão utilizada do populismo clássico, como o
para tipificar não apenas os progra- personalismo, a crítica às instân-
Interpretações do populis- mas de industrialização do passado, cias de representação tradicional
mo mas qualquer política monetária ou e a concentração de poderes no
fiscal de natureza redistributiva. Executivo. Em comum com o po-
Sendo assim, até o início do sé- pulismo do passado, esses novos
culo XXI, o populismo dissemi- Populismo e fase neoliberal líderes apresentam uma retórica
nou-se no vocabulário político voltada ao cidadão comum, em
latino-americano como uma cate- Formou-se, então, um consenso oposição às elites. Esta catego-
goria negativa utilizada para de- entre parte das elites nacionais, cre- ria, todavia, é ressignificada para
nunciar governos que manipula- dores e atores internacionais em tor- abarcar outros atores, em parti-
vam os trabalhadores e cooptavam no da implementação de medidas de cular aqueles que representavam
os atores econômicos, bloqueando estabilização baseadas na contenção a base de sustentação do populis-
a compreensão de seus interesses do gasto fiscal e no congelamento mo nacional-desenvolvimentista,
e a realização de seus verdadeiros dos salários. Neste contexto, surge isto é, os trabalhadores formais e
propósitos. Em última instância, no horizonte político latino-america- a burguesia nacional, organizados,
marxistas e liberais uniam-se em no um conjunto de líderes compro- respectivamente, em sindicatos e
um entendimento do Estado e de metidos, de modo mais, ou menos, entidades patronais (Schneider,
72 seus operadores como obstáculos à explícito, com essa agenda desenvol- 1991; Stein, 1980).
livre ação daqueles que seriam os vida através de programas de reajus-
responsáveis pelo progresso. te executados com a assistência do Em sua fase neoliberal os discur-
Fundo Monetário Internacional. Os sos populistas se dirigem a uma
Há também as interpretações que base social ampliada pelas refor-
atribuem ao Estado o papel de ope- principais exemplos do período são
Carlos Menem8, na Argentina (1989- mas ortodoxas: desempregados,
rador da transição entre esta dis- trabalhadores informais, excluí-
posição tradicional e as sociedades 1999), Fernando Collor de Mello9, no
dos, oprimidos e pobres de manei-
industriais modernas, entendida
7 Consenso de Washington: conjunto de medidas com- ra geral. Em seus atos de fala, toda-
não como revolução (burguesa), posto por dez regras básicas, formulado em novembro de
1989 por economistas de instituições financeiras basea- via, estes sujeitos são apresentados
mas como modernização conser- das em Washington D.C., como o FMI, o Banco Mundial em uma relação de antagonismo
vadora. Sob esta perspectiva, os e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, fun-
damentadas num texto do economista John Williamson, que ignora o impacto do neolibe-
governos nacional-populistas te- do International Institute for Economy, e que se tornou a
política oficial do Fundo Monetário Internacional em 1990, ralismo, enfatizando os privilégios
riam sido capazes de engendrar di- quando passou a ser “receitado” para promover o “ajusta- concedidos pelo nacional-desen-
nâmicas redistributivas capazes de mento macroeconômico” dos países em desenvolvimento
que passavam por dificuldades. (Nota da IHU On-Line) volvimentismo às elites a ele asso-
incluir (no mundo do direito e do 8 Carlos Menem (1930): político argentino. Governou o
mercado) parcelas até então exclu- país entre 1989 e 1999, pelo Partido Justicialista (peronis-
ta). É atualmente senador pela província de La Rioja. Foi Collor, culminaram com um processo de impugnação de
ídas da população, ultrapassando muito criticado por um governo de corrupção, pelo seu mandato (Impeachment). Atualmente, está entre os de-
perdão a ex-ditadores e outros criminosos condenados da nunciados da Operação Lava Jato, que investiga esquema
os limites determinados pela men- guerra suja, o fracasso das suas políticas econômicas que de corrupção envolvendo agentes políticos e empresários.
talidade latifundiária e agroexpor- levaram à taxa de desemprego de mais de 20% e a uma
das piores recessões que a Argentina já teve, além do pou-
(Nota da IHU On-Line)
10 Alberto Fujimori: engenheiro e político peruano, foi
tadora das oligarquias tradicionais co empenho demonstrado nas investigações do ataque presidente do Peru de 1990 a 2000. Durante os últimos
terrorista à comunidade judaica em 1994, que resultou na meses do ano de 2000 foi encurralado por uma série de
– ainda que não tenham de fato morte de 85 pessoas. (Nota da IHU On-Line) escândalos em seu governo. Durante esses fatos, saiu do
rompido com elas. 9 Fernando Collor de Mello (1949): político, jornalista,
economista, empresário e escritor brasileiro, prefeito de
Peru na qualidade de presidente para assistir à convenção
da APEC, em Brunei, de onde depois viajou ao Japão, onde
Maceió de 1979 a 1982, governador de Alagoas de 1987 renunciou à presidência e pediu asilo político. Em 2005,
Avançando no tempo, observa-se a 1989, deputado federal de 1982 a 1986, 32º presidente Fujimori mudou-se para o Chile na condição de exilado
do Brasil, de 1990 a 1992, e senador por Alagoas de 2007 político, onde vivia desde então. Em setembro de 2007, a
que, nas décadas de 1980 e 1990, a até a atualidade. Foi o presidente mais jovem da história justiça chilena atendeu pedido de extradição do ex-pre-
controvérsia acerca dos desdobra- do Brasil e o presidente eleito por voto direto do povo, sidente feito pelo Peru, para ser levado a julgamento por
após o Regime Militar (1964/1985). Seu governo foi mar- corrupção, enriquecimento ilícito, evasão de divisas e ge-
mentos políticos do populismo per- cado pela implementação do Plano Collor e a abertura nocídio, pela morte de 25 peruanos durante manifestação
de espaço para um conjunto de con- do mercado nacional às importações e pelo início de um contra seu governo. No dia 12 de dezembro de 2007 foi
programa nacional de desestatização. Seu Plano, que no condenado a seis anos de prisão pela revista ilegal da casa
siderações que dissertam sobre seus início teve uma boa aceitação, acabou por aprofundar a da mulher de seu ex-assessor Vladimiro Montesinos. A
recessão econômica, corroborada pela extinção, em 1990, sentença, ditada pelo juiz Pedro Urbina, também obrigou
efeitos econômicos, caracterizados de mais de 920 mil postos de trabalho e uma inflação na o ex-governante a pagar 400 mil novos sóis (US$ 133 mil)
como uma herança maldita respon- casa dos 1200% ao ano; junto a isso, denúncias de corrup-
ção política envolvendo o tesoureiro de Collor, Paulo César
como reparação civil ao Estado. Além disso, o condenado
ficou impedido de exercer cargos públicos por dois anos.
sável por impedir a efetiva moder- Farias, feitas por Pedro Collor de Mello, irmão de Fernando (Nota da IHU On-Line)

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ciadas. Não obstante, em virtude Deste modo, ainda que seja possí- autores apresentam uma definição
de sua abrangência, estas catego- vel detectar no populismo do pas- de contra-hegemonia como proje-
rias encontram aderência em um sado a configuração de fronteiras to de democracia radical que de-
panorama marcado por profundas de antagonismo, em sua nova fase pende de uma articulação artificial
alterações no mercado de trabalho, elas se distinguem por uma dimen- e contingente entre os diferentes
além de serem capazes de agregar são identitária, que se revela na sujeitos coletivos, cada qual porta-
uma multidão de indivíduos que intenção de reconhecer atores que dor de uma demanda não atendida
passaram a uma situação de pobre- se mantiveram em uma posição pela ordem atual. O populismo é,
za e desemprego, cujas esperanças de invisibilidade e subalternidade então, apresentado como operador
são depositadas na recuperação ao longo da história. Nessa nova preferencial desse tipo de articula-
econômica a ser alcançada através acepção, o líder populista não guia ção. Por esse motivo, embora ele
dos ajustes. ou lidera o povo, ele o representa seja uma forma de identificação
porque faz parte dele, uma vez que sem um conteúdo determinado, ao
Populismo laclauniano compartilha sua identidade. meu ver são inequívocas as suas
afinidades com movimentos de
É da frustração dessas expectativas
contestação ao status quo.
que surge a mais recente viragem no IHU On-Line – O populis-
conceito de populismo, propiciada mo de Laclau é um conceito que Por outro lado, o conceito se de-
pela insatisfação com os resulta- vai além das orientações pola- fine como uma categoria de en-
dos alcançados através da agenda res entre esquerda e direita? tendimento voltada para a com-
neoliberal e com os líderes com ela De que forma? Por quê? preensão de um tipo imediato de
comprometidos. Este sentimento se representação, estabelecido entre
traduz, no despontar do século XXI, Mayra Goulart da Silva – Para um líder e um conjunto de indiví-
em uma conjuntura de grave crise responder a esta questão, precisa- duos que até então se percebiam
econômica e política, que culmina rei adiantar elementos que con- desagregados e excluídos. Ele é,
com a vitória eleitoral de atores que figuram o que podemos entender portanto, uma forma de identifi-
representavam uma mudança de ru- como lógica populista. Isto por- cação sem conteúdo determinado,
mos11. É nesse contexto que surge o que, em A Razão Populista12, La- podendo ser associado a movimen- 73
conceito laclauniano de populismo. clau deixa claro que a agregação tos de esquerda e de direita, desde
das demandas em uma cadeia de que estes se estruturem a partir da
Com Ernesto Laclau, a categoria equivalência pressupõe uma assi- denúncia de formas de exclusão
perde sua feição pejorativa, as- metria essencial entre a comuni- passíveis de serem sanadas pelas
sumindo uma perspectiva que se dade como um todo e suas partes funções redistributivas do Estado.
apresenta como descritiva, embora constitutivas. Esta unidade, por São discursos que enfatizam uma
assuma uma função criptonorma- sua vez, depende de um processo relação de antagonismo entre uma
tiva. Essa segunda característica de catacrese, no qual uma das par- parcela da população que se per-
está associada aos propósitos polí- tes (a que se percebe como excluída
ticos do autor, no contexto da luta cebe injustiçada por não ter suas
na situação atual) se identifica com demandas contempladas – embo-
hegemônica travada na região por o todo, almejando empoderar-se
uma nova elite política, que chega ra se considere majoritária (são
para superar uma situação de ex- uma parte que se reivindica como
ao poder no século XXI. Com esse clusão. A lógica desta operação é todo, isto é, como povo e, por con-
objetivo, o termo foi redefinido
o que o autor denomina de razão seguinte, soberano) – e os grupos
com o propósito de tipificar estas
populista e seu corolário é a noção que são identificados como os res-
novas lideranças, destacando seus
de soberania popular. ponsáveis por tal exclusão (elite).
principais elementos comuns: a
recuperação de um ideal nacional- Desta forma, se considerarmos
desenvolvimentista, discursiva- esquerda e direita como categorias Sujeitos coletivos
mente construído pela polarização relativas à manutenção ou conser-
Não obstante, como abordarei nas
da sociedade entre oprimidos e vação de um status quo excludente,
próximas questões, a peculiaridade
opressores e pela rejeição da agen- o populismo tem afinidade com a
do conceito consiste em demarcar
da neoliberal. primeira. Esse é o sentido empre-
uma diferença quanto a outros ti-
gado por Ernesto Laclau e Chantal
pos de vínculos representativos,
11 Em 2000, dois anos após a vitória de Hugo Chávez na Mouffe13, em Hegemonia e Estraté-
Venezuela, Ricardo Lagos, do Partido Socialista do Chile, que pressupõem a ação de elemen-
foi eleito. Em 2002, foi a vez de Lula, seguido por Néstor gia Socialista (1985)14. No texto, os
Kirchner que se elege presidente da Argentina, em 2003. tos de mediação referentes a algum
Um ano depois, Tabaré Vázquez, da Frente Ampla, vence
no Uruguai. Em 2005, foi a vez de Evo Morales, do Mo- 12 São Paulo: Três Estrelas, 2013. (Nota da IHU On-Line)
tipo de identificação prévia: com
vimento ao Socialismo. No ano seguinte, o equatoriano 13 Chantal Mouffe: filósofa americana, autora de Dimen- uma ideologia, com uma classe,
Rafael Correa, do Pátria Altiva e Soberana, consagrou-se sions of radical democracy (London: Verso, 1992) e The
presidente, também derrotando lideranças políticas tra- democratic paradox (London: Verso, 2000). Mouffe era com um grupo de interesses, com
dicionais. Por fim, em 2008, no Paraguai, Fernando Lugo
obtém uma inédita vitória sobre o Partido Colorado, no
grande parceira de Ernesto Laclau. Nesta edição da IHU
On-Line, Chantal assina um artigo. (Nota da IHU On-Line)
um conjunto de símbolos etc. Em
poder por mais de 60 anos. (Nota da entrevistada) 14 São Paulo: Intermeios, 2015. (Nota da IHU On-Line) dinâmicas populistas, é através da

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TEMA DE CAPA

identificação com o líder que os in- No caso dos discursos de Trump, No entanto, para ser útil enquan-
divíduos se conectam, tornando-se há uma outra singularidade no con- to tipo ideal, a noção de populismo
um sujeito coletivo. ceito laclauniano que dificulta sua deve servir para diferenciar fenô-
aplicação, pois não me parece que menos mediante a tipificação de um
Nisto consiste uma limitação da
ele se dirija aos excluídos, isto é, aos conjunto de características singula-
razão populista, quando compara-
que se definem por uma relação de res; mesmo que nem todos os casos
da a outras formas de representa-
opressão e subalternidade a ser sa- reúnam todas elas, é preciso ter um
ção que, ao meu ver, são mais ade-
nada através de iniciativas redistri- núcleo comum.
quadas a propósitos efetivamente
butivas operadas a partir do Estado.
emancipatórios sob a perspectiva Ao meu ver, pode ser encontra-
Ao contrário, assim como outros
do demos. Ademais, ao configu- do em discursos de contestação
líderes apressadamente tipificados
rar um sujeito político através de ao status quo, que utilizem a ideia
como populistas, o presidente esta-
uma relação de antagonismo, este de exclusão e se dirijam ao Estado
dunidense é um crítico deste tipo de
operador pode resultar em visão enquanto ator capaz de suprir as
política pública.
unitária de povo, que comprime a demandas que configuram esta si-
pluralidade de identidades e gru- É claro que há ambiguidades e tuação de opressão. São discursos
pos inerentes ao tecido social das que, em alguns momentos, estas proferidos por atores que se apre-
coletividades contemporâneas. lideranças mobilizam a ideia de so- sentam para a disputa política, com
berania popular e a indignação das o propósito de galgar cargos capazes
classes populares. Afinal, estes são de permitir o uso da máquina estatal
IHU On-Line – O presidente corolários incontornáveis em qual- com propósitos redistributivos.
dos Estados Unidos, Donald quer atividade e discurso político
Trump15, e o papa Francisco po- realizado em um ambiente demo-
dem ser considerados como ex- crático. Porém, de modo geral, é IHU On-Line – Como a lógica
pressões do populismo? Como? possível perceber que o núcleo nor- da política populista é cons-
Por quê? Em que medida pode- mativo dos discursos de Trump são truída?
mos, a partir das experiências brancos de classe média. São indiví- Mayra Goulart da Silva –
da Espanha (Podemos) e da duos passíveis de serem favorecidos
74 Grécia (Syriza), falar em limi-
Esta é uma pergunta importante,
por um conjunto de políticas volta- pois permite refletir sobre as limi-
tes e potencialidades da pers- das a aumentar a rentabilidade dos tações da formulação de Laclau,
pectiva do populismo? investimentos econômicos, mas não que, por estar direcionada à aná-
Mayra Goulart da Silva – De necessariamente por iniciativas di- lise de perfomances discursivas,
início, deixo claro que não acom- recionadas à distribuição de renda carece de elementos capazes de
panho de perto as trajetórias de e ao favorecimento das classes po- nortear aqueles que desejam uti-
nenhum dos atores mencionados: pulares. É neste ponto que Trump lizar a noção de populismo para
papa, Trump, Podemos, Syriza. se diferencia dos outros atores analisar políticas públicas e prá-
Mesmo assim, no tocante ao pri- mencionados (Podemos e Syriza), ticas de governança. Atualmente,
meiro, a resposta é mais fácil: não. aos quais acredito que o conceito la- tenho me dedicado a este tema,
A razão populista é um operador clauniano de populismo se aplique buscando sobrepor algumas ca-
da soberania popular, conferindo com maior adequação. madas heurísticas à categoria la-
coesão a um grupo de indivíduos Essa discussão me permite ilus- clauniana, capacitando-a para a
que se transforma em um sujeito trar a importância de decompor os observação crítica dos governos
político, exatamente porque ambi- elementos que constituem esta ca- nela enquadrados. Essas cama-
ciona constituir-se como povo so- tegoria, impedindo que ela perca das se estabelecem em dois planos
berano em um determinado terri- seu potencial analítico, sendo utili- complementares. Primeiramente
tório. O papa fala aos católicos do zada aleatoriamente para se referir elas se referem à dimensão ma-
mundo, grupo que não apresenta a qualquer fenômeno político novo, terial, relativas aos componentes
essa pretensão. apenas pela dificuldade (ou pregui- abordados ao final da última per-
ça) de observá-lo em sua singula- gunta quando ressaltei a natureza
ridade. Reconheço que o conceito redistributiva do conceito, estan-
15 Donald Trump (1946): Donald John Trump é um em- possui uma feição abrangente (mul- do, portanto, atreladas à adoção
presário, ex-apresentador de reality show e atual pre-
ticlassista, poli-ideológica etc). Esta, de medidas e políticas públicas
sidente dos Estados Unidos. Na eleição de 2016, Trump
foi eleito o 45º presidente norte-americano pelo Partido por sua vez, advém do caráter fugi- que favoreçam economicamente
Republicano, ao derrotar a candidata democrata Hillary
Clinton no número de delegados do colégio eleitoral; no dio que o próprio conceito de povo
entanto, perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras es- tor de, entre outros, A invenção democrática: os limites
tão o protecionismo norte-americano, por onde passam
adquire em um horizonte marcado da dominação totalitária (São Paulo: Brasiliense, 1983) e
questões econômicas e sociais, como a relação com imi- pela “dissolução dos marcadores de Desafios da escrita política (São Paulo: Discurso Editorial,
grantes nos Estados Unidos. Trump é presidente do con- 1999). Por ocasião de seu falecimento, a revista IHU On
glomerado The Trump Organization e fundador da Trump certeza”, na terminologia de Lefort16. -Line entrevistou a filósofa Olgária Matos, na edição 348,
Entertainment Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, de 25-10-2010, disponível em http://migre.me/34oI9 e
vida pessoal, riqueza e modo de se pronunciar contribuí- intitulada Claude Lefort e a invenção democrática. (Nota
ram para torná-lo famoso. (Nota da IHU On-Line) 16 Jean-Claude Lefort (1924-2010): filósofo francês, au- da IHU On-Line)

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as classes populares. Aqui a ideia desfiguram os sistemas políticos sentativa de seu processo decisório,
é atender às demandas materiais inseridos em um horizonte de ex- que inclui a preocupação com a re-
que, por não serem contempladas pectativas que visa conciliar demo- presentação de interesses e sujeitos
pelo status quo anterior, criavam cracia e liberalismo. Dentre eles sociais minoritários (pluralismo).
uma situação de opressão. está o populismo.
Tal hostilidade, todavia, não se
Por outro lado, elas se dirigem ao limita à gênese dos movimentos,
Hostilidade
plano formal (jurídico-político) e mediante a configuração de vín-
dizem respeito à criação de canais Segundo a hipótese apresentada culos de identidade entre os líde-
que superem a opressão política por Urbinati, um dos elementos que res e seus seguidores. Uma vez no
destes grupos que se percebiam fazem parte de sua essência seria poder, estas lideranças se cons-
excluídos dos processos decisórios a hostilidade ao liberalismo e aos tituem como uma ameaça para a
anteriormente configurados. Tais princípios da democracia constitu- democracia liberal, ao tomarem
canais podem assumir diferentes cional (divisão de poderes, direitos decisões que reduzem o dualismo
formatos. No entanto, observo (em das minorias etc.). O que pressupõe entre vontade e opinião através de
termos empíricos e conceituais) o ímpeto de realizar alterações ins- uma simplificação do campo social,
uma afinidade com dinâmicas que titucionais com o propósito de au- operada pela polarização. É neste
espelhem as feições cesaristas e mentar a centralização dos poderes ponto que as considerações de Ur-
plebiscitárias da razão populista, nas mãos do líder e de seus segui- binati se tornam particularmente
estabelecendo vínculos imediatos dores. Por conseguinte, na sua con- úteis para o propósito de ampliar
que aproximem o povo do líder cepção, um dos elementos que fazem a categoria laclauniana de popu-
e, por conseguinte, dos processos parte da razão populista seria a opo- lismo, tornando-a apta para lidar
decisórios por ele determinados. sição aos princípios da “democracia com a análise de políticas públicas
Isto tem sido feito, por exemplo, constitucional” (divisão de poderes e e performances governativas, e não
por meio de mecanismos de parti- direitos das minorias etc.). apenas com fenômenos de nature-
cipação direta, sobre os quais cabe za discursiva19.
Afastando-se da tradição da filo-
uma reflexão mais atenta que pas- Embora reconheça a pertinência
sofia política, que trata de questões
sa pela questão da “crise da repre-
de legitimidade a partir de uma da crítica formulada por Urbinati, 75
sentatividade”. acredito que ela não se aplique ao
analogia com o que seria a “subs-
Ao lidar com o desafio de conside- tância” do corpo político, Nadia nosso contexto. Isto porque seus
rar normativamente o que acredito Urbinati utiliza a ideia de figura. fundamentos normativos se refe-
ser o núcleo operacional do con- Entendido como fenótipo, o con- rem à defesa de um tipo de sistema
ceito de populismo, quando dire- ceito remete a um conjunto de político (ou se quisermos manter o
cionado à análise de performances atributos que permite a um obser- léxico filosófico, de uma forma de
governativas, precisei recorrer a vador externo reconhecer um de- vida) que jamais deitou raízes na
autores que lidem com esta ques- terminado regime, distinguindo-o América Latina: o liberalismo po-
tão, uma vez que as considerações de outros. Ao falar da desfiguração lítico. Diferentemente de Laclau,
de Laclau se mantêm demasiado da democracia, a autora almeja de- mais sensível às particularidades
presas à dimensão discursiva e aos tectar modos de esgarçamento das do nosso entorno, Urbinati atri-
momentos originários, nos quais instituições liberais que, mesmo bui um caráter inelutavelmente
se dá a gênese dos fenômenos ana- não alterando nominalmente a for- negativo à deriva plebiscitária que
lisados. Para isso, foi interessante ma de governo, podem ser externa- acompanha este tipo de fenôme-
observar a crítica apresentada por mente observáveis. no, cujo inimigo subjacente seria
Nadia Urbinati17, em Democracy o próprio sistema liberal, no que
É o caso da relação de hostilidade diz respeito ao pluralismo e ao
Disfigured (2014)18, que visa exa- entre populismo e democracia libe-
tamente especular sobre o que con- respeito às minorias. Não obstan-
ral, definida como uma diarquia, te, quando olhamos para o nos-
sistiria uma governança populista como sistema dual no qual a “von-
e sobre quais seriam as principais so contexto, essa conexão direta
tade” (procedimentos decisórios) e entre o líder (no caso o chefe do
características das políticas pú- a “opinião” (interesses e desejos que
blicas e decisões engendradas por Executivo) e a massa (maioria dos
se estabelecem fora do plano institu- cidadãos) muda de figura. Embora
estes líderes no poder. No texto, a cional) se influenciam mutuamente.
autora dedica-se a alguns fenôme- reiteradamente criticada, essa di-
Essa dinâmica entre vontade e opi- nâmica – favorecida por sistemas
nos contemporâneos que desvirtu- nião demanda, por sua vez, um ar-
am ou, na terminologia do texto, políticos hiperpresidencialistas,
cabouço institucional caracterizado como aqueles que encontramos na
pelo respeito às liberdades indivi-
17 Nadia Urbinati (1955): acadêmica, cientista política
e jornalista italiana naturalizada estadunidense. (Nota da duais, pela divisão, equilíbrio e con- 19 Essa ressalva não ignora o caráter material dos fenô-
IHU On-Line)
18 Harvard, EUA: Harvard University Press, 2014. (Nota da
trole recíproco de poderes (checks menos discursivos e se alinha a um horizonte conceitual
onde essências e nomes, linguagem e atos não suportam
IHU On-Line) and balances) e pela natureza repre- nenhuma diferenciação objetiva. (Nota da entrevistada)

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região – apresenta-se, muitas ve- uma vez que a razão pura se refere a a despeito de suas virtudes analíti-
zes, como única alternativa para objetos alheios à intervenção huma- cas e normativas, o populismo, as-
contornar os obstáculos dispostos na, sendo de certa forma incompatí- sim como o carisma weberiano20,
pelas oligarquias locais, que tra- vel com questões de caráter político. incorpora um elemento de instabi-
dicionalmente se reproduzem nas No que diz respeito à razão prática, lidade. Por este motivo, conforme
diferentes instituições constituti- esta sim é orientada à ação humana, abordado na pergunta anterior, o
vas do nosso arremedo de demo- em particular, aquelas que se esta- conceito não se situa no plano da
cracia representativa. belecem por dever; sua dissociação racionalidade (instrumental ou de-
com o que Laclau denominou de ontológica), mas na esfera da von-
Sob esta perspectiva, o populismo,
razão populista pode ser estabele- tade (subjetiva e imanente).
por um lado, surgiria como uma al-
cida remetendo à natureza pós-fun-
ternativa às concepções meramente Essa característica lhe permite
dacional que caracteriza o contexto
procedimentais da democracia, que atualizar os elos entre a dimensão
teórico no qual se inserem as contri-
a esvaziam de sua substância éti- fático-institucional e o plano ético/
buições de Laclau.
ca, relativa ao empoderamento das valorativo, renovando suas pre-
maiorias, instigando a percepção de Ao assumir a ideia de pós-funda- tensões de legitimidade. Por isso,
que a representação é uma panaceia cionalismo para definir o horizon- enquanto movimento carismáti-
fadada ao fracasso. Em contrapar- te epistemológico marcado pela co, a razão populista cumpriria o
tida, esse preenchimento se dá me- superação da filosofia do sujeito, papel de reverter – ainda que por
diante uma narrativa simbólica que Laclau (e Chantal Mouffe, sua es- pouco tempo – a tendência rotini-
compromete a competência das ins- posa e parceira de trabalho) pres- zante que afeta todo ordenamento
tituições de atuarem como médium supõe a possibilidade de retomar jurídico-político, reaproximando-o
capaz de relacionar e separar os inte- o ideal moderno de autoafirmação de suas bases ético-morais. Este é
resses sociais e o Estado, que tornar- (self-assertion) separando-o da um elemento que permite ao po-
se-ia, então, uma expressão direta noção de autofundação, na medida pulismo apresentar-se como uma
dos grupos majoritários. Ao identi- em que a crença na capacidade da solução (falível e efêmera) para a
ficar imediatamente o político com razão humana de encontrar funda- chamada crise da representação
76 o social, através da figura do líder, o mentos últimos para a existência nas sociedades contemporâneas,
populismo ameaça o dualismo que é incompatível com a rejeição de como argumentei ao longo deste
caracteriza a democracia represen- suas bases metafísicas, essencialis- comentário. Deste modo, em vir-
tativa, estabelecido a partir de um tas e universalizantes. tude de seus atributos teóricos,
conjunto de dinâmicas, procedimen- mas também do direcionamento
tos e instituições responsáveis por Nesse esforço, é formulada uma
prático dado pelo autor, o populis-
fazer a mediação entre a opinião pú- teoria acerca da formação dos su-
mo desponta como operador con-
blica e as decisões dos líderes. Sem jeitos políticos despojada de qual-
tra-hegemônico, ou seja, como um
elas corremos o risco de configurar quer essencialismo, na qual toda
instrumento útil na luta pela trans-
um sistema no qual povo e Estado identidade se configura sob uma
formação nas estruturas de poder
não se diferenciam, sendo esta uma perspectiva relacional, através de
que perpetuam a opressão das clas-
característica definidora de regimes uma relação de antagonismo. Sob
ses populares.
totalitários que interdita qualquer este prisma, a identidade de um su-
posicionamento crítico dirigido ao jeito não lhe é intrínseca, mas de- Entretanto, a despeito do reconhe-
plano político. Na minha opinião, é pende da relação que ele estabelece cimento de tais atributos, é preciso
exatamente neste ponto, isto é, na com outros termos num sistema de salientar seus inconvenientes apor-
sua dificuldade de lidar com dinâ- diferenças historicamente constru- tados pela incorporação de uma te-
micas de mediação que reside a sua ído e instável, uma vez que com- oria elitista da representação, que
maior fragilidade. posto por estruturas discursivas (e encontra sua compreensão mais
sujeitos) antagônicas que impedem radical na obra de Carl Schmitt21.
seu completo fechamento em uma A conceitualização schmittiana
IHU On-Line – Por que o mo- só totalidade.
delo da “razão populista” não 20 Sobre o carisma e sua relação com as demais formas
Desde a publicação de Razão Po- de dominação (tradicional e racional-legal) sugiro WEBER,
se reduz à perspectiva de uma Max. Os três tipos puros de dominação legítima.» COHN,
pulista em 2005, Laclau tornou-se G. Weber: Sociologia (Coleção Grandes Cientistas So-
razão pura? Como a razão po- ciais, 13). São Paulo: Ática, 1991, 79-127; e, MOMMSEN,
um teórico requisitado por políticos
pulista concebe os papéis do Wolfgan J. The political and social theory of Max Weber.
e acadêmicos para explicar as mu- Chicago: University of Chicago Press, 1989. (Nota da en-
líder e do povo? E como apre- trevistada)
danças ocorridas na hora presente, 21 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo político e
ende quem está fora da homo-
marcada pela emergência de atores professor universitário alemão. É considerado um dos
geneidade de povo? mais significativos e controversos especialistas em direito
na América Latina e no mundo que, constitucional e internacional da Alemanha do século 20.
A sua carreira foi manchada pela sua proximidade com o
Mayra Goulart da Silva – Pen- malgrado suas idiossincrasias, se regime nacional-socialista. O seu pensamento era firme-
so que você tenha se referido ao caracterizam por discursos de con- mente enraizado na teologia católica, tendo girado em
torno das questões do poder, da violência, bem como da
conceito kantiano de razão prática, testação ao status quo. No entanto, materialização dos direitos. (Nota da IHU On-Line)

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ressalta a dimensão da homoge- das minorias, o entendimento la- ato de representação constitui si-
neidade, apresentando-a como um clauniano tende a realçar dinâmi- multaneamente representantes e
desdobramento normativo de um cas majoritárias. Diante disto, des- representados, não havendo uma
corolário realista, isto é, do pressu- tacam-se dois problemas centrais: essência coletiva ou vontade geral
posto weberiano de que, na moder- (1) o que fazer com as parcelas da que o transcenda, torna-se mais di-
nidade, a representação, enquanto população que não partilham da fícil subordiná-lo a qualquer ideia
momento de identificação entre go- mesma identidade dos grupos ma- de responsabilidade alheia aos seus
vernantes e governados, é um com- joritários?; (2) quais os limites des- ditames, visto que não fica claro
ponente inextrincável aos sistemas sa identificação majoritária, tendo a quais vontades ou interesses os
políticos, que não mais podem re- em vista o caráter multifacetado representantes devem ser respon-
correr a fundamentos transcenden- dos indivíduos e grupos sociais? sivos e que tipo de controle o povo
tes de legitimidade. deve exercer sobre eles.
Neste tocante, é preciso reconhe-
cer o esforço de Laclau em afirmar Em outros termos, diferentemen-
Homogeneidade e repre-
que, sob uma perspectiva norma- te das noções de razão e emanci-
sentação
tiva, a aclamação da maioria não é pação, que servem como horizonte
A homogeneidade, portanto, é suficiente para conceder legitimi- normativo da tradição marxista em
um elemento intrínseco à ideia de dade a um ordenamento político, geral e, em particular, da ideia de
representação apresentada por La- sendo este um ponto central para luta hegemônica apresentada por
clau, embora ela seja mitigada pela a argumentação aqui empreendida, Antonio Gramsci22, a razão popu-
consideração de sua precariedade na medida em que evita uma asso- lista não opera a partir de critérios
e do hiato entre representantes e ciação precipitada entre populismo valorativos, cuja legitimidade re-
representados, que atribui a todo e cesarismo. Sob esta perspectiva, meta a um fundamento ulterior ao
ato de identificação um caráter in- o populismo não é a melhor ferra- ato de representação estabelecido
completo. Para o autor, o proces- menta para a luta hegemônica, mas entre representantes e represen-
so de complexificação não ocorre não porque dê origem a regimes ne- tados. Na ausência de tais crité-
apenas dentro da sociedade, mas, cessariamente autoritários. Sua in- rios, agrava-se o risco de que, por
também, nos próprios indivídu- compatibilidade advém do caráter pressupor uma identidade subs- 77
os, que por serem compostos de elitista da concepção de política e
tantiva com o povo, o líder dele se
inúmeras dimensões valorativas de representação que o estrutura, a
desvincule, agindo em seu nome
deixam de ser capazes de se iden- qual, por estar demasiado centrada
como bem entender, inclusive con-
tificar por completo com qualquer na função do líder, torna-se pouco
trariando eventuais compromissos
coisa ou pessoa. Toda identidade emancipatória sob a perspectiva do
contra-hegemônicos que tenham
adquire, então, um caráter parcial demos. Este é um ponto que venho
forjado sua identificação com as
e temporário, daí a necessidade de tentando desenvolver nas minhas
camadas populares.■
atrelar a legitimidade dos repre- pesquisas, que visam concatenar a
sentantes a algo mais do que sua exegese deste emaranhado teórico 22 Antonio Gramsci (1891-1937): foi um filósofo marxis-
capacidade de identificação para com a análise da conjuntura latino ta, jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu
sobre teoria política, sociologia, antropologia e linguística.
com os representados. -americana. Com Togliatti, criou o jornal L’Ordine Nuovo, em 1919. Se-
cretário do Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em
Em contraste com os princípios Ademais, o próprio pós-funda- 1926 e só foi libertado em 1937, dias antes de falecer. Nos
seus Cadernos do cárcere, substituiu o conceito da ditadu-
que orientam o entendimento libe- mentalismo, enquanto epistemo- ra do proletariado pela “hegemonia” do proletariado, dan-
do ênfase à direção intelectual e moral em detrimento do
ral acerca dos mecanismos repre- logia impermeável a princípios domínio do Estado. Sobre esse pensador, confira a edição
sentativos, que sublinham a plu- transcendentes, traz consigo al- 231 da IHU On-Line, de 13-8-2007, intitulada Gramsci,
70 anos depois, disponível para download em http://www.
ralidade de opiniões e a proteção guns inconvenientes. Pois, se o ihuonline.unisinos.br/edicao/231. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

Economia populista é aquela


voltada ao Bem-Estar Social
Para Fernando Nogueira da Costa, o populismo levado
para o campo econômico pode ser uma forma de
fazer frente aos interesses do livre-mercado
João Vitor Santos

P
rofessor do Instituto de Econo- 2a. categoria’ excluídos do mercado de
mia da Universidade Estadual consumo”, complementa. Para ele, “é
de Campinas - Unicamp, Fer- um erro econômico desprezar a expan-
nando Nogueira da Costa faz uma leitu- são do mercado interno pelo consumo”,
ra do conceito de populismo de Ernes- pois “atrai investimentos diretos estran-
to Laclau desde o campo das Ciências geiros, gerando empregos e multiplican-
Econômicas. Segundo Costa, esse fun- do renda”. “A retomada do crescimento
damento político pode inspirar uma depende do mercado interno e do crédi-
política econômica muito mais alinha- to ao consumidor”, completa.
da com interesses populares, do povo.
Fernando Nogueira da Costa é
“O populismo constitui o alerta de que
professor do Instituto de Economia da
os interesses dos defensores da Eco-
Universidade Estadual de Campinas -
nomia de Livre-Mercado não podem
78 predominar acima dos interesses popu-
Unicamp. Tem graduação em Economia
pela Universidade Federal de Minas Ge-
lares”, pontua. E explica: “a economia
rais, mestrado em Ciência Econômica e
tem de estar voltada para alcançar um
doutorado em Ciência Econômica pela
Bem-Estar Social e não, exclusivamen-
Unicamp. Foi vice-presidente de Fi-
te, para atender à ganância individua-
nanças e Mercado de Capitais da Caixa
lista. O instinto de proteção dos seres
Econômica Federal, entre fevereiro de
humanos deve superar o instinto de
2003 e junho de 2007. Entre os livros
competição. A cooperação altruísta
publicados, estão Ensaios de Economia
contribui mais para o desenvolvimento
Monetária (São Paulo: Educ, 1992),
socioeconômico e humanista”.
Economia Monetária e Financeira:
Na entrevista a seguir, concedida por Uma Abordagem Pluralista (São Paulo:
e-mail à IHU On-Line, o professor Makron, 1999), Economia em 10 Lições
faz uso das perspectivas de Laclau para (São Paulo: Makron, 2000) e Brasil dos
analisar a inclusão pelo consumo. “Os Bancos (São Paulo: Edusp, 2012).
preconceituosos já com ‘a vida ganha’
tendem a criticar ‘a inclusão pelo con- A entrevista foi publicada nas Notícias
sumo’”, dispara. “Os ‘populistas’ (sic) do Dia de 1-7-2017, no sítio do Instituto
retrucam que este é um direito a ser Humanitas Unisinos – IHU, disponível
plenamente conquistado pela cidadania em http://bit.ly/2vcsaP5.
brasileira. Não pode haver ‘cidadãos de Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como compre- tuações as mais contraditórias, tanto ologia nem uma conduta irracional,
ende o conceito de populismo, à direita, como à esquerda, revela a mas segue uma lógica específica, re-
de Ernesto Laclau? E como esse dificuldade de entender o populis- lacionada às identidades coletivas e
conceito pode ser operado no mo. Comumente, entende-se como às demandas sociais. Ele valoriza os
campo da Economia? “populista” a situação que ocorre momentos de organização e atuação
quando o povo estabelece conexão política do povo.
Fernando Nogueira da Costa – direta com uma liderança, desestabi-
Para Ernesto Laclau, a flexibilidade lizando a democracia representativa. Assim, para Laclau, a razão populis-
com que o conceito é aplicado a si- Para ele, o populismo não é uma ide- ta é o fundamento mesmo do político.

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“O populismo constitui o alerta de


que os interesses dos defensores
da Economia de Livre-Mercado
não podem predominar acima
dos interesses populares”

Por isso, ela recusa as racionalidades cite preços baratos em suas exporta- cimento social que una os elementos
que aspiram ao fim da política, seja a ções, afirmam que é “populismo cam- heterogêneos outorga centralidade ao
que apregoa uma revolução total, seja bial” o que seus críticos defendem. afeto na constituição social”. Entendo
a que reduz a política à mera admi- Taxam de política cambial “populista” que a gente faz política – ações cole-
nistração das coisas públicas. Sendo a voltada para “manter os salários re- tivas – com amigos ou companhei-
assim, o populismo constitui o alerta ais artificialmente elevados”. Com ela, ros de quem gostamos ou temos um
de que os interesses dos defensores alegam, a existência de uma indústria amor comum por determinada causa.
da Economia de Livre-Mercado não que utilize tecnologias no estado da O que mais traz felicidade são os re-
podem predominar acima dos inte- arte mundial é inviável. lacionamentos com outras pessoas,
resses populares. A economia tem de ou seja, com a família, o(a) compa-
Não percebem os reagentes a essa te-
estar voltada para alcançar um Bem nheiro(a), os filhos e os amigos. Em
rapia. Um choque cambial, provocado
-Estar Social1, e não, exclusivamente, segundo lugar, está o sentimento de
por variação discricionária no sistema
para atender à ganância individualis- fazer algo de útil ou altruísta. Esse
ta. O instinto de proteção dos seres
de preços relativos, causaria conflito
laço social pelo afeto une os populis- 79
distributivo. Outras rendas perderiam
humanos deve superar o instinto de tas, desenvolvimentistas e lulistas.
posições relativas às dos exportadores
competição. A cooperação altruísta
e demandariam reposição inflacioná- A subestimação do populismo im-
contribui mais para o desenvolvi-
ria. O consequente choque de custos se plica na subestimação da política tout
mento socioeconômico e humanista.
somaria ao custo dos insumos impor- court2. Daí a afirmação liberal de que
tados. Ao fim e ao cabo, em processo a gestão da comunidade cabe a um
IHU On-Line – Como conce- de retroalimentação inflacionária, não poder administrativo cuja fonte de
ber uma política econômica a há nenhuma garantia que o incentivo legitimidade é o conhecimento apro-
partir desse conceito de popu- ao lucro dos industriais exportadores priado pela casta de sábios daquilo
lismo? Quais as experiências se manteria incólume. E um governo que constitui uma “boa” comunida-
mais próximas disso que se com hegemonia trabalhista conside- de. Isto é, aquela em que predomina
tem/teve no mundo? Moeda so- raria inviável politicamente “dar-um- o livre-mercado favorável à casta dos
cial e bancos de gestão colabo- tiro-pé”, isto é, tirar poder aquisitivo mercadores-industriais-financistas.
rativa se associam a essa pers- real de sua base eleitoral. Francisco Weffort, ex-professor
pectiva? Moeda social e bancos de gestão da Faculdade de Filosofia, Letras e
Fernando Nogueira da Costa – colaborativa não se associam a essa Ciências Humanas - FFCHL-USP,
Qualquer instrumento de política eco- perspectiva “populista” na medida ex-Secretário Geral do PT, partido
nômica que coloque o benefício cole- em que são fatores apenas de desen- que renegou, em 1994, para ser mi-
tivo acima da satisfação individual de volvimento local. Não têm impacto nistro da Cultura de seu ex-colega
membros da elite econômica costuma macroeconômico. Fernando Henrique Cardoso - FHC,
ser taxado, sumária e pejorativamen- começou a publicar artigos contra o
te, como “populista”. Por exemplo, Populismo, em setembro de 1963,
os pregadores de um choque cambial IHU On-Line – Quais os pon- criticando o apoio das massas popu-
para dar competitividade internacio- tos comuns e dissonantes en- lares ao governo reformista de João
nal aos industriais brasileiros, que não tre populismo (de Laclau), de- Goulart, seis meses antes do Gol-
obtém produtividade que lhes capa- senvolvimentismo e lulismo? pe Militar de 31 de março de 1964.
E quais os limites desses con- Há mais de meio século, essa crítica
1 Welfare State: Expressão em inglês que significa “estado ceitos? acadêmica uspiana contaminou os
de bem-estar” e abrange as noções de Estado de bem-es-
tar social e de políticas públicas, ou seja, o conjunto de
benefícios socioeconômicos que um governo proporciona
Fernando Nogueira da Costa – 2 Tout court: no sentido de “tal e qual”, “da mesma forma”.
aos seus súditos. (Nota da IHU On-Line) Laclau diz que “a necessidade de um (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

marxistas que almejavam uma luta tra os imigrantes e, supostamente, a quisermos ter um crescimento susten-
de classes acirrada no Brasil. favor dos empregados nativos. Trata- tado em longo prazo.
se de um movimento multiclassista,
O ex-professor da FFCHL-USP
embora nem todo movimento mul-
FHC, quando assumiu a Presidên- IHU On-Line – Uma política
ticlassista possa ser considerado po-
cia da República, na Era Neoliberal, econômica de inspiração popu-
pulista. Por isso, a esquerda marxista,
anunciou que pretendia acabar com que só privilegia a luta de classes, o lista é capaz de fazer frente à
todo “o entulho [populista] varguis- rejeita, mesmo se um líder carismá- lógica da “financeirização” no
ta”. O ethos paulista da “Revolução tico atender aos interesses populares mundo de hoje? Por quê?
de 1932” leva a elite socioeconômi-
com uma política social ativa. Fernando Nogueira da Costa –
ca/intelectual paulistana ao antivar-
O populismo inclui, usualmen- Todas as crenças religiosas medievais
guismo e antipopulismo. Esse seu
te, componentes contrastantes, tais contra a usura persistem até hoje,
esnobismo “se moderniza” no an-
como a reivindicação da igualdade inclusive entre ateus materialistas.
tilulismo e antipetismo.
de direitos políticos e da participa- Infelizmente, muitos destes aderi-
Em 1978, Weffort3 publicou o livro ção universal das pessoas comuns, ram ao mesmo preconceito. Onde a
O Populismo na Política Brasileira4, mas funde-se com algum tipo de au- lei, no caso das finanças islâmicas,
coletânea de seus ensaios da campa- toritarismo. Em geral, está sob uma ou os escrúpulos de consciência, seja
nha acadêmica contra esse fenômeno liderança carismática, cujo culto à no cristianismo, seja no judaísmo,
político latino-americano. Ele afirma personalidade merece críticas. O po- impedem emprestar dinheiro a juros
que o populismo como ideologia “re- pulismo inclui também demandas so- “aos irmãos”, o capital pertencente a
vela claramente a ausência total de cialistas ou pelo menos demanda da pessoas não engajadas no comércio
perspectivas para o conjunto da so- justiça social, uma vigorosa defesa da está perdido para fins produtivos. A
ciedade“. E a massa que ele galvaniza pequena propriedade, componentes economia do endividamento supera a
“entrega-se de mãos atadas aos inte- fortemente nacionalistas, e a negação economia da parcimônia.
resses dominantes”. Curiosamente, o da importância da classe. Ele é acom- Ora, a alavancagem financeira gera
tucanato esnobe se atou aos interes- panhado pela afirmação dos direitos uma economia de maior escala nos
80 ses golpistas ora predominantes em das pessoas comuns (“párias”) de en- negócios e maior rentabilidade. É viá-
um “abraço de afogados”. frentarem os interesses de castas pri- vel com taxa de juro que não se apro-
vilegiadas, habitualmente considera- prie de toda a rentabilidade acrescida
das “inimigos do povo e da nação”. com o uso de capital de terceiros. Os
IHU On-Line – Em que medi-
investimentos financeiros dos “ren-
da podemos afirmar que a in- Os preconceituosos já com “a vida ga-
tistas” – “gente do mal” segundo os
clusão pelo consumo corrompe nha” tendem a criticar “a inclusão pelo
maniqueístas – são necessários como
o conceito de populismo segun- consumo”. Os “populistas” (sic) retru-
passivos carregadores dos emprésti-
do Laclau? Quais os riscos e os cam que este é um direito a ser ple-
mos nos ativos bancários. A elevação
limites de uma política econô- namente conquistado pela cidadania
destes gera renda e emprego. Sua
mica baseada na inclusão pelo brasileira. Não pode haver “cidadãos
de 2a. categoria” excluídos do mercado queda provoca depressão.
consumo?
de consumo. A revolução “comunista” A abertura de contas bancárias, que
Fernando Nogueira da Costa – chinesa significou, na prática, uma saíram de 88 milhões em 2002 para
O populismo tende a negar qualquer revolução consumista mundial ao ba- 223 milhões em 2016, deu acesso
identificação ou classificação com a ratear e popularizar bens de consumo popular à cidadania financeira. Os
dicotomia direita/esquerda, isto é, durável antes considerados “bens de trabalhadores que ganham acima do
individualistas competitivos versus luxo e/ou capitalistas”. teto da Previdência (R$ 5.531,31) ne-
igualitários altruístas. Entretanto, cessitam ser rentistas para manter o
estes rótulos ideológicos são insisten- É um erro econômico desprezar a
padrão de vida durante a longa fase
temente sobrepostos a ele. Fala-se, expansão do mercado interno pelo
inativa de aposentadoria.
atualmente, em um “populismo de consumo. Atrai investimentos dire-
direita” de caráter protecionista con- tos estrangeiros, gerando empregos e Assim, seria um erro político tí-
multiplicando renda. A retomada do pico da esquerda extremista as-
3 Francisco Correia Weffort (1937): é um cientista polí- crescimento depende do mercado in- sustar os 10 milhões de rentistas
tico brasileiro. Obteve doutorado em Ciência política pela terno e do crédito ao consumidor. Com do varejo tradicional e de alta
Universidade de São Paulo, com a tese Populismo e Classes
Sociais. Foi membro do Partido dos Trabalhadores, tendo o grau de urbanização brasileira (85% renda com a ameaça de quebra de
exercido, na condição de um de seus principais dirigen-
tes, as funções de diretor executivo da Fundação Wilson da população mora em cidades), os contratos financeiros (“desfinan-
Pinheiro - fundação de apoio partidária instituída pelo PT
em 1981, antecessora da Fundação Perseu Abramo; e tam-
Serviços produzem ¾ do Produto In- ceirização”), dada a importância
bém de Secretário Geral do partido na segunda metade terno Bruto - PIB. Na realidade, quase do funding em títulos e valores
dos anos 1980. No contexto de eleição de Fernando Hen-
rique Cardoso à Presidência da República em 1994, deixa toda a população – a quinta maior do mobiliários para lastrear as opera-
o PT assumindo o cargo de Ministro da Cultura. (Nota da mundo – necessita encontrar ocupa- ções de crédito, inclusive as reali-
IHU On-Line)
4 São Paulo: Paz e Terra, 1980. (Nota da IHU On-Line) ção e obter renda para consumir, se zadas por bancos públicos.

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Antes, predominava uma socie- te, a lhes oferecer ocupações – e não mais plural, será necessário que-
dade rural com riqueza em ativos a cortar direitos trabalhistas como se brar um tabu, incorporando econo-
imobiliários e rentismo parasi- faz atualmente. mistas desenvolvimentistas e não
tário em renda da terra. Depois, só “representantes de O Mercado”.
Quanto à política econômica em
tornou-se uma sociedade urba- Juros no Brasil é uma variável de-
curto prazo, caberá um realinha-
na com menor desigualdade pelo terminante de variáveis-chave,
mento gradualista, isto é, sem cho-
surgimento de uma classe média, mas determinada de maneira arbi-
ques, de preços relativos (câmbio,
composta inclusive por operá- trária e disparatada em relação ao
juros, tributos, lucros e salários) fa-
rios especializados, cuja sobra de resto do mundo. É urgente o fim
vorável à retomada do crescimento.
renda do trabalho acumulada sob da caracterização da Autoridade
Ele deverá ser realizado sem “esma-
forma de ativos financeiros – mais Monetária como uma instituição
gamento de lucros” por custos e nem
líquidos que os ativos imobiliá- econômica extrativista, que espo-
“estreitamento do mercado interno”
rios – propicia a manutenção das lia renda da maioria trabalhadora
condições de vida durante a maior por carência de demanda agregada.
em favor de uma minoria rentis-
fase inativa dos seres humanos. E Será oportuna uma depreciação ta, impondo-lhe a característica
fontes de financiamento para ala- competitiva da moeda nacional, a inclusiva de fomentar a atividade
vancagem financeira. ser feita de maneira gradual. Exigi- econômica empregadora. É impe-
rá, simultaneamente, progressiva rativo o mandato dual para limitar
diminuição da taxa de juro básica o arbítrio do Banco Central entre
IHU On-Line – Como o senhor real para o patamar 2% aa. E a reo- duas metas: controle da inflação e
tem analisado a política econô- neração da folha de pagamentos na
mica brasileira e as opções fei- expansão do emprego.
área fiscal.
tas desde os governos Lula até o Em síntese, não haverá condução
atual momento político? Como Prioritária será a reestruturação adequada da política econômica,
conceber um quadro de recu- tributária com o fim da isenção tanto no que se refere aos encar-
peração econômica sustentá- de (e a elevação da tributação pro- gos financeiros do endividamen-
vel, capaz de reduzir de fato as gressiva sobre) renda de Pessoa to público, quanto na tendência
desigualdades do Brasil? Física recebedora de lucros e divi- à apreciação da moeda nacional, 81
dendos propiciada pela Lei 9.249 enquanto o juro for uma variável
Fernando Nogueira da Costa de 26/12/1995. Em compensação,
– Nós, “populistas” (sic), necessita- sob o livre arbítrio do Banco Cen-
para ampliar a massa de lucros tral sem coordenação com os de-
mos trocar ideias sobre um possível através de maior mercado de con-
programa eleitoral à espera de um mais instrumentos. A descoorde-
sumo popular, caberá tentar apro- nação provoca a disparidade entre
candidato de oposição. Desta vez, var o Imposto sobre Valor Agregado
temos a vantagem de usar as lições a taxa interna e a externa e eleva o
- IVA em escala nacional em lugar
da experiência social-desenvolvi- cupom cambial.
da tributação sobre bens e serviços
mentista brasileira para superar as (ICMS/ISS). Esta é repassada via
negativas, retomando tudo o que preços, de maneira regressiva, isto
foi positivo entre 2003 e 2014, por IHU On-Line – Deseja acres-
é, os mais pobres pagam mais em centar algo?
exemplo, uma política social ativa,
relação a suas menores rendas.
e avançando. Fernando Nogueira da Costa
Inovações financeiras recentes – Ernesto Laclau revê o populismo
Nossa linha de partida é a verifica- – mudança no crédito rotativo e
ção de que sem maioria qualificada em chave bem diversa do menos-
diferenciação de preços à vista e a prezo e desdém em geral atribuí-
no Congresso Nacional não se con-
prazo – podem ser aprofundadas. do a ele por acadêmicos esnobes
seguirá a reversão da Proposta de
O sistema brasileiro de pagamen- brasileiros. Estes têm a atitude de
Emenda Constitucional - PEC dos
tos via cartões, distribuídos irres- quem despreza o relacionamen-
gastos fiscais que pretende imo-
ponsavelmente sem avaliação de to com gente humilde e imitam,
bilizar quaisquer experiências de
riscos, infla o custo de vida e me- geralmente de maneira afetada,
atuação anticíclica do Estado brasi-
rece uma revisão. Um desafio será o gosto, o estilo e as maneiras de
leiro contra a atual Grande Depres-
a securitização do crédito imobi- pessoas de prestígio ou alta posição
são econômica. Na verdade, esta é
liário com compartilhamento de
a prioridade número um: retomar social, assumindo ares de superio-
risco pelo avaliador original da
um crescimento sustentado da ren- ridade exacerbada a propósito de
operação, outro será a expansão
da e do emprego. Ao eleitorado com tudo. Para o pesquisador argen-
do crédito estudantil securitiza-
14 milhões de desempregados, cujo tino, a prática política representa
do, ou seja, descontado em folha
multiplicador afeta pelo menos 60% uma articulação profunda por mu-
de pagamento.
dos domicílios brasileiros, interessa, danças institucionais e teve papel
antes de tudo, isso. O programa eco- Quanto à composição de uma Di- preponderante na consolidação da
nômico se dedicará, prioritariamen- retoria do Banco Central do Brasil democracia na América Latina.■

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

A leitura de Freud para muito


além da Psicologia das Massas
Para Patrícia Ferreira, Ernesto Laclau resgata o
potencial político do pensamento freudiano
João Vitor Santos

A
psicologia também se apropria sem muito pudor, a psicanálise para
do conceito de populismo de trabalhar com a política”, avalia.
Ernesto Laclau. Embora o au-
Na entrevista a seguir, concedida
tor não chegue a ser leitura corrente,
por e-mail à IHU On-Line, a psi-
é comum ver seus textos em prate-
cóloga ainda explica como “os con-
leiras de psicólogos e psicanalistas.
E não é ao acaso, pois o próprio La- ceitos de Laclau contribuem para
clau revela a influência da obra de ampliar e, em certo sentido, avançar
Sigmund Freud na constituição de algumas formulações da psicanáli-
seu pensamento. A doutora em Psi- se”. Para ela, o pensador traz outra
cologia Social Patrícia Ferreira se diz perspectiva à ideia de alienação as-
“tentada” a afirmar que a “teoria ba- sociada às massas. “A (re)leitura de
82 sal da articulação em A razão popu- Laclau da ‘obra social’ de Freud in-
lista esteja no Psicologia das Massas troduz elementos que, ao mesmo
de Freud. Porém, é um ponto de vista tempo em que legitimam o legado
influenciado pelo ‘lugar’ de onde re- freudiano, fazem uma associação que
alizo a leitura do texto e, além disso, permite vislumbrar ‘massas’ um pou-
não podemos esquecer a ‘crítica’ que co para além do Psicologia das Mas-
faz a Marx e a referência a Gramsci”, sas”, completa.
ressalva.
Patrícia do Prado Ferreira é
Ainda assim, Patrícia considera graduada em Psicologia pela Uni-
possível traçar equivalências entre versidade Estadual Paulista - Unesp,
os grupos descritos no pensamento doutora em Psicologia Social pela
freudiano e a estruturação do con- Pontifícia Universidade Católica de
ceito de populismo. O que não quer São Paulo – PUC-SP e pós-douto-
dizer que Laclau faça uma apropria- randa no Instituto de Psicologia da
ção direta à obra de Freud. “É aí que
Universidade de São Paulo - USP.
Laclau imprime a sua diferença, pois,
É pesquisadora do Laboratório de
de modo ousado, parte do Psicologia
Psicanálise e Sociedade da USP, do
das Massas, coloca-o em diálogo
Núcleo de Psicanálise e Política da
com conceitos emprestados de La-
PUC-SP e do Núcleo de Psicanálise e
can, traz a conversa para pensadores
das ciências sociais, política, linguís- Sociedade da PUC-SP.
tica, filosofia e coloca, sem hesitar e Confira a entrevista.

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Apesar de Laclau não ser um


psicanalista, tenderia a associar
sua teoria mais à de Freud”

IHU On-Line – Que conexões com o pensamento de Freud e/ou La- citar alguns –, traz a conversa para
podemos estabelecer entre o can. É tentador afirmar que a teoria pensadores das ciências sociais, po-
pensamento de Ernesto Laclau basal da articulação em A razão popu- lítica, linguística, filosofia e coloca,
com as perspectivas de Jacques lista esteja no Psicologia das Massas4 sem hesitar e sem muito pudor, a
Lacan1 e Sigmund Freud2? É de Freud. Porém, é um ponto de vista psicanálise para trabalhar com a
possível afirmar que Laclau se influenciado pelo ‘lugar’ de onde reali- política – o que não é sem crítica ou
associa mais a uma das linhas? zo a leitura do texto e, além disso, não incômodo para a psicanálise.
Qual e por quê? podemos esquecer a ‘crítica’ que faz a
Apesar de Laclau não ser um psica-
Marx5 e a referência a Gramsci6.
Patrícia Ferreira – A leitura de nalista, tenderia a associar sua teo-
A razão populista3 de Ernesto Laclau É possível estabelecer equivalên- ria mais à de Freud, justo porque o
permite dizer que, nesse momento de cias (para usar um dos seus sig- apreendo com a impressão de que
sua teoria, as elaborações de Freud e nificantes) entre a estrutura dos seu ponto de partida pode ser toma- 83
Lacan são fundamentais. Acredito ser grupos descritos na obra freudiana do como freudiano. Mas é ponto de
mais difícil se apropriar de seu traba- e a estruturação do populismo. Isso partida, porque Laclau o ultrapassa
lho sem ter conhecimento de alguns não quer dizer que sejam exatamen- com suas articulações e esse é um
conceitos que Laclau empresta da psi- te a mesma coisa, pois não são. E juízo particular... E, ademais, se até
canálise, pois, na maioria do tempo, acho que é aí que Laclau imprime a Lacan se dizia freudiano, não é?
sua diferença, pois, de modo ousa-
o autor estabelece uma relação direta
do, parte do Psicologia das Massas,
1 Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista francês. Re- coloca-o em diálogo com conceitos IHU On-Line – Em que medi-
alizou uma releitura do trabalho de Freud, mas acabou emprestados de Lacan – signifi- da os conceitos de sociedade,
por eliminar vários elementos deste autor. Para Lacan, o
inconsciente determina a consciência, mas ainda assim cante, nomeação, vazio, traço, para sujeito e política contribuem
constitui apenas uma estrutura vazia e sem conteúdo.
Confira a edição 267 da revista IHU On-Line, de 4-8-2008, para o campo da psicanálise? E
intitulada A função do pai, hoje. Uma leitura de Lacan, 4 Porto Alegre: L&PM, 2013. (Nota da IHU On-Line)
disponível em http://bit.ly/ihuon267. Sobre Lacan, confira 5 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista social, econo-
como compreender esses con-
as seguintes edições da revista IHU On-Line, produzidas mista, historiador e revolucionário alemão, um dos pensa- ceitos desde a psicanálise?
tendo em vista o Colóquio Internacional A ética da psica- dores que exerceram maior influência sobre o pensamen-
nálise: Lacan estaria justificado em dizer “não cedas de teu to social e sobre os destinos da humanidade no século 20.
desejo”? [ne cède pas sur ton désir]?, realizado em 14 e 15 A edição 41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda Patrícia Ferreira – Sociedade,
de agosto de 2009: edição 298, de 22-6-2009, intitulada Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Karl sujeito e política não são conceitos
Desejo e violência, disponível em http://bit.ly/ihuon298, e Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre
edição 303, de 10-8-2009, intitulada A ética da psicaná- o autor, a edição número 278 da revista IHU On-Line, de que estão fora do campo psicanalí-
lise. Lacan estaria justificado em dizer “não cedas de teu 20-10-2008, é intitulada A financeirização do mundo e sua
desejo”?, disponível em http://bit.ly/ihuon303. (Nota da crise. Uma leitura a partir de Marx, disponível em https:// tico, eles estão e participam da psi-
IHU On-Line) goo.gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: os homens não são o
2 Sigmund Freud (1856-1939): neurologista nascido em que pensam e desejam, mas o que fazem, concedida por
canálise. Desde as histéricas que
Freiberg, Tchecoslováquia. É o fundador da psicanálise. In- Pedro de Alcântara Figueira, foi publicada na edição 327 contavam suas histórias a Freud, há
teressou-se, inicialmente, pela histeria e, tendo como mé- da IHU On-Line, de 3-5-2010, disponível em http://bit.
todo a hipnose, estudou pessoas que apresentavam esse ly/2p4vpGS. A IHU On-Line preparou uma edição especial elementos que nos permitem dizer
quadro. Mais tarde, interessado pelo inconsciente e pelas sobre desigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty
pulsões, foi influenciado por Charcot e Leibniz, abando- O Capital no Século XXI, que retoma o argumento central que a psicanálise sempre esteve im-
nando a hipnose em favor da associação livre. Estes ele- de O Capital, obra de Marx, disponível em http://www. plicada com o social. Isso está posto
mentos tornaram-se bases da psicanálise. Desenvolveu a ihuonline.unisinos.br/edicao/449. (Nota da IHU On-Line)
ideia de que as pessoas são movidas pelo inconsciente. 6 Antonio Gramsci (1891-1937): foi um filósofo marxista, em Freud, como também está em
Freud, suas teorias e o tratamento com seus pacientes jornalista, crítico literário e político italiano. Escreveu sobre
foram controversos na Viena do século 19 e continuam teoria política, sociologia, antropologia e linguística. Com Lacan. Os conflitos dos neuróticos
ainda muito debatidos. A edição 179 da IHU On-Line, de Togliatti, criou o jornal L’Ordine Nuovo, em 1919. Secre- de Freud estavam relacionados mais
8-5-2006, dedicou-lhe o tema de capa sob o título Sig- tário do Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em
mund Freud. Mestre da suspeita, disponível em http://bit. 1926 e só foi libertado em 1937, dias antes de falecer. Nos ao dever do Outro, muitas vezes re-
ly/ihuon179. A edição 207, de 4-12-2006, tem como tema seus Cadernos do cárcere, substituiu o conceito da ditadu-
de capa Freud e a religião, disponível em https://goo.gl/ ra do proletariado pela “hegemonia” do proletariado, dan- presentado pela figura paterna, o pai
wL1FIU. A edição 16 dos Cadernos IHU em formação do ênfase à direção intelectual e moral em detrimento do
tem como título Quer entender a modernidade? Freud ex- domínio do Estado. Sobre esse pensador, confira a edição
de família (e também a Igreja), que
plica, disponível em http://bit.ly/ihuem16. (Nota da IHU 231 da IHU On-Line, de 13-8-2007, intitulada Gramsci, estabeleciam a regulação dos modos
On-Line) 70 anos depois, disponível para download em http://www.
3 São Paulo: Três Estrelas, 2013. (Nota da IHU On-Line) ihuonline.unisinos.br/edicao/231. (Nota da IHU On-Line) de gozo em renúncias pulsionais.

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

Freud disse da impossibilidade formulações da psicanálise. Ou, ain- Psicologia das Massas, amplian-
de dissociar a psicologia indivi- da, para demonstrar um dos modos do o diálogo com outras teorias e
dual da psicologia social e Lacan com que a psicanálise pode contri- até com Lacan, especialmente o do
alertava aos psicanalistas para que buir para os estudos políticos. Digo campo da ex-tensão.
estivessem atentos ao seu tempo, isso porque não percebo que os con-
aos acontecimentos, à subjetivida- ceitos de Laclau foram incorporados
de de sua época. O sujeito, como pela teoria psicanalítica. Na verdade, IHU On-Line – Como compre-
evidencia a psicanálise, é efeito do o que observo é mais certo precon- ende a ideia de “identidades
significante, está imerso e emer- ceito da psicanálise e de alguns psi- populares”? Em que medida
ge na linguagem. O inconsciente é canalistas em relação à teoria de Er- esse conceito se associa à pers-
tomado como estrutura, lugar do nesto Laclau. É mais fácil encontrar pectiva de “povo” trabalhada
Outro simbólico, e é também sa- um psicanalista que não tenha tido por Laclau?
ber, quando se trata do que da es- contato com o que ele escreveu do Patrícia Ferreira – Laclau de-
trutura se articula no discurso do que um que tenha lido sua obra. Cla- fine que a identidade popular é
Outro. O Outro (simbólico) é inva- ro que existem exceções e poderia “o agente precipitante do laço de
riável em sua estrutura, mas é tam- citar algumas. Mas o curioso é que, equivalência”, operador funda-
bém suscetível às mudanças que neste sentido, se a gente tentar com- mental da passagem de demandas
repercutem em outros termos que preender por que isso acontece com individuais para demandas popu-
compõem o sujeito, especialmente Laclau, podemos pensar na ideia lares. Sendo a identidade popular
sobre o eu. E essas coisas todas que ele empresta da psicanálise, da aquilo que se expressa a partir de
atravessam o discurso dos sujeitos, representação significante. um ‘significante vazio’ que irá fazer
dos analisandos. a função de denominador comum
O que quero dizer é que suas pro-
Uma prova disso é que a polari- de união de demandas, mas que
postas são representadas por um
zação, decorrente da crise política tem a característica de não excluir
significante e esse significante é ‘po-
que vivenciamos, apareceu nos con- diferenças. Ele não elimina o que é
pulismo’. Laclau é “o cara do popu-
sultórios, nas sessões de análise. É particular de cada grupo ou a luta
lismo” e, muitas vezes, é até aí que
84 absolutamente comum aos psica- de um grupo, mas estabelece uma
sabem sobre ele, com o agravo dos
nalistas encontrarem em suas es- relação na qual algo é comum em
sentidos pejorativos comumente
cutas evidências dessas transfor- quaisquer dos grupos que se en-
atribuídos ao populismo. A partir
mações no Outro social, inclusive contrem em potencialidade equi-
da psicanálise, acredito que essa
no modo com que os sintomas são valencial, digamos.
associação pode ser diretamente re-
relatados. As histéricas de Freud metida ao Psicologia das Massas de Sem esse ‘denominador comum’
falavam, entre outras coisas, desse Freud, que ele utiliza bastante, como como, por exemplo, a oposição a
conflito com o tempo moderno. E disse anteriormente. Acho que é aí um regime opressor, não se esta-
os sujeitos continuam falando dis- que pode haver certo receio em ir belecem ‘identidades populares’. Se
so, do social, cada um de acordo adiante, pois a massa tem todas as não existem essas identidades, as
com sua época, com as questões características da alienação, do cheio relações de equivalência se estabe-
de seu tempo. de sentido – a um líder, por exemplo lecem em torno da solidariedade,
– que a psicanálise justamente in- por isso é preciso que haja um mo-
tenta ultrapassar e essa é certa fun- vimento que ele chama de ‘cristali-

“A psicanálise ção do trabalho psicanalítico. zação’ de uma cadeia de equivalên-


cias, a partir da qual se constituirá o
Mas é relevante reconhecer o tra-
sempre este- balho realizado por Laclau que, em
‘povo’. Então, podemos afirmar que
há algo que ‘identifica’ e também
minha opinião, resgata o potencial
ve implicada político freudiano, tantas vezes es-
que nomeia o povo, concebendo
essa categoria que se articula nas e
com o social”
quecido pelos psicanalistas – e, ou- pelas pluralidades, um significante
tras vezes, bem lembrado pela teo- capaz de servir como ancoradouro
ria crítica e também pelas ciências de demandas. O povo, nesse sen-
sociais. E, ainda, é preciso ressaltar tido, é uma identidade discursiva
que a (re)leitura de Laclau da ‘obra que emerge a partir do trabalho de
social’ de Freud introduz elementos equivalência que desempenham as
IHU On-Line – Quais as con-
– como as identidades populares identidades populares.
tribuições dos conceitos de La-
ou os laços de equivalência – que
clau para a psicanálise?
ao mesmo tempo em que legitimam
Patrícia Ferreira – Os conceitos o legado freudiano, fazem uma as- IHU On-Line – Quem é e como
de Laclau contribuem para ampliar sociação que permite vislumbrar você observa o “sujeito inter-
e, em certo sentido, avançar algumas ‘massas’ um pouco para além do passivo”, trabalhado por Slavoj

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Žižek7? Quais as associações Agora, como isso se relaciona com América Latina teve uma configu-
e dissociações que podemos o sujeito em Laclau? As duas caracte- ração de populismo de Estado, no
fazer com a forma que Laclau rísticas que comumente são associa- qual se reforçava a centralidade
conceitua o sujeito? das a sujeito em Laclau (com Chantal do Estado contra as oligarquias
Mouffe8) são a da relação com a dis- latifundiárias. No começo do sé-
Patrícia Ferreira – O sujeito in-
cursividade e pré-discursividade e as culo XX, esse populismo político
terpassivo é uma ideia pouco explo-
posições de sujeito. Sendo a segunda se deu por movimentos urbanos
rada por parecer ser bastante especí-
derivada da primeira e sendo o sujei- de classes médias e populares que
fica, mas, além de se relacionar com
to em relação com a discursividade se encontravam em ascensão, de-
a estrutura dos sujeitos, é um modo
essencialmente descentrado e plu- corrente da expansão econômica
de falar do sujeito na atualidade, es-
ral – o que o desliga de associações e que, por isso, começaram a rei-
pecialmente quando Žižek se dispôs
diretas às categorias identitárias, ao vindicar políticas redistributivas e
a pensar a relação dos sujeitos com a
mesmo tempo em que permite ao su- participação política. Essas iden-
tecnologia e o ciberespaço. Ele tem al-
jeito transitar entre diferentes, e até tidades advieram do liberalismo
guns trabalhos sobre isso no fim dos
mesmo antagônicas, identidades. O oligárquico que se estabeleceu
anos 1990. Nesse período, Žižek se de-
descentramento do sujeito, por sua pós-independência, composto por
dicou aos problemas da interatividade
vez, coloca sua dimensão contingen- um sistema eleitoral regido pelos
e falou da expectativa criada de que
te, histórico-social ou trans-histórica, senhores de terra com suas for-
com ela os indivíduos poderiam sair
permitindo que ocupe diferentes posi- mas de políticas clientelistas. Em
da posição de espectadores passivos e
ções no interior da discursividade. Daí decorrência dessa estruturação, as
participar ativamente do ‘espetáculo’,
porque é possível a construção de um classes médias e baixas somavam
inclusive modificando as regras. Ele
discurso hegemônico a partir da lógica demandas que não estavam sendo
questionou se nessa interação entre o
de equivalência. atendidas e que acabaram se cris-
homem e as coisas, se isso da interati-
talizando em nomes de lideranças
vidade, não colocaria em cena o opos- Compreendo que a semelhança que
– foi o que ocorreu com o nome de
to, que seria o da máquina ser ativa se pode estabelecer entre o sujeito in-
Ruy Barbosa9, no Brasil, e de Ar-
no lugar do sujeito. Žižek estabelece terpassivo e o sujeito do modo como
turo Alessandri Palma 10, no Chile.
uma relação disso com o fetichismo é tratado em Laclau, seguramente é a 85
da mercadoria em Marx, com a crença relação de ambos com o social. E isso Depois, Laclau considerou que
fetichista, das relações sociais entre as os associa também ao modo como a o populismo latino-americano se
coisas, dinâmica em que são as coisas psicanálise concebe o sujeito em sua tornou mais radical com a crise de
que creem e não as pessoas – e mes- trans-historicidade, na relação entre 1930, porque o potencial redistri-
mo que se saiba que coisas não creem, estrutura e história. Isso não quer di- butivo foi limitado e as demandas
mantém-se a ilusão fetichista. zer que de tempos em tempos a gente democráticas foram cada vez menos
tenha ‘sujeitos inéditos’, pois acredi- atendidas. Aí ocorreu uma fratura
Disso, Žižek sugere o sujeito-su-
tar nisso sobreporia a alienação his- entre liberalismo e democracia, que
posto-crer evidenciando as relações
tórica à alienação estrutural. Mas, de antes encontravam-se mais alinha-
do sujeito com o outro e o Outro, nas
certa forma, podemos compreender dos. Nesse período, surgiram gover-
quais é possível estabelecer esse des-
que a alienação histórica é uma espé- nos como o de Getúlio Vargas11 aqui,
locamento da crença. Acreditar que
cie de ‘envelope’ formal de estrutura,
alguém faz algo por nós é suficiente
que se modifica de sujeito a sujeito, 9 Ruy Barbosa [Ruy Caetano Barbosa de Oliveira] (1849-
para a efetivação da crença, pode-
de sociedade a sociedade. 1923): foi um polímata brasileiro, tendo se destacado
mos dizer. Os exemplos que ele usa principalmente como jurista, político, diplomata, escritor,
filólogo, tradutor e orador. Um dos intelectuais mais bri-
repetidas vezes são o das carpideiras lhantes do seu tempo, foi um dos organizadores da Re-
nos funerais que choram a morte de IHU On-Line – Como populis-
pública e coautor da constituição da Primeira República
juntamente com Prudente de Morais. Ruy Barbosa atuou
alguém por outrem; e o dos risos de mo e democracia se articulam na defesa do federalismo, do abolicionismo e na promo-
ção dos direitos e garantias individuais. Primeiro ministro
programas televisivos que riem por na América Latina historica- da Fazenda do regime instaurado em novembro de 1889,
nós. O sujeito interpassivo tem, en- mente? E como essa relação é
sua breve e discutida gestão foi marcada pela crise do en-
cilhamento sob a proposição de reformas modernizadoras
tão, essa característica de deslocar a atualizada para os séculos XX da economia. Destacou-se, também, como jornalista e ad-
vogado. Foi deputado, senador e ministro. Notável orador
atividade para o objeto. Acho que é e XXI? e estudioso da língua portuguesa, foi membro fundador
o que podemos dizer para minima- da Academia Brasileira de Letras, e seu presidente entre
1908 e 1919. (Nota da IHU On-Line)
mente localizar o conceito. Patrícia Ferreira – Respondo 10 Fortunato Arturo Alessandri Palma (1868-1950): foi
percorrendo o caminho que Laclau um advogado e político chileno, patriarca da família Ales-
sandri (de ascendência italiana). Foi presidente nos perío-
realiza em seu estudo. Ele conside- dos 1920-1925 e 1932-1938. É considerado um dos políti-
7 Slavoj Zizek (Slavoj Žižek, 1949): filósofo e teórico crí- cos mais influentes no Chile do século XX, nomeadamente
tico esloveno. É professor da European Graduate School
ra que o pontapé do populismo na através de uma série de reformas, incluindo a Constituição
e pesquisador sênior no Instituto de Sociologia da Uni- de 1925, que marcou o fim do regime parlamentar e do
versidade de Liubliana. É também professor visitante em estabelecimento de presidencialismo no Chile. (Nota da
várias universidades estadunidenses, entre as quais estão 8 Chantal Mouffe: filósofa americana, autora de Dimen- IHU On-Line)
a Universidade de Columbia, Princeton, a New School for sions of radical democracy (London: Verso, 1992) e The 11 Getúlio Vargas [Getúlio Dornelles Vargas] (1882-
Social Research, de Nova York, e a Universidade de Mi- democratic paradox (London: Verso, 2000). Mouffe era 1954): político gaúcho, nascido em São Borja. Foi presi-
chigan. Publicou recentemente Menos que nada. Hegel e grande parceira de Ernesto Laclau. Ela assina artigo nessa dente da República nos seguintes períodos: 1930 a 1934
a sombra do materialismo dialético (São Paulo: Boitempo, edição, em que reflete sobre a constituição do conceito de (Governo Provisório), 1934 a 1937 (Governo Constitucio-
2013). (Nota da IHU On-Line) populismo. (Nota da IHU On-Line) nal), 1937 a 1945 (Regime de Exceção) e de 1951 a 1954

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

o de Perón12 na Argentina e o Movi- latino-americano. E isso dificulta o do-se às identificações com o ideal do
mento Revolucionário na Bolívia13. antagonismo de forças, porque provo- eu e o eu ideal. Por isso, estrutural-
ca certo consenso. Laclau disse, para mente, não poderíamos diferenciar
Quando realiza o pulo para a história
trazer para nosso contexto, que o lulis- Donald Trump e o papa Francisco.
da América Latina recente, no século
mo elaborava um equilíbrio entre uma O que poderia os tornar (e os torna,
XXI, Laclau considera que há a com-
nova participação de massas e a trans- claro) distintos são suas propostas,
binação de duas tradições: os regi-
formação do Estado, mas considerava aquilo que defendem e a maneira
mes nacionalistas e populares agora
Lula um populista ‘parcial’. Ao mes- como constroem seus argumentos.
se associam ao Estado liberal – o que
mo tempo, afirmava que o kirchneris-
tem traços do populismo ‘inaugural’ Trump pode ser compreendido
mo era um representante do populis-
como representante do populismo de
(Governo eleito popularmente). Recentemente a IHU
mo de esquerda na América Latina,
On-Line publicou o Dossiê Vargas, por ocasião dos 60 pois os atores que impulsionavam as direita. Ele reforça a cisão entre ‘nós’
anos da morte do ex-presidente, disponível em http://
mudanças constituíam um amálgama e ‘eles’, foca-se no populismo étnico,
bit.ly/1na0ZMX. A IHU On-Line dedicou duas edições ao
tema Vargas, a 111, de 16-8-2004, intitulada A Era Var- de grupos heterogêneos. utiliza a pauta da imigração, ao mes-
gas em Questão – 1954-2004, disponível em http://bit.ly/
ihuon111, e a 112, de 23-8-2004, chamada Getúlio, dis-
mo tempo em que critica políticas co-
ponível em http://bit.ly/ihuon112. Na edição 114, de 6-9- merciais das elites que impactam di-
2004, em http://bit.ly/ihuon114, Daniel Aarão Reis Filho
concedeu a entrevista O desafio da esquerda: articular os IHU On-Line – Desde a pers- retamente os empregos nos Estados
valores democráticos com a tradição estatista-desenvol-
vimentista, que também abordou aspectos do político pectiva psicanalítica, como Unidos às custas de enriquecerem as
gaúcho. Em 26-8-2004, Juremir Machado da Silva, da PU- compreender líderes políticos grandes empresas etc. Nesse sentido,
C-RS, apresentou o IHU ideias Getúlio, 50 anos depois. O
evento gerou a publicação do número 30 dos Cadernos de nosso tempo com orienta- ele funciona como aglutinador de de-
IHU ideias, chamado Getúlio, romance ou biografia?, dis-
ponível em http://bit.ly/ihuid30. Ainda a primeira edição ções tão distintas, como por mandas, serve como o ancoradouro
dos Cadernos IHU em formação, publicada pelo IHU em exemplo o presidente dos Es- de demandas e, com isso, faz existir
2004, era dedicada ao tema, recebendo o título Populismo
e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel Brizola, disponível em tados Unidos, Donald Trump, e uma ‘identidade popular’.
http://bit.ly/ihuem01. (Nota da IHU On-Line)
o papa Francisco? Em que me-
12 Juan Domingo Perón (1895-1974): militar e político O papa Francisco pode até ter um
argentino, presidente de seu país de 1946 a 1955 e de dida podemos afirmar que são
1973 a 1974. Foi líder do Movimento Nacional Justicialista. jeitão que nos instigaria a conside-
Genericamente, esse Movimento é chamado peronismo. figuras populistas? O que os
Os ideiais são baseados no pensamento de Perón. O Movi- rá-lo ‘populista’ (e no sentido vul-
distingue e o que os aproxima?
mento Justicialista transformou-se, mais tarde, em Partido gar do termo a tendência é tomá-lo
86 Justicialista, que é a força política maioritária na Argentina.
Os ideais do peronismo se encontram nos diversos escri- Patrícia Ferreira – A compreen- assim) e, muitas vezes, parece ter
tos de Perón como “La Comunidad Organizada”, “Con-
ducción Política”, “Modelo Argentino para un Proyecto são da liderança em psicanálise está potencialidade em condensar de-
Nacional”, entre outros, onde estão expressos a filosofia e
doutrina política que continuam orientando o pensamen-
associada à ideia de ‘Um unificante’, mandas. Mas, ao que tudo indica,
to acadêmico e a vida política da segunda maior nação homogeneizante, e não faz diferença as identificações que se estabelecem
sul-americana. (Nota da IHU On-Line)
13 Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR): par- se as orientações são distintas, por- com seus posicionamentos tendem a
tido político boliviano fundado em 7 de junho de 1942
por Carlos Montenegro e cujo presidente foi seu cunhado,
que o que está em cena é a posição de cair muito mais na vertente solidá-
Augusto Céspedes. Governou a Bolívia através das Pre- assujeitamento ao líder e também a ria e talvez não seja, até o momento,
sidências de Víctor Paz Estenssoro, Hernán Siles Zuazo e
Gonzalo Sánchez de Lozada. Os presidentes Wálter Gue- identificação com os seus semelhan- o suficiente para a cristalização de
vara Arze e Lidia Gueiler Tejada iniciaram suas carreiras
políticas neste partido, mas depois fizeram cisões no par-
tes. Portanto, esse ‘Um’ opera em for- cadeias de equivalência. A ver o que
tido. (Nota da IHU On-Line) mações coletivas clássicas, associan- está por vir.■

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Estado Democrático de Direito e Direitos


Humanos são basilares ao populismo
Para Samuel Martins, o conceito não pode ser plenamente exemplificado
com experiências de governos recentes porque não atendem a
instrumentos analíticos básicos da gênese do populismo de Laclau
João Vitor Santos

S
e populismo pode genericamen- como detentores dessa “vontade”? O
te ser compreendido como algo professor ainda destaca que o popu-
que emana do povo, pode-se lismo laclauniano não fecha conceito
apreender as experiências de governos e se restringe à representação de um
como o de Kirchner, na Argentina, e de líder. “Não possui um núcleo sedi-
Vargas e Lula, no Brasil, como clássicas mentado de princípios, e se apresen-
manifestações de governos populistas? ta aberto para as demandas advindas
Para o professor de Direito Constitu- das maiorias”, pontua, ao lembrar que
cional Samuel Martins, não. Ele explica tais demandas são mutáveis. Ele ainda
que “é difícil analisar conjuntamente pondera: “vale destacar que o modelo
um número tão grande de modelos, possui um lastro de cunho principioló-
que, inclusive, possuem diferenças ins- gico, que o autor indica nos conceitos
titucionais bastante claras entre si. Não de Estado Democrático de Direito e na
me parece que o autor tenha reconhe- 87
garantia dos direitos humanos, que
cido um regime historicamente dado ocupam um espaço de estabelecimen-
como a representação fidedigna da sua to de limites mínimos para o funciona-
proposta. Ainda que ele tenha apresen- mento do regime”.
tado o kirchnerismo e o lulismo como
novas formas de organização demo- Samuel Martins é doutorando em
crática na América Latina”, avalia, na Constituição, Cidadania e Direitos Hu-
entrevista concedida por e-mail à IHU manos pela Universidade Federal de
On-Line. Martins explica que, para Santa Catarina - UFSC. É professor de
Laclau, “um governo populista é aquele Direito Constitucional na Faculdade
fundado sobre uma identidade compar- Cesusc, em Santa Catarina, e coordena-
tilhada pelos indivíduos e grupos, que dor do Grupo de Pesquisa Constituição,
se utiliza de técnicas discursivas para a Democracia e Direitos Fundamentais.
manutenção da identidade e integrida- Entre suas publicações, está o artigo A
de do grupo”. revisão do conceito de populismo por
Ernesto Laclau: estratégias para a
É desse grupo que emerge a figura do
criação de um povo (Teoria & Pesquisa,
líder que não se insurge como “a voz”
2015) (o artigo está disponível em http://
do povo, mas como o representante
dessa “vontade popular”. Mas Lula e bit.ly/2t9PKYr ).
Nestor Kirchner não se anunciavam Confira a entrevista.

IHU On-Line – No que consis- do que venha a ser a razão populista cisão que é inerente ao conceito de
te a “razão populista” de Ernes- na obra de Ernesto Laclau neste mo- populismo, como um elemento que
to Laclau? Como o autor faz o mento, inclusive porque na própria é apresentado de forma problemáti-
atravessamento do conceito de obra que leva este título percebe-se ca desta temática. No entanto, para
povo ao conceito de populismo? uma resistência por parte do seu au- Ernesto Laclau, esta imprecisão é
Samuel Martins – Eu não teria tor em dispor este conceito de forma fundamental para a compreensão do
a pretensão de dispor um conceito lapidar. O autor destaca a impre- fenômeno do populismo, como tam-

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

bém da sua proposta. tucionalismo burocrático. pliação dos direitos políticos, que o
apresentavam de forma pejorativa,
Neste sentido, vou apenas indi- Aqui temos um ponto fundamen-
como a ascensão de uma massa ig-
car alguns elementos que considero tal na sua obra, segundo o próprio
nara, uma plebe desprovida de con-
marcantes na proposta metodológica autor: a tensão entre populismo e dições para o exercício da cidadania
de Laclau. A referência à metodolo- institucionalismo nunca estará por nos moldes previstos por uma racio-
gia já adianta uma interpretação, de completo resolvida. Isto porque a nalidade moderna de caráter elitista
que o livro A Razão Populista pode preponderância do populismo sem
e pouco inclusiva.
ser interpretado como uma propos- instituições pode desintegrar o teci-
ta analítica e teórica que possibilita do social, e, por outro lado, a valo- Em larga medida, é nesta biblio-
a sua aplicação na compreensão de rização do institucionalismo em de- grafia que devemos buscar os indí-
vários fenômenos políticos identi- trimento da soberania popular pode cios que vão marcar a identificação
ficados com o populismo. Assim, a resultar em um governo das coisas e dos fenômenos populistas como um
proposta me parece possuir um ca- não dos homens, a saber, em um ex- regime degradado, no qual o povo é
ráter analítico e teórico. cesso de burocratismo. apenas ludibriado por líderes caris-
máticos competentes para o manu-
No primeiro ponto vale destacar Por fim, a relação entre razão po-
seio das emoções populares ao seu
que o livro não possui intenção des- pulista, populismo e povo é carac-
bel prazer. Vale ressaltar que a aná-
critiva de processos historicamente terizada por uma perspectiva de
lise de Laclau avança quando o mes-
dados, mas pode ser entendido como caráter teleológico. Assim, segun-
mo destaca no estudo destes autores
uma proposta metodológica que do Ernesto Laclau, a razão populis-
sobre psicologia das massas, como
possibilita releituras destes proces- ta é uma lógica de constituição do
Gustave Le Bon , Hippolyte Taine
sos. Na dimensão teórica se encon- político, marcante em fenômenos
e Gabriel Tarde , quais elementos
populistas, como estratégia para a
tram contribuições significativas no eram indicados como pertinentes a
constituição de um povo, no sen-
referente à análise do discurso para um discurso bem sucedido peran-
tido jurídico e político do termo,
grandes eleitorados, assim o autor te grandes multidões, tais quais os
dentro de parâmetros de direcio-
apresenta sua conceituação mais eleitorados que foram ampliados no
namento para uma democracia ra-
88 completa do populismo, como uma
dicalizada e vinculada às garantias
século XX. Isto é, além de apontar
lógica política composta por relações o antidemocratismo bastante claro
dos direitos humanos.
de equivalência representadas hege- neste período, Ernesto Laclau bus-
monicamente através de significan- ca compreender suas formulações a
tes vazios; deslocamento de frontei- partir das técnicas discursivas utili-
ras internas mediante a produção de IHU On-Line – Quais os li-
zadas.
significantes flutuantes; e uma hete- mites e as potencialidades dos
conceitos de Laclau para com- Outra grande contribuição do autor
rogeneidade constitutiva que torna
preender o espaço político de se encontra no reconhecimento de
impossíveis as recuperações dialé-
nosso tempo? que os laços entre governantes e go-
ticas e confere à articulação política
vernados não são pautados apenas
sua verdadeira centralidade. Samuel Martins – A potenciali- pela razão, de modo que as emoções,
dade da proposta de Ernesto Laclau particularmente o afeto, podem ter
Teoria do Discurso é enorme. O funcionamento dos um papel contributivo na formação
regimes políticos democráticos foi do povo. E isso não como manifesta-
Ernesto Laclau é uma referência significativamente alterado com a
no estudo sobre Teoria do Discur- ção de manipulação irracional, mas
ampliação dos direitos políticos no como possibilidade de composição
so, assim seus estudos visam com- século XX, do que ocorreu a emer- de um laço libidinal na relação entre
preender quais são as técnicas do gência de um grande número de elei- o líder e os governados, e estes entre
discurso mais bem sucedidas para tores na esfera pública, isto é, com si. Neste ponto a influência de Freud
grandes públicos, como a repetição, possibilidade de participação do na formulação de Ernesto Laclau é
o uso das metáforas, a sugestiona- processo político por meio do voto.
bilidade, com vistas ao exercício da explícita.
Isto causou um intenso debate no
hegemonia política. Além disso, o âmbito da Ciência Política e também Uma terceira contribuição que po-
autor também contribui ao enfocar do Direito Constitucional sobre qual demos destacar são as estratégias
a tensão inerente entre populismo seria o comportamento deste gran- para a formação da ideia de grupo,
versus institucionalismo, questão de eleitorado no processo político. comunidade, ou sociedade. Isto é, a
fundante para a Teoria da Consti- Em revisão bibliográfica no decorrer construção da referência ao nós e a
tuição, na tentativa de formulação da obra, Ernesto Laclau apresen- eles. Laclau identifica que elemen-
de estratégias para a revitalização ta como a emergência deste grande tos de identidade são fundamentais
da soberania popular em regimes eleitorado no processo político ense- para a formação da noção de grupo,
democráticos contemporâneos, de- jou resistência por parte de teóricos, para tal ele propõe discursos com
masiadamente marcados pelo insti- marcadamente reacionários à am- base nas lógicas de equivalência,

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que são critérios compartilhados por o autor apresenta uma contribuição que tal utilização tenha o sentido do
vários indivíduos que possibilitam a significativa para os estudos das Te- seu reconhecimento.
formação de um grupo. E, visando orias Contemporâneas da Democra-
distinguir um grupo, comunidade ou cia, pois em oposição aos regimes Um conceito que vai corroborar
sociedade, de outro, o autor propõe autoritários que trabalham com a positivamente nesta relação entre
pretensão do absoluto, ou do mono- indivíduo e grupo no pensamento
a estratégia da lógica de diferencia-
pólio a respeito de quem falará em de Ernesto Laclau é o conceito de
ção, para a delimitação em relação a
nome do povo, o trabalho de Ernesto demanda, um interesse comparti-
membros não integrantes do grupo.
lhado por um número de pessoas
Laclau dispõe que os significantes
a ponto de constituir uma coletivi-
Significantes flutuantes e flutuantes e os significantes vazios
dade. Comparativamente podemos
significantes vazios possuem uma importante função de
assinalar o seguinte: se para uma
não suprimir a política no modelo
Tal quadro é essencial em função análise estruturalista de viés mar-
institucional democrático. xista será na economia e nos espaços
da heterogeneidade que é inerente
às sociedades contemporâneas, que Ainda assim, o autor defende os pa- ocupados no modo de produção que
apresentam um alto grau de plura- radigmas do Estado Democrático de as pessoas encontrarão um elemen-
lismo. Neste aspecto, o autor destaca Direito e a garantia dos direitos hu- to de formação de identidade, para
o papel dos significantes flutuantes, manos como referências discursivas Ernesto Laclau esta possibilidade
passíveis de serem utilizadas na for- identitária é marcada pela demanda
que delimitam de forma tênue e am-
mação de um povo. Neste aspecto, reconhecida como relevante por um
bulatória as referências entre o nós
talvez seja possível uma objeção ao grande número de pessoas, não di-
e o eles. O fato do significante ser
seu trabalho, que certamente mere- retamente decorrente das estruturas
flutuante e objeto de disputa signi-
fica uma abertura que possibilita o cerá uma análise cuidadosa no futu- econômicas.
exercício da política nas sociedades ro, qual o potencial de os direitos hu-
Ainda assim não estaremos tra-
democráticas, a possibilidade de os manos alcançarem as maiorias neste
tando de uma massa, no máximo
discursos de identidade serem refor- projeto? Ainda que isto pareça um
estaremos visualizando o trabalho
mulados no decorrer das lutas polí- ceticismo extremado da minha par-
de um grupo, no qual cada indiví-
te, não podemos nos esquecer que a 89
ticas. duo apresenta consciência de seu
garantia dos direitos humanos, via
comportamento para a formação
Neste mesmo contexto, referen- de regra, é contramajoritária, tra-
de um movimento maior com vistas
te às questões sobre política e de- ta-se de um conjunto de postulados
ao exercício da hegemonia. Neste
mocracia, Ernesto Laclau também para a defesa dos vulneráveis, em re- aspecto, a razão populista pode ser
apresenta a função dos significantes gra, despidos de poder. Certamente, compreendida com a lógica política
vazios, que possibilitam o reconhe- não se trata de uma missão impos- de articulação de várias demandas
cimento de elementos não estáticos sível, mas que precisa ser objeto de para se exercer a hegemonia até se
na base de identidade desta orga- mais atenção. alcançar o reconhecimento compar-
nização jurídico-política. Segundo
tilhado de uma concepção de povo.
o autor, mais do que reconhecer a
existência de significantes vazios, IHU On-Line – Como Laclau Povo
que serão disputados na formulação constitui a ideia de grupo e in-
do povo, é importante que estes sig- divíduos? Quais os desafios A palavra povo também não pode
nificantes vazios sejam instituídos a para se pensar o indivíduo den- ser confundida com massa, nem
partir de uma lógica política populis- tro dessa massa? mesmo com população, pois se tra-
ta com vistas à hegemonia. ta de uma categoria jurídico-política
Samuel Martins – Inicialmente,
que é fundante da concepção de Es-
Nessa formulação fica claro o viés é importante destacar que a expres-
tado contemporâneo. Para Laclau, o
pós-estruturalista da análise de Er- são massa é carregada de sentido
conceito de povo é um significante
nesto Laclau, que evita a identifica- pejorativo, como se o indivíduo es-
vazio que precisa ser instituído por
ção de uma única estrutura, ou um tivesse absolutamente despido da
movimentos com pretensão hege-
único grupo, como responsáveis pela sua consciência pessoal e apenas in-
mônica. E por que um significante
manutenção de toda a organização tegrasse este ente coletivo que é de-
vazio? Justamente para se evitar
social. Se não existe uma estrutura nominado de massa. Não me parece
concepções totalizantes que a des-
específica, será na palavra, ou mais que tal conceito encontra um res- peito do seu conteúdo podem dar
marcadamente, no discurso, que o paldo positivo na análise de Laclau, ensejo a movimentos de vieses auto-
autor enfocará a possibilidade de certamente ele se refere a tal concei-
ritários.
composição de uma identidade po- to, mas na condição de analista dos
pular e de uma identidade democrá- doutrinadores que escreviam sobre Neste aspecto, destaca-se uma ca-
tica, expressões que o autor compre- esta temática no decorrer do século racterística democrática importan-
ende como sinônimas. Neste ponto XIX e XX, mas não podemos indicar tíssima no pensamento do autor. Na

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medida em que o conceito de povo sua reforma. cilmente instrumentalizável, como


é um significante vazio, o mesmo também por se utilizar de conceitos
Não tenho clareza de que o autor
será objeto de disputa política sobre como demandas, significantes flu-
aborda a diferenciação entre líderes e
quem poderá exercer este espaço de tuantes e significantes vazios. Todos
representantes do povo, com exceção
nomeação e enunciação em nome esses possibilitam o reconhecimento
de casos extremos de líderes que não
do povo. Segundo Ernesto Laclau, o de toda a pluralidade que é inerente
possuem nenhuma identificação com
conceito de povo é indissociável do às sociedades contemporâneas mar-
o povo. Me parece muito difícil sepa-
conceito de heterogeneidade, dificil- cadas por altíssima complexidade.
rar a figura de líderes das figuras de
mente a categoria jurídico-política
representantes do povo, não me pare- O fato já citado de o autor identifi-
povo vai conseguir abranger efeti-
vamente todo o grupo de indivíduos ce que sejam conceitos excludentes. car o conceito de povo como um sig-
dentro de determinado território. nificante vazio dá uma característica
Samuel Martins – Em análise
Mas é justamente esta disputa sobre pós-fundacional à sua proposta, se-
panorâmica dos Estados Nacionais,
quem vai integrar a categoria povo gundo a qual não existe uma prece-
é possível identificar que uma gran-
que dá à sua proposta um viés de- dência do povo antes do surgimento
de parte da disputa política ocorreu
mocrático inafastável. do Estado, como defende o liberalis-
para definir quem poderá falar em
mo de viés contratualista. Este mo-
nome do povo. No romantismo revo-
delo liberal apresenta seus limites ao
lucionário francês do século XVIII,
dispor o povo como uma típica tra-
IHU On-Line – Como, a partir autores como Abade de Sieyès e
dição inventada, expressão de Hobs-
de Laclau, compreender o pa- Jean Jacques Rousseau disputaram
concepções divergentes sobre esta bawm , para justificar o exercício
pel do líder político? Em que
questão. O primeiro defendendo a do poder, que marcadamente será
medida ele reitera a esperança
concepção de soberania nacional, exercido por aqueles que se incluem
no sistema de representação
quando o poder seria transferido do como representantes deste povo ide-
política, a partir da eleição de
eleitorado para o Poder Legislativo, alizado em exclusão dos demais gru-
líderes e ou representantes do
e o segundo defendendo a concep- pos. Ao defender que o povo seja ins-
povo?
ção de soberania popular, quando tituído como significante vazio como
90 Samuel Martins – Diferente- o povo exerce de maneira mais di- parte de uma proposta hegemônica,
mente de estudos tradicionais sobre retamente sua vontade, com nítida o autor indica que a concepção de
o populismo, que valorizam a figura crítica à democracia representativa, povo é um objeto de luta política. E
do líder carismático, na obra de Er- mas sem apresentar muitas soluções desconsiderar tal informação, como
nesto Laclau a ênfase ocorre sobre sobre como o povo iria exercer di- o faz a Teoria Liberal, não suprime
o discurso que é enunciado por este retamente o seu poder em grandes sua importância, apenas impede a
líder. Isto é, muito mais do que uma eleitorados. Neste contexto, a demo- sua melhor compreensão.
característica pessoal de carisma, se- cracia semidireta ainda não estava
rão justamente as técnicas utilizadas devidamente elaborada.
na composição dos discursos que IHU On-Line – Se o poder
poderão potencializar a figura deste A questão sobre quem falará em emana do povo, como, a partir
líder, sem dúvida carismático, mas nome do povo é central no debate de Laclau, compreender fenô-
não exclusivamente isto. democrático desde o advento dos menos da política contemporâ-
Estados contemporâneos. Se este nea como a eleição de Donald
A confiança do autor no sistema de enunciador que fala em nome do Trump , a saída da Inglaterra
representação política precisa ser povo efetivamente trabalha repre- da União Europeia e até mes-
compreendida com um certo cui- sentando os interesses das maiorias, mo a onda de governos mais
dado, e nos indica a necessidade de isto é outra questão. Por exemplo, conservadores que parecem
retomar a tensão entre populismo até mesmo o constitucionalismo au- ter tomando a América Latina
versus institucionalismo. Isto por- toritário brasileiro, seja Francisco
e Europa?
que a representação política é uma Campos na década de 40, ou os Mi-
instituição, e poderá ocorrer uma litares na década de 60, falavam em Samuel Martins – Inicialmente
vontade popular não convergente nome do povo, isto é, grandes tira- é importante evitar a separação bi-
com os interesses do representante nos falaram em nome do povo. Tudo nária entre movimentos populistas
político. Ou seja, a obra analisada isto traz uma grande plurivocidade bons e movimentos populistas ruins,
não apresenta a ruptura institucio- que dificulta a análise dos regimes não é esta a proposta de Ernesto La-
nal em um horizonte a curto prazo, democráticos. Neste aspecto a pro- clau, o que não impede a diferencia-
por outro lado não nega a possibili- posta de Ernesto Laclau pode con- ção entre os movimentos supracita-
dade de a tensão supracitada crescer tribuir para os estudos a respeito das dos. A metodologia do discurso para
a níveis insuportáveis para o dese- Teorias das Democracias contempo- grandes grupos de eleitores pode ser
nho institucional já definido, do que râneas, ao se afastar da idealização aplicada tanto na garantia dos direi-
poderá decorrer a necessidade da do povo, que tornaria o conceito fa- tos humanos, como é a proposta de

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Ernesto Laclau, como também para se darem conta da situação. Veja aqueles que lhes são exteriores.
que grupos conservadores alcancem que isto é uma contradição profunda
o poder, como foi o caso da eleição Vale destacar, no entanto, que o
sobre os institutos de consulta po-
modelo possui um lastro de cunho
de Donald Trump. pular previstos pelo Direito Consti-
principiológico, que o autor indica
tucional, sejam eleições, plebiscitos
Neste ponto, vale destacar que os nos conceitos de Estado Democrático
ou referendos, pois os eleitores vão
discursos de viés autoritário são de Direito e na garantia dos direitos
às urnas no meio deste turbilhão de
mais facilmente instrumentalizados humanos, que ocupam um espaço de
discursos, envoltos em argumen-
para alcançar os grandes grupos, estabelecimento de limites mínimos
tos verdadeiros, pós-verdade e até
isto porque tais enunciados são ca- para o funcionamento do regime, de
mesmo mentiras que são produzi-
racterizados por serem simplistas. modo a evitar sua desintegração pelo
das conscientemente, e muitas vezes
Vejamos como exemplo a discussão exercício constante do voluntarismo
exercem seu direito de voto e depois
sobre segurança pública: em uma popular. Não me parece que já te-
se arrependem dos resultados majo-
perspectiva democrática se trata de nhamos presenciado um regime po-
um debate difícil, que envolve a ga- ritários proferidos. lítico idêntico a este apresentado por
rantia dos direitos dos acusados, o Assim, a contribuição da obra de Ernesto Laclau, ainda que o mesmo
devido processo legal, a não presun- Ernesto Laclau para a compreen- tenha demonstrado reconhecimento
ção de culpabilidade, o papel residu- são destes fenômenos encontra-se positivo por algumas experiências na
al que deve caber ao direito penal nas nos seus inúmeros estudos sobre o América Latina, durante os governos
sociedades democráticas; por outro discurso. E como este instrumento Kirchner na Argentina e o governo
lado, o discurso autoritário resolve possui técnicas que, devidamente Lula no Brasil. E o mesmo seja uma
a questão com um simples slogan – utilizadas, podem auxiliar na defesa influência clara em movimentos pro-
“bandido bom é bandido morto”. de regimes políticos democráticos, gressistas na Europa, como é o caso
como ele propõe, ou para compre- do Podemos na Espanha.
Qual dos dois discursos é mais facil-
mente difundido? Certamente o se- ender a ascensão de grupos de cla- O autor indica que a tensão entre
gundo. E a sofisticação do marketing ro viés autoritário no poder, como é populismo versus institucionalismo
político tem se aproveitado disso, o caso da eleição de Donald Trump é nuclear no seu conceito de popu-
muito mais do que os grupos que atu- nos EUA. lismo. Ele não resolve esta equação 91
am no campo progressista. Particu- de forma estanque, nem exclui de
larmente a eleição de Donald Trump forma absoluta nenhum desses dois
teve entre seus mentores o Roger IHU On-Line – No que consis- elementos, ainda que seja possível
Stone , um publicitário que expres- te um governo populista? Quais identificar uma clara opção pelas
samente se utiliza do ódio, da xeno- as questões de fundo que o sus- demandas populares em detrimento
fobia e da mentira como instrumento tentam em termos de perspec- do institucionalismo. Para Ernesto
de trabalho para alcançar os grandes tiva política e democrática? E Laclau, o segundo apenas apresen-
grupos. Como ele mesmo expõe, em quais os limites de um governo ta serventia em relação ao primeiro
sistemas eleitorais majoritários a populista? elemento, em clara opção por uma
única coisa que importa é a obtenção diretriz de democracia radicalizada.
Samuel Martins – Na perspec-
das maiorias nas urnas, independen-
tiva de Ernesto Laclau, um governo
temente do que se faça para se alcan-
populista é aquele fundado sobre
çar tal objetivo. Neste contexto, a ex- IHU On-Line – Podemos as-
uma identidade compartilhada pelos
pressão “pós-verdade”, cunhada pela sociar a ideia de populismo
indivíduos e grupos, que se utiliza de
Universidade de Harvard no ano de em Laclau ao kirchnerismo?
técnicas discursivas para a manu-
2016, tem merecido muita atenção, Por quê? E podemos conside-
tenção da identidade e integridade
pois estes processos em larga esca- rar o varguismo , o lulismo e
do grupo. Disto resultarão identida-
la estão se aproveitando do excesso até mesmo o trumpismo como
des populares que o autor identifica
de informações para criar dificulda- perspectivas de governos popu-
como identidades democráticas. Tal
des para o eleitorado, de modo que listas? Por quê?
modelo não possui um núcleo sedi-
as propostas simplistas sejam mais
mentado de princípios, e se apre- Samuel Martins – É difícil ana-
facilmente assimiladas e possuam
senta aberto para as demandas ad- lisar conjuntamente um número tão
maior poder de convencimento.
vindas das maiorias, que, inclusive, grande de modelos, que, inclusive,
No caso do Brexit, isto foi impres- disputam entre si a hegemonia na possuem diferenças institucionais
sionante; no mesmo dia que foi pro- definição dos significantes supra- bastante claras entre si. Não me pa-
clamado o resultado, inúmeros gru- citados, sejam dos significantes va- rece que o autor tenha reconhecido
pos começaram a sair nas ruas para zios, como é o caso do povo, como um regime historicamente dado
indicar seu descontentamento com o também dos significantes flutuantes, como a representação fidedigna da
resultado, inclusive muitos indivídu- que vão estabelecer fronteiras en- sua proposta. Ainda que ele tenha
os dizendo que haviam votado sem tre os integrantes desta sociedade e apresentado o kirchnerismo e o lu-

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lismo como novas formas de orga- ceito de hegemonia é central na sua lista para a qualificação das de-
nização democrática na América perspectiva, e foi difundido a partir mocracias contemporâneas? E
Latina. Certamente a proposta de da publicação da sua obra Hegemo- no que consiste esse elemento?
Donald Trump não se enquadra na nia e estratégia socialista, em 1985,
Samuel Martins – A proposta
concepção de Ernesto Laclau pela que, felizmente, foi lançada em ver-
apresentada por Ernesto Laclau tem
sua clara opção contrária aos direi- são brasileira tardia em 2015 .
um grande potencial para países com
tos fundamentais. grandes eleitorados, pois se trata de
Hegemonia é um conceito de tra-
Assim, ainda que não possamos dição marxista que o autor recupera um desafio que decorreu da amplia-
identificar a sua proposta como um a partir de Antonio Gramsci , e pode ção dos direitos políticos no século
normativismo forte, é inegável que a ser compreendido como um conjun- XX e que foi pouco equacionado por
verificação dos elementos do Estado to de estratégias para se alcançar o movimentos progressistas e muito
Democrático de Direito e a garantia exercício do poder de forma hegemô- capitalizado por movimentos con-
dos direitos humanos se dispõem nica, isto é, predominante no âmbito servadores e extremistas. Em função
como importantes instrumentos da sua esfera de atuação. O conceito das dificuldades inerentes a proces-
analíticos para verificar se estes go- de hegemonia é indissociável da pro- sos deste tipo, o Direito Constitu-
vernos que se utilizam de uma rela- posta de radicalização da democracia cional nas últimas décadas destacou
ção mais direta entre governantes e presente na obra dos autores estuda- a função dos tribunais como garan-
governados, pautados inclusive por dos, que visa a incorporar demandas tidores dos regimes democráticos.
elementos de afeto, possuem um de distribuição e de reconhecimento Tal modelo tem apresentado seus
viés democrático, ou se a utilização na sua pauta de luta política. limites, sobretudo em função do es-
das maiorias nestes casos possui vaziamento dos espaços de interlocu-
apenas tendências demagógicas. ção entre governantes e governados,
Populismo e hegemonia não são fortalecimento do institucionalismo
conceitos antagônicos na sua pro- e enfraquecimento da democracia.
IHU On-Line – Hegemonia posta, pelo contrário. As duas obras
que lhes são correspondentes, Hege- Acredito que o trabalho analisa-
parece ser um conceito caro a
92 Laclau. Como ele o compreen- monia e Estratégia Socialista (1985) do tem potencial para pesquisas
e Razão Populista (2005) são abso- e estudos com vistas ao desenvol-
de? E o populismo seria capaz
lutamente complementares, com vimento de uma Teoria da Demo-
de fazer frente ao hegemônico?
isto podemos indicar que o populis- cracia que enfatiza o interesse das
Por quê?
mo é uma lógica política que visa ao maiorias no funcionamento dos
Samuel Martins – Os trabalhos exercício da hegemonia. regimes políticos, e a proposta
de Ernesto Laclau e de parceira com também pode trazer instrumentos
Chantal Mouffe são caracterizados estratégicos para a busca por resul-
pela valorização da política como es- IHU On-Line – Qual a impor- tados eleitorais mais satisfatórios
paço de disputa e consensos. O con- tância de um elemento popu- para os grupos progressistas.■

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Bergoglio e Trump: duas formas


particulares de populismo
Para Massimo Faggioli, tanto o papa como o presidente dos EUA
podem ser considerados com uma perspectiva política de
orientação populista. Porém, completamente diferentes entre si
João Vitor Santos | Tradução: Ramiro Mincato

P
ara Ernesto Laclau, o populismo um populismo teológico. Há a centrali-
tem origem no desejo do povo de dade da ideia de ‘povo’ e ‘povo de Deus’
contrapor uma lógica de poder na teologia e eclesiologia do papa Fran-
institucionalizada. Na política de nosso cisco”, pontua. Para Faggioli, são duas
tempo, dois líderes têm chamado aten- lideranças paralelas e opostas entre si.
ção: o presidente dos Estados Unidos,
Massimo Faggioli é doutor em His-
Donald Trump, eleito apesar de mui-
tória da Religião, professor de teologia
tos considerarem sua candidatura uma
e estudos religiosos da Universidade de
piada, e Mario Bergoglio, o cardeal ar-
Villanova, na Filadélfia, Estados Uni-
gentino que no conclave era um verda-
dos, e editor colaborador da revista
deiro azarão. Para o doutor em História
Commonweal. Atuou na Universida-
da Religião Massimo Faggioli, os dois
de de St. Thomas, Minnesota, Estados
podem ser considerados como uma
manifestação do populismo. Entretan- Unidos até 2016. Entre suas publica- 93
to, mesmo sem entrar no conceito de ções, destacamos Vaticano II: A luta
Laclau, destaca que são diferentes dos pelo sentido (São Paulo: Paulinas,
outros populismos, “especialmente da- 2013) e True Reform: Liturgy and Ec-
queles da América Latina”. clesiology in Sacrosanctum Concilium
(Liturgical Press, 2012). Recentemente
Faggioli explica, na entrevista conce- publicou La onda larga del Vaticano
dida por e-mail à IHU On-Line, que o
II: Por un nuevo posconcilio (Ediciones
trumpismo “é um determinado tipo de
Universidad Alberto Hurtado, 2017).
populismo porque rejeita a elite políti-
Também é autor do artigo “Gaudium
ca e cultural dominante. Mas é uma for-
et Spes” 50 anos depois: seu sentido
ma particular de populismo, porque se
para uma Igreja aprendente, publi-
encaixa no contexto norte-americano,
cado no Cadernos de Teologia Pública
onde a rejeição das elites está ligada à
número 95, disponível em http://bit.
ideia de reconquistar a América ‘cristã
ly/2pY55hk.
e branca’ das mudanças ocorridas nas
últimas décadas”. A entrevista publicada nas Notícias do
Dia de 25-7-2017, no sítio do Instituto
Já o populismo do papa Francisco, se-
Humanitas Unisinos – IHU, disponível
gundo o professor, pode ser visto como
uma lógica diferente da de Trump. “O em http://bit.ly/2fm4pi7.
populismo de Bergoglio é antes de tudo Confira a entrevista.

IHU On-Line – Pode-se tomar mo é um determinado tipo de popu- ocorridas nas últimas décadas, sim-
o trumpismo1 como uma forma lismo porque rejeita a elite política e bolizada pela eleição de Barack Oba-
de populismo? Por quê? cultural dominante. Mas é uma for- ma2, em 2008 .
Massimo Faggioli – O trumpis- ma particular de populismo, porque O populismo de Trump não tem a
se encaixa no contexto norte-ameri-
1 Trumpismo: referente ao estilo de governo do atual
cano, onde a rejeição das elites está 2 Barack Obama [Barack Hussein Obama II] (1961):
presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que pau- ligada à ideia de reconquistar a Amé- advogado e político estadunidense. Foi o 44º presidente
ta suas ações em políticas nacionalistas conservadoras de dos Estados Unidos, tendo governado o país entre 2009 e
extrema-direita. (Nota da IHU On-Line) rica “cristã e branca” das mudanças 2017. (Nota da IHU On-Line)

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ver apenas com o conceito de classe na sua gênese, orienta o pontificado trumpismo contra as elites culturais
(das classes mais baixas que se re- de Francisco numa direção similar: e cosmopolitas. O trumpismo é um
voltam contra a elite), mas também tornar o catolicismo mais global e dos sinais do fim do “século ameri-
com a experiência americana de raça menos dependente do Ocidente (in- cano” e do medo de um certo tipo de
(brancos, como ex-maioria, con- cluindo os Estados Unidos). É uma América diante do mundo. Trump
tra afro-americanos e latinos), com passagem histórica inevitável, mas foi eleito também pelos “blue-collar
a ideia religiosa da América como não é uma manobra sem risco, nem workers” derrotados pela globali-
“God’s country”3 (com uma primo- para os EUA, nem para a igreja glo- zação; mas o movimento cultural e
genitura do protestantismo branco bal. ideológico que elegeu Trump tem
em relação às outras denominações raízes antigas e não se preocupa com
cristãs e outras religiões), com a o destino dos derrotados pela globa-
suposição do excepcionalismo ame- IHU On-Line – O modo de lização.
ricano de uma especial missão da Bergoglio posicionar-se, tanto
América no mundo. Neste sentido, o nos assuntos de igreja como em
populismo de Trump é diferente dos matérias para além dos muros IHU On-Line – Qual é a sua
outros populismos, especialmente do Vaticano, revela uma pers- avaliação do governo de Do-
daqueles da América Latina. pectiva populista? Por quê? nald Trump até agora?
Massimo Faggioli – Francisco Massimo Faggioli – Um grande
evitou, desde o início, criar um cír- sucesso com a nomeação de um juiz
IHU On-Line – De que manei- culo de “bergoglianos” em Roma, conservador, branco e cristão para o
ra o trumpismo se coloca em embora suas nomeações episcopais Supremo Tribunal Federal; uma sé-
uma lógica diametralmente sejam de um determinado tipo, pró- rie de fracassos em todas as outras
oposta à lógica defendida por ximas ao seu modelo ideal de bispo. questões (reforma da saúde, reforma
líderes como o papa Francisco? Mas Francisco sempre evidenciou fiscal); uma série de terríveis des-
Massimo Faggioli – Penso que também sua crítica e sua distância regulamentações em matéria am-
se trata de dois populismos diferen- de um certo estilo de vida clerical e biental; nenhuma ideia de política
tes: primeiro, porque o populismo episcopal, declarando-se como al- externa. Mas a realidade é que o go-
94 guém do povo, e não como alguém do
de Bergoglio é antes de tudo um po- verno federal está paralisado porque
pulismo teológico. Há a centralidade mundo clerical. Neste sentido, pode a família Trump não está interessada
da ideia de “povo” e “povo de Deus” parecer populista. Mas sua visão da em governar o país, e o partido re-
na teologia e eclesiologia do papa Igreja Sinodal pressupõe uma visão publicano, que sustenta Trump, não
Francisco. Em segundo lugar, o po- das várias componentes da igreja, o é capaz de governar o país. O verda-
pulismo trumpiano tem em mente que não é uma visão populista. deiro problema é que não há partido
uma retomada da centralidade de de oposição: o Partido Democrata
uma parte muito específica do povo precisa ser reconstruído.
IHU On-Line – O que, de fato,
americano em detrimento do resto:
Donald Trump revelou ao mun-
é aqui que encontra seu caminho de
do quando retirou os EUA do IHU On-Line – Como analisar
rejeição pelo “politicamente corre-
Acordo de Paris4 e endureceu o encontro de Donald Trump
to”. Isso porque o populismo trum-
sua relação com os imigrantes, com o papa Francisco?
piano é herdeiro da ideia da supre-
arrolando-se em uma lógica na-
macia do povo e da experiência dos Massimo Faggioli – Seria dema-
cionalista? Qual é o grande pro-
EUA na história mundial. Estes são siado otimista esperar uma mudança
blema subjacente que liga essas
elementos bem diferentes da ideia nas relações entre o papa Francisco
ações?
de “povo” que Bergoglio possui. e o presidente Trump, por causa da
Massimo Faggioli – Acredito descoberta milagrosa de um terreno
que a grande questão subjacente comum que antes era invisível. Da
IHU On-Line – Como o trum- seja o medo de ver os Estados Uni- parte de alguns católicos americanos
pismo impacta o pontificado de dos transformar-se em um país mul- houve uma tentativa – ideológica –
Bergoglio e vice-versa? ticultural, multirracial e multirreli- de mostrar um entendimento entre
gioso. A rejeição do Acordo de Paris Francisco e Trump: mas somente
Massimo Faggioli – Trata-se de
é nada mais que uma declaração do dias depois houve o anúncio da reti-
duas lideranças paralelas e opostas
entre si, de duas solidões diferen- rada do Acordo de Paris... O encon-
4 Acordo de Paris: é um tratado no âmbito da Conven-
tes. A presidência de Trump está ção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do tro entre Trump e Francisco no Vati-
Clima (UNFCCC - sigla em inglês), que rege medidas de cano não foi um armistício, mas um
redefinindo e reduzindo a liderança redução de emissão dióxido de carbono a partir de 2020.
global dos EUA e é interessante ver O acordo foi negociado durante a COP-21, em Paris e foi abrandamento da parte do Vaticano
aprovado em 12 de dezembro de 2015. O líder da con-
como isso, de certa forma, é o que, ferência, Laurent Fabius, ministro das Relações Exteriores na tentativa de manter aberto um
da França, disse que esse plano “ambicioso e equilibrado”
foi um “ponto de virada histórica” na meta de reduzir o
importante canal de comunicação
3 País de Deus, em tradução livre. (Nota da IHU On-Line) aquecimento global. (Nota da IHU On-Line) com a América. Mas ninguém fazia

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ilusões a respeito dos resultados do tos de reforma de Francisco? tão proveitosa como deveria. Ele repre-
encontro. Como imagina que essa mu- senta uma voz moderada que poderia
dança ressoe? trazer uma nova maneira de lidar com
as complexas questões levantadas por
“O populismo
Massimo Faggioli – A longo
prazo, as questões mais importantes um catolicismo recentemente globali-
zado; um novo modelo de cooperação
trumpiano tem são duas. A primeira diz respeito ao
futuro papel da CDF: por um lado, com o resto da Cúria e com as Confe-
rências Episcopais; um novo papel da
em mente uma a CDF foi o exemplo mais visível da
paralisação das congregações da Cú- Comissão Teológica Internacional; so-

retomada da ria sob Francisco. Em quatro anos,


desde março de 2013, a CDF publicou
bretudo, uma nova maneira de a CDF
trabalhar com o papado.
centralidade de apenas dois documentos (menores):
um papel completamente diferente
Mas tudo isso faz parte do futuro
da Cúria Romana, em uma igreja
uma parte mui- da CDF sob João Paulo II7 e Bento
XVI8. É um desenvolvimento come-
onde o “orbis” está crescendo longe

to específica morado por muitos na Igreja, porque


veem como, finalmente, não estão
da “urbs”. Parte do “orbis” é tam-
bém a SSPX10, e veremos como o

do povo ameri- mais sujeitos a uma voz institucio-


nalmente poderosa do Magistério ao
arcebispo Ladaria, sucessor do car-
deal Müller na função de presiden-
cano em detri- lado do Papa e dos bispos, de algum
modo superior e soberana em relação
te da Pontifícia Comissão “Ecclesia
Dei”, irá abordar as negociações
mento do resto” aos bispos locais e às conferências com o grupo cismático: interessante
que o cardeal Müller representasse
episcopais.
a defesa do Vaticano II e a necessi-
Por outro lado, se a CDF, tendo como dade para a SSPX de aceitar os ensi-
prefeito Ladaria9, vai continuar a traba-
namentos do Concílio.
IHU On-Line – Come vê o Pon- lhar, enquanto congregação, como es-
tificado de Francisco, depois de tava trabalhando sob Francisco. Assim, A segunda questão é burocrática 95
a nomeação de Ladaria poderia não ser -institucional. Francisco decidiu não
quatro anos na condução da
renovar o mandato de cinco anos
Santa Sé? O que significa a sa- 7 Papa João Paulo II (1920-2005): Sumo Pontífice da Igre- para o cardeal Müller. Se Francisco
ída do cardeal Müller5 da Con- ja Católica Apostólica Romana e soberano da Cidade do
Vaticano de 16 de outubro de 1978 até sua morte. Teve decidisse aplicar os cinco anos a to-
gregação para a Doutrina da Fé o terceiro maior pontificado documentado da história,
dos os postos da Cúria, poderia ser
reinando por 26 anos, depois dos papas São Pedro, que
- CDF6? Estes são os movimen- reinou por cerca de trinta e sete anos, e Pio IX, que reinou
uma verdadeira e própria revolução
por trinta e um anos. Foi o único Papa eslavo e polaco até
a sua morte, e o primeiro Papa não-italiano desde o neer- a aplicação do princípio geral de que
5 Dom Gerhard Ludwig Müller (1947): cardeal, ex-pre- landês Papa Adriano VI em 1522. (Nota da IHU On-Line)
feito da Congregação para Doutrina da Fé. Foi ordenado 8 Bento XVI, nascido Joseph Aloisius Ratzinger (1927): padres e bispos servem na Cúria, sa-
presbítero da Diocese de Mainz a 11 de fevereiro de 1978 foi papa da Igreja Católica e bispo de Roma de 19 de abril
e nomeado bispo de Ratisbona a 1º de outubro de 2002. de 2005 a 28 de fevereiro de 2013, quando oficializou sua bendo que voltarão para suas Igrejas
Deixou a diocese para assumir vários cargos da Cúria Ro- abdicação. Desde sua renúncia é bispo emérito da Diocese ou Comunidades locais ou para ou-
mana com a nomeação a 2 de julho de 2012. Em 2017, de Roma, foi eleito, no conclave de 2005, o 265º Papa,
deixou a Congregação para Doutrina da Fé depois de o com a idade de 78 anos e três dias, sendo o sucessor de tro ministério.■
papa Francisco não ter renovado seu mandato. (Nota da João Paulo II e sendo sucedido por Francisco. (Nota da
IHU On-Line) IHU On-Line)
6 Congregação para a Doutrina da Fé: a mais antiga das 9 Luis Francisco Ladaria Ferrer (1944): teólogo jesuíta 10 Sociedade de São Pio X: também informalmente co-
nove congregações da Cúria Romana, um dos órgãos do espanhol, professor da Universidade Gregoriana de Roma nhecido como SSPX ou FSSPX, é uma fraternidade sacer-
Vaticano. Fundada pelo papa Paulo III, em 21 de julho de e nomeado pelo papa Bento XVI secretário da Congrega- dotal internacional fundada em 1970 pelo arcebispo fran-
1542, com o objetivo de defender a Igreja da heresia. É ção para a Doutrina da Fé. Foi sagrado arcebispo em 26 cês Marcel Lefebvre. A sociedade é conhecida por rejeitar
historicamente relacionada com a Inquisição. Até 1908, de julho de 2008. De sua obra, em português, citamos O muitas das reformas eclesiásticas influenciadas ou institu-
era denominada como Sacra Congregação da Inquisição Deus Vivo e Verdadeiro: o Mistério da Trindade (São Paulo: cionalizadas pelo Concílio Vaticano II com a reivindicação
Universal quando passou a se chamar Santo Ofício. Em Loyola, 2005). Em 2017, foi designado pelo papa Francis- de manter a ortodoxia e a pureza doutrinária entre seus
1967, uma nova reforma, durante o pontificado de Paulo co como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé seguidores. O atual Superior Geral da Sociedade é o Bispo
VI, mudou para o nome atual. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) Bernard Fellay. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 508
TEMA DE CAPA

Leia mais
- Por trás do trumpismo, a degeneração estadunidense. Artigo de Massimo Faggioli, re-
produzido nas Notícias do Dia de 22-7-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2txnEqk.
- Diante de Donald, o imperador, o Papa Francisco está mais sozinho. Artigo de Massi-
mo Faggioli, reproduzido nas Notícias do Dia de 23-1-2017, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2uv44iM.
- Papa Francisco nos EUA - Uma avaliação. “Sem filtros e sem intérpretes”. Entrevista
especial com Massimo Faggioli, publicada nas Notícias do Dia de 7-10-2015, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2urtrCh.
- Francisco: o primeiro Papa totalmente pós-Concílio. Entrevista com Massimo Faggioli,
publicada na revista IHU On-Line, número 465, de 18-5-2015, disponível em http://bit.ly/2tx-
fM8c.
- “O tesouro da Igreja reside no Evangelho, e não em uma determinada cultura católica
ou em uma determinada ideia católica do passado”. Entrevista especial com Massimo
Faggioli, publicada nas Notícias do Dia de 12-7-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em http://bit.ly/2txg8vy

96 Leia mais sobre Ernesto Laclau


- Ernesto Laclau. O intelectual dos debates e combates. Reportagem publicada no jornal
argentino Página/12 e reproduzida nas Notícias do Dia de 15-5-2014, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2veEhK3
- Morre o teórico argentino Ernesto Laclau. Reportagem do Jornal Zero Hora e reproduzi-
da nas Notícias do Dia de 14-5-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dispo-
nível em http://bit.ly/2veQJtn
- Ernesto Laclau. Populismo e hegemonia. Artigo Eduardo Rinesi, reitor da Universidade
Nacional de General Sarmiento (Argentina), publicado por Página/12 e reproduzido nas
Notícias do Dia de 15-5-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2uiJZNJ.
- A influência de Laclau e Mouffe no Podemos: hegemonia sem revolução. Artigo de
Miguel Sanz Alcántara, publicado por LibreRed e reproduzido nas Notícias do Dia de 14-
8-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2sY0vAL.
- Retórica e mística em Laclau. Artigo do sociólogo Horácio González, em artigo publicado
por Página/12 e reproduzido nas Notícias do Dia de 15-4-2015, no sítio do Instituto Humani-
tas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2veBhxl.
- Na Argentina, “os meios de comunicação se transformaram no principal partido opo-
sitor”, afirma Ernesto Laclau. Entrevista com Ernesto Laclau publicada no jornal Página/12
e reproduzida nas Notícias do Dia de 17-10-2012, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, disponível em http://bit.ly/2veVXF6.
- Hegemonia e poder neoliberal. Artigo do psicanalista Jorge Alemán, publicado por Pá-
gina/12 e reproduzido nas Notícias do Dia de 28-4-2015, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2wmZX6D.
- América Latina. “É o melhor momento democrático em 150 anos”, afirma Ernesto La-
clau. Entrevista com Ernesto Laclau publicada no jornal Página/12 e reproduzida nas No-
tícias do Dia de 23-6-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2uhIf34.

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- O Podemos entre hegemonia e multidão: Laclau ou Negri. Artigo de Bruno Cava Rodri-
gues, publicado no blog Quadrado dos Loucos e reproduzido nas Notícias do Dia de 26-2-
2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2vHOUYO.
- Os limites de Errejón e Laclau para as confluências. Juan Domingos Sánchez Estop,
professor de filosofia da Universidade Complutense de Madrid, em artigo publicado por
Contraparte e reproduzido nas Notícias do Dia de 2-5-2016, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2wmGlzN.
- Laclau e a dialética do social e do político: entre movimentos e hegemonia. Artigo de
Toni Negri, publicado por EuroNomade e reproduzido nas Notícias do Dia de 17-6-2015, no
sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2flMFDm.
- Hegemonia e Populismo revisitados no pensamento de Laclau. Entrevista com Daniel
de Mendonça, publicada na revista IHU On-Line número 442, de 5-5-2014, disponível em
http://bit.ly/2sT3gl1.

97

EDIÇÃO 508
CINEMA

O francês Adrien (Pierre Niney) chega de forma misteriosa à vida da alemã Anna (Paula Beer)

98

Uma melodia interrompida


Drama sobre o entreguerras reflete acerca do poder de
recuperação depois da tragédia entre Alemanha e França

Fernando Del Corona1

“Minha única ferida é Frantz”, fala o francês Adrien (Pierre Niney) para a alemã Anna
(Paula Beer) sobre o noivo desta, morto durante a Primeira Guerra, e que Adrien afirma
ter conhecido em Paris antes de começar o conflito. O homônimo do título (Anton von Lu-
cke) já inicia a história morto. Ele é visto apenas através das histórias contadas por Adrien
para a moça e para os pais de Frantz, Hans e Magda (Ernst Stötzner e Marie Gruber), na
pequena vila alemã de Quedlinburg: dois jovens felizes, visitando o Louvre e comparti-
lhando sua afinidade pelo violino. Existe algo sugerido por trás da relação dos rapazes que
a princípio não fica claro. Os familiarizados com a obra de François Ozon (O tempo que
resta e Swimming Pool – à beira da piscina, entre outros) podem achar que sabem o que
vai acontecer, mas o diretor francês não entrega o jogo de maneira tão óbvia. 1
Frantz foi inspirado no pouco conhecido Não matarás (1932), de Ernst Lubitsch – fa-
moso mais por suas comédias do que por filmes densos como esse –, que, por sua vez, se
inspirou em uma peça de Maurice Rostand de 1930 cujo nome permanecerá omitido aqui
por revelar o grande segredo da obra. A história dos dois filmes é a mesma: um ex-soldado
francês visita uma vila alemã e se envolve com a família de um soldado morto durante a

1 Fernando Del Corona é mestrando em Comunicação e especialista em Televisão e Convergência Digital pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos
– Unisinos, graduado em Produção Audiovisual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Em seu artigo de conclusão da
especialização, pesquisou a relação de fãs da série Game of Thrones com spoilers no ambiente do site reddit. Em sua dissertação, em fase de desenvol-
vimento, investiga a presença da imagem-tempo na obra da diretora norte-americana Sofia Coppola.

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guerra. As abordagens dos diretores, porém, são destoantes.


Lubitsch foca no personagem de Adrien e seu conflito interno, começando o filme com
sua confissão para um padre e eliminando o mistério. Anna fica reduzida a um papel quase
secundário, e o filme é mais centrado no sentimento antiguerra que deve ter ecoado com
muito mais potência no público em 1932 – apenas 14 anos depois do armistício. O que
Ozon faz é expandir a história e mudar o protagonista. Em sua versão, Anna toma a frente
da trama, a partir de suas tentativas de lidar com a morte de Frantz e de sua relação com
Adrien e com os o pais de seu noivo.
Anna conhece Adrien como um homem misterioso que deixa flores no túmulo de seu noi-
vo. O jovem se apresenta na casa dos pais de Frantz, onde ela mora, para explicar que eles
eram amigos antes da guerra. Receosos no começo, especialmente Hans, logo começam a se
apegar a Adrien e a suas lembranças e semelhanças com o falecido. Aos poucos, inadvertida-
mente, ele assume o papel de filho substituto, conquistando o afeto de todos na casa – inclu-
sive de Anna, para a frustração de Kreutz (Johann von Bülow), um pretendente de sua mão.
O filme é gravado em um enxuto preto e branco, mas, eventualmente, quando a memória
de Frantz é evocada, a tela se enche de uma cor suave – seja em um flashback, em uma
conversa à beira de um lago ou durante uma delicada melodia tocada por Adrien no violino.
Mesmo que Frantz apareça pouco, sua presença se faz sentir o tempo todo.
Mantendo o mistério revelado logo no começo do original, Ozon aposta mais na dubiedade
por trás da performance enigmática de Niney do que no sofrimento psicológico do perso-
nagem. Parece existir algo além do que é dito nas poucas cenas vistas da história comparti-
lhada por Adrien e Frantz, uma possibilidade impossível de ser explorada por Lubitsch em
sua história. Ao mudar o foco para Anna, Frantz leva a história mais adiante: o clímax do
original marca apenas um ponto de virada nesse, com a história seguindo seu próprio rumo.
Na segunda metade do filme, Anna vai para a França, oferecendo um reflexo da experiência
de Adrien na Alemanha, do olhar do estrangeiro em um país ainda se recuperando da guerra. 99
Durante a estadia de Adrien em Quedlinburg, os locais reagem com raiva à sua presença.
O ressentimento de uma Alemanha amargurada e derrotada é projetado nele e em quem o
cerca. Em uma cena que se repete quase identicamente em ambas as versões, Hans se encon-
tra em um bar entre amigos que o rejeitam por estar abrigando um francês. “Nós somos os
responsáveis”, afirma. “Nós somos os pais que bebem pela morte de nossos filhos.”
Em outro momento, esses mesmos amigos cantam o hino nacional alemão. Essa cena é
espelhada com Anna na França, quando os clientes de um restaurante irrompem cantando
La Marseillaise – durante a cena do bar em Não matarás, um dos amigos de Hans comenta
sarcasticamente que eles deveriam se unir para cantar
o hino francês. O teor sangrento da Marselhesa parece
acentuado por tudo que foi visto antes e pela presen-
ça de Anna ali. O perigo do nacionalismo envolvido na
guerra é exposto através desses momentos. Ozon refle-
te sobre o potencial de reaproximação dos dois países.
Os diálogos transitam entre o francês – “nossa língua
secreta”, diz Anna – e o alemão, assim como a história
se passa tanto na França quanto na Alemanha. Adrien
e Frantz são reflexos um do outro. Através dos parale-
lismos, o filme sugere mais semelhanças do que dife-
renças entre dois países que tentaram se destruir.
Mesmo não sendo um longa típico de Ozon, o diretor
traz uma sensibilidade própria para a produção, atri-
buindo a ela uma vida própria, para além do filme que a
originou. Afastando-se da dramaticidade antiguerra, ele
foca no poder de recuperação tanto em escala nacional
quanto pessoal – uma boa escolha, ao se considerar a
diferença do contexto em que os dois filmes são lança-
dos e ao se colocar ao lado de um diretor tão marcante Frantz (2016), de François Ozon

EDIÇÃO 508
CINEMA

quanto Lubitsch. O filme assume a jornada de Anna, que tenta descobrir se Adrien é apenas
um substituto para o seu noivo ou uma chance de ela recomeçar.
Mesmo que a segunda parte do filme não esteja à altura da primeira, Frantz ainda é um filme
sensível e repleto de boas atuações, com a mais potente sendo a de Beer como Anna, mas apro-
veitando o jeito comedido de Niney, além da presença imponente de Stötzner, em um papel que
fora interpretado magistralmente por Lionel Barrymore no original.
O título original de Não matarás, Broken lullaby, poderia ser traduzido como “canção de ninar
quebrada”. Ainda que não sejam canções de ninar, dois dos momentos mais potentes de Frantz
são pontuados por músicas interrompidas. Em ambos, Adrien toca violino enquanto Anna o
acompanha no piano. São cenas delicadas, e, reforçando um dos temas do filme, revelam a pos-
sibilidade de harmonia entre dois países, o poder de se criar algo belo. Assim como na vida real
– e assim como a vida de Frantz –, a melodia é interrompida. Mas existe sempre a esperança de
que, no final, a cor vai voltar e a música, continuar.

Ficha Técnica
Frantz
Título original: Frantz
100
Direção: François Ozon
Produção: Eric Altmayer, Nicolas Altmayer, Stefan Arndt, Uwe Schott
Elenco: Pierre Niney, Paula Beer, Ernst Stötzner, Marie Gruber
França/Alemanha, 2016, 113 min.

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REVISTA IHU ON-LINE

101

EDIÇÃO 508
CRÍTICA INTERNACIONAL

Paraísos fiscais, jurisdições secretas


e o fluxo financeiro mundial pós-2008
Bruno Lima Rocha

O
tema das Jurisdições Secretas internacionais ultra-
passa a evasão fiscal, de divisas, lavagem de dinhei-
ro e corrupção. A arquitetura financeira que coage
os títulos de dívida pública dos países é a mesma que opera
a favor do capital fictício transformado em obrigações res-
gatáveis, contando com o auxílio de empresas de advocacia
especializadas em operações offshores.
Bruno Lima Rocha1 é professor de relações internacio-
nais da Unisinos, doutor em ciência política pela UFRGS e
jornalista graduado na UFRJ.
Eis o artigo.

Entre os anos de 2007 e 2008, o capitalismo financeiro quase colapsou a economia do “Ociden-
102 te”. A partir de então, ao invés de um esforço de regulação do capital financeiro e redistribuição
de riquezas, houve justamente o oposto. O planeta vê um elevado patamar de desigualdade so-
mado com a interdependência financeira e um fluxo constante de evasão de capital, diminuindo
em todas as sociedades a capacidade de gerar Bem-Estar. Uma das bases estruturantes desta
acumulação na forma de obrigações e capital digitalizado é o sistema de bancos privados ope-
rando em termos mundiais, e o emprego do artifício de trustes e holdings offshores, através de
baixíssima fiscalização nos chamados “paraísos fiscais”. Ao contrário do que é difundido, estes
“paraísos” não estão localizados majoritariamente em pequenas ilhas, e sim diretamente conec-
tados ao centro do capitalismo financeiro. 1
A rede mundial Tax Justice Network (taxjustice.net) opera como um grupo de pressão mun-
dial de advocacy, promovendo o embate direto contra os efeitos do fluxo financeiro em escala
planetária. Um de seus projetos de maior impacto é o Índice de Segredo Financeiro (Financial
Secrecy Index, FSI na sigla em inglês, financialsecrecyindex.com). Neste índice, são escalonados
os Estados ou autonomias jurídico-administrativas operando como “paraísos fiscais” ou o con-
ceito mais desenvolvido, o de “jurisdições secretas”.
Jurisdições Secretas conforme o FSI, implicam uma definição mais ampla, dando conta do
nível de segredo jurídico no que diz respeito à propriedade empresarial, controle acionário e
legislação protetora para os conglomerados instalados nestes Estados. Além do nível de segredo,
o conceito também abarca a escala de atividades através de empresas offshore, ou holdings de
conglomerados instalados nestas soberanias sob a forma jurídica de empresas offshore. Assim,
quanto maior o segredo legal no que diz respeito ao controle de empresas e a existência de of-
fshores com suas características, mais formalizam o índice.
Segundo dados de 2015 – considerando que o FSI é gerado a cada dois anos –, o fluxo de
ilícitos financeiros oscila de um montante da ordem de US$ 1 a 1,6 trilhão (o FSI consulta os
dados do Banco Mundial), incluindo uma perda de US$ 175 bilhões ao ano desviados de ajuda
internacional. O fluxo de ilícitos também é o escoamento mais comum de desvios oriundos de

1 blimarocha@gmail.com. É autor do livro A Farsa com nome de crise (Porto Alegre, Deriva, 2014) disponível em livro eletrônico e acessível em http://
encurtador.com.br/nrMOR.

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Há uma guerra planetária entre


Jurisdições soberanas provedoras
de Segredo Financeiro disputando
o fluxo de capital financeiro”

evasão fiscal, fraude fiscal e o espólio do Estado. Tais fenômenos, comuns na periferia do plane-
ta, podem atingir a área core de economias capitalistas da semiperiferia, tal como ocorreu com
a Grécia, Itália e Portugal, além de evidências de corrupção estrutural e a punição consequente
através de convênios de Cooperação Jurídica Internacional, desmontando pactos internos e pos-
sibilidades de desenvolvimento soberano com estratégia de posicionamento próprio no Sistema
Internacional (SI).
Ao contrário do que circula de forma hegemônica, a evasão fiscal de ilícitos ou o fluxo de fundos
sem origens não formam a maior parte dos ativos financeiros depositados formalmente em Ju-
risdições Secretas. O índice de depósitos externos oriundos de elites locais, classes dominantes
nacionais e alta gerência global oscilam entre US$ 21 trilhões e US$ 32 trilhões. Para dados de
2016 do World Economic Outlook Database/FMI (ver: goo.gl/KUUWaZ), a soma do primeiro
total seria a do PIB dos EUA e da Alemanha em conjunto. Já a soma do segundo total equivale ao
PIB da Superpotência e da China. Vale ressaltar que tais dados são conservadores, pois analisam
de forma aproximada somente os depósitos em Jurisdições Secretas que seriam pertencentes
aos “super-ricos” (High Net Worth Individuals, HNWI na sigla do conceito em inglês). Tais da-
dos foram apurados no estudo de profundidade e referência chamado de The Price of Offshore
Revisited (ver: goo.gl/vG5jY3) e conforme seu autor, James S. Henry, não incluem ativos físicos 103
de alto valor agregado, como embarcações, aeronaves, propriedade imobiliária e composição de
controle acionário através de offshores sob o manto de segredo.
Para dados da pesquisa de 2010, os então 50 maiores bancos privados do planeta operaram
mais de US$ 12,1 trilhões em investimento externo privado, incluindo bens, trustes e fundações,
dentre estes, os de propriedade cruzada ou controle das próprias instituições financeiras. Para o
período, as três maiores instituições financeiras do planeta, UBS, Credit Suisse e Goldman Sachs
(nesta ordem), operaram mais da metade deste montante, indicando um crescente desde 2005.
Ou seja, a bolha e a crise de 2007/2008 não alteraram o posicionamento destes conglomerados
do capital fictício.
Basta cruzar os dados dos 20 maiores bancos privados do mundo (lista de 2010), verificando
sob quais soberanias estas instituições se instalam e cruzar com a lista dos países com índice dos
países com maior nível de Segredo Jurisdicional (FIS). Destes 20 maiores bancos, os países de
origem são: Suíça, EUA, Reino Unido, Alemanha, França e Holanda. Dentre a lista do FIS, os 15
países com maiores facilidades para o fluxo financeiro são: Suíça, Hong Kong (associado à China
continental desde 1997 e antes a Commonwealth), EUA, Cingapura, Ilhas Cayman (Commonwe-
alth), Luxemburgo, Líbano, Alemanha, Bahrein, Emirados Árabes Unidos (Dubai), Macau (re-
gião administrativa especial da China continental, desde 1997), Japão, Panamá, Ilhas Marshall
e Reino Unido (Grã-Bretanha, que se somado com as autonomias territoriais ultramarinas, sobe
na lista dos países com alto nível de Segredo Jurisdicional).
Assim, as Jurisdições Secretas e os fluxos de capital não são algo marginal no capitalismo fi-
nanceiro. Ao contrário, ocupam posição central e têm como protagonista o sistema bancário
privado mundial. Trata-se da forma hegemônica de acumulação privada de recursos coletivos
da história contemporânea. ■

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto
Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

EDIÇÃO 508
PUBLICAÇÕES

Itinerários versados: redes


e identizações nas periferias
de Porto Alegre

Em sua edição de número 260, o Cadernos IHU ideias traz o artigo Iti-
nerários versados: redes e identizações nas periferias de Porto Alegre, de
Leandro Rogério Pinheiro. O texto joga luz sobre questões relacionadas às
periferias da capital gaúcha. O ponto central de seu texto é tentar elucidar,
afinal de contas, de quem e de que se
está falando quando nos referimos às
periferias.
Reduzir o surgimento dessas regiões
à explicação de que elas são o simples
resultado de um processo de exclusão
não leva em conta as complexidades
que estão em jogo. “A formação dessas
localidades, gestadas entre as ações
do capital imobiliário, do poder pú-
104 blico e das populações empobrecidas
que as habitavam/habitam, guarda
relação com a lógica de apropriação
do espaço e da distribuição de riqueza
na sociedade”, aponta o autor.
Acesse a versão completa desse Ca-
dernos IHU ideias em https://goo.gl/
oW1iY5.
Esta e outras edições dos Cadernos
IHU ideias também podem ser obti-
das diretamente no Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, no campus São
Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos,
950), ou solicitadas pelo endereço hu-
manitas@unisinos.br. Informações
pelo telefone (51) 3590-8213.

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Fugindo para a frente: limites


da reinvenção da política no
Brasil contemporâneo

A
edição 261 do Cadernos IHU ideias apresenta o artigo Fugindo para
a frente: limites da reinvenção da política no Brasil contemporâneo,
de Henrique Costa. O autor discute a conjuntura atual e a imobilidade
da esquerda, em estado de paralisia devido à escassez de uma imaginação
política criativa. Costa traça dois pontos importantes que precisam ser pen-
sados em termos sociais: o mundo do trabalho dentro da atual revolução
tecnológica e os excluídos desse novo
universo.
“A dinâmica do capitalismo contem-
porâneo impõe essas novas dicoto-
mias no mundo do trabalho, especial-
mente entre aqueles que conseguem
se colocar de maneira bem-sucedida
nas novas ocupações criadas pela
revolução tecnológica e suas empre- 105
sas de ponta – tão celebradas pelos
adeptos do chamado ‘capitalismo
cognitivo’”, pontua. De outro lado,
destaca: “Uma massa de trabalhado-
res precarizados pela reestruturação
produtiva, alguns dos quais nem mes-
mo adentraram a terceira revolução
industrial, ficando esquecidos pela
morte lenta da obsolescência dos ve-
lhos empregos do século XX”.
Acesse a versão completa desse Ca-
dernos IHU ideias em https://goo.gl/
dkRW2r.
Esta e outras edições dos Cadernos
IHU ideias também podem ser obti-
das diretamente no Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, no campus São
Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos,
950), ou solicitadas pelo endereço hu-
manitas@unisinos.br. Informações
pelo telefone (51) 3590-8213.

EDIÇÃO 508
106

7 DE AGOSTO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

A volta do fascismo e a intolerância como


fundamento político
Edição 490 | Ano XVI | 8-8-2016

“Ao mesmo tempo que há o incremento das possibilidades de expressão


a partir do desenvolvimento de múltiplas tecnologias de comunicação
que potencializam espaços de interação e manifestação de pensamento,
simultaneamente observamos a redução da capacidade de debate, re-
flexão conjunta e coexistência de diferentes pontos de vista. Sobretudo
no campo político, recrudescem posicionamentos autoritários, por vezes
até violentos, fundados em posturas fascistas, em uma antítese da de-
mocracia.”

Segurança urbana e desigualdade social


107

Edição 398 | Ano XII | 13-8-2012

“Enquanto a campanha eleitoral de 2012 estava nas ruas, a opinião públi-


ca assistiu perplexa às alianças partidárias feitas para as eleições mu-
nicipais. A revista discutiu a necessidade e os limites, também necessári-
os, das alianças políticas.”

A política em tempos de niilismo ético

Edição 197 | Ano VI | 25-9-2006

“Há uma clara crise de fundamentos éticos do espaço público brasileiro.


Esta crise, agora extremada, é fundacional: trata-se de, na verdade, con-
struir fundamentos de um Estado que nunca foi, em sentido pleno, repub-
licano. Os principais atores políticos do País têm que dar respostas a esta
crise”. A análise é do professor Juarez Guimarães. Com inspiração em
dois artigos de Guimarães refletindo sobre a contribuição de Henrique
C. de Lima Vaz sobre os temas ética e política, e às vésperas das eleições
de 2006, a revista voltou ao tema.”

EDIÇÃO 508
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