Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A carreira de Ernesto Laclau (1935-2014) foi marcada por sua obra em conjunto
com sua companheira, Chantal Mouffe, com quem trabalhou por um longo período
na Universidade de Essex e com quem escreveuHegemony and Socialist strategy,
em 1985. Essa convergência de esforços parece ter sido substituída, nos últimos
anos, pela adoção de estratégias teóricas distintas (MENDONÇA, 2010).
Em sua última obra, Agonistics, publicada em 2013, Chantal Mouffe optou
por um esforço em compatibilizar o pós-estruturalismo com uma losoa política
normativa, rearmando sua tese de que era possível transformar o antagonismo
em agonismo, de forma a possibilitar a coexistência de diferenças radicais em
uma mesma sociedade. Nesse livro, a autora se esforça para conciliar os conitos
ao redor do mundo – União Europeia, conitos étnicos e religiosos –, com seu
conceito de “agonismo”, indicando a necessidade de trocar o cenário de conitos
irreconciliáveis de inimigos por um respeito mínimo às regras institucionais por
adversários. Nesse câmbio, ganha espaço o caráter normativo da abordagem, e
perde centralidade a abordagem das relações de dominação, tanto na própria
sociedade como na formação das preferências individuais.
A dimensão dessa mudança se torna mais clara quando comparada com a pers-
pectiva adotada por Ernesto Laclau, em sua obra mais recente, A razão populista
(2013). Nesse trabalho, ele optou por aprofundar o diagnóstico da violência nas
sociedades contemporâneas, adotando como objeto a centralidade da noção de
povo e a inviabilidade das teorias liberais que buscam desqualicar a relevância
dessa categoria, ao armar que a valorização do povo implica um “populismo”
com base na manipulação do caráter “irracional” das manifestações populares.
Ao fazer essa escolha, em vez de utilizar categorias racionalistas e intencionais
voltadas à garantia de um consenso, Laclau opta por caracterizar as organizações
sociais em termos de equilíbrios de poder, e não de acordos explícitos ou tácitos,
em que a pretensa “irracionalidade” do povo o desqualica como ator relevante.
a Mestre em Ciência Política pelo IESP-UERJ, doutorando em Ciência Política pela Universidade de
Brasília e professor de Sociologia da UNICEUB.
PLURAL, Revista do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da USP, São Paulo, v.22.1, 2015, p.233-241
234 Fernando dos Santos Modelli
A estratégia de Laclau, por sua vez, é mais próxima das perspectivas empiristas
que, desde Hume, passando por Marx, se contrapõem ao contratualismo, a m de
armar que as estruturas sociais existentes decorrem da cristalização de prefe -
rências sociais e de relações de poder, e não de uma construção racional voltada
a garantir certos princípios fundantes.
No caso de Mouffe, essa mudança faz com que o núcleo da teoria deixe de
ser ocupado pelo reconhecimento empírico dos modos como os conitos sociais
são processados e passe a ser ocupado pelas formas como ações intencionais
podem gerar acordos deliberados, possibilitando o processamento não violento
dos conitos. Essa busca por um “consenso de base sobre as regras do jogo [...]
tem por função esconjurar a violência política. No entanto, a violência continua
presente e ativa nas relações de dominação” M
( IGUEL, 2012, p. 17). E parece que essa
violência irredutível das relações sociais é o objeto das reexões mais recentes de
Laclau, que reforçam a tese de que esses conitos não são processados em termos
normativos (dentro da chave que usa as noções decontrato, consenso e acordo),
mas em termos de poder (em uma chave que se utiliza das noções de equilíbrio,
dominação e hegemonia).
para sua ruptura (L ACLAU, 2013, p. 21). Em vez da atuação concertada de forças
que armam a necessidade de um novo consenso, tem-se a ação justaposta de
movimentos divergentes, que não são redutíveis a qualquer forma de acordo e cujo
único ponto de convergência é a negação do sistema vigente.
A complexidade desses arranjos contrasta com a simplicidade das teorias
que buscam compreender esses movimentos como uma manifestação “do povo”,
em busca de reduzir essas várias dimensões conitivas a uma intencionalidade
popular imanente ao movimento. E é justamente por tematizar essa complexidade
que as reexões de Ernesto Laclau contribuem para o devido entendimento das
manifestações de junho de 2013, especialmente de dois de seus pontos centrais: a
descrença no sistema institucional e a armação do povo como aglutinado, despro-
vido de pautas políticas e seduzido “por uma perspectiva puramente liberal, que
aceita as formas institucionais existentes como o único marco possível de acionar
o político, ou estimulado por uma política de puro protesto que se esgota em sua
autorreferência”(LACLAU, 2013, p. 22-23).
Ernesto Laclau constrói sua abordagem a partir da análise dos discursos anta-
gônicos que buscam compreender a atuação popula r, de modo a tentar compreender
o “populismo” a partir do cruzamento de como os vários discursos lidam com o
caráter popular do movimento. Essa releitura discursiva da noção de povo conduz
Laclau a compreendê-lo não como uma totalidade de indivíduos, mas como união
de “demandas”, diferentes e antagônicas. Nesse ponto, ca clara outra diferença
com relação ao pensamento atual de Chantal Mouffe, que aposta na noção de que
os indivíduos não precisam tratar a divergência como uma forma de inimizade, o
que evidencia que, em sua abordagem, o sistema da política é pensado como rede
de relações entre pessoas, âmbito que conduz às diversas diculdades enfrentadas
na tentativa de compreender o âmbito coletivo como uma rede de ações individuais
coordenadas.
Laclau se afasta das diculdades ligadas a identicar uma vontade popular a
Sua perspectiva teórica vai de encontro com o marxismo, que é uma teoria,
segundo o autor, incapaz de dar conta da compreensão das relações sociais
contemporâneas, pois cou preso a uma concepção essencialista fundamentada
no capital e no trabalho, enquanto a teoria do discurso parte da complexidade do
mundo social e estuda relações discursivas antagônicas (MENDONÇA, 2009, p. 154).
A grande aposta no antagonismo é de que as formações discursivas nunca se
encaminham a um objetivo nal, e a produção de sentidos é contingente. Assim,
o marxismo pecou por xar como sentido nal a luta entre classes e o advento da
sociedade perfeita. O autor, com tal crítica – negação da existência de um ponto
essencial, objetivo e real –, pode ser considerado pós-estruturalista:
A identidade popular torna-se cada vez mais plena de um ponto de vista exten-
sivo, pois representa uma cadeia de demandas cada vez maior; torna-se, porém,
intensivamente mais pobre, pois precisa despojar-se de conteúdos particularistas
O que antes era visto na literatura clássica sobre o populismo como deciência
torna-se, na verdade, uma expressão da pluralidade de opiniões e demandas na
sociedade. Por exemplo, a luta pela redemocratização na América Latina uniu
diferentes demandas – a luta contra o racismo, o machismo e, em especial, contra
os regimes ditatoriais. O resultado, no entanto, não conseguiu cumprir todas as
demandas, que continuaram existindo dentro da democracia. A luta pela demo-
cracia – ou mesmo seu conceito – torna-se indenida, deixando de lado todas as
lutas na sociedade, para transformar-se em um signifcante vazio: “O signicante
vazio ocorre quando um discurso universaliza tanto seus conteúdos a ponto de ser
impossível de ser signicado de forma exata” (MEDONÇA, 2009, p. 162).
O conceito de povo surge como signicante vazio, quando, por meio da equi-
valência de demandas isoladas, uma demanda global forma o antagonismo entre
instituições e o aglomerado de demandas heterogêneas sobre uma construção
discursiva do poder.
a-
Nosso modelo de signicantes vazios. Chegou o momento de eliminá-lo. Até go
ra presumimos que cada demanda não atendida pode incorporar-se à cadeia de
2015
240 Fernando dos Santos Modelli
-se, a partir de Jean Jacques-Rousseau, por meio de uma soberania popular que
inviabiliza a imposição ao povo danecessidade de respeitar as relações tradicionais
de poder cristalizadas na noção liberal de direitos naturais. A relação entre essas
duas tradições é contingente, e o problema do liberalismo é justamente entender
que essa ligação histórica é necessária e universal:
como um dos seus componentes esteja descartado a priori ” (L ACLAU, 2013, p. 249).
Finalmente, destaca-se a importância da nova obra de Ernesto Laclau na reto-
mada de uma teoria política que questione a relação contingente entre soberania
popular e direitos individuais. Porém, uma visão diferente questionaria sobre até
que ponto as instituições liberais conseguem dar resposta à dicotomia povo e
instituições . Sabendo que elas selecionam, principalmente, pela cor, sexualidade
e gênero, pode-se pensar em outra forma da organização do social que não esteja
restrita à dicotomia entre deliberação racional e populismo demagógico.
Plural 22.1
Ernesto Laclau e sua contribuição para a teoria política 241
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS